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A Subversão do Cristianismo, de Jacques Ellul

Portugal, 2024
Projeto DESPERTEM!

Tradução independente para português e sem fins comerciais


a partir da tradução em inglês de Geoffrey W. Bromiley,
publicada em 1986 pela William B. Eerdmans Publishing Company
Grand Rapids, Michigan

Copyright © 1986 por Wm. B. Eerdmans Publishing Company 25


Jefferson Ave. S.E., Grand Rapids, Mich. 49503

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


Edição francesa, La Subversion du Christianisme,
copyright ®Editions du Seuil, janvier 1984

Esta edição não é vendida,


faz parte de um projeto cristão independente
e sem quaisquer fins lucrativos.

A cristandade é um esforço do género humano para voltar a andar de quatro,


para se desembaraçar do cristianismo,
para o fazer de forma maliciosa sob o pretexto de que é o cristianismo,
pretendendo que é o cristianismo aperfeiçoado.

O cristianismo da cristandade ... retira ao cristianismo a ofensa, o paradoxo, etc.,


e no seu lugar introduz a probabilidade, o claramente compreensível.
Isto é, transforma o cristianismo em algo inteiramente diferente do que é no Novo Testamento,
sim, exatamente no oposto; e este é o cristianismo da cristandade, de nós homens.

No Cristianismo da Cristandade, a Cruz tornou-se algo como


o cavalo de batalha e a trombeta da criança.
KIERKEGAARD, "O INSTANTE" 5.2-3
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CONTEÚDO

AS CONTRADIÇÕES 5
AS FORMAS PRINCIPAIS 16
DESSACRALIZAÇÃO E SACRALIZAÇÃO 37
MORALISMO 49
A INFLUÊNCIA DO ISLÃO 66
PREVERSÃO POLÍTICA 78
NIILISMO E CRISTIANISMO 94
O CORAÇÃO DO PROBLEMA 106
DOMÍNIOS E PODERES 119
EPPUR SI MUOVE! 130
4
5

Capítulo 1

AS CONTRADIÇÕES

A questão que pretendo esboçar neste trabalho é uma das que me perturba mais profundamente.
Tal como a vejo agora, parece ser insolúvel e assume um carácter grave de estranheza histórica.
Pode ser posto de forma muito simples: como é que o desenvolvimento do cristianismo e da Igreja
deu origem a uma sociedade, a uma civilização, a uma cultura que são completamente opostas ao
que ao que lemos na Bíblia, ao que é indiscutivelmente o texto da lei, dos profetas, de Jesus e de
Paulo? Não há contradição apenas num ponto, mas em todos os pontos. Por um lado, o cristianismo
tem sido acusado de toda uma lista de falhas, crimes e enganos que não se encontram em lado
nenhum no texto e inspiração originais. Por outro lado, a revelação tem sido progressivamente mo-
delada e reinterpretada de acordo com a prática do cristianismo e da igreja. Os críticos não têm
estado dispostos a considerar nada além desta prática, desta realidade concreta, recusando-se ab-
solutamente a referir-se à verdade do que é dito. Não se trata apenas de um desvio, mas de uma
contradição radical e essencial, ou seja, uma verdadeira subversão.

Este fenómeno não é de modo algum o mesmo que existe entre Marx e a Rússia dos Gulags ou entre
o Corão e os fanáticos do Islão. Não é o mesmo porque, nestes dois últimos casos, podemos encon-
trar a raiz do desvio no próprio texto. Deixarei de lado o segundo caso, que nos levaria demasiado
longe, e concentrar-me-ei no primeiro. É possível traçar um percurso de Estaline a Lenine e de Le-
nine a Marx. Em cada etapa há uma ligação inegável entre um e outro, de modo que se pode ver
facilmente que existe um desvio e que os resultados são trágicos, uma contradição do que Marx
pensou, desejou e esperou. Portanto, num aspeto há uma semelhança evidente entre o que se
passa no marxismo e no cristianismo. Ambos fizeram da prática a pedra de toque da verdade ou da
autenticidade. Por outras palavras, é pela prática que temos de apreciar ou não as intenções ou a
pureza da doutrina, a verdade da origem ou da fonte.

A ligação entre a praxis e a teoria em Marx é bem conhecida. Não se deve esquecer, no entanto, que
se trata de uma ligação circular. Isto significa, finalmente, que a falsa prática gera inevitavelmente
a falsa teoria, e podemos ver a falsidade da prática não só pelos seus efeitos (julgados segundo qual
padrão? Marx teria, sem dúvida, desafiado a emoção humanista ou moral face às enormidades de
Estaline, mas teria certamente controlado o agravamento do poder do Estado, a dissolução da luta
de classes, o aumento da alienação, sendo a prática julgada pela teoria que a inspirou), mas tam-
bém pela nova teoria a que dá origem. Tudo isto ficou patente na expressão teórica do fim do esta-
linismo e do desaparecimento da teoria entre os dirigentes soviéticos que entraram na estrutura do
conflito dos Estados e do seu próprio imperialismo. Também o cristianismo se julga pela prática.
Assim, confrontamo-nos com um desafio constante a esse respeito.
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Toda a revelação do Deus de Abraão, Isaque e de Jacó volta incessantemente ao ponto de que aque-
les que guardam os mandamentos de Deus viverão (cf. Lv 18.5; Ne 9.29; Ez 20.11). Praticar os man-
damentos; o Senhor assim o exige (Dt 25.16; 27.10). Do mesmo modo, o mal e a morte estão ligados
à não prática dos mandamentos ou à prática dos usos de outros povos, de costumes abomináveis
(Lv 18.30). Surge uma distinção radical entre o ouvir e o fazer; há aqueles que ouvem, mas não fazem
(Ez 33.31). Jesus retoma a importância decisiva da prática quase nos mesmos termos. Os verdadei-
ros crentes são aqueles que ouvem e praticam o que ouvem (Lc 8.21). Há uma parábola sobre este
assunto que normalmente não ouvimos muito bem. No final do Sermão do Monte (Mt 7.24-27) en-
contramos a conhecida parábola do homem que constrói a sua casa sobre a rocha ou sobre a areia.
A casa sobre a rocha é sólida e resiste à tempestade e à enxurrada. A casa na areia colapsa. Diz-se
geralmente que a rocha é o próprio Jesus. Mas não é essa a parábola. O que Jesus diz é que aqueles
que ouvem as suas palavras e as põem em prática são como aquele que constrói sobre a rocha. Por
outras palavras, a rocha é o ouvir e o fazer. A segunda parte, porém, é mais restritiva. Aqueles que
ouvem as palavras que ele diz e não as põem em prática são como os que constroem sobre a areia.
Aqui, sem dúvida, só a prática está em causa. Podemos, portanto, dizer que isso é o critério decisivo
da vida e da verdade. Na primeira geração cristã não há dúvidas sobre o assunto. Paulo, o teólogo
da salvação pela graça, recorda-o constantemente com grande força.1 “Não são os ouvintes da lei
que são justos diante de Deus, mas os praticantes da lei que serão justificados. Quando os gentios
que não têm a lei fazem por natureza o que a lei exige ... eles mostram que o que a lei exige está
escrito nos seus corações...” (Rm 2.13-15). Alguns têm desejado obstinadamente colocar uma con-
tradição entre a teologia da fé de Paulo e a teologia das obras de Tiago. Mas isso é radicalmente
errado.

Paulo insiste incessantemente na importância crucial da prática. Não é por acaso que cada uma
das suas epístolas culmina com uma longa admoestação mostrando que a prática é a expressão
visível da fé, da fidelidade a Jesus. Ele resolve a contradição básica numa passagem fundamental
em Efésios: “Pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não é obra vossa, é dom de Deus; não por
causa das obras, para que ninguém se glorie. Porque somos trabalho Seu, criados em Cristo Jesus
para as boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas” (2.8-10).

O contexto é essencial. O que é rejeitado e posto de lado é a autojustificação, a glorificação de si


mesmo por si mesmo, a autossuficiência na conduta da vida, a prática do bem, etc... Somos salvos
pela graça, não pelas obras. Por isso, não podemos glorificar as obras. No entanto, fazê-las é indis-
pensável, pois elas são preparadas com antecedência por Deus, estão no seu “plano”, e nós fomos
criados para fazê-las. Não é Deus que as faz, somos nós que temos essa responsabilidade. Em Paulo,
portanto, a prática é o critério visível de que recebemos seriamente a graça e também de que en-
tramos efetivamente no plano de Deus. Para Paulo, como para Jesus, a prática é a pedra de toque
da autenticidade. Estamos aqui na presença de algo que é constante ao longo dos séculos.

Aqueles que atacam o cristianismo costumam fazê-lo, então, por apontar primeiro para a nossa
prática desastrosa. Os ataques de Voltaire, Holbach, Feuerbach, Marx, Bakounine,2 para não falar
dos que nos dizem respeito mais diretamente, são fundamentados. Em vez de nos defendermos

1 Também em João, temos a bela declaração de Jesus, depois de mostrar aos seus discípulos o que significa ser um servo
dos outros e de lhes lembrar que todos os crentes nele são servos: “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as pra-
ticardes” (13.17). Também aqui a prática é a pedra de toque da salvação e do amor.

2 E, devo acrescentar, a crítica profunda e espiritualmente pertinente de B. Charbonneau.


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deles e tentarmos uma apologética maladroit (desajeitada), inútil e desprezível, devemos ouvi-los
e levar a sério o que dizem. Porque eles derrubam o cristianismo, isto é, o desvio a que a prática
cristã submeteu a revelação de Deus.

Não devemos transformar isto, como se faz frequentemente, numa oposição entre a mensagem
pura de Jesus e o terrível Deus dos judeus ou o detestável Paulo, um falso intérprete. Há uma coe-
rência total entre o que sabemos de Jesus, o Cristo, e o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Há também
uma coerência total entre o evangelho de Cristo nos Evangelhos e o evangelho sobre Cristo, como
em Paulo, entre outros.

Dizer que os próprios Evangelhos, tal como os temos agora, foram falsificados pela primeira ou se-
gunda geração de cristãos para fazer Jesus coincidir com a sua própria mensagem e proclamação
só é possível em nome de um Jesus ‘refabricado’ por este ou aquele estudioso moderno em favor
de uma ideologia de estimação, como o Jesus socialista, o Cristo monárquico, o Jesus “histórico”,
o Jesus proletário, o Jesus poeta gentil, o Jesus revolucionário violento, ou o Jesus palhaço - sem-
pre derivado unicamente da invenção individual. Não, o ataque dos não cristãos é perfeitamente
válido e deve ser ouvido como testemunho da terrível distância que a prática cristã criou em relação
à revelação.

A dificuldade reside precisamente no facto de não se poder dizer: ‘É certo que a nossa prática é
pobre, mas consideremos a beleza, a pureza e a verdade da revelação’. Nós insistimos na unidade
das duas. Temos de compreender isto: Nenhuma revelação reconhecível existe separada da vida e
do testemunho daqueles que a portam. A vida dos cristãos é que dá testemunho de Deus e do sen-
tido desta revelação. ‘Vede como se amam uns aos outros’ - é aqui que começa a aproximação ao
Deus Revelado. “Se vos devorais uns aos outros, não tendes em vós o amor de Deus”, etc... Não
existe uma verdade pura de Deus ou de Jesus Cristo à qual possamos regressar, lavando as mãos
daquilo que nós próprios fazemos. Se os cristãos não se compatibilizam na sua vida com a sua ver-
dade, não há verdade. É por isso que os acusadores dos séculos XVIII e XIX tinham razão em inferir
a falsidade da própria revelação a partir da prática da Igreja. Isto faz-nos ver que, ao não sermos o
que Cristo exige, tornamos toda a revelação falsa, ilusória, ideológica, imaginária e não-salvífica.
Somos assim obrigados ou a ser cristãos ou a reconhecer a falsidade do que acreditamos. Esta é
uma prova inegável da necessidade de uma prática correta.

Temos de admitir que existe uma distância incomensurável entre tudo o que lemos na Bíblia e a
prática da Igreja e dos cristãos. É por isso que posso falar validamente de perversão ou subversão,
pois, como mostrarei, a prática tem sido totalmente oposta ao que nos é exigido. A meu ver, esta é
a questão sem resposta que Kierkegaard enfrentou na sua época. Ele respondeu-lhe à sua maneira.
Hoje, temos de tentar algo diferente. Temos de seguir um caminho diferente e retomar esta busca
da consciência.

Temos de evitar dois erros. O primeiro é o de rejeitar todo o passado da Igreja, de desprezar e con-
denar tudo o que ela fez, de dizer categoricamente, como se diz hoje incessantemente e de forma
abominável, que a Igreja é sinónimo de obscurantismo. Nesta visão, o pensamento judaico-cristão
é a causa ou a origem de todos os males modernos, do absolutismo estatal, da alienação capitalista,
do engano e da hipocrisia universais, dos complexos de Édipo ou de culpa, da subordinação das
mulheres, da escravização do Terceiro Mundo, da espoliação da natureza. A igreja medieval é a
8

Inquisição, a servidão, as Cruzadas, a teocracia, a construção forçada de catedrais por um povo


brutalizado e aterrorizado. Um pouco mais tarde é Galileu, a origem do capitalismo, a invasão e
subjugação do mundo inteiro, a destruição das culturas nativas originais, o esmagamento dos po-
vos sob o dogma e a moral cristãos. Todos os males derivam da fé judaico-cristã e, a par destas
acusações ferozes e simplistas, encontramos uma glorificação do pagão3 puro e alegre, de um poli-
teísmo humano e liberal, de uma infância espiritual que o cristianismo supostamente tornou abor-
tiva.

Há um pouco de verdade em tudo isto - muito pouco - no que diz respeito à Cristandade. Mas é
necessário um exame histórico exato, porque existe também uma boa dose de exagero polémico
no interesse do que são, na realidade, ideologias totalitárias. Não existem, verdadeiramente, mui-
tos factos. Um dia escreverei um apelo ao passado da Igreja face aos absurdos que nos são servidos.
Não é menos verdade, porém, que por detrás de tão disparatadas acusações está a verdadeira sub-
versão do cristianismo.

O outro erro é o de proclamar que hoje as coisas são diferentes, ou mesmo que houve um outro
lado da história cristã, que é preciso lembrar que ela incluiu São Francisco ou Las Casas, que houve,
por vezes, belos reavivamentos da verdade (o Sínodo de Barmen), que houve até papas autênticos,
e que incontestavelmente sempre houve uma fé individual e escondida. Tudo isto é verdade, mas
não afasta as acusações maciças, exageradas e infantis, cujo verdadeiro objetivo é submeter a hu-
manidade a uma nova escravidão.

Os cristãos também não devem aceitar todos os ataques ao passado da Igreja e depois responder:
‘Sim, mas vejam como as coisas mudaram hoje’. Ontem a Igreja era contra os pobres, hoje é a favor
do socialismo, do comunismo, dos trabalhadores imigrantes. Ontem patrocinava a monarquia, hoje
é a favor da democracia. Ontem apoiava o patronato, hoje favorece os sindicatos. Ontem afirmava
ter a verdade absoluta e era dogmática, hoje deixa as pessoas acreditarem no que quiserem. Ontem
defendia uma moral sexual feroz e rígida, hoje é a favor do aborto, da homossexualidade, etc... Po-
der-se-ia continuar indefinidamente. Já ataquei este retrato plástico noutro lugar.4 Não existe aqui
qualquer progresso. A Igreja adotou simplesmente, por completo, as ideias e os comportamentos
da sociedade moderna, tal como o fez com as sociedades passadas. Mesmo na defesa dos pobres,
isso não é mais verdade hoje do que era há cem ou duzentos anos. A traição é exatamente a mesma.
Nenhuma verdade está encarnada nesta simples conformidade com a tendência dominante na
nossa sociedade. Temos exatamente a mesma subversão do cristianismo, com o orgulho (‘somos
os primeiros a compreender finalmente o evangelho’, como proclama ingenuamente o bom F.
Belo)5 e a hipocrisia de bater no peito das gerações anteriores por causa das faltas cristãs. Não vol-
tarei a este ponto.

É preciso também evitar explicações simplistas sobre a perversão. Lembro-me de três. A primeira
utiliza a famosa fórmula de Loisy, segundo a qual os primeiros cristãos esperavam a vinda imediata

3Cf. J.-M. Benoist, Comment peut-on être païen? (Paris: Albin Michel, 1981); Manuel de Dieguez, L'Idole monothéiste (Paris:
PUF, 1981).

4J. Ellul, Fause Présence au monde moderne (Paris: Éditions de l'ERF, 1964); ET False Presence of the Kingdom (Nova Iorque:
Seabury, 1972).

5 F. Belo, La Lecture matérialiste de l'Evangile de Marc (Paris: Éditions du Cerf, 1974).


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do Reino de Deus, e o que veio foi a Igreja. Todos os desvios são supostamente devidos ao atraso:
as alegadas falsificações dos textos evangélicos, o correlativo endurecimento e enfraquecimento
da fé e da esperança, a contração do amor, a perda do sentido das origens comunitárias, a criação
de instituições e de uma hierarquia com o fundamento de que era necessário organizar-se para su-
portar a espera contínua. Penso que tudo isto está completamente errado. Trata-se apenas de uma
interpretação datada, subjetiva e relativa de certos textos que são escolhidos como verdadeiros.
Nada nos permite pensar que os discípulos de Jesus esperavam uma realização imediata do Reino
de Deus. Nada nos permite pensar que os textos em que Jesus proclama uma longa espera sejam
falsos.

Os discípulos tinham de aprender a viver no mundo. O mundo tinha de se tornar, de novo, portador
da possibilidade do amor dirigido ao verdadeiro Deus. Não era necessário que houvesse uma mu-
tação mágica, mas que se iniciasse uma nova história. Do mesmo modo, não temos a oposição ele-
mentar da distância entre um ideal e a sua realização. Não, a ação de Deus em Jesus Cristo, a reve-
lação divina que começou com Abraão, não tem nada a ver com um ideal. Não há aqui nenhum
ideal no sentido vulgar e banal do termo. Nem há idealismo filosófico. A crença de que Deus criou o
mundo, que revelou a sua vontade para a humanidade e que nos salva da morte não tem absoluta-
mente nenhuma relação nem com a Ideia de Hegel nem com o idealismo dos filósofos (que Marx
ataca). A subversão do cristianismo não se deve à impossibilidade de viver à altura de um tal ideal.
Porque esse ideal não existe.

Desde o princípio, temos um realismo e um materialismo completos. A ideia de que Deus não existe.
Os filósofos do movimento da Morte de Deus tiveram razão em destruir esta ideia que bloqueia
completamente o sentido da revelação. Finalmente, e na mesma linha, a questão não é a antítese
entre o espiritual (constantemente retomada pelos movimentos espirituais e milenaristas) e o ins-
titucional. Mais uma vez, a revelação de Deus não é apenas uma questão espiritual. O Espírito Santo
não é apenas espiritual. Estas três antíteses elementares têm, evidentemente, em cada caso, um
mínimo de verdade; veremos isso à medida que avançarmos.

A verdadeira essência da subversão é indicada pelo próprio termo “cristianismo”, que dá ao assunto
a força de um “ismo”. Uma palavra terminada em “ismo” denota uma tendência ideológica ou dou-
trinária derivada de uma filosofia. Assim, temos o positivismo, o socialismo, o republicanismo, o
espiritualismo, o idealismo, o materialismo, etc... Nenhuma destas palavras, porém, designa a filo-
sofia em si. Na verdade, pode ser diretamente oposta a ela. Tanto Marx como Kierkegaard tentaram
evitar que o seu pensamento fosse reduzido a um mecanismo ideológico. Mas não conseguiram
impedir os seus sucessores de congelar o seu pensamento vivo num (ou em muitos) sistema, e as-
sim surgiu uma ideologia. Mesmo Sartre aceita o termo existencialismo sem ver como ele perverte
o que está a dizer. No momento em que a mutação do pensamento existencial para o existencia-
lismo se dá, um fluxo vivo é transformado num canal de irrigação mais ou menos regulado e estag-
nado e, à medida que o pensamento se afasta cada vez mais da fonte, torna-se banal e familiar.

O sufixo “ismo” infunde algo de novo num sistema bem marcado e bem definido. À medida que a
originalidade é eliminada e substituída por lugares-comuns, a vida e o pensamento perdem o seu
carácter original e coerente. O sistema bem definido é agora vago e fluido. As passagens são esca-
vadas em todas as direções. A partir do ponto de partida, abrem-se várias possibilidades de explo-
ração, que são de facto utilizadas. Surge assim um curioso sistema formado por muitas tendências,
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muitas vezes contraditórias, mas todas abrangidas pelo “ismo” relevante. Num relaxamento final
do nó original da vida e do pensamento, que estão geralmente unidos no criador e nos seus discí-
pulos imediatos, o “ismo” assume por vezes a forma de uma tendência sociológica prática, um tipo
de organização ou movimento de massas, como o socialismo, o comunismo, o monarquismo ou o
republicanismo.

Neste ponto, há uma distância ainda maior entre a rocha da primeira vida e pensamento e os resí-
duos arenosos que agora a envolvem. O marxismo e o que dele derivou durante um século inteiro
não têm nada em comum. O mesmo acontece sempre que se faz um “ismo” em nome de algum
criador, como o Tomismo, o Luteranismo ou o Rousseauísmo. Parece que, em todos os casos, o
desvio e a subversão mencionados são típicos do mundo ocidental. Não precisamos de o fazer aqui.
O único ponto é que o aspeto “ismo” do cristianismo não lhe é particular. Resultados semelhantes
ocorrem em muitos outros casos. No entanto, a perversão ou subversão aqui é muito mais vasta,
aberrante e incompreensível do que em qualquer um dos outros.

Para os cristãos, isto coloca uma questão sem resposta. Estamos perante mais do que um simples
movimento sociológico. Se tentássemos abolir a palavra cristianismo, o que é que teríamos a dizer?
Em primeiro lugar, a revelação e a obra de Deus realizada em Jesus Cristo, em segundo lugar,
o ser da Igreja como corpo de Cristo e, em terceiro lugar, a fé e a vida dos cristãos na verdade
e no amor. Como não podemos continuar a repetir esta longa fórmula tripla, usaremos agora X
para designar estes três aspetos. A palavra cristianismo só deve ser utilizada para designar o movi-
mento ideológico e sociológico que é a sua perversão.

Para completar o nosso esboço do que é para mim uma questão tão difícil, temos de levar em conta
outro fator. Já dissemos, e vamos mostrar longamente, que a prática cristã tem sido constante-
mente uma subversão da verdade em Cristo. Isso não deveria ter acontecido. Jesus diz-nos: Eu es-
tarei convosco até ao fim do mundo. Ele também promete enviar-nos o seu Espírito. A Igreja tem
visto no Espírito a terceira pessoa da Divindade, parte integrante do Deus único.6 Se Deus está com
a sua Igreja, se está presente através do seu Filho ressuscitado e do seu Espírito, garantindo-se
desta forma a permanência da sua obra, como é que tudo isto pode ter sido finalmente pervertido?
E tão depressa, tão constantemente? Não posso aceitar a solução demasiado simples de dizer que
há uma distinção entre o que nós vemos e as coisas boas e belas que Deus vê no seu misterioso
esconderijo, pois sabemos que é exatamente o contrário. Também não me contento com o argu-
mento fácil de que as instituições e os atos públicos não contam, mas que devemos ter em conta a
vida devota e fiel de cada cristão que é guiado por Deus e que não podemos ver.

Também não posso aceitar referências à igreja invisível, nem a dissolução das ações de Deus nas
ações humanas, para que possamos dizer com vergonha: ‘Bem, afinal, se a igreja falhou, é apenas
a igreja... E Deus já não fala nem vem através da Igreja, mas identifica-se com as criações humanas,
exprimindo-se pela revolução, pelas guerras de libertação, pela defesa da causa dos pobres, pela

6Um Deus em três pessoas. Não retomarei a interminável discussão teológica, que sempre me surpreendeu, ligada unica-
mente a uma filosofia essencialista e substancialista. Afinal, tenho um corpo, um pensamento, sentimentos e vontade, mas
não sou ainda uma pessoa, mesmo que quando ajo materialmente seja diferente de quando penso e estou mergulhado na
reflexão? Não deveríamos também recordar que “pessoa” vem de persona, a máscara do ator? Ao vir até nós, Deus coloca
diferentes máscaras. Ele é Pai e Criador, Filho e Salvador amoroso, Espírito santificador. Deus assume estes modos de ser
para poder ser compreendido pela fraqueza e ignorância humanas.
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instauração da justiça social’ - a nova versão da teologia natural em constante recuperação, o dis-
cernimento da revelação de Deus naquilo que nós, humanos, fazemos. A tudo isto temos de dizer
um resoluto NÃO. Tudo isto é antibíblico. É contrário a tudo o que foi feito por Deus em Jesus Cristo.

A questão mantém-se. Se o Espírito Santo está e esteve com os cristãos e com as Igrejas, não deve-
ríamos ter assistido à terrível subversão que substituiu o cristianismo, ou melhor, o X de Deus, por
um cristianismo remodelado pelo mundo. Devemos, então, acreditar que Deus se retirou e se calou?
Tentei dizer algo do género na minha Espérance oubliée.7 Devemos pensar que Deus falhou? Mas o
fracasso de um cristianismo que exprime o que nós fizemos da revelação não altera em nada o que
Deus realizou. Ele encarnou. Jesus Cristo, o Filho, morreu (e os nossos pecados foram perdoados).
Ele ressuscitou (e a morte, o caos e o demónio foram derrotados). Sejam quais forem os percalços
da história ou os erros e aberrações da raça humana, estas coisas perduram. O que está feito está
feito. Independentemente do que façamos do cristianismo, a obra e a realização de Deus são com-
pletas e estão inscritas na história humana.

A questão, porém, diz respeito ao que fizemos delas. Agora, pelo Espírito Santo, elas têm um im-
pacto na história. Mas o Espírito Santo não é mais ditatorial, autoritário, automático ou autossufi-
ciente do que a Palavra de Deus ou Jesus Cristo. O Espírito Santo liberta. Onde está o Espírito do
Senhor, há liberdade. Por outras palavras, nenhum constrangimento pesa sobre nós para nos obri-
gar a fazer o que Deus decidiu. Pelo contrário, o Espírito é uma força que nos liberta de toda a es-
cravidão e nos coloca numa situação de liberdade, de escolha e de possibilidades abertas. É uma
força de verdade que nos ilumina e nos dá uma visão nova e profunda de nós mesmos e do mundo.
É um poder que aumenta a ação humana quando optamos por fazer a vontade de Deus. É, final-
mente, uma força de consciência que nos mostra qual é a vontade de Deus (o Espírito conduz a toda
a verdade), ou seja, que nos impede, quando convertidos e iluminados pelo Espírito Santo, de pro-
curar um refúgio final na ignorância. Ele torna possível a plena consciência do valor e do alcance da
nossa prática. Torna-nos plenamente responsáveis. Este é o resultado da presença do Espírito
Santo.

Ao fabricar o cristianismo, portanto, os cristãos sabiam o que estavam a fazer. Eles escolheram li-
vremente esse caminho. Eles abandonaram voluntariamente a revelação e o Senhor. Optaram por
uma nova escravidão. Não aspiraram ao dom pleno do Espírito Santo que os teria habilitado a per-
correr o novo caminho que ele abriu. Fizeram uma escolha diferente e deixaram o Espírito Santo
desocupado, ocioso, presente apenas por sofrimento. É por isso que a questão que se coloca é uma
questão puramente humana: Porque é que os cristãos tomaram este rumo contrário? Que forças,
mecanismos, apostas, estratégias ou estruturas induziram esta subversão? Para o engrandeci-
mento humano e nada mais.

7 J. Ellul, L'Espérance oubliée (Paris: Gallimard, 1972); ET Hope in Time of Abandonment (Nova Iorque: Seabury, 1973).
12

II

É preciso formular claramente esta contradição global, e depois dedicaremos o resto deste estudo
à sua elucidação. X é subversivo em todos os aspetos, e o cristianismo tornou-se conservador e anti-
subversivo. X é subversivo em relação a todo o tipo de poder. Um deles é o dinheiro, porque Jesus
chamou-lhe mamon, e ninguém pode servir a dois senhores. Há uma incompatibilidade radical en-
tre o dinheiro e Cristo. Jesus recomenda aos seus discípulos que não tenham dinheiro. Paulo mos-
tra que o dinheiro existe simplesmente para dar. Tiago argumenta que o dinheiro acumulado pelos
ricos resulta inevitavelmente de um roubo que vitima o trabalhador. O dinheiro é em si mesmo uma
força de desvio. É um dos principais objetos da cobiça, e a cobiça é a raiz de todos os pecados e
males.

Poder político? Não foi por acaso que os primeiros cristãos foram atacados no Império Romano
como perigosos anarquistas, como agentes subversivos da ordem romana. Tinham objeções cons-
cientes contra o serviço militar, contra a administração e contra o imperador. Afirmavam que os
cristãos não deviam entrar na administração imperial ou ocupar cargos. Testemunhas da época
atestam a inquietação que isso causava. À medida que a fé cristã aumentava, os funcionários dimi-
nuíam. Os historiadores modernos perguntam-se se a dissolução do império não se deve, em
grande parte, a esta atitude cristã. O número de romanos recrutados diminuiu, pelo que os solda-
dos tiveram de ser recrutados entre os “bárbaros”. A fuga às responsabilidades políticas e adminis-
trativas marcou a elite. Não estou a dizer que esta tese é verdadeira. O que quero dizer é simples-
mente que era assim que os contemporâneos viam os cristãos dos séculos II, III e IV. Era esta a opi-
nião que tinham sobre eles. E deve ter algum fundamento.

Teremos de dedicar um capítulo especial aos textos que nos levam a supor, de um ponto de vista
bíblico, que X teve de facto um efeito politicamente subversivo. Mas, para evitar confusões, é pre-
ciso dizer que não se trata de um programa de substituição política, de uma vontade de mudar as
instituições ou o pessoal político, de uma preferência pela democracia em vez da ditadura, de uma
tentativa de transformação social (cf. a escravatura, que os primeiros cristãos são acusados de não
terem abolido). A atitude em causa era a atitude mais profunda de rejeição de todas essas coisas, a
contestação não só de um poder, mas de todo o poder, a desejada transparência nas relações hu-
manas que se manifesta em laços (incluindo os familiares) e relações (incluindo as sociais) de um
tipo completamente novo.

A subversão, no que diz respeito a todas as religiões, começou com os judeus (tal como a contesta-
ção do poder real). O fenómeno religioso é contrário à revelação de Deus a Abraão e a Moisés, à
presença de Jesus entre nós. Mais uma vez, referimo-nos aqui ao julgamento dos contemporâneos
dos primeiros cristãos. Os gregos e os romanos consideravam-nos ateus e irreligiosos. Não apenas
em relação ao culto do imperador, que era uma questão política e religiosa, mas em relação a todos
os cultos. Quando o imperador, vendo o que considerava uma nova religião a crescer no império,
se ofereceu magnanimamente para colocar Chrestus no panteão entre outros deuses, este estranho
povo recusou. Não eram nada liberais. Este facto provocou a ira do imperador. Não se tratava sim-
plesmente de colocar Cristo entre os deuses, ou mesmo de fazer prevalecer uma religião superior
sobre as religiões pagãs inferiores. Tratava-se de destruir as religiões e um espírito religioso infantil.
13

A este respeito, há uma continuidade total entre o judaísmo e o que foi então ensinado por Jesus e
Paulo.

Destruição até na moralidade. Como a ação permanente de Deus é a liberdade humana, a verda-
deira liberdade e não apenas uma vontade humana autónoma, uma busca por independência e
incoerência, é impossível apoiar as ordens morais atuais, os princípios filosóficos, naturalistas ou
sociológicos de uma moral que estabelece o bem e o mal.

Desde o início do Génesis, aprendemos um facto espantoso cujas implicações raramente foram
compreendidas. O que Adão e Eva adquirem quando tomam o fruto é o conhecimento do bem e do
mal, isto é, o conhecimento no sentido da capacidade de afirmar, como Deus faz, que isto é bom e
aquilo é mau. Não existe um bem e um mal acima de Deus, que até Deus seja obrigado a aplicar.
Não existem um bem e um mal transcendentes, como pensamos constantemente quando julgamos
que o Deus do Antigo Testamento está errado quando, por exemplo, ordena a Abraão que sacrifique
o seu filho. Ser como Deus é ser capaz de declarar que isto é bom e aquilo é mau.

Foi isso o que Adão e Eva adquiriram, e foi essa a causa da rutura, porque não há absolutamente
nada que garanta que a nossa declaração corresponderá à de Deus. Assim, estabelecer a moral é
necessariamente fazer o mal. Isto não significa que uma simples supressão da moral (corrente, ba-
nal, social, etc...) restitua o bem. O próprio Deus liberta-nos da moral e coloca-nos na única situação
ética verdadeira, a da escolha pessoal, da responsabilidade, da invenção e da imaginação que de-
vemos exercer para encontrar a forma concreta da obediência ao nosso Pai. Assim, toda a moral é
anulada. Os mandamentos do Antigo Testamento e as admoestações de Paulo não são, em nenhum
sentido, moralidade. Por um lado, são a fronteira entre o que traz a vida e o que traz a morte; por
outro lado, são exemplos, metáforas, analogias ou parábolas que nos incitam à invenção. Quando
Jesus rompe consciente e deliberadamente com os mandamentos que se tornaram morais, quando
faz da transgressão uma espécie de conduta constante que os seus discípulos devem adotar, e
quando Paulo pergunta brutalmente por que razão devemos guardar mandamentos que se torna-
ram apenas mandamentos humanos, eles não visam apenas a lei judaica, mas toda a moral.

Subversão da cultura? Isto parece ainda mais estranho. Mas é exatamente o que o texto bíblico in-
dica. Sabemos até que ponto o Antigo e o Novo Testamento estão impregnados das culturas circun-
dantes. Podemos encontrar vestígios de textos egípcios (Jó e muitos outros livros) e assírio-caldeus
em toda a Bíblia hebraica. Até no Eclesiastes se pensa numa origem incontestavelmente grega ou
egípcia. Toda a gente sabe, também, que Paulo se inspira muito no estoicismo para os seus conse-
lhos morais. Mas será que podemos ter a certeza de que estes textos culturais exprimem a revelação
de Deus? Ou será que a revelação não pertence exclusivamente aos judeus? Não haverá manifesta-
ções dela noutros povos? Na minha opinião, o ponto crucial dos empréstimos é a forma como os
textos são tratados. Nunca os textos babilónicos ou iranianos ou egípcios ou gregos são inseridos
tal como são, na sua identidade própria, mas são utilizados, e sempre de forma polémica, isto é,
para mostrar que o sentido do texto em questão é irrelevante e falso.

Em toda a Bíblia, no que respeita às culturas circundantes, há aquilo a que os situacionistas cha-
mam reorientação. Uma das formas de ação revolucionária que propuseram é a de pegar num texto
e dar uma nova volta ao seu sentido objetivo, de modo a fazê-lo dizer outra coisa. Foi exatamente
o que fizeram os escritores judeus e cristãos. Pegaram num texto e aplicaram-no a uma situação
14

diferente. Mudaram certos termos e colocaram o texto num contexto que alterou o seu sentido ori-
ginal.

Assim, o poema egípcio que se insere em Jó é radicalmente alterado porque se relaciona com o
Deus de Israel. Mais uma vez, as histórias de Génesis, como hoje se reconhece, são construídas
numa polémica contra as cosmogonias babilónicas. A moral estoica deixa de ter o seu pretenso
sentido e alcance (universal) quando se insere no movimento de morte e ressurreição, de justifica-
ção e santificação; embora as frases permaneçam as mesmas, o sentido é radicalmente quebrado.

Isto acontece de muitas maneiras diferentes. O humor é uma das formas utilizadas pelos hebreus.
Pegam numa palavra e, ao mudar uma letra, dão-lhe um sentido totalmente novo. Modificam a
aplicação de uma citação (como faz Paulo, por exemplo, com o provérbio cretense). Brincaram com
as palavras de modo a ridicularizar o texto ou a pessoa ou a obter um efeito muito diferente. Alguns
exemplos são muito familiares, como chamar bezerro ao touro do culto cananeu, transformar Baal
em Bel-Zebub (o deus das moscas), etc...

Portanto, os hebreus estão inseridos no meio das culturas: não se fecham a elas, conhecem-nas e
utilizam-nas, mas fazem-nas dizer outras coisas. É a subversão da cultura. Um projeto interessante
e nunca realizado seria o de medir a distância entre um texto original e o mesmo texto inserido na
Bíblia, ou de analisar o processo de reorientação utilizado. (Serviria de modelo para o que devería-
mos fazer com a nossa própria cultura).

Podemos contentar-nos com estes exemplos de subversão por X de tudo o que constitui o mundo
político, económico e cultural. Teremos de ver mais tarde os pormenores de cada caso.

Mas qual foi o resultado? Um cristianismo que é, ele próprio, uma religião. O melhor, poder-se-ia
dizer, o auge da história religiosa. (O que incomoda é que o Islão vem a seguir!) Uma religião classi-
ficada como monoteísta. Uma religião marcada por todos os traços da religião: mitos, lendas, ritos,
coisas sagradas, crenças, clero, etc... Um cristianismo que formou uma moral, e que moral! - a mais
rigorosa, a mais moralista, a mais debilitante, a que mais reduz os adeptos a crianças e os torna
irresponsáveis, ou, se eu quisesse ser malicioso, diria que é a que faz deles imbecis felizes, que têm
a certeza da sua salvação se obedecerem a essa moral, uma moral que consiste na castidade, na
obediência absoluta (que acaba por ser, de forma inédita, o valor supremo do cristianismo), no sa-
crifício, etc... Um cristianismo que se tornou totalmente conservador em todos os domínios - polí-
tico, económico, social, etc... - que nada pode alterar ou mudar. O poder político, isso é bom. Tudo
o que o contesta ou critica, é maligno.

Os cristãos, em nome da sua consciência, têm de obedecer aos poderes dominantes. Não só isso,
como têm de apoiar ativamente esses poderes. Têm de lutar contra tudo o que ameaça esses po-
deres. O mesmo se passa com a ordem social e económica. Deus quis a hierarquia. Os pobres são
pobres por vontade de Deus, os ricos são ricos pela mesma razão. Pôr isto em causa é ir contra a
vontade de Deus. O cristianismo tornou-se uma força constante de anti-subversão. Foi posto ao
serviço do Estado, por exemplo, por Luís XIV ou Napoleão. Foi posto ao serviço do capitalismo pela
classe média do século XIX. Defende a ordem moral...
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Encontramos exatamente a mesma inversão na esfera cultural. O cristianismo absorve as culturas


como uma esponja. Dominado pela cultura greco-romana, tornou-se territorial e feudal (beneme-
rência) no mundo feudal, com todas as crenças (como veremos) que o sustentam. Depois tornou-
se burguesa, urbana e argêntea com o sistema capitalista. Atualmente, está a tornar-se socialista
com a difusão do socialismo. Ajudou a espalhar a cultura ocidental pelo mundo quando o Ocidente
estava a conquistar e a subjugar o mundo. Atualmente, deixa-se impregnar pelos valores das cultu-
ras africanas, orientais e dos índios americanos. Sempre pronta a justificar-se, afirma estar do lado
dos fracos. Amanhã poderemos ter uma adaptação ao Islão, como hoje temos uma adaptação ao
marxismo. Temos agora um cristianismo racionalista ou liberal, como tínhamos um cristianismo
aristotélico ou platónico, num artifício de ser “todas as coisas para com todos”.

Cada geração julga ter finalmente descoberto a verdade, a chave, o núcleo essencial do cristia-
nismo, revestindo-se da influência dominante ou modelando-se por ela. O cristianismo torna-se
uma garrafa vazia que as culturas sucessivas enchem com todo o tipo de coisas. Não é porque des-
cobrimos agora o socialismo ou o islamismo que somos de algum modo mais autênticos perante
Deus do que os nossos predecessores, tão cheios de sentimentos de bondade para com os pobres
selvagens que temos de os tirar da sua miséria, da sua ignorância, do seu pecado, etc... O cristia-
nismo sempre foi tão elástico com as culturas como com os regimes políticos. Já o disse centenas
de vezes: monárquico sob uma monarquia, republicano sob uma república, socialista sob o comu-
nismo. Tudo é válido. Também a este respeito, o cristianismo é o contrário do que nos mostra a
revelação de Deus em Jesus Cristo. É este o nosso esboço geral. Esta é também a questão dramá-
tica. Assim começa uma investigação que vou aprofundar tanto quanto possível, tema por tema.
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Capítulo 2

AS FORMAS PRINCIPAIS

Analisámos um certo número de contradições flagrantes. A questão coloca-se: Como é que elas po-
dem surgir, como é que pode haver uma tal subversão, quais são as causas, qual é o processo, quais
são as etapas desta perversão? Perante esta questão, somos tentados a deixar tudo para os teólo-
gos e para a teologia. Em todos os pontos, foram os teólogos que cometeram os erros. Sem dúvida
que a elaboração dos ritos, o carácter religioso atribuído à fé cristã, a sua inclusão entre os grandes
movimentos religiosos, o aparecimento de ideias totalmente estranhas à Bíblia, como o purgató-
rio,8 a intercessão dos santos, a multiplicação dos intercessores, a penitência, a confissão auricular,
tudo isto tem claramente uma origem teológica. Os responsáveis eclesiásticos e os teólogos estão
presentes no ponto de partida. No entanto, é necessário fazer duas ressalvas.

A primeira é que os teólogos nunca desejaram ou ensinaram expressamente ideias ou dogmas di-
retamente contrários à revelação. Mesmo os hereges procuravam sempre dar conta, com honesti-
dade, do que eles consideravam ser revelação. Tudo o que se pode dizer é que, originalmente, o
ensino estava quase completamente em conformidade com a verdade de Deus em Jesus Cristo;
quase, porque por uma razão ou outra, intelectual ou espiritual, houve um pequeno acréscimo,
uma interpretação escorregadia, uma elisão, uma ênfase exagerada num tema particular; mas sem-
pre muito próximo de uma compreensão correta do texto bíblico. Isto aplica-se a questões como o
simbolismo da missa, o purgatório, os livros de imagens dos iletrados e a honra prestada aos már-
tires.

Na evolução que se segue, é o erro ou a elisão, ou seja, o aspeto errado, que alcança o domínio.
Quando há, no pensamento teológico, um elemento de erro, um fragmento de ambiguidade, um
pouco de laxismo ou de sincretismo, são estes os aspetos que captam a atenção e se tornam o foco
de interesse. São estas as coisas que o povo cristão reteve e valorizou. Estas coisas têm prevalecido,
aumentado de forma espantosa, têm corrompido tudo o resto, e ganho a lealdade dos crentes,
sendo adotadas por eles como se fossem a verdade de Deus.

Parece que aqui se cumpre a profecia de Jesus de que um pouco de mal ou de erro corromperá tudo
(como o fermento dos fariseus). A responsabilidade do clero é incontestável. É ainda mais evidente
se considerarmos que se trata do domínio da fé, do conhecimento e da revelação, que, ao transpor-
mos automaticamente para nós próprios o pensamento, a filosofia ou a doutrina (e os próprios tex-
tos bíblicos falam, sem dúvida, da sã doutrina), se torna uma questão intelectual. Estamos tão ha-
bituados a pensar que a conduta resulta da vontade ou do conhecimento, que a moral é feita de
preceitos que temos de aplicar, assim muito espontaneamente, quando nos confrontamos com tais
aberrações, tais perversões, atribuímo-las àqueles que formularam a doutrina ou elaboraram a te-
ologia. Mas não podemos continuar a contentar-nos com esta explicação, segundo a qual um erro

8 Ver, e.g., Jacques le Goff, La Naissance du Purgatoire (Paris: PUF, 1981).


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teológico, por mais pequeno que seja, está na origem de todos os desvios e perversões. Há inúme-
ros exemplos que poderíamos analisar; tomemos apenas alguns no contexto atual.

Primeiro, e inquestionavelmente, é uma aliança com os poderes. Isso não ocorreu apenas quando
a igreja recebeu o reconhecimento oficial de Constantino; nem é apenas uma questão de “constan-
tinianismo” contínuo. Os cristãos e a igreja têm desejado uma aliança com tudo o que representa
poder no mundo. Na realidade, isso baseia-se na convicção de que, graças ao poder do Espírito
Santo, os poderes deste mundo foram vencidos e colocados a serviço do evangelho, da igreja e da
missão. Devemos usar as suas forças no interesse do evangelismo. A riqueza e as várias autoridades
recebem reconhecimento desta forma e são colocadas ao serviço da igreja.

Mas o que acontece é exatamente o contrário. A Igreja e a missão são penetradas pelo poder e com-
pletamente desviadas da sua verdade pela corrupção do poder. Quando Jesus diz que o seu Reino
não é deste mundo, diz claramente o que pretende dizer. Não valida nenhum reino mundano
(mesmo que o governante seja cristão). Põe-nos alerta contra a procura de uma autoridade que não
seja a do Espírito Santo. Mas a reciprocidade entrou em jogo e um segundo conjunto de fatores foi
introduzido. O anúncio evangélico era essencialmente subversivo. Colocadas em perigo por ele, as
forças do corpo social responderam ao integrar esse poder de negação, de contestação, absor-
vendo-o, disfarçando-se de tal modo que os cristãos pensaram que tinha havido uma transforma-
ção social. Mas isso era, de facto, uma mera aparência. Escondia a persistência da força assimila-
dora de uma sociedade que queria permanecer essencialmente a mesma. Na realidade, o grupo
social que aderiu fortemente ao cristianismo (a elite política, social e intelectual) trouxe consigo um
ritual social que era exatamente o oposto do que Jesus anunciava. Para simplificar, digamos que
traziam um espírito jurídico (romano), uma interpretação filosófica do mundo (grega), um modo de
ação (político) e um agregado de interesses.

Fundamentalmente, poder-se-ia dizer esquematicamente que o corpo social, efetivamente amea-


çado pela difusão de uma fé que beirava o anarquismo, o desinteresse total pelos assuntos munda-
nos (administração, comércio, etc...), a promoção de um novo modo de comunhão, reagiu em au-
todefesa e absorveu o corpo estranho, fazendo-o servir os seus próprios fins. Progressivamente,
portanto, a igreja foi levada a ver que tinha de adaptar a verdade de Jesus Cristo a diferentes cultu-
ras. Ela recusou-se a entrar em guerra aberta com as tendências religiosas, intelectuais e sociais
dentro do império. Abandonou o radicalismo (entenda-se essencialismo) de Jesus e dos profetas.
Adaptou a sua mensagem às diferentes culturas. Isso modifica o conteúdo da Palavra que lhe foi
confiada. Foi o triunfo do significante sobre o significado.

Do século IV em diante, então, ocorreu o que alguns chamam de paganização da igreja. Ela adotou
crenças e costumes estranhos ao evangelho. Enfrentou a difícil questão de discernir se a vida polí-
tica e social era legítima. Seduzida, cercada e penetrada por uma espécie de quinta coluna, ela de-
clarou-os finalmente legítimos. Transformou o culto do imperador pagão num verdadeiro “culto”
cristão, principalmente em Bizâncio. Acolheu as crenças populares, adotou e cristianizou os mitos
pagãos, confiscou os templos pagãos e transformou-os em igrejas. Fez isso sem se dar conta de que
o resultado secreto, mas verdadeiro, seria a destruição da revelação de Deus em Jesus Cristo. E
como a igreja ainda tinha muito fortemente a sensação de que detinha a única verdade, e tinha uma
espécie de obsessão pela unidade - uma unidade espiritual correspondente à unidade visível do
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império - não podia tolerar a diversidade na expressão da fé. Tinha de estabelecer a unidade a todo
o custo (daí a perseguição dos hereges).

Ao mesmo tempo, a Igreja sentiu o dever de absorver tudo o que parecia ter valor intelectual ou
religioso nas sociedades do passado. Isto explica a tendência para o sincretismo que começou no
século III e continua até hoje em todas as Igrejas. O ideal era fazer uma síntese entre o cristianismo
e o que lhe era estranho, senão inimigo. Estes diferentes procedimentos levaram a Igreja e os cris-
tãos a validar progressivamente o contrário do que tinha sido revelado por Deus e do impulso dado
por Jesus Cristo.

O drama era o seguinte. Era impossível apagar totalmente o que Jesus tinha dito e feito. Ele tinha
dado uma série de modelos com implicações inevitáveis. Assim, ele tinha dado uma nova liberdade,
um novo amor, uma expressão da verdade. O facto curioso é que, então, um certo número de efei-
tos, de consequências, de modalidades da fé cristã persistiram mesmo quando a substância da fé
tinha desaparecido ou tinha sido completamente adulterada. Assim, desenvolveu-se uma nova mo-
ral que já não tinha qualquer fundamento. Encontramos uma nova conceção da relação entre a
autoridade e o súbdito, uma nova exploração da natureza, uma nova relação entre o soberano e
Deus, o desejo de ir pelo mundo inteiro para o conhecer e converter, etc... As coisas foram tão longe
que, a longo prazo, por exemplo, o Estado laico, a democracia e o socialismo poderiam ser consi-
derados expressões normais do cristianismo - mas de um cristianismo que não tem mais nenhuma
relação com Jesus Cristo ou com Deus. Feuerbach explicou tudo isso.

Podemos considerar que a teologia foi um dos fatores desta perversão, mas não a causa. Entramos
aqui em todo um complexo de fatores políticos, ideológicos e sociológicos que só podemos desdo-
brar esquematicamente no presente contexto.

Temos de começar pela teologia. Não podemos entrar em pormenores ou discutir o valor dos gran-
des sistemas. Não podemos abordar a teologia de Ireneu, Ambrósio ou Agostinho, e muito menos a
dos Padres gregos. Não entrarei na querela (muito moderna) entre os nominalistas e os realistas.
Não investigaremos Tomás de Aquino ou Occam, e deixarei de lado Lutero e Calvino, Newman e
Küng. Em todos eles temos muitos pensamentos corretos e verdadeiros que cobrem muitos erros e
desvios. Parece-me que tudo remonta a uma mudança fenomenal na compreensão da revelação, a
saber, a passagem da história à filosofia. Creio que todos os erros do pensamento cristão remontam
a isso. Eu poderia dizer que todos os teólogos que citei tinham pensamentos corretos, que a sua
teologia era verdadeira, que não havia heresia num e ortodoxia noutro, mas que todos eles estão
presos no círculo filosófico e apresentam problemas metafísicos. Todos procuram uma resposta
através do pensamento ontológico (o agrupamento das questões por categorias). Todos conside-
ram o texto bíblico ou a revelação conhecida como pontos de partida para a filosofia, quer através
da tradução em termos filosóficos, quer como referências de pensamento. Eles tinham questões
intelectuais, metafísicas, epistemológicas, etc..., e apresentaram o texto bíblico com o objetivo de
fornecer um sistema de respostas às suas questões. Utilizavam o texto bíblico para satisfazer as
suas próprias necessidades, em vez de escutarem o que ele realmente era (até Calvino, infeliz-
mente!).

Por outras palavras, uma vez feita a transição da história para a filosofia, tudo o que diziam era
completamente correto e verdadeiro. Eles exprimiam uma fé profunda e autêntica, marcada pela
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preocupação com a verdade. Mas tudo isso foi completamente falsificado pela transição inicial. É
por isso que os desvios foram mais fortes do que a verdade que conservaram. Depressa esqueceram
o essencial: Deus não se revela através de um sistema filosófico, de um código moral ou de uma
construção metafísica. Ele entra na história humana e acompanha o seu povo. A Bíblia hebraica
(mesmo nos livros sapienciais) não é uma construção filosófica ou um sistema de conhecimento. É
uma série de histórias que não são mitos destinados a ocultar ou desvendar verdades objetivas e
abstratas. Estas histórias são uma história, a história do povo de Deus, a história dos acordos e de-
sacordos de Deus com este povo, a história da lealdade e da desobediência. Não há nada mais do
que história, história temporal (não eterna), história leiga (não sagrada), uma história que nos diz
que Deus está connosco e por nós, mas que não fala de Deus em si mesmo, nem fornece qualquer
teoria sobre Deus. Como todas as histórias humanas, a Bíblia é um livro cheio de perguntas, mas
que nunca dá respostas. Ou melhor, a resposta também está incluída na história, e tem a ver con-
nosco.

Mesmo as partes da Bíblia hebraica que parecem mais desincorporadas, como a lei, os estatutos e
as formulações jurídicas, continuam a pertencer à história. A lei nunca é eterna ou absoluta. Está
sempre ligada a uma determinada história. Este livro oferece-nos leis eternas que exprimem a von-
tade de Deus, mas leis que são sempre históricas. Há uma verdade central, que consiste nas pala-
vras, como os dez mandamentos; mas estas não são verdadeiras em si mesmas, como as leis cien-
tíficas objetivas e neutras. Independentemente de quem as ensina, as leis científicas permanecem
as mesmas porque são exteriores e podem ser transmitidas como um pacote a quem as ouve. A lei
bíblica, pelo contrário, só é verdadeira porque é Deus que a diz. Ela deriva a sua verdade de Deus.9
Se a separarmos do seu autor, não passa de um tema de discussão com alguns elementos aceitá-
veis.

É por isso que esta lei não cai do céu como as placas de ouro do célebre J. Smith. Ela é dada no
decurso de uma eleição e de uma libertação como atestado de um pacto. Ela não pode ser separada
desta série de acontecimentos. A lei é um ponto da aliança e o ponto de partida de uma nova histó-
ria. Nunca é uma espécie de código congelado, abstraído da existência. Nunca se pode fazer dela
um sistema jurídico separado da presença viva, móvel e atual daquele que se chama Deus vivo. Mas
a vida nunca pode ser transformada em doutrina e conhecimento científico. Este aspeto continua
e ganha maior ênfase com Jesus.

Para realizar a sua obra, Deus não envia um livro de metafísica ou um livro sagrado de revelações
gnósticas ou um sistema epistemológico completo ou uma sabedoria aperfeiçoada. Ele envia um
homem. Em relação a ele, voltam a ser contadas histórias que constituem uma história. Mesmo
aqueles que, como Paulo e Tiago, são mais teóricos do que historiadores, preservam cuidadosa-
mente o elemento histórico como pedra de toque da autenticidade. Tudo o que escrevem tem a ver
exclusivamente com a história de Jesus e daqueles que ele convoca para a fé. O maior teólogo,
João, tanto no seu Evangelho como nas suas Epístolas e no Apocalipse, exprime sempre a sua teo-
logia como uma história.10 A este respeito, o último livro refere-se a uma história que não é a ver-
dade, mas o único quadro possível para compreender e exprimir a vontade de Deus. Este é o modo

9 É por isso que a visão de B.-H. Lévy é simplesmente absurda quando exalta a lei e ignora Deus.

Ele faz perfeitamente uma das coisas que mencionámos na Introdução, utilizando e reorientando as ideias gnósticas de
10

modo a despojá-las da sua pretensão e a fazê-las servir para explicar a encarnação histórica de Deus em Jesus Cristo.
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que Deus escolheu para se revelar a nós. Mas nós apoderamo-nos de tudo e mudamos completa-
mente o quadro para introduzir o nosso próprio sistema de perguntas e de expressões. Não estou a
dizer que isto estava destinado. Foi acidental.

O pensamento hebraico foi semeado num campo alimentado pelo pensamento grego e pelo direito
romano.11 Havia a necessidade de traduzir a história em termos que o mundo greco-romano pu-
desse compreender, ou seja, em termos filosóficos e legais. A Torah tornou-se o equivalente divino
da lei das Doze Tábuas. A revelação de Deus tornou-se o clímax do ensino de Sócrates. O resultado
foi de importância decisiva. A Bíblia foi interpretada com os instrumentos intelectuais da filosofia
grega. Em vez de ouvirem o texto tal como ele é, os teólogos tentaram extrair dele um sistema filo-
sófico coerente. O texto foi colocado no quadro de um sistema platónico, aristotélico ou outro qual-
quer. Se o sistema vinha de Heráclito ou de Epicuro, não fazia diferença. Tudo se resumia à mesma
coisa. As histórias bíblicas eram tratadas como mitos dos quais se devia extrair um “pensamento”
abstrato e universal.

Alguns dir-me-ão que não temos outra opção senão utilizar os nossos instrumentos de conheci-
mento disponíveis, mesmo para compreender uma história. Isso é verdade. Mas eu respondo que o
pensamento hebraico tinha os seus próprios instrumentos de conhecimento, que estão plena-
mente expostos na língua. Deveríamos curvar-nos, submeter-nos e converter-nos a eles, em vez de
forçar a revelação de Deus a entrar no colete de forças do pensamento greco-romano, em vez de a
colocar nesta cama de Procrustes, nesta jaula de tigres.

Converter! Esta grande palavra diluiu-se. As pessoas do século III e seguintes converteram-se ao
cristianismo em moral e religião, mas mantiveram intacto o seu modo de pensar. A conversão é
necessária também no modo de pensar. Quando Jesus, seguindo o mandamento do Antigo Testa-
mento, disse que devemos amar a Deus com toda a nossa mente, isso deve ter confundido os filó-
sofos. Como é que amamos Deus com a nossa mente? Como subordinar o nosso pensamento a uma
revelação de amor, do amor de Deus? Isto é contrário a qualquer esforço filosófico objetivo e coe-
rente. Não há nada de coerente no amor e na vida. Isto deveria ter alertado os teólogos, mas eles
preferiram colocar o amor nos seus sistemas. Platão já o tinha feito. Mas como é que eles não viram
que, se Deus quisesse dar-nos uma filosofia, ter-nos-ia dado um livro coerente e não a incoerência
vital da Bíblia? Se Ele se tivesse colocado no domínio do conhecimento, teria exprimido cientifica-
mente a sua Palavra.

11Um exemplo conhecido da mutação a que a revelação foi efetivamente sujeita é a sua contaminação pela ideia grega da
imortalidade da alma. Recordá-lo-ei brevemente. No pensamento judaico, a morte é total. Não há alma imortal, não há di-
visão entre corpo e alma. O pensamento de Paulo é judeu a este respeito. A alma pertence ao domínio “psíquico” e faz parte
da carne. O corpo é o ser completo. Na morte, não há separação entre o corpo e a alma. A alma é tão mortal como o corpo.
Mas há uma ressurreição. Do nada em que se torna a vida humana, Deus cria de novo o ser que estava morto. Trata-se de
uma criação pela graça; não existe uma alma imortal intrínseca a nós. A filosofia grega, no entanto, introduz entre os teólo-
gos a ideia da alma imortal. A crença difundiu-se na religião popular e foi integrada no cristianismo. Mas trata-se de uma
perversão total. Tudo deixa de estar dependente da graça de Deus e a garantia da imortalidade passa a ser avaliada pelas
virtudes e pelas obras. Todo o pensamento cristão é desviado por esta mutação inicial que vem da filosofia grega e dos cultos
do Oriente Próximo. Uma obra ardente põe em evidência este tipo de deformação. Louis Rougier, no seu L'Astronomie et
Religion en Occident (Paris: PUF, 1980), mostra como a crença na imortalidade celeste da alma surgiu na segunda metade do
século V a.C. com base na astronomia. A astronomia pitagórica transformou radicalmente a ideia do destino da alma dos
povos mediterrânicos. Substitui a ideia do sopro vital que se dissipa com a morte, e a crença na sobrevivência de sombras
vãs que vagueiam no reino subterrâneo dos mortos, pela ideia de uma alma de essência celeste, exilada neste mundo. Esta
ideia contamina completamente o pensamento bíblico, substitui progressivamente a afirmação da ressurreição e trans-
forma o reino dos mortos no reino de Deus.
21

Agora, a metafísica, a ética e o direito transformaram radicalmente o sentido da revelação, ainda


que formalmente o que é apresentado pareça correto, a exposição seja fiel e os intérpretes sejam
sérios e devotos. O problema não está na sua fé, piedade ou inteligência, mas numa falsidade inte-
gral do sentido. Assim, o Deus libertador da graça passa rapidamente a ser o pater familias do di-
reito romano. Os romanos traduzem o “meu Pai” de Jesus como pater, com a implicação do pater
familiase o direito de família, os mitos romanos entram por esta porta aberta. Ainda neste mundo
que Roma contaminou com o pensamento jurídico, não só se usa o método de raciocínio da filosofia
grega, como também se usa o método (inteligente e rigoroso) de exegese dos juristas romanos na
exposição dos textos bíblicos e na eliminação dos seus elementos discordantes. Em vez da apre-
sentação essencialmente teológica (não digo ateísta) do Antigo Testamento e do Evangelho, temos
a ciência, a investigação, a validação, a problemática, a filosofia. O conteúdo da revelação é inevi-
tavelmente pensado de uma forma estranha. O elemento “significante” é alterado. É elaborada
uma teologia.12 Na minha opinião, este é o primeiro fator de subversão. Mas há muitos outros.

Outro fator de deformação foi o próprio êxito do cristianismo. Esse sucesso deveu-se, em parte, à
dispersão dos judeus. Nessa altura, o povo judeu constituía uma parte importante da população do
império. Havia uma colónia judaica em cada grande cidade. Foi nestas colónias que trabalharam
os primeiros apóstolos e missionários cristãos. Aí puderam divulgar o Evangelho com sucesso, em-
bora também encontrassem oposição. Sabemos que o Evangelho foi rapidamente acolhido pelos
muitos pobres, escravos, proletariado urbano, etc...13 Todas as histórias da época sublinham a exis-
tência de uma grande fome religiosa no império. As religiões tradicionais tinham entrado em co-
lapso, e o surto de mudanças no mundo mediterrânico exigia uma religião de tendência universal.
O culto imperial não podia oferecer uma religião autêntica ou satisfatória para todos, que satisfi-
zesse as necessidades de todos. Foi bem-sucedido politicamente, mas isso não foi suficiente. Por
toda a parte, é difundido um novo tipo de religião sob a forma de religiões de mistério, com a sua
teologia emblemática e metafórica, a celebração de ritos de purificação, os seus fenómenos de êx-
tase e visões.... Há quem veja aqui uma influência do Oriente Próximo, mas eu sou de opinião con-
trária. As religiões do Oriente Próximo difundiram-se onde existia esta necessidade, este apelo, esta
procura de novidades espirituais e místicas, este abandono dos mitos antigos, este sentimento de
insuficiência dos antigos mitos que datam de há cerca de quinhentos ou seiscentos anos.

Deixando de acreditar em Júpiter, as pessoas estavam prontas a abrir-se a Mitra, ao Orfismo, a


Elêusis, à nova Diana. O mitraísmo difundiu-se de forma espantosa entre os militares. Um fator que
contribuiu para isso foi o facto de os soldados andarem por todo o império, de guarnição em guar-
nição. Aqueles que tinham vivido no Oriente Próximo estavam vinculados à sua influência e a serem
afetados por estes novos fenómenos que surgiam por todo o lado. O cristianismo contribuiu com o
seu próprio impulso para esta vasta corrente. Era mais uma religião nova. Estava suficientemente
próximo dos mistérios. Falava da encarnação de um Deus, da ressurreição de um homem, de um
Reino milenar, da purificação pelo sangue derramado, do batismo, alimentar-se da divindade.

12 Peço ao leitor que não me faça dizer o que não estou a dizer. Não estou a colocar o pensamento teológico, como mau, em
antítese com o pietismo ou a fé espontânea ou uma fé não intelectual, como boa. Gosto de alguns teólogos, e o que eles
fizeram é necessário. Estou apenas a sublinhar o perigo específico que representa a entrada da filosofia no cristianismo e os
desastres que se seguiram à exuberância teológica do século III ao século XVI.

13É também possível, em casos excecionais, que mulheres da alta sociedade se tenham convertido ao cristianismo. Pode-
mos citar Pomponia Graecina, sob Nero. Este facto parece bastante provável numa época de grande curiosidade religiosa
na procura de experiências espirituais. J. Zeiller observou que o império poderia ter tido um princeps cristão em Flavius
Clemens, sobrinho de Flavia Domitilla (que era certamente cristã) e primo de Tito.
22

Estou a falar de coisas familiares no vocabulário religioso da época. Foi deste ponto de vista e nestes
termos que o cristianismo foi ouvido e compreendido por milhares de pessoas que procuravam a
novidade espiritual, a renovação moral e a fusão com Deus.

O cristianismo, portanto, difundiu-se juntamente com as religiões de mistério e, como contra-ac-


ção, o mistério entrou na teologia cristã. O conceito de mistério, quer como realidade inexplicável,
quer como efusão em Deus, é em grande parte estranho à expressão judaica da revelação. Encon-
tramo-lo em Paulo e sobretudo no Apocalipse, mas para designar essencialmente ou o Deus escon-
dido ou a incarnação. Em todo o caso, não tem nada a ver com os mistérios que são celebrados. A
ambiguidade surgiu, no entanto, porque mistério pode designar tanto o que é inexplicável como,
no seu sentido pagão, a celebração de uma comunhão extática, se não orgiástica. Os dois sentidos
são facilmente confundidos. As religiões de mistérios são essencialmente religiões de fuga, e o cris-
tianismo foi sem dúvida recebido também como uma religião de fuga do mundo, como uma religião
de compensação (quer nas festas, quer no mundo futuro) que deixa o mundo à sua sorte, que im-
plica um afastamento dele (daí as tendências ascéticas, os eremitas, etc...), mas que leva também
a uma aceitação da própria sorte, qualquer que ela seja, sem qualquer tentativa de a mudar, uma
vez que há sempre uma saída, uma via de fuga.

O ópio do povo; o cristianismo nunca foi isso nas suas origens, mas assumiu esse significado e essa
função quando foi contaminado pelas muitas religiões desse tipo sob cuja égide se propagou. Uma
religião de fuga, dizíamos nós. Ora, um ponto essencial aqui é que fugir significa abandonar o outro
grande estilo religioso, o de reunir e unificar (re-ligare, ligar, de acordo com uma derivação duvi-
dosa). As religiões tradicionais que estavam a ser abandonadas eram religiões “cívicas”, religiões
da cidade, cujo objetivo não era apenas assegurar a salvação ou a gratificação individual, mas unir
a cidade, dar-lhe coesão social, estabelecer consensos.

Com a passagem do primeiro para o segundo século, o império passou de um tipo religioso para
outro. Opondo-se ao mundo e rejeitando a religião imperial, o cristianismo beneficiou muito com
esta mudança. Tanto mais que, de um modo geral, se espalhou pelo império não só uma fome de
salvação (que a pretensão dos Ptolomeus de serem Soter, salvadores, não podia satisfazer), mas
também um vago sentimento de medo (de que vários testemunhos literários dão testemunho). O
que aparece é uma religião que não é de medo, mas de graça, de alegria, de libertação, de espe-
rança. Não há dúvida de que foi assim que as primeiras gerações de cristãos a pregaram. E isso
explica o seu sucesso, a sua conquista de adeptos, de convertidos. Mais tarde, muitos bons intelec-
tuais também aceitaram este evangelho e, no século III, os círculos cultos, as mulheres mundanas
e algumas das elites que se interessavam por coisas novas começaram a mostrar alguma preocu-
pação com este novo ensinamento, esta filosofia.

Não creio estar a desonrar os mártires se disser que não foi apenas a sua virtude, o seu heroísmo ou
a sua santidade que converteram as massas. Se assim tivesse sido, a história do desenvolvimento
do cristianismo teria sido uma história de admiráveis conversões através de uma verdadeira prega-
ção da Palavra e dos santos mártires, e não teríamos tido a terrível reação que estamos a tentar
compreender. Infelizmente, o processo foi demasiado humano. Surgiu um interesse, uma surpresa
por certas novidades genuínas em círculos blasé (tediosos), convencidos da vaidade e da futilidade
da vida e da política e que, de repente, se viram na presença de um sentido possível e de uma via
23

inexplorada. É evidente que houve conversões autênticas mesmo nas famílias imperiais. Mas creio
ser incontestável que a curiosidade, que era então a moda, também teve o seu impacto.

No final do século III, o cristianismo tornou-se moda. Mas isso pressupunha um movimento de elu-
cidação, de resposta geral. Com efeito, a teologia, em vez de se contentar em expor a revelação,
começou a interessar-se por questões de todo o género e a fazer filosofia. Assim, quis, por exemplo,
mostrar uma correspondência entre Séneca e S. Paulo, etc... Discutir os problemas da época era o
preço do sucesso. O sucesso foi alcançado, mas depois veio o que parece ter sido a reação inevitável
e trágica de que, enquanto a boa nova tinha sido publicada primeiro por si mesma, sem qualquer
preocupação com o sucesso, agora o sucesso trazia indissociavelmente, como sempre, um desejo
por isso, do qual os cristãos não estavam isentos. A única censura que se lhes pode fazer é que não
estavam conscientes do que estava a acontecer, ou seja, que a sociedade estava a inverter o cristi-
anismo em vez de ser subvertida por ele.

Rapidamente adquiriram o gosto pelo sucesso. Não, claramente, o sucesso mundano, o sucesso que
traz benefícios e honras. Mas, uma vez que um número crescente de homens e mulheres se juntava
a eles, por que não atribuir esse sucesso à vontade de Deus e por que não se sentir convocado a
tirar proveito dele? Não terá Paulo dito: “Ai de mim se eu não pregar o Evangelho”? A evangelização
tinha sido rigorosa e escrupulosa no início, mas agora o objetivo era o número. Já não se trata de
uma conversão um a um, de igrejas domésticas, mas de grandes ajuntamentos. Porquê resistir ao
impulso da evangelização em massa? Porquê preocupar-se com a autenticidade da fé dos conver-
tidos? Começam a realizar-se batismos em massa.

Foi no século III que se deu a mudança decisiva. Na Igreja primitiva, a conversão pessoal era a porta
de entrada e pressupunha uma formação preparatória. Quando a igreja se tornou um assunto de
massas, tornou-se impossível ter a certeza da autenticidade de cada convertido. O processo inver-
teu-se. As pessoas entravam primeiro na igreja e depois recebiam a instrução religiosa que garanti-
ria a seriedade da sua fé. À entrada na Igreja seguia-se a formação espiritual e a aquisição de co-
nhecimentos. A rede tinha de ser alargada para atrair o maior número possível de pessoas. Mas o
sucesso colocou o cristianismo numa ladeira escorregadia. Fundamentalmente, porquê esperar
por uma entrada deliberada na Igreja? Não seria igualmente simples trazer toda a gente e depois
tratar da sua educação? Está-se, a partir desse momento, no caminho do compelle intrare que Agos-
tinho tornou célebre, mas que era, de facto, a prática anterior a ele. Voltamos à relação entre a
Igreja e o poder imperial. Esta foi a via do sucesso. Temos de reconhecer que só ela perverteu estra-
nhamente as primeiras expressões da incarnação de Cristo na Igreja.

O sucesso trouxe o cristianismo à família imperial e à elite governante. Constantino foi “conver-
tido”... Teremos de examinar mais tarde as consequências políticas desta conversão e a subversão
do cristianismo pela política. O que quero mostrar aqui é que, por uma ligação definitiva, a aceita-
ção de um poder ou autoridade, a aliança com um poder secular, conduz inevitavelmente a uma
combinação com todas as forças sociais. Não podemos entrar em pormenores. Não foi só o mundo
político que se converteu ao cristianismo. Quando falamos de elite, temos de pensar também nos
ricos desta sociedade que se converteram. Não creio que possamos ver na sua conversão um ma-
quiavelismo ou a aceitação de uma ideologia que reforçaria o seu poder. Temos de admitir que as
conversões foram de boa-fé e até por fé verdadeira. Mas também temos de considerar o efeito
24

contrário. A adesão dos ricos do império ao cristianismo traz uma outra relação com os poderes.
Não só muda a relação com a política, mas também a visão geral de todo o tipo de poder.

Os ricos convertidos (e quero voltar a sublinhar o que me parece ser o ponto fundamental: devemos
pressupor a sua boa-fé) levam a sério a mensagem cristã e começam a dar. É inquestionável a sua
preocupação com os pobres. As histórias tradicionais têm o prazer de registar as muitas fundações
da época que, sob os auspícios cristãos, cuidam dos doentes, dos pobres e das crianças abandona-
das. São também feitas grandes doações à própria Igreja e, involuntariamente (porque ainda não
tinha sede de riqueza), a própria Igreja enriqueceu progressivamente. Fez investimentos. Construiu
novas e sumptuosas igrejas. Ergueu monumentos comemorativos de lugares santos. Produziu as
conhecidas obras de arte dos séculos V e VI. Querendo ou não, a Igreja tornou-se uma potência no
mundo do dinheiro. Ela pouco falou sobre isso. Os teólogos continuaram a falar de pobreza e alguns
deles condenaram a riqueza. Mas havia um grande mal-entendido sobre os fins e os meios.

Uma vez que o dinheiro que se acumula nos cofres da igreja serve para glorificar a Deus e sustentar
os pobres, não é bom e santificado? O único problema não é o do bom uso? A partir do século IV,
esta visão começou a ter, em todos os domínios, os efeitos destrutivos que continuam até aos nos-
sos dias. Pelo próprio facto da riqueza e do número, as formas originais da Igreja, nomeadamente
a comunidade de vida e de bens, começaram a desaparecer; não podiam continuar. As diferenças
extremas entre os estratos sociais tornavam-nas impossíveis. A Igreja solidifica-se. O facto dos nú-
meros, do dinheiro que tem de ser gerido e da relação com o poder conduz inevitavelmente à insti-
tuição.

Não é necessário perguntar quando surgiram os bispos, quais eram os seus poderes, ou se houve
mudanças nos seus privilégios, pois o importante é o facto da organização que se desenvolve por
necessidade e por contaminação com as instituições imperiais (evidentemente com uma hierar-
quia). A transformação da igreja numa instituição é o principal facto que corresponde à sua cres-
cente riqueza. Ora, este conjunto de acontecimentos produz uma série de mutações extraordinárias
sob a forma de redução do amor e da graça em detrimento das obras. Tudo isto é muito compreen-
sível. A riqueza torna possível a prática de boas obras, a observância dos mandamentos do Evange-
lho, a prestação de serviços, a manifestação de generosidade (tudo isso representa grandes avan-
ços sociais em comparação com a incapacidade e a falta de preocupação do paganismo no domínio
social). Não são eles a marca, a expressão ou o sinal visível e indubitável do amor?

Assim, nos séculos IV e V, assistimos a um desvio do amor e da graça para o serviço e a “ação social”.
Mas isso muda completamente a perspetiva cristã. E está relacionado com a ascensão da institui-
ção, a rutura entre um clero de padres e um laicado, e o domínio na Igreja dos ricos e poderosos.
Há também uma rutura entre aqueles que se preocupam com os outros, que prestam serviço, que
exprimem a caridade, e aqueles com quem se preocupam, que são a ocasião da caridade, a quem
se presta serviço. Esta era a verdadeira rutura da Igreja. Como poderia, nestas condições, manter
uma teologia e, mais ainda, uma prática do não-poder? É certo que, por toda a parte, na Igreja, há
exemplos de ricos que renunciam a tudo, que se tornam pobres por Deus. Eles existiram. Mas, ao
fazê-lo, ou escolhiam a vida de eremita e afastavam-se da vida da Igreja, ou eram canonizados e
considerados exemplos milagrosos de santidade, isto é, eram excluídos da vida concreta da Igreja,
colocados fora da Igreja como “santos” que, evidentemente, as pessoas comuns não podiam imitar.
25

Como poderia a Igreja sobreviver se todos ficassem pobres? Trata-se, obviamente, de exemplos que
devem ser admirados. O próprio ato de canonização demonstra que se trata de exceções que não
se destinam aos crentes comuns. O crente comum deve seguir um caminho que esteja de acordo
com o que é natural e normal. Assim, a teologia torna-se cada vez mais uma teologia da natureza e
afasta-se cada vez mais de uma teologia da graça. A dura questão colocada por Jesus: “Que mais
fazeis vós do que os outros?” é obscurecida. De acordo com a sociedade como um todo, a teologia
entra numa procura de normalidade, de obediência às “leis da natureza”. O campo tinha sido bem
preparado por tendências anteriores. Não digo que tenha havido corrupção do primeiro “ideal” da
Igreja. Havia um fluxo simples, um jogo claro de pequenas mudanças que ocorriam sem má inten-
ção. Os dirigentes não eram maquiavélicos. Os ricos e bem providos não confiscavam a verdade
cristã que pertencia aos pobres. Eram tão devotos como os reis magos. Mas quando a riqueza está
presente, só com dificuldade é que os pobres mantêm o seu lugar.

Conhecemos uma situação semelhante, em que há um intelectual num grupo de pessoas que não
estão habituadas a lidar com ideias. É o intelectual que fala e toma a palavra. A única censura que
fazemos aos responsáveis eclesiásticos e aos teólogos é o facto de se empenharem em justificar e
legitimar os poderes, tentando mostrar que não há contradição, nomeadamente entre a riqueza e
Jesus Cristo, recorrendo à vertente (inegável) do Antigo Testamento que trata as riquezas como
prova tangível da bênção divina. O verme estava no fruto. A traição teológica consistia em demons-
trar que não se tratava de um verme. Mas agora tudo se mantinha. Mas quando um ponto se rompe,
tudo se começa a descoser. É certo que os pobres continuavam a ser bem recebidos, apoiados e
servidos na Igreja, mas, como já dissemos, tudo o que representava fraqueza ou inferioridade (fí-
sica, social, etc...) passou para segundo plano.

As mulheres são o exemplo mais espetacular desta situação. Após um período de independência
que veio com a difusão do cristianismo, elas foram relegadas para uma ordem inferior. Este facto é
tanto mais interessante pelo facto de que o Evangelho e a Igreja primitiva nunca foram hostis às
mulheres nem as trataram como menores, e a situação das mulheres no império romano (sobre-
tudo no Oriente) era relativamente favorável. Apesar disso, quando o cristianismo se tornou um
poder ou uma autoridade, isso funcionou contra as mulheres. Uma estranha perversão, mas perfei-
tamente compreensível, se levarmos em conta que as mulheres representam precisamente os ele-
mentos mais inovadores do cristianismo: a graça, o amor, a caridade, a preocupação com os seres
vivos, a não-violência, o interesse pelas pequenas coisas, a esperança de novos começos - precisa-
mente os elementos que o cristianismo estava a pôr de lado em favor da glória e do sucesso.

Não creio que isso se tenha baseado nos dois ou três textos de Paulo que costumam ser tidos como
misóginos e anti-feministas. O cristianismo tomou este rumo devido à mutação que o levou a ado-
tar os valores da conquista, do poder e da dominação (por uma boa causa!). Desde então, as mu-
lheres têm sido impedidas de participar na vida espiritual e na verdade de Cristo. Textos bíblicos
(divorciados do seu contexto e sobretudo das passagens que os contrabalançam) foram então uti-
lizados para justificar esta atitude. A escolha dos valores não resultava de uma atitude filosófica
nem de uma decisão ideológica, mas do facto material da aquisição de riquezas, que agora dirigia
a Igreja no seu próprio coração. Isso levou a uma releitura da situação, da vocação que a revelação
afirmava em relação às mulheres.
26

Este movimento coincidiu com a extrema degradação dos costumes. As exigências aumentam à
medida que a Igreja se encarrega da moralização do império. A dissolução moral tinha, de facto,
avançado a passos largos, mas o rigor era ainda maior em relação às mulheres. Deixando de lado a
verdadeira mensagem, a Igreja procura textos que possam justificar o rigor moral. O procedimento
era tanto mais violento quanto mais elevada era a liberdade afirmada para as mulheres e o lugar
elevado que lhes era atribuído tornava-se mais profundo. A reação masculina desenrolou-se no
campo de uma rivalidade entre os sexos. No entanto - e é apenas aqui que se inscreve a crítica tra-
dicional - quanto mais a liberdade feminina era suprimida, quanto mais as mulheres eram acusadas
(de serem as tentadoras do Génesis, etc...), quanto mais eram reduzidas ao silêncio, e quanto, reci-
procamente, o seu papel ideal era exaltado, o modelo de um só exemplar. O culto da virgem floresce
sob a repressão, encobrindo-a e dando aos homens uma boa consciência. O culto da virgem não
prova que as mulheres foram colocadas demasiado alto. É exatamente o contrário. Ele desempe-
nha o papel de uma ideologia e esconde o mecanismo pelo qual as mulheres são espoliadas, trata-
das como menores e negadas. O modelo é perfeito porque é único. Como nenhuma outra mulher
pode aproximar-se dele, todas as outras, em nome da excelência da virgem, devem ser reduzidas a
tuteladas. No entanto, o culto da virgem serve para mostrar a grande estima que se tem pela mulher
enquanto tal. Temos aqui o conhecido mecanismo do ideal, segundo o qual quanto mais perfeito é
o modelo, mais se autoriza a rejeição do concreto.

O sucesso e a aliança com as categorias sociais de poder iniciaram um processo pelo qual a igreja
se tornou um assunto de massas. Jesus disse aos seus discípulos que eles eram um pequeno reba-
nho. Todas as suas comparações tendem a mostrar que os discípulos serão necessariamente pe-
quenos em número e fracos: o fermento na massa, o sal na sopa, a ovelha no meio de lobos e muitas
outras metáforas. Jesus não parece ter tido a visão de uma Igreja triunfante e triunfal à volta do
globo. Representa-nos sempre uma força secreta que modifica as coisas a partir do interior, que
atua espiritualmente, que nos mostra a comunidade, incapaz de ser outra coisa senão comunidade.

O Reino dos Céus é o pequeno grão, a semente enterrada no solo, o tesouro escondido num campo.
Se, como Reino de Deus, é chamado a circundar todo o globo, não é esse o seu papel atual, nem o
da Igreja na Terra. Mas a situação atual é exatamente a oposta. Já não é possível viver em comuni-
dade, não apenas pelas razões acima referidas, mas simplesmente por causa dos números envolvi-
dos. O pequeno rebanho cede lugar às massas. Como é que massas deste tipo podem ser organiza-
das como uma comunidade? Como podem ter uma fé pessoal, profunda, militante e esclarecida?
Como é que se pode conceber que abandonem os seus antigos preconceitos, estilos de vida e cren-
ças?

Não posso deixar de referir aqui uma passagem da obra “Instante” de Kierkegaard, que é decisiva a
este respeito.14 Porque ele mostra que o sucesso que destrói a Igreja não tem apenas uma raiz soci-
ológica, mas uma raiz teológica essencial. O Estado, argumenta, tem uma relação direta com os
números. Quando um Estado decai, os números diminuem e o Estado desaparece. Todo o seu con-
ceito é nulo. A relação do cristianismo com os números é diferente. Um único cristão dá-lhe reali-
dade. O cristianismo tem, de facto, uma relação inversa com os números. Quando todos se tornam
cristãos, o conceito de cristianismo é nulo. Este conceito é, de facto, polémico. Só se pode ser cris-
tão na oposição. Quando a oposição é suprimida, não faz mais sentido dizer “cristão”. A cristandade

14 “The Instant” 5,5


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aboliu astutamente o cristianismo ao fazer de todos nós cristãos. O conceito de “cristão” tem, por-
tanto, uma relação inversa com os números, enquanto o de Estado tem uma relação direta. No en-
tanto, os dois conceitos foram combinados, com grande vantagem para os galimatias (para a falta
de sentido, para os absurdos) e para os padres. Na cristandade não há a menor ideia do que é o
cristianismo. As pessoas não conseguem ver ou compreender que o cristianismo foi abolido pela
sua propagação. Mais uma vez, a história provavelmente não oferece nenhum outro exemplo de
uma religião que tenha sido abolida pelo facto de ter prosperado. (Tudo isso de Kierkegaard).

A partir do século IV, pertencer ao cristianismo tornou-se a principal tendência, sendo as palavras e
os ensinamentos dos padres e dos bispos aceites cegamente. As pessoas tentavam viver as suas
vidas em conformidade com as ordens dadas pela Igreja, o que rapidamente se transformou em
moralidade pura e simples. Tudo isto é claro.15 A título de comparação, penso no movimento sindi-
cal quando, em 1936, se viu confrontado com a entrada súbita de dois milhões de novos membros.
Como integrá-los? Como verificar a sua seriedade? Como conhecer o nível da sua formação política?
Como ter a certeza de que eram verdadeiramente militantes? A situação era muito semelhante à da
Igreja do século IV. Qual foi o resultado? Encontrou-se, sem dúvida, um modo de vida eclesial ade-
quado ao acolhimento de um número crescente de crentes. Começou a igreja das massas.

Era preciso dar testemunho de que essas pessoas eram verdadeiramente cristãs e, para isso, bas-
tava a cerimónia do batismo. Podia não haver uma fé viva, empenhada e pessoal, mas, na raiz, a
adesão à Igreja e seguir o seu caminho eram um atestado de fé adequado. Em todos os sentidos,
era impossível manter o grande movimento de liberdade interior e exterior iniciado por Jesus. A
proclamação “Vós sois livres pelo Espírito Santo” e a afirmação de Paulo “Tudo é lícito” eram boas
para um pequeno grupo de elite, em que toda a gente se conhecia. Mas quando se tratava de mi-
lhares de novos convertidos, cuja profundidade da fé não podia ser conhecida, como é que se podia
dizer-lhes que eram completamente livres para escolherem o seu modo de vida e decidirem a sua
própria conduta? Tinham de ser incorporados e colocados sob a autoridade de um chefe de cada
grupo, e quanto mais numerosos se tornavam, mais sagrada e complexa tinha de ser essa autori-
dade. A hierarquia não podia ser evitada, quanto mais não fosse porque o número de sacerdotes
que oficiavam entre os grupos era muito grande. Não era possível formá-los seriamente. A profun-
didade da sua fé não podia ser verificada. A sua aptidão para dirigir os crentes e ensinar correta-
mente a verdade bíblica permanecia em dúvida. Assim, eram necessários superiores eclesiásticos
para supervisionar, controlar e instruir os sacerdotes. A liberdade gloriosa que existe em Cristo não
podia ser tolerada. Foi substituída por mandamentos claros e rigorosos.

Não estou a enunciar aqui uma visão abstrata e teórica das coisas. O perigo que espreita nessa li-
berdade já tinha sido plenamente experimentado e provado no final do século II. Quando olhamos
para a espantosa lista de inovações que floresceram nos círculos cristãos a partir dessa época, as
lucubrações mais tolas, as crenças mais absurdas (das quais há um admirável levantamento em “La
Testament de sainte Antoine”, de Flaubert), a conduta mais aberrante com base na declaração de
Paulo, as interpretações mais selvagens do evangelho, tudo derivado da liberdade espiritual e da
iluminação interior do Espírito Santo, como resultado da incursão das massas que já tinham

15Neste aspeto, o cristianismo segue o mesmo caminho sociológico que outros movimentos de elite quando começam a
atrair um grande número de aderentes e a alcançar estabilidade pública. Poder-se-ia citar o comunismo russo ou, mais re-
centemente as Brigadas Vermelhas italianas (ver os artigos esclarecedores de Philippe Pons, “La faillite des Brigades rouges”,
Le Monde, março de 1982).
28

participado nos mistérios, podemos compreender perfeitamente porque é que os cristãos devotos
reagiram com horror, apelaram à autoridade, usaram o termo “herege”16 para aqueles que não se
podiam chamar verdadeiramente cristãos e que estavam, portanto, excluídos da Igreja, e pregaram
a moralidade no lugar da liberdade.

Do mesmo modo, foi necessário substituir a efusão do Espírito pela pregação, a oração, o estudo
bíblico e a celebração da eucaristia segundo ritos bem estabelecidos. Tornou-se necessário estabe-
lecer uma certa ordem na confusão, introduzindo orações litúrgicas e reduzindo o lugar da livre ex-
posição da Bíblia em favor das liturgias. Quanto mais ignorante era o baixo clero, mais necessário se
tornava não o deixar falar livremente, mas fazer dele o oficiante de um culto criado por outros que
tinham um melhor conhecimento da fé e procuravam viver de forma mais rigorosa. A moral e o ri-
tual são os grandes meios de defesa contra a perversão de toda a ordem que resultou da nova en-
trada das massas na Igreja sem autenticidade de fé.

Ninguém considerou que o remédio provocaria outra perversão da revelação, uma subversão do
cristianismo estabelecido no oposto da revelação de Deus em Jesus Cristo. Embora fosse o oposto
dessa revelação, a subversão não era escandalosa do ponto de vista humano e, portanto, parecia
ser razoável, tranquilizadora e aceitável pelos padrões morais atuais. Foi aceite. Mas também pôs
fim a tudo o que era escandaloso, perigoso, revolucionário e explosivo na verdade de Jesus Cristo
e na liberdade do Espírito. O caminho escolhido pelas autoridades eclesiásticas na sua tentativa de
impedir a perversão das massas foi o da regulamentação - quando, na verdade, deveria ter sido
tomado o caminho mais difícil, o de opor a santa loucura da cruz à perversidade dos hereges. Esta
última via teria implicado riscos demasiado grandes, tendo em conta a monotonia da massa dos
convertidos. Se o número de cristãos tivesse permanecido pequeno, penso que teria sido possível.
Mas massa significa ordem e moralidade.

Com este primeiro resultado, não esgotámos os efeitos do sucesso. Dissemos que as massas entra-
ram na Igreja com o que eram e acreditavam. Não se desfizeram de crenças milenares profundas e
muitas vezes inconscientes, num golpe só, com o seu batismo e “conversão”.17 Os pagãos entraram
na Igreja com o seu paganismo. Tinham as suas próprias imagens de Deus; Zeus, Júpiter (o pai dos
deuses - como é fácil fazer esta transição), ou Ódin, e a abstração do Deus de Jesus Cristo era de-
masiado difícil de suportar. Forneceram ao Deus de Abraão e de Jesus, cujo próprio nome não pode
ser pronunciado, vários rostos e representações provenientes do paganismo. Ocorreu o que tem
sido chamado de paganização da igreja.

Um facto bem conhecido foi a adoção, pela Igreja, de pequenas divindades locais que não podiam
ser banidas da piedade quotidiana. O santo conhecido como Genis, Genies ou Genes é simples-
mente o Génio local, o deus do local de habitação que dá proteção diária. As populações cristiani-
zadas à pressa não podiam ser persuadidas a renunciar a esta divindade. Achou-se melhor batizá-

16Aqueles que acusam a Igreja de ser uma máquina de produção de hereges, ou que a acusam de condenar a liberdade de
pensamento, não fazem a mínima ideia da realidade histórica da explosão de invenções estúpidas, eróticas e delirantes na
Igreja entre os séculos III e X. O pior aconteceu sob o manto do Espírito Santo. Atingiu-se um nível de horror difícil de alcançar.
E os Romanos, antes de Jesus Cristo, já o tinham alcançado, por exemplo, com o senatus-consultum das Bacanais.

17Podemos recordar a entrada das crenças fetichistas (um fetiche neste contexto deve ser entendido como um objeto a que
se presta culto por se lhe atribuir poder mágico ou sobrenatural) nas igrejas africanas. Sobre a sobrevivência de ritos e festas
pagãs no cristianismo, ver Mircea Eliade, Histoire des croyances et des idées religieuses (Paris: Payot, 1983), 3:304; esta obra
oferece alguns exemplos pouco conhecidos e notáveis.
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lo e fazer dele um santo reconhecido pela Igreja. O mesmo processo foi aplicado a muitas crenças
e formas pagãs. Como mostra o nosso exemplo, a multiplicação dos santos tinha um carácter prá-
tico. Não se pedia às pessoas que renunciassem às suas crenças. Essas crenças foram incorporadas
no corpo do cristianismo, que se tornou uma espécie de recetáculo para diferentes religiões. Não
se trata do sincretismo, que encontraremos mais adiante. O que se passa é que, de todos os pontos
de vista, estes santos, ou semi-deidades, eram úteis como mediadores. Pensava-se que a fé em Je-
sus Cristo seria mais fácil através da crença nesses deuses locais batizados. Ao mesmo tempo, o
processo demonstrava o triunfo da verdade cristã sobre essas divindades menores.

Desenvolveu-se um triunfalismo cristão esmagador. Os cristãos tomaram conta dos templos pa-
gãos e transformaram-nos em igrejas, confiscando também os seus tributos (donativos). Os bons
pagãos que estavam habituados a ir a um determinado templo, como o de Diana ou o de Apolo,
podiam continuar a ir lá, mas agora para celebrar a missa de Jesus Cristo. A mudança não era pro-
vavelmente de grande importância para eles. O cristianismo também se impôs pela força. Uma es-
tátua de S. Pedro e uma cruz foram colocadas em todos os monumentos antigos de Roma. O efeito
contrário foi a paganização do cristianismo da Igreja. Os apóstolos e os profetas tornaram-se sacer-
dotes no sentido mais sociologicamente religioso do termo, ou seja, sucessores dos pontífices,18 os
sálios, os arvais, os sacerdotes sacrificadores, as vestais, os áugures, os flâmines, etc... Aos olhos do
povo, tinham as mesmas funções. A Igreja adaptou-se integralmente ao mundo pagão. Aceitou as
suas formas e até a sua moral.

Este facto teve duas consequências graves. Em primeiro lugar, o cristianismo tornou-se naquilo a
que poderíamos chamar a ideologia estrutural desta sociedade particular. Deixou de ser um fer-
mento explosivo que punha tudo em causa em nome da verdade que está em Jesus Cristo, em nome
da incarnação. Deu uma nova base e vitalidade ao que estava em dificuldades no império. Restabe-
leceu o gosto pela vida e pela cultura. O problema não é apenas o da transformação do cristianismo
em religião de Estado, mas o da difusão dessa fé que deixou de ser uma fé e se tornou uma ideologia
coletiva, uma espécie de manifestação de pensamento que recolhe todos os lugares-comuns, as
lendas, os milagres, as “profecias”, os apocalipses, as taumaturgias, e formula para o povo um con-
junto de crenças fáceis, moralistas e construtivas.

Isso serve de enquadramento e de molde tanto para os indivíduos como para as instituições. Tem
força estrutural porque o império precisava efetivamente de ganhar um segundo fôlego e encon-
trou-o aqui. Mas, por este mesmo facto, o cristianismo sofre uma mudança radical de carácter. O
seu anúncio profético, acolhido inicialmente entre as religiões de fuga, transforma-se numa religião
que dá coesão à sociedade. Quando houve a certeza de que podia tornar-se assim, de que podia
assumir o papel tradicional das religiões, a sua vitória foi assegurada sobre as religiões antigas, que
estavam decadentes, e sobre as religiões de mistério, que estavam a tomar o seu lugar. O cristia-
nismo tornou-se, assim, o mais sólido sustentáculo do mundo romano, e não era de todo anormal
que os seus principais centros se situassem nas capitais do império.

O segundo resultado da entrada das massas foi o facto de que, quando o cristianismo se tornou
uma religião de massas, e a Igreja e a elite puderam ter a certeza de manter a verdade, toda a po-
pulação teve de se tornar cristã. Não estou a pensar em conversões forçadas, mas num outro aspeto

18E a terrível adoção do termo soberano pontífice marca o momento em que o clero começa a seguir diretamente o sacer-
dócio pagão.
30

que tem recebido menos atenção. Já dissemos que era impossível conhecer a verdade, compre-
endê-la e discerni-la. Deixemos de lado o que se fazia com os hereges; tratava-se de uma questão
intelectual, não de uma questão de fé. Que controlo podia haver sobre aqueles que não eram inte-
lectuais? Apenas sobre a sua moral ou o seu estilo de vida. Compreende-se, assim, porque é que se
dá cada vez mais importância à confissão, à confissão auricular, depois a uma codificação da moral,
das faltas e das penas (como nas Penitenciais Irlandesas do século VI, que tiveram um sucesso con-
siderável). Agora que o cristianismo se tinha transformado numa religião, uma religião que dá coe-
são social, isto é, um sistema moral, era necessário ver se aqueles que tinham passado pelo ba-
tismo, mas sobre cuja verdadeira relação com Deus não era possível ter qualquer certeza, se com-
portavam de uma forma que agora podia ser qualificada como cristã.

Chegamos assim a uma situação espantosa que durou cerca de quinze séculos e que só agora co-
meça a ser questionada. Exigia-se que as pessoas agissem como se fossem verdadeiros cristãos,
quando muito provavelmente não o eram. Isto é exatamente o contrário da revelação bíblica. Aqui
há o conhecimento do Deus revelado, a fé no seu amor, a aceitação da sua vontade, e só nesta base
é que se tenta viver de uma forma que corresponda ao amor de Deus e à sua vontade. Mas não existe
uma formulação de uma moral “cristã” que seja independente da fé. A Bíblia não decreta uma moral
universal. Ela convoca à conversão e postula em seguida o desejo de viver em harmonia com Deus.
No entanto, constantemente, no que se tornou a cristandade, é feito um esforço para alcançar uma
conduta objetiva sem referência à vida espiritual, sem o conhecimento de Deus em Jesus Cristo.
Uma vez inventada esta enormidade, o passo seguinte foi a construção intelectual de uma identi-
dade entre a moral cristã e a moral natural. Este foi o ponto extremo da perversão da reviravolta.
Tais são, a meu ver, as consequências da tentativa de induzir as massas a uma relação com Deus
que só era possível para um pequeno rebanho.

Chegamos agora ao último ponto deste inquérito geral sobre a subversão de X. Para além das influ-
ências intelectuais, sociais e políticas, o depósito revelado continha em si mesmo um certo número
de germes que podiam dar origem à perversão. De certo modo, trata-se de um regresso à doutrina
e à teologia. Muito rapidamente a Igreja encontrou traços intoleráveis e inaplicáveis naquilo que
Jesus Cristo exigia e proclamava. Tomemos apenas dois temas. Primeiro, diz-nos para sermos per-
feitos como o nosso Pai do Céu é perfeito. Mas como é que alguém pode levar a sério esta impossi-
bilidade? Como aceitar o facto de que, a partir da conversão, com a ajuda do Espírito Santo, o pe-
cado desaparecerá e a perfeição poderá ser alcançada? Mais uma vez, Jesus diz: “Vai, vende todos
os teus bens, dá-os aos pobres e depois vem e segue-me”. Como é que devemos entender isto? To-
dos nós, quando lemos estas afirmações de Jesus, reconhecemos a sua impossibilidade. Há um li-
mite que não podemos absolutamente ultrapassar, nem mesmo os maiores santos. Jesus é o limite
divino. A imitação dele não é possível.

Abre-se, então, o caminho para o trabalho de mineração feito por teólogos de todos os géneros e,
depois, dos juristas, na tentativa de explicar que Jesus quis dizer outra coisa que não o que está
escrito, ou que estes mandamentos se destinam apenas a uma elite espiritual e são apenas conse-
lhos para os outros, ou que a ordem dada ao jovem rico se destinava apenas a ele. Por outras pala-
vras, os textos foram manipulados de todas as formas, para que não sejamos encurralados ou obri-
gados a reconhecer a distância entre Deus e nós. Esta situação foi ilustrada pela querela dos lapsi
(ou caídos em latim, os que renegaram a sua fé sob a perseguição do Império Romano). Hebreus diz
que se tivermos recebido a graça e depois voltarmos a pecar, não há salvação possível; enfrentamos
31

a condenação eterna. Deverá a igreja excluir todos aqueles que cometeram apenas um pecado?
Não poderá haver alguma acomodação? Não deveria ser feita uma distinção entre pecado e pe-
cado? etc...

A liberdade é outro exemplo. Jesus e Paulo dizem-nos que aqueles que são guiados pelo Espírito
são completamente livres em todos os aspetos.19 Mas, na experiência, Paulo já estava a atacar os
coríntios pelo terrível mau uso que faziam dessa liberdade. A liberdade adquirida em Cristo pressu-
põe um perfeito domínio de si, sabedoria, comunhão com Deus e amor. É um risco absolutamente
sobre-humano.20

Isto devasta-nos ao exigir o máximo de consagração. Livres, somos totalmente responsáveis. Te-
mos constantemente de escolher. Estamos em constante perigo de corrupção. A liberdade é de
facto intolerável. Começa assim o trabalho dos expositores e dos moralistas. A liberdade em Cristo
será muito rapidamente esquecida. Isto é muito notável para mim. Começam por analisar e reduzir
a liberdade. Nos primeiros séculos, os intelectuais e os teólogos limitam-se a passar por ela em si-
lêncio. Falam muito de fé, de amor e de virtudes. Quando o pensamento grego invade a Igreja, re-
descobrem a liberdade nos termos dessa filosofia, mas sem qualquer referência ao grande anúncio
da Bíblia. Entre os romanos, começam então a formulá-la em termos jurídicos.

Nas suas análises, tinham razão em reconhecer que a liberdade não é uma licença, que termina
onde começa a liberdade dos outros, que não tem por objetivo destruir ou corromper. Mais tarde,
reaparece como a liberdade política ou económica do liberalismo, e há sempre a questão metafí-
sica, o teatro dos debates elegantes. Mas nada disto tem a ver com a liberdade do cristão, a liber-
dade do Espírito Santo, a liberdade conquistada com a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Isso
era intolerável; foi posto de lado, e quando Lutero o ressuscitou,21 foi logo banido, excluído, mora-
lizado e subjugado pelas igrejas da reforma.

A liberdade perfeita, tanto espiritual como política ou social, liberdade porque a libertação por Deus
de uma nova escravidão é a mutação suprema que não foi apenas proclamada ou ideologizada,
mas realizada, realiza-se em nós pela morte e ressurreição de Jesus Cristo; nele o destino deixa de
existir e somos radicalmente livres. Tudo isto está contido já no primeiro ato de libertação do Egipto.
É a promessa constante do Deus de Abraão. Realiza-se na encarnação. Mas é rigorosamente intole-
rável na plenitude das suas implicações. É psicologicamente insuportável. Acarreta riscos sociais
assustadores e é politicamente insultuoso para todas as formas de poder. Não era possível. Em to-
dos os níveis sociais e em todas as culturas, as pessoas consideraram impossível assumir esta liber-
dade e aceitar as suas implicações. Esta é a impossibilidade fundamental, a recusa unânime de to-
dos os homens, que se traduziu na rejeição da liberdade cristã.

Um risco sem cobertura, uma acrobacia alegre e perigosa sem rede! Não era isso que queríamos.
Esta é a razão pura e simples da rejeição da liberdade. Mas como ela é ao mesmo tempo adquirida,
desenvolve-se um conflito trágico entre a liberdade efetiva (transformada em ideal ou fórmula ou

19J. Ellul, L'Éthique de la liberté, vol. 1 (Genebra: Labor et Fides, 1973); ET The Ethics of Freedom (Grand Rapids: Eerdmans,
1976).

20 B. Charbonneau, Je fus (1980).

21 M. Lutero, A Liberdade de um Homem Cristão.


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pretensa necessidade) e a recusa de aceitar o seu risco. É este o conflito que dá origem às incoerên-
cias do mundo ocidental, com a sua incessante oscilação entre a ditadura e a revolução. E ele foi
encontrado na própria realidade da revelação de Deus.

Um outro germe de subversão assumiu um carácter de contradição essencial com a revelação. Te-
mos de reconhecer que tudo na revelação é formulado de forma antitética (de forma dialética, se-
gundo certos pontos de vista). Ela une duas verdades contrárias que só são verdadeiras quando se
juntam. Afirmo, com prudência, que tudo o que a Bíblia apresenta assume esta forma. Nunca en-
contramos uma verdade única, logicamente ligada, seguida de outra verdade dela deduzida. Não
há lógica na revelação bíblica. Não existe “um ou outro”, apenas “ambos-e”. Encontramos isso em
todos os níveis.

Lutero, por exemplo, exprimirá a nossa situação humana perante Deus com a fórmula: Semper simul
peccator et justus. Somos sempre, ao mesmo tempo, pecadores e justificados. Não há duas etapas,
primeiro a dos pecadores, depois a dos justos pela justificação. Também Paulo diz, a propósito da
salvação, que somos salvos pela graça, através da fé, mas que depois temos de trabalhar para a
nossa salvação (e dá várias admoestações sobre o modo como os salvos devem viver). Isto é con-
traditório. Somos tentados a dizer que ou somos salvos pela graça e os nossos esforços não valem
nada, ou somos salvos pelas nossas obras e não vemos como a graça faz alguma coisa.

Do mesmo modo, Deus é indubitavelmente omnipotente e nós somos livres. Os incrédulos nunca
poderão compreender isto. Se Deus é Todo-Poderoso, pensam eles, então não somos livres. Ou en-
tão somos livres e Deus não é nada. Poderia dar vários exemplos deste género, mas fico-me por um.
Deus é absolutamente transcendente. Ele está no Céu e nós estamos na terra. Num sentido radical,
ele é irreconhecível. Ninguém pode subir ao Céu, ninguém o pode ver, ninguém pode saber nada
sobre ele. Só uma teologia negativa é possível. Podemos dizer apenas o que Deus não é. Nada mais.
Ele é o ‘Totalmente Outro’ que não podemos conhecer. Não há nada de comum entre ele e a sua
criação. Ele é soberanamente Ele próprio. Não partilha a sua glória com ninguém. Mas, ao mesmo
tempo, é o Deus que entra na história humana, que acompanha Abraão e Moisés e o seu povo, que
é muito próximo e íntimo, que fala connosco, que nos transmite por revelação e amor tudo o que
podemos suportar. Como diz Barth, Ele é o Deus escondido precisamente na medida em que se
revela. E revela-se como o Deus escondido. No limite extremo, encarna-se totalmente como ho-
mem. Ele está plena e totalmente presente nesse Jesus Cristo. Não está noutro lugar. Tudo o que
podemos saber de Deus está lá. Não encontramos apenas um pouco de Deus em Jesus. Tudo está
lá, prometido e dedicado a nós. A humanidade é a condição de Deus, na expressão de Vahanian.

Isto é contraditório? Temos de perceber que tudo na Bíblia é contraditório. Mas só há revelação
quando as contradições se mantêm unidas. Deus, o ‘Totalmente Outro’, encarna-se num homem.
Ele continua a ser o ‘Totalmente Outro’. E temos de compreender - repito-o porque é essencial - que
a verdade é feita de contradições efetivas. Cada aspeto da verdade só é verdadeiro porque está
ligado ao seu oposto radical. Se eu disser que Deus é transcendente e ficar por aí, esse não é o Deus
bíblico. Se eu disser apenas que Jesus Cristo é Deus, isso não é o Evangelho. Esta forma de falar é
basicamente contrária ou contraditória para a mente. Não digo a mente humana, mas pelo menos
a do mundo ocidental. Desde seis séculos antes de Cristo, temos estado a funcionar no modo “um
ou outro”. O que é preto não é branco. O que é verdadeiro não é falso. O que é ato não é pensa-
mento, etc... Pensamos analiticamente com um rigor admirável. Esquecemo-nos por vezes de
33

grandes sínteses. Mas (eu diria quase ontologicamente) somos incapazes de aceitar a existência de
opostos, ou de manter juntos dois extremos de uma cadeia, que são logicamente exclusivos.

Assim, como o nosso modo de pensar prevaleceu e foi posto a trabalhar sobre o texto bíblico, desde
o século II d.C. começámos a dividir, a separar, a colocar em pequenos compartimentos intelectu-
ais, a classificar e a ordenar. Com o único pretexto de resolver contradições, fechamo-nos em im-
possibilidades que a mente teológica procurou evitar com uma subtileza sem igual. Inconsciente-
mente, mas ainda mais grave, ao dividirmos os dois aspetos, tornámos cada uma das partes falsas
e enganadoras.

Se eu disser que Deus é transcendente, isso é falso. Se eu disser que Deus é Jesus (e que não há
outro), isso é falso. Um primeiro resultado desta dissolução é a multiplicação das heresias, isto é,
da condenação dos que defendem um aspeto pelos que defendem o outro. Mas as consequências
gerais foram extremas e trágicas para o mundo ocidental. A afirmação absoluta de que Deus é o
‘Totalmente Outro’, que ele é tão transcendente que nos é completamente estranho, leva ou ao
esmagamento aterrorizado daqueles que não ousam sequer viver diante de Deus ou à sua total in-
dependência.

Se Deus está no Céu e tão distante que não se preocupa com nada, então nós, que estamos na terra,
podemos fazer o que quisermos. Veremos isso quando falarmos da dessacralização da natureza e
dos seres vivos pelo cristianismo, da colocação de tudo o que é religioso e sagrado no Céu, para que
nada disso fique na terra. A afirmação não menos contundente de que Jesus é tudo, e a tentativa
de colocar o Deus terrível do Antigo Testamento no meio do obscurantismo primitivo, leva ao erro
diferente de banalidades e familiaridades como o “bom Deus”, o “pequeno Jesus”, o “coração de
Jesus”, etc... Tudo o que é divino é excluído, e Jesus passa a ser o Grande Irmão, o Bom Exemplo, o
modelo de realização moral e, atualmente, o revolucionário brilhante que tomou medidas insubs-
tituíveis contra as classes dominantes. Tudo isto é absurdo. Percebemos, assim, um conflito entre
o modo de revelação e a tendência mais profunda do espírito ocidental para pôr tudo em pratos
limpos. A subversão é a mesma que a precedente. Não podemos aceitar a especificidade desta re-
velação. Manipulamo-la de modo a torná-la aceitável e acessível. Ao fazê-lo, invertemo-lo.

Por fim, vou referir-me a um terceiro germe de subversão que, à primeira vista, parece ser o oposto
do que acabámos de analisar. Temos um desejo de unidade. Tentamos reduzir a diversidade ao
uno. Também aqui talvez devêssemos voltar às correntes da filosofia grega. Mas elas não eram mais
do que isso. Parece, de facto, que estamos perante um movimento profundo do espírito humano
que só com dificuldade tolera coisas diversas que não podem ser classificadas. A mesma tendência
é expressa no desejo romano de unificação material, a unidade do mundo mediterrânico.

Há aqui uma espécie de impulso fundamental que é inútil tentar atribuir ao imperialismo político
ou a um desejo de conquista ou de glória ou a interesses económicos. Todos eles estão envolvidos,
mas são secundários. É evidente que não vale a pena negar a sua importância. Sublinhamos apenas
o facto de serem o resultado de uma obsessão primordial pela unidade: a redução da diversidade
do mundo ao uno. O mesmo espírito (mais do que a fome de ouro) está por detrás das explorações
que começaram no século XIV: a fome do uno. Ora, é um facto extraordinário que a Bíblia apresente
Deus precisamente como o Uno. Isso é maravilhoso. Mais maravilhoso ainda é o facto de começar-
mos a ouvir, ao mesmo tempo, as primeiras fissuras na unidade imperial.
34

Para governar mais convenientemente o seu vasto império, o imperador teve de o dividir em dois
(e em quatro, secundariamente) com Diocleciano. Mas a obsessão pela unidade mantém-se. Na au-
sência de uma unidade política absoluta e intangível, não será possível chegar a uma unidade reli-
giosa desejada pelo Deus Uno? O monoteísmo não é um progresso religioso, mas uma aventura
unitarista. A religião assegurará a unidade do império, porque o Deus Uno atuará em seu favor. Mas
as diferenças de interpretação tornam-se agora inadmissíveis. Se a religião do Deus Uno tem esta
vocação, tem de estar unida. A heresia já não é um assunto de teólogos tacanhos ou de “divisores
de cabelo”. Ela diz respeito à própria existência, à possibilidade da existência da unidade, à unidade
do império.

É por isso que, nos séculos IV e V, os dramas das heresias não se desenrolam nas igrejas ou nos
centros teológicos, mas são de interesse popular e coletivo. Pequenas pessoas apoiam os donatis-
tas (os circunceliões), os priscilianistas e os arianos. Morrem por ideias religiosas. Isto pode parecer-
nos ridículo. Pode parecer obscurantismo religioso. Mas não é. O que estava em causa para todos
era a possibilidade ou impossibilidade de unidade - não apenas a unidade da igreja, mas também
a do império.

Esta obsessão política, baseada na religião, repercute-se ao longo da Idade das Trevas e da Idade
Média sob a forma de uma imagem ou formulação ou ideologia de império universal (cf. o império
de Carlos Magno ou o Sacro Império Romano). Deus é sempre assumido como modelo; uma vez que
Deus é Um, a sociedade humana deve ser também uma.

Ao longo dos séculos, até aos nossos dias, temos estado sujeitos às incríveis consequências de as-
sumir Deus como modelo desta forma. Assim, alguns argumentaram que, como Deus é um monarca
soberano, a monarquia absoluta é a única forma de governo aceitável, etc... Mas não é essa a minha
tese atual. O desejo de unidade conduziu o cristianismo por caminhos estranhos. Dois caminhos
contraditórios encontram a sua origem nesta obsessão: de um lado o totalitarismo cristão, do outro
o sincretismo. Deus, o modelo, é o Todo. A unidade acontece precisamente por isso. É preciso al-
cançar a totalidade a todo o custo. O cristianismo deve recuperá-la. As atividades políticas, econó-
micas e intelectuais devem tornar-se cristãs. Exige-se um sistema de unidade total. Do mesmo
modo, todo o mundo conhecido deve tornar-se cristão.

Houve missionários devotos e audazes que tinham um profundo desejo de converter os povos para
a sua própria salvação, mas entre os líderes da Igreja havia também o objetivo de que, uma vez que
Deus é o Tudo e o Uno, o mundo inteiro deveria formar uma única unidade, e esta unidade pode ser
assegurada pela cristianização. Daí as missões globais.

Neste empreendimento, foi necessário enfrentar obstáculos aparentemente intransponíveis. Se a


unidade não pode ser alcançada pela destruição de tudo o que é externo, pela expansão de um cristi-
anismo puro, talvez a combinação e a unificação possam ser alcançadas pela acomodação mútua do
cristianismo e daquilo que lhe resiste. Este é o grande programa que o cristianismo adotou pela pri-
meira vez em relação à filosofia grega. Mas este é apenas um exemplo. Conhecemos todas as pri-
meiras tentativas de sincretismo com as várias religiões do império, desde a exclusão até aos esfor-
ços de assimilação. Mas agora encontramos algo que ultrapassa de longe essas tentativas. As len-
das escandinavas, as árvores de Natal alemãs, a festa da luz, as meditações dos místicos árabes,
tudo encontra uma entrada no cristianismo. Tudo é considerado. Não há verdade, beleza ou religião
35

que não possa ser integrada no cristianismo. A nossa tarefa não é negar ou anular, mas, pelo con-
trário, produzir unidade com tudo o que pode ser útil. O cristianismo adota tudo, e o processo nunca
terminou.

No século XIX, foi feita uma tentativa de assimilar o budismo (e até aos anos 30 conheci fervorosos
defensores de uma fusão entre o cristianismo e o hinduísmo). Desde 1945, exatamente o mesmo
sincretismo brincou com o marxismo, e hoje, tal como no século X, o objetivo é mais uma vez o
sincretismo com o Islão. Agora é certamente claro que, nesta obsessão pela unidade, o cristianismo
está a afastar-se cada vez mais da sua fonte. A cada momento uma nova falsidade é introduzida na
revelação. O sincretismo é o triunfo do príncipe da mentira. Nele, nem um lado nem o outro são ver-
dadeiros ou credíveis. A unidade a todo o custo que supostamente conduzirá a Deus é a derradeira
subversão da revelação.

Em determinados aspetos, o meu ponto de vista pode parecer próximo do de Carl Amery.22 De facto,
estou de acordo com a sua preocupação ecológica, com as perspetivas éticas que abre, com o seu
objetivo geral, com a sua forma de colocar a questão ecológica e com a sua fórmula marcante de
que a humanidade passou de sucesso em sucesso, que toda a série de problemas que enfrentamos
agora são o resultado desse sucesso e que, numa palavra, “a crise total é a consequência imediata
do sucesso total”. Muito bem-dito. Finalmente, como se verá, concordo com a sua afirmação de que
o cristianismo é responsável pela crise. Mas aqui começamos a divergir. Para Amery, o cristianismo
é o único e total responsável por toda a nossa situação atual. Nós, cristãos, somos os autores da
crise que aflige o mundo. Pela minha parte, diria que o cristianismo é parcialmente responsável, e
que a causa é a subversão do cristianismo, ou seja, o anti-cristianismo. É neste ponto que diver-
gimos. Amery argumenta que o cristianismo foi bem-sucedido, mesmo para além das pretensões
dos seus defensores oficiais. O seu sucesso residiu na sua participação efetiva na elaboração de um
aparelho de poder que afetou marcadamente a história mundial durante os últimos séculos. Este
aparelho desenvolveu-se na esfera geográfica e histórica do cristianismo, e não é obviamente por
acaso que o seu triunfo conduziu à curva catastrófica do índice principal. Não há aqui qualquer dú-
vida sobre o sucesso ou a derrota do evangelho de Jesus e, muito menos, das igrejas e da teologia
ou moral cristãs. Os domínios políticos, económicos e científicos em que o cristianismo foi bem-
sucedido são precisamente aqueles que, pela sua própria natureza e métodos, não podiam nem
deviam ter interessado os primeiros cristãos. Como poderiam eles não ver no mundo atual senão
uma derrota total, a vitória final do Maligno. Amery não está interessado na revelação de Deus em
Jesus Cristo, mas sim no facto de um cristianismo degenerado ter tido sucesso; esta é a prova da
sua subversão. A minha tentativa é mostrar como e porquê esta subversão pode ter lugar. Amery
propõe-se considerar as funções, e não os valores (a verdade), da mensagem do Antigo e do Novo
Testamento, da igreja e da teologia. Não rejeito esta análise, pois ela está incluída. Mas penso que
não se pode separá-la de uma apreciação dos valores nem abstraí-la do conteúdo de verdade do
evangelho. Se, de uma forma muito grosseira e superficial, levarmos em consideração apenas as
funções do cristianismo, descobriremos que ele foi, como disse Amery, a força motriz de um jogo
de poder que é mais do que agressivo, é irresistível, e que durante séculos se espalhou pelo resto
do planeta com os seus missionários e soldados. Eu defendo que isto é apenas parcialmente ver-
dade e que se insere nos ataques modernos ao cristianismo que promovem o ocultismo, o desvio e
a superficialidade. Tenho várias objeções a levantar.

22 La Fin de la Providence (Paris: Éditions du Seuil, 1976).


36

Em primeiro lugar, Amery passa constantemente, de uma forma muito fácil, como lhe convém, da
prática cristã à doutrina e vice-versa. Cita um texto de um teólogo qualquer porque se adequa à sua
tese, mas ignora os textos que não se adequam. Acumula exemplos práticos que o apoiam, mas não
os que o contrariam. Escolhe o que os seus pressupostos exigem. Em segundo lugar, comete erros
grosseiros quanto ao fator dominante no cristianismo. Pensa poder demonstrar que tudo o que de
mau subsiste na nossa sociedade está já aparece contido, em germe, na revelação bíblica. Como
acima, seleciona o que prova isso e faz disso um coeficiente poderoso, mesmo que não haja nada
que o justifique. Mas deixa de lado aspetos muito mais essenciais do pensamento e da prática ju-
daico-cristã que são contrários às suas convicções.

Assim, para ele, o “coração da mensagem” é a eleição da humanidade sozinha na criação, a ideia
de uma aliança que dá à humanidade um mandato absoluto para governar, a garantia de uma his-
tória de salvação que triunfará sobre as misérias da criação e a garantia de um equilíbrio a favor da
humanidade. Deus é simplesmente o Deus dos eleitos, um Deus que dá à humanidade o controlo
soberano da criação: a possibilidade de uma exploração ilimitada, um mandato incondicional de
soberania. Estas teses são falsas, por um lado, e, por outro, a ideia de criação, de supremacia hu-
mana, etc.., não desempenhou o papel central que ele lhe atribui no pensamento judaico, nem no
pensamento e na prática cristãos.

Poderia apontar muitos outros erros. Limitar-me-ei a referir a estranha ideia de que é devido ao
atraso da parousía e ao aumento do número de mortos que a salvação após a morte, ou a salvação
individual, se torna central. Como se não fosse já assim em Paulo e João! Um dos méritos de Amery
é não ter também abordado o facto de o monoteísmo ser a fonte de todos os nossos problemas, um
lugar-comum nestes últimos anos. Mas esta ideia ainda não tinha visto a luz do dia quando ele es-
creveu. O cristianismo continua a ser responsável pelos nossos problemas modernos, mesmo na
sua primeira versão (à exceção do próprio Jesus, que está isento).

Em todo este processo há uma grave falta de dimensão histórica. Se os judeus tinham promessas
tão poderosas, porque é que não desencadearam o movimento? Porque é que foram os romanos e
não os cristãos que conquistaram e devastaram o mundo ocidental? Porque é que, no século X,
foram os árabes e não os cristãos que subjugaram o mundo conhecido? Por que razão, no século
XII, foi a China, que nada tinha a ver com a revelação cristã, a grande potência militar, técnica e
científica? Porque é que, finalmente, se a força motriz profunda e a razão de ser da conquista oci-
dental do mundo, da exploração ilimitada, da voracidade e da dominação eram elementos do pen-
samento judaico, amplificados pelo Novo Testamento, porque é que a sua execução só veio a acon-
tecer passados cerca de dois mil anos? Parece-me um período demasiado longo, e a causalidade é
duvidosa. Tudo na análise de Amery assenta, em última análise, na dupla crença de que Jesus não
ressuscitou (a ressurreição é para ele a fonte da alteração total da mensagem de Jesus) e de que o
Deus transcendente e encarnado não existe. É por isso que ele nos pede que consideremos as fun-
ções do cristianismo e não os seus valores. Mas é de facto uma escolha de valores (também a adotar,
como o valor supremo que lhe permite julgar o cristianismo, ou seja, a ecologia) que, na realidade,
rege todo o seu pensamento.
37

Capítulo 3

DESSACRALIZAÇÃO E SACRALIZAÇÃO

A menção do sagrado conduz-nos a esferas contestadas, nas quais se tem a impressão de que tudo
depende da definição que escolhemos. O que é que estamos a dizer quando usamos esta palavra?
Não vou tentar avançar uma definição. Direi apenas que, em todas as sociedades, existe uma ordem
de sentimentos, experiências, objetos, ritos e palavras a que as pessoas atribuem um valor que não
é diretamente utilitário, que acreditam ser determinante e independente dos seus próprios pode-
res, que não pensam poder reduzir ao nível do quotidiano ou da racionalidade (como a sociedade),
mas que lhes parecem estar carregados de um potencial de energia inexprimível ou de um potencial
explicativo. A explicação procede deles, mas eles próprios permanecem inexplicáveis.

Aos olhos do homem, esta ordem é relativa ao que nos é imposto, à nossa condição necessária. Ao
mesmo tempo, confirma a necessidade e permite-nos escapar-lhe. É com base nessa confirmação
e nessa possibilidade que encontramos uma ordem no mundo. O sagrado permite-nos discernir
uma ordem na multiplicidade da experiência, da informação e da ocorrência. Podemos designar ou
nomear essa ordem. Esta ordem de virtualidades extremas a que eu chamaria o sagrado é uma ge-
neralização daquilo a que vários povos chamam o sagrado.

Gostaria de ser mais preciso em dois pontos. Nesta orientação bastante subjetiva, não estou a per-
guntar se o sagrado existe em si mesmo, se é que isso existe. Estou simplesmente a dizer que tudo
se passa como se existisse. Fico-me pelo que as pessoas consideram sagrado; se existe como tal ou
se apenas se pensa que existe é um problema metafísico que não tenho intenção de tratar. O se-
gundo ponto é que o sagrado não é a mesma coisa que o religioso. Eu diria esquematicamente que,
em grande medida, o sagrado se sobrepõe aos fenómenos religiosos e que o religioso é uma versão
possível do sagrado.

Parece-me, então, que o sagrado é relativo a três aspetos da vida humana: o espaço, o tempo e a
sociedade. Ao nos encontrarmos num espaço incoerente, ameaçador e incompreensível, estabele-
cemos pontos de coordenação. Graças ao sagrado, definimos ou mantemos a ordem no mundo.
Fixamos limites e direções. Podemos estabelecer um quadro dentro do qual se desenrola toda a
atividade, ou fixar um centro, um ompalos, para o qual orientamos tudo. No que respeita ao tempo,
há tempos sagrados que dão sentido ao tempo. Os dias não são todos iguais. Nestes dois casos, o
sagrado estabelece diferenças que nos permitem ordenar a vida.

O terceiro domínio, ou função, é relativo à sociedade ou ao grupo. O sagrado só existe enquanto é


coletivo, enquanto é aceite e vivido em comum. Produz a integração dos indivíduos no grupo. Dá
aos indivíduos um lugar incontestável. Como o tremendum ou o fascinans está sempre em causa, o
38

sagrado é sempre incontestável. Se puder ser contestado, deixa de ser sagrado e, com isso, toda a
ordem do mundo se desintegra.23

Não tenho uma opinião fixa no debate sobre se existe ou não uma coisa chamada natureza humana.
No entanto, parece-me que existem, pelo menos, certas constantes bastante bem estabelecidas. O
sagrado parece-me ser uma delas. Com efeito, defendo que, pelo menos nas sociedades históricas
- digamos, nos últimos 5000 anos - o sagrado pode não ser idêntico ou inexpugnável, mas quando
é questionado, criticado e depois destruído numa sociedade, surge outra forma do mesmo nessa
sociedade. É recriado e, embora tenha um carácter diferente, assume as mesmas funções.

Se não nos contentarmos com generalidades, mas tentarmos compreender o que está em causa
num determinado tempo e lugar, veremos que o sagrado não só é variável como também não tem
uma intensidade fixa. Há períodos em que o sentido do sagrado é forte, e períodos de dessacraliza-
ção. Mas tudo indica que não podemos viver num universo dessacralizado, num universo sem es-
truturas transcendentes estabelecidas, sem religião. Quando tal situação surge, há uma tensão que
resulta na organização de um novo sagrado.

Não é verdade que tenha havido um período “religioso” na história da humanidade que já tenha
desaparecido. Houve anteriormente oscilações. Na Roma dos séculos I e II d.C., por exemplo, ou na
Idade Média, nos séculos XIV e XV, houve poderosos movimentos de dessacralização. A eles segui-
ram-se novas sacralizações. Noutro lugar mostrei que é quase certo, historicamente, que quando
há um processo de dessacralização, o próprio fator que o produz dá origem a uma nova forma de
sagrado. É como se investíssemos com o sagrado o próprio poder que triunfa sobre a forma anterior
do mesmo. É necessário um deus mais poderoso para vencer o deus anterior e, por isso, é normal
reconhecer o deus vencedor como o verdadeiro deus. Considero este facto como uma verdadeira
“lei” do sagrado.

Finalmente, no que respeita à nossa época, podemos dizer que a minha análise do sagrado mostra
que ele gira em torno do duplo eixo “tecnologia/sexo” e “Estado-nação/revolução”.24 “Não deve-
mos esquecer que, na realidade, o sagrado é sempre ambivalente e que o eixo em torno do qual se
agrupa tem dois polos opostos. Recordo isto, mesmo que não esteja diretamente relacionado com
o meu tema, para sublinhar que a nossa sociedade ocidental moderna não escapa ao sagrado. Esta
não é apenas uma questão académica. Não é uma questão de mera erudição, mas diz-nos respeito
muito concretamente.

23Abordei longamente estas questões em Les Nouveaux Possédés (Paris: Fayard, 1973); ET The New Demons (Nova Iorque:
Seabury, 1975); “Loi et sacré. Droit et divin”, em Actes du Colloque sur le Sacré: Le sacré, Études et Recherches (Paris: Aubier,
1974); Castelli et al., Prospettive sue sacro (Roma: Instituto di studi filosofici, 1974).

24 Cf. Les Nouveaux Possédés, pp 86-115.


39

DESSACRALIZAÇÃO PELO CRISTIANISMO

Desde há cerca de vinte anos, teólogos e sociólogos têm vindo a evidenciar o facto de que o pensa-
mento cristão primitivo e o pensamento judaico da Bíblia que o precedeu não eram, em primeira
instância, religiões que partilhassem o elemento predestinado do sagrado. Pelo contrário, eram ex-
tremamente críticos em relação a todo o mundo pagão do sagrado. Foi sublinhado, por exemplo,
que não havia aqui qualquer tipo de rivalidade religiosa, mas sim um desejo de destruir o religioso
enquanto tal e uma visão totalmente negativa do sagrado. Isto pode parecer surpreendente, na
medida em que estamos habituados a pensar o cristianismo na categoria das religiões tradicionais.
Parece, de facto, fazer parte da história da religião, pois vemos claramente que produziu normas
sagradas, ritos, tabus, etc.., que lhe dão um lugar dentro do que é “normalmente” considerado
como sagrado.

No entanto, a primeira análise não está errada. Se, na Igreja, voltarmos “às fontes” - por exemplo,
à época da Reforma - descobrimos que elas tomam a forma de um violento movimento de dessa-
cralização. A batalha da Reforma centrou-se quase completamente no desejo de destruir o ele-
mento sagrado que tinha invadido a igreja medieval.25 Antes de mais, devemos considerar as acu-
sações que foram feitas contra os primeiros cristãos. Nos textos romanos relevantes, eles são con-
siderados não apenas como “inimigos da raça humana”, mas como ateus e destruidores da religião.
Para os romanos, o cristianismo nascente não era de todo uma nova religião. Era uma “anti-reli-
gião”. Este ponto de vista era bem fundamentado. O que as primeiras gerações cristãs estavam a
pôr em julgamento não era apenas a religião imperial, como muitas vezes se diz, mas todas as reli-
giões do mundo conhecido.

A questão que pretendo colocar aqui é precisamente a de saber como é que, partindo desta pri-
meira posição essencialmente crítica, a Igreja e os cristãos reconstituíram progressivamente o sa-
grado, criaram formas religiosas e ressacralizaram o mundo. Mas primeiro será útil mostrar um
pouco mais detalhadamente o que é que a dessacralização envolveu.

Aconteceu em dois níveis e em dois períodos diferentes, primeiro no pensamento da teologia he-
braica, depois no seu desenvolvimento cristão. Toda a gente sabe que na Bíblia judaica, quer no
Pentateuco quer nos profetas, há um ataque violento às religiões. Muitas vezes, isto é visto de forma
muito simplista como uma batalha de religiões. A questão não é de todo essa. De facto, a batalha é
contra o sagrado. Os deuses a que se resiste e que se rejeita são os deuses da natureza: a deusa lua,
o deus da reprodução, o deus do trovão, etc... Trata-se de considerar as coisas ou forças naturais
como coisas ou forças que nada têm de sagrado. Deus não está nessas realidades; são realidades
puramente naturais. Uma das características do texto hebraico é a abundância de ironias que visam
mostrar que os poderes sagrados da natureza não existem.

25 J. Ellul, “Actualité de la Réforme”, em Le Protestantisme français, ed. Boegner (Paris: Plon, 1945).
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Sabemos agora com alguma certeza que muitos textos devem ser tomados num sentido polémico.
Eles lutam contra a sacralização das forças naturais. As coisas que acontecem na terra e as estrelas
no céu não têm nada de religioso ou sagrado. São apenas coisas e devem ser encaradas como tal.
Não temos de lhes prestar qualquer respeito especial. A batalha é, em primeiro lugar, contra o sa-
grado nas religiões de Canaã e da Assíria e, em segundo lugar - e mais longe - contra a religião do
Egipto. O que está em causa não é, em primeiro lugar, o “monoteísmo” por oposição ao politeísmo
(embora, naturalmente, isso faça parte da questão), mas o conceito de criação tal como Génesis 1
e 2 o formulam. Tudo é, pura e simplesmente, criação. Ou seja, tudo é simplesmente um objeto ou
uma coisa. Se provém do Criador, não contém nada da sua origem divina, nenhum mistério, ne-
nhum poder oculto. A madeira é feita de madeira; não é a casa de Pan ou das deusas. A água, fonte
do oceano, é água - e nada mais. A lua é uma luminária com a qual se conta o tempo.

A criação bíblica é totalmente dessacralizadora porque não é, em nenhum sentido, uma teodiceia.
Não é uma história dos deuses e das suas aventuras enquanto lutam, enquanto fabricam com al-
guma dificuldade as coisas do mundo e enquanto estão constantemente presentes nelas. A deusa
fecunda e criadora das águas está sempre nas águas. Em contrapartida, a história polémica bíblica
da criação tem um efeito de espoliação total. Deus profere a sua palavra, e as coisas acontecem.
Isto é tudo. O que isto significa é que Deus está verdadeiramente fora do mundo, que é totalmente
transcendente. Ele não está encerrado em nenhuma parte desta criação. Está para além dela. Esta-
beleceu uma relação Criador-criatura, mas esta é uma relação de amor, não uma relação sacral ou
religiosa. Nesta criação está também presente aquele que lhe responde: o homem, que é o único
mediador da criação para Deus e de Deus para a criação.

Só a humanidade é “sagrada”. A vida humana é a única realidade que tem um estatuto superior ao
das “coisas criadas”. Este pensamento poderoso dá origem à luta contra o facto de se considerar
sagradas as coisas ou funções naturais. Ao mesmo tempo, a luta é contra o politeísmo, pois este só
existe na medida em que os deuses estão ligados às realidades naturais e têm a sua morada no
mundo. Se eles são numerosos, é devido à diversidade das funções, forças e objetos naturais. O
deus da lua é diferente do deus do sol. A criação, porém, pressupõe um só Deus. Ela não atribui
valor superior a nenhum objeto. Deus está verdadeiramente fora do mundo, e este mundo é verda-
deiramente dotado de uma realidade que não contém mistério. Este mundo é assim entregue nas
mãos dos homens. Podemos utilizá-lo sem nos preocuparmos em ofender esta ou aquela força sa-
grada.

Esta dessacralização é acompanhada por uma luta feroz entre o visível e a palavra. O visível, a rea-
lidade em que nos encontramos, é múltiplo, é a extrema diversidade das coisas. A nossa tendência
é, portanto, fazer uma imagem visível do deus que habita as coisas. Encontramos assim estátuas
sagradas, lugares sagrados, etc... O pensamento religioso dos judeus, porém, rejeita totalmente
qualquer representação de Deus. Isto é compreensível, pois se Deus é totalmente diferente da sua
criação, se não há imagem de Deus na criação, se a criação é constituída apenas por objetos neu-
tros, então nenhuma imagem pode fazer justiça à transcendência de Deus. Deus está ausente do
mundo. Em vez do visível (que é sempre uma forma do sagrado), a Bíblia coloca a palavra como
único elo de ligação com Deus.26 Deus fala. Nós falamos. É tudo.

26Cf. J. Ellul, La Parole humiliée (Paris: Éditions du Seuil, 1981); ET The Humiliation of the Word (Grand Rapids: Eerdmans,
1985).
41

Esta posição radical é a última palavra em dessacralização. “Ninguém jamais viu Deus.” “Não farás
nenhuma imagem de nada na terra, no mar ou no céu; não te prostrarás diante dela nem a adora-
rás.” Estas duas afirmações excluem o visível e, com ele, todo o domínio religioso e sacro. Também
aqui, naturalmente, abundam os textos polémicos.

Finalmente, é feita uma distinção rigorosa entre o sagrado e o santo. Esta distinção existe em mui-
tas religiões (nomeadamente grega e romana).27 Mas os judeus não usam a mesma tipologia. Por
um lado, como vimos, para eles o sagrado não existe. Por outro lado, o sagrado é aquilo que “se-
para”. Deus é santo, porque é radicalmente distinto de tudo o resto. Ele é uma rutura. O que é santo
na terra é o que Deus escolhe e separa. O santo é a pessoa que está separada dos outros porque
Deus a separou. Isso não tem nada a ver com o sanctus, por exemplo, que é “sancionado” pelo poder
divino, nem com o sacer. Assim, a obra espiritual dos hebreus é quase toda de dessacralização.

Quase! Porque se aprende com os factos que o regresso do sagrado é muito rápido. Isto acontece a
dois níveis. Há um sagrado reconhecido, voluntário e específico, e há um sagrado involuntário, di-
fuso e, como poderíamos dizer, contaminado. Encontramos o tipo voluntário na retenção dos sa-
cerdotes e dos sacrifícios. Se a lógica tivesse sido pressionada, o sacerdócio e os sacrifícios deve-
riam ter sido extintos como modos de mediação com Deus. Há aqui um intermediário entre a cria-
ção e o Criador, um mundo que participa do divino.

Isto difere, evidentemente, do sagrado no sentido habitual. Não é uma realidade natural que se
torna sagrada, mas um homem que é investido de uma função pelo Deus transcendente. No en-
tanto, essa função é rapidamente considerada sagrada. O mesmo se aplica ao sacrifício. O seu papel
consiste em reconhecer que Deus é o dono de todas as coisas. Oferecemos-lhe os nossos primeiros
frutos para mostrar esse reconhecimento. Mas, muito rapidamente, os sacrifícios adquirem um ca-
rácter sagrado. Ainda não está tudo purgado. A lógica da dessacralização ainda não foi finalmente
posta em prática. Mais importante, porém, é a infiltração involuntária do sagrado. Os lugares tor-
nam-se sagrados, sobretudo as montanhas como o Carmelo, o Sinai, o Gerazim, o Horeb e Sião.

A montanha é um lugar privilegiado para o encontro com Deus. O lugar onde Deus se manifesta
deve ser considerado santo, diz-se, mas, de facto, considerado sagrado. Ora, sabemos que, em todo
o lado, a montanha é tradicionalmente uma habitação sagrada dos deuses. Os profetas fazem eco
deste investimento das montanhas com significado sacral quando atacam os cultos dos “lugares
altos”. A disputa entre samaritanos e judeus também diz respeito a montanhas sagradas. Os sama-
ritanos querem continuar a adorar Deus na montanha, enquanto os judeus o adoram no [monte do]
templo.

Outros lugares também se tornam sagrados. São, de facto, os “lugares clássicos”, como um vale
irrigado ou uma fonte, como o vale de Jaboque, onde Jacó lutou com o anjo: Deus está lá. O sagrado
que assim revive ou prossegue em Israel é-o por deformação da intenção original (por exemplo, os
objetos cultuais do templo adquirem um significado sagrado) ou por contaminação, pois, apesar
de todas as ruturas com os povos vizinhos, o sagrado mantido por eles perpetua-se na fé de Israel
ou invade de novo o povo. Assim, reaparece constantemente o culto da lua ou do poder de repro-
dução sob a forma do touro (que os profetas chamam ironicamente de bezerro).

27 Sobre esta questão, ver as obras de Dumézil, Benveniste e Eliade.


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Há uma luta constante entre o desejo de dessacralização, no interesse de um Deus único e comple-
tamente diferente, e o reavivamento do sagrado por uma espécie de impulso espontâneo. Podemos
recordar a importância da Asherah, a “estaca” plantada, que não é um ídolo porque não está escul-
pida, mas que parece ser uma espécie de meio de concentração de forças telúricas, e que os profe-
tas combatem continuamente. Podemos, finalmente, recordar o que parecem ser práticas mágicas
(Urim e Tumim, as cinzas da novilha vermelha, etc...), práticas totalmente incompatíveis com o
Deus transcendente, mas que exprimem uma relação plena com o sagrado.

O cristianismo nascente não só entra completamente no processo dessacralizador do pensamento


hebraico, a secularização do mundo, mas leva-o até ao limite. A título de exemplo, podemos recor-
dar que a doutrina da criação em Génesis 1 e 2, embora judaica, como já dissemos, não parece de-
sempenhar qualquer papel importante no desenvolvimento do pensamento judaico. Em contrapar-
tida, ela está totalmente no centro do pensamento cristão. No cristianismo, esta doutrina do Cria-
dor e da criação adquire uma importância decisiva e é pressionada com todas as suas implicações.
Do mesmo modo, o pensamento cristão radicaliza a transcendência, a rutura total entre Deus e o
mundo, que só pode ser curada pela incarnação, com base na qual não é possível qualquer desen-
volvimento do sagrado. O Deus cristão dá-se a conhecer em Jesus Cristo e não noutro lugar. (Refiro-
me ao que se afirmava no primeiro século, nas três ou quatro primeiras gerações cristãs: o cristia-
nismo primitivo). Fora de Jesus Cristo, Deus é totalmente incognoscível e inacessível. Como disse
acima, a única teologia possível em relação a Deus é o que muito mais tarde (do século XII ao XV)
será chamado de teologia negativa, ou seja, declarar o que Deus não é. Não há possibilidade de
dizer positivamente o que Deus é. Isto significa que a condenação do visível no domínio religioso
ganha ênfase. Não pode haver demonstração nem do mistério divino nem da revelação de Deus. O
Deus cristão é um Deus escondido. Também não se pode conservar ou imaginar qualquer imagem
de Jesus. Temos aqui uma religião apenas da Palavra, e Jesus é ele próprio a totalidade da Palavra,
viva e não ritualizada.

O cristianismo também rejeitou tudo o que restava de sagrado no judaísmo: os sacrifícios e o sacer-
dócio. Há apenas um único sacrifício feito em Jesus Cristo. Isto não só anula os regulmentos sacri-
ficiais do judaísmo, mas exclui a prática de quaisquer sacrifícios futuros. Tudo já foi feito a este res-
peito. Não se pode acrescentar nada ao sacrifício de Jesus. É este o tema de todo o livro de Hebreus.
A par disto, temos a supressão de um corpo de sacerdotes ou mediadores. Os ministros que são ne-
cessários à vida da igreja, tal como Paulo os enumera, não incluem os sacerdotes. Quando o Novo
Testamento usa o termo, está a dizer que agora todo o grupo de crentes se tornou um corpo de
sacerdotes: todos e, portanto, ninguém.

Finalmente, os poderes misteriosos do mundo são definitivamente exorcizados, eliminados e ven-


cidos. Este é um tema essencial. O mundo contém poderes espirituais, descritos como tronos, exou-
siai, domínios, etc... Residindo no mundo, esses poderes escondem-se em instituições, pessoas,
etc... Mas todos eles foram destruídos e extirpados pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Neste
mundo, portanto, já não há nada de sobrenatural. Já não há nada de misterioso, já não há nenhum
mundo do além. Também não há mais divisão ou partição do mundo entre o sagrado de um lado e
o profano do outro. O mundo cristão é totalmente secular. Nele não há tempos ou lugares particu-
larmente sagrados, precisamente porque Deus é absolutamente o ‘Totalmente Outro’ e nada no
mundo se aproxima Dele ou pode ser portador de valor, significado, energia ou mesmo ordem. A
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única energia nova que o cristianismo reconhece é a presença potencial de Deus através do Espírito
Santo. Mas também o Espírito é incompreensível, inacessível e inexplorável.

Esta secularização, dessacralização e laicização é a mais radical que alguma vez foi conseguida. As
origens da ciência e da técnica remontam muitas vezes a ela, pois se as coisas são simplesmente
coisas e nada mais, se não há nelas nenhuma divindade oculta ou poder misterioso, então pode-se
tentar conhecê-las absolutamente e usá-las sem limites. Com este ponto de partida, a questão his-
tórica e sociológica que se coloca é a de saber como é que na cristandade medieval, e até aos nossos
dias, se verificou uma reconstituição do sagrado, a produção de uma forma cristã do sagrado, uma
sociedade em que o sagrado desempenhou um papel decisivo.

II

A SACRALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO

A RESSACRALIZAÇÃO DA NATUREZA
E DA SOCIEDADE PELO CRISTIANISMO

Em resposta à questão anterior, posso voltar a referir-me à formulação teórica que apresentei no
início deste debate. Quando o cristianismo derrotou as outras religiões do mundo romano e elimi-
nou a forma tradicional do sagrado entre as populações pagãs, o que pertencia ao conquistado foi
transferido para o conquistador. As pessoas que se converteram, sem dúvida (mas a partir do século
IV, em grande parte por meios externos e mesmo pela força), levaram consigo e para o seu cristia-
nismo as convicções que já tinham sobre o sagrado. Nos dois séculos após Constantino em que o
cristianismo triunfou, quando o império se tornou oficialmente cristão e as massas entraram na
igreja por várias razões, não foi possível que houvesse a tripla mutação de uma profunda conversão
à fé cristã, o abandono recíproco de todas as crenças anteriores e a correspondente transformação
cultural.

É evidente que, quando os templos dedicados aos deuses da Grécia e de Roma foram confiscados
e ‘batizados’ como igrejas cristãs, a própria estrutura arquitetónica recordava forçosamente a reli-
gião antiga, por exemplo, pela divisão entre lugar sagrado e lugar “profano” (profanum, “diante do
santuário”). Se considerarmos concretamente a situação dos recém-convertidos, se tentarmos ver
o interior das suas mentes, compreenderemos que havia inevitavelmente uma forte sobrevivência
de crenças anteriores e de juízos espontâneos. Não estou a dizer que as conversões foram falsas ou
hipócritas, a não ser que o tenham sido por razões de interesse próprio, como seguir o imperador28
ou pela força. O que estou a dizer é que não se pode anular num instante uma estrutura mental

28Vemos isso nas correntes conflituosas que se desenvolvem no pensamento cristão nos séculos IV e V, quando a elite segue
o imperador, tornando-se donatista ou ariana quando o imperador o faz, ou ortodoxa quando o imperador é ortodoxo.
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prévia, as teses ideológicas básicas, ou a grelha de interpretação da vida e do mundo. Uma das
chaves permanentes de tudo isto foi o sagrado, a distinção entre o sagrado e o profano, o tipo de
relação com a divindade que assenta no reconhecimento do sagrado, etc...

É geralmente aceite que a expansão do cristianismo foi muito menos rápida e geral do que afirmam
os historiadores do século XIX. As zonas rurais permaneceram mais ou menos pagãs. Assim, desen-
volveu-se uma mistura de crenças cristãs e pagãs, correspondendo à fé popular. Não era possível
erradicar as crenças pagãs. A Igreja preferiu absorvê-las, batizando os deuses locais, enquadrando-
os na categoria global dos santos, como já vimos. Os pequenos deuses da árvore ou da fonte foram
integrados numa aplicação geral do mesmo método.

Naturalmente, há que distinguir entre a fé das pessoas humildes e as formulações teológicas dos
intelectuais. De facto, estas últimas não exprimem verdadeiramente a crença do povo. Para se ob-
ter uma imagem verdadeira do cristianismo, não devemos deter-nos na história dos dogmas. A pa-
ganização é menos importante do que a sacralização. Uma vez reconhecidas as pequenas divinda-
des locais, há necessariamente que admitir que certos lugares, os lugares dedicados às divindades
ou por elas, são especiais. A Igreja lutou, sem dúvida, contra o culto das árvores, das fontes, etc..,
mas foi forçada a reconhecer que certos lugares são diferentes ou separados dos outros, principal-
mente a própria igreja, o lugar da celebração cúltica. O edifício torna-se objeto de uma espécie de
consagração. Torna-se um lugar sagrado. Se nele se verificar algo de escandaloso, já não pode ser
utilizado para o serviço divino. Tem de ser reconsagrado.

Os primeiros cristãos não tinham nenhuma reverência especial pelos lugares onde os crentes se
reuniam e onde ouviam a Palavra de Deus e celebravam os sacramentos. Mas, quando esses lugares
se tornaram esplêndidos edifícios imperiais e a teologia dos sacramentos mudou (como veremos
mais adiante), esses lugares, agora radicalmente diferentes dos outros, foram investidos das cren-
ças próprias dos templos pagãos. Deus estava especialmente presente nesses lugares. O sentido do
sagrado reaparece assim. Além disso, a Igreja está agora dividida em duas partes, como os templos
pagãos. A parte mais profana é para os crentes comuns, a outra parte, onde tem lugar a cerimónia
religiosa, é para os sacerdotes. Isto é, mais uma vez, totalmente típico do reconhecimento de que
certos lugares são particularmente sagrados.

Para marcar o facto de a igreja ser um lugar sagrado, as pessoas tinham de fazer certos gestos ao
entrar, como cobrir-se, fazer genuflexão ou aspergir-se com água benta. Nestes gestos, vemos mais
uma vez a crença no sagrado. Para se aproximar de um lugar sagrado, é preciso observar uma série
de formalidades e precauções. Quando os crentes se aproximam do lugar sagrado, a água benta
protege-os contra a “contaminação” (ou, segundo outra opinião, contra a ira de Deus). Ao mesmo
tempo, certos lugares tornam-se sagrados no sentido mais estrito: os túmulos dos mártires, os lu-
gares onde ocorrem milagres, os lugares onde os mártires são mortos, etc... As pessoas fazem pe-
regrinações a esses lugares e até querem ser enterradas perto dos túmulos dos mártires. Estas prá-
ticas ocorreram muito cedo na Igreja.

Portanto, a dessacralização judaico-cristã é literalmente anulada. A Bíblia diz que a terra é do Se-
nhor, toda ela sem distinção, mas agora, ao contrário, Deus está mais próximo, mais presente, mais
apreensível, em certos lugares. Alguns lugares são sagrados, outros são profanos. Esta adoração
sacral de certos lugares perdurará ao longo da história da Igreja e abarcará os lugares onde se
45

registam visões beatíficas ou curas (Lourdes, etc...). Estamos aqui na presença do sagrado em sen-
tido puro. Com os lugares sagrados, reaparecem também os tempos sagrados.

Paulo diz expressamente que não devemos respeitar dias ou tempos específicos. As distinções e
ordenações humanas a este respeito não têm qualquer valor. Mas rapidamente alguns dias da se-
mana (a sexta-feira, como dia da crucificação, ou o domingo, como dia da ressurreição) passam a
ser considerados sagrados, e também se reservam períodos (Advento e Quaresma) em que as pes-
soas se podem voltar especialmente para Deus, preparando-se para a celebração do Natal e da Pás-
coa, preparando-se, por uma espécie de purificação, para o encontro com Deus. Trata-se de uma
atitude tipicamente sacral. Na Bíblia, a comunhão pascal é muito aberta. Não é um ato sacro. Por
isso, há que purificar através de uma abordagem sacral.

A Igreja foi também levada a utilizar os períodos sagrados no contexto político da Idade Média. Uti-
lizou-os para limitar as guerras feudais. Estabeleceu, e fez com que fosse geralmente aceite durante
um certo período, que não se devia fazer guerra em determinados dias da semana, em primeiro
lugar à sexta-feira e ao domingo. Esta é a Trégua de Deus. Todos os combates deviam cessar nesses
dias. Os dias foram depois alargados, pois dificilmente se poderia matar o próximo na véspera da
comunhão ou no dia seguinte. Mas, à medida que o período da Trégua se prolongava, foi deixando
de ser respeitado. O que importa aqui, no entanto, é sublinhar que certos dias são separados; têm
o carácter de tempos sagrados.

Tudo isto está obviamente ligado a uma mutação interior da fé - em particular, à nova interpretação
da comunhão, do sacramento. A ênfase no “sacrifício” de Jesus tendia a conduzir já nesta direção.
Este sacrifício, como já dissemos, punha fim a todos os outros e não podia ser reproduzido. Mas isso
não era para ter em conta a mentalidade sacral, a necessidade do sagrado entre as massas. A ne-
cessidade do sagrado exprime-se na necessidade do sacrifício para estabelecer a relação com a divin-
dade. A recordação de um sacrifício não é suficiente. A comunhão não pode ser uma simples come-
moração. A comunhão também não satisfaz a piedade popular quando é puramente espiritual. Tem
de ser concreta. O sagrado exige uma manifestação concreta. Assim, pouco a pouco, evolui a dou-
trina da transubstanciação, a piedade orientada para a presença real do próprio Cristo, a sua pre-
sença material no pão consagrado.

Aqui temos a transformação mais radical. O sacrifício de Cristo é efetivamente renovado pelo sa-
cerdote numa liturgia composta por ritos específicos. Naturalmente, a hóstia consagrada é total-
mente sagrada. (Isto é determinante para os lugares e costumes sagrados, como vimos acima). É o
próprio Cristo que está presente.29

Com esta restauração do sacrifício regular, um grande elemento do sagrado entra maciçamente no
cristianismo, com duas consequências importantes. A primeira tem a ver com o opus operatum. O
sacramento funciona de forma autónoma. Não depende nem do celebrante, nem do destinatário,
nem da ação de Deus. A comunhão tem lugar com a receção da hóstia. A hóstia funciona de forma
autónoma. O mesmo acontece com o batismo. A água do batismo é eficaz. Os batizados são lavados
do pecado original e as virtudes teologais são-lhes infundidas de uma vez por todas. Recebem o

29É importante sublinhar que, nos Evangelhos, Jesus nunca se apresenta como uma pessoa sagrada ou divina e rejeita toda
a adoração de si próprio, referindo-se sempre ao seu papel.
46

carácter indelével de pessoas que pertencem a Cristo. Trata-se de uma interpretação puramente
sacral. O objeto tem o poder. A hóstia produz a comunhão, a água batismal produz os efeitos. A fé
não é decisiva. O que conta não é a relação de fé do crente com Deus, mas o ritual da igreja e o
objeto que tem o poder sagrado da transformação.

O mesmo acontece com a água benta utilizada à entrada da igreja, ou com as palmas benzidas no
Domingo de Ramos, que supostamente garantem a felicidade ou protegem contra o mal as casas
em que são colocadas. Como sempre no mundo do sagrado, supõe-se que certos objetos tenham
em si mesmos uma tarefa sagrada especial. Na mesma linha, reaparece na Igreja a importância do
visível. É impossível atermo-nos à Palavra e a um Deus invisível e incognoscível. É preciso voltar a
ligar-se a uma realidade visível que torne presente o sagrado. A reintrodução do visível como sinal
da revelação (em oposição direta à própria revelação) é, em todos os sentidos, fundamental para a
restauração do sagrado na igreja.

Tudo se torna visível. A verdade de Deus integra-se nas coisas que pertencem à nossa realidade.
Encontramos os vitrais, os livros ilustrados dos iletrados que devem ensinar aos pagãos ignorantes
os rudimentos simplificados da história sagrada. Depois temos as estátuas. Este é um passo gigan-
tesco. Não as estátuas do próprio Deus, claro, mas de todo um mundo que tem a ver com Deus,
Jesus, a virgem e os santos. A piedade está orientada para o visível. Veneramos melhor quando ve-
mos (apesar de Jesus ter dito que são bem-aventurados os que não veem e, no entanto, acreditam).
Temos então as luzes, as vestes especiais e distintas dos sacerdotes, a elevação da hóstia, etc... O
visível que caracteriza o sagrado entra maciçamente na igreja e, assim, os crentes enveredam invo-
luntariamente pelo caminho do paganismo. O objeto visível é típico do mundo sacro e torna-se,
muito rapidamente, ele próprio sagrado.

Por fim, temos o ícone, no qual a fusão da revelação e da imagem está quase plenamente realizada,
de modo que o ícone é o objeto sagrado por excelência. A nova consciência da importância insubs-
tituível do visível (excluído pela religião da Palavra) é uma etapa decisiva na reinserção do sagrado
no pensamento, na fé, na vida e no ritual cristãos. A importância atribuída ao visível faz parte do
primado dos objetos sagrados. A força da ação não é a força invisível de Deus que só a fé pode apre-
ender. Pelo contrário, é a força dos objetos que podemos ver, manusear e utilizar, que devemos
respeitar. Devemos também dizer que no protestantismo, que foi uma tentativa de dessacralização
e que profanou muito do que o catolicismo romano considerava sagrado, podem ser vistos proces-
sos idênticos. A igreja tornou-se, de certo modo, um lugar sagrado30 e a Bíblia tornou-se material-
mente um livro sagrado. Recordo-me do tempo em que era escandaloso arrancar uma ou mais pá-
ginas de uma Bíblia. O sentido do sagrado investiu de novo, de forma invencível, aquilo o que estava
destinado a destruí-lo.

A segunda mudança introduzida pela nova visão do sacrifício (uma visão pagã e nada cristã) foi a
de atribuir um valor salvífico e propiciatório ao próprio sacrifício. Se queremos agradar a Deus, te-
mos de lhe oferecer alguma coisa. Reencontramos assim a ideia tradicional que está por detrás do
lançamento de um cordeiro ao mar pelo rei que é demasiado afortunado e que tem de sacrificar
alguma coisa para não perder tudo. Quando o sacrifício volta a ocupar o seu lugar, é preciso sacri-
ficar algo que se quer ou que se ama. Exige-se a renúncia total. Torna-se uma virtude fazer a

Os protestantes franceses conhecem a ofensa causada pela tendência, a partir de 1950, de tratar o local de culto como
30

uma sala vulgar onde se podem realizar refeições comuns, festas e reuniões. As pessoas queriam um lugar sagrado.
47

oferenda mais difícil e dolorosa. A aceitação do sofrimento faz parte do sacrifício, e o sofrimento é
exaltado. Todas estas tendências são conhecidas do cristianismo medieval, mas não têm nada a
ver com o pensamento bíblico.

Ao mesmo tempo e de forma correspondente, a reflexão sobre Deus, conduzida pelo pensamento
grego e romano, transformou radicalmente o que a Bíblia dizia sobre Deus. Por um lado, analisou
os atributos de Deus - um Deus, é claro, muito diferente dos deuses do politeísmo, mas ainda assim
um Deus construído pela filosofia. Assim, a ideia da criação sofreu uma mudança radical quando a
omnipotência passou para primeiro plano. A relação entre Deus e o mundo não tem agora nada a
ver com o que acreditavam as primeiras gerações cristãs. Deus estava ligado à sua criação e, em
última análise, o próprio mundo continha Deus. Nesta base, o sagrado podia ser encontrado em
todo o lado. Este caminho levou ao reaparecimento de pessoas tipicamente ligadas ao sagrado,
como os mediadores ou os sacerdotes.

Já dissemos que no Novo Testamento não havia sacerdotes. Havia diáconos (para prestar auxílio),
profetas (para pregar), mestres (para dar instrução) e bispos (para zelar pela boa ordem). Não havia
sacerdotes porque Jesus é o único mediador. Mas quando o sagrado reapareceu no cristianismo,
eram necessárias pessoas que o transportassem e representassem, e que servissem também de
mediadores. Não se podia pensar que os simples crentes pudessem aproximar-se deste Deus, o
Deus da nova teologia. Eram necessárias pessoas consagradas que se dedicassem ao trabalho de
mediação, que fossem elas próprias sagradas, que pudessem oferecer os santos sacrifícios que
agora se renovavam. Tais pessoas inseriam-se no quadro das múltiplas mediações características
do sagrado (e que se ligam ao que dissemos sobre a integração das divindades menores). Temos
em mente os santos. Os sacerdotes e os santos são portadores do sagrado. Servem de escudos in-
dispensáveis ao comum dos mortais que não podem aproximar-se dos mistérios, que se arriscam a
perigos terríveis se entrarem em relação direta com a divindade, se entrarem desprotegidos no
mundo do sagrado. O sagrado é benéfico, mas tem um poder tal que, se não estivermos preparados
para essa relação, torna-se maléfico.

O sacerdote tem funções sagradas que só ele pode desempenhar. Reencontramos o que era típico
do sacerdote pagão em matéria de papel e de mediação, em matéria de separação entre uma classe
de especialistas do sagrado que só ele pode tratar, e um laos que está confinado ao mundo do pro-
fano. Jesus tinha abolido radicalmente esta distinção. Com o aparecimento daqueles que represen-
tam o sagrado num sentido positivo, encontramos naturalmente o aparecimento daqueles que o
representam num sentido negativo, como os feiticeiros ou as bruxas. Também aqui a mutação
chama a atenção.

Biblicamente, os feiticeiros estão possuídos por um espírito que a fé deve expulsar. Na igreja primi-
tiva, encontramos uma opinião notável que persistirá durante muito tempo e que é muito moderna,
a saber, que a feitiçaria não existe de facto. Não devemos acreditar nela. É pura imaginação. Temos
de extirpar da mente dos crentes qualquer aceitação do poder dos feiticeiros. Temos de os conven-
cer de que os feiticeiros jogam com a credulidade. Esta ideia volta a aparecer no século XIX. Mas o
que acaba por triunfar é a crença no diabo, em poderes sobrenaturais maléficos que atuam na terra
como a contrapartida exata do padre (a missa negra é uma inversão da missa). Tudo isto é lógico,
pois uma vez que aparecem especialistas que representam o sagrado num sentido positivo, tem de
haver os seus contrários que o representam num sentido destrutivo. Assim, o mundo tradicional do
48

sagrado é quase completamente reconstruído. A partir daqui, pode dizer-se que o cristianismo é
uma das muitas expressões do sagrado e do religioso.

A palavra ‘sagrado’, que quase nunca é usada no Novo Testamento, também volta a ser usada atu-
almente. Lemos sobre cânticos sagrados, música sagrada, arte sagrada, livros sagrados e vasos sa-
grados, e ensina-se uma história sagrada que difere e se distingue da história comum do mundo.
Essa mudança de vocabulário tipifica a mudança de mentalidade, de conceções religiosas. Marca o
reaparecimento do sagrado, que o pensamento judaico e cristão tinha originalmente combatido
com força viva. Este monumental retrocesso histórico parece-me ser uma das provas mais flagran-
tes de que o sagrado é parte integrante da existência humana, de que a força ativa (não digo obje-
tiva) que nos leva constantemente a reconstituir o universo sagrado é permanente. Aparentemente,
não podemos viver no mundo se ele não estiver assim constituído. Só o sagrado (e não a aventura
proposta pelo cristianismo) nos tranquiliza e dá estabilidade ao universo num sentido sólido e obje-
tivo à vida.
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Capítulo 4

MORALISMO

Na mente da maioria dos nossos contemporâneos, o cristianismo significa sobretudo moralidade.


O aspeto espiritual é esquecido, exceto por alguns, e o outro aspeto que merece atenção tem a ver
com as festas cristãs. É típico que o questionamento da verdade cristã surja sobretudo ao nível da
conduta dos cristãos, e o julgamento que é feito é de carácter moral. Filmes anti-cristãos como la
Religieuse (baseado em Diderot), les Sorcières de Salem, ou Mérette (Téléfilm 1982), fazem o seu ata-
que neste plano. Os argumentos mais comuns são que os cristãos não se comportam de forma di-
ferente dos outros, que as investigações sociológicas não revelam qualquer distinção na conduta
sexual ou na vida familiar, que a moral que é rejeitada atualmente é, de facto, a moral cristã, etc...

Temos de reconhecer que os próprios cristãos têm feito tudo o que podem para criar esta confusão.
A revelação de Deus não tem nada a ver com a moralidade. Nada. Absolutamente nada. Este não é o
lugar para provar esta tese, o que já fiz noutro lugar.31 Limitar-me-ei a recordar três proposições
essenciais que peço aos leitores que aceitem como tal, remetendo-os para os meus outros livros se
quiserem material de apoio.

Em primeiro lugar, na Bíblia hebraica, a Torá não é um livro de moral, quer seja construída por um
moralista ou vivida por um grupo. A Torá, como Palavra de Deus, é a revelação de Deus sobre si
mesmo. Ela estabelece o que separa a vida da morte e simboliza a soberania total de Deus. Do
mesmo modo, o que Jesus diz nos Evangelhos não é moral. Tem um carácter existencial e assenta
numa mudança radical do ser. Mais uma vez, o que Paulo diz nas exortações das suas cartas não é
moralismo, mas consiste em orientações práticas através do exemplo. Segundo, não existe um sis-
tema moral na revelação de Deus em Jesus Cristo. Não há preceitos morais que possam existir in-
dependentemente de alguma forma, que possam ter validade universal e que possam servir para a
elaboração de um sistema moral. Terceiro, a revelação de Deus em Jesus Cristo é contra a morali-
dade. Não só é honestamente impossível derivar um sistema moral dos Evangelhos e das Epístolas,
como também as principais chaves do Evangelho - a proclamação da graça, a declaração do perdão
e a abertura da vida à liberdade - são o oposto direto da moralidade. Porque implicam que toda a
conduta, incluindo a do piedoso, ou a do mais moral, esteja totalmente envolta em pecado.

Como nos mostra Génesis, a origem do pecado no mundo não é o conhecimento, como muitas ve-
zes se diz (como se Deus interditasse o nosso desenvolvimento intelectual, o que seria absurdo); é
o conhecimento do bem e do mal. Neste contexto, conhecimento significa decisão. O que não é
aceitável para Deus é que decidamos por nós próprios o que é bom e o que é mau. Biblicamente, o
bem é, de facto, a vontade de Deus. Isso é tudo. O que Deus decide, seja o que for, é o bem. Se,
então, decidirmos o que é o bem, estamos a substituir a vontade de Deus pela nossa. Construímos
uma moral quando dizemos (e fazemos) o que é bom, e é então que somos radicalmente pecadores.

31 Cf. J. Ellul, Le Vouloir et el Faire (Genebra: Labor et Fides, 1977); ET To Wil and to Do (Filadélfia: Pilgrim Press, 1969).
50

Elaborar um sistema moral é mostrar-se pecador perante Deus, não porque a conduta seja má, mas
porque, mesmo que seja boa, substitui a vontade de Deus por um outro bem.

É por isso que Jesus ataca tão severamente os fariseus, apesar de serem as pessoas mais morais,
de viverem as melhores vidas, de serem perfeitamente obedientes e virtuosos. Substituíram pro-
gressivamente a Palavra viva de Deus, ainda hoje atual, que nunca pode ser fixada em mandamen-
tos pela sua própria moral. Nos Evangelhos, Jesus quebra constantemente os preceitos religiosos
e as regras morais. Ele dá como seu próprio mandamento “Segue-me”, e não uma lista de coisas a
fazer ou a não fazer. Ele mostra-nos plenamente o que significa ser uma pessoa livre, sem morali-
dade, mas simplesmente obedecendo à sempre nova Palavra de Deus, à medida que ela se vai ma-
nifestando. Do mesmo modo, Paulo ataca o que pode parecer a moral do judaísmo, as regras e os
preceitos estabelecidos pelos homens e que, de todo, não vêm de Deus. A grande mutação é o facto
de termos sido libertados em Jesus Cristo. A principal caraterística das pessoas livres é o facto de
não estarem presas a mandamentos morais. “Todas as coisas são lícitas”, proclama Paulo duas ve-
zes. “Nada é impuro”, ensina ele. Encontramos a mesma mensagem nos Atos. Somos tão livres
quanto o Espírito Santo, que vai e vem como quer. Esta liberdade não significa não fazer alguma
coisa. É a liberdade do amor. O amor, que não pode ser regulado, classificado ou analisado em prin-
cípios ou mandamentos, toma o lugar da lei. A relação com os outros não é uma relação de dever,
mas de amor.

Quando digo que a revelação de Deus em Jesus Cristo é contra a moralidade, não estou a tentar
dizer que ela substitui uma forma de moralidade por outra. (Quantas vezes, infelizmente, lemos que
a moral cristã é superior a todas as outras. Isso nem sequer é verdade. Encontramos pessoas ho-
nestas e virtuosas, bons maridos, pais e filhos, pessoas escrupulosas e verdadeiras fora do cristia-
nismo, e talvez mais do que os cristãos). A revelação é um ataque a toda a moralidade, como o
demonstram maravilhosamente as parábolas do Reino dos Céus, a do filho pródigo, a dos talentos,
a dos trabalhadores da undécima hora, a do administrador infiel e muitas outras. Em todas as pa-
rábolas, a pessoa que serve de exemplo não viveu uma vida moral. A pessoa que é rejeitada é aquela
que viveu uma vida moral. Naturalmente, isto não significa que sejamos aconselhados a tornarmo-
nos ladrões, assassinos, adúlteros, etc... Pelo contrário, o comportamento a que somos chamados
ultrapassa a moral, toda a moral, que se mostra como um obstáculo ao encontro com Deus.

O amor não obedece a nenhuma moralidade e não dá origem a nenhuma moralidade. Nenhuma
das grandes categorias da verdade revelada é relativa à moral ou lhe pode dar origem; a liberdade,
a verdade, a luz, o Verbo, a santidade não pertencem de modo algum à ordem da moral. O que elas
evocam é um modo de ser, um modelo de vida que é muito livre, que comporta riscos constantes,
que se renova constantemente. A vida cristã é contrária à moral porque não é repetitiva. Não há
nenhum dever fixo a cumprir, seja qual for o rumo que a vida tome. A moral interdita sempre este
modo de ser. É um obstáculo e condena-o implicitamente, tal como Jesus é inevitavelmente con-
denado por pessoas morais.

Um dos dramas fundamentais da história do cristianismo foi, portanto, a transformação desta Pa-
lavra livre em moral. Este foi o revés mais decisivo para a mutação cristã. Também aqui é muito
difícil perceber porque é que isso aconteceu. Obviamente, as coisas para as quais já chamámos à
atenção (especialmente as conversões em massa) fornecem uma primeira explicação. As massas
cristãs tiveram naturalmente dificuldade em viver nesta liberdade de espírito e de amor. Logo foi
51

preciso impor normas. Os deveres tinham de ser indicados. Cada vez que se regressava a uma co-
munidade que rejeitava a moral para viver, como se dizia, segundo o Espírito, o resultado concreto
era a desordem e a rápida deterioração humana e espiritual (por exemplo, a comunidade de João
de Leiden).

Parece, então, que temos uma escolha entre três orientações. Em primeiro lugar, podemos viver
verdadeiramente pelo Espírito numa comunidade como a descrita nos Atos; mas, se o fizermos, terá
de haver um pequeno número de crentes verdadeiramente convertidos, plenamente adultos, tanto
na sua humanidade como na sua fé, e que possam suportar o risco da liberdade. Será imposto um
limite numérico. Isto corresponde à atitude de Jesus para com os seus discípulos (no máximo se-
tenta) e à sua afirmação de que eles serão sempre um pequeno rebanho. Trata-se de uma verda-
deira compreensão e vivência de uma revelação que não tem nada a ver com a moral e que, para
as pessoas morais, parece contrariar a moral e desafiá-la.

A segunda opção é converter as massas ao cristianismo, trazê-las para a igreja, mas sem qualquer
esperança de que esses milhares de pessoas possam viver como se estivessem no Reino de Deus. O
pressuposto é, então, que terão de ser treinadas e o seu modo de vida controlado. O cristianismo
transforma-se assim em moral, exatamente o contrário do que pretendia Jesus e a revelação em
Israel. E, em cada momento, essa moral corresponde mais ou menos à sociedade da época, e não
ao que se poderia tirar, por exemplo, dos textos de Paulo. Uma vez que muitas das indicações dadas
pelo próprio Jesus (por exemplo, as do Sermão do Monte) entram em conflito com esta moral, faz-
se uma distinção escandalosa entre “conselhos” (por exemplo, a ordem de ir vender todos os bens)
válidos apenas para os perfeitos, os santos, os cristãos avançados ou o clero, e preceitos que são
deveres morais obrigatórios para todos (e que se resumem no decálogo). Esta é a segunda possibi-
lidade.

Quanto à terceira opção, trata-se de uma tentativa de viver sem moral, mas em grande número e,
portanto, como um corpo social mais ou menos institucional e organizado. As seitas adotam esta
via. Mas muito rapidamente a situação se deteriora, e ou se estabelecem relações de poder e de
autoridade ou há uma degeneração moral completa. Estas são as três possibilidades que se abrem.

A partir do fim do século II, a Igreja inclinou-se para a segunda opção. Por isso, não pôde evitar a
multiplicação de regras morais em antítese ao Evangelho. Assim, o comportamento conforme um
determinado código moral tornou-se o critério da vida cristã; a piedade e a oração, etc.., transfor-
maram-se em regras morais; o cristianismo assumiu a aparência de um sistema moral para os que
lhe eram exteriores; e a teologia sofreu uma profunda modificação com a atribuição de uma nova
importância às obras. Como toda a gente sabe, a Reforma Luterana veio romper com isso. Mas o
declive é tão acentuado que, logo após a primeira geração de reformadores ter redescoberto a li-
berdade cristã, houve um retorno à rigidez moral, especialmente com Calvino, e a moralidade vol-
tou a dominar a “vida em Cristo”. Temos de ser claros quanto ao facto de que uma coisa exclui
inevitavelmente a outra. Se “vivermos em Cristo”, como diz Paulo, não há moralidade. Se observar-
mos a moralidade, nenhuma vida em Cristo é possível.

No entanto, a orientação adotada pela Igreja não foi apenas o resultado dos números, da igreja das
massas. Um fator igualmente decisivo foi a prodigiosa imoralidade das várias sociedades em que a
igreja se encontrava. Como essa imoralidade era particularmente flagrante na esfera sexual, a
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reação moralizadora veio principalmente nessa área. As mulheres, como já dissemos, foram as prin-
cipais vítimas da reação. O anti-feminismo é um dos pontos importantes em que se manifesta a
traição do cristianismo à revelação de Deus. Vamos agora examinar isso mais detalhadamente e,
no final, voltaremos às causas da reação moralizadora da igreja.

Hoje tornou-se vulgar afirmar que o cristianismo foi anti-feminista, que manteve as mulheres na
opressão, que as tratou como menores, etc... Muitos apelam a certos textos do Antigo Testamento
e de Paulo. Alguns escritores tentaram apresentar Paulo como o fundador do anti-feminismo (por
vezes procurando razões psicológicas, como o inqualificável Gilabert no seu livro Colosse aux pieds
d'argile,32 que é uma teia de erros e afirmações gratuitas). Finalmente, encontramos aqueles que
tentaram justificar a Bíblia e os cristãos, argumentando que eles estavam simplesmente a seguir os
costumes patriarcais da época. Esta desculpa é, de facto, uma terrível condenação, simplesmente
porque atesta a falta de liberdade cristã em relação aos costumes e ideologias da época. A nossa
análise deve ser mais aguda e exata do que isso.

Em primeiro lugar, é verdade que houve períodos em que uma forma patriarcal de sociedade foi
dominante (por exemplo, no judaísmo nos séculos III e II a.C. e em Roma no mesmo período), mas
é absurdo descrever todas as sociedades tradicionais como patriarcais. Como sempre, houve vari-
ações. Pode demonstrar-se que a sociedade romana do século I d.C. já não era estritamente patri-
arcal. As mulheres tinham direitos iguais aos dos homens (exceto para votar nas eleições). Da
mesma forma, no império selêucida do século I a.C. (e mais tarde), as mulheres eram totalmente
livres. Foi demonstrado (por exemplo, por Volterra) que elas trabalhavam em todas as profissões
superiores, como banqueiras, armadoras, empresárias e empreendedoras de todos os tipos, e que
lidavam livremente com grandes somas de dinheiro. Nas tribos germânicas que invadiram a Eu-
ropa, as mulheres tinham novamente um estatuto bastante privilegiado; participavam mesmo nas
batalhas (Tácito) e tinham direitos iguais aos dos homens.

É verdade que, com o colapso do império, o estatuto das mulheres sofreu um súbito declínio. Pro-
vavelmente, o carácter muito perigoso da época e a ameaça militar constante deram aos homens
uma preeminência absoluta e favoreceram o regresso à organização patriarcal. A partir do século
XII, surgiram novos movimentos no sentido da igualdade jurídica e económica entre homens e mu-
lheres. Naturalmente, não posso entrar aqui em pormenores. Até ao século XVIII, a sociedade não é
patriarcal, mas a situação varia consoante o tempo e o lugar. Não se pode generalizar. Nos finais do
século XVIII e no século XIX, assiste-se a uma regressão espantosa do estatuto das mulheres em to-
dos os domínios. O erro comum dos não historiadores é pensar que, pelo facto de esta ser a situação
no século XIX, deve ter sido pior no século XVI, e pior ainda no século XIII, etc... Têm uma crença
ingénua no progresso constante. Em geral, porém, a tese de uma sociedade patriarcal não é válida.

O problema mantém-se, e é o seguinte. Os próprios textos bíblicos são muito favoráveis às mulheres
ou, pelo menos, neutros, consoante as circunstâncias locais. No entanto, no judaísmo posterior, em
certas correntes do cristianismo e em certas orientações que a Igreja deu à sociedade, esses textos
foram usados de tal forma que se tornaram completamente hostis às mulheres. Isto coloca uma
séria dificuldade. Em todo o caso, não devemos generalizar e dizer que esta é a orientação de X.
Pelo contrário, é um desvio dela. Na Bíblia hebraica, as mulheres ocupam um lugar importante,

32 Gilabert, Saint Paul, el colosse aux pieds d'argile (Montélimar: Méta- noïa, 1974).
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como testemunham o papel político de Ester, Judite e Raabe, o papel profético de muitas profe-
tisas, o papel de Rebeca e o papel das “juízas” em Israel. Textos fundamentais como o Cântico dos
Cânticos e Provérbios 31 podem também ser citados como mostrando a “própria essência do sim-
bolismo feminino”.

Mais teologicamente, se voltarmos ao texto de Génesis, ficamos espantados com os habituais mal-
entendidos: Eva é inferior, diz-se, porque foi criada depois de Adão. Esta lógica soberba torna Adão
inferior aos grandes Saurianos, depois dos quais foi criado. A criação é, de facto, um ato ascendente,
e Eva, que é criada em último lugar, surge no clímax como a sua coroa e conclusão. Mais uma vez,
diz-se que Eva é inferior porque não foi feita do barro primordial, mas de uma parte de Adão. Esse
raciocínio é igualmente absurdo, pois Adão, que leva o nome Terra, é feito de matéria inanimada,
mas Eva, que leva o nome de Vida, é feita de matéria animada e, portanto, superior.

Resta, evidentemente, um argumento que é repetido vezes sem conta no judaísmo posterior e em
alguns ramos do cristianismo. Diz-se que Eva foi a primeira a pecar. Ela deu ao pecado uma entrada
no mundo. Por isso, é culpada e tem de estar sujeita ao marido. Mais uma vez, esse é um raciocínio
absurdo, pois é difícil ver como Adão pode ter qualquer pretensão de superioridade quando, nesse
teste, ele se mostra incapaz de governar a sua esposa, cai nas armadilhas mais simples e não é de
forma alguma digno de ser o chefe. Mas não foi a mulher a primeira a ser tentada? De facto, foi. E
isso leva à invocação de argumentos absurdos, segundo os quais ela é menos inteligente, mais fácil
de seduzir, mais fraca, etc...

Há, de facto, uma melhor razão teológica para ela ser tentada primeiro. Se ela é a realização su-
prema e a perfeição da criação, é através dela que a serpente deve atacar o resto. Ela não resiste.
Mas o homem também não. Podemos simplesmente recordar o famoso provérbio chinês que diz
que é pela cabeça que o peixe apodrece. Devemos considerar este facto para compreender o sen-
tido da história. Mas não era ela também uma tentadora? De facto, era. Mas para compreender e
avaliar o que isso significa, devemos referir-nos a dois outros elementos. No primeiro relato da cri-
ação, não há distinção ou hierarquia entre os ‘dois que são um’ ou ‘um que são dois’. Não temos de
um lado a mulher tentadora que é a fonte do mal, etc... Não, temos um único ser, e se o mal é feito,
é feito por esse único ser, independentemente do elemento em que começa. A mulher não é sem o
homem, nem o homem sem a mulher, como nos recorda Paulo.

A segunda verdade básica é que a mulher, como o mesmo Paulo também nos lembra, é a glória do
homem.33 (1Co 11.7). Esta passagem tem sido muitas vezes mal interpretada como ensinando uma
hierarquia de Deus para o homem e do homem para a mulher. Mas não é esse o seu objetivo. A
questão é a da relação entre os poderes e da mediação. O texto em que me quero concentrar aqui
é o da glória. Seguindo Barth (e outros), tenho recordado muitas vezes que a glória é revelação.
Deus glorifica-se a si próprio quando se revela tal como é. Jesus Cristo glorifica Deus quando o re-
vela a nós como o Deus de amor que é também o Pai. Nós próprios somos chamados a ser a glória
de Deus, pois somos a sua imagem, pois mostramos, pelo que somos, quem é o Deus de quem

33Muitas versões modernas, evidentemente, não utilizam a palavra glória. Mostram sempre uma preocupação em atenuar
e enfraquecer o texto bíblico, tornando-o mais banal. Assim, não traduzem aqui doxa por glória, mas por reflexo, o que, no
fundo, é o oposto teológico da conceção hebraica de glória.
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damos testemunho. Nesta passagem, Paulo acrescenta que a mulher é a glória do homem: ela re-
vela-o, mostra o que é verdadeiramente o ser humano.

Se relacionarmos este facto com a tentação, verificamos que, com as suas palavras, a mulher põe
em evidência a realidade fundamental de Adão. Ela mostra-o como fraco, sem discernimento, flu-
tuante, ambicioso, desejoso de igualdade com Deus, etc... Ela revela-o simplesmente. Ambos são
igualmente culpados, e a condenação (como os comentadores e os teólogos devem recordar) é
mais severa para o homem, uma vez que não lhe é dada qualquer esperança, ao passo que a mulher
tem uma dupla promessa e é portadora de uma dupla esperança, a saber, que transmitirá a vida e
que a sua posteridade esmagará a serpente. Note-se também que, embora o estatuto da mulher
seja, em geral, positivo no Antigo Testamento, alguns textos, sobre os quais não precisamos de nos
deter, levantam suspeitas, como os que se referem às impurezas. Mas não devemos esquecer as
numerosas passagens que tratam também das impurezas masculinas.

Tem-se insistido frequentemente na atitude positiva de Jesus para com as mulheres. Jesus recebe
homens e mulheres em pé de igualdade. Cura as mulheres doentes tanto como os homens e não
repele a mulher adúltera nem Maria Madalena.34 Naturalmente, nota-se que ele escolhe apenas ho-
mens para seus discípulos. Mas, a isto, pode responder-se radicalmente que ele revela primeiro a
sua ressurreição às mulheres. Tanto nos sinoptistas como em João, as mulheres são as primeiras a
receber esta revelação suprema. As mulheres tornam-se as “evangelistas” desta ressurreição, le-
vando a sua notícia aos discípulos. As mulheres recebem o primeiro testemunho da vida eterna. Isto
é teologicamente coerente, pois é o cumprimento do nome Eva e da promessa sobre a serpente.
Em comparação com isto, tudo o resto é secundário.

É importante que Jesus tenha afirmado o matrimónio monogâmico e a sua indissolubilidade. Mas
isso não tem nada a ver com a inversão completa do juízo da sua época sobre a transmissão da
verdade pelas mulheres.35 A este respeito, não devemos esquecer o papel decisivo das mulheres na
Igreja primitiva. As mulheres são os seus fundadores e pilares. Atuam como missionárias, como
Paulo frequentemente mostra, e são responsáveis pelas igrejas (Rm 16; Cl 4; Fil. 4). A nível externo,
temos um testemunho curioso na famosa carta de Plínio a Trajano, na qual ele escreve sobre as
ministras. Devemos também lembrar que as mulheres têm dons espirituais, como o diaconato, a
profecia e o falar em línguas (At 2; 12; 21). Podemos assim dizer que há uma clara adesão à palavra
e à igualdade com os homens. Também Paulo reconhece que as mulheres têm o dom da oração
pública e da profecia (1Co 11.5). Finalmente, ele afirma a igualdade total quando diz que em Cristo
não há grego nem judeu, homem nem mulher, escravo nem livre.

Mas não tardou a surgir a opinião de que Paulo é um terrível misógino e que deveríamos concentrar-
nos apenas nos outros textos em que ele fala da obediência das mulheres aos maridos, da sua infe-
rioridade e da necessidade de reservas em relação a elas em determinados assuntos da Igreja. Vol-
taremos a este assunto, mas antes quero fazer uma observação que, estou certo, chocará os leitores

34Tanto em pormenor como em geral, cf. a este respeito J.-M. Aubert, Antiféminisme et Christianisme, coll. La Femme (Paris:
Editionsdu Cerf, 1975).

35É por isso que não concordo com Aubert quando ele pergunta porque é que Jesus não foi mais longe na resolução do
problema das mulheres, quando argumenta que Jesus não inverteu a situação social e quando avança com razões e expli-
cações sociopolíticas. Tudo isso é inadequado quando pensamos na revelação da ressurreição, e o autor está enganado
quando escreve que o evangelho traz apenas o germe. Não, de facto, o evangelho disse e fez tudo.
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modernos, a saber, que para as pessoas daquela época o problema social, o lugar que cada um
ocupava na sociedade, não era tão essencial ou dramático como é hoje. Mais uma vez, não devemos
projetar as nossas próprias ideias, imagens e problemas no passado. Hoje, uma situação de inferi-
oridade é intolerável. A desigualdade social é escandalosa. Parece-nos que Paulo está a dizer coisas
injustas e inaceitáveis quando não condena radicalmente a escravatura (Filémon) como escândalo
social global, ou quando admite a superioridade dos homens no casamento (e não o aborda como
questão social). Estas coisas são injustas apenas de acordo com a nossa visão da justiça e inaceitá-
veis apenas para a nossa mente. Naquela época, não eram questões importantes, não apenas para
a “classe dominante”, mas para toda a gente. A hierarquia e a desigualdade eram “normais”. Temos
também de considerar que as nossas ideias sobre a igualdade e a ausência de hierarquia não são
eternamente verdadeiras, corretas e boas; muito pelo contrário.

O que Paulo faz, em total sintonia com o ensinamento de Jesus, é reconduzir a questão à sua raiz
espiritual. O erro é (e tem sido) fazer leis morais a partir das passagens em que, por exemplo, Paulo
fala da subordinação da mulher ao marido, transformando-as daquilo que são (uma afirmação da
vida real) na formulação de uma norma ou de um dever. Cortar o cabelo é um sinal de prostituição
e, por isso, Paulo diz às mulheres cristãs para não o fazerem, uma vez que não são prostitutas. Mas
não devemos fazer disto um imperativo. A questão da subordinação é mais importante. Quando
Paulo fala de hierarquia, é no contexto do que o próprio Jesus disse e mostrou, ou seja, que o maior
deve ser o servo do menor, que o superior hierárquico deve servir o inferior hierárquico, que o mais
forte não deve exercer o poder e a autoridade, mas colocá-los, e colocar-se, à disposição do mais
fraco.

Jesus disse expressamente aos seus discípulos que não se comportassem como os grandes e os
chefes que os governavam. Deu o exemplo lavando-lhes os pés. Assim, a hierarquia social que (ine-
vitavelmente) existe é espiritualmente invertida. É por isso que, na conhecida comparação de Paulo
em Efésios que suscita tantas críticas (em que a mulher é comparada à igreja ou ao corpo, e o ho-
mem, seu marido, é a cabeça e é comparado a Cristo), o texto que se segue é regularmente esque-
cido: Cristo amou tanto a igreja que se entregou por ela (referência ao crucifixo); ele alimenta a
igreja e cuida dela. Assim, o marido não é um machão, não é um macho glorioso e autoritário. Ele é
chamado a carregar a cruz (i.e., a condenação) pela esposa. Ele tem de estar pronto a dar a vida por
ela para que ela viva melhor. Paulo diz também que é o homem que deixará o pai e a mãe para se
juntar à sua mulher. O homem deve fazer o sacrifício e desenraizar-se. Não se trata de integrar a
mulher na família patriarcal.

Podemos assim distinguir as relações da seguinte forma. O marido ama absolutamente a sua mu-
lher, a mulher respeita o seu marido (possivelmente com uma referência ao desrespeito que Mical
mostrou a David quando dançou diante da arca). Por outras palavras, não compreendemos total-
mente a teologia de Paulo quando retemos apenas metade do seu ensinamento e transformamos
essa metade, na qual ele afirma um facto, num dever moral e num tipo de organização jurídica e
social.

É verdade, no entanto, que este mal-entendido se ocasionou, e fê-lo sobretudo na Igreja e entre os
cristãos. Antes de perguntar por que razão se pode cometer um tal erro, convém dizer algo sobre a
sua evolução. O desvio deu-se rapidamente, mas não completamente. Devemos referir-nos à afir-
mação de Agostinho sobre a natureza humana tal como foi feita à imagem de Deus; esta natureza
56

está em ambos os sexos, de modo que não podemos ignorar a mulher quando se trata de compre-
ender o que é a imagem de Deus (Sobre a Trindade, Livro XII). Agostinho ensina também a plena
igualdade do homem e da mulher na sua vida sexual. Cada um tem direito ao corpo do cônjuge.
Outros textos de Agostinho são ambíguos, mas não devem ser mal interpretados, como quando diz
que no homem (vir) há um perfeito acordo entre corpo e alma, uma unidade dos dois em que o
corpo reflete a alma, mas na mulher há dualidade, pois a alma é espiritual e o corpo é inferior e
incompleto (oh, Freud!), não podendo fazer justiça à alma.

A partir desta passagem, argumentou-se que Agostinho pensa que a mulher é inferior. Mas devemos
perguntar-nos o que é de facto mais importante para Agostinho. É a alma espiritual, que coloca o
ser humano em relação com Deus, a verdadeira imagem de Deus, ou é o corpo, que lhe permite
participar no mundo? É verdade que, no mundo conturbado e atormentado em que Agostinho vivia,
o corpo feminino estava menos adaptado e era menos eficaz. Mas não será a alma espiritual o es-
sencial? Penso que é um erro inferir destes textos, como faz J.-M. Aubert, que para Agostinho o ho-
mem é a imagem plena de Deus em todo o seu ser, corpo e alma, enquanto a mulher é a imagem de
Deus apenas na sua alma. Quereremos dizer que Agostinho pensava em Deus como corpóreo? Isso
é totalmente improvável. O que é certo é que Agostinho considera que a mulher deve estar subor-
dinada ao homem em matéria corporal.

Recorri a este exemplo de Agostinho para mostrar que não tem havido total concordância na orien-
tação e opinião dos grandes teólogos. Em poucos pontos houve tantas divergências como na ques-
tão colocada acerca da mulher. Ora, se tomarmos os textos dos muitos padres hostis à mulher, po-
demos afirmar com bastante facilidade que eles são geralmente construídos em duas etapas. Pri-
meiro, o anátema moral. Trata-se da imoralidade da mulher, do seu papel de provocadora do pe-
cado sexual ou de ocasião do mesmo. Depois vem uma argumentação mais ou menos bíblica e te-
ológica, destinada a justificar e legitimar um juízo que não está de acordo com a linha geral da re-
velação do Antigo Testamento, nem com a atitude de Jesus Cristo, nem com o ensinamento de
Paulo. O que ditou a adoção desta posição pelos pais da igreja, pelos teólogos e pelas autoridades
eclesiásticas, o que provocou o anti-feminismo cristão (que não é tão grave como se diz), é essen-
cialmente o facto da passagem da revelação de Deus à ordem eclesiástica ou social, ou do campo
espiritual ao moral. Esta é a chave.

Mas não devemos cometer esse erro. Não estou a dizer que as mulheres são mais imorais do que os
homens, embora alguns teólogos tenham adotado essa posição. O verdadeiro problema tem sido
a imoralidade da sociedade. Comecemos pelo texto de Paulo sobre o qual correu tanta tinta, que
teve consequências desastrosas, e que todos os anti-feministas cristãos utilizaram na sua autorrei-
vindicação. Refiro-me à conhecida passagem de 1 Coríntios (14.34-35) em que Paulo proíbe as mu-
lheres de falarem nas igrejas. Elas devem ficar submissamente silenciosas. Não devem ensinar (1Ti
2.11), e quando falarem, devem fazê-lo com a cabeça coberta (1Co 11.5).

Duas explicações foram avançadas para o texto. A primeira excluiria as mulheres de toda a partici-
pação ativa no culto, da exposição da Bíblia, etc... Esta é a posição anti-feminista pura e simples.
Algumas pessoas tentam desculpar Paulo por adotar esta posição dizendo que ele era judeu, que
foi necessariamente influenciado pelo violento anti-feminismo do mundo judaico que o rodeava.
Por outras palavras, quando Paulo escreve coisas que são mais ou menos críticas em relação às
mulheres, não está realmente a exprimir a revelação de Deus, mas a opinião comum do seu
57

ambiente. A tendência mais comum, porém, é considerar versículos deste género como uma inter-
pretação que não vem de Paulo, essencialmente porque esta proibição estrita contradiz quase todo
o seu próprio ensinamento. Assim, no capítulo 11 da mesma epístola, Paulo diz que quando uma
mulher reza ou profetiza (na igreja), deve fazê-lo com a cabeça coberta. Dificilmente ele se terá con-
tradito em passagens tão próximas. Por isso, estes textos não representam o seu próprio ponto de
vista.

Não creio que estas explicações (sendo a segunda uma derrota pouco honrosa) sejam corretas. Te-
mos de considerar o contexto em que a ordem é dada. Paulo está a falar do dom das línguas. Explica
que teme que seja uma fonte de desordem e que as pessoas não compreendam o que é dito. Prefere
a profecia, que é clara e compreensível. Pede que, quando a igreja se reúne, tudo seja ordenado e
que os profetas falem à vez. Deus não é um Deus de desordem. O que está em causa é a ordem
cúltica. Agora temos de nos lembrar da importância das mulheres nos muitos cultos gregos e do
Oriente Próximo, nas celebrações dos mistérios, na possessão pelo espírito divino, nos transes, nas
explosões, nas proclamações extáticas, etc... A maior parte destes cultos eram orgiásticos. Estamos,
portanto, a falar de orgias. Dezenas de testemunhos provam que era quase sempre essa a forma de
expressão das mulheres.

O que Paulo está a dizer, então, é que nas reuniões dos santos as coisas não devem ser como nesses
cultos orgiásticos. Tudo deve ser feito em ordem. Os que falam não devem gritar juntos, e as mu-
lheres, tradicionalmente mais “inspiradas”, devem, pelo contrário, calar-se, não devem falar em
línguas (é o que está em causa no texto), e se profetizarem (o que não é contraditório), devem fazê-
lo com a cabeça coberta, para mostrar que estão sujeitas a uma autoridade que controla o que
dizem. Isto corresponde exatamente à mesma recomendação para os homens (14.31-32), a saber,
que “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas”, ou seja, que eles devem estar sujeitos a
uma ordem, que devem falar por sua vez, que devem controlar-se, não se excitando ou sendo to-
mados por tremores irreprimíveis, etc... Por outras palavras, Paulo não está aqui a refletir o espírito
da época, o anti-feminismo da sociedade, etc..; ele recomenda que, nas suas práticas cúlticas, os
crentes não imitem o que fazem os cultos pagãos e que as mulheres não tenham o mesmo papel
que nesses cultos. Ao fazê-lo está, evidentemente, a moralizar.

Ao relacionar-se com a corrente social, Paulo é influenciado pelo meio cultural apenas num ponto,
nomeadamente quando diz que as mulheres devem cobrir a cabeça por causa dos anjos. É talvez
uma alusão à história do Génesis que conta como os filhos de Deus foram seduzidos por mulheres
humanas. Mas, mais uma vez, penso que ele tem em mente a inspiração súbita dos espíritos de que
suspeita. O véu não é uma proteção mágica em si, mas uma barreira psicológica destinada a lem-
brar às mulheres que, na inspiração, devem estar sujeitas a uma autoridade, não necessariamente
a dos homens, mas, por um lado, a de Jesus Cristo, que está acima dos anjos, e, por outro, a ordem
da Igreja. O que está em causa aqui, portanto, é a crença na inspiração direta dos espíritos.

Retomemos agora a nossa tentativa de exposição. Devemos começar por afirmar que a atitude dos
judeus em relação às mulheres se torna cada vez mais rigorosa a partir do século II a.C. Dissemos
que, nos textos bíblicos, as mulheres desempenham um papel essencial e ocupam um lugar de elei-
ção na criação. A evolução é-lhes contrária. É marcado materialmente pelo facto de no primeiro
templo de Jerusalém (e também no segundo) não haver separação entre homens e mulheres, sendo
ambos admitidos a todas as cerimónias e sacrifícios. No grande templo de Herodes, porém, e pela
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primeira vez há separação. As mulheres são mantidas no exterior. Também nas sinagogas deste
período, as mulheres são colocadas num lugar especial, maioritariamente inferior. Da mesma
época, ou seja, do século II a.C., vêm também as proibições. Assim, as mulheres são excluídas das
refeições quando há convidados presentes, etc...

É absurdo dizer que estes desenvolvimentos refletem costumes patriarcais. É que encontramos um
retrocesso. Porque é que a situação das mulheres era muito melhor nos textos dos séculos VIII e VII,
que estão muito mais próximos do famoso período chamado “patriarcal”? Penso que a situação é
exatamente o oposto do patriarcado. No século II, o judaísmo fazia parte do império selêucida. Ora,
a corrupção desse império, que combinava a corrupção grega e a do Oriente Próximo, ultrapassava
todos os limites do razoável. Em todos os domínios, especialmente no do sexo, havia uma completa
ausência de moralidade, respeito, modéstia e decência. Vemos aqui uma sociedade que era com-
pletamente decadente, viciosa e pervertida. A vida humana era barata. A condição da mulher era
de quase total liberdade, mas também de absoluta degradação. As mulheres eram independentes
e, ao mesmo tempo, abandonadas a todos os apetites e mergulhadas em todos os luxos. Não eram
piores do que os homens, mas, como sempre acontece nestas situações, tornavam-se as principais
vítimas da sua independência.

Perante esta corrupção, os judeus piedosos reagiram, opondo-se à situação normal, em vez de a
imitarem. À medida que a sociedade se torna mais laxista (permissiva), eles tornam-se mais rigoro-
sos. A sua reação baseia-se no horror perante a imoralidade e no desejo de permanecerem fiéis a
Deus. Mas colocam o debate num plano moral, porque as questões morais o evocam. Assim, aban-
donam a visão espiritual da Bíblia e formulam proibições e restrições. No que diz respeito às mu-
lheres, tentam evidentemente impedir que as filhas de Israel se comportem como todas as mulhe-
res do mundo helénico. A proibição da presença das mulheres nas refeições, quando havia convi-
dados, é típica. O costume ditava que as refeições deviam terminar com sexo. Nesta regra, portanto,
temos mais moralismo do que anti-feminismo. Também sabemos muito bem que os judeus devotos
eram ferozmente hostis aos herodianos e à sua dinastia. Esta hostilidade também tinha a ver com
a imoralidade que reinava na corte dos Herodes e que se reflete na história de Salomé e na morte
de João Batista. Como é que os judeus piedosos podiam tolerar tal conduta no seu rei? Era este o
problema.

A mesma situação repete-se constantemente na história da Igreja e da cristandade. Sem dúvida, o


judaísmo devoto e moralista influenciou as primeiras gerações cristãs. Paulo resiste a essa influên-
cia quando rejeita, não a lei, mas a interpretação moralizante que lhe é imposta, quando rejeita o
que são, de facto, mandamentos humanos. Não creio, portanto, que o seu ensinamento sobre as
mulheres derive do judaísmo. Ele tenta incessantemente remeter todas as questões para o campo
espiritual da revelação e relacionar todos os problemas com a encarnação, a morte e a ressurreição
de Jesus Cristo. Nunca cai no moralismo, embora, se escolhermos textos isolados, possamos trans-
formá-los em preceitos legais, como geralmente se faz.

Dito isto, devo agora afirmar que a influência da corrupção do Oriente Próximo sobre o império
romano começa a fazer-se sentir a partir do século I a.C. Também não devemos pensar que só os
ricos se afundam na imoralidade total. As classes mais baixas também o fazem por intermédio dos
escravos. As lamentações de Catão e os juízos contundentes de Plínio ou Tácito não são obra de
pessoas desiludidas, mas refletem os costumes gerais da época. Encontramos crueldade para com
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os escravos, um esbanjamento fabuloso de dinheiro e de bens, corrupção política, burla, poligamia,


concubinato com escravos, um aumento espantoso de divórcios por consentimento mútuo (as mu-
lheres tinham o direito de repudiar os maridos), prostituição generalizada, homossexualidade e pe-
derastia, que, segundo Suetónio, é levada a extremos desmedidos. Tudo era aceitável neste mundo
romano e, apesar da violenta repressão de Octávio Augusto, a imoralidade não regrediu, tendo ex-
plodido de forma mais violenta após a sua morte.

No entanto, há que ter em conta que esta imoralidade se desenvolveu numa sociedade de lei e or-
dem. Ou seja, não provocava perturbações graves, insegurança, problemas, etc... A sociedade ro-
mana era bem gerida e funcionava bem. O vício tinha o atrativo de um tempero suplementar, como
os jogos eram para o povo. No entanto, é compreensível que os cristãos das primeiras gerações se
revoltassem com esses modos de conduta, na medida em que liam a Bíblia hebraica com seriedade
e aceitavam o evangelho de Jesus Cristo como exemplo. É por isso que, em Paulo, ou em Tiago, ou
no Apocalipse, encontramos ataques ferozes a este comportamento, tão generalizado e tão “natu-
ral” que até os cristãos o praticavam, como vemos no início de Romanos ou em 1 Coríntios.

Assim, embora não exista uma moral cristã, embora a fé seja contra a moral, seguir Jesus Cristo tem
certas implicações na vida prática. Viver pelo amor de Deus e pela fé na sua Palavra é incompatível
com tais vícios e irregularidades. O essencial é que estamos perante as implicações da vida em Cristo
e não perante os mandamentos de uma moral externa. Há uma clara oposição entre frutos (produzi-
dos pela árvore da fé) e obras (produzidas pela moral). Mas muito rapidamente o pêndulo oscila. A
partir do século II, os líderes da Igreja começam a centrar-se sobretudo na conduta moral. Esta
torna-se o critério de tudo o resto. Desenvolve-se uma moral cristã em oposição à do mundo, e os
cristãos tentam rapidamente aplicá-la a todas as questões. Quando alcançam o poder, querem im-
por a sua moral a toda a sociedade. Neste ponto, temos o primeiro passo na direção da moral como
tal, e desenvolve-se uma preocupação em determinar o seu estatuto, por exemplo, elaborando a
ideia de uma moral natural que se conforma à natureza e que encontra a sua melhor expressão na
lei de Deus. Esta lei torna-se, então, uma espécie de base comum obrigatória para todos. Mas isto é
apenas o princípio.

A segunda etapa do triunfo da moralidade na Igreja e no cristianismo ocorre com as “invasões” ger-
mânicas, quando uma nova onda de imoralidade submerge tudo. É o período que vai do século IV
ao século VII. O que é notável é o facto de os próprios “bárbaros” serem bastante honestos antes da
convulsão. Tudo muda quando invadem, quando ocupam países estrangeiros, quando se tornam
conquistadores e quando as bases dos dois grupos sociais se desgastam. No século IV, o império
assiste ao desenvolvimento de uma nova forma de imoralidade. Trata-se sobretudo de uma deso-
nestidade generalizada, de fraude, de fuga às responsabilidades, de rutura da unidade familiar, de
burla e de extorsão por parte de inúmeros funcionários. Os bárbaros chegam com a sua violência,
com a espoliação dos bens e uma total falta de moderação. Instalam-se, tiram o que querem, vivem
à custa dos habitantes originais e impõem à força os seus próprios modos de conduta. Obviamente,
a violência e a ladroagem favoreceram uma nova onda de imoralidade que se agravaria nos reinos
bárbaros e atingiria o seu clímax no dos merovíngios.

Se acreditarmos (como podemos) nas testemunhas da época (por exemplo, Gregório de Tours), en-
contramos neste período um mundo incrível de violência, fogo posto, destruição selvagem de pro-
priedade, roubo e assassinato. A vida humana não tem valor. Todas as formas de matar são boas
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em todos os estratos da sociedade. A forma mais direta e simples de roubo é comum. Os fortes
apoderam-se do que pertence aos fracos. Bandos armados percorrem incessantemente o campo.
Um terror assustador abate-se sobre esta sociedade. A imoralidade não é de modo algum a mesma
da época romana. A sua caraterística essencial é agora a violência, que envolve sexualmente o
abuso, a violação, a poligamia e a subjugação abjeta dos fracos, geralmente mulheres. O pano de
fundo já não é um mundo ordenado, mas um mundo que não conhece a lei.

As conhecidas “leis bárbaras” (por exemplo, as dos borgonheses e visigodos) oferecem provas desse
efeito. Contêm listas imensas de crimes de sangue em todas as circunstâncias e formas, com as
respetivas penas. É evidente que a ausência de polícia e de poder judicial torna impossível a aplica-
ção destas leis. Não são mais do que símbolos. Mais uma vez, portanto, a Igreja tem claramente de
lutar contra a nova vaga de imoralidade. Passa por uma nova moralização. Tenta suavizar a moral,
estabelecer leis regulares de conduta, normalizá-las e proteger os fracos. Nestas circunstâncias ur-
gentes, nesta catástrofe social e moral de que não temos noção, embora nos queixemos da violên-
cia e da insegurança da nossa própria sociedade, a Igreja faz mais para estabelecer uma moral acei-
tável do que para conseguir verdadeiras e radicais conversões de coração ao Evangelho. Ela volta a
transformar progressivamente a fé em moral e a revelação num código ético.

Mais uma vez, não é isso o que a Igreja quer. A situação imoral da época assim o exige. Progressiva-
mente, a situação torna-se mais normal, e seguem-se três séculos, do século X ao XII, de felicidade
comparativa em que a vida social e moral, apesar das descrições assustadoras do feudalismo e da
Idade Média que estão tão fortes nas nossas memórias, são muito mais estáveis e satisfatórias. A
Igreja faz então um esforço para regressar ao Evangelho.

No entanto, o que foi deformado permanece deformado. O cristianismo tornou-se sobretudo moral.
É imposto como tal. É um código de conduta. Não se coloca a questão da liberdade ou da transgres-
são. Não se diz às pessoas para amarem Deus e fazerem o que quiserem. A fé já não é o centro de
onde deriva tudo o resto. Não, isso é demasiado perigoso. É demasiado aberto. Não se deve apelar
à responsabilidade ou à iniciativa individual. A principal virtude que é desenvolvida em todo o lado
em nome da Igreja é a obediência. Mais uma vez, um desejo perverso de dominação por parte da
Igreja não é a razão para isso. A igreja tem de enfrentar uma situação moral global que é muito mais
terrível do que qualquer coisa que possamos imaginar. Afinal de contas, a obediência é um meio
bastante eficaz de lutar contra a desordem absoluta e de estabelecer um limite para a superiori-
dade do mais forte.

Façamos uma comparação. A tortura é praticada em todo o lado no nosso mundo. Se uma autori-
dade moral reconhecida pudesse eliminar a tortura estabelecendo a obediência, isto é, a obediên-
cia dos torturadores a essa autoridade moral, uma obediência estrita não aos fortes, mas àqueles
que são protegidos pela instituição, ficaríamos bastante satisfeitos. A obediência a uma autoridade
ordenada substitui a violência dos mais poderosos. Trata-se de um progresso evidente no plano
moral.

Finalmente, a terceira grande vaga de imoralidade que a Igreja tem de enfrentar (anterior à nossa)
é a dos séculos XIV e XV. De novo, e mesmo antes do terrível período das guerras de religião, a soci-
edade no seu conjunto é corrompida, e de novo de uma forma nova. É certo que as guerras feudais
e a violência continuam. Um mundo violento inclui guerras (como a Guerra dos Cem Anos entre a
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Inglaterra e a França), numerosas revoltas sangrentas (de que as Jacquerias são apenas um dos
muitos exemplos) e a banditismo, que ultrapassa em muito o banditismo dos séculos XII e XIII, com
bandos de salteadores grandes e bem organizados a vaguear pelo campo. Esta violência provoca
uma insegurança louca. Mas, curiosamente, a ela junta-se a imoralidade de um usufruto imediato
de todo o tipo de prazeres, na medida em que as pessoas sentem a ameaça da morte, reforçada
pelas grandes epidemias da época, como a Peste Negra.

Estamos perante uma espécie de frenesim do prazer. Tudo é permitido, porque a morte é iminente
(o Decameron, que remonta a este período, é testemunha disso). O usufruto imediato e frenético
do prazer é procurado sob todas as formas, mesmo as mais perversas (o Barba Azul também per-
tence a este período), como resposta à iminência da morte.

Neste clima, a feitiçaria, a magia, os encantamentos, as evocações dos mortos, as missas negras, o
culto de Lúcifer, etc.., desenvolvem-se com uma rapidez assustadora. Não estou a dizer, evidente-
mente, que essas coisas não tenham existido nos séculos anteriores. Mas só existiram esporadica-
mente e em casos individuais. A partir do século XIV, porém, temos uma verdadeira epidemia num
mundo louco. E de novo a Igreja tenta disciplinar as pessoas, moralizar e institucionalizar. Em vez
de procurar converter os feiticeiros ao evangelho puro, usa a força e o constrangimento; ameaça-
os com a fogueira, e desenvolve a Inquisição como uma instituição permanente.

O vácuo espiritual deixado pela Igreja resulta numa explosão de místicos, de um lado, e de heréti-
cos, do outro. Os místicos são, nalguns casos, pessoas admiráveis e respeitáveis que merecem o
nosso elogio. Mas, com demasiada frequência, exprimem transes duvidosos, uma mistura de sexu-
alidade reprimida e desenfreada, práticas ambíguas e por vezes pervertidas. Os hereges? Muitos
deles, como Wycliffe, Huss e Savonarola, parecem estar a lutar pela verdadeira fé, pela pureza da
Igreja, pelo regresso às fontes do Evangelho, pela afirmação da liberdade em Cristo e pelo primado
do amor. Mas já era demasiado tarde; a Igreja tinha adquirido o hábito de reagir a nível moral e ins-
titucional. Tinha deixado de ser uma serva fiel do Senhor dos pobres, do Salvador que nos dá a li-
berdade no amor. Tinha-se empenhado em defender a moral e a ordem a todo o custo. A obediência
é agora ultrapassada. Temos uma absolutização da instituição e um triunfo da moral. Tudo se re-
sume a isto. Os papas utilizam as leis para lutar contra a corrupção do clero. A Igreja utiliza a orga-
nização na sua luta pela unidade. Recorre a uma moral cada vez mais rigorosa para lutar contra a
imoralidade contemporânea.

A verdade da revelação de Deus em Cristo está totalmente perdida porque a igreja perdeu o seu
caminho no seu desejo de responder ao desafio da imoralidade durante estes quatro períodos. Em
vez de localizar a perversão na sua fonte, isto é, nos fundamentos espirituais, ela tenta lidar com os
resultados, isto é, a desmoralização. Que fique bem claro que não estou a dizer que o paganismo,
ou os seus renascimentos, resultaram no baixo estatuto moral. No século IV a.C., a sociedade ro-
mana era pagã e moralmente reta. O contexto desta imoralidade universal foi uma situação com-
plexa: acontecimentos (guerras, invasões, o afluxo de ouro e prata, peste, etc...), o conflito do cris-
tianismo com as estruturas tradicionais da sociedade como fator básico, a destruição de crenças e
religiões antigas pela pregação cristã, a privação das pessoas de todas as suas referências, tradi-
ções e raízes. O cristianismo pretende substituir o amor pela ordem, a fraternidade pela hierarquia, a
liberdade pela lei. É claro que isso funciona para os indivíduos, para os pequenos grupos, para uma
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ínfima minoria, mas não para a sociedade. Daí que a imoralidade (na era cristã) resulte do choque
entre o paganismo e a pregação cristã. Neste ponto, Juliano, o Apóstata, tinha razão.

Por fim, a reação da Igreja ao encontro da imoralidade, a sua imensa tentativa de fazer cumprir a
lei e a moral, e a sua resposta a condutas desregradas nos domínios ético e jurídico estão intima-
mente ligadas ao erro de confundir a Igreja e a sociedade. A Igreja abraça toda a sociedade. Batiza-
a oficialmente como sociedade cristã. Ela toma conta dos problemas políticos e sociais. Procura
estabelecer a ordem social e aplicar os princípios cristãos em todas as esferas. Assim, a revelação
torna-se moral - a suprema traição dos profetas, do Evangelho e da primeira geração cristã. Pois
quanto mais essa moral cristã (e oficial) se desenvolve, mais a hipocrisia e o farisaísmo se desenvol-
vem também. Isso era inevitável.

Para compreender o processo, podemos tomar como exemplo o celibato sacerdotal. Certas pes-
soas têm vocação para o celibato, para se dedicarem a Deus desta forma, que é uma maneira pos-
sível de servir Deus, e para procurarem o sacerdócio. Isso é bom. Mas quando se faz do celibato uma
lei, uma obrigação ou uma regra para todos os padres, quando (sem qualquer vocação) se faz dele
uma condição para o sacerdócio, acontece uma de duas coisas. Ou aqueles que têm uma verdadeira
vocação para o sacerdócio, mas não para o celibato, são postos de lado, ou então, inevitavelmente,
há um encobrimento da falsidade e da hipocrisia. Aqui, como noutros lugares, a lei é uma coisa má.
Não sou eu que o digo, mas S. Paulo.

A perversão, portanto, foi a de transformar o Evangelho em lei para responder ao desafio lançado à
revelação pelas sucessivas explosões de imoralidade e de desordem ética. Naturalmente, os cris-
tãos e a Igreja não podiam deixar de reagir ao desencadear da violência e da sexualidade, às múlti-
plas formas de corrupção. O erro foi lidar com elas no plano moral e legal, em vez de seguir o exem-
plo de Paulo, que sempre passa da questão moral para a questão espiritual, volta à essência da
revelação em Cristo e daí deriva alguns modelos de conduta que são consistentes com a fé e o amor.
A Igreja não fez isso. Colocou-se assim ao mesmo nível que o mundo e tratou as questões morais no
plano moral.

Os teólogos cometeram exatamente o mesmo erro em matéria política e social. Em vez de seguirem
o caminho indicado por Paulo (um fiel expositor da obra de Jesus), colocaram-se ao mesmo nível e
no mesmo campo que o mundo. Uma questão política, pensavam eles, devia ser tratada como uma
questão política, uma questão social como uma questão social, com as devidas interpretações e
soluções. Mais uma vez, o Evangelho torna-se moral. O mesmo erro é cometido no século IV, no
século VI e no século VII. O procedimento também é o mesmo, pois uma vez dada uma solução mo-
ral, política ou social, uma vez que são os cristãos que a dão, acrescentam uma pequena cobertura
de termos teológicos e referências bíblicas para quem as quiser. Hoje, como no tempo de Constan-
tino, os cristãos fazem exatamente o mesmo. Começam por tomar posições políticas ou moralistas
e, depois, atiram com um pouco de teologia para se justificarem, para ficarem com a consciência
tranquila, para darem validade ao uso do termo cristão. Deste modo, o conteúdo da fé torna-se uma
ideologia.36

36Podemos ver isso em todas as tentativas de forjar uma teologia socialista ou de oferecer uma interpretação marxista do
evangelho.
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Devemos agora voltar ao anti-feminismo. Creio que a vitória da lei sobre o evangelho, da morali-
dade sobre o amor, é provavelmente a razão essencial para a adoção de uma posição anti-femi-
nista. É mais, já o disse, do que as chamadas influências patriarcais (que não existem) ou judaicas
(que são menos do que se supõe). Foi isso que levou os teólogos e a Igreja a rejeitarem as mulheres
contra toda e qualquer razão. Para sustentar esta tese é fácil. Basta ver que os mesmos teólogos
que se preocupam de forma suprema e apaixonada com as questões morais são também os mais
anti-feministas (por exemplo, Tertuliano). Naturalmente, não estou a dizer que o moralismo leva à
exclusão das mulheres porque são mais imorais do que os homens ou porque constituem para elas
uma armadilha para a imoralidade. A razão é muito mais profunda do que isso. Uma atitude mora-
lista é essencialmente masculina. É uma atitude de julgamento, de rigidez, de rigor, de cálculo de
débitos e ativos, de classificação, de designação, de estabelecimento do que se deve e do que não
se deve fazer, etc... Nada disto é, por natureza, feminino.

Para que fique claro o que estou a pensar aqui, tenho de definir o que entendo por masculino e
feminino. Não estou a pensar apenas no homem e na mulher tal como são definidos pelo género.
Não penso que haja uma natureza original do homem e outra original da mulher, que haja estereó-
tipos que possam ser atribuídos aos genes e que todos os homens sejam masculinos e todas as
mulheres femininas. No entanto, de uma forma muito geral, na maioria das sociedades, tem havido
divisões de papéis que resultaram em condutas, sentimentos e valores diferentes, embora estes
possam assumir formas diferentes em grupos diferentes. Não devemos ignorar o património gené-
tico, mas este não é determinante e não tem de implicar a atribuição de um determinado papel.
Cada um é o produto tanto do património genético como do meio cultural em proporções que não
podem ser fixadas.37 Devido à sua vocação de mãe, por exemplo, as mulheres inclinam-se para va-
lores como a vida, o interesse pelas coisas pequenas, a preocupação com os fracos. Mas, devido à
sua exclusão das funções sociopolíticas, foram levadas a desenvolver muitos outros valores e a es-
tabelecer relações inter-humanas em bases diferentes da política, da competição e da força. Em
grande parte, a existência material nos tempos “primitivos” e nos primórdios da história, quando a
vida era essencialmente muito perigosa devido à guerra, aos animais selvagens e à hostilidade da
natureza, fez com que os machos assumissem a autoridade e o domínio e reduzissem as fêmeas a
uma posição secundária. Este facto contribuiu para produzir duas ordens de valores, os valores
masculinos da força, do domínio, do poder, da procura de coisas grandes, do espírito de conquista,
da coragem, da ordem, etc.., e os valores femininos do amor, da sensibilidade, da proteção dos fra-
cos, da imaginação, da doação, etc...

Naturalmente, nem todos os homens e mulheres são assim. Alguns homens encarnam maravilho-
samente os valores femininos - Jesus Cristo em primeiro lugar - e algumas mulheres querem apenas
agir como homens e encarnar o papel masculino. Infelizmente, esta última é a tendência de muitos
movimentos feministas, que pensam que a única esperança das mulheres é serem idênticas aos
homens, adotarem os valores dos homens e desempenharem o mesmo papel que os homens na
sociedade.

Estas breves explicações eram necessárias para que ficasse claro o que eu tinha em mente quando
disse que a moral e o direito são valores masculinos. Codificar as relações humanas, colocá-las em
termos de deveres claros e bem estabelecidos, introduzir a ordem na conduta, reduzir a vida à lei,

37Sobre esta questão, e sobre o erro de tentar classificar apenas pelo legado genético, ver o notável estudo de A. Jacquard,
Au péril de la science (Paris: Éditions du Seuil, 1982).
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governar o impulso através da regulamentação, obrigar as pessoas a fazer o que está previsto numa
ordem supostamente estabelecida pela lei (seja ela moral ou jurídica), impor sanções a toda a trans-
gressão ou desobediência, colocar todos os comportamentos numa malha tão apertada quanto
possível, estabelecer uma escala de sanções para as faltas e os incumprimentos, classificar toda a
pessoa de acordo com a sua obediência às regras - tudo isto é muito masculino, exprimindo o espí-
rito de poder, o desejo de ordenar uma sociedade que, de outro modo, seria espontânea, para cla-
rificar relações que, de outro modo, seriam obscuras. Perante os males sociais e a imoralidade, a
mente masculina só encontra uma solução, a de fazer leis e estabelecer regras e sanções. Repito
que algumas mulheres também têm este espírito masculino. Há mulheres rigorosas e rígidas que
apoiam a ordem e representam a lei. Basta pensar em Hervé Bazin e em Folcoche. No entanto, não
devemos esquecer que, no final, Folcoche é finalmente muito diferente e muito feminina quando
está velha e magoada, quando já não tem de encarnar o dever e quando mostra que toda a sua vida
assumiu um papel que é contrário à natureza. Os psicanalistas sabem muito bem que são os ho-
mens que encarnam efetivamente a lei.

Nos períodos de grande imoralidade a que nos referimos, as mulheres não tentaram dominar todos
os problemas através de regras morais e legais. Tentaram estabelecer relações inter-humanas
numa base de compreensão, de amor, de tolerância, de flexibilidade, de proteção dos fracos. É evi-
dente que não obtiveram um êxito imediato. Esta reação não foi suficientemente adequada ou forte
para a brutalidade da época. A ação neste sentido teve, sem dúvida, de ser lenta e menos óbvia.
Mas era mais elementar e ia ao cerne da questão.38

Não nego que o governo deva fazer leis ou que precisemos da polícia e dos tribunais. Estou simples-
mente a dizer que se trata de um expediente que nos permite travar o mal, mas que nunca resolve
nada. O que aconteceu foi que os cristãos e a Igreja adotaram esta atitude e seguiram este rumo.
Toda a doutrina evangélica é contrária a isso. O que se poderia esperar dos cristãos e da Igreja é
que substituíssem o falso amor pelo verdadeiro amor que vem de Deus, que substituíssem o eros
conquistador dos gregos pelo ágape que serve, que colocassem o espírito de serviço no lugar do
espírito de domínio, que rejeitassem o legalismo punitivo em favor de uma relação humana aberta
e flexível, que valorizassem o pessoal em vez do social, que exaltassem o apreço pessoal em vez de
regras válidas, que olhassem para o coração em vez da conduta externa, que controlassem a desor-
dem sexual pelo triunfo do verdadeiro amor entre homens e mulheres, que mantivessem em todo
o lado uma flexibilidade viva em vez da rigidez da ordem; em suma, que, mesmo à custa de sacrifí-
cios e sofrimentos inevitáveis, tivessem encarnado e mantido os valores femininos no seio deste
tipo de sociedade.

A igreja escolheu o espírito de constrangimento e dominação, e rejeitou o evangelho. Ela estabele-


ceu - já vimos como - a primazia da lei e da moralidade sobre a fé, a esperança e o amor. Por este
facto, eliminou essencialmente, se não exclusivamente, as mulheres, reduziu-as a um papel secun-
dário, e submeteu-as também à lei e aos juízos morais. A perda mais séria da igreja vem desta subs-
tituição do evangelho pela moralidade, o que implica a rejeição das mulheres como testemunhas
vivas do evangelho. Mais uma vez, a lei torna-se uma expressão do mal, da tentação do Jardim do

38O mesmo se passa atualmente em matéria de violência e de delinquência juvenil. A repressão e a força são a resposta
masculina. O trabalho lento de prevenção especializada, baseado na compreensão e na aceitação dos outros, é a resposta
feminina. Na minha opinião, é a única resposta válida.
65

Éden. A Igreja perde a sua vocação central quando submete as mulheres ao julgamento deste mo-
ralismo.

Penso que temos aqui a explicação da espantosa mudança que faz das mulheres um objeto de re-
pulsa e desconfiança, e ao mesmo tempo as trata como menores, apesar de a revelação bíblica as
colocar no centro da vontade de Deus para a raça. Em si mesmo, o Evangelho é uma boa notícia; é
graça, alegria, liberdade e amor; nas relações humanas, significa flexibilidade, delicadeza, preocu-
pação com os pequenos, proteção dos fracos e abertura. A sua transformação numa moral do dever
e do julgamento, provocada pela imoralidade da sociedade envolvente, e considerada como o
único resultado e resposta possíveis, foi o que levou à exclusão da mulher do seu lugar e da sua
vocação, à sua rejeição dos círculos de responsabilidade. Foram os homens que levaram a cabo
esta operação, que tentaram proteger o grupo desta forma, como se estivessem ameaçados por
uma agressão militar violenta.

A partir daí, duas coisas tinham de ser feitas. Era preciso neutralizar as mulheres e encontrar uma
justificação teológica para esta posição. Porque não podemos esquecer que estamos na Igreja e
num ambiente cristão. A neutralização da mulher era mais essencial precisamente porque a reve-
lação de Deus em Jesus Cristo, tal como nos é dada ao longo da Bíblia, atribui à mulher (a Vivente)
todos os valores da vida (e não do bem-estar social). A igreja encontra três formas de neutralizar a
mulher, formas que lhe são familiares e que foram muitas vezes estudadas: 1) Impõe à mulher o
silêncio, a passividade, a obediência e a autoanulação, como se isso fosse válido para todas as mu-
lheres. 2) Ela torna o estatuto da virgindade superior a todos os outros (contrariamente ao ensina-
mento bastante ambíguo de Paulo, que, em certos casos e por certas razões, considera que a vir-
gindade é superior ao casamento, mas que, noutros lugares, afirma que as mulheres são salvas ao
tornarem-se mães, claramente não em referência a situações individuais, mas à promessa feita a
Eva de que a sua posteridade esmagaria a serpente). A virgindade, porém, exclui a mulher não ape-
nas do seu papel social, mas da sua verdadeira natureza de portadora e transmissora da vida. 3)
Por fim, temos a idealização (prolongamento da virgindade), sobretudo da virgem Maria, que se
torna modelo de submissão (“Seja-me feito”) como modelo de escuta e de crença (o que é bem
diferente!), e que permite aos homens ter a consciência tranquila, enquanto rebaixam as mulheres
exaltando-as ainda mais ideologicamente. É o mecanismo bem conhecido que permite evitar uma
realidade incómoda através da projeção num ideal.

À medida que o processo de neutralização se desenvolvia, os teólogos tinham também de provar


que a exclusão e a inferiorização das mulheres tinham bons fundamentos bíblicos e teológicos. Sur-
giu assim a leitura viciosa da Escritura que já denunciámos e que se caracteriza por evitar as passa-
gens espirituais sobre as mulheres, por arrancar do seu contexto os textos contrários e por subli-
nhar os textos favoráveis em detrimento de outros. Finalmente, algumas passagens são mesmo li-
das num sentido oposto, como, por exemplo, a colocação da criação de Eva em último lugar, ou a
afirmação de que ela foi tirada do lado de Adão. Tudo isso é o resultado trágico da substituição da
revelação pela moral, que há dois mil anos é um dos aspetos da perversão da vontade de Deus.
66

Capítulo 5

A INFLUÊNCIA DO ISLÃO39

Raramente se tem dado ênfase à influência do Islão sobre o Cristianismo, ou seja, à deformação e
subversão a que a revelação de Deus em Jesus Cristo está sujeita. No entanto, esta influência foi
considerável entre os séculos IX e XI. Fomos educados com a imagem de uma cristandade forte e
estável, de certa forma atacada e sitiada pelo Islão. Empenhado na conquista ilimitada, com uma
vocação universal semelhante à reivindicada pelo cristianismo, o Islão expandia o seu império em
três direções: para sul, sobretudo ao longo das costas da África negra, chegando até Zanzibar no
século XII; para noroeste, com a conquista de Espanha e a invasão de França até Lião, por um lado,
e Poitiers, por outro; e para nordeste, até à Ásia Menor e até Constantinopla. Com os turcos, o Islão
continuaria a ameaçar incessantemente os Balcãs, a Áustria, a Hungria, etc... O quadro é manique-
ísta e bélico; como é difícil conceber contactos profundos entre inimigos em guerra, como pode o
Islão ter influenciado o Cristianismo neste estado de guerra permanente?

O excelente livro de H. Pirenne, Mahomet et Charlemagne,40 mostrou admiravelmente quais foram


as consequências económicas e políticas desta ameaça militar permanente. Mas tem sido frequen-
temente sublinhado que nos falta um estudo das relações. Este facto é tanto mais surpreendente
quanto, noutros domínios. No domínio da filosofia, sabemos perfeitamente que o pensamento de
Aristóteles chegou à Europa graças às traduções e comentários do filósofo árabe Averróis (século
XII), e podemos também referir a influência de Avicena a partir do século XI. É igualmente reconhe-
cido que a influência árabe foi grande em domínios científicos como a matemática, a medicina, a
agronomia, a astronomia e a física. Tudo isto é reconhecido e do conhecimento geral.

Um pouco mais tarde, a influência árabe é incontestável nas artes negras, na magia, nas várias
“mancias”, na alquimia, na procura da pedra filosofal e também na música (século XII). Sabe-se
também que os árabes tiveram uma influência militar considerável (por exemplo, na cavalaria,
etc...) e que alguns domínios técnicos (irrigação) e a arquitetura sentiram o seu impacto. Por último,
é constantemente sublinhado que, através das Cruzadas e dos contactos dos Cruzados com os ára-
bes, ocorreram muitas mudanças em vários domínios, como a introdução de certas árvores de fruto
(cerejas e damascos) em França. Tudo isto é muito banal. Mas, pelo menos, diz-nos sem margem
para dúvidas que, mesmo entre inimigos que são descritos como irreconciliáveis, houve relações
culturais e intelectuais. Houve trocas e o conhecimento circulou. Na verdade, o conhecimento pa-
rece ter circulado numa única direção, do Islão e do mundo árabe para o Ocidente, muito mais atra-
sado e “bárbaro”.41

39Ver, entre outras obras, D. Sourdel, L'Islam médiéval (Paris: PUF, 1979), e sobre o misticismo muçulmano M. Eliade, Histoire
des croyances et des idées religieuses (Paris: Payot, 1983), 3:283; Islam et Christianisme, um número especial de Foi et Vie,1983.

40 H. Pirenne, Mahomet et Charlemagne (Paris: Payot, 1937).

41Isto levou alguns fervorosos apoiantes do Islão a lamentarem que os árabes tenham sido finalmente derrotados e repeli-
dos. Que império maravilhosamente civilizado teria sido criado se toda a Europa tivesse sido invadida! Esta posição, oposta
67

Há dois domínios que, tanto quanto sei, ainda não foram objeto de estudos deste tipo: o direito e a
teologia. Mas como é que podemos acreditar, admitir ou pensar que houve trocas nos domínios
intelectual, comercial e económico sem que estas disciplinas fossem afetadas de alguma forma?
Reconhece-se, por exemplo, que a letra de câmbio foi quase certamente inventada pelos árabes e
depois adotada no Ocidente para facilitar o comércio marítimo. Mas outros domínios do direito
também devem ter sido influenciados. Estou inclinado a pensar, por exemplo, que a lei da servidão
é uma imitação ocidental do dhimmi muçulmano. O direito religioso também é importante. Estou
convencido de que algumas partes do direito canónico têm a sua origem no direito árabe. E isto
conduz-nos, de facto, ao cristianismo.

Como é que se pode imaginar que houve uma influência conhecida e admitida na filosofia que não
tenha tido repercussões teológicas? Toda a gente sabe que o problema resolvido por Tomás de
Aquino foi precisamente o do confronto entre a teologia clássica e a filosofia de Aristóteles. Mas a
ponte é feita através dos árabes. Falamos de filosofia grega e de teologia cristã. Mas esta filosofia
grega foi fielmente transmitida por intérpretes árabes. Foi através do pensamento árabe-muçul-
mano que o problema passou a ser abordado nesta altura. Não podemos pensar que a influência
árabe foi nula, exceto no que diz respeito a Aristóteles.

Além disso, é facilmente percetível que o cristianismo e o islamismo tinham alguns pontos óbvios
em comum ou pontos de encontro. Ambos eram monoteístas e ambos se baseavam num livro. De-
vemos também notar a importância que o Islão atribui aos pobres. É certo que os cristãos rejeitam
Alá devido à negação de que Jesus Cristo seja o Filho de Deus e não admitem que o Corão seja divi-
namente inspirado. Por outro lado, os muçulmanos rejeitam a Trindade em nome da unidade e fa-
zem de toda a Bíblia um mero prefácio ou introdução ao Corão. No fundo, os muçulmanos fazem
com toda a Bíblia o que os cristãos fazem com a Bíblia hebraica. Mas, sobre esta base comum, há
necessariamente encontros, debates e discussões e, por conseguinte, uma certa abertura. Mesmo
quando há rejeição e objeção, não se pode fugir à questão que é colocada.

Parece que os intelectuais e teólogos muçulmanos eram muito mais fortes do que os seus homólo-
gos cristãos. Parece que o Islão teve alguma influência, mas não o cristianismo. O que nos interessa
aqui não é o problema filosófico ou as formulações teológicas, necessariamente circunscritas a um
pequeno círculo intelectual, mas a forma como as influências islâmicas alteram as práticas, os ritos,
as crenças, as atitudes perante a vida, tudo o que pertence ao domínio da crença ou da conduta
moral ou social, tudo o que constitui a cristandade. Também aqui, toda a gente sabe que o reino
franco de Jerusalém, os cavaleiros franceses instalados na Palestina, adotaram rapidamente mui-
tos usos e costumes que tinham origem no Islão. Mas o caso excecional não é importante. O que
conta é o que é importado para a Europa. É o facto da imitação involuntária. É o facto de estar situ-
ado no território escolhido e de ser delimitado por aqueles que se quer combater. Deixarei assim de
lado a teologia em sentido puro, a diferença entre Tomás de Aquino e a teologia bíblica, a influência
de Aristóteles. Ocupar-me-ei de outros problemas.

à que prevaleceu na história até cerca de 1950, leva as pessoas a esquecer os horrores do Islão, a terrível crueldade, o uso
generalizado da tortura, a escravatura e a intolerância absoluta, apesar dos apóstolos zelosos que sublinham a tolerância
do Islão. Voltaremos a este assunto. Basta dizer que, onde o Islão se impôs, desapareceram igrejas fortes e vitais como as do
Norte de África e da Ásia Menor. E todas as culturas autóctones diferentes, que os romanos e os alemães tinham respeitado,
foram exterminadas nas zonas conquistadas pelos árabes.
68

Creio que, em todos os aspetos, o espírito do Islão é contrário ao da revelação de Deus em Jesus
Cristo. É assim no facto básico de que o deus do Islão não pode ser encarnado. Este deus só pode
ser o juiz soberano que ordena todas as coisas como quer. Outro ponto de antítese reside na inte-
gração absoluta do direito religioso e do direito político. A expressão da vontade de deus traduz-se
inevitavelmente em lei. Não há lei que não seja religiosa, inspirada por deus. Reciprocamente, toda
a vontade de deus deve traduzir-se em termos jurídicos. O Islão levou a um extremo o atendimento
que é virtual na Bíblia hebraica, mas aí é simbólico do espiritual e é depois transcendido por Jesus
Cristo; com o Islão voltamos à formulação jurídica enquanto tal.

Já mostrei noutro lugar que a dupla formulação “ter uma lei” e “lei objetiva” é contrária à revelação.
Isto só pode ser naturalmente contestado pelos defensores do direito natural e da teologia clássica.
A minha convicção é que esta revelação do amor, que pretende instaurar uma relação de amor (só)
entre nós, e que, por isso, baseia tudo na graça e nos dá um modelo de relações exclusivamente
graciosas, é, de facto, o exato oposto da lei, em que tudo é medido por débitos e créditos (o oposto
da graça) e deveres (o oposto do amor).

Na medida em que não estamos no Reino de Deus, não podemos certamente alcançar esta relação
pura de amor e de graça, esta relação completamente transparente. Por isso, a lei tem uma exis-
tência necessária. Mas temos de a ver apenas como uma questão de conveniência (porque não po-
demos fazer melhor) e como um mal necessário (que é sempre um mal). Este entendimento não
tem nada a ver com aquele que, ao contrário, exalta muito o direito, fazendo dele a expressão da
vontade de Deus e a formulação jurídica do mundo “religioso”. Nesta perspetiva, o direito é um
valor supremo. Ao adotarem esta abordagem, os cristãos foram muito influenciados pela sua ori-
gem romana. Não podiam excluir ou minimizar o valor do direito romano, como já vimos. Surge
então um grande ressalto com os árabes. Temos agora uma união íntima entre a lei e a vontade de
Deus.

O jurista é o teólogo. A teologia torna-se não menos jurídica do que filosófica. A vida é fixada no
direito, não menos e ainda mais do que na ética. Tudo o que é religioso torna-se jurídico. Os juízes
tratam de assuntos religiosos, e a jurisprudência torna-se teologia. Isto dá um enorme impulso à
juridicização da cristandade. O direito canónico expande-se segundo o modelo do Islão. Se nem
tudo está incluído nele, é porque os senhores feudais e os monarcas são muito hostis ao poder cres-
cente da Igreja e porque os costumes (laicos) se opõem firmemente a esta santificação. Mas o espí-
rito jurídico penetra profundamente na Igreja, e eu defendo que isso acontece tanto sob a influência
do Islão como em resposta à lei religiosa do Islão. A Igreja teve de seguir o exemplo.

Além disso, o direito instituiu tribunais eclesiásticos e deu-lhes meios de decisão. Teriam gostado
de ver tudo remetido para o direito canónico e para os seus tribunais, como no mundo muçulmano.
A Igreja teria gostado de ter o poder exclusivo. Mas no Islão havia uma correlação indissolúvel entre
o direito religioso e o poder político. Também neste domínio, o que foi introduzido com o Constan-
tinianismo, como vimos, recebeu um novo impulso do Islão. Cada chefe político no Islão é também
o governante dos crentes. Não há separação entre a Igreja e o poder político. O chefe político é o
chefe religioso. Ele é um representante de Alá. Os seus atos políticos, militares, etc.., são inspirados.

Ora, tudo isto é familiar na Europa. O rei ou o imperador não se limita a afirmar que é o braço secular
da Igreja, mas que tem o poder espiritual. Ele quer que se reconheça que ele é pessoalmente
69

escolhido por Deus, eleito pelo Todo-Poderoso. Ele precisa de uma palavra profética e do poder de
fazer milagres. A sua palavra e a sua pessoa têm de ser sagradas.

Naturalmente, alguns destes elementos já estavam presentes antes do Islão. No entanto, não foi
por acaso que esta teologia, liturgia e entendimento imperial se desenvolveram primeiro em Bizân-
cio, aquando do primeiro contacto com o Islão, e só mais tarde se espalharam pelo Ocidente. O
poder real torna-se religioso, não apenas numa aliança com a Igreja, mas sob a influência do Islão,
que era muito mais teocrático do que o Ocidente alguma vez foi: uma teocracia em que Deus é, de
facto, o único rei, mas o verdadeiro representante de Deus na terra é o chefe político, de modo que
temos aquilo a que se chamou, com razão, “teocracia laica”, sem organização religiosa, sem clero,
sem instituição eclesiástica - uma situação que deve ser regozijada, pois implica que apenas o po-
der político é religioso. O Islão não conhece a dualidade da Igreja e do Estado, com os seus conflitos
e também com a limitação que implica para o poder político.

Compreendemos assim perfeitamente o desejo, a vontade ou a tentação dos reis e imperadores


ocidentais de serem eles próprios os únicos representantes de Deus na terra e de irem assim muito
mais longe do que Constantino. A fórmula segundo a qual o imperador é “o bispo no exterior” não
lhes bastava. Estou certo de que o modelo islâmico atuou a favor da emancipação dos reis e da sua
tentativa, a partir do século XIV, de criar uma Igreja totalmente dependente do poder político. É
certo que, no grande debate, não foram capazes de apresentar este argumento. Que confissão seria
dizer que estavam a tomar como modelo esses terríveis incrédulos!

Paralelamente a esta grande importância do poder político, existe, naturalmente, a importância e


a glorificação da guerra como meio de propagação da fé. Esta guerra é um dever de todos os mu-
çulmanos. O Islão tem de se tornar universal. A verdadeira fé, e não o poder, tem de ser levada a
todos os povos por todos os meios, incluindo a força militar. Isto torna o poder político importante,
pois é bélico por natureza. As duas coisas estão intimamente relacionadas. O chefe político faz a
guerra em nome da fé. Ele é, portanto, o chefe religioso e, como único representante de Deus, deve
lutar para estender o Islão. Esta enorme importância da guerra foi hoje totalmente apagada nos
círculos intelectuais que admiram o Islão e querem tomá-lo como modelo. A guerra é inerente ao
Islão. Está inscrita nos seus ensinamentos. É um facto da sua civilização e também um facto religi-
oso; os dois não podem ser separados. É coerente com a sua conceção do Dhar al ahrb, segundo a
qual o mundo inteiro está destinado a tornar-se muçulmano através das conquistas árabes. A prova
de tudo isto não é apenas teológica, é histórica: dificilmente se prega a fé islâmica quando se inicia
uma conquista militar imediata. De 632 a 651, nos vinte anos que se seguiram à morte do profeta,
temos uma guerra relâmpago de conquista com a invasão do Egipto e da Cirenaica a oeste, da Ará-
bia no centro, da Arménia, da Síria e da Pérsia a leste. No século seguinte, todo o Norte de África e
Espanha são conquistados, bem como a Índia e a Turquia a leste. As conquistas não são alcançadas
pela santidade, mas pela guerra.

Durante três séculos, o cristianismo difundiu-se através da pregação, da bondade, do exemplo, da


moralidade e do encorajamento dos pobres. Quando o império se tornou cristão, a guerra era difi-
cilmente tolerada pelos cristãos. Mesmo quando travada por um imperador cristão, era uma ativi-
dade duvidosa e era avaliada de forma desfavorável. Era frequentemente condenada. Os cristãos
eram acusados de minar a força política e o poderio militar do império a partir do seu interior. Na
prática, os cristãos permaneceriam críticos em relação à guerra até que a imagem extravagante da
70

guerra santa entrou em cena. Por outras palavras, independentemente das atrocidades cometidas
nas guerras travadas pelas nações ditas cristãs, a guerra esteve sempre em contradição essencial
com o Evangelho. Os cristãos sempre estiveram mais ou menos conscientes deste facto. Julgaram
a guerra e questionaram-na.

No Islão, pelo contrário, a guerra era sempre justa e constituía um dever sagrado. A guerra desti-
nada a converter os infiéis era justa e legítima, porque, como repete o pensamento muçulmano, o
Islão é a única religião que se adapta perfeitamente à natureza. Num estado natural, todos seríamos
muçulmanos. Se não o somos, é porque fomos desencaminhados e desviados da verdadeira fé. Ao
fazer a guerra para forçar as pessoas a se tornarem muçulmanas, os fiéis estão a trazê-las de volta
à sua verdadeira natureza. Q.E.D. (O que era necessário demonstrar). Além disso, uma guerra deste
género é uma jihad, uma guerra santa. Não nos enganemos, a palavra jihad tem dois sentidos com-
plementares. Pode designar uma guerra espiritual, moral e interior. Os muçulmanos têm de travar
esta guerra no seu íntimo, na luta contra os demónios e as forças do mal, no esforço de uma melhor
obediência à vontade de Deus, na luta pela submissão perfeita. Mas, ao mesmo tempo e de uma
forma totalmente coerente, a jihad é também a guerra contra os demónios externos. Para difundir
a fé, é necessário destruir as falsas religiões. Esta guerra, portanto, é sempre uma guerra religiosa,
uma guerra santa.

Neste ponto, temos duas influências diretas muito fortes exercidas pelo Islão sobre o cristianismo.
Antes do século VIII, o cristianismo quase nunca afirmava que a revelação estava em conformidade
com a natureza. A tradição, baseada na Bíblia, tinha a opinião contrária. A natureza é decaída, a
carne é perversa, os homens em si mesmos, no seu estado natural, são pecadores e incrédulos. Na-
turalmente, percebo que os pais da Igreja já se tinham deparado com o problema da contradição
entre as afirmações bíblicas e, por exemplo, a filosofia grega, que em certas correntes apresenta a
natureza como o modelo que se deve seguir. Mas a natureza nunca foi confundida com a revelação
bíblica. Mesmo aqueles que admitiam algum valor positivo à natureza sempre tiveram reservas em
relação à natureza corrompida. Penso que é a identificação muçulmana da natureza e do Islão que
coloca aos cristãos, de forma urgente, a questão de saber se podem deixar os infiéis evadir-se com
isso (Poderiam deixá-los dizer uma coisa dessas?), ou se não, se devem dizer algo semelhante (Tal-
vez o mínimo a fazer seja dizer o mesmo).

Como é sabido, as teologias do século XI em diante tendem a juntar natureza e revelação, a encon-
trar na natureza uma fonte de revelação (como nas afirmações ambíguas de Denis sobre a luz), a
elaborar uma teologia “natural”, a mostrar que a queda não é radical ou total, e depois a coordenar
as duas numa natureza completada pela graça como sobrenatureza. Assim, o grande desvio do pen-
samento e da teologia cristã em relação à revelação bíblica nesta questão da natureza tem pelo
menos duas fontes: a grega e a árabe. Esta última, na minha opinião, é finalmente a mais impor-
tante. Esta orientação conduz imediatamente às mesmas conclusões que observámos no Islão. Se
existe uma coincidência entre a natureza e a revelação, então só uma cegueira condenável leva ao
não reconhecimento de Deus (o Deus cristão, claro!). Porque basta abrir os olhos e olhar para a
natureza para ver Deus. Basta conhecermo-nos a nós próprios para discernirmos a verdadeira reli-
gião. Se não fizermos estas coisas simples, somos culpados. Assim que o cristianismo se torna uma
religião que se conforma à natureza, então torna-se necessário forçar as pessoas a tornarem-se
cristãs. Desta forma, elas voltarão à sua verdadeira natureza. Começam a verificar-se conversões
forçadas.
71

A célebre história de Carlos Magno que obrigou os saxões a converterem-se sob pena de morte apre-
senta-nos simplesmente uma imitação do que o Islão já fazia há dois séculos. Mas se a guerra tem
agora como objetivo a conversão ao cristianismo, vemos que rapidamente assume o aspeto de uma
guerra santa. É uma guerra contra os incrédulos e os hereges (sabemos como foi impiedosa a guerra
que o Islão travou contra os hereges no seu seio). Mas a ideia de uma guerra santa é um produto
direto da jihad muçulmana. Se esta última é uma guerra santa, então é óbvio que a luta contra os
muçulmanos para defender ou salvar o cristianismo também tem de ser uma guerra santa. A ideia
de uma guerra santa não é de origem cristã. Os imperadores nunca avançaram com esta ideia antes
do aparecimento do Islão.

Há meio século que os historiadores se debruçam sobre as Cruzadas para encontrar explicações
que não sejam a teoria disparatada que se defendia anteriormente e que está em conformidade
com discursos e sermões, segundo a qual a sua intenção era garantir os lugares santos. Foi demons-
trado que as Cruzadas tinham objetivos económicos, ou que foram estimuladas pelos papas por
vários motivos políticos, como o de assegurar a preeminência papal esgotando os reinos, ou o de
reforçar a unidade enfraquecida da Igreja, ou ainda que foram um meio de os reis arruinarem os
barões que desafiavam o seu poder, ou ainda que os banqueiros de Génova, Florença e Barcelona
as instigaram para poderem emprestar dinheiro aos Cruzados e obter lucros fabulosos, etc... Há, no
entanto, um facto radical: a Cruzada é uma imitação da jihad. Assim, a Cruzada inclui uma garantia
de salvação. Aquele que morre numa guerra santa vai diretamente para o Paraíso, e o mesmo se
aplica àquele que participa numa Cruzada. Não se trata de uma coincidência, mas de uma equiva-
lência exata.

As Cruzadas, que outrora foram admiradas como expressão de uma fé absoluta, e que agora são
objeto de acusações contra a Igreja e o cristianismo, são de origem muçulmana e não cristã. Encon-
tramos aqui uma terrível consequência e confirmação de um vício que já estava a corroer o cristia-
nismo, nomeadamente o da violência e do desejo de poder e domínio. Lutar contra um inimigo per-
verso com os mesmos meios e armas é inevitavelmente identificar-se com esse inimigo. Os meios
maus corrompem inevitavelmente uma causa justa. A não-violência de Jesus Cristo transforma-se
numa guerra em conflito com a travada pelo inimigo. Tal como essa guerra, trata-se agora de uma
guerra santa. Aqui temos uma das principais perversões da fé em Jesus Cristo e da vida cristã.

Mas é preciso ir um pouco mais longe. Uma vez que o rei é o representante de Deus na terra e que
uma guerra é santa, coloca-se necessariamente uma outra questão. Se uma guerra não é santa,
então o que é? Parece que os imperadores cristãos de Roma não colocaram esta questão. Tinham
de defender o império. Era só isso. Naturalmente, também não se colocou no período das invasões
e dos reinos germânicos. A guerra era então um facto, um estado permanente. Ninguém tentava
justificá-la. Mas, com a ideia muçulmana da guerra santa, nasce a ideia de que uma guerra pode ser
boa, mesmo que não seja motivada por intenções religiosas, desde que seja conduzida por um rei
legítimo. Gradualmente, aceita-se a ideia de que o poder político tem de fazer a guerra e, se esse
poder for cristão, o governante tem de obedecer a certos preceitos, orientações e critérios para agir
como um governante cristão e fazer uma guerra justa. Entramos assim num debate interminável
sobre as condições de uma guerra justa, desde o decreto de Graciano até S. Tomás. Tudo isto deriva
do primeiro impulso para uma guerra santa, e foi o exemplo muçulmano que acabou por inspirar esta
terrível negação de que toda a cristandade se torna culpada.
72

Temos ainda de examinar uma subversão muito diferente. Trata-se da piedade, da relação com
Deus. Vemos nela uma influência de que já falámos de passagem. Todas as crianças nascem supos-
tamente muçulmanas, pois o Islão é a perfeita conformidade com a natureza. Os estudiosos argu-
mentam, então, que é através de uma má influência ou do ambiente “cultural” que este bebé, que
é por natureza muçulmano, se desvia da verdade e se torna judeu, cristão ou pagão. O pensamento
evangélico é exatamente o oposto. Só nos tornamos cristãos pela conversão. Só a conversão, cons-
ciente e reconhecida, desde que haja confissão com os lábios e fé no coração, produz o cristão. Este
novo nascimento, oposto ao nascimento natural, é confirmado pelo sinal exterior do batismo, que
parece implicar um reconhecimento expresso da fé. Mas, progressivamente, esta visão rígida enfra-
quece. Os padres da Igreja analisam os sacramentos, e desenvolve-se a tendência para uma com-
preensão do opus operatum. O sacramento é intrinsecamente eficaz. O batismo deixa de ser um
sinal da graça convertedora e torna-se em si mesmo um instrumento de salvação. Assim, se quiser-
mos que as crianças, naturalmente condenadas devido à transmissão do pecado original, sejam
salvas, devemos batizá-las imediatamente após o nascimento, para evitar o risco de morrerem pri-
meiro. A salvação, portanto, vem quase no momento do nascimento. Ao mesmo tempo que se rea-
valia a natureza, que não é agora radicalmente má, ganha terreno a convicção de que a alma é “na-
turalmente” boa e salva, que existe apenas um obstáculo, uma falha, e que o pecado original é ape-
nas um obstáculo que o batismo ultrapassa.

Rapidamente se espalhou a fórmula de que a alma é cristã por natureza, o que é a contrapartida da
visão muçulmana. Ora, a ideia de que a fé é natural, de que se é colocado num estado cristão por
hereditariedade, de que ser cristão é de facto uma espécie de estatuto na sociedade, que implica
ao mesmo tempo a pertença à Igreja e à sociedade (tal como a excomunhão é a exclusão da Igreja
e da sociedade), é exatamente o contrário da obra de Jesus Cristo. Temos de insistir que a Cristan-
dade, neste sentido, se sobrepõe à Igreja e que duplica exatamente o que é ensinado pelo Islão.
Uma vez aceite a teoria de que “a alma é cristã por natureza”, a sociedade tem de ser constituída
por cristãos. Não há alternativa. Já com os imperadores cristãos, houve um impulso nesse sentido.
Mas foi o exemplo muçulmano que se revelou decisivo. O refrão é sempre o mesmo. É preciso ultra-
passar o Islão, e isso significa imitá-lo.

Ora, temos de dizer que isto é exatamente o oposto do que se pode ver nos Evangelhos e em Paulo.
Nega o valor redentor e único da morte de Jesus Cristo. Se a natureza humana não é totalmente
incapaz de ter acesso a Deus, se ela está naturalmente em harmonia com a vontade de Deus, qual
é o sentido da morte de Jesus Cristo? Não era de modo algum necessário que Deus viesse entre nós,
que Jesus obedecesse à vontade do seu Pai até ao ponto de aceitar a morte por causa do mal que
impera sobre os humanos. A impossibilidade de podermos estar em harmonia com Deus é demons-
trada pelo facto de rejeitarmos o santo e o bom, o amor e a verdade, na pessoa de Jesus. Inconsci-
entemente, a imitação do Islão rouba à morte de Jesus Cristo a sua máxima seriedade.

Neste domínio da relação com Deus, o cristianismo revela a influência do Islão também em dois
outros pontos: a mística e a obediência. A mística não é essencialmente cristã. Eu diria mesmo que,
na sua forma final, é mais anticristã. Sei que isto vai provocar dor e raiva em alguns círculos. No
entanto, quando olho para a Bíblia, quase não encontro exemplos de místicos. Paulo alude à sua
própria experiência; ele conhecia um homem que foi elevado ao terceiro Céu, e não sabia dizer se
isso era com ou sem o corpo. Mas ele não procurava intencionalmente a união com Deus. Ele não
se envolveu num movimento de ascensão. Foi apanhado ou levado por uma força exterior, como o
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carro de fogo que apanha Elias ou a mão de Deus que levanta Daniel. Nada mais. Encontramos pro-
fetas no Antigo Testamento e apóstolos no Novo. Na enumeração dos dons espirituais não há men-
ção de dons místicos. Dizem-nos para imitar Jesus Cristo, mas não para alcançar a união com Deus
através de uma ascensão mística.

Quando os apóstolos são investidos de poder espiritual, é por meio de línguas de fogo que descem
do Céu. Não se trata de união com Deus. Só Jesus está em união total com Deus. Essa união resulta
do facto de Deus descer até nós, e não da nossa intensidade espiritual, da nossa ação psicológica
ou de qualquer tentativa de subir até ele. A ideia de uma possível união com Deus é excluída pela
revelação dos querubins que impedem o regresso ao Paraíso. Como tenho dito muitas vezes, não
há subida possível a Deus, nem acesso a ele. Mas é isso que os místicos procuram apaixonada-
mente. Eles querem a união com Deus. Têm uma disciplina. Seguem um caminho para o vazio inte-
rior onde a alma é preenchida pelo Espírito Santo e o acesso se abre a Deus. Isto é exatamente o
oposto do que a Bíblia ensina.

A antítese é ainda mais radical se aceitarmos a etimologia comum, segundo a qual “místico” vem
de muein, ficar mudo ou sem fala. Como é que isto é possível, se a obra de Deus é toda ela a da
Palavra? O próprio Deus fala e convida-nos a dar testemunho pela Palavra. Não poderia haver maior
contradição. De facto, todas as experiências místicas são inefáveis, e Paulo é totalmente contra
qualquer coisa deste género. Se seguimos Jesus, isso não se trata de olhar para o céu (“Porque
olhas para o céu?”, etc...), mas de estar na terra e viver concretamente a vontade de Deus que se
realizou em Jesus Cristo.

Mas o misticismo é um aspeto fundamental da religião muçulmana. Há aqui, sem dúvida, uma cor-
relação com o Oriente. Sabemos até que ponto as pessoas procuram fenómenos extáticos e místi-
cos, recorrendo a drogas e a técnicas somáticas para alcançar esse conhecimento abstrato, essa
fusão com Deus. Jejuns, danças extenuantes, silêncio absoluto, haxixe, etc... - todas as coisas são
boas e conduzem a esse conhecimento abstrato, a essa fusão com Deus. Abundam os grandes mís-
ticos muçulmanos. Mais uma vez, antes da relação com o Islão, podem-se perceber certas tendên-
cias místicas no cristianismo, especialmente a tendência que deriva do gnosticismo e do neoplato-
nismo. Mas esta tendência era vista com desconfiança e não constituía uma parte gloriosa da vida
cristã ou da Igreja. Em contrapartida, a mística está diretamente ligada ao Islão, faz parte do seu
desenvolvimento espiritual. Não nos enganemos; quando falo do desejo de subir até Deus, isso não
significa orgulho e conquista, pois os místicos vêem-se a si próprios como objetos que são aniqui-
lados em Deus. Mas também aqui a orientação bíblica é muito diferente. Além disso, não estou a
dizer que a influência do Islão seja a única a este respeito. O que quero dizer é que foi decisiva para
o desenvolvimento do misticismo como expressão da fé cristã.

O segundo aspeto parece-me ser o essencial, e não é de todo estranho ao primeiro. O Islão significa
submissão (à vontade de Deus). Tal como os místicos se negam a si próprios para dar lugar a Deus,
também os muçulmanos têm a mesma orientação religiosa. Não se trata apenas de obediência,
mas de submissão. À primeira vista, isto parece estar em plena conformidade com a revelação bí-
blica. Sabemos o papel importante que desempenha na piedade atual a fórmula mektoub, que foi
escrita. Temos de nos submeter à vontade soberana, preexistente, eterna e imutável de Deus. Toda
a história, todos os acontecimentos da história, todas as coisas que acontecem na vida de cada um
já foram decretadas e fixadas de antemão e escritas por Deus. Na realidade, isto é exatamente o
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contrário do que nos é dito sobre o Deus bíblico, que nos abre a liberdade, que nos deixa fazer a
nossa própria história, que nos acompanha nas aventuras mais ou menos inauditas que nós inven-
tamos. Este Deus não é “providência” (que nunca é uma palavra bíblica). Ele nunca é uma causa
determinante ou um condutor irredutível dos acontecimentos. O Deus bíblico é aquele que resta-
belece incessantemente a nossa liberdade humana, quando continuamos a cair na escravidão. Ele
entra incessantemente em diálogo connosco, mas apenas para nos avisar do bem, para nos pôr em
guarda, para nos associar à sua vontade; nunca para nos forçar. Também aqui a tendência para
acreditar num Deus que, por ser omnipotente, é também omnisciente (o que pressupõe que tudo
já está dito) já estava presente no pensamento cristão quando este foi invadido por certos elemen-
tos do pensamento grego. No entanto, no início, os temas da salvação e do amor foram sempre
dominantes. Creio que foi o rigor da piedade muçulmana que realmente conduziu os cristãos por
este caminho.

Se fizermos prevalecer a omnipotência de Deus sobre o seu amor e a sua autonomia, a sua trans-
cendência sobre a incarnação e a libertação, então pensamos na sua omnisciência como uma ins-
crição da história e dos acontecimentos num nexo de acontecimentos já estabelecido, imutável e
que se realiza de um só golpe. Então, não temos de entrar num diálogo com Deus, ou num monó-
logo que, como o de Jó, exige uma resposta de Deus, mas simplesmente temos de nos submeter à
vontade imutável e, num verdadeiro sentido, desumana de Deus. Toda a Bíblia, quer no Antigo Tes-
tamento, quer nos Evangelhos, nos diz que não existe destino ou fatalidade. Tudo isso é substituído
pelo amor e, por conseguinte, pela alegre liberdade que os primeiros cristãos experimentaram. Mas,
gradualmente e de forma insidiosa, o destino regressa.

Admito que, mais uma vez, as crenças populares perpetuaram a ideia romana de fatum (fado) e que
a ideia de libertação do destino teve um caminho difícil a percorrer. Admito também que o pensa-
mento filosófico inclinou os teólogos para problemas deste género: Se Deus é omnipotente, é ele
que faz todas as coisas (cf. o erro de tradução de Mt 10.29), ele não é apenas a causa sui mas a causa
das causas ... e tanto o futuro como o passado estão diante dele. Por isso, o nosso futuro já existe
para Deus. Nós não vivemos nada, não construímos nada e não podemos mudar nada. Mas é preciso
compreender que se trata de questões lógicas que nada têm a ver com o que a Bíblia nos revela.
Esta lógica tende a assemelhar o Deus bíblico às ideias romanas de deus. Para unir as relíquias da
crença popular e as deduções filosóficas, era necessário apenas um novo contributo, e penso que o
Islão o forneceu com a sua conceção específica do Deus omnipotente, que retém apenas um aspeto
do Deus hebraico e o absolutiza.

A partir de agora, o destino e a omnisciência divina estão unidos. Os crentes podem viver em per-
feita paz, porque sabem que tudo está escrito de antemão e que nada podem mudar. A própria
fórmula “Estava escrito” só poderia vir de uma religião do livro. No entanto, a Bíblia hebraica e os
Evangelhos nunca utilizam essa fórmula. Graças a ela, a ideia de predestinação que já assombrava
o pensamento filosófico e cristão foi confirmada, impôs-se e passou a incluir a dupla predestinação
(em Calvino), que, quer queiramos quer não, transforma o Deus bíblico em destino, Ananke, etc... E
isto deriva do pensamento muçulmano. Com efeito, não se trata apenas de acontecimentos histó-
ricos escritos antecipadamente, mas também de salvação (ou rejeição) eterna. Esta convicção aca-
bou por dominar uma boa parte da cristandade e o paganismo junta-se-lhe com a sua crença no
deus do destino.
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Finalmente, temos de ter em conta alguns contributos bastante diferentes do Islão, não direta-
mente no campo teológico, mas com referência a algumas implicações sociais da crença que são,
em todos os pontos, inconsistentes com a ética cristã. Já nos deparámos com uma delas: a guerra
santa. Uma segunda, sobre a qual não me alargarei, uma vez que já a estudámos, é o estatuto da
mulher. Outra dificuldade que se coloca no Islão a este respeito é que os muçulmanos modernos
afirmam que as mulheres são em tudo iguais aos homens e completamente livres, que o Islão foi
um movimento de emancipação feminina. No entanto, podemos ir ao ponto de dizer que, em ne-
nhum outro lugar, as mulheres estiveram mais sujeitas do que no território muçulmano.42 Os casa-
mentos são arranjados para raparigas jovens, as mulheres são reduzidas a escravas dos homens
das famílias pobres e colocadas nos haréns dos ricos; as mulheres não têm direitos, não têm pro-
priedade - tudo isto é indiscutível. Para além disso, a conhecida questão de saber se as mulheres
têm alma (a Igreja tem tido problemas por colocar esta questão, e alguns alegaram erradamente
que nos séculos XI e XII ela dizia que as mulheres não tinham alma) é uma questão que, na realidade,
foi colocada por teólogos muçulmanos. Antes de os teólogos árabes levantarem a questão, ninguém
no mundo cristão tinha dúvidas sobre o assunto. De facto, apesar da fábula anti-cristã difundida
com tanta satisfação, o célebre Concílio de Mâcon (585), ao qual se faz frequentemente referência,
não tratou do assunto, como H. Leclercq demonstrou de forma incontestável no seu artigo no Dic-
tionnaire d'archéologie chrétienne (5:1349). A lenda polémica assenta apenas em algumas linhas
mal compreendidas de Gregório de Tours sobre o assunto, em que a questão é puramente grama-
tical, nomeadamente se a palavra homo é um termo genérico que também se pode aplicar às mu-
lheres (sendo a resposta afirmativa), e não de carácter teológico, se as mulheres são seres humanos
dotados de alma. Nem o cristianismo nem a Igreja negaram alguma vez que as mulheres têm alma.
Além disso, foi certamente apenas nas terras ocidentais sujeitas ao domínio muçulmano que a po-
sição das mulheres se deteriorou. Não é possível fazer um estudo pormenorizado, mas a resposta à
questão teria de ser dada de acordo com as linhas que indiquei.

Tenho de admitir que a história cristã deu uma volta incrivelmente triste em dois outros domínios.
O primeiro diz respeito à escravatura. Não de uma só vez, mas progressivamente, sob a influência
cristã (e não devido a melhorias técnicas, como hoje se afirma frequentemente), a escravatura de-
sapareceu no império romano. Persistiu, no entanto, em cantos remotos do império carolíngio. Po-
demos notar, entretanto, duas correntes: uma do Norte (os eslavos), outra do Mediterrâneo. Mas a
sua incidência é insignificante e episódica. A tese geral de que deixou de haver escravatura na cris-
tandade é verdadeira. Assim, a proclamação de que “todos no reino de França são livres” era cor-
reta, e até se admitia (embora talvez teoricamente) que, no momento em que os escravos chega-
vam a França, o simples facto de pisarem o solo francês os tornava livres. Isto estava totalmente de
acordo com o pensamento cristão.

No entanto, a partir do século XV, com o desenvolvimento do conhecimento de África, e depois,


sobretudo nos séculos XVII e XVIII, temos a história familiar e terrível da escravização dos africanos,
que foram arrancados do seu país e transportados para a América. Que acusações foram feitas con-
tra o “cristianismo” e a civilização ocidental! E com razão! Como foi tomada de ânimo leve a reve-
lação de Cristo, que teria proibido total e radicalmente e sem reservas a escravatura. Na Idade Mé-
dia, o tráfico de escravos teria, sem dúvida, levado à excomunhão. No entanto, é curioso que, para
além de alguns historiadores conscienciosos, ninguém tenha colocado a questão elementar de

42Cf. o excelente estudo de G. Bouquet, L'Éthique sexuele de l'Islam (Paris: Maisonneuve, 1966). A prática do próprio profeta
também não era particularmente edificante para as mulheres, e os muçulmanos são aconselhados a copiá-lo em tudo.
76

saber como é que alguns navegadores ocidentais puderam reunir milhares de escravos entre povos
que não eram de modo algum parecidos com ovelhas. Poderiam cem marinheiros franceses,
mesmo armados de mosquetes, atacar uma tribo de várias centenas de guerreiros resistentes e
apoderar-se de um carregamento de escravos? Essa ideia é pura ficção. Durante séculos, os muçul-
manos exploraram regularmente o continente negro em busca de escravos. A captura de africanos
como escravos era uma prática muçulmana pelo menos desde o século X. As tribos africanas eram,
neste caso, atacadas por exércitos consideráveis, em verdadeiras invasões, das quais teremos de
falar mais tarde.43

Os muçulmanos levaram para o Oriente muito mais escravos negros do que os ocidentais. No século
XI, os árabes criaram quinze grandes mercados de escravos na África negra. A leste, estendiam-se
até ao outro lado de Madagáscar [atual Moçambique] e, a oeste, até ao Níger [atual rio Guiné]. Os
escravos foram o principal objeto do comércio muçulmano do século X ao século XV. Além disso, os
muçulmanos começaram a utilizar métodos políticos com os quais os mercadores ocidentais lucra-
vam. Os muçulmanos agitavam os chefes africanos uns contra os outros, de tal forma que um chefe
fazia prisioneiros de tribos vizinhas e depois vendia-os aos mercadores árabes. Era, seguindo esta
prática, estabelecida há muitos séculos, que os marinheiros ocidentais obtinham tão facilmente os
escravos. Naturalmente, a realidade em si é terrível e anti-cristã, mas vemos aqui a influência direta
do Islão na prática de ocidentais que eram cristãos apenas no nome. Convém igualmente recordar,
como o salientaram as Nações Unidas, que o comércio de escravos negros por mercadores árabes
continua a ser praticado nos países do Golfo de Omã.

Por fim, um último ponto: a colonização. Também aqui, desde há trinta anos, há quem ataque o
cristianismo por instigar o colonialismo. Os cristãos são acusados de invadir o mundo inteiro e de
justificar o sistema capitalista. Tornou-se uma crença tradicional que os missionários abriram o ca-
minho aos comerciantes. Sem dúvida que há alguma verdade em tudo isto. Sem dúvida, os cristãos
sérios e conscienciosos nunca deveriam ter aceitado a invasão dos povos do “Terceiro Mundo”, a
tomada das suas terras, a sua redução à semiescravatura (ou o seu extermínio), a destruição das
suas culturas. A sentença contra nós é esmagadora. Las Casas tem toda a razão. Mas quem inventou
a colonização? O Islão. Incontestavelmente!

Não voltarei a discutir a questão da guerra nem o estabelecimento de reinos dominados pelos ára-
bes em África. O meu tema é a colonização, a penetração por outros meios que não os militares, a
redução dos povos súbditos por uma espécie de tratado que os obriga a fazer exatamente o que os
governantes querem. No Islão, encontramos dois métodos de penetração, o comercial e o religioso.
A situação é exatamente a mesma que se verificará entre os ocidentais cinco séculos mais tarde. Os
missionários muçulmanos convertem os africanos ao Islão por todos os meios possíveis. Também
não se pode negar que a sua intervenção tem exatamente os mesmos efeitos que a dos missionários
cristãos: a destruição das religiões e culturas independentes das tribos e reinos africanos. Também
não devemos apoiar o argumento estúpido de que se tratava de um assunto interno do mundo afri-
cano. Os muçulmanos chegaram ao Norte por conquista, e os árabes são brancos. Os missionários
muçulmanos foram até Zanzibar e, em Angola, integraram na órbita muçulmana povos africanos
que não tinham sido conquistados ou subjugados.

43Para além das guerras, encontramos também expedições brutais que eram montadas apenas para capturar prisioneiros
como escravos ou para levar rebanhos e mulheres. Para estas, a palavra é razzia, um bom termo árabe.
77

O outro método é o do comércio. Os mercadores árabes vão muito mais longe do que os soldados.
Fazem praticamente o mesmo que os ocidentais farão cinco séculos mais tarde. Estabelecem pos-
tos de comércio e negoceiam com as tribos locais. Não deixa de ser interessante o facto de uma das
mercadorias que procuravam nos séculos X e XI ser o ouro. O comércio do ouro pelos árabes teve
lugar no Gana, a sul do Níger, e na costa oriental, até Zanzibar. Quando se diz que o desejo de ouro
incitou os Ocidentais no século XV, eles estavam simplesmente a seguir as pegadas do Islão. Assim,
o mecanismo árabe de colonização serve de modelo aos europeus.

Para concluir, quero deixar claro que não estou a tentar desculpar o que os europeus fizeram. Não
estou a tentar transferir a “culpa”, a dizer que os muçulmanos, e não os cristãos, são os culpados.
O meu objetivo é tentar explicar certas perversões da conduta cristã. Encontrei um modelo para
elas no Islão. Os cristãos não inventaram a guerra santa nem o tráfico de escravos. A sua grande
falha foi imitar o Islão. Por vezes, foi uma imitação direta, seguindo o exemplo do Islão. Por vezes,
foi uma imitação inversa, fazendo a mesma coisa para combater o Islão, como nas Cruzadas. De
qualquer forma, a tragédia foi que a igreja esqueceu completamente a verdade do evangelho. Virou
a ética cristã do avesso em favor do que parecia ser obviamente um modo de ação muito mais efi-
caz, pois no século XII, e posteriormente, o mundo muçulmano oferecia um exemplo deslumbrante
de civilização. A Igreja esqueceu a autenticidade da revelação em Cristo para se lançar na busca da
mesma miragem.
78

Capítulo 6

PREVERSÃO POLÍTICA

O PONTO DE PARTIDA

Uma vez que há tantos mal-entendidos sobre este assunto, talvez valha a pena recordar as linhas
gerais do pensamento bíblico e evangélico sobre a política do Estado. Todo este ensinamento foi
maciçamente obscurecido pela tentativa de justificar ou validar o poder político. Em Israel, isto tem
o seu início com David e, na cristandade, com a afirmação demasiado célebre de Paulo de que toda
a autoridade vem de Deus. Naturalmente, não posso passar em revista tudo o que a Bíblia ensina
sobre poder e política; já escrevi demasiado sobre o assunto para começar tudo de novo. Limitar-
me-ei a recordar as minhas principais teses e, quanto ao resto, remeterei o leitor para os meus mui-
tos escritos sobre a questão.44

O pensamento central é que, já no Antigo Testamento, apesar da existência de Israel como nação,
mas especialmente no Novo, onde a Igreja, o “novo Israel”, não é um Estado, a visão bíblica não é
apenas apolítica, mas anti-política, no sentido em que se recusa a conferir qualquer valor ao poder
político, ou no sentido em que considera o poder político como idólatra, implicando inevitavel-
mente a idolatria. O cristianismo não oferece qualquer justificação para o poder político; pelo con-
trário, questiona-o radicalmente. Recordo três fatores que me limitarei a enumerar. No Antigo Tes-
tamento, o governo dos “juízes” é apolítico. Deus é o único rei e o juiz, escolhido diretamente por
Deus, é criado para um momento de crise. O governo é não-estatista; não existe uma organização
perene do poder. Em segundo lugar, temos a origem da monarquia. O povo hebreu quer um rei, con-
tra a vontade de Deus (1Sm 8). A organização monárquica é formalmente condenada com argumen-
tos que são sempre válidos.45 Em terceiro lugar, temos a estranha avaliação dos reis de Israel e da
Samaria em Reis (e Crónicas), onde se diz constantemente que os reis que são grandes do ponto de
vista mundano, - que são vitoriosos, magníficos e ricos - são maus reis perante Deus. Por outro lado,
os reis derrotados que sofrem apenas contratempos são descritos como fiéis e devotos. 46 A

44Ver, entre outros, Les Chrétiens et l'Etat (Mame, 1967); “Anarchie et Christianisme”, Contrepoint (1974); ET “Anarchism and
Christianity,” Katallagete 7 (1980); “La politique, mal absolu”, La Foi au prix du doute (Paris: Hachette, 1980); ET Living Faith
(San Francisco: Harper and Row, 1983); “Aliénation et Temporalitédans le droit”, Temporalité et Aliénation (Paris: Au- bier,
1975); “Les origines de la monarchie en Israël”, Mélanges Brethes de la Gressaye (1970); L'Idéologie marxiste-chrétienne (Paris:
Le Centurion, 1979).

45Não estamos aqui a opor-nos ao esplendor de David, querido por Deus, porque Deus escolheu David. Escolheu-o apesar
da monarquia e fez dele uma testemunha apesar da política, como já expliquei longamente noutro lugar.

46Para evitar mal-entendidos, gostaria de salientar que estes reis não são chamados bons e corretos porque são derrotados
e miseráveis. A correlação é simples: são devotos e bons diante de Deus, mas depois revelam-se reis pobres que não têm
sucesso político.
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avaliação contundente do Eclesiastes demonstra de forma terrível a inutilidade, a futilidade e a in-


significância do poder político.

Os Evangelhos oferecem outros factos a título de orientação, que voltarei a enumerar simples-
mente.

Numa das tentações, satanás oferece-se para dar a Jesus todos os reinos do mundo, ou seja, os
reinos e o poder político que lhes está associado, o que Jesus não contesta.

Jesus recusa-se a responder à pergunta sobre o imposto. O seu “dai a César” não implica que haja
dois reinos, mas que tudo pertence a Deus. Se César se encarrega de fabricar certas coisas, como
peças de dinheiro, devemos devolvê-las a ele; essas coisas não têm interesse nem importância.

Jesus paga o imposto (político) do templo com duas moedas tiradas da boca de um peixe. Este
milagre absurdo exprime um simples escárnio e mostra, uma vez mais, que estes assuntos não têm
importância. Do mesmo modo, Jesus recusa-se a arbitrar entre dois homens que estão a disputar
uma herança. Ele não veio para tratar de problemas jurídicos, não tem nada a ver com o direito. As
suas relações com os zelotes mostram o mesmo ponto de vista. Pelo menos dois zelotes seguem-
no, mas ele “neutraliza-os”. Não entra na sua luta política nem os apoia. Muito pelo contrário. Isto
está de acordo com a sua recusa de oferecer resistência quando é preso e com a ordem que dá a
Pedro de não o defender.47

Do mesmo modo, Jesus encontra o mesmo erro tanto nos saduceus como nos fariseus, tanto nos
que colaboram com os romanos como nos que se lhes opõem. Aos olhos de Jesus, ambos estão
errados. Ele não quer participar no drama político. Se chama a si os zelotes, chama também os que
colaboram com os invasores (os cobradores de impostos). A sua proclamação: “O meu Reino não é
deste mundo”, implica que é de facto um Reino, mas que não tem qualquer relação com os reinos
políticos; a nossa única grande preocupação deve ser a de procurar o Reino dos Céus e a sua justiça48
(que se exprime, evidentemente, na terra), e tudo o resto nos será acrescentado. A ação política e
as coisas que dizem respeito ao Estado não têm interesse.

Finalmente, temos a resposta a Pilatos: “Não terias poder sobre mim, se de cima não te fosse dado”.
Estranhamente, este texto tem sido lido como uma validação do poder de Pilatos por parte de Je-
sus, como se o “lá de cima” fosse uma referência a Deus. Porque se segue a afirmação de que aquele
que entregou Jesus a Pilatos é o mais culpado. Quem é que fez isso? Judas? Caifás? Tais ideias se-
riam triviais numa relação desta intensidade. Jesus não pode ter considerado Judas mais culpado
do que Pilatos. Ele não era assim tão importante. Penso que a única ligação entre as duas afirma-
ções se estabelece se o “do alto” não designar nem Deus nem o imperador, mas a exousia do poder
político, que é uma exousia rebelde, um anjo em revolta contra Deus. De que outra forma podemos
conciliar esta afirmação (da qual alguns deduzem que, segundo Jesus, o poder de Pilatos deriva do
poder de Deus) com a atitude geral de Jesus, que é de indiferença e de rejeição, envolvendo o

47A pergunta se os discípulos têm espadas e a resposta de que bastam duas são certamente irrisórias. Deduzir que os discí-
pulos tinham um stock de armas e que Jesus estava prestes a revoltar-se é absurdo e contradiz os relatos. Jesus está a troçar
das medidas de defesa que os seus discípulos têm em mente.

48Podemos recordar a ignóbil perversão desta frase no concílio ecuménico de 1960, quando um delegado concluiu o seu
discurso com as palavras: “Procurai primeiro o reino político, e tudo o resto vos será acrescentado”.
80

silêncio, ao recusar por três vezes responder às perguntas de Pilatos, a ironia (És rei? És tu que o
dizes) e a dupla descentralização (És rei? O meu Reino não é deste mundo; és rei? Eu vim para dar
testemunho da verdade)? Não há melhor maneira de enganar a autoridade. E depois de tudo isto,
devemos pensar que Jesus diria que a autoridade vem de Deus? Toda esta ideia é manifestamente
errada.

Finalmente, podemos recordar a espantosa sugestão de que, ao submeter-se à autoridade de Pila-


tos para julgar, Jesus valida essa autoridade e mostra que a reconhece. É espantoso que grandes
teólogos possam apoiar uma tal tese. Há duas objeções a esta tese. Em primeiro lugar, Jesus estaria
a validar uma autoridade que é injusta no seu exercício, pois este exercício implica uma renúncia
ao poder (Pilatos cede à multidão) e condena um inocente. Em segundo lugar, seria necessário alar-
gar o argumento, pois Jesus deixa-se prender pelos soldados, o que implicaria a validação da polí-
cia e da organização militar, o que é pedir demasiado. Em geral, sou assim obrigado a dizer que a
atitude de Jesus não é apenas apolítica, mas é efetivamente anti-estatista e anti-política.

Nesta enumeração (e estou apenas a enumerar, a recordar e a fazer um levantamento), há que men-
cionar também o Apocalipse.49 Aqui o poder político é assimilado à guerra e à espada (o cavalo ver-
melho) e a sua destruição é anunciada com firmeza. A Babilónia, que simboliza Roma, constitui o
foco de todo o mal terrestre sob a forma de poder político. Face a esta constatação unânime e cons-
tante, que peso têm os dois textos de Paulo (que é preciso contextualizar) e o texto ambíguo de 1
Pedro?50 Penso que o ensinamento bíblico é claro. Contesta sempre o poder político. Incita ao “con-
tra-poder”, à crítica “positiva”, a um diálogo irredutível (como aquele entre rei e profeta em Israel),
ao anti-estatismo, a uma descentralização da relação, a uma relativização extrema de tudo o que é
político, a uma anti-ideologia, a uma contestação de tudo o que reivindica poder ou domínio (por
outras palavras, de tudo o que é político) e, finalmente, se pudermos usar um termo moderno, a
uma espécie de “anarquismo” (desde que não relacionemos o termo com o ensino anarquista do
século XIX).

Não podemos, no entanto, ficar-nos por esta breve análise. Temos, pelo menos, de investigar uma
questão que não abordei noutros lugares, a do texto dos Evangelhos. Uma abordagem comum dos
historiadores do período de Jesus e dos especialistas do Novo Testamento é que não só Paulo per-
verteu a mensagem de Jesus (uma visão comum desde o século IV), como também os próprios
evangelistas o traíram. Jesus era supostamente uma pessoa muito realista, que vinha de um meio
de pobreza e tinha poucas preocupações “espirituais”, concentrando-se antes nas questões políti-
cas do seu tempo. Em primeiro lugar, a sua mensagem era social e política. Era isso que perturbava
os romanos, que tinham de lidar com constantes motins ou movimentos de revolta. Segundo estes
autores, é preciso situar Jesus no contexto de um conflito de classes ou de uma luta anti-romana.
A primeira comunidade cristã era supostamente do mesmo género. Depois veio a “espiritualização”
e a mensagem de Jesus foi desencarnada e passou para o campo religioso e espiritual.

O problema é que há muito pouco no texto e nada fora dele para apoiar esta tese. Como provar esta
orientação de Jesus a partir dos textos que os evangelistas trabalharam? Escolhem-se alguns ditos

49Cf. J. Ellul, L'Apocalypse, architecture en movement (Paris: Desclée de Brouwer, 1975); ET Apocalypse: The Book of Revelation
(Nova Iorque: Seabury, 1977).

50Este texto é ambíguo, pois não se refere ao imperador ou senhor, mas ao rei, que dificilmente poderá ser o imperador
romano, uma vez que o imperador nunca teve este título.
81

e ações: as duas espadas, Jesus a expulsar os mercadores com um chicote, Jesus a amaldiçoar os
ricos, os zelotes entre os discípulos. Ou então decide-se entre duas versões. O melhor exemplo disto
são as bem-aventuranças, onde Lucas diz que os pobres económicos ou financeiros são abençoa-
dos, mas Mateus suaviza para os pobres de espírito. Essa alteração supostamente prova que os dis-
cípulos espiritualizaram a mensagem de Jesus, tirando-lhe a força revolucionária e desmateriali-
zando-a.

Devo dizer que este tipo de exposição me deixa furioso. Porque é que Lucas (que muitos estudiosos
colocam depois de Mateus) é quem nos dá a versão original? Não se admite que Lucas é frequente-
mente influenciado por Paulo, que tem grande parte da culpa pela transição para uma forma mais
religiosa da mensagem de Jesus? Com base em que critério é que a versão material é considerada
primária e a outra uma suavização que não vem de Jesus? Os argumentos com que me deparei são
fracos. Recordemos alguns deles. É “evidente” que a nossa primeira preocupação é a alimentação
e a vida material. A religião vem depois. Não é menos evidente que os discípulos tiveram medo após
a condenação de Jesus. Renunciaram à agitação política e transformaram a mensagem numa men-
sagem religiosa, para evitar a repressão política. É evidente, mais uma vez, que o que é espiritual
não é muito importante, que representa um enfraquecimento ou um amolecimento. Finalmente,
segundo a fórmula inteligente e vital de Loisy (que é muitas vezes tratada publicamente com con-
descendência!), as pessoas esperavam o Reino de Deus e o que veio foi a igreja. Os bons discípulos,
que não compreenderam nada de Jesus, instalaram-se no mundo quando o Reino de Deus não che-
gou. Encarcerados na esfera religiosa, alteraram o que Jesus disse, embora na sua estupidez e como
que por descuido tenham deixado alguns vestígios da mensagem original. De facto, foram suficien-
temente pervertidos para se desviarem tão profundamente do que o Mestre disse que a sua falta de
compreensão é evidente. O Evangelho de João dá a mão à palmatória, mostrando que, sempre que
Jesus fala, as suas palavras são apreendidas de forma material e concreta, e Jesus corrige imedia-
tamente este erro, mostrando que todas as suas palavras devem ter um sentido espiritual. Por ou-
tras palavras, a perversão subtil desta primeira e segunda geração consiste numa inversão do erro.
Foi necessária uma verdadeira luta para chegar a esse resultado.

Considero que a interpretação política e militante dos Evangelhos, embora avançada por bons e
honestos exegetas, é ela própria uma falsificação. Na exegese não há, de facto, um procedimento
puramente científico; há uma escolha de valores. Os nossos especialistas ocidentais revelam as
suas próprias personalidades. Nas suas discussões, consideram o material mais importante do que
o espiritual. Pensam que as gerações anteriores se interessavam apenas por questões de poder,
propriedade e consumo. Dizer que os pobres de espírito são bem-aventurados é menos grave e ex-
plosivo do que dizer que os pobres económicos são bem-aventurados. Aqueles que o dizem mos-
tram como estão imersos na mentalidade económica da sua época e como aderem fortemente à
ideologia do conflito de classes. Fabricam um Jesus político porque, para eles, a política é a reali-
dade mais importante. Explicam que os evangelistas “espiritualizaram” porque é o que eles teriam
feito se se encontrassem na mesma situação.

Jesus, dizem eles, estava fortemente preocupado com o conflito de classes e com a luta contra os
romanos, ou seja, com as batalhas políticas, porque, no seu lugar, eles próprios o teriam feito. Para
justificar a sua tese, teriam de resolver um certo número de problemas que nunca consideram. Em
primeiro lugar, é sabido que Jesus era frequentemente muito próximo dos essénios, se não mesmo
um deles. Mas estudos recentes mostram que, social e politicamente, ao contrário do que se
82

pensava antes, os essénios pertenciam à classe média, estavam bastante bem de vida e favoreciam
a cooperação com os romanos, ou pelo menos não eram seus adversários políticos. Bem, vamos
partir do princípio de que Jesus não teve nada a ver com os Essénios, por muito difícil que isso seja,
e passar à questão seguinte. A experiência de todos os grupos revolucionários, maquis, partisans,
guerrilheiros, é que, uma vez morto o líder, tudo se desmorona e o movimento se evapora. Em todos
os casos em que existe uma organização, uma estrutura ou uma instituição forte, e o partido per-
dura (como no caso dos leninistas), é porque o líder é uma personalidade carismática; quando ele
morre, não resta nada (o exemplo de Che Guevara é repetido centenas de vezes). Como é possível
que, quando Jesus foi morto, o seu pequeno grupo de supostos guerrilheiros políticos tenha sobre-
vivido? Colocado nestes termos, o facto é inexplicável. A resposta dada é que sobreviveu por se ter
tornado religioso. Mas isso não responde à questão de saber por que razão os discípulos quereriam
sequer sobreviver quando privados da sua cabeça, tanto mais que nenhum outro líder carismático
aparece para substituir Jesus durante cerca de quinze anos.

Uma terceira questão é a seguinte: Qual foi o objetivo de Paulo e dos evangelistas ao levarem a cabo
este processo de despolitização e espiritualização? Esta pergunta surge-me constantemente
quando leio que Paulo deformou tudo, que inventou um falso Jesus, etc... Qual era o seu objetivo
ou incentivo? Queria ser o chefe de uma seita judaica ou um grande filósofo? Mas a sua doutrina foi
ridicularizada pelos filósofos profissionais. A sua fé em Cristo obrigou-o a romper com a sua origem,
a sua família, a sua cultura, a cortar as suas raízes. O que é que ele queria a esse preço? Queria
fundar uma religião? Mas, então, por que razão colocou no centro o Jesus crucificado e não ele pró-
prio? E porque é que, entre tantos taumaturgos, profetas e rebeldes, escolheu um desgraçado der-
rotado há vinte e cinco anos e depois, em vez de fazer eco dos seus ensinamentos, fez deles algo
totalmente diferente? Por outras palavras, enquanto ninguém me conseguir mostrar qual foi o in-
teresse ou o motivo de Paulo nesta manipulação, considerarei as dissertações académicas sobre o
assunto, elaboradas por eruditos e exegetas, como simples fábulas, talvez científicas, mas sem
qualquer conteúdo objetivo. Pelo menos, temos de admitir que Paulo não era um simples idiota; as
suas cartas, em particular, excluem qualquer juízo desse género.

Uma quarta questão é a seguinte: Se os evangelistas, os discípulos e os primeiros grupos cristãos


suavizaram a mensagem de Jesus, se a tiraram do domínio político sério e perigoso e a colocaram
no domínio religioso, seguro e sem importância, para evitar a perseguição e a polícia de César, não
parecem ter tido muito sucesso. Como explicar então as perseguições e os martírios? Podemos re-
almente acreditar que os primeiros cristãos, que enfrentaram o martírio em condições bem conhe-
cidas por nós, mudaram realmente a mensagem de Jesus para tentar escapar-lhe? Isso não é ape-
nas absurdo, mas revela uma incompreensão típica da época. Naquele tempo, um crime religioso
era mais importante do que um crime político de rebelião. Era assim não só aos olhos dos judeus,
mas também aos olhos dos romanos, quando se tratava de uma questão religiosa suprema que
tocava em César imperador. Os cristãos rejeitaram o culto imperial - uma ofensa difícil de perdoar.
Um escrito como o Apocalipse é suficientemente claro a este respeito. Num ápice, poder-se-ia dizer
que, para se encorajarem, os crentes inventaram ou atestaram a ressurreição e fabricaram frases
que sugeriam uma realização posterior do Reino de Deus.51 Mas isso não é, em nenhum sentido,

51Numa obra que estou a escrever, a minha Ethique de al saintete, vou pôr em evidência, por um lado, a diferença entre o
Reino dos Céus (presente) e o Reino de Deus (futuro), e mostrar, por outro lado, que é um erro pensar que Jesus anunciou a
vinda e a realização imediatas do Reino de Deus. A mensagem da espera e da vigilância não é um complemento, um aspeto
secundário acrescentado ao ensinamento de Jesus; pelo contrário, é um eixo decisivo.
83

uma espiritualização da mensagem de Jesus. Não é uma elaboração da teologia da igreja em ter-
mos de atraso, esperança e espera. Por outras palavras, creio que, mais uma vez, os exegetas eru-
ditos avaliam a questão com a mentalidade dos intelectuais racionalistas, por um lado, e dos ho-
mens do século XIX, por outro.

A última e mais difícil questão é a seguinte: Se este grupo de primeiros cristãos depois de Jesus
Cristo tivesse realmente querido modificar ou manipular a sua mensagem, como o teria feito? Esta-
vam num clima de revolta endémica contra Roma. Estavam agitados pela morte do seu chefe. Com
a sua pregação, tinham chegado sobretudo a pessoas pobres, escravizadas e derrotadas. Se o seu
grupo não se tivesse dissolvido ao primeiro choque, o que é muito provável (ver acima), que mu-
danças teria efetuado? Tudo indica que qualquer transformação teria sido política. Nessas condi-
ções, muito provavelmente teriam feito exatamente o oposto do que é sugerido. Teriam transfor-
mado o que era espiritual e carismático em Jesus numa organização política e revolucionária. Uma
vez que, como vimos, não temiam o martírio, deveriam ter sido imediatamente levados a politizar
o seu movimento. Se a pregação de Jesus não os tivesse desviado da política para a esfera espiri-
tual, teriam sido inevitavelmente conduzidos para o caminho da revolta judaica contra Roma, para
a politização, para a formação de um partido, para conspirações, para uma aliança oriental com o
inimigo muito próximo e perigoso de Roma, o reino da Pártia. Teria sido estúpido pensar em recor-
rer à Grécia e a Roma. Por outras palavras, o movimento sociológico normal e espontâneo de um
grupo deste tipo não teria sido espiritualizar os ditos de Jesus, mas, pelo contrário, politizá-los, in-
sistir muito no “Bem-aventurados os financeiramente pobres” quando se dirigia aos escravos e aos
pobres, e não mudar a primeira bem-aventurança para “Bem-aventurados os pobres de espírito”,
“Deus está convosco”, o que não teria qualquer relevância para eles.

Na realidade, a interpretação atual é dominada pelo pensamento de Marx sobre o “ópio do povo”.
O aditamento “em espírito” teria como objetivo evitar que os pobres se revoltassem. Mas o que
pode fazer sentido como declaração de uma classe dominante ou de um aparelho de Estado ou de
uma igreja institucional é ridículo como declaração de um grupo pobre e sem poder que se dirige a
outros que são pobres. Assim, esta interpretação politizante do Evangelho, independentemente da
forma como a ela chegamos, está errada. Temos de defender o facto certo e seguro de que a Bíblia
nos traz uma mensagem que é contra o poder, contra o Estado e contra a política.52

52Volto a repetir que isto não significa que a mensagem seja apolítica ou puramente espiritual, que seja uma evasão, que se
limite a ensinar uma religião de piedade fechada em si mesma.
84

II

SUBVERSÃO PELO PODER53

Nos últimos trinta anos, nas igrejas protestantes, o “constantinianismo” tem sido acusado de ser a
fonte e a causa de todos os erros e desvios do cristianismo, como se fosse o autor de todos os males.
Esta apreciação inverte a glorificação tradicional, segundo a qual Constantino, milagrosamente
convertido, faz triunfar a verdadeira fé contra o paganismo e a heresia e permite que o cristianismo
se expanda em todos os domínios, com liberdade de pregação em todo o império e sem receio de
novas perseguições, como a mais recente, sob Diocleciano, que foi a mais feroz de todas para os
cristãos. Os historiadores examinaram com razão esta suposta “conversão” de Constantino. Não é
ser anti-cristão questionar seriamente a veracidade desta conversão, tal como a de Clóvis mais
tarde.

Foi demonstrado, com toda a imparcialidade, que essas conversões se coadunam tão bem com
uma política hábil que se podem encontrar motivos políticos e religiosos para elas. Havia necessi-
dade de reunir o maior número possível de apoiantes, e a Igreja Católica representava um grupo
considerável de pessoas. Era uma formadora de opinião. Quem tinha mais peso no exército - as
províncias? Os pagãos? Os hereges? Os católicos? Constantino apostou na Igreja Católica e ganhou.
Tudo isto é muito provável, mas não tem qualquer relação direta com a nossa investigação. Porque
temos de nos situar no seio da Igreja e da fé. Não estamos a perguntar se a conversão de Constan-
tino foi sincera, mas como é que ela resultou numa perversão da verdade cristã. Isto leva-nos à his-
tória concreta da conversão, à famosa visão da cruz no céu, com as célebres palavras In hoc signo
vinces, e à ordem de Cristo de fazer uma bandeira especial, o labarum,54 com o sinal da cruz. Tudo
isto aconteceu antes da batalha da Ponte Milviana contra Maxêncio, em 312 d.C.

É inútil referir o passado de Constantino, a sua excecional crueldade na guerra (por exemplo, as
atrocidades na guerra contra os Godos), a sua prontidão para matar até o sogro. Tudo isto estava
de acordo com a prática corrente e, afinal, não são os santos que Deus converte. A conversão pode-
ria ter sido autêntica, mesmo admitindo tais coisas. Mas a história real da conversão testemunha a
profunda corrupção do Evangelho. Grande parte da perversão já se tinha verificado. Como é que a
cruz, instrumento de castigo, sobretudo para os escravos, e sinal de uma derrota histórica de Jesus
no plano humano, pode agora ser apresentada como sinal de vitória política e militar? A cruz signi-
fica a salvação, atestando o amor de Deus até à morte por nós. Tem este significado e nenhum ou-
tro. Não pode ser um sinal de vitória militar. Sobretudo, não pode ser um sinal dado por um chefe
político poderoso. O que a cruz significa é a fraqueza e a humildade de Deus.

Ao longo do Antigo Testamento, vemos Deus a escolher o que é fraco e humilde para o representar
(o gago Moisés, o pequeno Samuel, Saul de uma família insignificante, David a enfrentar Golias,

53Cf. Michel Clevenot, Nouvele Histoire du christianisme, vol. 2, Les chrétiens et el pouvoir (Paris: Cerf, 1982). Trata-se de uma
obra interessante, mas que deve ser lida com cautela, dada a visão deliberadamente “materialista” do autor.

54 Sobre tudo isto cf. J.-M. Hornus, Évangile et labarum (Genebra: Labor et Fides, 1966).
85

etc...). Paulo diz-nos que Deus escolhe as coisas fracas do mundo para confundir as poderosas. Aqui,
porém, temos uma contradição gritante. Em Constantino, Deus está supostamente a escolher um
Augusto, um líder militar triunfante. Esta visão e este milagre são totalmente impossíveis. Mas não
são impossíveis no contexto de um cristianismo que já está fora dos carris, que pensa em Deus como
aquele que dirige a história e é a força motriz da política.

Superficialmente, isto pode parecer estar de acordo com o Antigo Testamento, onde vemos de facto
Deus a intervir nos acontecimentos históricos e a supervisionar a sucessão monárquica. Muito se
poderia dizer sobre este ponto. Na Bíblia judaica, porém, nunca se vê Deus a intervir na história,
exceto em relação ao seu povo, o povo de Israel. O que nos é dito é que ele conduz o seu povo. Mas
também lhes dá uma margem de manobra considerável e possibilidades reais de autonomia. O
Deus da história não é mais o engenheiro da história do que o da natureza. Ele não conduz a história
como um motorista conduz um automóvel. Nunca nos é dito que a história chinesa ou asteca é ma-
nipulada por este Deus de Israel. Esta visão é ainda mais errada quando pensamos na declaração
de Jesus de que o seu reino não é deste mundo. Aqui, na visão de Constantino, o Deus de Jesus
contradiz toda essa revelação. O reino de Jesus é deste mundo. Tem de ser estabelecido pelo poder
político. Tem de ser instalado por uma vitória militar. Isto é completamente inédito. Está em curso
uma campanha política e de propaganda. Mas o resultado é um desastre para a igreja e a fé. Do
ponto de vista da revelação, temos todas as razões para pôr em dúvida todo o “milagre” de Cons-
tantino.

Após a sua vitória na Ponte Milviana, fiel à sua promessa, Constantino favorece a Igreja de que re-
cebeu apoio. O cristianismo católico torna-se a religião do Estado e dá-se uma troca: a Igreja é in-
vestida de poder político e ela investe o imperador de poder religioso. Temos aqui a mesma perver-
são, pois como pode Jesus manifestar-se no poder de dominação e de coação? Temos de dizer com
muita força que vemos aqui a perversão da revelação pela participação na política,55 pela busca do
poder. A igreja deixa-se seduzir, invadir, dominar pela facilidade com que pode agora espalhar o
evangelho pela força (outra força que não a de Deus) e usar a sua influência para tornar o Estado
também cristão. É uma grande anuência à tentação a que o próprio Jesus resistiu, pois quando sa-
tanás se oferece para lhe dar todos os reinos da terra, Jesus recusa, mas a igreja aceita, sem perce-
ber de quem está a receber os reinos.

Não desconfio de modo algum dos excelentes motivos, da sinceridade e da fé dos líderes da Igreja
que fizeram essas alianças. Sem dúvida, eles pensaram que estavam a fazer a coisa certa,56 mas não
consultaram a luz da revelação. As consequências apareceram quase imediatamente e durariam
quase quinhentos anos. O cristianismo tornou-se a religião do Estado, e a combinação da verdade
cristã com o poder político levou à criação do complexo que tão bem conhecemos. O Estado repre-
senta a verdade. A Igreja exerce o poder. O imperador dota a igreja de forma generosa, ajuda-a em
tudo o que faz, ajuda-a na sua “missão”. A igreja apoia a legitimidade do imperador e assegura-lhe
que ele é o representante de Deus na terra. O versículo incidental de Paulo em Romanos 13 torna-

55J Ellul, “La politique, mal absolu”, in La Foi au prix du doute (Paris: Hachette, 1980); ET Living Faith (São Francisco: Harper
and Row, 1983).

56Como fazemos hoje, quando usamos os meios de poder na nossa própria sociedade com boa consciência. Assim, usamos
a televisão para difundir o Evangelho. Isto é constantinianismo, com as suas implicações positivas.
86

se o texto absoluto relativamente ao Estado e é traduzido para latim como omnis potestas a Deo. 57
O imperador começa então a perseguir os pagãos e a confiscar os seus templos para os entregar à
Igreja.

É assustador ver a facilidade com que a Igreja aceita tudo isto. Mal saiu da perseguição, começou ela
própria a perseguir. Mal tinha alcançado a paz, antes de ser corrompida pelo poder. Viveu constan-
temente da imagem dos seus mártires e santos. Mas também produziu mártires do outro lado.
Como a verdade tinha de ser uma garantia do poder imperial, começou a perseguir os hereges e,
em primeiro lugar, claro, aqueles que contestavam a verdade e a validade desta aliança entre o
império e a Igreja. O grande debate centrou-se nesta questão (cf. os circunceliões).

No mundo cristão, surgiam constantemente tendências para o anarquismo, para a rejeição da ali-
ança política, mas estas eram imediatamente condenadas. O imperador precisava da unidade da
Igreja para assegurar a unidade do império. Utiliza a Igreja como instrumento de propaganda esta-
tal que difunde simultaneamente a boa nova do cristianismo e a vontade de Deus expressa por Cé-
sar. A Igreja não vê como isso contradiz a vida e a pessoa de Jesus. É inegável que a subversão pelo
exercício do poder é o que acontece com os reis e os imperadores. Tem consequências tristes e
ridículas. A Igreja é um poder político, mas está sempre ao serviço do poder político instalado ou
em vias de instalação. Continua a servir o Sacro Império Romano-Germânico, mas também os reis
de França que dele se separaram. Abençoará todos os monarcas que tomam o poder de forma trá-
gica, tempestuosa, muitas vezes sangrenta e injusta. Ela legitima tudo. Isto é lógico, uma vez que
se associa ao poder existente.

Será republicana numa república como é monárquica numa monarquia. Encontram-se sempre ar-
gumentos teológicos irrefutáveis. Um regime monárquico reflete a unidade monárquica de Deus.
Uma república reflete o povo que Deus elege para si na terra. A democracia mostra que Deus se
associa à vontade dos povos. A tradição já estava bem estabelecida quando, no século VI, foi for-
mulada a ideia de que os atos de Deus na história se realizavam através dos Francos (a gesta Dei per
Francos). A Igreja podia então tornar-se nacional-socialista (os cristãos alemães) quando Hitler che-
gou ao poder. Pode tornar-se comunista (com figuras notórias como Bereczki e Hromádka) nos pa-
íses comunistas. De cada vez, desenvolve um argumento teológico para mostrar que o poder insti-
tuído é bom. As mudanças de direção da Igreja não são o escândalo. Representam simplesmente
uma expressão da fraqueza humana, mostrando que os cristãos, tal como as outras pessoas, estão
sempre prontos a adaptar-se ao que quer que seja. Uma vez que a Igreja está pronta a associar-se
ao poder instituído, é obrigada a associar-se a todas as formas de Estado. O escândalo é que, de
cada vez, a Igreja procura justificar tanto a sua adaptação como o poder existente. Continua a legi-
timar o Estado e a ser um instrumento da sua propaganda.

Servirá mesmo um Estado comunista. Não devemos esquecer que, na URSS, em 1943, Estaline co-
meçou a utilizar a Igreja Ortodoxa em prol da sua propaganda, especialmente com o lançamento
do seu famoso empréstimo de guerra. Como poderia a Igreja recusar-se a colaborar numa obra tão
eminentemente patriótica? Não é o Estado desejado por Deus? O tema teológico do Estado serve

57É espantoso que os teólogos não tenham refletido sobre esta fórmula, pois omnis potestas pode abranger todos os tipos
de violência e de domínio. Assim, o conquistador na guerra é um potestas. Será que ele representa Deus? Infelizmente, é o
que acaba por ser admitido. Apesar de todas as discussões sobre o modo de aquisição do poder ou sobre a qualidade do seu
exercício, essas questões são secundárias quando uma fórmula deste género é transformada num princípio absoluto.
87

muitos objetivos. Quando a igreja se torna socialista em apoio a um regime socialista, ela pode en-
fatizar os temas teológicos da pobreza e da justiça. Devemos ter em mente que tais verdades são
verdadeiras para nós apenas porque o poder reinante é socialista. Não são reconhecidas no século
V ou no século XVII. Pelo contrário, o tema de um reflexo da monarquia divina, tão proeminente
nessa altura, foi apagado agora que a monarquia praticamente desapareceu.

A culpa da Igreja encontra-se no processo de justificação do poder e da ação política. Eu defendo


que encontramos a mesma atitude e o mesmo erro nas teologias da revolução. Também elas são
constantinianismo. Conheço a resposta: A revolução ainda não instalou o poder; ainda não teve
êxito; está em oposição ao poder. É preciso reconhecer, no entanto, que a Igreja apostou muitas
vezes na ascensão do poder contra o poder existente, quando este está prestes a ser desalojado.
Vemos isso já no caso de Constantino, que ainda não gozava de poder quando a Igreja Católica o
apoiou. Vemos o mesmo com Lutero, quando ele se juntou à nobreza alemã contra o imperador.
Calvino também se associou à classe média em ascensão contra a nobreza e vários monarcas. Em
todo o caso, o erro é tentar justificar teologicamente um regime político, tentar dar-lhe um rótulo
cristão. Isso implica que a Igreja receberá autoridade e muitas vantagens em troca. A teologia da re-
volução é um mecanismo para justificar movimentos políticos que têm grandes hipóteses de êxito
e de instaurar as ditaduras de amanhã.

Sei que em resposta me vão dizer: a) que a Igreja não pode ser puramente espiritual e não se inte-
ressar pela política, e b) que nem todos os regimes políticos são iguais, que “nem todos os gatos
são cinzentos”, como Karl Barth disse vigorosamente.

Os factos são os seguintes. Desde 1935, tenho afirmado incessantemente que a Igreja deve exprimir-
se politicamente e que há que fazer opções. Mas há duas diferenças radicais em relação às opções.
A primeira é que, nas suas orientações políticas, a Igreja deve encontrar outro caminho. Não se deve
conformar com a época atual. Nada é mais falso do que dizer: “A sociedade apresenta-nos três ou
quatro opções, qual devemos escolher?” Na realidade, a Igreja deve inventar e inovar. Deve propor
algo de novo. Nunca deve servir de instrumento de propaganda. Nunca deve procurar justificar
qualquer força política. A segunda diferença é que, se os regimes políticos não são os mesmos, os
cristãos podem escolher o que mais lhes convém por razões puramente humanas. A democracia
parece-me preferível à ditadura. O socialismo agrada-me mais do que o capitalismo. Mas, em rigor,
Deus não tem nada a ver com estas coisas. Ou talvez tenha, mas eu não sei nada sobre isso. A Bíblia
não me permite, de forma alguma, declarar que um determinado regime está em conformidade
com a vontade de Deus. Não me cabe a mim, enquanto cristão, identificar a história com a vontade
de Deus. Não temos de pensar que, pelo facto de tal ou tal poder ser instituído, foi Deus que o insti-
tuiu.

O escândalo é que a Igreja tenta usar o poder político para garantir a sua própria autoridade e para
assegurar vantagens. A Igreja compra a possibilidade de se manter a si própria ao preço de conces-
sões (por exemplo, aos regimes de Hitler ou dos soviéticos). Ao fazê-lo, renega os seus mártires. Os
mártires não são agitadores ou obstinados. São, antes de mais, dedicados a Deus. Querem obedecer
a Deus e não aos homens. Mas a igreja troca o seu apoio por vantagens, honras, títulos e dinheiro.
Ela está sob o domínio de Mamom. Finalmente, ela deixa se comprar para obter facilidades para as
suas celebrações, o seu evangelismo, as suas boas obras, a sua pregação da boa Palavra. Mas sata-
nás alegra-se com tudo isto, pois este evangelho não se baseia na pedra angular, em Jesus Cristo,
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mas no poder do mundo, graças ao qual é propagado. Não há nada aqui que o príncipe deste mundo
precise temer. Ainda hoje, a Igreja nunca pode ser demasiado questionada sobre este duplo escân-
dalo.

Os resultados dessa alienação da revelação no poder político e em nome dele são muitos. Vamos
considerar três deles.

O primeiro é o facto espantoso de a própria Igreja se tornar um Estado. O papa torna-se chefe de
Estado. Fá-lo com a conhecida pseudo-doação de Constantino (e os decretos forjados). De facto, as
primeiras terras que são doadas, não apenas como propriedade privada para apoiar o papado, mas
como território político, provêm dos Carolíngios (talvez de Pepino, o Breve, a Estêvão II). Para selar
a aliança entre o papado e a dinastia carolíngia e para legitimar esta última, o papado recebe pri-
meiro a Pentapolis e as vinte e duas cidades da exarquia de Ravena. Eis um exemplo claro de nego-
ciação política. Que incrível contradição de todo o Antigo e Novo Testamento! Quando o Papa se
torna chefe de Estado, é forçoso que aja como um governante político. Não para de tentar alargar
os seus domínios, e não se pode dizer verdadeiramente que isso seja para maior glória de Deus.
Sucessivamente, até ao século XIII, os Estados Pontifícios passam a incluir novas áreas. Abrangem
uma quarta parte de Itália. Faz-se guerra a Florença para a anexar. Durante todo este período, o
Papa atua exatamente da mesma forma que os outros reis. Nestas circunstâncias, será de admirar
que se encontrem na corte papal os mesmos defeitos que noutras cortes italianas? Riqueza, sexua-
lidade, envenenamentos, patrocínio das artes, lutas pelo poder, etc... No que respeita ao cristia-
nismo, uma das principais consequências é que, quando o papa fala com outros chefes de Estado,
é inevitavelmente ouvido como se fosse apenas mais um rei estrangeiro.58 Quando o papa atua
como chefe de Estado, isso reflete-se inevitavelmente na sua posição de papa. Ele nunca poderá
quebrar este laço demoníaco. Os melhores papas, os mais puros e autenticamente cristãos, como
o santo Pierre de Moron (Celestino V), têm apenas um desejo: abdicar.

Um segundo resultado desta politização foi uma rápida fragmentação em nações. Quando o mundo
ocidental era dominado pelo feudalismo, quando as fronteiras entre os reinos não eram claras nem
constantes, quando a estrutura política essencial era a propriedade senhorial, quando existia uma
ficção de unidade europeia sob o Sacro Império Romano-Germânico, então as pessoas podiam ter
uma imagem de uma cristandade única que tinha uma cabeça em Roma e coincidia com uma igreja
não fragmentada, católica e universal. A partir do século XIV, porém, os reis tentam criar unidades
políticas diferentes do feudo. Transformaram as mansões em complexos maiores e qualitativa-
mente diferentes (os reinos) e, estranhamente, começa a desenvolver-se em quase todo o lado
aquilo a que se deve chamar um novo conceito, o da nacionalidade. Incontestavelmente, este con-
ceito nacional aparece em França, Inglaterra, Irlanda, Polónia, Suécia, Dinamarca e Boémia.

Quando a própria Igreja estava politizada até ao limite, como poderia, nestas circunstâncias, conti-
nuar a afirmar-se unida e universal, ultrapassando todas as fronteiras e estando acima de todos os
conflitos políticos? A aliança política e religiosa significava que a própria Igreja se dividia em unida-
des nacionais e que as Igrejas nacionais estavam sujeitas às autoridades políticas. O Papa queria
ser um chefe de Estado. Pouco a pouco, foi excluído da direção das igrejas nacionais noutros Esta-
dos, a igreja anglicana, a igreja galicana, etc... Estas ruturas encontram uma contrapartida no

58Isto justifica a resistência dos reis franceses e ingleses quando rejeitam a intervenção eclesiástica do papa, um governante
estrangeiro, por exemplo, na nomeação dos bispos.
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próprio papado, aquando do Grande Cisma, quando as nações escolhem o seu próprio papa. O ca-
rácter nacional da Igreja, com os seus envolvimentos políticos, continua indefinidamente até ao
ponto em que a Igreja deixa de pretender ser um organismo religioso e o Estado afirma que ela deve
servir fins políticos.

Precisamente porque a Igreja tinha abandonado a sua primeira mensagem anti-política e anti-es-
tado, já não lhe bastava ser meramente espiritual. Tinha agora de fazer uma escolha. Poderia entrar
nos conflitos internos de uma nação, por exemplo, defendendo a direita política ou usando a sua
autoridade espiritual para dar instruções sobre o voto. Tornar-se-ia então uma igreja de golpes de
Estado, uma igreja da classe média, como hoje é uma igreja dos sindicatos e da classe operária. Por
outro lado, poderia assimilar-se à causa nacional e fazer do patriotismo um valor religioso e cristão
(como na curiosa utilização de Joana d'Arc em França).

Sob a capa da espiritualidade, isto provoca uma divisão grotesca na Igreja. Não é possível alcançar
a unanimidade. Dentro de uma mesma nação, podemos ter uma igreja de esquerda e uma igreja de
direita, uma igreja dos sindicatos e uma igreja da ordem e da hierarquia, uma igreja a favor da con-
traceção e uma igreja contra ela, etc... Poderíamos também ter uma igreja que canta o Te Deum
para celebrar as vitórias nacionais que supostamente são dadas por Deus, que é ao mesmo tempo
Gott mit uns para os alemães e um Deus obviamente francês para os franceses. São estes os resul-
tados grotescos que o ‘carnaval’ político significa para a Igreja. Tal é o custo gravíssimo da política
para a Igreja, quando esta não obedece à sua vocação de desmitificar a política, de a dessacralizar,
de a reduzir em estatuto.

O contágio jurídico e administrativo é o terceiro resultado. A política produz o direito. Contaminada


pela política, a Igreja, por sua vez, é levada a fazer a lei, a organizar-se segundo o modelo adminis-
trativo dos Estados, a validar a lei feita pelos poderes políticos, que é apresentada como conforme
a vontade de Deus. É certo que tudo isto pode ter um lado positivo. Tem sido frequentemente de-
monstrado que, nos séculos IV e V, o direito romano foi alterado para melhor sob a influência cristã:
a proteção dos escravos, a elevação do estatuto jurídico das mulheres, novas perspetivas jurídicas
sobre o casamento e a família, o abrandamento do direito penal, e muitas outras coisas. Biondo
Biondi escreveu volumes sobre o direito cristianizado. Tudo isso é verdade. Mas o problema é sem-
pre o de saber quanto custaram finalmente à Igreja estas melhorias jurídicas, quando deixou de ser
mensageira da Palavra de Deus para organizar uma sociedade humana menos insatisfatória. A
igreja é incessantemente levada a fazer aquilo que Jesus se recusou expressamente a fazer, nome-
adamente, servir de juiz entre partes legais. Ao fazê-lo, ela passa a servir interesses diversos. Como
é que ela pode evitar isso? Direitos são sinónimo de interesses. Logo, é levado a servir o grupo mais
poderoso. Pode querer defender os fracos (o que é bom), mas não o pode fazer sem estar em relação
com os detentores do poder. Se os bispos podem defender os mais pequenos, é porque eles pró-
prios são vistos como fortes pelas autoridades. Mais uma vez, quando o conflito era relativamente
simples (por exemplo, entre o senhor da propriedade e os camponeses), a igreja podia fazer esco-
lhas claras. Mas quando surge uma organização socioeconómica mais complexa com a classe mé-
dia, a igreja pode encontrar-se do lado dos poderosos (ricos, governantes, etc...) sem o desejar. In-
trinsecamente envolvida no tecido social, ela é assim utilizada em muitos casos sem o seu conhe-
cimento. Uma ética do trabalho, do serviço, da humildade, do valor da pobreza pode ser utilizada
pela classe média, pois tudo isso é uma verdadeira mensagem evangélica, mas é apenas metade
ou um quarto dessa mensagem.
90

Assim, os bispos do século IV tornam-se defensores civitatis, uma função admirável, pois significa
proteger as cidades contra os abusos das autoridades imperiais e proteger os mais humildes contra
os poderosos. Tudo isto é muito bom. No entanto, Agostinho, por exemplo, queixa-se de que, como
bispo de Hipona, tem tantos deveres administrativos que não pode fazer materialmente o seu tra-
balho próprio de bispo nem cumprir a tarefa de pregar. Ora, esta utilização dos bispos para tarefas
administrativas pode sempre ser justificada espiritualmente. Fazer o bem é sempre uma função
para os representantes de Cristo. Para as autoridades, porém, a igreja é apenas uma das muitas
expressões de poder. Foi sempre assim no decurso da história, embora raramente tenha sido reco-
nhecido com o cinismo de Napoleão quando afirmou que o clero detinha o povo, os bispos deti-
nham o clero e ele próprio detinha os bispos.

O outro lado desta contaminação jurídica e administrativa é que, reciprocamente, a própria Igreja
se torna uma organização jurídica e administrativa. Organiza-se segundo o modelo do Estado, cria
o seu próprio direito à imitação do direito romano e estabelece cuidadosamente uma instituição e
uma hierarquia. Faz tudo isto melhor do que o Estado. A sua lei torna-se um modelo; o direito canó-
nico é tão aperfeiçoado que durará muito mais tempo do que qualquer outro. O mesmo acontece
com a sua organização administrativa. Mas a questão é saber se é a função da Igreja fazer regras, se
a sua vida se remete para códigos, se tem o objetivo divino de fornecer um modelo administrativo
para o mundo. Na realidade, a Igreja preferiu a lei à verdade fugitiva e não temporal de Jesus Cristo.
Em todas as ocasiões, ela introduz o direito (por exemplo, em vez de rejeitar radicalmente a violên-
cia, ela elabora a doutrina da guerra justa). É constantemente tentada (como nos séculos XIV, XV e
XVI) a resolver as crises espirituais e religiosas através da elaboração de textos jurídicos e de uma
melhor organização administrativa. A perversão da revelação pela política não podia ir mais longe.

Naturalmente, o que acabo de escrever exprime apenas uma parte da vida da igreja. Sempre houve
também recursos espirituais. Teremos que ver isso no último capítulo. A Igreja também tem sido
muitas outras coisas. Mas no que diz respeito às reações da Igreja, temos duas observações a fazer.
Em primeiro lugar, a Igreja tem sido muitas vezes, por assim dizer, de dupla face. Uma acusação
comum é a de que a Igreja apresenta um rosto de paz e tolerância, mas esconde repressão e intole-
rância, e que pode sempre justificar-se mostrando ora um lado, ora o outro, que nas suas excelentes
existências se encontrará sempre algo que mostra a sua virtude. Em segundo lugar, a Igreja não tem
de tomar o partido do poder existente. Já dissemos que, por vezes, se colocou do lado de uma po-
tência em ascensão, da pessoa que tem as melhores hipóteses políticas. Por vezes, também, tem
estado violentamente contra o poder existente. A tradição da Igreja primitiva nunca se desvaneceu
completamente. Eremitas violentos desceram para quebrar estátuas e sinais de idolatria, como nos
séculos IV e V. Sempre houve grupos milenaristas que causaram problemas políticos e sociais. A
igreja institucional dominante pode considerá-los heréticos, mas não pode erradicá-los facilmente.
Não temos, por um lado, autênticos cristãos fiéis à Igreja institucional (cuja perversão pela política
temos vindo a escrutinar com razão) e, por outro lado, correntes espirituais e revolucionárias vagas
e incertas que não representam a fé em Jesus Cristo.

Temos de ter em conta o facto de que a Igreja de Jesus Cristo não está limitada por barreiras legais
e dogmáticas. Tem uma constituição tanto espiritual como institucional. Inclui não só o papado,
mas também Joachim de Fiore, não só Lutero, mas também Münzer, não só os luteranos estritos,
mas também os espirituais de Wittenberg, não só o implacavelmente rigoroso Calvino, mas tam-
bém os profetas das Cevenas. Por outras palavras, a Igreja, no sentido espiritual e teológico, contém
91

sempre uma corrente hostil ao poder político, revolucionária e anárquica. Mas esta não é a corrente
que a sociedade no seu conjunto, e sobretudo as autoridades políticas, reconhecem como sendo a
Igreja. Se estes numerosos movimentos falharam, é antes de mais devido à sua natureza intrínseca.
As correntes espirituais não podem durar. Quando atacam o poder político, este ataca-as em troca
e proclama que a verdadeira igreja é aquela que está em aliança com ele. Aqui está a igreja boa,
sólida, institucional, com a qual se pode fazer contratos e ter uma política coerente. Esta igreja é
oficialmente a única igreja possível, a única igreja admissível e reconhecida. As outras são conde-
nadas tanto pelo Estado como pela igreja oficial.

Por vezes, quando as autoridades vão longe demais, até esta igreja é forçada a opor-se, como foi o
caso dos padres recusantes em 1790, durante a Revolução Francesa, ou da Igreja Confessante no
Sínodo de Barmen, em 1934, contra Hitler, ou do Cardeal Wyszynski e da Igreja polaca, em 1953,
contra o comunismo. Mas essas revoltas são apenas incidentais. Uma vez que o acordo é possível,
a igreja resistente renuncia à sua resistência às autoridades quando estas mudam ou se tornam
razoáveis. É geralmente explicado que a igreja deve reconhecer e apoiar o poder político, exceto
quando este se torna idólatra ou herético e persegue a própria igreja. Este princípio é reconhecido
tanto pela Igreja Católica Romana como pela Igreja Calvinista. Mesmo que o conluio da igreja e do
estado não tenha sido constante ou unânime, a corrupção da revelação pela associação com a po-
lítica tem sido contínua e decisiva.

Em suma, o que o reconhecimento do Estado e a entrada dos cristãos e da igreja na política produ-
ziram foi uma mutação que equivale à subversão. A revelação significou inevitavelmente uma ru-
tura na ordem humana, na sociedade, no poder. Jesus veio lançar um fogo sobre a terra. Não veio
trazer a paz, mas a espada. Trouxe a divisão entre os membros de uma mesma família. Ele é a oca-
sião de rutura e de queda para muitos. Se o mundo odeia os seus discípulos, eles devem saber que
o odiaram primeiro. Tal como a conversão significa sempre uma rutura na vida individual, também
a intervenção da revelação significa uma rutura em todo o grupo, em toda a sociedade, e desafia
inevitavelmente a instituição e o poder estabelecido, seja qual for a forma que este assuma.59 Mas
a adulteração pelo poder político mudou tudo isso. O cristianismo tornou-se uma religião de con-
formidade, de integração no corpo social. Passou a ser visto como útil para a coesão social (exata-
mente o contrário do que é na sua origem e verdade). Em alternativa, tornou-se uma fuga da reali-
dade política ou concreta, uma fuga para o mundo espiritual, para o cultivo da vida interior, para o
misticismo e, portanto, uma evasão do mundo atual. As duas perversões são complementares. Te-
ologicamente, negam a encarnação, separando o físico (ao qual nos submetemos) e o Espírito (que
nos permite velar o rosto do físico). Sociologicamente, são o resultado de uma ação política em
relação à igreja e da aceitação disso por parte da igreja.

Um livro a que se pode fazer referência, e cujas análises são semelhantes às minhas, é Changer el
monde, de V. Cosmao (Paris: Éditions du Cerf, 1981). Também esta obra fala da “perversão do cris-
tianismo”. O seu ponto de vista é diferente, porque se preocupa com a ação no Terceiro Mundo, e
Cosmao é um “teólogo da libertação”. No entanto, tem de se perguntar porque é que a igreja aca-
bou por trair a mensagem profética e evangélica. A sua tese geral é que as sociedades obedecem a
duas “leis sociológicas” (concordo com isto) segundo as quais, quando deixadas à sua própria inér-
cia, “estruturam a desigualdade” e “fabricam deuses que se tornam seus senhores”. A revelação de

Note-se que não se trata de saber se o regime é injusto, ou materialista, ou de direita. A teologia da revolução está total-
59

mente errada a este respeito.


92

Deus em Jesus Cristo contradiz expressamente estas duas leis e deve produzir a igualdade e destruir
os falsos deuses. O autor afirma, no entanto, que o cristianismo assumiu o papel de uma “religião
civil” e se tornou, assim, a cristandade. Uma vez que é reconhecido pelo poder secular, estrutura-se
e organiza-se com base num sistema elaborado pela administração.

Tanto na sua forma secular como na regular, argumenta Cosmao, a igreja estrutura-se em sistemas
modelados na organização do Império Romano. Quando o império se desmorona, a igreja é o único
fator de coesão. Em vez de resistir a uma estruturação desigual, a igreja sacraliza as sociedades que
se organizam de forma desigual. Como religião oficial, o cristianismo torna-se o ponto de referência
que todo o poder civil deve ter em conta e do qual deve depender para a sua instalação. A imagem
do império (a antítese da desordem generalizada) fixa-se no papado. O papa afirma-se como o su-
cessor dos imperadores ocidentais. Deus é o protetor da ordem. Durante o período de desordem
que vai do século V ao XI, a segurança torna-se a primeira preocupação. Para favorecer o desenvol-
vimento de novas estruturas políticas, a igreja sacraliza-as. Uma vez que só os guerreiros podem
garantir uma segurança relativa a um grupo, esta confere-lhes uma posição social de primeiro
plano. Mas, nesta situação de insegurança e de males acumulados, só a vida eterna traz uma ver-
dadeira segurança.

A religião da vida eterna é a contrapartida da sacralização do sistema social em que, em princípio,


os príncipes estão sujeitos aos sacerdotes, mas os sacerdotes estão em aliança forçada com os prín-
cipes. O cristianismo torna-se uma sociedade organizada: a cristandade. Nesta sociedade, a Igreja
tem um papel simultaneamente perverso e benévolo: perverso na medida em que sacraliza a soci-
edade, benévolo na medida em que protege os pobres e os fracos. Assim constituído e instituído, o
cristianismo torna-se a “religião civil” do mundo.

Tudo isto se torna um obstáculo quando o mundo ocidental se encontra empenhado na expansão
global no século XV. Com a conquista europeia, torna-se evidente a ligação entre conquistadores e
sacerdotes. Este é um ponto novo e interessante na obra de Cosmao. A imposição das estruturas da
cristandade é um traço constitutivo da colonização. Os povos são dependentes em todos os domí-
nios, e a igreja contribui para a dependência cultural e ideológica. Mas as igrejas criadas, por exem-
plo, na América Latina, são igrejas dos pobres com uma origem nativa. Existindo na periferia da
igreja-mãe, são portadoras de uma verdade evangélica primária. Há nelas, pensa ele, um reaviva-
mento da revelação experimentada. Os pobres da América Latina descobrem que o Deus do evan-
gelho é o Libertador - muito antes dos teólogos. A perseguição destes “novos cristãos” por parte
dos poderes encarregados da defesa da “civilização cristã” é um sinal da continuidade da sua con-
fissão de fé com a dos primeiros cristãos. Eles contestam a equiparação entre a manutenção da
ordem existente e a defesa dos “direitos de Deus”. Estas testemunhas do X foram finalmente ultra-
passadas no século XVI. O Deus de Jesus torna-se a pedra angular do novo império. Eis, em síntese,
o relato de Cosmão sobre esta perversão do cristianismo.

Ao que já indicámos, acrescenta, por um lado, o papel da igreja na sacralização dos poderes esta-
belecidos e, por outro, a extensão global do sistema da cristandade, com o último revés quando o
cristianismo é instituído como religião civil. Naturalmente, tal como em Amery, esta (verdadeira)
análise serve de base ao exame das formas de mudar o mundo. O problema central é considerado
o subdesenvolvimento. A primeira condição para mudar esta situação é que, quando Deus é trans-
formado em guardião da ordem e do poder, o ateísmo é uma condição de mudança social e a onda
93

ateísta é, portanto, uma bênção. Deus e a Igreja deixam de proteger uma ordem injusta. É preciso
dessacralizar e descristianizar o sistema. Para dar testemunho da verdade de Deus, é preciso re-
nunciar à sociedade cristã e lutar pela justiça social, ou seja, combater a tendência natural das so-
ciedades para se constituírem de forma desigual. Com base no ateísmo, é possível uma estrutura-
ção mais justa da sociedade. O ateísmo dá à verdade revelada uma oportunidade de se redescobrir.
“A crítica da religião revelar-se-á o incidente histórico mais benéfico na história da cristandade
desde que esta se tornou cristandade.” “Uma necessidade histórica, o ateísmo poderá preparar o
caminho para o regresso de Deus, que será tão prometedor para o equilíbrio das sociedades como
a negação de um Deus que se tornou o guardião da desordem estabelecida.” Mas isto conduz a uma
ambiguidade evidente.

Se podemos seguir Cosmao quando diz que, estando o mundo estruturado no pecado, a participa-
ção na sua transformação é condição da conversão a Deus em Jesus Cristo, parece-me menos evi-
dente que, quando o homem se liberta (por esforço próprio) da escravidão (que escravidão?), des-
cobre que Deus é o seu Libertador e Criador, e também que a humanidade (entidade algo incerta)
é o único sujeito coletivo da história a quem a terra está comprometida com bens que lhe são des-
tinados. Cosmao vê claramente quando analisa a perversão do cristianismo, mas é vago e incerto
quando olha para o resultado. A luta pela justiça (?), pensa ele, deve preceder a escuta da Palavra
de Deus. Não toma posição em relação ao comunismo, mas sente-se a sua simpatia, que dificil-
mente pode ser baseada na ignorância. Comete o erro de equiparar as revoluções a uma presença
de Deus. Não especifica que tiranos devem ser derrubados.

Quando diz que devemos ler o Evangelho do ponto de vista do povo, deixa de fora o Espírito Santo.
Ele recupera constantemente a iniciativa e a possibilidade humanas (sendo, a este respeito, um
teólogo católico romano tradicional). Assim, quando escreve que “Deus nos convoca a fazermo-nos
existir à sua imagem” (depende de nós sermos imagem de Deus), acrescenta que “somos demiurgos
por vocação, dando-nos existência ao organizarmos o mundo”. Por fim, de forma clássica, a justiça
(indefinida) é para ele o único valor reconhecido que exprime a fé cristã. Esta mudança do mundo
não é uma questão de liberdade ou de verdade. Ele remete tudo para a conduta e a prática huma-
nas. Sem os nomear, rejeita uma teologia dedutiva em favor de uma teologia indutiva, quando diz
que o papel da teologia é avaliar a prática da fé. Isto parece-me inaceitável. No entanto, o livro é
essencial para uma nova compreensão dos erros da cristandade. Se ignorarmos uma certa ideolo-
gia socializante e algumas ambiguidades, ele pode ajudar-nos a compreender verdadeiramente a
pretensão da revelação sobre o conjunto da vida humana (incluindo o aspeto político).
94

Capítulo 7

NIILISMO E CRISTIANISMO

Digamos desde já que não estamos a tentar lidar com os problemas do niilismo teórico ou filosófico.
O que nos interessa é o niilismo vivo, não a prática estreita, como a dos niilistas russos do final do
século XIX, mas uma certa atitude perante a vida. Para além disso, a minha preocupação não é com
a questão duradoura de um niilismo inerente que ganha uma nova expressão em cada época, mas
com uma forma contemporânea específica de niilismo, ou, em termos mais precisos, com a ascen-
são progressiva do niilismo, com a forma como se enraizou lentamente no mundo ocidental e de-
pois floresceu. Se a questão se coloca, é porque vemos agora o niilismo expandir-se e triunfar por
todo o lado. Na prática, desde o tempo do niilismo nazi, tem havido uma espécie de desenvolvi-
mento polimórfico do niilismo global.

Esta evolução deve-se, sem dúvida, por um lado, ao facto de a nossa sociedade já não oferecer
qualquer sentido ou valor que faça com que a vida valha a pena ser vivida. Tudo o que constitui o
nosso mundo está exposto a uma dúvida radical. Isto aplica-se a todas as coisas que construímos
penosamente para chegar a um sentido (por exemplo, a religião) e a todas as coisas que o Ocidente
em particular instituiu (por exemplo, valores como a justiça e a verdade, ou a beleza na arte). Final-
mente, não foi encontrado nenhum valor dominante ou adequado no eu. O desenvolvimento deve-
se, por outro lado, ao facto de já não termos a força, o vigor, a energia, a resolução, a convicção,
para estabelecer novos valores, para fazer os nossos próprios valores, para instituir um novo qua-
dro de vida, uma nova possibilidade de sentido, dado que tais coisas não podem ser feitas por uma
decisão individual arbitrária, mas apenas de forma que os valores sejam acreditados e aceites por
todos.

Estamos assim perante o fenómeno espantoso de uma sociedade inteiramente niilista. Já houve
sociedades assim. Todas as sociedades, quando estão no seu fim e prestes a desaparecer, negam
os seus próprios valores. Mas, normalmente, isso tem andado de mãos dadas com a desintegração.
O que é estranho na nossa sociedade é o facto de o seu niilismo estar associado ao poder. Não é um
presságio de colapso. Não desafia as estruturas rígidas da nossa economia ou tecnologia. Parece
ser uma réplica exata, dupla ou inversa, da nossa produtividade, consumo e eficiência. O niilismo
vivo provocado pela não aceitação desta sociedade não é explícito, nem é assumido por certos lí-
deres reconhecidos.

Os nossos escritores, evidentemente, exprimem-no, ainda que involuntariamente. Encontramos


neles as suas marcas mais marcantes. Mas não são eles que a iniciam. Os intelectuais e romancistas
que (por vezes involuntariamente) o formulam (por exemplo, Henry Miller) são lidos e adotados
apenas na medida em que exprimem o sentimento comum e refletem o seu tempo, e não na medida
em que o inventam e iniciam. Além disso, este niilismo só desempenha um papel na medida em que
se relaciona com os valores existentes, sejam eles do século atual ou tradicionais. Assim, quando
os artistas afirmam que a arte não é feita nem para a beleza, nem para o sentido, nem para a
95

harmonia, nem para a alegria, são conduzidos ao niilismo total da absoluta não-obra. Mas isto é um
jogo. Quando o niilismo em que as pessoas estão mergulhadas não é um jogo, o absurdo da vida é
o que lhes fica na garganta. Nos artistas, há um niilismo que consiste em destruir e rejeitar tudo o
que possa correr o risco de não ser niilista (cf. filmes como La Grande Bouffe ou La Dernière Femme).
O niilismo destes artistas é o do sujeito, do autor ou do herói. Não há sujeito ou herói para repre-
sentar. Há apenas sons onomatopaicos ou cores. As pessoas desapareceram. É este o problema,
que se exprime tanto no estruturalismo (jogando com as estruturas) como em Foucault (na sua fa-
mosa frase que anuncia o fim da humanidade como um simples acidente). O sujeito é odiado. É
eliminado. O objeto triunfa. Acima de tudo, nada triunfa. O niilismo é, em última análise, o do sen-
tido. Nada tem sentido, nem a obra nem a página escrita. Procurar o sentido é um sinal de fraqueza,
de deficiência intelectual. A linguística estrutural entra aqui em cena. Mas não se trata apenas de
um assunto de intelectuais e romancistas. Há também um niilismo político que se caracteriza me-
nos por doutrinas extremas (por exemplo, o nazismo) do que pela fraqueza na densidade extrema
dos meios e por uma inadequação radical em relação ao real. A fraqueza da paralisia manifesta-se
nos extremos do poder, do rigor, do absolutismo e do controlo.

Uma vez que a política funciona fora da realidade através da abstração, da ideologia, da sedução e
da hipnose desencadeada pelo poder, este bloqueia a apreensão política do real e exclui qualquer
possibilidade de encontrar uma forma diferente. Este niilismo é o mesmo nos nazis, nos liberais e
nos comunistas. Mas não teria importância se não houvesse, como já dissemos, uma correspondên-
cia entre estas orientações e a prática geral, como se vê na fuga ao sentido ligada à impossibilidade
de viver sem ele, na conduta suicida, quer em esboço quer levada até ao fim (especialmente entre
os jovens), no terrorismo e no pessimismo radical em relação à estrutura social. Mais profunda-
mente, o niilismo significa uma recusa de considerar o real a qualquer nível, e especialmente nas
suas próprias ações. Durante cinquenta anos, o niilismo dos comunistas impediu-os de ver a reali-
dade para não derrubar um sistema idealista e doutrinário. A incapacidade de criar valores é inevi-
tavelmente duplicada pela recusa de encarar a realidade, seja ela qual for.

Depois de ter feito este breve esboço do niilismo, gostaria de abordar a sua relação com o cristia-
nismo. Sem entrar em questões teológicas, vemos imediatamente duas orientações. A primeira é a
dimensão coletiva, sociológica, histórica, denotada pelo aspeto “ismo”. O cristianismo teve um pa-
pel social e este não correspondeu ao que se poderia esperar, ao que as premissas da fé poderiam
fazer esperar. A isto contrapõe-se a realidade da mensagem cristã, a revelação bíblica, que se torna
verdade para aqueles que a ela aderem pela fé, e que deve ser considerada como tal. A dificuldade
reside no facto de não podermos colocar claramente os dois aspetos em antítese um do outro. O
cristianismo é representado não só pelas autoridades da Igreja, mas também por correntes ocultas
e ações secretas. Mais uma vez, os crentes autênticos não estão sozinhos, mas, pelo próprio facto
da sua fé, estão inseridos numa determinada comunidade de crentes e, por isso, estão sujeitos ao
julgamento que pode ser feito sobre o seu comportamento histórico-social. Tornam-se parte de
uma continuidade histórica.

A minha adesão pessoal à fé faz de mim um participante numa corrente histórica com uma dimen-
são sociológica e política. Não tenho o direito de dizer que sou verdadeiro, autêntico e puro, e de
condenar tudo o que os meus antecessores fizeram. Não posso rejeitar a Igreja dos tempos passa-
dos. Faço parte dela em virtude da “comunhão dos santos”. Pode parecer à primeira vista que o
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cristianismo é o oposto do niilismo, mas, infelizmente, as coisas não são tão simples assim, e o cris-
tianismo está de facto na raiz de todo o mal histórico do niilismo moderno.60

A RESPONSABILIDADE

Parece-me que a responsabilidade do cristianismo pela ascensão do niilismo nos leva a três temas:
transcendência absoluta, dessacralização e pecado.

O Deus judaico-cristão, afirmado como sendo o ‘Totalmente Outro’, absoluto e transcendente, já


não está na terra (não obstante a encarnação). Além disso, ele é refinado, abstrato e oculto. Inver-
samente, nós próprios somos despossuídos, afetados a uma dimensão terrestre e rebaixados. Deus
é puro e inacessível no Céu, e nós ficamos sem referência. Não é que Deus esteja morto, tudo é
possível, mas se Deus é o Deus Eterno, nós estamos por nossa conta. Isso não acontece sem alguns
resultados secundários. A ‘absolutez’ divina reduz a nada os valores humanos mais humildes. Coi-
sas tão relativas como as nossas necessidades simples, as nossas normas e as nossas ações de res-
peito e obediência são desvalorizadas. Ou é o absoluto de Deus ou nada. Sem dúvida que estou a
exagerar. No entanto, o elemento intolerável desta revelação tem sido tão fortemente sentido que
gerações de teólogos têm lutado para restabelecer os valores humanos - sociais, morais, políticos,
etc... - e para encontrar sínteses entre a revelação e todas as coisas que parecem ser indispensáveis
à vida humana.

Esforços semelhantes foram feitos para validar a arte ou o direito, para estabelecer uma continui-
dade entre o absoluto divino e o necessário, uma continuidade que é frequentemente estabelecida
através da mediação da natureza. No entanto, o cristianismo introduziu por todo o lado a negação
do que afirma. Em última instância, não pode rejeitar este Deus cujo nome não é pronunciado, que
não pode ser assimilado a outros deuses ou a valores humanos, que é, portanto, um fator perma-
nente que não pode ser reduzido nem apagado. É a dimensão estranha que não pode ser utilizada,
de modo que, mesmo nas reconstruções mais inteligentes, é um fator incompreensível que põe
imediatamente em causa tudo o resto. Assim, a transcendência é, por um lado, um afastamento de
Deus do mundo, uma redução deste último à sua mera realidade sem objetivo, sem significado, sem
terceira dimensão. É também, por outro lado, a relativização de tudo o que existe neste mundo e,
em última análise, a sua total desvalorização. Deixa-nos literalmente sós e indefesos. Tínhamos in-
ventado o sagrado. Sacralizámos as coisas para nos protegermos e para nos darmos sentido. Mas o
cristianismo, com a absolutez da sua revelação, destruiu o sagrado e não pôs nada no seu lugar. Só
os que têm fé podem viver. Quanto ao resto.., do mesmo modo, o cristianismo destruiu as religiões
que permitiam aos homens viver com a coragem moral e psicológica que elas dão, e nada colocou

É claro que não é necessário recordar que o cristianismo não é o único fator e não é o único responsável pelo niilismo
60

moderno.
97

no seu lugar, porque não é uma religião. Não responde às nossas necessidades religiosas. Na sua
essência e na sua verdade, contradiz-nos.

O cristianismo não pretende ser uma religião superior às outras, mas uma anti-religião que refuta
todas as religiões que nos ligam a um universo divino. Sem dúvida que o cristianismo se torna cons-
tantemente uma religião, mas para a religião, tal como para as sínteses de valores, traz consigo
uma crítica irredutível. A própria religião cristã é constantemente posta em causa pelo absoluto que
se revela em Jesus Cristo. E ficamos assim entregues a nós próprios, mais pobres e mais nus do que
quando vivíamos no nosso universo religioso.

Vemos o mesmo processo na esfera moral. Produziram-se sistemas morais reconhecidos, aceites
pelo corpo social. Mas o Deus bíblico nega totalmente todos eles. O seu mandamento é a verdade.
Nenhuma moral pode ser construída sobre este hic et nunc (aqui e agora). Apesar de todos os esfor-
ços para a construir, não existe moral cristã. Destruída de imediato pelo acolhimento da revelação,
toda a moral dita cristã é negada em princípio e a sua realização é negada pelo radicalismo do Es-
pírito Santo. Mas, então, o que é que nos resta? Algo tem de substituir tudo isto, e o que o faz é a
autoridade da igreja que confisca o Espírito Santo de Israel e de Jesus Cristo, que é um absoluto sem
compromisso, e que destrói a ordem do mundo, o equilíbrio cósmico, a ordem e o equilíbrio da socie-
dade. Não há combinação possível entre o Céu e a terra. Para ser radical, esta revelação lança-nos
para a terra, mas para uma terra sem deuses, sem significado, sem nada de sagrado. O sagrado de
que a natureza está investida garante o ambiente contra a excessiva invasão humana. Isso instiga
respeito. Mas agora, através da dessacralização provocada pelo cristianismo, o mundo natural é
simplesmente feito de coisas. Não existe mais nenhum limite. Estamos implicitamente autorizados
a fazer o que quisermos com este mundo que não tem alma. Nenhum obstáculo nos impede, a não
ser a nossa imaginação e os meios disponíveis. À medida que estes aumentam, aumenta também o
nosso uso ilimitado do capital da natureza, e aumentam também as nossas depredações.

Já não existe qualquer tabu. Nenhum domínio está fora dos limites. Não há preocupação com o
equilíbrio entre o espiritual e o material. Tudo pode ser utilizado, tudo pode ser feito. Não faz dife-
rença se agimos num sentido ou noutro. Os únicos critérios são os da utilidade imediata. Isso é,
evidentemente, o oposto do espírito do cristianismo e, no entanto, é um dos resultados da cristia-
nização do mundo, quando o cristianismo é laicizado. Lançados à terra pelo radicalismo da trans-
cendência, já não podemos encontrar aí qualquer sentido ou valor.

Este processo é imediatamente duplicado por uma crítica ao próprio cristianismo, que lhe é intrín-
seca, que não pode deixar de resultar do próprio facto da transcendência crítica. Quando o cristia-
nismo assimila ou aniquila valores e práticas sociais, como vimos, a rejeição do cristianismo conduz
ao niilismo. Isto inclui um niilismo das práticas sociais e políticas. O que isto implica é a possibili-
dade de adotar orientações sem medida e de as levar ao extremo, porque já não há nenhum critério
externo para contestar o excesso. Os meios tornam-se uma lei em si mesmos. Este niilismo disfarça-
se de liberdade. Os insensatos de hoje não param de querer ultrapassar os tabus da moral e do
direito. Simplesmente não se apercebem de que estão dominados pelo espírito do niilismo, de que
Hitler foi um modelo exemplar.

O último fator de desenvolvimento do niilismo a partir da convicção cristã é, sem dúvida, a impor-
tância do pecado. O catolicismo romano apercebeu-se certamente do perigo e, por isso, atenuou a
98

gravidade do pecado e criou diversos meios humanos para evitar sermos esmagados por ele. Mas o
cristianismo radical e a Reforma sempre sublinharam esta condição humana. Tudo o que fazemos
está sob a sua lei. Não podemos realizar nada por nós próprios. Não podemos conseguir nada de
bom, de belo ou de verdadeiro. Tudo está podre e falsificado a partir da intenção. Todos os atos,
decisões e projetos exprimem o estado básico do pecado. Estamos mergulhados num mal inces-
sante e, a partir do momento em que nos separamos de Deus, tudo o que fazemos conduz a isso.
Estamos efetivamente separados de Deus. Sem dúvida, o cristianismo coloca-nos na graça. Volta-
remos a este ponto. Mas duas coisas acontecem que deformam tudo e perturbam o equilíbrio da
revelação. Primeiro, a pregação evangelística enfatiza o estado de pecado. Toda uma linha de pre-
gadores nos séculos XVIII e XIX, principalmente protestantes, trovejava contra os pecadores e anun-
ciava a perdição eterna. Gerações cristãs não ouviram outra coisa. Depois temos, como antes, a
laicização do cristianismo. Perdendo a referência a Deus como Salvador, continua a defender a
ideia de que somos maus e totalmente corruptos. (Rousseau e Marx podem ser citados a este res-
peito.) Nestas circunstâncias, podemos ver que tudo isto pode levar ao niilismo, à convicção de que
nada de bom se pode esperar de nós, que estamos mergulhados num pessimismo tão radical, e que
pode finalmente levar, a nível individual, ao suicídio, uma vez que não há remédio, solução ou com-
pensação.

Estas várias orientações que resultam do cristianismo não são fruto da revelação, mas historica-
mente são os seus produtos e encontraram encarnação histórica. Não precisamos de insistir no
facto bem conhecido de que a dessacralização permitiu o desenvolvimento da tecnologia e a explo-
ração ilimitada do mundo. No nosso próprio niilismo, acreditámos que tudo é legítimo, e os cristãos
tentaram apoiar esta possibilidade a partir do Génesis, argumentando que Deus designou a raça
humana para explorar a terra (somos deixados “livres” para fazer o que quisermos com ela, até
mesmo para a destruir!), ou que a criação é simplesmente um esboço e que cabe a nós desenvolvê-
la. As duas correntes fundem-se muito rapidamente. Temos toda a liberdade para explorar a terra
até à morte. Somos mesmo designados por Deus para o fazer, e tudo o que fizermos é correto. Mas
também somos fundamentalmente pecadores. Temos a convicção de uma maldade absoluta. Isso
não interfere com a nossa atividade, mas tira-nos a alegria, a razão de viver. Assim, a negação do
mundo combina-se com a negação do eu, e a exploração do homem (pecador) liga-se à do mundo
(submetido) num dever sombrio, num poder sinistro e numa obsessão pelo fim.

Por causa do pecado, todas as obras da civilização são marcadas pela infâmia da sua origem. Tudo
o que emana da sociedade é mau e deve ser destruído. As convicções cristãs prepararam o terreno
para os ultrajes terroristas. Essas convicções podem ter sido postas de lado e esquecidas, mas estão
lá no fundo de nós. A destruição do sagrado deu origem ao niilismo em relação à natureza; e a con-
vicção do pecado, ao niilismo em relação às pessoas e à sociedade. Resta, sem dúvida, a questão
de saber se a laicização ou secularização do cristianismo, a que tantas vezes me referi, deveria tam-
bém ter desaparecido. Deparamo-nos aqui com um fenómeno estranho, pois o que desapareceu foi
a divindade de Jesus Cristo, o facto de Deus ser o Pai, a graça, o perdão, o plano de salvação, a
libertação pela ação divina, o facto de o mundo em que vivemos ser criação, a providência, a pro-
messa, a ressurreição, o sentido da história na orientação para a nova criação. É esta mensagem
que é posta em causa no processo de secularização, na negação científica (como em ciências como
a psicanálise, a história, a psicologia, etc...), na negação política, no senso comum, na agressão do
materialismo marxista, etc... O resto, porém, é cuidadosa e escrupulosamente preservado.
99

Não há dúvida de que a filosofia, a psicologia e a psicanálise modernas contestaram firmemente a


ideia de pecado, culpa ou responsabilidade humana, num esforço para nos “libertar”. O resultado
não é uma conduta aberta ao bem ou libertada para ele, mas um egoísmo frenético, um desprezo
pelos outros, um desejo de engrandecimento e de domínio. Quando começamos a ter a convicção
de que não somos pecadores, o que é que vemos à nossa volta? O que é que nos trazem os milhares
de imagens transmitidas pela televisão? Epidemias, fomes, massacres, genocídios, revoluções que
levam a inúmeras execuções mesmo quando as intenções são as melhores, a instalação de ditadu-
ras sanguinárias e caprichosas, o socialismo transformado em instrumento de opressão, de assas-
sinato e de ódio, a espoliação do planeta pela tecnologia. Todos os dias nos são apresentadas ima-
gens do inferno.

É certo que já não colocamos tudo isto em termos de pecado. Mas como é que podemos não chegar
à convicção de que a raça é má? Se não o fizermos, então é o regime político, a organização, a ins-
tituição que é má. É óbvio, então, que devemos destruí-los. O que vemos, quando enxertado em
antigas imagens cristãs que podem estar abafadas e escondidas, mas que ainda existem, leva a crer
que este mal absoluto que não pode ser remediado (só Deus poderia resolver a situação, mas não
há Deus, como a nossa crise atual prova abundantemente) deve levar à aniquilação. Uma vertigem
de morte apodera-se das pessoas, mesmo das mais racionais, quando veem o que está a acontecer.
Periodicamente, o julgamento do mundo com base na convicção do pecado fez aparecer fanáticos
da destruição, os monges e cenobitas de Alexandria, os circunceliões, os milenaristas, os cavaleiros
do Apocalipse, etc... E agora, a visão concreta do mal invasor enxerta-se neste tronco antigo. É pre-
ciso destruir o mais rapidamente possível esta sociedade que é o inferno. Estamos assim perante a
tentação generalizada de uma vertigem niilista deste tipo, talvez provocada, ou pelo menos alimen-
tada, pela existência da possibilidade de um suicídio coletivo, de armas poderosas que ponham fim
à raça e à sua história.

O caminho conduziu assim do cristianismo ao niilismo. Nada mais resta nas nossas mãos. O cristi-
anismo destruiu tudo o resto, e teve dentro de si a contradição que, por sua vez, também o destruiu.
Tudo o que temos são enormes armas de destruição e meios cheios de promessas que, por sua vez,
quando aplicados, conduzem ao desastre em todos os domínios. A responsabilidade do cristia-
nismo não pode ser negada.

II

A CONTRADIÇÃO

O problema misterioso com que ainda nos confrontamos é como é que tudo isto pode ter aconte-
cido. Como pode ter havido esta total inversão e perversão radical não só da verdadeira mensagem
da revelação cristã, mas também da própria vida cristã, da qual o único exemplo legítimo e eficaz é
a vida de Jesus, em relação à qual nenhuma negação é defensável? A pergunta é sempre a mesma:
como é que o ouro puro se transformou em chumbo? Como é que o socialismo, com a sua visão da
100

bondade e da liberdade humanas, se tornou estalinismo ou marxismo, ditaduras impiedosas? Será


que o demónio existe mesmo? Mas mantenhamo-nos fiéis ao cristianismo. Porque, em última aná-
lise, não há negação mais total do niilismo do que o cristianismo, a revelação cristã.

Temos agora de responder a uma objeção: ‘Independentemente do que esta revelação ou a vida de
Jesus possam dizer, a única coisa que conta é o que os cristãos fizeram ao longo da história, o que
produziram como tendência ou tipo de civilização e, a nível individual, o que foram na esfera eco-
nómica (capitalistas!). Pode ter havido alguns cristãos devotos, mas eles não contam’. A questão
implícita é séria, mas equivocada. O primeiro erro é pensar que um Estado ou uma sociedade se
podem tornar cristãos. O cristianismo foi sempre uma mutação pessoal com base na fé na revela-
ção. Não é algo coletivo. Não há pluralidade a não ser na Igreja, um corpo específico que não é uma
sociedade e muito menos um poder. O segundo erro é julgar o cristianismo por obras coletivas que
transportam todo o magma socioeconómico com alguns fragmentos de ideologia cristã mistura-
dos. Mas não é a isto que se chama finalmente cristandade? Não foi a ela que os cristãos recorre-
ram?

A fé cristã é, de facto, um anti-niilismo. A Bíblia na sua estrutura básica exclui todo o niilismo. Vou
recordar três pontos.

Em primeiro lugar, temos a criação. Esta não é, obviamente, descrita em termos de uma realidade
concreta no relato do Génesis. O objetivo não é explicar as coisas existentes. Não se trata de um
mito das origens. O que é decisivo é a presença do Criador e a relação com este Criador, ou seja, a
existência de uma decisão que exprime uma vontade de realizar algo novo, uma arche. Esta vontade
não é arbitrária nem negativa. É positiva e integrada no amor. O amor é a sua expressão. O mundo
existente só existe em virtude dessa vontade e com referência a ela. Nenhum pessimismo ou nii-
lismo é, portanto, possível. Mesmo quando há (da nossa parte) uma recusa e uma rutura, esta von-
tade, que não nos obriga, permanece inalterada na sua verdade, mudando apenas nas suas expres-
sões, nos seus “modos e meios”.

A relação com o Criador implica que somos livres, mas não autónomos, que não podemos ser posi-
tivamente, mas apenas negativamente, uma lei para nós próprios e para o mundo. Desde o início
somos responsáveis, mas apenas responsáveis, nada mais. A nossa conduta não é ditada ou prede-
terminada. Chamar a Deus Criador significa que, sendo amor, ele respeita a decisão e até a inde-
pendência da sua criação, quando nós queremos conquistar a independência em relação a ele. Mas
porque o Criador é o próprio ser, não pode haver niilismo. Podemos questionar todas as coisas, mas
apesar de todas as nossas afirmações grandiloquentes sobre a “morte de Deus”, não podemos to-
car no nosso Criador. A última palavra está com ele. Nada depende do acaso histórico. Os aconte-
cimentos circunstanciais têm obviamente a sua importância, pois neles exprimimos a nossa relação
(positiva ou negativa) com o Criador e abrimos, ou fechamos, a possibilidade de algo novo. Mas,
porque o mundo é criação, ele repousa sobre o amor divino, não sobre as decisões humanas.
Quando pensamos nele como criação, não podemos exercer a nossa omnipotência na exploração
ou na destruição. Os nossos meios são limitados pelo próprio facto de termos de lidar com a criação
e não apenas com a natureza ou com qualquer tipo de meio.

Um segundo aspeto da contradição radical entre a revelação cristã e o niilismo diz respeito ao facto
de a história ser dotada de um sentido, de não o ter intrinsecamente (pois então poderíamos
101

destruí-lo), mas de o receber. Há aqui um novo motivo de espanto. De facto, Israel é o primeiro a
colocar o problema da relação com a natureza e com Deus em termos de história e não de filosofia.
Deus é Deus na história. (Mais tarde, em Jesus, ele é Emanuel.) Ele escreve os seus atos na história.
Ele percorre um caminho histórico connosco. Se a história tem um sentido, não é um sentido meta-
físico ou metahistórico. A singularidade da fé judaico-cristã é que nela a história não tem um sentido
intrínseco em si mesma, nem um sentido que lhe venha de um fator exterior incomensurável e des-
conhecido. É a presença de Deus nos acontecimentos humanos que lhes dá um sentido à medida
que se desenrolam. Assim, cada situação ou sequência de acontecimentos tem um sentido que é
preciso ler. Conduz a um resultado positivo. Por esta razão, devemos rejeitar as interpretações ha-
bituais que são oferecidas atualmente, como a repetição sem fim, ou o progresso incessante, ou a
entropia inevitável, ou um avanço inelutável para o socialismo, ou a história como som e fúria, uma
história contada por um idiota, sem significado.

Tais interpretações são inaceitáveis para o pensamento, a vida e a fé cristã. São falsas, porque a
história, ao fazer-se, é infundida por uma relação que se desenvolve de uma forma particular, posi-
tiva, mas indescritível, na qual o Criador nos dá a garantia de que o fim não é o caos ou o nada, nem
a repetição pura e simples do melhor dos mundos. Se o fim positivo é certo, o caminho para ele,
deixado à nossa iniciativa, é indefinido e flexível. A obra final depende das realizações sucessivas
da humanidade que Deus recebe, salva, assume e retoma. Por outras palavras, duas tendências são
rejeitadas na revelação bíblica. A primeira é que Deus faz tudo, que nós não temos nada a fazer, que
o nosso trabalho não é nada, ou, pior ainda, que Deus faz todo o bem e nós fazemos todo o mal. A
segunda é que nós fazemos tudo, que somos os únicos responsáveis pelo sentido e pelo fim da his-
tória, que se falharmos, o resultado é o desastre e a derrota universais. Mas o espanto a que aludi
deve-se ao facto de, deste ensinamento perfeitamente claro e perspícuo da revelação, se poder de-
rivar uma teologia do transcendentalismo que nos deixa a caminhar pelo mundo sem orientação,
sem esperança, sem presença, como se estivéssemos realmente sós no mundo. Voltaremos a esta
questão.

No decurso da história ou do processo que nos é apresentado como a nossa relação com Deus, há
uma interação entre promessa e cumprimento, esperança e atualização. Numa situação específica,
recebemos uma promessa precisa e limitada de Deus. Depois de um prazo mais ou menos longo,
recebemos então o cumprimento ou a realização dessa promessa. Cada promessa cumprida dá ori-
gem a uma nova promessa. Há um ricochete em direção a um outro horizonte que é simultanea-
mente histórico e eterno, pois o que é histórico só tem valor porque é atravessado pela promessa
do eterno. A combinação do cumprimento de uma promessa antiga com o aparecimento de uma
nova significa que somos chamados a viver a situação atual na esperança. Isto leva à ação. A ação
não é vã. Por mais pequena que seja, não é inútil que nos envolvamos. Porque o cumprimento da
promessa de Deus é sempre uma combinação de mandamentos, imperativos e intervenções (não
constrangedoras nem definitivas) vindas de Deus e das nossas iniciativas, que podem ser aberran-
tes ou negativas, mas nunca são definitivas nem irreparáveis, nunca caem no nada do passado, não
estão destinadas ao inferno, e são retomadas por Deus em situações constantemente novas até que
chegue a última e verdadeiramente nova situação - o novum que Deus realiza como recapitulação
de todos os empreendimentos humanos, quando estes atingem finalmente a sua consumação
transcendente.
102

No decurso da história, com base na concessão das promessas àqueles que têm olhos para as ver,
é possível a esperança, isto é, a afirmação de que, apesar de todos os cálculos, estimativas ou ava-
liações humanas sobre o futuro provável, por mais sombria e trágica que seja a situação, ainda
existe uma verdade; ainda há, mesmo assim, pessoas que a mantêm, e ainda temos uma história
aberta ao futuro. Tudo isto é da ordem da decisão ou da afirmação, tanto no plano individual como
no coletivo. Mas não se trata de uma afirmação insubstancial e gratuita, de um ato de fé absurdo,
irracional e irrealista. Pelo contrário, é uma afirmação que se faz a partir de uma realidade conhe-
cida, recordada e conservada, uma realidade pessoal e coletiva que é vivida historicamente e que
não pode, de facto, ser reduzida a nenhum outro fator.

Afirmamos assim que, tanto na sua verdade profunda como na sua experiência, o cristianismo é, ao
nível mais profundo, um anti-niilismo. O niil, a morte e o nada e, correlativamente, o instinto de
morte, o não-senso, o desespero, o desprezo e a angústia são precisamente o oposto daquilo que
Deus, na sua ação e no seu ser em Jesus Cristo, revelou sobre a sua relação connosco, o oposto que,
devemos sabê-lo, já foi transcendido, vencido e ultrapassado. O niilismo é uma atitude retrógrada
cujo tempo já passou.

III

A INVERSÃO

A questão, então, é como pode ter havido uma reviravolta ou inversão de tal verdade. Certamente,
o que acabámos de descrever brevemente como o anti-niilismo esteve sempre presente. Sempre
esteve presente em algumas tendências e lugares dentro do mundo cristão. Sempre foi reafirmado,
repetido, redescoberto. Sempre conheceu renascimentos. Mas, finalmente e essencialmente, sem-
pre existiu o contrário de que falámos na primeira parte. Temos de tentar compreender como é que
a revelação se inverteu a ponto de se tornar uma fonte do niilismo contemporâneo. Parece-me que
podemos discernir três processos: a transformação de um movimento vivo de relação numa situa-
ção realizada e definida; a objetivação; e a dissociação. No fundo, a mutação é a mesma que temos
vindo a afirmar constantemente na passagem da história à metafísica. Tenta-se apreender uma
coisa momentânea de modo a explicá-la de forma absoluta e a congelá-la. Esse foi o erro dos discí-
pulos quando viram a transfiguração e se propuseram a montar tendas para poderem permanecer
na luz inefável em companhia de Moisés e Elias. É o erro da tentativa de solidificar num sistema
detido, compreensível e explicável aquilo que está em movimento imprevisível em direção a um
resultado qualquer. Ele leva a esforços para encontrar harmonias no que é momentâneo e para
trazer o que é irreconciliável para um acordo duradouro, como o tempo e a eternidade, ou o abso-
luto e o relativo, ou as naturezas humana e divina de Cristo. Leva à tentativa de transformar o que
é vivo, explícita e implicitamente, em algo fixo. Leva ao estabelecimento de poderes (por exemplo,
na Igreja) e de relações de poder. A partir daí, estamos mergulhados em situações contraditórias e
inextricáveis, em dificuldades insolúveis, onde só a negação, a rejeição total e o escárnio parecem
103

conceder-nos liberdade. Mas trata-se de uma liberdade mortal que acaba por nos submeter à ilusão
e ao nada. Esta tem sido a nossa experiência no Ocidente desde o século XVIII.

O segundo erro, que está muito próximo do primeiro, é o de objetivar, isto é, mudar a verdade da
revelação que o Criador dá numa relação pessoal, de tal forma que, de texto preso e congelado, se
torna uma lei objetiva, uma revelação fechada, um texto que tem a sua própria validade. Quer se
trate da Lei, do Sermão da Montanha ou das Bem-aventuranças, o processo é sempre o mesmo. A
Palavra recebida adquire o seu valor próprio. Tem de ser estudada por si mesma. É verdadeira na
letra e no conteúdo. Pode, portanto, ser generalizada, aplicada em todo o lado e a todos. Tem a sua
própria estrutura significativa. É objetiva; é dotada de objetividade “científica”. Uma vez adotada
esta atitude, é evidente que a contradição surge imediatamente para tentar mostrar que este texto
é incerto, que não é objetivo, que se apoia em testemunhos duvidosos, que é relativo ao seu con-
texto cultural finito, etc... Quando isso acontece, só resta a substituição, mas já vimos que, depois
do cristianismo, a substituição é impossível. Tudo o que aparece é um substituto “cristão” de um
cristianismo rejeitado. Assim, o comunismo é um cristianismo reeditado, mas não pode ser susten-
tado precisamente por causa da sua pretensão de objetividade. O niilismo é a única saída.

Finalmente, defendo que o terceiro movimento pelo qual os cristãos se tornam responsáveis pelo
niilismo é a dissociação. Já o processo de objetivação é também um processo de dissociação. Que-
bra a ligação entre a Palavra e aquele que a pronuncia, entre a pessoa e o anúncio (por exemplo, o
facto de a palavra de Jesus só ser verdadeira porque é ele que a pronuncia). Mas há também uma
outra dissociação no mundo da revelação contida na Bíblia. A revelação não se sustenta e não é
anti-niilista se não se juntarem todos os elementos de forma indissolúvel, se o Deus transcendente
não for também aquele que se encarna na nossa história, se o Deus escondido não for também
aquele que se revela e, reciprocamente, o Deus revelado for também o Deus escondido - se a santi-
dade (separação) não for a condição do amor (e vice-versa), a não ser que a fé produza obras e as
obras sejam necessariamente o produto da fé, a não ser que tudo seja feito por Deus e, no entanto,
nós também tenhamos que fazer tudo, a não ser que Deus seja soberanamente livre e nós também
sejamos livres (não condicionados de forma alguma, apesar da presciência e da predestinação), a
não ser que a salvação seja concedida por pura graça e as obras sejam inúteis, e, no entanto, as
obras sejam estritamente indispensáveis diante de Deus...

Poderia alargar esta lista de exemplos de aparentes contradições na revelação bíblica. As contradi-
ções são racionalmente insolúveis. Mas o que é que a razão pode dizer quando é o Deus absoluto,
transcendente e ‘Totalmente Outro’ que entra em relação connosco? Quando aceitamos a totali-
dade desta revelação de forma coerente e vital, ela conduz-nos à vida. Quando nos dissociamos,
quando escolhemos (um texto, um aspeto ou uma verdade), tentando construir um sistema racio-
nal e não contraditório, mergulhamos tragicamente no niilismo. Um exemplo é fornecido pelo pe-
cado, cuja importância vimos para o nascimento do niilismo ocidental. O erro foi dividir o pecado
em pecado original e pecado pessoal, descrever-nos como intrinsecamente pecadores, como se es-
tivéssemos sem Deus61 (mas como podemos estar sem Deus se Deus é Deus?).

Surgiu assim o debate desastroso e ridículo sobre se o pecado trouxe a corrupção total ou se ainda
resta algo de bom em nós, como acreditam os católicos romanos, mas não os protestantes. O

61Uma questão menor: creio que a reconstrução dos Pensées de Pascal com uma secção dedicada ao “Homem sem Deus”
está errada; Pascal era um teólogo demasiado bom para ter escrito isso.
104

pecado torna-se uma categoria própria. O pecado torna-se a nossa natureza humana, etc... O que é
esquecido aqui é simplesmente o facto de a Bíblia não descrever o pecado e os pecadores desta
forma. Só aprendemos sobre o pecado com base na proclamação da graça e do perdão. É quando
tomamos a Palavra de Deus com toda a seriedade que descobrimos que somos pecadores, nós e
não os outros, não as pessoas enquanto tais, não objetivamente, mas eu próprio quando ouço esta
Palavra. É quando creio em Cristo crucificado que descubro a profundidade do meu pecado. É como
alguém que é perdoado que eu me vejo como um pecador. Fomos nós próprios que restabelecemos
o que nos parece ser a ordem lógica: primeiro somos objetivamente pecadores, depois Deus per-
doa-nos; porque, na nossa lógica, só perdoamos a uma criança quando ela desobedece pela pri-
meira vez.

Desta nossa lógica deduzimos uma lei geral e formulamos a universalidade do pecado humano.
Começamos com uma mensagem abstrata e coletiva sobre os pecadores, com a proclamação do
pecado. Mas, biblicamente, temos apenas uma proclamação da graça e uma pregação do perdão.
A revelação bíblica sobre o pecado procede de forma retroativa, ao passo que nós estabelecemos
um método progressivo em que, quando o perdão já não é ouvido e as pessoas já não estão cons-
cientes da graça, resta apenas o resíduo do pecado. O cristianismo é então justamente acusado de
ter esmagado as pessoas com a culpa e de as ter acorrentado ao mal. Para sair, para escapar a este
mal, há então a negação da vontade de Deus para nós, da lei, de toda a moral, etc... Entrava-se
assim no niilismo. O mesmo perigo corre, a mesma ilusão é alimentada pela tendência de fazer de
Jesus e do Evangelho uma mensagem política, de selecionar da revelação apenas a parte que diz
respeito aos pobres, à revolução, etc...

Nestes três últimos casos, o que desaparece é a presença ativa, atualizada, viva e mutável do ser
que dá sentido. É isso que conduz ao nosso niilismo, quer através do nosso domínio absoluto sobre
a natureza (porque já não somos responsáveis), quer através do nosso pecado (que não é perdoado
e é, portanto, inexpiável). Devemos então perguntar-nos porque é que, na revelação, é sempre a
parte nova e viva que acaba por desaparecer. A resposta é que, na revelação, é precisamente esta
parte que não pode ser fixada ou apreendida, que não é racional ou objetivável, de modo que nos
parece sempre que, quando nos deparamos com uma realidade deste tipo, não podemos estar se-
guros de nada. Gostamos sempre - e hoje mais do que nunca - de coisas com que podemos contar,
certezas óbvias, um futuro seguro, deveres simples, uma linha de conduta clara. A incerteza de coisas
flutuantes como o amor e a graça horroriza-nos. Dizer que Deus nos ama não nos dá qualquer segu-
rança. Preferíamos que ele nos desse cinquenta coisas para fazer, para que, depois de as termos
feito, pudéssemos estar em paz. Não queremos uma relação permanente com Deus. Preferimos
uma regra. Não nos satisfaz que Deus nos dê graça ou nos liberte. Preferimos prendê-lo pelas nossas
virtudes e ter a certeza de que ele não tem liberdade para fazer de nós o que quiser.

Assim, tentámos incessantemente objetivar a nossa relação com Deus. Construímos a ideia de uma
natureza que é um ponto de referência para nós, uma vez que foi criada por Deus. Estar em confor-
midade com a natureza deveria ser suficiente. Criámos soberanias (eclesiásticas ou políticas) que
representam Deus na terra e com as quais podemos ter uma relação clara. Sobrevalorizámos a lei,
fazendo dela a expressão da vontade de Deus. Substituímos a soberania do amor pela da política,
e a liberdade pelos deveres. Mas é precisamente toda esta construção que abre a porta ao niilismo.
Porque nada disto pode resistir à simples questão, que é abafada e empurrada para debaixo da
tampa durante o período em que o controlo social é adequado, mas não pode ser suprimido
105

indefinidamente, a questão: Porquê? Porque é que devemos obedecer à lei ou ao Estado? Porque é
que devemos aceitar esta moralidade? Ninguém consegue dar uma resposta.62

62O melhor testemunho recente da nossa condição atual é o livro de Romain Gary, Les Clowns lyriques (Paris: Gallimard,
1980), que tanto descreve o niilismo como é um protesto desesperado contra ele.
106

Capítulo 8

O CORAÇÃO DO PROBLEMA

Se admitirmos que o que o Novo Testamento é entendido por cristianismo e ser cristão conforma-
se apenas com as ideias humanas e isso agrada-nos e lisonjeia-nos como se fosse tudo invenção
nossa e ensino que brota de dentro de nós, então não há problema. Há, no entanto, um “mas”, uma
dificuldade, porque o que o Novo Testamento realmente quer dizer com ser cristão é exatamente o
oposto do que é natural para nós. É, portanto, um escândalo. Temos de nos revoltar contra isso ou,
a todo o custo, encontrar formas astuciosas de evitar o problema, como o truque de chamar ao
cristianismo aquilo que é, de facto, a sua antítese exata, e depois dar graças a Deus pelo grande
favor de sermos cristãos. Como diz Kierkegaard, nada nos desagrada ou revolta mais do que o cris-
tianismo do Novo Testamento, quando este é corretamente proclamado. Ele não pode conquistar
milhões de cristãos, nem trazer receitas e lucros terrenos. O resultado é a confusão. Para que as
pessoas estejam de acordo, é preciso que o que lhes é anunciado seja do seu agrado e as seduza.
Aqui está a dificuldade: não se trata de mostrar que o cristianismo oficial não é o cristianismo do
Novo Testamento, mas de mostrar que o cristianismo do Novo Testamento e o que implica ser cris-
tão são profundamente desagradáveis para nós (“Instant”, p. 167). Nunca - não mais hoje do que no
ano 30 - a revelação cristã nos agradou: no fundo dos nossos corações, o cristianismo sempre foi
um inimigo mortal. A história testemunha que, geração após geração, tem havido uma classe social
altamente respeitada (a dos padres) cuja tarefa é fazer do cristianismo o oposto do que ele real-
mente é (p. 240).

Até aqui, temos estado a traçar os contornos desta subversão. Olhámos para a história. Mas ainda
não chegámos ao cerne do problema: não se trata da questão do “como”, mas do “porquê”. Até
agora, tentámos responder analiticamente à questão de “como” a revelação do Deus de Abraão, de
Isaque e de Jesus Cristo - ou seja, como os Evangelhos - pôde produzir um cristianismo tão distante
e tão diferente da sua origem. Com efeito, explicações de ordem sociológica não poderiam levar-
nos para além deste “como”. No decurso da história, não há nenhum ponto onde se possa fixar o
“porquê”. Poder-se-ia suspeitar que no coração do movimento sociológico existe uma maquinação
sinistra, uma mão invisível, um demónio oculto. Nada nos permite responder, a não ser que passe-
mos para outro plano, o plano espiritual, ao qual voltaremos de facto. De momento, porém, temos
de nos cingir ao que pode ser estabelecido. Se perguntarmos por que razão as coisas aconteceram
como aconteceram, não podemos dar uma resposta global ou coletiva. Temos de considerar a re-
lação entre a revelação e as pessoas comuns a quem ela se dirige. É um acorde trágico!

Poderíamos ter tido a impressão de que o X de que falámos no início foi vítima de uma espantosa
conspiração, que todos os poderes e forças sedutoras do mundo se uniram para transformar esta
revelação, esta obra de Deus, num cristianismo banal, conformista e vulnerável. Poderíamos ter
ficado surpreendidos por não ter resistido mais. É aqui que se deve dizer que, se não reagiu com
mais vigor, se o Espírito Santo não se manifestou em toda a sua grandeza e brilho, se os cristãos e
a Igreja parecem ter cedido tão facilmente, é porque X era em si mesmo totalmente inaceitável, in-
107

tolerável, insuportável, inabitável, e isto não apenas no plano intelectual, como quando Paulo sus-
cita o escárnio ao anunciar a ressurreição aos filósofos de Atenas. Não, o problema não é o facto de
ser difícil explicar esta revelação, de ela conter mistérios como o nascimento virginal, os milagres
ou a ressurreição. Muito pelo contrário: fatores como estes são positivos, e são totalmente aceitá-
veis para as pessoas comuns. A religião e o milagre são coisas excelentes. Em todas as épocas que-
remos a paz religiosa, a certeza da vida eterna, a consolação piedosa. Acreditamos em mágicos e
adivinhos. Os milagres não nos repugnam. Só o século XIX, e os anos cinquenta do nosso século, é
que adotaram a visão simplista de que a era da ciência nos tornou racionais, que “atingimos a mai-
oridade”, como diziam, de modo que não faz sentido falarem-nos de milagres ou de ressurreições,
sendo necessário desmitificar. Que ignorância da parte de Bultmann! Que infantilidade! A raça é
sempre crédula (como mostra o enorme sucesso de Nostradamus em julho de 1981). A raça está
sempre disposta a seguir caminhos misteriosos (como mostra o sucesso das seitas mais ridículas
nos últimos vinte anos).

Se a revelação é intolerável, não é por causa da sua roupagem mítica ou lendária. Pelo contrário, é
isso que corre o risco de se tornar constantemente mais aceitável, mas mudando a sua natureza,
tomando-a como sagrado, como sobrenatural, como religião. O elemento intolerável é mais pro-
fundo do que isso. Como primeiro ponto da nossa resposta, limitar-nos-emos a remeter novamente
para o nosso estudo anterior sobre o processo de dessacralização que produz uma ressacralização
daquilo que provoca a dessacralização. Isto dá-nos uma pista, de modo que, sem nos repetirmos,
podemos simplesmente dizer que este movimento nos mostra que é completamente intolerável
vivermos num universo religiosamente deserto, num mundo dessacralizado. Precisamos de uma
religião. Corremos assim para o vencedor da Medusa que adorámos ontem. Reformulamos a reve-
lação de Deus como uma religião com as suas próprias lendas, mitos, mistérios, êxtases e religiosi-
dade. Não preciso de voltar a este assunto.

De igual modo, um outro aspeto não precisa de nos deter muito, pois também dele tratámos nos
capítulos anteriores. No fundo, X, quando chega até nós, não pode ser organizado. Não podemos
ter nem estabilidade, nem rotina, nem permanência coletiva, nem associação, nem coesão de
grupo, se quisermos viver da revelação, se pusermos X no centro como verdade única. Ela não pode
ser vivida socialmente. Quando nos dizem que o Espírito Santo constituiu a Igreja no Pentecostes,
isso agrada-nos. Mas quando aprendemos que o Espírito Santo é como o vento que sopra quando
e onde quer e não sabemos de onde vem nem para onde vai, isso não nos agrada. A igreja pode
dizer que tem o Espírito Santo, mas se o fizer trai a sua verdade e legitimidade. Quando nos dizem
que a Igreja é constituída por aqueles que Deus chama, aplaudimos, mas quem são eles? Quem
pode traçar os seus limites? Podemos dizer que a Igreja tem um centro, Jesus Cristo, mas não tem
uma circunferência. Não podemos dar garantias a ninguém e não podemos excluir ninguém. Pode-
mos acreditar que encontrámos uma solução no batismo. Os membros da igreja são batizados, e
os batizados são a igreja. Muito bem. Mas infelizmente o Novo Testamento distingue muito clara-
mente entre o batismo da água e o batismo do Espírito. Os dois não coincidem (exceto quando a
igreja falsamente decide que coincidem!). Voltamos assim à mesma dificuldade.

Quando nos dizem que a Igreja tem ministros e que a sua vida se organiza à volta deles, muito bem.
Mas há que recordar imediatamente que estes ministérios são um dom do Espírito Santo e não uma
coisa permanente ou organizada. Criamos cargos pastorais ou beneméritos, com reitores e bispos,
etc.., e depois preenchemos esses cargos com pessoas que nós mesmos consideramos como sendo
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as melhores. Depois, preenchemos esses lugares com pessoas que nos parecem adequadas. Mas
isto é o contrário do movimento apresentado nas Epístolas, em que o Espírito Santo dá à Igreja
pessoas que têm os dons do amor, da palavra ou do ensino, e a Igreja tem de encontrar um lugar
para elas, mesmo que não o tenha previsto. Se, ao fim de algum tempo, o Espírito Santo não dá
alguém que tem o espírito de profecia, mas dá alguém que tem o dom dos milagres, então a igreja
tem de mudar a sua forma e os seus hábitos!

Sem dúvida que alguns responderão que Deus não é um Deus de desordem, de incoerência ou de
arbitrariedade, mas um Deus de ordem. É claro que é. Infelizmente, todo o Antigo Testamento nos
mostra que a ordem de Deus não é aquela que nós concebemos e desejamos. A ordem de Deus não
é organização e instituição (cf. a diferença entre juízes e reis). Não é a mesma em todos os tempos e
lugares. Não é uma questão de repetição e de hábito. Pelo contrário, reside no facto de que propõe
constantemente algo de novo, um novo começo. O nosso Deus é um Deus de inícios. Nele não há
redundância ou circularidade. Assim, se a sua Igreja quiser ser fiel à sua revelação, será completa-
mente móvel, fluida, renascente, borbulhante, criativa, inventiva, aventureira e imaginativa. Nunca
será perene e nunca poderá ser organizada ou institucionalizada. Se as portas da morte não vão
prevalecer contra ela, não é porque é uma fortaleza boa, sólida e bem organizada, mas porque está
viva; é Vida - isto é, tão móvel, mutável e surpreendente como a vida. Se ela se torna uma poderosa
organização fortificada, é porque a morte prevaleceu. Assim, mesmo no nível humilde da igreja, a
revelação não pode ser organizada nem vivida socialmente. Quanto mais quando os cristãos de
repente se encontram no comando da “sociedade”!

Se a verdadeira Igreja não pode ser organizada por causa da verdade de Cristo, muito menos pode
uma sociedade inteira. O que a Bíblia nos diz não tem utilidade para uma sociedade. É uma rutura
que não pode ser contida. Pode-se normalizar a desintegração atómica, mas não a desintegração
produzida pelo Evangelho. Se pensamos tê-lo feito, então, muito simplesmente, o Evangelho já não
existe. Fabricámos uma religião, o cristianismo, que não tem nada a ver com Jesus Cristo. Se X for
levado a sério, é impossível fazer uma sociedade funcionar. É impossível coordenar a conduta de
forma permanente. É impossível colocar a obra de X numa escala social.

Que fique bem claro que não estou a dizer que a sociedade e o Estado são maus. O que estou a dizer
é que eles funcionam segundo as suas próprias leis, princípios e exigências. Tudo isso é útil para
nós; não podemos viver sem sociedade e organização. Estou também a dizer que isso não tem nada
a ver com o X da revelação. Este X deve permear o corpo social e tornar-se um fator ativo, vivificante,
crítico, perturbador, inadequado ou estimulante, mas nunca uma instituição pertencente ao corpo
social, nunca um princípio para o organizar. Vejamos, por exemplo, a encarnação. O corpo de Jesus
é, sem dúvida, um corpo humano como qualquer outro. A sua circulação sanguínea e a sua digestão
obedecem a leis fisiológicas normais. Isso não é afetado pela sua filiação divina. Conhece a fome e
a fadiga. Sofre, etc.., como todos os outros. No entanto, em tudo isto e sob tudo isto, sem qualquer
alteração corporal, intervém o Espírito Santo, o próprio Deus na sua totalidade.

A relação entre a revelação X e o corpo social é a mesma. X não altera nem a estrutura nem o funci-
onamento do Estado ou da política. Estabelece uma relação de conflito. Esta é desgastante. É des-
gastante para ambas as partes. É intolerável. Eis o que chamei ‘a intolerabilidade social da revela-
ção’. Um caminho mais prático é fazer um acordo de cavalheiros. É mais satisfatório para os cristãos
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construir uma igreja organizada, instituições cristãs, uma sociedade e uma política cristãs. A subver-
são dá-se, não porque a sociedade seja perversa, mas porque a revelação é socialmente intolerável.

O pior é que o elemento intolerável é mais profundo. Afeta diretamente o coração do homem. Tudo
o que o Evangelho declara é intolerável, inaceitável. As pessoas reais, em qualquer sociedade, as
pessoas de carne e osso, não podem engolir isso. Vejamos algumas das grandes verdades evangé-
licas.

A graça. Acha que é aceitável? Aprender que somos os destinatários da graça. ‘Não depende de
mim’; ‘eu não posso fazer nada’. “Não é daquele que quer ou corre”. A graça é odiosa para nós. Não
há nada de agradável em descobrir que somos como pessoas condenadas pela natureza a quem
um príncipe bondoso concede generosamente a vida sem nenhuma razão aparente, sem nenhum
motivo realista que possamos compreender. É tudo tão arbitrário: Serei gracioso com quem quiser
ser gracioso, e misericordioso com quem quiser ser misericordioso. Como é que podemos agarrar,
forçar ou constranger Deus? Nenhum sacrifício, cerimónia, rito ou oração pode merecer a graça,
precisamente porque ela é pura e totalmente graciosa e gratuita. Estou contente com isto? Não,
porque todo o princípio do dom e do contra-dom, da troca de presentes, é perfurado pela graça
gratuita, preveniente e santificante. A acreditar nos especialistas, este mecanismo de dádiva e con-
tra-dádiva é verdadeiramente determinante nas relações humanas e na “natureza” humana. A
graça é, pois, totalmente inaceitável deste ponto de vista.

Além disso, a graça exclui o sacrifício. Girard tem toda a razão quando mostra como o sacrifício é
fundamental para a humanidade. Não pode haver vida ou relação social aceite sem sacrifício. Mas
a graça graciosa rejeita a validade de todo o sacrifício humano. Ela arruína um elemento básico da
psicologia humana. A revelação é essencialmente contrária. Ela não satisfaz as necessidades religi-
osas. Não satisfaz nenhuma das nossas necessidades ou grandes aspirações ou grandes garantias,
como a necessidade de autojustificação. Somos possuídos por um desejo obsessivo de nos justifi-
carmos, de declararmos que somos justos, de sermos justos aos nossos próprios olhos, de parecer-
mos justos aos olhos dos outros, dos vizinhos e conhecidos, e finalmente de sermos declarados jus-
tos por todo o grupo a que pertencemos. Na conduta humana e nos movimentos sociológicos, esta
sede de autojustificação é constante e fundamental. A necessidade de justificação e de racionaliza-
ção é hoje melhor reconhecida, pois é assim que nos consideramos coerentes.63 Sabe-se agora que
aqueles que são forçados por uma autoridade superior a professar um partido acabam inevitavel-
mente por justificar o que fazem, apresentando-o como uma escolha livre. Assim, legitimam tam-
bém o poder que os constrange.

Uma sociedade não pode ter estabilidade se os seus membros não forem justos e justificados por
pertencerem a ela. Mas a revelação de Deus no Sinai e a revelação de Jesus Cristo vêm inexoravel-
mente contradizer, contestar e excluir este desejo apaixonado e esta necessidade irredutível. Não,
nunca seremos justos. Nunca faremos o que Deus exige. Seja qual for a nossa paixão ou amor pela
lei, os nossos escrúpulos e virtudes, nunca é suficiente. Perante Deus, somos sempre pecadores,
sempre em dívida, sempre fundamentalmente injustos. O jovem rico que se aproxima de Jesus, sem
dúvida um bom fariseu, diz-lhe que fez tudo isso, toda a lei com os seus estatutos minuciosos, e
pergunta-lhe que mais deve fazer. Eis a situação. ‘Fiz tudo, mas sei que há mais a fazer’. Mas o quê?

63 Cf. J.-L. Beauvois e R. Joule, Soumission et Idéologies. Psychologie de la rationalisation (Paris: PUF, 1981)
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‘Vai, vende todos os teus bens e dá aos pobres’. Há motivos para desespero, e Jesus agrava a situa-
ção, primeiro afirmando que nenhum yod da lei precisa de ser cumprido, depois por espirituali-
zando a lei. (“Ouvistes que foi dito: 'Não cometerás adultério'. Eu, porém, vos digo que todo aquele
que olhar para uma mulher com cobiça, já cometeu adultério com ela no seu coração.”) Depois,
finalmente, pela sua vida e morte, mostra que aqueles que não podem ser justificados perante Deus
são, de facto, justificados pela graça e pelo amor de Deus.

Note-se bem que “estamos justificados”. É-nos infligida a pior injúria possível. Somos despojados
da grandeza, da autonomia e da faculdade de justiça. Alguém (na nossa cólera, Deus torna-se um
alguém) nos justifica a partir do exterior. Um príncipe soberano concede a graça a súbditos que se
prostram diante dele na imundície e na abjeção de que não se podem livrar por si próprios. Não
podemos dar a nós próprios esta justiça. Nem sequer podemos dizer em que é que ela consiste. Não
podemos apropriar-nos nem da virtude da justiça nem da glória de nos justificarmos (glória tão
importante que muitos contos e lendas acabam por culminar nela, quando o herói triunfa através
de mil provas e recebe, por fim, a recompensa suprema que ganhou), que corresponde sempre ou
ao amor absoluto ou à pureza absoluta, isto é, à retidão obtida à custa de tantas provas numa con-
quista estritamente anticristã, sendo a busca do Graal e o ciclo de Lancelot uma mera paródia da
revelação). A declaração de que somos justificados pela graça, pelo amor soberano de Deus mani-
festado na morte de Jesus, despoja-nos de algo que consideramos essencial, nomeadamente, que
devemos moldar a nossa própria justiça.

Chegar ao ponto de nos colocarmos nas mãos de Deus para sermos justificados vai contra a cor-
rente e faz-nos arrepiar. Já ouvimos milhares de vezes a objeção indignada: ‘Mas o que é que estão
a fazer com a nossa dignidade humana?’ De facto, temos de admitir que não há lugar para a digni-
dade humana na Bíblia. A única condição para vir à Eucaristia é a admissão de que não somos dig-
nos.

Nietzsche tinha razão. Ele exprimiu o pensamento natural e normal de pessoas naturais e normais.
Não era um destruidor demoníaco do cristianismo. Não era um génio filosófico. Era simplesmente
um ser humano natural que levava a sério o que a Bíblia diz e que o rejeitava tão energicamente
quanto possível, por considerá-lo inaceitável. A mesma situação ocorre com a santificação ou a li-
bertação. Estas coisas acontecem fora de nós. A decisão não é nossa, porque resulta da livre graça
de Deus. Deus vem para nos santificar (o que, não o esqueçamos, não significa fazer de nós anjinhos,
mas sim preparar-nos para o serviço que ele espera de nós) e para nos livrar, para nos fazer livres.
Outrora éramos escravos, e um terceiro (não o nosso antigo senhor) vem libertar-nos.

Serei então um objeto, uma marioneta a quem Deus atribui a justiça, a santidade e a liberdade? De
modo algum! Perante Deus, sou um ser humano (ou então ele não teria sofrido a terrível dor de
morrer no seu Filho). Mas estou preso numa situação da qual não há verdadeira e radicalmente
nenhuma saída, numa teia de aranha que não posso romper. Para que eu possa continuar a ser um
ser humano vivo, é preciso que alguém venha libertar-me. Por outras palavras, Deus não está a ten-
tar humilhar-me. O que é mortalmente afrontado nesta situação não é a minha humanidade ou a
minha dignidade. É o meu orgulho, a declaração vaidosa de que posso fazer tudo sozinho. Não po-
demos aceitar isso. Aos nossos próprios olhos, temos de nos declarar justos e livres.64 Não queremos

64Relativamente ao desejo de ser livre por si próprio, tive recentemente uma pequena experiência divertida. O meu livro
sobre arte, L'Empire du non-sens (Paris: PUF, 1980), foi um fracasso total. Um amigo do mundo artístico disse-me que isso
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a graça. No fundo, o que queremos é a autojustificação. Começa assim o trabalho paciente de rein-
terpretar a revelação, de modo a fazer dela um cristianismo que glorifique a humanidade e no qual
a humanidade seja capaz de assumir o crédito da sua própria justiça.

Não só não sou o autor da justiça que me é atribuída a partir do exterior, como, pior ainda, não a
possuo. Não sou o seu proprietário. Não é uma qualidade intrínseca da minha natureza. O mesmo
se aplica a todos os elementos da vida cristã. A fé? Não me pertence. É-me dada. Torna-me vivo.
Está no centro de todos os meus atos e pensamentos. Não é um objeto que eu possa pegar e pôr de
lado como quiser. Vem sobre mim como um falcão. Agarra-me e leva-me, possivelmente para onde
eu não quero ir. E isso é inaceitável para mim, como testemunha a fórmula tradicional que fala de
“ter ou não ter fé”. Eu quero absolutamente ter e manter a fé. Quero que ela seja minha. Quero ter
a possibilidade de a tomar ou de a deixar. O carácter totalmente anti-cristão desta fórmula é algo
que já mostrei noutro lugar.65

Mas o “ter” desempenha um papel em todos os domínios. Também se aplica à salvação. Eu quero
absolutamente ser o seu dono e proprietário. Sou salvo pela graça, concordo. Mas uma vez feito
isso, está feito, não é verdade? Entro num estado estável, sólido, previsível e imutável. Mas eis que
na salvação, como na fé ou na liberdade, não entro num estado fixo. A salvação não é uma coisa
acabada. Nunca a possuo. Não é uma situação adquirida. Posso perdê-la (o próprio Paulo no-lo diz).
Para Deus, nada está acabado. Nunca estou estabelecido.

Precisamos de estabilidade, certeza e constância. Todos nós somos juristas perante Deus. Mas a
graça não é uma questão jurídica. Temos uma necessidade absoluta de sermos proprietários.66 Não
vou lançar um ataque à propriedade privada. Não se trata de uma questão económica. Precisamos
de ser donos da nossa vida. Como é glorioso podermos dizer que o nosso corpo é nosso, que somos
donos das nossas qualidades e do nosso destino. Preciso de estar em terreno sólido e de ter direitos
adquiridos. Mas a graça, no seu movimento, vai contra esta pretensão. Ela recorda-nos, por vezes
com dureza, por vezes com humor, que todas essas pretensões não passam de um mero engano. O
nosso corpo é nosso, mas, a sério, ao fim de sessenta anos teremos de perguntar se ainda nos per-
tence a nós ou ao reumatismo. Queremos um estado fixo, mas como é que podemos esquecer que
todas as coisas estão em fluxo? Se queremos ser proprietários, então devemos reler a bela obra de
Michaux, Mes propriétés. Utilizei intencionalmente dons não cristãos como exemplos. O que esta
graça vos dá é um novo estado, uma abertura para uma vida que não tem nada a ver com as vossas
pretensões mesquinhas, mas que verdadeiramente não vem de vós. Não sois o seu proprietário. No
entanto, tentais transformá-la em vossa propriedade. O cristianismo (como uma espécie de “ismo”)
exprime o instinto de propriedade do homem.

não era de admirar, porque eu cometi o pecado imperdoável, aos olhos dos artistas modernos, de mostrar que eles não
eram livres, que não encarnavam de modo algum a liberdade. Isto bastou para que o livro fosse rejeitado.

65 La Foi au prix du doute (Paris: Hachette, 1980); ET Living Faith (San Francisco: Harper and Row, 1983).

66Para uma prova anedótica e até certo ponto divertida de que precisamos absolutamente de possuir tudo, incluindo a
imortalidade, pode ler-se o livro de Jean Charron, Mort voici ta défaite (Paris: Albin Michel, 1979). Uma vez que a “alma imor-
tal” já não nos serve de nada, é introduzida a biofísica. Os eletrões que fazem parte do nosso corpo são eternos. Eles encer-
ram um espaço e um tempo diferentes daqueles a que estamos habituados. Este espaço-tempo possui qualidades espiritu-
ais. Memoriza os acontecimentos passados e ordena-os como o cérebro. Todo o nosso espírito está contido nesses eletrões
pensantes. Por isso, nós próprios somos imortais.
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Passemos agora a algo muito diferente. Jesus chama Pai a Deus. Isto mergulha-nos num outro con-
flito ou contradição no coração do nosso ser. Serei breve, pois não é esse o meu domínio. Estupida-
mente, vimos um grande progresso no facto de se poder pensar em Deus como Pai e não como Juiz
terrível ou Criador distante ou Absoluto impessoal e Eterno. Ele é um Pai próximo, terno e bondoso.
É isto que Jesus parece estar a dizer na sua comparação: “Qual é o pai entre vós que, se o filho lhe
pedir um peixe, em vez de um peixe lhe dará uma serpente; ou se lhe pedir um ovo, lhe dará um
escorpião? Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai
celestial...” (Lc 11.11-13).

Mas, infelizmente, aprendemos que as coisas não são assim tão simples. Já nesse ditado, o termo
“dar” é suspeito, não é verdade? Aprendemos que a relação entre pais e filhos não é uma relação
de amor puro e de afeto ilimitado, sem segundas intenções, ciúmes ou cálculos. Aprendemos que o
pai não é a figura tranquilizadora, protetora e terna, e que o filho não é aquele a quem o pai dedica
todo o seu afeto. Não, não, tudo isso é pura imaginação. A realidade profunda é muito diferente.
Existe uma coisa chamada complexo de Édipo. O pai é um obstáculo, o filho um rival. As relações
azedam, o amor é falso, reina o ódio assassino. O filho tem de matar o pai. O pai tem de devorar o
filho. Como estamos longe, hoje, da notável harmonia que Péguy celebrou no seu Un homme avait
deux fils, ou na sua admirável ode sobre o Pai-Nosso, em que argumenta que, quando Jesus nos
ensina a chamar Pai a Deus, desarma a ira de Deus, uma vez que Deus já não pode agir contra aque-
les que o invocam assim.

Não creio, de facto, que a psicanálise tenha mentido ou falsificado a realidade ao revelar o que re-
velou. Ela revelou-a. Por conseguinte, a revelação colocou-nos numa situação terrível e contraditó-
ria. Por um lado, Jesus tem razão. Mas não devemos esquecer que ele acrescenta: “que são maus”.
Por outro lado, a rivalidade e a hostilidade, entre pais e filhos é real. Além disso, o movimento não
consiste em sabermos primeiro quão maravilhoso é o amor entre pai e filho, para depois nos tran-
quilizarmos ao saber que Deus é para nós um Pai, o que garante o seu amor (como espontanea-
mente pensamos). Pelo contrário, uma vez que Deus é Pai e vos ama sem segundas intenções, sem
interesses próprios, dando-se a si mesmo como expressão total do amor que dá e nunca possui o
outro; uma vez que ele é Deus como Pai e Pai como Deus, conheceis também pais como ele e filhos
como o seu Filho. Temos aqui um apelo à transformação desta relação viciada e viciosa que é -
infelizmente! - básica para nós.

Mais uma vez, a revelação de X contradiz as nossas crenças e atitudes. Basta pensar em dois exem-
plos bem conhecidos. Qual é o resultado da visão de Deus como Pai? Na Idade Média e na nossa
época, é um absolutismo exacerbado do poder paternal. Naturalmente, não era isso que se espe-
rava do cristianismo. Recordemos a patria potestas romana. Mas o cristianismo reforçou o autori-
tarismo paternal (e também monárquico). Os pais (e os monarcas) insistiam em ser tratados como
Deus! A revelação inverteu-se, mas nos moldes indicados pela psicanálise. Atacar a autoridade pa-
terna, como fez Molière, era desafiar a “religião”.

O segundo exemplo é moderno. Quantos teólogos, nos últimos cinquenta anos, ouvimos afirmar
que já não se pode chamar Pai a Deus? Esta “imagem” era boa para os tempos de obscurantismo
intelectual, mas hoje a ciência abriu-nos os olhos. Ensinou-nos que a relação pai-filho é uma relação
viciosa. Por isso, é preciso abandonar a comparação. Nos Evangelhos, o termo Pai é simplesmente
uma imagem de Deus e, como todas as imagens, é falsa. Deus não é, de facto, um Pai. É apenas por
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acomodação linguística ou por ignorância que ele é assim designado. Tudo o que temos é uma ima-
gem e não uma realidade viva e existencial. Temos agora de nos livrar da imagem. Temos de a des-
truir, juntamente com todas as outras. Assim se pode ver como a revelação contradiz o nosso co-
nhecimento e sabedoria e até que ponto é insuportável.

E que dizer de um outro conceito que parece ser essencial na vida de Jesus Cristo, o da fraqueza,
que está ligado à anti-política? O que é que pode ser mais o oposto daquilo que somos? Não é o
espírito de poder que está no centro de todas as nossas ações? Admito que possa não existir nal-
guns povos ditos primitivos, em tribos que não conhecem a violência e não procuram o domínio.
Mas estes são uma exceção tão grande que não podemos certamente tomá-los como um exemplo
natural do que é a humanidade em geral - se é que existe algo como “humanidade em geral”.

Se olharmos apenas para os povos históricos, o que é que vemos? Guerras, conquistas, engrande-
cimento, esmagamento dos vencidos, magnificação do poder, procura de grandeza. Não digamos
que isto se aplica apenas ao Ocidente! Que tudo isto vem de Roma! Pois o que fez o Egipto durante
dois mil anos senão conquistar, dominar e afirmar o seu poder? E os assírios e os caldeus? A flor da
civilização grega é-nos confrontada (com exceção de Lacedaemon)? Mas, em Atenas, o que eram os
jogos na arena senão glorificações da força competitiva? E quem, senão os gregos, fundou colónias
e invadiu gradualmente o Mediterrâneo oriental, muitas vezes por caminhos tortuosos? E que dizer
de Alexandre?

Poder-se-ia objetar que estou a falar do espírito de violência e de poder apenas em relação à bacia
do Mediterrâneo. Olhemos para mais longe. Os aztecas? Não foram dominados pelo mesmo espírito
de conquista e de violência, possivelmente inspirado pelo medo? O mundo oriental? De onde vie-
ram essas vagas terríveis e sucessivas, os hunos, os húngaros, Gengis Khan, Tamburlaine, os turcos
que periodicamente dominavam a Europa? Não terão eles vindo da mesma Ásia que muitos querem
apresentar hoje como sábia e desprovida de qualquer espírito de violência? E, neste continente,
guerras terríveis assolaram periodicamente a Índia durante dois mil anos, para não falar das inva-
sões manchus e mongóis que se espalharam pela China. A própria China, até ao século XIII, foi uma
potência colonizadora e imperialista. Já falei do mundo árabe e muçulmano. Que ninguém diga que
só a Europa se caracterizou pelo espírito de poder.

Em todas as sociedades, sem exceção, não terá havido igualmente uma divisão entre um pequeno
número de ricos e um grande número de pobres? Não é o caso da sociedade budista, que se diz ser
pacífica e não violenta? O domínio dos ricos é sempre o mesmo. Exprime em todo o lado o mesmo
espírito de violência e de repressão. Não foi o capitalismo que a gerou. Foi institucionalizado em
todo o lado, e particularmente na sociedade indiana, onde o sistema hierárquico das castas consa-
gra e solidifica esta supremacia dos poderosos. Do mesmo modo, encontramos a escravatura em
quase todo o lado. Admito, mais uma vez, que num pequeno grupo “primitivo” não houve escrava-
tura, embora, por vezes, fosse apenas porque comiam prisioneiros. Em todo o caso, um grupo deste
tipo não tem grande significado para a “humanidade” em geral, visto que encontramos várias for-
mas de escravatura, de exploração absoluta de uns por outros, em todas as sociedades históricas.
Poder-se-ia mesmo dizer que o desejo de dominar, de esmagar, de usar os outros, é geral e quase
não admite exceções. Poder-se-ia referir a glorificação grega do Eros conquistador, que escraviza e
possui para sua própria satisfação. Poder-se-ia citar também a forma como os conquistadores se
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intitulavam o “flagelo de Deus”. Na verdade, o espírito de poder está profundamente enraizado no


coração humano.

Quão intolerável é, pois, uma mensagem, e mais ainda uma vida, centrada na fraqueza. Não o sa-
crifício em nome de uma causa que se quer levar a bom termo, mas, na verdade, o amor por nada,
a fé por nada, a doação por nada, o serviço por nada. Colocar os outros acima de si mesmo. Em tudo
procurar os interesses dos outros. Quando arrastado perante os tribunais, não tentar nenhuma de-
fesa, mas deixá-la ao Espírito Santo. A renúncia ao poder é infinitamente mais ampla e mais difícil
do que a não-violência (que ela inclui). Porque a não-violência permite uma teoria social e, em ge-
ral, tem um objetivo. O mesmo não se passa com o não-poder. Assim, a revelação de X não pode
deixar de repelir fundamentalmente os homens de todas as épocas e de todas as culturas.

Há também um outro elemento que é intolerável por diferentes razões, nomeadamente, a liber-
dade. É verdade que as pessoas afirmam querer a liberdade. De boa-fé, tenta-se instaurar a liber-
dade política. As pessoas proclamam também a liberdade metafísica. Lutam pela libertação dos
escravos. Fazem da liberdade um valor supremo. A perda da liberdade pela prisão é um castigo
difícil de suportar. A liberdade é acarinhada. Quantos crimes são também cometidos em seu nome?
Os impressionantes mitos gregos contam a história da liberdade humana que triunfa sobre os deu-
ses. Numa interpretação do Génesis 3, Adão é louvado como alguém que deu um golpe ousado na
liberdade, afirmando a sua independência face a um Deus maligno, autoritário e atormentador, que
impunha proibições para evitar que o seu filho cometesse erros.

Adão teve a coragem de agir como homem livre perante Deus, desobedecendo-lhe e transgredindo.
Ao fazê-lo, inaugurou a história humana, que é, na verdade, a história da liberdade. Como tudo isto
é belo! Mas este fervor, esta paixão, este desejo, este ensinamento são todos falsos. Não é verdade
que as pessoas queiram ser livres, que queiram as vantagens da independência sem os deveres e
as dificuldades da liberdade.67 A liberdade é difícil de viver. É terrível. É uma aventura. Devora e
exige. É uma luta constante, porque à nossa volta há sempre armadilhas para a roubar. Mas, sobre-
tudo, a própria liberdade não nos deixa descansar. Exige uma emulação e um questionamento in-
cessantes. Pressupõe uma atenção atenta, excluindo o hábito ou a instituição. Exige que eu esteja
sempre fresco, sempre pronto, nunca me escondendo atrás de precedentes ou de derrotas passa-
das. Traz ruturas e conflitos. Não cede a nenhum constrangimento e não exerce nenhum constran-
gimento. Porque só há liberdade no autocontrolo permanente e no amor ao próximo.

O amor pressupõe a liberdade e a liberdade só se expande no amor.68 É por isso que de Sade é o
mentiroso supremo de todos os tempos. O que ele mostrou e ensinou aos outros é o caminho da
escravatura sob a bandeira da liberdade. A liberdade nunca pode exercer o poder. Há uma coinci-
dência total entre fraqueza e liberdade. Do mesmo modo, a liberdade nunca pode ser sinónimo de
posse. Existe uma coincidência exata entre a liberdade e a não posse. A liberdade, portanto, não é
apenas um alegre passeio infantil num jardim de flores. Ela também o é, pois gera grandes ondas
de alegria, mas estas não podem ser separadas de um ascetismo severo, de um conflito, da ausência

67 Os únicos livros de base sobre a liberdade são os de B. Charbonneau, nomeadamente Je fus (1980).

Ver J. Ellul, Éthique de al liberté, 2 vols. (Genebra: Labor et Fides, 1973, 1975); ET Ethics of Freedom (Grand Rapids: Eerd-
68

mans, 1976).
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de armas e de conquistas. É por isso que aqueles que de repente se encontram numa situação de
liberdade perdem a cabeça ou logo querem voltar à escravidão.

Uma história antiga: O Êxodo conta-nos várias vezes que, quando o povo hebreu foi libertado da
escravidão no Egipto, quando confrontado com os problemas de viver em liberdade, quis voltar
atrás. Não tinham provisões de reserva. O caminho era incerto. O futuro era desconhecido. A estra-
nha vontade do seu Deus libertador era incompreensível. Melhor a escravatura com um salário mí-
nimo garantido! Esta experiência repetiu-se muitas vezes. Em pelo menos duas ocasiões ao longo
da história, assistimos à reação de escravos que foram libertados subitamente e que têm medo da
sua liberdade. Durante a guerra civil americana, quando o Norte tinha proclamado a libertação dos
escravos do Sul, muitos testemunhos mostram-nos que os escravos não estavam felizes e descon-
traídos, mas sim tímidos e trémulos, muitos deles regressando aos seus antigos senhores para re-
tomar o seu lugar. O mesmo aconteceu quando a Itália, vitoriosa na Etiópia, proclamou a liberdade
daqueles que as tribos tinham tradicionalmente escravizado. Estes escravos juntaram-se rapida-
mente aos escalões mais baixos do proletariado e vaguearam com fome, com saudades do seu an-
tigo estado. Podemos compreender isto. Os escravos não têm liberdade. Estão sujeitos aos capri-
chos dos seus proprietários (embora estes sejam geralmente muito menos cruéis e ferozes do que
a propaganda democrática descreve). Em troca, são alimentados, alojados e sustentados. Têm a
certeza da sua alimentação. Acima de tudo, estão livres de ter de tomar conta das suas próprias
vidas, o que é pior do que obedecer a outra pessoa.

O que as pessoas querem quando falam de liberdade é não estarem sujeitas aos outros, poderem
ter os seus próprios sonhos ou ir para onde querem ir. Não mais do que isso. Definitivamente, não
querem ter de tomar conta da sua própria vida e ser responsáveis pelo que fazem. Isto significa que
não querem verdadeiramente a liberdade. Temos hoje um novo e explosivo exemplo disso. Não é
de todo verdade que os franceses queiram realmente a liberdade. Querem sobretudo conforto e
segurança em todos os domínios: segurança policial, segurança nas estradas, segurança contra a
doença, o desemprego, a solidão e a velhice, segurança contra os filhos (porque o controlo da na-
talidade pertence mais ao domínio da segurança do que ao da liberdade). Tudo isto em troca de
liberdade. Com efeito, a liberdade pode dar-nos tudo, exceto a segurança. A segurança é sempre ine-
vitavelmente comprada à custa da liberdade, quer seja concedida por um patrão privado, por uma
companhia de seguros (um poder capitalista), por um organismo como a Segurança Social (que,
através da sua rede de informação, se torna um agente de controlo geral e total), ou pelo Estado,
que se alarga e burocratiza através das várias formas de proteção que lhe pedimos (por exemplo,
no caso de catástrofes naturais).

Existe um equilíbrio exato. Quanto mais segurança e garantias quisermos contra as coisas, menos
livres seremos. Atualmente, os tiranos não são de temer, mas sim a nossa própria necessidade fre-
nética de segurança. A liberdade implica inevitavelmente insegurança e responsabilidade. Mas nós,
modernos, procuramos acima de tudo não ser responsáveis por nada. No entanto, queremos um ar
de liberdade, uma aparência de liberdade. Queremos votar. Queremos um sistema partidário, que-
remos viajar. Queremos escolher médicos e escolas. Em relação a estas trivialidades, atrevemo-nos
a falar de liberdade.

Naturalmente, não estou a dizer que essas coisas não têm importância. Tal como na época da de-
sestalinização, quando eu dizia que nada tinha mudado (ver o meu artigo “Le corps de César”, Le
116

Monde, 25 de maio de 1956), não estava a dizer que não tinha importância o facto de a maior parte
das prisões políticas terem cessado. O que quero dizer é que não se deve ter a audácia de falar de
liberdade por causa destas coisas. Sem dúvida que é melhor para um cão num canil ter uma cor-
rente de dois metros do que de um pé, mas essa não é a liberdade do lobo de La Fontaine, e a sua
fábula é sempre verdadeira. O que nós queremos é uma aparência de liberdade, não a sua reali-
dade. O que queremos é aquilo a que Charbonneau chama a ilusão da liberdade.

Somos muito habilidosos a camuflar a nossa escravatura chamando-lhe liberdade ou descrevendo


uma dissimulação como liberdade. Falamos de liberdade nacional e de soberania (se pertencermos
a um país livre, logo...). Institucionalizamos a liberdade e temos então o liberalismo económico (que
é hoje denunciado como uma farsa porque só beneficia os poderosos), ou o liberalismo político
(cujo carácter formal foi denunciado por Marx, pois embora as liberdades formais sejam melhores
do que nada, não devemos falar de liberdade! ), ou o anarquismo (que se perde na hipótese nebu-
losa da bondade humana e do estado natural da liberdade), ou o longo caminho da beleza “inte-
rior”, ou a liberdade de pensamento, que é, sem dúvida, a belíssima ilusão dos idealistas, dos inte-
lectuais e dos cristãos.

A liberdade é indivisível. A liberdade de pensamento é sinónimo de liberdade de ação. A liberdade


interior significa uma escolha de conduta, uma ética específica para mim. As pessoas utilizam uma
série de meios para se declararem livres e, ao mesmo tempo, para escaparem à verdadeira liber-
dade. Se esta é a nossa condição humana, compreende-se porque é que a revelação de X é inacei-
tável quando assenta na dupla fórmula de que, ao romper com Deus, adquirimos independência ou
autonomia, mas nunca liberdade, pois só Deus é livre e a relação com ele é a única possibilidade de
nos tornarmos livres. A primeira ofensa é saber que a rutura com Deus trouxe a escravidão e a su-
jeição aos determinismos e às necessidades que se transformam progressivamente em destino. A
segunda repulsa vem de saber que Deus se arrisca a lançar-nos na aventura da liberdade que não
queremos a qualquer preço. Ele desmascara assim, ao mesmo tempo, a ilusão daquilo a que cha-
mamos liberdade, a hipocrisia de uma vida em que fingimos falsamente ser livres. Propõe-nos que
corramos o risco absoluto de viver uma vida absolutamente livre (“Tudo é lícito”, diz Paulo), sem
qualquer restrição, mas nós não o queremos. Esta liberdade cristã é intolerável.

Vejamos, finalmente, um outro exemplo que mostra como esta revelação é tão intolerável para nós.
Temos de voltar a algo que já ouvimos, as bem-aventuranças. Em si mesmas, se levadas a sério, são
absurdas e inaceitáveis. Não é de todo verdade que a terra pertence aos mansos. O que as bem-
aventuranças dizem é contrário a toda a realidade. Só isso as torna inaceitáveis para as pessoas
sensatas. Acima de tudo, temos de reconhecer que a sua ‘espiritualização’ faz uma exigência adici-
onal, impõe um fardo mais pesado. Todo o Sermão da Montanha é inaceitável, se for levado a sério.
A interpretação preferida encontra nele a doce loucura de um profeta bom e generoso que não sa-
bia realmente do que estava a falar. Ou então, este ensinamento é reservado aos santos, aos per-
feitos, e não ao mundo em geral. Ou então, cada pedaço é destacado de modo a provar exegetica-
mente que não significa realmente o que parece numa primeira leitura.

Somos tão hábeis a fugir às exigências de Jesus como às exigências da liberdade. Já vimos que a
espiritualização da lei por Jesus é um agravante terrível. É impossível viver assim. Gostaria de con-
trariar aqui todos os expositores que pensam que a espiritualização suavizou as coisas para a Igreja
(como quando os pobres materiais se tornam pobres de espírito). Pelo contrário, temos de
117

considerar que a espiritualização torna Cristo inaceitável. Repito que estamos na presença de um
terrível disparate se pensarmos que houve uma primeira época de proclamação material revoluci-
onária e que a igreja recuou para posições espirituais apenas por timidez e cobardia. Se os discípu-
los quisessem que a sua pregação fosse eficaz, que recrutasse gente de bem, que movesse as mul-
tidões, que lançasse um movimento, teriam tornado a mensagem mais material. Teriam formulado
objetivos materiais no domínio económico, social e político. Isso teria agitado as pessoas; teria sido
o caminho mais fácil. No entanto, declarar que o reino não é deste mundo, que a liberdade não se
alcança com a revolta, que a rebelião não serve para nada, que não há nem haverá paraíso na terra,
que não há justiça social, que a única justiça reside em Deus e vem dele, que não devemos procurar
a responsabilidade e a culpabilidade nos outros, mas em primeiro lugar em nós próprios, tudo isto
é pedir a derrota, pois é dizer coisas intoleráveis. É, de facto, intolerável pensar que a paz, a justiça
e o fim da pobreza não podem ter lugar na terra. Para os homens do século I, como para os do século
XX, essas coisas são rigorosamente inaceitáveis. Mas é o próprio Jesus que as diz.

Obviamente, o grande argumento de Marx, Nietzsche e de todos os outros é que isso é desmobiliza-
ção. Ao dizermos tais coisas, desmobilizamos ao colocar a felicidade no paraíso e a justiça no reino
vindouro de Deus. Esterilizamos as energias que deveriam estar a transformar a sociedade. Após
um século, vemos agora os resultados gloriosos da mobilização que a liquidação do coração do
cristianismo permitiu. Isso mostra, no entanto, o que é inaceitável na pregação e no exemplo de
Cristo. Porque ele não diz: ‘Como o meu Reino não é deste mundo, não façais nada e submetei-vos’.
Pelo contrário, diz: ‘Como o meu Reino não é deste mundo, fazei tudo o que estiver ao vosso alcance
para tornar este mundo habitável e para partilhar com todos a alegria da salvação, mas sem ilusões
quanto ao que conseguireis realizar. (Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel nas pequenas coisas...
ou: Quando tiveres feito tudo o que tens a fazer, dize: Sou um servo inútil...) Não alcançarás a liber-
dade, a paz, a justiça, a igualdade, a bondade e a verdade. Cada vez que pensares tê-los alcançado,
terás criado apenas uma ilusão ou mentira.’

Isto é o que não podemos ouvir nem aceitar. Quando agimos, queremos que a nossa ação sirva um
fim qualquer, que tenha êxito, que traga progresso. Queremos fazer tudo sozinhos. A este respeito,
a palavra de Cristo desmobiliza de facto; mas isso não se deve à verdade, antes se deve à nossa
indolência, orgulho e estupidez humana. Aquilo a que, desde Marx (e desde que o pensamento de
Marx penetrou efetivamente no nosso inconsciente durante o último meio século), se chama evasão
espiritual, ópio do povo ou meio maquiavélico utilizado pela classe dominante para desviar os po-
bres, os oprimidos e os aflitos, tudo isto que conhecemos tão bem deve ser dividido em dois (como
mostra o Novo Testamento).

É efetivamente, perante Deus, a condenação dos ricos e dos poderosos que utilizam a verdade de
Deus em proveito próprio. Vemos isso quando Jesus se insurge contra os escribas e fariseus hipó-
critas, que lançam sobre os outros fardos demasiado pesados para serem suportados, mas eles
próprios não mexem um dedo. Jesus não está a atacar a lei. A lei continua a ser boa e verdadeira.
Ele está a condenar a forma como os líderes usam esta lei para os seus próprios interesses. Vemos
a mesma coisa aqui. A verdade revelada espiritualiza todas as condições e situações. Por esse facto,
torna tudo mais radical, levando-o a um tribunal final. Tudo, e, portanto, todas as questões políti-
cas, sociais, económicas e filosóficas, e todos os meios que utilizamos - tudo se torna mais radical.
Mas, ao mesmo tempo, esta radicalidade exige que deixemos aquilo que pretendemos ter, incluindo
os instrumentos políticos e os coletivos. (Ide, vendei tudo o que tendes, não só os bens imóveis e as
118

joias!) Podemos então começar a ser e a agir de uma nova maneira, a reconhecer uma outra forma
de eficácia.

Proclamar o conflito de classes e a luta revolucionária “clássica” é parar no mesmo ponto daqueles
que defendem os seus bens e organizações. Isso pode ser útil socialmente, mas não é de modo al-
gum cristão, apesar dos esforços desconcertantes das teologias da revolução. A revelação exige
esta renúncia, a renúncia às ilusões, às esperanças históricas, as referências às nossas próprias ca-
pacidades, aos nossos números ou ao nosso sentido de justiça. Devemos dizer às pessoas e assim
aumentar a sua consciencialização (a ofensa das classes dominantes é a de tentar cegar e amortecer
a consciência daqueles que eles dominam). Renunciar a tudo para ser tudo. Não confiar em nenhum
meio humano, pois Deus proverá (não podemos dizer onde, quando e como). Confiar na sua Palavra
e não num programa racional. Entrar num caminho no qual encontrarás gradualmente respostas,
mas sem substância garantida. Tudo isto é difícil, muito mais do que recrutar guerrilheiros, instigar
o terrorismo ou agitar as massas. E é por isso que o evangelho é tão intolerável, intolerável para
mim mesmo enquanto falo, enquanto digo tudo isto a mim mesmo e aos outros, intolerável para os
leitores, que só podem encolher os ombros.

A graça é insuportável, o Pai é insuportável, a fraqueza é desencorajadora, a liberdade é inabitável,


a espiritualização é enganadora. É este o nosso juízo, humanamente fundamentado e inevitável.
Esta é uma das primeiras razões para a rejeição do anúncio de Deus em Jesus Cristo. E porque não
queremos parecer que o rejeitamos, dá-se a perversão e a subversão. Todos estes juízos e ações
baseiam-se no bom senso, na razão, na experiência e na ciência, ou seja, nos nossos meios normais
de julgamento, naquilo que todas as pessoas pensam e acreditam. Mas é precisamente aqui que
caímos. Jesus diz-nos claramente que, se nos limitarmos a fazer o que o mundo faz, não podemos
esperar agradecimentos, porque não estamos a fazer nada de extraordinário. O que somos chama-
dos a fazer é algo fora do comum. Temos de ser perfeitos como o nosso Pai que está nos Céus é
perfeito. Nada menos do que isso. Tudo o resto é perversão.
119

Capítulo 9

DOMÍNIOS E PODERES

A nossa preocupação é a esfera humana. Mas talvez devêssemos entrar numa área mais perigosa,
na qual surgem todas as heresias e aberrações possíveis. Talvez, se houve essa perversão do X re-
velado, não seja apenas a ação voluntária ou involuntária de agentes humanos, mas também a de
poderes espirituais que pertencem a outra esfera - outra e ainda assim a mesma, pois esses poderes
não são nada por si mesmos. Não têm nada a ver com um princípio de maldade. Não há manique-
ísmo na Bíblia. Eles não têm nenhuma relação com uma personificação, um demónio que pode ser
pintado ou representado, existindo “algures” e intervindo de fora nos assuntos humanos. Não têm
nenhum aspeto específico e nenhum papel na realidade. O que sabemos é que eles só existem na e
pela sua relação connosco.

É quando estamos lá que satanás ou a falsidade encontram manifestação e expressão. Diferentes


de nós, eles não existem para além de nós. A serpente é um belo animal inofensivo entre outros
animais, aberto e esperto, nada mais. Nunca pensaria em morder um asno para o matar, nem em
tentar uma vaca para desobedecer a Deus. Só quando o homem aparece é que essas coisas se tor-
nam possíveis e interessantes. Só então a serpente revela o que é, não antes ou depois. Penso que
é essencial deixar isto bem claro para que não se faça um disparate com o que vou dizer. Por outras
palavras, não estamos possuídos por algo que é intrinsecamente mau. Somos possuídos por algo
que utiliza o que já é nosso. Paulo não se engana a este respeito. Ao mesmo tempo, se estivéssemos
por nossa conta, não faríamos “isso”. A combinação é que é prejudicial e afeta não só o nosso ser,
mas tudo o que nos diz respeito.

Os poderes acrescentam um “mais” e um fator “diferente” à nossa história. É por isso que se fala de
exousia (autoridade) em relação a algumas expressões da atividade humana. É também por isso
que Paulo nos põe firmemente em guarda para não sermos enganados pelo inimigo. Recordemos
que o Estado é uma exousia. Há nele um “mais” que deve ser tido em conta após qualquer estudo
sociológico ou político. Temos certamente de analisar o fenómeno do poder político do Estado,
etc... Mas, no fim de contas, apercebemo-nos de um resíduo, de uma espécie de núcleo inexpugná-
vel, de uma dureza inexplicável. Porque é que, afinal, se obedece ao Estado? Para além dos fatores
que podem ser percebidos e analisados, nem tudo pode ser explicado, como no caso da alma que
o bisturi não consegue encontrar por mais perto que se faça a análise. O resíduo é uma potência
espiritual, uma exousia, que habita o corpo do Estado.

O mesmo se aplica ao dinheiro.69 Depois de termos demonstrado os mecanismos e explicado as


finanças e a economia, há um estranho resíduo irredutível. Porque é que o dinheiro é tão sedutor?
Também aqui temos uma exousia, que Jesus personaliza chamando-lhe Mammon, o Mammon da
maldade. Quanto a Paulo, a sua advertência é clara: não é contra a carne e o sangue que tendes de

69Tratei longamente destes dois pontos em Présence au monde moderne (Genebra: Roulet, 1948); ET The Presence of the
Kingdom (Filadélfia: Westminster, 1951) e L'Homme et l'Argent (Paris: Delachaux, 1953; rev. 1979).
120

lutar, mas contra os tronos, as potestades, os domínios, as autoridades (exousiai), contra os prínci-
pes deste mundo de trevas, contra os espíritos maus que habitam nos lugares celestiais (esta última
caraterística é a mais estranha de todas).

Podemos, evidentemente, encolher os ombros e dizer que o pobre homem foi vítima das ilusões da
sua época e que era um pouco débil mental para falar de tais coisas. Nós, fortes e inteligentes, de-
monstrámos, lutando ao nível da realidade, até que ponto conseguimos tornar as pessoas melhores
e a sociedade habitável, justa, razoável, fraterna, etc... É preciso recordar constantemente a fór-
mula segundo a qual a última armadilha do demónio é convencer-nos de que ele não existe. Por
outro lado, quando se entra neste domínio, são permitidas todas as ilusões e todos os tipos de fre-
nesim estão à mão. Os leitores saberão o suficiente sobre isto para ver que não estou a embarcar
em fantasias gnósticas ou invenções amontoadas, que não me refiro a universos diabólicos ou a
segredos esotéricos de organizações celestiais, sejam elas literárias segundo o modelo de Barbey
ou visionárias segundo o de Swedenborg. Por último, também não me estou a referir à base religi-
osa geral para as especulações sobre o mundo espiritual.

Com sábias limitações, limito-me à Bíblia, que me parece coerente e satisfatória, e que acredito ser
inspirada e, portanto, verdadeira. Ora, a Bíblia oferece-nos muitos dados constantes e sólidos sobre
este assunto. Não se trata de misturar com esses outros mundos ou imaginários. Em particular,
contrariamente a uma crença tenaz, não se pode falar de Lúcifer, que é uma invenção do fim da
época romântica, nem de poderes infernais pormenorizados, assimilados ao cristianismo a partir
de lendas pagãs. A Bíblia fala de seis poderes malignos: Mammon, o príncipe deste mundo, o prín-
cipe da mentira, satanás, o demónio e a morte. Isto é suficiente. Relativamente a estes seis poderes,
podemos observar que, se os compararmos, verificamos que são todos caracterizados pelas suas
funções: dinheiro, poder, engano, acusação, divisão e destruição. Por outras palavras, não são um
tipo de realidade própria. Não existem como as pessoas, com a sua complexidade infinita, as suas
múltiplas aplicações, as suas evoluções e diversidades, as suas relações e o seu mistério interior. O
que me parece importante nesta visão da anti-criação é precisamente o facto de não haver mistério,
de não se abrir um outro mundo de maldade.

Não existe um mundo infernal ou uma hierarquia de anjos caídos com eternidades sobrepostas.
Não há nada por detrás disso. Falam-nos de poderes que atuam concretamente no mundo humano
e que não têm outra realidade ou mistério. São certamente poderes nos lugares celestiais, mas só
existem em relação a nós. É compreensível que, de preferência, ataquem o que Deus fez, pois são
expressões do caos, do vazio que Deus pôs a trabalhar para a sua criação. Eles existem apenas como
esse caos. São uma força de desordem. Nem todo o caos foi absorvido pela criação. A criação está
constantemente ameaçada. A relação entre a humanidade, clímax da criação, e o Criador é cons-
tantemente perturbada, embora não por um anti-Deus ou um princípio maligno. Não existe um
princípio maligno no sentido metafísico ou religioso. Existem forças ímpias e anti-cristãs, mas (ex-
ceto no texto simbólico do Apocalipse) estas atuam apenas na terra e apenas em relação a nós.

Eles selecionam como alvo principal aqueles que Deus elege e separa (santos), aqueles a quem Deus
revela o seu amor em Jesus Cristo (cristãos), e a comunhão dessas pessoas (a Igreja). Os esforços
dos poderes malignos (chamo-lhes assim por conveniência, embora repita que não são poderes em
si mesmos, nem o mal como a antítese de um Deus bom) concentram-se no lugar onde a graça e o
amor de Deus são melhor expressos. Eles empregam toda a sua força em Jesus Cristo. Concentram
121

todas as forças do mal nos cristãos.70 Segundo uma velha tradição cristã medieval, que me parece
correta, a maioria das pessoas tem pouco interesse para o diabo (as lendas dizem que ele já as pos-
sui, mas isso é falso). Ele faz tudo o que pode contra os portadores da graça e do amor no mundo.
Porque o seu problema não é levar as pessoas à perda eterna ou levá-las para o inferno, mas impe-
dir que o amor de Deus esteja presente no mundo. O objetivo essencial dos poderes do mal não é
levar as pessoas para o inferno. Já expliquei noutro lugar que, neste aspeto, a sua derrota total já
está assegurada, pois todos estão salvos em Cristo e nada pode alterar este facto. O que as potên-
cias vencidas podem sempre fazer é dramatizar a situação na terra, tornar a vida humana intolerá-
vel, destruir a fé e a confiança mútua, fazer sofrer, matar o amor, impedir o nascimento da espe-
rança. Por outras palavras, o que me parece biblicamente certo é que os poderes do mal fazem da
terra um inferno, e que não há outro inferno senão esta nossa terra que se diz ser um jardim encan-
tador. O que eles fazem é precisamente isto: destroem tudo o que Jesus veio trazer. Ao fazê-lo, per-
turbam as nossas relações com Deus e com os outros, nomeadamente as relações criadas por Jesus
Cristo. A questão é a miséria, não a perdição. A sua grande obra é produzir naqueles que receberam
a marca do Senhor o oposto daquilo que Deus espera. Não devemos, portanto, nos surpreender
com o que tem acontecido na igreja. É o resultado normal dessa revolta contínua. Por trás de tudo
o que descrevemos está “a mão do diabo”. Nada menos que isso.

Mammon é o dinheiro que se impõe como lei de relação: troca, compra e venda, nada por nada,
tudo a comprar e a vender. Isto é integral e totalmente contrário à graça (ver L'Homme et l'Argent).
O seu espírito chegou à Igreja, onde, por vezes, a graça foi posta à venda, ou a Igreja se tornou um
centro de rapina e de enriquecimento pessoal, ou (como a Igreja Reformada francesa atual) está
tão obcecada com os seus problemas financeiros que todas as suas outras preocupações e funções
passam para segundo plano. De centenas de maneiras, o dinheiro tem efetivamente corrompido a
igreja. Mas o que vemos aqui não é apenas o mundo do dinheiro em si ou o nosso desejo subjetivo
por ele. Na verdade, é um poder demoníaco que dá ao dinheiro a capacidade de transformar tudo
o que deveria ser graça livre e aberta em conquista amarga, possessão e obsessão. O Livro dos Atos
e algumas das Epístolas de Paulo mostram como as coisas deveriam ter sido e continuado a ser -
porque não? A dádiva é a regra geral em todas as relações. Está perfeitamente de acordo com a
aplicação da graça. A posse de bens em comum pela comunidade é o resultado normal da depreci-
ação do dinheiro. Mas isso não dura.

A teoria tradicional é que estes primeiros crentes estavam a construir uma comunidade “escatoló-
gica”, que acreditavam que o fim do mundo estava iminente, que podiam assim viver em comum e
passar o tempo em oração, sem trabalhar, mas a viver do que os outros tinham feito. Mas quando
esses recursos se esgotam, o que é que acontece? Tinham de voltar à linha, trabalhar como os ou-
tros, ganhar o seu sustento. Esta história de uma comunidade de bens, um pouco rebuscada, tem
então de terminar. Mas não me satisfaz nada este tipo de explicação, marcada por uma banalidade
tão rasa e um senso comum tão grosseiro. Ao longo da história da Igreja, houve repetições periódi-
cas de comunidades semelhantes, e conheço algumas atualmente. A verdadeira questão é outra.
Quando o tom espiritual, ou a intensidade, se quisermos, é forte e a fé é vital e o amor fraterno está
a ressurgir, o dinheiro não é problema. O dinheiro só se torna dominante quando os homens e as
mulheres deixam realmente de ter esperança ou de acreditar e entram em rotinas e conformidades.
A vida cristã não é uma questão de ter, mas de ser espiritual em Cristo. Quando isto é fraco, o ter

70 Bernanos e Dostoiévski viram isto de forma excelente.


122

torna-se imediatamente dominante. Mamom estabelece a sua lei na igreja precisamente na medida
em que a igreja perde a sua relação com Jesus Cristo. Mas Mamom é um poder que espera pacien-
temente que a fé falhe. Na sua abundância, impede que a fé nasça. A lógica é implacável. De que
serve a fé ou a esperança quando temos tudo e só precisamos de um pouco mais para gastar? Mam-
mon, com as suas satisfações (tudo se pode comprar) e a sua lei (nada por nada, ou não há almoço
grátis), constrói à nossa volta uma impenetrabilidade à graça. Os cristãos experimentaram-no em
todas as épocas.

O príncipe deste mundo; sim, é preciso admitir que este mundo pertence a esse príncipe. É do Se-
nhor apenas com o discernimento da fé e à distância. Uma distinção jurídica pode explicar esta
dupla propriedade. Aquele que possui e detém o título de uma propriedade é o seu verdadeiro pro-
prietário. É dele (ou dela) por direito. Mas se o proprietário legal estiver ausente ou longe, o lugar
pertence a “ocupantes” que estão efetivamente na propriedade. São, poder-se-ia dizer, os proprie-
tários aparentes. Estão a utilizar a propriedade, mas não têm direitos reais sobre ela. Quando o
verdadeiro proprietário finalmente chega, não o podem expulsar. A propriedade é, obviamente, do
proprietário, que pode usá-la como quiser, sem ter de prestar contas a ninguém. Pensemos no nú-
mero de parábolas em que esta comparação aparece: o rei em viagem, o noivo distante, o proprie-
tário ausente, o senhor que deixa a sua vinha com os trabalhadores, etc... Em todos os casos, Deus
está ausente e não diz nada. Jesus deixa-nos e regressa ao Céu. Durante este intervalo, quem são
os donos do mundo? Somos nós, tal como o príncipe deste mundo que, como vimos, tem à sua
disposição todos os reinos da terra.

A ideia de que a hierarquia social, ou a lei, ou a autoridade do Estado ou dos proprietários repousa
sobre a vontade de Deus é, portanto, ao mesmo tempo verdadeira e falsa. É falsa na medida em que
todas estas coisas exprimem indubitavelmente o poder ativo e presente do príncipe deste mundo.
É verdadeira na medida em que são também meios para limitar as últimas consequências do mal.
É isto que constitui toda a ambiguidade da sua situação. No entanto, rejeito a teoria comum de que
são criações que estão em conformidade com a vontade de Deus (o estado, a lei), mas que foram
desviadas do seu verdadeiro e válido propósito pela ação perversa de satanás. Nenhuma expressão
de poder ou domínio é ou pode ser desejada pelo Deus de Jesus Cristo. O espírito de poder também
não vem apenas de dentro de nós. É o espírito do príncipe deste mundo. Toda a expressão de poder
na terra e no curso da história humana pertence ao seu domínio. (É por isso que Jesus fez tão pou-
cos milagres de poder nos Evangelhos; na verdade, há apenas um, o acalmar da tempestade).

Por outro lado, estes produtos do espírito de poder podem ser desviados daquilo que o príncipe
deste mundo espera deles e podem ser utilizados para outros fins. O Estado pode tornar-se um
servo e o direito um instrumento de justiça, quando são permeados pela graça e pela verdade evan-
gélica. Mas esta é a exceção. Do mesmo modo, o dinheiro pode ser desviado do uso pretendido por
Mammon e usado para dar, isto é, para a graça. Isto é um sinal (e talvez não possa ser mais) de que
Deus não nos entregou ao príncipe deste mundo.

Não vou entrar no debate sobre o mundo e a sua “natureza”, nem sobre o facto de estarmos no
mundo, mas não pertencermos a ele. Já tratei muitas vezes destes assuntos. Limitar-me-ei a recor-
dar que a subversão do cristianismo se deu pelo facto de se ter deixado penetrar, seduzir e conduzir
pelo príncipe deste mundo.
123

Quando a Igreja é seduzida pelas classes dominantes, tornando-se um poder ou obcecada pela po-
lítica, isso equivale à sua posse pelo próprio príncipe deste mundo. Mas será que tudo está perdido?
A Igreja está totalmente pervertida? Não. Pois ao lado da igreja existe também o misterioso Reino
dos Céus, que, como nos é mostrado nas parábolas, está neste mundo; oculto, invisível, mas ainda
presente e em ação. Contra ele, o príncipe deste mundo nada pode fazer. Ele nem sequer o conhece.
Ele conhece apenas o que é visível, aparente e formalizado - o “mundo”. Neste mundo, vemos com
suficiente clareza que ele ataca aqueles que podem parecer aos olhos humanos como uma fuga,
um outro caminho ou forma, ou seja, a igreja. Embora a igreja não seja deste mundo e não pertença
a ele, é precisamente o ponto em que o poder do príncipe deste mundo é exercido com mais força
e está destinado a obter vitórias, deslumbrantes, mas também fugazes. Não devemos surpreender-
nos com estes reveses que a igreja sofre. Constantemente ela é levada ao ponto de parecer perten-
cer pura e simplesmente ao mundo. Como veremos, porém, ela nunca cai totalmente nele. O prín-
cipe deste mundo é derrotado, embora continue sendo o príncipe deste mundo com poder sobre
tudo o que nele existe.

O príncipe da mentira é o terceiro poder. Este transforma a verdade em coisa, ideia, opinião ou do-
gma, em filosofia, ciência, experiência ou realidade, e a realidade em verdade aparente.71 No Novo
Testamento, a mentira tem um sentido muito preciso. Não tem qualquer relação com as nossas
pequenas inverdades quotidianas, com as negações dos culpados que não querem assumir os seus
atos, com os erros, com a camuflagem de dados, com tudo aquilo a que chamamos falsidade em
geral. Jesus põe fim a tudo isso quando nos diz para não jurarmos nada, mas simplesmente para
deixarmos que o nosso sim seja sim e o nosso não seja não. Por outras palavras, nós próprios deve-
mos ser íntegros nas nossas palavras. Mas este não é o problema da mentira. Refere-se à própria
pessoa de Jesus. Mentir, no Novo Testamento, é atribuir uma falsa identidade a Jesus. Ele próprio
é a verdade em pessoa. A verdade única.

Por isso, a mentira assume três formas.

A primeira forma é a transformação de Jesus numa ideia. É mentira quando inventamos uma gnose
que refina ou coloca a pessoa de Jesus num sistema metafísico, ou o torna parte (mesmo principal)
de uma dogmática ou de uma filosofia fechada, ou o insere numa prática qualquer, como a política,
ou o evapora num paraíso divino, ou o trata apenas como tema de uma dissertação, ou pensa que
a ideia de verdade é o essencial.

A segunda forma de mentira é a transformação de Jesus num ídolo. Podemos adorá-lo de forma
mágica (não posso deixar de pensar nas terríveis crucificações espanholas). Podemos tentar obter
dele benefícios terrenos, pequenos milagres quotidianos, etc... Podemos disfarçá-lo. Tomemos
nota desses disfarces. Depois de Pilatos ter perguntado “O que é a verdade?” a primeira mentira foi
o modo como os soldados lhe vestiram uma túnica púrpura e uma coroa imitando a de César, e ele
foi apresentado ao povo com as palavras “Eis o homem”. Este é o primeiro disfarce a que Jesus é
sujeito, a primeira resposta que damos a nós próprios, à nossa pergunta “O que é a verdade?”, re-
lativamente à pessoa de Jesus. Mas quantas vezes, desde então, o disfarçámos? O menino Jesus,
Jesus rei das nações, Cristo pantocrator, Jesus socialista, Jesus palhaço, Jesus entronizado nos nos-
sos tribunais humanos, Jesus a garantir da lei e da ordem, Jesus o revolucionário. Sempre que

71Sobre a relação entre realidade e verdade, ver J. Ellul, La Parole humiliée (Paris: Éditions du Seuil, 1981); ET The Humiliation
of the Word (Grand Rapids: Eerdmans, 1985).
124

utilizamos Jesus Cristo nos nossos esquemas humanos para nos fundamentarmos, justificarmos e
explicarmos, inevitavelmente disfarçamo-lo, e o resultado é uma mentira. É preciso ter cuidado,
porque mesmo títulos como Filho de Deus, Cristo e Messias (nos quais acredito profundamente), se
forem simplesmente tomados em si mesmos, podem, por sua vez, tornar-se mentiras sobre Jesus,
pois rapidamente fazem com que não o recebamos como o Vivo, a verdade total em pessoa, mas
novamente como um objeto, um ídolo.

A terceira forma de mentira é a de remeter Jesus para a Igreja. As mentiras agarram-se sempre a um
primeiro ponto de verdade. Acreditamos firmemente que a Igreja é o corpo de Cristo. Que tentação
para a igreja, então, assimilar Jesus Cristo, pretender ter toda a verdade e falar toda a verdade, de
modo que a palavra da igreja não seja nem mais nem menos do que a palavra da verdade. Uma vez
que só a fé em Jesus Cristo garante a salvação, que tentação é para a igreja proclamar que não há
salvação fora da igreja. A Igreja é certamente o corpo de Cristo, mas esta verdade, em vez de ser
recebida como uma graça fugaz e sempre nova, é considerada como uma aquisição, uma posse,
um estado: uma realidade fixa, objetiva e imutável. Como já dissemos, todo erro na história da
igreja é uma verdade que foi assumida e reorientada.

Estas, então, são as três falsidades que podemos perceber na relação entre a Bíblia e a história da
igreja. Todas as falsidades humanas - intelectuais, psicológicas e morais - derivam, de uma forma
ou de outra, de uma dessas três. Por outro lado, se as mentiras inspiradas pelo príncipe da mentira
se referem a Jesus Cristo, e somente a ele, então buscar ou perseguir uma verdade que não tenha
referência a essa revelação não é uma mentira. Investigar o budismo, ou procurar a verdade na e
pela ciência, psicanálise, etc.., pode ser um erro, mas não é uma mentira, desde que não nos mistu-
remos em Jesus Cristo. Assim sendo, podemos compreender porque é que o príncipe da mentira
ataca primeiro a Igreja. Este é o seu alvo principal. É aqui que ele estabelece a sua fortaleza. Fora
dela, temos apenas lampejos de luz, através dos quais o príncipe da mentira desvia os iluminados.

“Vi Satanás cair do Céu como um relâmpago”, diz-nos Jesus. Isto é fundamental. Recordemos no-
vamente que satanás não é uma pessoa. (Não há necessidade de usar maiúscula; o termo é co-
mum.) Não é satanás, mas o acusador, ou mesmo a acusação. Temos de dizer que onde quer que,
de qualquer forma ou por qualquer motivo, uma acusação seja feita (incluindo acusações verdadei-
ras e justificadas), há satanás. Satanás está então a trabalhar, está presente e torna-se uma pessoa.
O processo (como para o demónio) é claro. A acusação cristaliza-se de alguma forma e resulta no
desenvolvimento de uma presença acusadora personalizada. Conhecemos o processo de desenvol-
vimento das acusações, por exemplo, as acusações coletivas. Jesus diz-nos que satanás já não está
no Céu. O que ele quer dizer é claro. Já não há acusação personificada perante Deus (como em Jó),
agora que Jesus, o Filho de Deus, veio perdoar-nos. Para usar a imagem patrística, um advogado, e
não um acusador, está agora ao lado de Deus.

Deus não ouve, não quer ouvir, não dá ouvidos às acusações que o assaltam de todos os lados. Mas
se as acusações já não estão no Céu, se já não emanam do Céu, se Deus não é ele próprio um acu-
sador em qualquer assunto, então não só a acusação ainda está na Terra, como também floresce
nela. Ela desenvolve-se na mesma medida em que é banida do Céu. Aquilo que já não explode como
ódio e acusação no Céu, condensa-se na terra. É por isso que Jesus não prevê para o futuro uma
progressão idílica em direção a um paraíso progressivamente organizado, mas sim um crescimento
125

terrível dos conflitos individuais ou coletivos. Há uma concordância total entre o anúncio e esta pers-
petiva histórica.72

Assim, satanás, a acusação, prolifera no nosso mundo. Mas também aqui o drama é que o acusador
usa primeiro a Igreja. A igreja torna-se a origem, o aperfeiçoamento e, finalmente, o modelo de to-
das as acusações e de todos os sistemas de inquisição. Ela trouxe os mecanismos de acusação do
domínio individual e privado para o domínio coletivo e institucionalizado. Não quero dar demasi-
ada importância à Inquisição, mas não deixa de ser verdade que esta foi uma perversão prodigiosa
da revelação. Uma totalidade baseada no perdão tornou-se uma totalidade baseada na inquisição.
O drama não consistiu na mera existência de um tribunal. Começou muito antes, com o desenvol-
vimento da prática da confissão auricular individual dos pecados. Em vez de deixar a graça e o per-
dão dominarem, e admitir que o pior pecador que se arrepende diante de Deus recebe o perdão Dele,
a igreja interpôs a confissão a um padre, que por ser padre não deixa de ser um homem, por um
lado, e um representante da instituição, por outro. Criou-se uma situação espantosa em que, para
perdoar, o padre tinha de conhecer o pecado (embora, de facto, só Deus o conheça realmente). A
procura do pecado tornou-se assim o principal, o dominante e constante, aquilo em que a Igreja
insistia. O perdão subsequente tornou-se uma espécie de formalidade.

Não se trata apenas de uma questão de culpa externa, de faltas reais. Desenvolve-se uma investi-
gação psico-ética. Temos uma cirurgia dos movimentos da alma, dos desejos, das tendências, dos
sonhos, até do inconsciente. A culpa tornou-se espiritual. Deve ser procurada no que não é dito, no
mais simples impulso, na esfera espiritual. Tudo se torna suspeito. Tudo pode ser interpretado
como uma falha. Este tem sido o grande erro da igreja, que tem obedecido a satanás e pervertido a
verdade revelada. A lei tinha-se tornado realmente espiritual e interior, para que Deus pudesse estar
imediatamente presente no coração e o perdão pudesse abundar. Mas porque Satanás veio alojar-
se no coração da igreja, a própria igreja tornou-se a grande senhora da acusação e transformou-se
num cancro invasor, esmagando-nos sem fim. Infelizmente, este desenvolvimento da acusação ca-
racteriza a cristandade e depois passa para os movimentos seculares. Se o nosso mundo atual é um
mundo de acusação insaciável - política, social, intelectual e moral - é devido a esta mudança er-
rada por parte da igreja, sob a influência de satanás. Satanás fez da Igreja a sua presa especial para
que, através dela, como seu intermediário, pudesse tornar o mundo verdadeiramente louco.

Depois temos o diabo, o diabolos, o divisor. Relativamente ao diabo, fazemos a mesma observação
que fizemos relativamente a satanás. O diabo não é uma pessoa ou um indivíduo, mas a realidade
de um facto, a saber, a divisão. Não é preciso usar uma letra maiúscula. O demónio está presente
onde quer que haja divisão, conflito, perturbação, competição, combate, discórdia, desarmonia, di-
vórcio, exclusão, desajustamento (e é preciso levar muito a sério cada uma destas palavras no seu
sentido pleno). Como no caso de satanás, a igreja é a presa predileta do diabo, e a ocasião de muitas
perturbações no mundo. É certo que havia guerras, conflitos e divisões antes do cristianismo. Mas
creio que a igreja tem sido um fator agravante na situação “natural”. O que poderia ter sido sim-
plesmente uma questão psicológica, política ou sociológica, tornou-se agora uma questão

72Se os exegetas críticos tivessem tido um mínimo de compreensão teológica, ter-se-iam apercebido desta concordância e
nunca teriam dito que Jesus anunciava a instalação do Reino de Deus na terra e que a sua insinuação dos últimos tempos
continha esta referência. Também não teriam deduzido que os textos que proclamam catástrofes (por exemplo, Mateus 24)
devem ser muito tardios e não podem ter vindo do próprio Jesus.
126

espiritual. As divisões são agravadas porque têm raízes espirituais. Encontramos agora guerras san-
tas, cruzadas, heresias, feitiçarias, etc...

As guerras de religião são mais implacáveis do que todas as outras guerras; isso já foi dito centenas
de vezes. Essas guerras resultam tipicamente do cruzamento entre o demónio e a igreja, ou da uti-
lização pelo demónio da verdade detida pela igreja. Como no caso da acusação, o drama tem sido
o da contaminação. O contágio estendeu-se da igreja para a sociedade e para o mundo inteiro. As
nossas guerras e conflitos políticos são tão assustadores porque agora são guerras de religião e
combates espirituais. Não vale a pena apelar ao facto de que o nosso século é um século de religiões
seculares e que as guerras desencadeadas pelo hitlerismo ou pelo comunismo são, à sua maneira,
guerras de religião, como todos os movimentos revolucionários são também movimentos religio-
sos. Não o são por natureza; a igreja, caracterizando-os pela sua presença, tornou-os religiosos.
Mesmo com a secularização da sociedade, permaneceu no nosso mundo ocidental uma estranha
sacralização das coisas sociais. A igreja sacralizou o Estado. Da mesma forma, a procura da “ver-
dade” na política cristã levou a uma sacralização dos conflitos políticos, que mantiveram esse ca-
rácter mesmo com o declínio da igreja. A igreja declarou que o seu adversário era herético e uma
encarnação do mal absoluto. Esta ideia persistiu no mundo. Cada inimigo tornou-se agora, não um
adversário humano, mas um ser demoníaco. Se quisermos finalmente alcançar a justiça, a paz, a
liberdade, etc.., temos de eliminar absoluta e completamente o adversário. Assim é o demónio. Tal
é o poder espiritual que produziu essa perversão da revelação na e pela igreja.

Quando pensamos em todos os ataques espirituais contra a Igreja, nos quais ela muitas vezes pre-
valeceu e voltou a ser ela mesma, mas nos quais muitas vezes sofreu derrotas, e quando pensamos
naquelas que são geralmente as melhores intenções do mundo, percebemos que, como principal
sinal do fim do mundo, Jesus dá aquilo que ‘está entre’ e ‘’liga as duas partes da sua profecia em
Mateus: “Quando virdes a abominação da desolação ... que está no lugar santo.”. (24:15). Antes
disso, anuncia aflições, seduções, falsos profetas, injustiças. Segue-se a ordem de fuga e os avisos
sobre a vinda de falsos cristos e catástrofes cósmicas. Entre estes dois pontos, encontra-se esta
estranha frase, que é traduzida de muitas maneiras diferentes: “a baixeza da devastação” (Pernot),
“o horror devastador” (Chouraqui), “o odioso devastador” (TOB). Nos manuscritos mais antigos, o
que se lê é simplesmente: “Quando vires o sinal da devastação”. Os comentadores costumam refe-
rir-se ao acontecimento histórico da tomada de Jerusalém pelos romanos e à colocação das suas
águias no templo.73 Uma referência histórica é certamente possível, mas creio que a ambivalência
caracteriza estas passagens. Por detrás da referência histórica, há uma referência mais profunda e
mais decisiva. Será que os discípulos não se apercebem que o que está em jogo é mais do que o
futuro de Jerusalém e do seu templo? Será que continuam a ser tão judeus que o que acontece ao
templo em 70 d.C. lhes parece ser um sinal do fim do mundo? Mesmo depois do ensinamento espe-
cífico que Jesus lhes deu, não compreendem que há mais em jogo?

Estou convencido de que reduzimos arbitrariamente o texto se lhe dermos apenas uma dimensão
histórica e local. Penso que ele se aplica a toda a duração histórica da Igreja. A abominação da de-
solação parece-me ter dois significados possíveis. Por um lado, um terrível fenómeno espiritual de-
vasta, destrói totalmente e torna a terra vazia. Mas não é exatamente isso que demonstrámos ter

73O texto está, sem dúvida, a referir-se à fórmula semelhante em Da 8.13; 9.27; 11.31; 12.11, que tem em vista os sinais que
Antíoco Epífanes colocou no templo de Jerusalém. A maioria dos estudiosos, portanto, relaciona-o com as águias romanas
(o vexillum) que foram colocadas no templo em 70 d.C.
127

acontecido com o cristianismo? Ele destruiu antigas crenças, religiões, valores e culturas, substitu-
indo-os pela única verdade de Deus em Jesus Cristo. Mas quando essa verdade é minada e destru-
ída, quando se diz que Deus está morto, quando Jesus não é mais Redentor, Salvador e Senhor, há
uma verdadeira devastação, um “terreno baldio”. A humanidade não tem mais nada a que se agar-
rar. O outro aspeto surge quando tomamos nota do genitivo: a abominação da desolação. Trata-se
de desespero, desespero total, que nos mergulha numa situação horrível de completa solidão. Estes
dois sentidos são possíveis. Quando a devastação ocorre no lugar santo, a Igreja, e quando o deses-
pero e a solidão se instalam na Igreja, temos a última ação demoníaca e infernal que as potestades
podem montar.

Os poderes são espirituais. O que acontece não é uma questão de acaso. A nossa pergunta sobre
como é que esta perversão pode ter lugar, como é que o ouro puro pode ser transformado em
chumbo, encontra aqui uma resposta. Estamos a lidar com factos políticos e fenómenos sociológi-
cos. As coisas e as instituições têm uma palavra a dizer. É possível fazer uma comparação com o
que aconteceu ao socialismo de Marx ou à visão democrática de Rousseau. Nestes casos, o “como”
é idêntico ao “porquê”. Se ficarmos por aqui, podemos pensar que as coisas poderiam ter sido di-
ferentes. Não há inevitabilidade ou necessidade em tais subversões. Nada exigiu a degradação do
pensamento de Marx, Lenine ou Estaline, ou a transição de Rousseau para a democracia capitalista
formal da América. Do mesmo modo, poder-se-ia pensar que a revelação de Jesus Cristo poderia
ter-se encarnado plenamente e mantido a sua integridade. Se não insistirmos no ponto de vista de
que a natureza humana é decaída e não pode encontrar um lugar para a virtude cívica ou para o
anarquismo libertário, temos de admitir que estas ideias generosas podem ser vividas e, portanto,
que a verdade vivida por Jesus Cristo e revelada nele também poderia ter sido aceite.

Nesta perspetiva, as pessoas poderiam ter-se convertido e a subversão do cristianismo poderia ter
sido evitada. Só uma combinação de acasos infelizes, uma aliança de forças irresponsáveis, condu-
ziu à subversão. Mas, de facto, esta revelação da verdade no, do e pelo amor não é de modo algum
a mesma coisa que o pensamento de Rousseau ou de Marx, e em nenhum sentido nos conduz fala-
ciosamente ao conceito nebuloso de ideologia. Com Jesus Cristo temos um tudo ou nada. Trata-se
de uma afirmação histórica peremptória (que termina a discussão) que combina de forma única a
vida, o amor e a liberdade. Não podemos contentar-nos com o aspeto natural dos acontecimentos
que tentámos analisar, porque os acontecimentos não têm peso suficiente para oferecer uma ex-
plicação. Também não podemos contentar-nos com a resposta teológica que aponta para a dialé-
tica de um Já e de um Ainda não. Se as coisas aconteceram como aconteceram na esfera humana e
histórica, é porque as forças espirituais estão mobilizadas. A luta não é no plano moral ou social. O
que Jesus Cristo inaugurou é precisamente aquilo que tem de ser não atacado e destruído, mas
desviado, capturado e utilizado.

O que foi feito não tendeu a limitar ou a destruir pela força o poder desses poderes, mas a reduzi-
los ao que realmente são. O que poderia parecer impossível, aconteceu. Quando os demónios ga-
darenos pediram a Jesus que não os destruísse, ele deixou-os entrar nos porcos, que ficaram loucos
(os demónios mostram-se na sua verdadeira face) e se afogaram. Os demónios são poderes de
morte que conduzem à morte sem morrerem eles próprios. O que eles têm de fazer é apoderar-se
da cruz de Jesus, usar a sua verdade e a sua justiça. Nada mais lhes interessa. Todas as outras dou-
trinas, ideias, virtudes e filosofias podem ser deixadas intactas, porque nunca produzem qualquer
mudança decisiva, nem a nível individual nem a nível social. Tudo parece continuar como sempre.
128

Mas não com a cruz de Jesus Cristo, não com a ressurreição e o novo corpo de Cristo. Para assegurar
o seu domínio sobre nós, os poderes não podiam permanecer como estavam. Tinham de se alimen-
tar do que tinha sido plantado nestas coisas. Para estas forças espirituais, era verdadeiramente
uma questão de vida ou de morte. Ou não conseguiriam apoderar-se da verdade evangélica, e então
o dinheiro, o Estado e as massas tornar-se-iam meros objetos sem grande interesse, ou então, ape-
sar do Espírito Santo e dos crentes convertidos, conseguiriam arrancar frutos da árvore da cruz, e
tornar-se-iam assim não só mais poderosos e aterradores, mas definitivamente sedutores. Em vez
de atuarem por meio do terror e da interrogação, passariam a envergar o manto branco da justiça
e da verdade.

Foi preciso que a liberdade espiritual entrasse na política para que o Estado se tornasse o mais frio
dos monstros frios. Era preciso que houvesse graça livre para que o dinheiro produzisse o capita-
lismo. O amor tinha de ser experimentado para que as massas anónimas assumissem o rosto abs-
trato da humanidade invisível. Era necessário o espírito do não-poder para que a tecnologia domi-
nadora se apoderasse do mundo e colocasse tudo ao seu serviço. A verdade revelada tinha de estar
presente para que a ciência se tornasse a autoridade final no absoluto. Estes poderes, diz Paulo,
foram pregados na cruz com Cristo. E assim foi por toda a eternidade. Mas agora que Cristo ressus-
citou, nós somos sempre a sua presa, e mais do que nunca, pois eles estão agora investidos daquilo
que desviaram, embora aos olhos humanos continue ligado a Jesus.

Os não-cristãos dirão que estou a fazer um romance. Muito bem. É uma questão de fé. Os cristãos
escandalizar-se-ão porque o que escrevo significa a derrota do Espírito Santo. Mas não está tudo
isto também insinuado em Mateus 24 (e talvez também na parábola de Jesus sobre o espírito que é
expulso, mas que volta, quando a casa está arrumada, com outros sete demónios, de modo que o
último estado é pior do que o primeiro!)? Não será tudo isto exatamente o que temos visto nos últi-
mos dois mil anos (e não será impossível reduzir tudo isto à destruição do templo em 70 d.C.)? Se-
dução por muitos salvadores de todos os tipos, crescimento das guerras, desenvolvimento de ru-
mores de guerras e catástrofes, aumento da fome em todos os lugares, ódio à verdade e àqueles
que pregam Cristo (e não esqueçamos que esse ódio se encontrava na cristandade medieval), trai-
ções e injustiças surgindo por toda a parte, perda do amor (limito-me a mencionar apenas as coisas
que se encontram nesse capítulo), multiplicação de milagres em massa, muitas vezes sinais impres-
sionantes e coisas muito maravilhosas (não falamos hoje de milagres da medicina ou da astronáu-
tica, etc..? ). E sempre a sedução. Sedução por tudo o que acontece, por falsas promessas, por falsos
Cristos (supostamente enviados por Deus), por falsos direitos e por falsas liberdades. Está tudo aí.
O crescimento fabuloso da força destes poderes é-nos expressamente apresentado.74

Mas esta força extrema dos poderes só é possível através da subversão do cristianismo. Não é, pois,
por acaso histórico que as coisas se passaram como se passaram. Os poderes encarnados não po-
diam aceitar que a verdade iluminasse o mundo, que as coisas estivessem no seu lugar, que as se-
duções fossem despojadas das suas máscaras. A luz veio ao mundo, e as trevas não a receberam.

74Não devemos ignorar desdenhosamente estas indicações com o argumento de que correspondem a uma doutrina mile-
narista, que não têm nada de original, que são uma tendência tradicional de carácter puramente sociológico, desastres fi-
nais que precedem quer a instauração de um reino idílico na terra quer o acesso ao Reino de Deus. Todas estas coisas são
bem conhecidas, mas parecem não ser relevantes, uma vez que todas as formas de messianismo e de milenarismo realmente
conhecidas (e não apenas conotadas) têm as suas raízes nestes textos bíblicos, que são a verdadeira fonte de muitas ante-
cipações e interpretações posteriores e erróneas.
129

Tornou-se ainda mais sombrio porque existe essa luz. A verdade tem sido o alimento daquilo que
se tornou a desintegração e a destruição da inteligência e da virtude. Esta obra dos poderes, esta
espiritualização das nossas provas, esta situação a que os homens se viram reduzidos durante dois
mil anos, onde quer que o Cristianismo se tenha difundido, é uma espécie de demonstração terrível
de que Jesus era de facto o Cristo e de que o que ele nos revelou é de facto verdadeiro.

Significa, então, a derrota do Espírito Santo? Temos de ser muito rigorosos. No que respeita ao su-
cesso no mundo e à manifestação de poder, sim, significa. E porque não? Deus Espírito Santo é di-
ferente de Deus Pai ou de Deus como Jesus Cristo? No Antigo Testamento, vemos constantemente
o plano de Deus ser derrotado, pois Deus não nos força nem nos mecaniza. Há reveses com Adão,
Caim, Noé, José, Moisés, os reis e os profetas. De cada vez, Deus faz um novo começo e emprega
uma nova pedagogia. Com Jesus Cristo, temos a derrota da fraqueza voluntária. Porque, uma vez
que a ressurreição só é verdadeira para a fé, a história de Jesus é historicamente uma história de
derrota. O que dizer então do Espírito Santo?

Com o Espírito Santo, as coisas não são diferentes. Ele é o Espírito de luz, de verdade, etc... - Sim,
para a fé. Não é uma força histórica que faz com que os homens obedeçam a Deus e que muda o
curso da história.75 O Espírito Santo dá esperança onde tudo é desespero, força para resistir no meio
da catástrofe, perspicácia para não cair na sedução, capacidade de subverter por sua vez todos os
poderes em jogo. O crente é, pois, aquele que tem a sabedoria e a força de despojar as realidades
materiais do seu poder de sedução, de as desmascarar por aquilo que elas são, e não mais, e de as
pôr ao serviço de Deus, desviando-as totalmente da sua própria lei.

Mas nunca há um triunfo imperial. Nenhum chefe de Estado é inspirado pelo Espírito Santo. Ne-
nhum capitalista alcança o sucesso através do Espírito Santo. A ciência e a técnica não se desenvol-
vem sob a direção do Espírito Santo. O sucesso das potências é, portanto, o oposto. Eles alcançaram
uma vitória explosiva, usando a própria verdade de Cristo para promover a sua própria grandeza.

75Ver o meu estudo sobre os quatro cavaleiros do Apocalipse, L'Apocalypse, architecture en movement (Paris: Desclée de
Prouwer, 1976); ET Apocalypse (Nova Iorque: Seabury, 1977)
130

Capítulo 10

EPPUR SI MUOVE!

No entanto, Cristo está lá. A cruz que está plantada no coração da história do mundo não pode ser
arrancada. Cristo ressuscitado está connosco até ao fim do mundo. O Espírito Santo atua em se-
gredo e com uma paciência infinita. Há uma Igreja que nasce e renasce constantemente.

Creio ter examinado honestamente a subversão da revelação, a transformação do movimento de


Deus em direção a nós, as muitas traições. Não tornei as coisas fáceis. Não tentei acentuar, descul-
par ou minimizar o que quer que seja de perversão do cristianismo, o que quer que seja de falsidade
em relação a Jesus Cristo, o que quer que seja de violência e opressão. Por outro lado, não aceitei
o que se tornaram as acusações tradicionais. Porque elas são tão falsas, enganadoras e exageradas
como o relato santo, puro e piedoso da igreja que encontramos nas desculpas do século XIX. São
também rancorosas.

De tudo o que se diz contra a igreja, ou o monoteísmo judaico, ou Paulo, ou o comportamento nor-
mal dos cristãos, nem tudo, nem de longe, é verdade. Há quem já não queira encontrar na igreja e
na sua história senão violência, intolerância, repressão, censura e hipocrisia. É uma imagem falsa.
Não devemos esquecer que a opinião popular é feita de uma acumulação de acusações que, na sua
maioria, são falsas. Essas acusações começaram na época da Reforma. Os reformadores acusaram
a Igreja Católica Romana de todos os horrores possíveis, de avareza, imoralidade, idolatria, violên-
cia, etc... Não entraram em pormenores, mas fizeram um julgamento universal. Este foi um bom
modelo para o período seguinte. Os não cristãos deviam simplesmente seguir o exemplo do que se
passava entre católicos romanos e protestantes. Seguiram este bom caminho e, no século XVIII, foi
lançada a grande ofensiva do Iluminismo.

Envolve muitas falsidades e muita propaganda sobre a igreja e a verdade evangélica. A Inquisição
torna-se uma espécie de modelo permanente e universal do que foi a igreja (embora na verdade
tenha sido sempre restrita e localizada e longe de ser assassina, exceto em relação aos cátaros). O
caso de Galileu é intencionalmente falsificado para fazer dele um mártir da ciência e para provar a
absoluta intolerância, ignorância e obscurantismo da igreja. As Cruzadas são transformadas numa
questão de dinheiro, poder e desejo de conquista. Todos os missionários são acusados de serem
terríveis hipócritas, servindo pura e simplesmente para engrandecer o poder do Ocidente ou do
capitalismo. O monoteísmo é visto como a fonte de toda a repressão política e ditadura. Por meio
de uma generalização impudente, a imoralidade de certos países ou religiões torna-se a regra geral.
La Religieuse, de Diderot, exemplifica todas as freiras, e Tartufo, de Molière, todos os padres. O pro-
testantismo torna-se a força motriz do capitalismo e é assim acusado de todo o tipo de injustiça,
exploração e alienação. Explica-se, de forma erudita, que o clero explorou e pressionou constante-
mente os pobres e que os impostos da igreja arruinaram o mundo inteiro. A Idade Média, quando o
cristianismo era dominante, é apresentada como uma época de violência e de obscuridade intelec-
tual. Sugere-se que as catedrais foram construídas apenas pela força, ameaça, repressão e
131

requisição de pobres infelizes que não ousavam resistir. Explica-se sem reservas que foi a igreja que
submeteu as mulheres a um estado de subordinação total e definiu o sexo como o pecado absoluto
(esquecendo-se que havia uma considerável liberdade sexual na Idade Média). E quantas outras
estupidezes foram acreditadas sem reservas, absorvidas como se fossem um bom alimento, ensi-
nadas nas escolas e aceites como verdade!

Ora, tudo isto são falsidades que emanam do príncipe da mentira e que servem apenas para fazer
propaganda. Mas, como em todas as falsidades, há sempre um núcleo de verdade, um ponto de
partida justificável. Basta chegar a esse núcleo, e isso é suficiente para levantar a questão da per-
versão do cristianismo. Mas é preciso rejeitar o resto. Dois pontos não devem ser negligenciados.

Em primeiro lugar, a maior parte dos ataques violentos são suficientemente verdadeiros em relação
ao que a igreja se tornou nos séculos XVIII e XIX, especialmente sob a influência da classe média.
Devo dizer que, quando a igreja é tomada pela classe média, torna-se esta força de conservado-
rismo, esta ideologia de exploração e de expansão, emitindo regras e princípios muitas vezes desu-
manos (por exemplo, em relação às mulheres e ao dinheiro). Este é um problema mais da classe
média do que da fé cristã. A perversão reside no facto de a classe média ter utilizado o cristianismo
como ideologia de poder. Mas o erro e a propaganda consistiram em projetar sobre toda a história
da Igreja o que aconteceu nos séculos XVIII e XIX.

O raciocínio tem sido o seguinte. Se o evangelho foi submetido assim, com pouco fervor e pouco
fermento humano (Lammenais, Lacordaire...), foi sempre assim. Se a igreja foi puramente mundana
no século XVIII, se os abades da corte e os cardeais ministros nos fizeram esquecer o cura de Ars e o
santo de Lumbres, foi sempre assim. Esta sombra demoníaca, que uma parte da igreja lançou, foi
projetada sobre a igreja no seu conjunto, sobre toda a sua história e sobre o Evangelho.

O segundo ponto tem a ver com a forma como a igreja enfrentou esta aplicação geral, este ataque,
estas condenações históricas. A atitude que me parece evangélica é reconhecer o que há de verda-
deiro nas denúncias, arrepender-se, entrar em diálogo com os acusadores, abrir-se a um retorno à
pureza evangélica, iniciar reformas, escutar e buscar a verdade. É preciso dizer que, em vez disso,
as igrejas lidaram com as acusações de forma muito arrogante. Resistiram à investigação intelec-
tual e científica, recorrendo a dogmas antigos. Ancoraram-se numa atitude geral de recusa de toda
a mudança (embora, por vezes, tenham mostrado grande habilidade em modular a novidade tem-
poral com a renovação espiritual), por exemplo, em relação à democracia, ao socialismo, ao femi-
nismo, etc...

Por fim, encontramos uma orientação antiga e tradicional, a de confiar no direito, na autoridade,
na instituição, para a reforma geral da igreja. O único resultado de uma orientação individual é uma
espiritualidade desencarnada, uma piedade puramente pessoal, com Bernadette Soubirous ou
Thérèse de Lisieux como exemplos. Esta atitude orgulhosa e defensiva resulta tanto da incompre-
ensão do que está a acontecer como do esquecimento da força sempre nova do Evangelho (o pró-
prio Deus é eterno e, portanto, jovem). Ela conduzirá finalmente à catástrofe do período de 1945 a
1970, quando, após uma resistência até ao limite, a barragem rígida é rompida. Levados pelo dilú-
vio, os cristãos viram-se subitamente cientistas, comunistas, revolucionários e hipercríticos em re-
lação às suas igrejas. Não se aperceberam que estavam a fazer exatamente a mesma coisa que acu-
savam a igreja de fazer. É, pois, absolutamente essencial que saibamos distinguir o que é verdadeiro
132

nas falsidades, nas acusações. É também essencial que escutemos tudo e retenhamos o que é cor-
reto, num esforço para recuperar a verdade da nossa própria vocação e o elemento inabalável da
revelação.

No entanto, neste processo, como vimos, as nossas igrejas parecem ainda ser culpadas de tantas
falsidades e erros que temos realmente a sensação de que já não existe Espírito Santo. A promessa de
Jesus de que estará connosco até ao fim do mundo parece ser uma promessa vazia. Se Jesus está
verdadeiramente connosco, as coisas não deveriam ter tomado o rumo que tomaram. Se o Espírito
Santo está com a sua Igreja, como é que a sua história tem sido como tem sido? O Espírito é o Espí-
rito de luz, de verdade, de liberdade, de amor e de poder. Ele multiplica o pouco que podemos fazer.
Se assim é, como é que as coisas puderam degenerar como degeneraram? Não podemos fugir a
esta pergunta. É uma questão angustiante, traumatizante. Porque se Jesus não está connosco, se
o Espírito Santo não está na Igreja, o que é que estamos a fazer quando continuamos a acreditar
nessa palavra, a rezar, a esperar e, por vezes, a exprimir o amor de Deus? Se Deus está em silêncio,
como tentei dizer noutro lugar,76 como podemos ainda falar dele e em seu nome? Se tudo foi um
grande erro e uma grande traição, porque é que havemos de perseverar? Pelo menos se a promessa
não foi cumprida e o Espírito Santo foi finalmente derrotado?

Eppur si muove. E, no entanto, a Igreja desmantelada, dividida, falsa e traiçoeira ainda existe, e não
o faz meramente como uma instituição ou organização, mas, apesar disso, ainda existe como o
corpo de Cristo, como a verdadeira Igreja. Mesmo agora, o evangelho, a revelação, embora traída,
zombada, confiscada, desviada e pervertida, ainda existe como a revelação do único Deus, o Pai de
Jesus Cristo. Ela ainda continua a transmitir a verdade. Continua a inspirar vidas que Deus reco-
nhece como verdadeiras.

Não quero, por minha vez, lançar-me numa apologética. Não vou tentar mostrar que a igreja não é
assim tão má e que tem razão do seu lado. Não vou reescrever a história da igreja em termos posi-
tivos e contrapô-la a tudo o que já disse. No entanto, serei levado a apresentar alguns casos ou
factos históricos, não de forma apologética, mas para mostrar que há uma outra dimensão que não
podemos ignorar. Não entrarei no debate interminável sobre a revelação. Não farei a vã tentativa
de sair dos círculos viciosos em que os incrédulos vitoriosos pensam constantemente ter encerrado
a revelação, como os dois célebres aforismos: 1) Ou Deus existe e, no momento em que cria todas
as coisas, o mal que se faz na terra recai sobre ele e é-lhe imputado, ou então o mal tem outra ori-
gem, mas Deus não é omnipotente e, portanto, não existe; e 2) a Bíblia é a Palavra de Deus porque
Deus fala nela, mas eu conheço Deus porque a Bíblia é a Palavra de Deus. Essas coisas são total-
mente desinteressantes e inadequadas. Se acredito que o Espírito Santo está presente na Igreja, em
cada vida cristã, e se acredito que ele atua através de nós, parece-me que a Bíblia lhe dá três carac-
terísticas. Primeiro, ele marca um limite, um ponto de paragem. Em segundo lugar, ele é muito dis-
creto e secreto; não pode ser apreendido, mas é como o vento, que ouvimos, mas não sabemos
dizer de onde vem nem para onde vai. Finalmente, isto leva-nos a tratá-lo como um intruso.

Primeiro, o limite. Há um poder demoníaco e infernal que procura destruir a criação, a saber, a
morte. Não tentaremos escrever uma história bíblica da morte nem construir uma teologia da
morte. Bastará recordar que a Bíblia lhe chama o rei dos terrores (Jó) e o último inimigo

76 J. Ellul, L'Espérance oubliée (Paris: Gallimard, 1977); ET Hope in Time of Abandonment (Nova Iorque: Seabury, 1973).
133

(Apocalipse). Ela é de facto final e derradeira, pois a sua obra não é apenas destruir o que é vivo,
mas fazer-nos crer que não há nada para além dele. É a barreira de toda a vida. É o ponto de che-
gada. Não nos devemos deixar embalar por sofismas filosóficos (a morte não é nada, mesmo
quando penso nela estou vivo, quando estou morto não sei que estou morto) nem pelo distancia-
mento pseudo-científico que prova que a morte só existe porque lhe chamamos isso, quando na
realidade é uma simples dissolução de um organismo, cujas células permanecem vivas. Que coisa
boa (!) reencontrarmo-nos como bolor ou putrefação.

O que nos importa, como temos todas as razões para acreditar, é o “eu” que a morte destrói. Não
vale a pena procurar uma fuga, nem num universalismo nebuloso, nem em consolações religiosas
clássicas. Biblicamente, a morte é uma coisa terrível. Mais do que imaginamos, pois ela é o poder
do mal (Eu pus diante de vós a vida e o bem, a morte e o mal). É o poder que desfaz a obra da criação
de Deus. Está sempre presente para engolir esta obra de Deus, que é o Deus vivo e cuja obra é a vida.
Pela sua força, pelo terror que justamente nos inspira, faz-nos perder a confiança em Deus. Con-
vence-nos de que não há futuro, de que não há nada para além de si próprio, de que não há Deus,
não há Criador, não há Salvador. Para além da destruição da vida, traz consigo uma perda de con-
fiança na possibilidade de um Criador. Isto é a morte. É por isso que o Apocalipse a descreve como
o quarto poder da história, o resultado do galope dos quatro cavaleiros, dos quais o último é a pró-
pria morte e o lugar dos mortos.

Já aqui nos deparámos com uma verdade bíblica fundamental. Contrariamente às nossas impres-
sões humanas, o poder da morte na história encontrou um limite. Ao quarto cavaleiro é dado o po-
der de destruir um quarto da raça humana. A morte não pode apropriar-se de mais poder do que
aquele que Deus lhe atribui na história. A referência aqui é à história. Estamos a falar da Igreja. Po-
demos recorrer a uma passagem que traz a mesma mensagem, mas que está muito mais próxima
de nós, porque já não se trata de “estatísticas”. É o caso de Jó. Quando satanás se apresenta diante
de Deus para lançar dúvidas sobre a fé de Jó, sobre a liberdade do seu amor a Deus, sugerindo que
ele ama Deus apenas porque Deus lhe acumulou riquezas e felicidade, Deus entrega-lhe Jó, mas
proíbe-o de tocar na sua pessoa. Jó permanece fiel. Então satanás regressa. Admite que Jó resistiu
à perda dos seus bens e da sua felicidade. Mas deixa-me atacar a sua pessoa, diz ele, e vê-lo-ás cair.
Deus entrega então a pessoa de Jó a satanás, a sua saúde física e, eventualmente, também a sua
saúde psicológica, moral ou mesmo espiritual. Mas satanás não pode tocar na sua vida. Jó é pre-
servado da morte. A miséria é tão grande que Jó conclui pensando na morte como um refúgio, uma
bênção, um lugar de repouso, o fim feliz dos sofrimentos. Mas a morte é interrompida neste ponto.

Esta grande passagem encontra uma continuação na proclamação de Jesus, em conexão com a
construção da sua Igreja sobre a confissão de Pedro, de que as portas do inferno (lit. “as portas do
Hades”) não prevalecerão contra ela (Mat. 16:18). Isso pode ter dois sentidos. Primeiro, a morte não
virá para destruir a Igreja, para forçá-la a entrar no lugar dos mortos. Segundo, as portas desse lugar
não podem resistir ao poder da Igreja. Devemos pensar nestes dois sentidos reciprocamente. O se-
gundo só é possível, porém, do ponto de vista da ressurreição. A morte não pode deter o Filho do
Deus vivo. Este Filho levará consigo toda a sua Igreja. A Igreja tem inevitavelmente a promessa da
ressurreição. As portas do inferno não podem ser fechadas para ela.77

77Compreendo, evidentemente, que a frase de Mateus pode não ser um logos original de Jesus. Mas foi formulado cedo,
após a experiência da ressurreição dos discípulos, e é, portanto, a Palavra de Deus.
134

O primeiro sentido é o que nos interessa neste inquérito, e corresponde ao que encontramos em Jó
e no Apocalipse. Espiritualmente e historicamente, o poder da morte é limitado em relação à Igreja,
bem como a toda a humanidade. Todos os poderes espirituais malignos podem cair sobre a Igreja.
Podem desmembrá-la, esquartejá-la, desviá-la, conformá-la, levá-la a todos os tipos de tentações,
fazê-la cometer enormes erros morais, espirituais, históricos e humanos, mas não podem destruí-
la. Um resto da verdade da Igreja,78 por mais pequeno que seja, permanece sempre, porque a Igreja
continua a viver. Não importa o que a Igreja faça, quais sejam seus erros, o que venha sobre ela, ela
não pode ser separada de Deus (que é o Deus vivo) e aniquilada.

A história da Igreja é uma história muito estranha, tão espantosa como a do povo de Israel, que
continua apesar de tudo e mesmo apesar da sua aparente recusa de existir como povo eleito. Tanto
Israel como a Igreja continuam a existir na história, desafiando todas as aparências e todas as pro-
babilidades. E aqui e agora, nos anos oitenta, uma espécie de esperança e de verdade são ouvidas
e invocadas de novo. Mas se assim é, não é por causa de uma bondade natural da Igreja, de um ser
intrínseco, de uma alma imortal. De modo algum. É unicamente porque Deus permanece fiel à sua
promessa. O que ele prometeu ao seu povo, ele não revoga. Nem se trata apenas do texto que citá-
mos do Evangelho de Mateus. Trata-se fundamentalmente da verdade de que, porque a ressurrei-
ção individual e coletiva está assegurada, prometida e certa, então, no decurso da história, que é a
expressão visível e concreta desta ressurreição, há esta espantosa sobrevivência da Igreja, o sinal
percetível da comunhão dos santos.

Na diáspora, ou em Israel, o povo escolhido continua a ser o povo escolhido porque Deus é fiel e,
como Deus vivo, quer dar testemunho do seu poder de criar e recriar até ao fim dos tempos e através
da história. O mesmo se aplica à Igreja. Concentrada ou dispersa, fiel ou infiel, plantada no Oriente
ou no Ocidente, unida ou dividida, a Igreja é sempre a Igreja do Deus vivo. Ela foi sempre emara-
nhada. A revelação, como já dissemos longamente, foi transformada no “ismo” do cristianismo. O
corpo de Cristo tornou-se uma instituição sociológica. Mas a Igreja ainda é a Igreja de Cristo. Ela não
pode morrer. Nós vemo-la morrer. Mas continua a manifestar-se noutro lugar e noutra forma. As
primeiras igrejas fundadas pelos apóstolos e por Paulo, as maravilhosas igrejas do Médio Oriente,
desapareceram com as invasões árabes. Nessa mesma altura, a Igreja nasce na Gália, na Irlanda e
em Espanha. As extensas e frutíferas igrejas do Norte de África são aniquiladas pelos invasores ger-
mânicos e depois pelos árabes. Ao mesmo tempo, a Igreja nasce em Inglaterra e na Alemanha. Tal-
vez a nossa igreja ocidental esteja condenada, mas vemos a igreja a crescer na Ásia e em África e
vemos também um notável reavivar da verdade cristã na URSS. O mesmo se aplica à vida espiritual,
à vida da verdade na Igreja. Ela extingue-se e renasce noutro lugar ou de outra forma. A subversão
do cristianismo não pode implicar a morte do corpo de Cristo ou da Igreja invisível. Deus impôs este
limite à subversão da sua revelação. Agora que tentámos elucidar o como e o porquê desta perver-
são a todos os níveis, temos uma outra história a escrever, da qual apenas podemos dar os primei-
ros indícios: a história da verdade e da fidelidade que, em cada ocasião, fazem renascer das cinzas
do lenho morto a vida nova e que, de uma forma incompreensível, testemunham que a Palavra de
Deus continua viva e que atravessa o antigo organismo desesperado. Esta Palavra de Deus é, ela
própria, a sarça ardente que não se consome, apesar dos erros, dos pecados, das falsidades e dos
crimes da igreja e dos cristãos aparentarem tê-la destruído completamente. A morte é detida neste

78Podemos lembrar como Calvino, no meio de suas vituperações contra o papa e a igreja romana, ainda reconhece que,
apesar de todo erro, há nela um “remanescente da igreja”.
135

limite, e seja qual for a subversão do cristianismo, a última palavra cabe à vida restaurada e à Pala-
vra que a exprime e traz.

Temos estado a seguir um caminho teológico, mas não podemos descurar a história. Bernanos tem
razão quando diz que a Igreja vive dos seus santos. Recordemos que os santos não são necessaria-
mente aqueles que são oficialmente reconhecidos, listados, canonizados e inscritos no calendário
oficial. Esse procedimento corresponde a uma visão da santidade próxima da magia ou contami-
nada pelo moralismo. Os santos podem ser completamente ignorados ou conhecidos apenas por
Deus. O que é notável na história da Igreja é que, através da tremenda perversão, quando tudo pa-
rece ser comido por térmitas, sempre houve ressurgimentos da verdade. Naturalmente, não estou
a tentar desenvolver um argumento apologético a partir desta persistência da Igreja através das
vicissitudes de dois milénios. Não é esse o meu objetivo. A minha preocupação é com o facto do
renascimento, da redescoberta e da reinterpretação quase ex nihilo. Creio que podemos considerar
este reaparecimento da verdade, da vida cristã e da fé a três níveis diferentes: o dos teólogos e dos
grandes místicos; o dos movimentos populares que se cristalizam, tomam forma histórica e se ex-
primem; e o do mistério invisível dos verdadeiramente humildes na Igreja.

Não podemos simplesmente dizer que a sustentação da igreja através de todos os seus erros é pro-
vada pelo aparecimento periódico de teólogos que restauram tudo quando tudo parece estar cor-
rompido. Certamente há verdade nisso, mas não é totalmente satisfatório. O importante, parece-
me, é menos a correção da teologia do que a sua associação a uma certa encarnação na vida do
homem e dos que o rodeiam. O que é notável é que tais acontecimentos pontuam a vida da Igreja
e mostram que as perversões são constantemente corrigidas. O surpreendente é o aparecimento
de Francisco de Assis, do Papa Celestino V, de João da Cruz, de Teresa de Ávila, de Lutero, de Mün-
zer, de Las Casas,79 de Kierkegaard, de Kagawa, de Karl Barth e de uma centena de outros.

De cada vez que a revelação se perdeu num determinado tempo ou lugar, ou que a cristandade se
estabeleceu, ou que a fé se tornou um costume religioso, ou que as autoridades eclesiásticas toma-
ram o pior rumo possível; de cada vez que o poder do mundo invadiu a Igreja e se sentiu suficiente-
mente forte para pretender ter obliterado completamente a fé de Jesus Cristo, esses homens e mu-
lheres provocaram uma espécie de choque elétrico nesse clero ou nesse povo, voltando a uma ver-
dade ou procurando de novo o sentido da vida nas Escrituras. Naturalmente, não podiam justificar
o resto da igreja nem fazer-nos pensar que tudo estava bem porque eles tinham vindo. Mas não
podemos deixar de nos surpreender com o facto de eles terem vindo, de facto, sempre que foi ne-
cessário.

Isto não resolve nada. Porque, depois do despertar, a triste tendência para se afundar no pântano
volta a manifestar-se. Depois de S. Francisco, vem a miserável discussão sobre os Fraticelli, depois

79Naturalmente, os detratores tentaram mostrar que Las Casas não era o que se pensava, porque defendia o povoamento
da América Latina com negros trabalhadores. Isso é verdade, mas ele não tinha em mente a escravatura que era efetiva-
mente praticada. E quando viu o que se passava, reprovou-o veementemente e arrependeu-se do erro antes de morrer. O
erro de Las Casas foi agravado no ataque à fé cristã, de modo a focar apenas o lado negativo. Um escritor tão pouco suspeito
como Cosmao fala de uma “lenda negra” a este respeito e coloca a tónica no valor geral de Las Casas, que fez tudo o que
podia para proclamar o evangelho libertador, que disse preferir um índio pagão vivo a um índio cristão morto, que estabe-
leceu as bases dos direitos humanos e que instigou a primeira rutura com o sistema da cristandade. Se Las Casas, os seus
colegas e companheiros (pois não estava sozinho), e a obra dos jesuítas (sobretudo no Paraguai) foram eliminados e ocul-
tados durante séculos, é porque se opunham de tal modo à fusão da revelação com o sistema da cristandade que não po-
diam ser tolerados nem pela Igreja nem pelos anti-cristãos.
136

de Lutero, o aparecimento de uma nova religião tão formal e secular como a antiga. Ou então, na
expressão moderna que nem sempre exprime a realidade, diz-se que o despertar já teve o seu
tempo. A renovação teológica associada a Karl Barth? Já teve o seu tempo. Vivemos agora na era
pós-Barth. O que isto significa na realidade é que estamos a viver como se estivéssemos cinquenta
anos antes de Barth. Os escritos dos atuais dirigentes demonstram-no. Estes homens e mulheres
não são, portanto, a solução. Não há solução. Não temos aqui um ‘problema’ para o qual se possa
encontrar uma solução. Mas quando a mensagem evangélica ou a revelação profética parece estar
definitivamente fechada ou eliminada, quando parece estar atolada em intermináveis querelas es-
colásticas, formulada em dogmas institucionais mortos, ou despojada do seu conteúdo pela filoso-
fia ou sabedoria mundanas, de repente aparece uma espécie de estrela que dá a todo o firmamento
uma nova dimensão. Surge uma espécie de luz que ilumina os textos antigos e lhes dá subitamente
uma nova vida. Eles falam de novo e, ao mesmo tempo, os corações e as mentes dos homens são
iluminados e abrem-se para receber esta verdade que é a mesma há cerca de três mil anos e que,
de repente, se torna tão fresca.

Quero deixar claro que isto não segue o modelo atual das seitas ou das renovações religiosas, como
encontramos também no Islão ou no Budismo. Se podemos citar a Reforma, outros permaneceram
na Igreja sem procurar criar uma tendência diferente, uma rutura ou uma perturbação. Pelo con-
trário, o que é espantoso é que S. Francisco comove profundamente o povo católico, mantendo-se
fiel e sem ser condenado. O mesmo acontece com Las Casas. Cada um deles responde à questão
central da atualidade: uma questão simultaneamente espiritual e “política”. Cada um responde vol-
tando à autenticidade bíblica, como não hesito em dizer. Não se limitaram a fazer obras religiosas
ou a mostrar um coração bondoso. Viviam a teologia bíblica. Vemos o mesmo, do lado protestante,
em Kierkegaard (no seio de uma igreja luterana rígida, normalizada, civilizada, em que a pregação
do Evangelho já não escandalizava) e em Karl Barth.

Barth respondeu a um duplo desafio: o do hitlerismo e o da mordidela da verdade revelada por um


liberalismo que queria desesperadamente harmonizar a mensagem evangélica com o pensamento
científico atual. Barth pronunciou um fim radical ao compromisso com o nazismo por razões teoló-
gicas, não políticas - a primeira vez que isso aconteceu no mundo ocidental. Em contrapartida,
atuou com grande flexibilidade e perspicácia em matéria de ciência e de liberalismo protestante
(que não é diferente do modernismo católico romano). Conseguiu assim contornar o debate infle-
xível e sem esperança entre ortodoxos e liberais. Colocou questões científicas de forma rigorosa e
tornou claros os limites e a temporalidade de algumas dessas afirmações. Colocou também ques-
tões à ciência, não se contentando apenas em receber questões dela. Para uma ou mais gerações
de cristãos, ele pôde assim oferecer um pensamento autenticamente bíblico, uma possibilidade de
renovação da fé, uma abertura para avançar na história e na verdade.

Ora, eu poderia facilmente multiplicar estes exemplos e escrever uma outra história da Igreja que
passaria de “casa-luz” a “farol” (Baudelaire). Nem se diga que se trataria apenas de uma história
intelectual para alguns escolhidos, etc... Isso é falso. Cada um destes “faróis” trouxe uma mudança
profunda à igreja. Não mudaram, evidentemente, toda a igreja, nem todo o seu pensamento, nem
as instituições, nem o mundo em geral. Mas serve o meu objetivo que eles levantem a possibilidade
137

de que o Espírito Santo não foi derrotado, que ele ainda está a trabalhar, e que a Bíblia está sempre
viva, sempre pronta a trazer uma nova primavera, se apenas a levarmos a sério.80

Não se trata apenas de grandes figuras, de pensadores importantes, de grandes místicos e teólogos.
Temos também de ter em conta os movimentos populares que surgem não se sabe de onde, muitas
vezes, de facto, cristalizados à volta de um indivíduo ou de um pequeno grupo, mas diferentes dos
já mencionados, exprimindo um estado de espírito popular, muitas vezes misturado com a política,
muitas vezes impuro aos nossos olhos, muitas vezes considerado herético, mas que, a meu ver, re-
presentam uma expressão temporária e fugaz do Espírito Santo que, por vezes, muda a história.
Nem todos os movimentos messiânicos são bons ou verdadeiros, segundo o Salvador. Mas não os
podemos condenar em bloco. Se alguns, como os adamitas, são muito suspeitos, outros, como os
anabatistas, os valdenses, os lollardos, os hussitas (ainda que muito envolvidos politicamente) e o
importante movimento social de Fra Dolcino, que pertencem todos à mesma época geral, parecem
ser fundamentalmente verdadeiros e fortemente bíblicos.

Estas renovações bem-sucedidas podem ser temporárias, mas estão firmemente ancoradas no co-
ração do povo (e quando digo isto não me refiro apenas ao proletariado, mas à classe média, bem
como aos artesãos e camponeses). Quando considero esta história da Igreja (porque estes movi-
mentos também são a Igreja, e não apenas os príncipes, os bispos, os concílios e os sínodos que
dominam um povo bruto), vejo que houve renovações populares em todas as épocas. Quer seja
através dos Quakers ou através de Wesley e do Despertar, a Igreja move-se e muda constantemente.
Ela não se enquadra de forma alguma no modelo definido ou no papel histórico que a dogmática
de Marx ou Weber lhe atribui.

Hoje eu diria que na América Latina o movimento correspondente é o das teologias da libertação e
da revolução. Aqui temos um despertar popular ou um movimento suscitado pelo Espírito.81 Mas

80 Amery, em La Fin ed al Providence, rejeita em absoluto tudo o que eu disse. Por um lado, os cristãos que tentaram defender

alguma verdade na expressão artística ou literária, inspirados pela fé e geralmente críticos do mundo, são para ele sonha-
dores, “conservadores iluminados”, que não têm pontos de referência, que escolhem heróis de pureza medieval fora do seu
tempo, cuja inspiração é arcaica e romântica, como no caso de Bloy, Bernanos, Claudel, Péguy, Chesterton, Eliot, Böll ou
Greene. Concentram-se em formas de existência desaparecidas. Perturbam os cristãos comuns que procuram apenas o reino
aqui em baixo. São traídos e ignorados pela Igreja, porque a Igreja é necessariamente o parceiro mais enganador de todas
as formas de existência histórica. Mais tarde, quando se refere às “almas fervorosas do judaísmo e do cristianismo”, àqueles
que “anunciam a justiça e o amor através dos séculos”, diz que respeita e honra as suas “convicções profundas”, mas não
pensa que “o debate com eles possa produzir qualquer discussão útil”. Em ambos os casos, encontrou uma saída fácil para
uma situação embaraçosa. É quase ridículo. Desprezá-los assim não serve nenhum objetivo útil. E quando Amery diz que
não se trata dos seus sonhos e desejos de melhoria, mas da relação entre causa e efeito ou resultados, devo dizer que a
relação de causa e efeito é uma construção arbitrária de Amery, e a declaração de que todo o negócio do poder moderno é
um resultado único e direto do cristianismo é apenas uma declaração e nada mais. Sempre admiti que o cristianismo teve
uma mão nisto, mas apenas na medida em que não foi uma revelação. A verdadeira questão é saber como é que a revelação
ainda hoje existe na sua verdade.

81Preciso de esclarecer algumas confusões sobre esta questão. Fui muitas vezes criticado em relação a estas teologias. Devo
fazer o ponto sumário de negar absolutamente que se trate de verdadeiras teologias. São a expressão mal formulada de um
movimento popular que precisa de ser enraizado espiritual e biblicamente. Mas isto não é teologia. É pastoralia. É a incar-
nação de uma verdade cristã. Basta olhar para a pobreza dos textos que foram emitidos, embora eu esteja convencido de
que na comunidade eles podem parecer ricos e bons. Parece-me também evidente que os movimentos cristãos relativos a
uma determinada situação social, económica e política não podem ser transportados para o Ocidente. Os seus problemas
não são de modo algum os nossos. Nem sequer são os dos trabalhadores imigrantes ou dos desempregados. Não há mais
denominador comum do que se, em 1792, tivesse havido o desejo de adaptar as instituições republicanas francesas ao im-
pério otomano ou, em 1900, de trazer a rebelião dos Boxers para França. Extensões deste género são absurdas. Os movi-
mentos cristãos revolucionários da Nicarágua podem lembrar-nos que o cristianismo é revolucionário, mas não mais do que
isso. E menos ainda no plano teológico. As pseudo-teologias da revolução produzidas por escritores americanos e alemães
(por exemplo, D. Sole ou Moltmann nas suas obras “políticas”) não têm o menor valor aos nossos olhos. Finalmente, a
138

também podemos tomar como um excelente exemplo de um movimento popular basicamente cris-
tão o “Solidariedade” de Lech Walesa na Polónia. Quando as pessoas afirmam que a Igreja já não
existe, que é sempre conservadora, que já não há fé popular, deveriam ter em conta coisas como
esta. Penso que merece um tratamento um pouco mais longo, pois, retrospetivamente, pode aju-
dar-nos a ver o que tenho tentado dizer quando falo de movimentos populares que expressam na
história a ação contínua do Espírito Santo, tanto fora como dentro da Igreja.

O caso polaco de 1980-1981 é um bom exemplo. Aos olhos de muitos protestantes, o catolicismo
romano na Polónia é marcado pela credulidade, pelo excesso de simplicidade e até pelo paga-
nismo. É uma religião de milagres e de adoração da virgem. Está cheio de sentimentalismo, etc...
Em grande medida, assemelha-se ao catolicismo medieval, pois parece-nos ser demasiado socio-
lógico, uma vez que exprime uma forma específica de sociedade, uma atitude social também ela
específica, uma tradição cultural coletiva, em vez de uma fé pessoal clara, consciente e esclarecida.
Ora, se Walesa conseguiu liderar o extraordinário partido que lidera, foi porque se apoiou nessa
mesma fé. O que foi estranho durante estes dezoito meses foi a ausência de violência, o respeito
pelas próprias autoridades que se decidiu fazer cumprir, a compreensão de todos os militantes pela
delicadeza de um jogo que ia constantemente até ao limite da pressão e depois o saber retirar-se
no momento exato em que havia o risco de violência, a capacidade de recuar quando a retirada
parecia ser necessária.82

Devemos também mencionar a constante disponibilidade para negociar, ou seja, para manter o
diálogo, não considerar a polícia ou o partido comunista como um inimigo a abater, mas como um
adversário com o qual o diálogo é sempre possível, e fazer tudo para o tornar possível. Em tudo isto,
o que foi verdadeiramente extraordinário não foi apenas o verdadeiro génio tático de Walesa, mas
a capacidade dos seus seguidores entre as classes trabalhadoras e os camponeses de não irem além
do seu líder e, no entanto, manterem a sua verdadeira autonomia e não se limitarem a obedecer-
lhe automaticamente. Não vimos aqui uma massa de pessoas galvanizadas ou automatizadas por
um chefe carismático que tinha de ser obedecido cegamente. Ao mesmo tempo, um grupo muito
grande de pessoas estava organizado em pequenas unidades ativas, capazes de compreender a
estratégia, sabendo escolher o momento certo para se juntarem ao movimento geral, e nunca indo
demasiado longe na direção da violência ou da pressão máxima.

Agora sabemos como é difícil, quando um movimento desta dimensão é lançado, que as bases não
ultrapassem os líderes. As revoluções de 1789, 1848, 1917 e 1968 são exemplos disso. Uma multidão,
uma organização criada durante uma agitação social ou um movimento revolucionário, que nunca
recorre à violência, que sabe fazer valer a sua força sem ódio, que sabe fazer valer os seus pontos
de vista sem se vingar, que sabe parar e até renunciar a algumas coisas sem se desencorajar, eis um
verdadeiro milagre. Penso que é a primeira vez na história que vemos tal sabedoria quando as mas-
sas são lançadas à ação. Lenine dizia que, nas táticas revolucionárias de longo alcance (antes do
momento final do assalto), o período de recuo é o mais difícil. Na Polónia souberam quando era
necessário recuar sem perder a coragem. Por último, outro elemento extraordinário é o facto de

piedade expressa pode ser boa, mas a referência ao marxismo é inadequada e falaciosa. Em particular, o movimento que
pretende partir deste cristianismo indígena americano e dele passar a uma reinterpretação marxista da Bíblia ou a uma
“leitura materialista” dos Evangelhos parece ser uma apropriação fútil e desonesta de uma expressão da fé.

82Para uma análise da evolução de Walesa, ver o meu artigo “La victoire de Lech Walesa”, Katallagete, Nov. 1982 (Edição
Especial).
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Walesa e os seus apoiantes terem evitado passar para o outro lado e aceitar a ajuda capitalista.
Também se mantiveram afastados do caminho do putsch.

Penso que estes três fatores, que a meu ver são exemplares, se explicam pela fé cristã do povo.
Walesa atuou de forma coerente como um cristão convicto. Apelou sistematicamente à fé dos tra-
balhadores e dos camponeses a quem se dirigiu. Creio que a sabedoria das massas, a sua capaci-
dade de compreender a realidade da ação e de não exigir mais do que parecia ser possível, se baseia
na sua fé. Uma compreensão e um domínio deste género só podem exprimir uma fé esclarecida e
consciente. Como é que explicamos isto?

Parece-me que a explicação é a seguinte. Na realidade, como os cristãos se encontram nas situa-
ções banais da vida quotidiana, da mediocridade global da sociedade, dos problemas quotidianos
sem grande interesse, da diversão constante, a fé arde em baixo, não dá grandes respostas, não
exprime nada, não produz uma conduta exemplar. O banal e o quotidiano são os piores destruido-
res, porque exprimem tepidez. No entanto, entre os “cristãos sociológicos”, ainda resta um ele-
mento de verdade, o linho fumegante que não se apaga (Isaías), a pequena fé que ainda persiste
(Apocalipse). Por isso, quando chega o momento da decisão, o momento das costas contra a pa-
rede, da prova radical, da tempestade, há sempre a possibilidade de que o pavio se acenda e volte
a incendiar tudo, como há também a possibilidade de que se apague completamente. Eu diria que
os crentes tradicionais e supersticiosos podem dar origem, de um momento para o outro, a confes-
sores da fé, a mártires, a pessoas que sabem que, numa crise, os cristãos podem ser chamados a
sê-lo em sentido pleno.

A esta primeira conclusão tenho de acrescentar duas outras. A primeira é que o movimento de Lech
Walesa, que se torna uma espécie de reavivamento espiritual numa base tradicionalista, não se de-
senvolve no seio da igreja, mas em relação ao mundo. Isto significa que, a meu ver, todas as tenta-
tivas de tornar os crentes mais fiéis e mais sérios no seio da igreja são estéreis. Só pode haver rea-
vivamento em relação ao mundo (e, na prática, todos os exemplos dados acima foram orientados
para o mundo), ou seja, à sociedade ou à política. Mas isso não implica a adesão a um determinado
grupo, nem a participação na ação organizada por um grupo não cristão. O que implica é que os
cristãos devem elaborar a sua própria abordagem original a uma determinada situação social.
Nunca é demais insistir na necessidade de especificidade de cada projeto cristão no mundo. A mi-
nha conclusão final é que, se o povo polaco pôde continuar a ser um povo “oficialmente”, formal-
mente e inocentemente cristão, a um nível que poderíamos facilmente considerar como não muito
experimental ou interessante (embora tenha dado ao “Solidariedade” as suas características), isso
deve-se à resistência exemplar do Cardeal Wyszynsky. Esta foi essencial, pois vemos aqui o contacto
com a igreja oficial. O cardeal primaz da Polónia foi capaz de dizer um “não” radical ao comunismo
soviético. Evitou todos os contactos com o diabo. Foi insultado, detido, encarcerado, acusado de
traição e de estar a soldo do capitalismo e da América, etc... Manteve-se firme. Este facto foi tanto
mais meritório quanto foi mal avaliado nos meios cristãos. Pegue-se na imprensa (Réforme, le
Monde, Témoignage chrétien) de 1947 a 1955, e ver-se-á que é apresentado como um reacionário,
incapaz de se adaptar à sua época, representante de uma fé medieval, que não compreende a be-
leza do socialismo, etc... Manteve-se firme e, por isso, os cristãos humildes, tradicionais e ritualistas
da Polónia também conservaram a sua pequena fé, por muito simplista e pouco devota que fosse.
Foi isso que tornou possível o espantoso empreendimento e, diria eu, o sucesso de Walesa.
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Pelo contrário, onde teólogos e líderes eclesiásticos como Hromadka, na Checoslováquia, ou Be-
recki, na Hungria, tiveram relações com o diabo,83 o único resultado foi o colapso da fé popular e a
degradação da Igreja. No entanto, estes homens foram louvados até aos céus e citados como exem-
plos de cristãos de espírito aberto que veem finalmente a utilidade da transformação socialista
(identificada com a causa dos pobres e com a justiça) e de uma boa e justa cooperação com o novo
Estado, etc... O Conselho Mundial das Igrejas tem-se mostrado particularmente entusiasta em rela-
ção a estes dois pobres inocentes políticos involuntários.84 Destruíram nos seus dois países qual-
quer possibilidade de as igrejas cristãs contribuírem com algo de novo, de se libertarem do confor-
mismo, de participarem no trabalho de transformação. De facto, no surpreendente movimento da
Checoslováquia em 1968, a Igreja não fez nada.

No entanto, nos tempos modernos, não foi apenas este acontecimento espantoso que devolveu à
Igreja a sua verdade real. Houve também uma recuperação, um renascimento da fé na URSS, com
o aparecimento de novas formas cristãs. Poder-se-ia pensar que, na URSS, a questão religiosa tinha
sido resolvida com o encerramento das igrejas, a educação fortemente materialista dada às crian-
ças, a inscrição dos jovens no Komsomol, a interdição da posse de livros cristãos, a criação de uma
igreja ortodoxa que recebia autorização para celebrar a missa em troca de uma submissão política
total e de uma estrita fuga às questões públicas, a proibição da catequese das crianças, etc... De
facto, poder-se-ia pensar que o cristianismo tinha praticamente desaparecido em 1940. Só os mais
velhos continuavam a frequentar os serviços ortodoxos e o clero oficial estava direta e estritamente
sob as ordens do Kremlin. O duplo acontecimento surpreendente foi, no entanto, o aparecimento
e a difusão muito rápida de uma nova orientação cristã com os Batistas.

Em termos práticos, em 1914 não havia Batistas na URSS. Em 1944, havia alguns grupos Batistas, e
o que é notável é que eles começaram a multiplicar-se, apesar das interdições e condenações. É
difícil perceber como é que isto foi possível, como é que as autoridades puderam tolerar a sua ex-
pansão, porque os Batistas não são liberais, nem cristãos mornos ou silenciosos; são, na sua maio-
ria, testemunhas corajosas e, em questões sociais e políticas, tomam posições fortes que vão dire-
tamente contra o que o Estado soviético deseja. A história destas missões Batistas está ainda por
escrever. Estima-se que existam hoje cerca de dois milhões de Batistas na URSS. Como se trata de
‘convertidos’, podemos ter a certeza de que não são cristãos indiferentes, tradicionais ou neutros.

O segundo facto, não menos surpreendente, é o súbito aumento de intelectuais cristãos. Solzheni-
tsyn é o exemplo favorito, mas há muitos outros (por exemplo, Maximov) que se podem considerar
cristãos. Isto parece-me estar ligado, em primeiro lugar, à perseguição dos judeus. Os intelectuais
abraçaram a causa dos judeus e, embora não se tenham tornado eles próprios judeus, encontraram
com eles uma afinidade espiritual e, assim, avançaram para o cristianismo. Mas cada caso é dife-
rente e, por conseguinte, cada percurso é diferente. Não se trata de cristãos do antigo regime (como
Bulgakov ou Pasternak), mas de jovens e novos cristãos. Isto significa que temos um cristianismo
renovado. A maioria dos intelectuais não pertence à Igreja Ortodoxa, mas vive um cristianismo

83Não estou a sugerir, evidentemente, que o comunismo enquanto tal seja o diabo, mas que, nestas condições políticas,
desempenha exatamente o papel que a Bíblia atribui ao diabo.

84Sublinho que não tenho andado à procura de uma oportunidade para atacar estes dois homens. As contestações já podem
ser encontradas em Présence au monde moderne (Genebra: Roulet, 1948); ET The Presence of the Kingdom (Filadélfia: West-
minster, 1951) e Fausse Présence au monde moderne (Paris: ERF, 1964); ET False Presence of the Kingdom (Nova Iorque: Se-
abury, 1972). Esta exaltação do Concílio Mundial foi uma das muitas razões que me separaram radicalmente dessa bela
instituição. Não se tem o direito de se estar sempre a enganar a si próprio!
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bastante pessoal, inspirado diretamente na Bíblia. São cientistas e autores que, em nome da fé,
combatem o regime para benefício de todos. Algumas pessoas querem pensar que eles ou os seus
grupos são tão minoritários que, em última análise, não têm qualquer influência, mas eu acredito
que quando os intelectuais não obedecem servilmente às autoridades têm um impacto real e a sua
utilização do samizdat é muito importante. A maioria dos que se dizem contra o regime são cristãos.

O que caracteriza os movimentos deste tipo é precisamente o facto de a renovação da igreja ter
lugar em condições em que a igreja é forçada a regressar às suas origens. Ou seja, por um lado, ela
é confrontada por uma sociedade que já não se afirma cristã em nenhum sentido e, por outro lado,
é sujeita a desafios e até a perseguições. Nestas condições, a autenticidade da fé, a escuta atenta
da Palavra de Deus, a informação da vida quotidiana pelo espírito cristão e a audácia do testemu-
nho tornam-se de novo o verdadeiro rosto da revelação. Foi sempre nestas condições que, no de-
curso da história, vimos a verdade reaparecer inalterada, arrebatada pela revelação, arrebatada de
novo, encarnada, transportada não por heróis, mas por pessoas humildes e devotas de todos os
géneros, que não deixam o seu nome para a posteridade. Para terminar, devo recordar essas pes-
soas que ninguém jamais conhecerá, cujos nomes não estão escritos em nenhum movimento his-
tórico, em nenhuma genealogia, em nenhuma história de propagação da fé, esses homens e mu-
lheres que se contentam simplesmente em ser verdadeiros e piedosos cristãos desconhecidos.

Uma vez, quando, na minha juventude, me queixava a P. Maury do grande número de idosos numa
igreja que eu queria dinâmica, jovem e aberta ao mundo, ele disse-me: “Conheci uma paróquia cuja
vida inteira dependia das orações silenciosas de uma velhota”. Desde então, adquiri conhecimen-
tos semelhantes. Que não se diga que tudo isto é uma ilusão. Vi na minha própria vida (com pro-
veito) a eficácia das orações de uma velhota. Que ninguém me diga que isto é uma consolação in-
significante e medíocre, que a força e a verdade da Igreja não residem aqui, que o facto de tudo isto
não ter grande impacto na cena mundial não prova nada. É uma realidade espiritual que escapa à
medição social ou política. É claro que não devemos fazer dela uma almofada de indolência e dizer
que, como existem humildes cristãos desconhecidos, tudo está bem. Não, nem tudo está bem e, no
entanto, não temos o direito de ignorar a sua existência. Porque estamos num domínio que escapa
ao controlo ou à avaliação racional. E eu, pela minha parte, estou convencido de que se a Igreja não
está morta, se a Igreja cristã está sempre - apesar de tudo - viva, se a Palavra de Deus pode ainda
ser pregada e é ainda hoje significativa, isso deve-se, sem dúvida, em primeiro lugar, à presença do
Espírito Santo, à fidelidade de Cristo, mas, humanamente, deve-se à fé simples de pessoas humil-
des, cujos nomes e obras ninguém conhece senão Deus e que, no entanto, se contam entre os san-
tos da terra.

Depois de ter dado exemplos históricos concretos do ressurgimento da verdade cristã, da revelação
restituída à atividade e à vida, quero terminar com uma consideração um pouco mais teórica. Afir-
mamos definitivamente que o roubo do significado do Evangelho está sempre ligado à apropriação
da Palavra de Deus pelo teólogo, pelo eclesiástico ou pela Igreja. O processo de subversão que exa-
minámos de muitos ângulos parece-me sempre implicar e estar claramente ligado à traição dos
representantes de Deus na terra, que colocam a sua própria lei no lugar da lei de Deus, que impõem
as suas próprias normas, que organizam a empresa divina como se fosse um assunto da história hu-
mana. Há, portanto, apropriação indevida, por um lado, e transgressão, por outro. Isto está perfei-
tamente de acordo com o relato de Dostoievski na lenda do Grande Inquisidor. Mas quando isso
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acontece (e acontece repetidamente, repito, ao longo da história do cristianismo), vemos sempre


uma dupla reação.

Primeiro, esta Palavra de Deus torna-se nas suas mãos pó e cinza, vazia e insignificante. Quando as
pessoas pensam que podem apossar-se dessa Palavra Viva, ela torna-se literalmente inexistente.
Não é nada. E isso muitas vezes produz o mal-entendido de que ela é limitada e delimitada. É nula
nos seus efeitos quando as pessoas pensam que podem usá-la como bem entenderem, para os seus
interesses pessoais ou coletivos. Aqui deparamo-nos com o que eu poderia chamar de uma lei bá-
sica no modo de ser da Palavra de Deus. Não nos deixemos enganar; sempre que pensamos poder
fazer dela um fundamento da filosofia ou da política, ou uma estrutura da sociedade, ou uma ga-
rantia da nossa própria ação, a nossa auto-justificação, ou um objeto de conhecimento objetivo, ou
a superestrutura de uma infraestrutura decisiva, ou o complemento necessário de uma natureza
defeituosa, ela torna-se inexistente no sentido mais estrito. E fá-lo precisamente porque é a Palavra
de Deus e de mais ninguém. Mas não podemos deixar de perceber que ela conserva toda a sua po-
tencialidade. Precisamente por ser Palavra, pode ser pronunciada de novo em qualquer altura. E
então tudo começa de novo.

O outro aspeto da mesma situação é o facto de a subversão do cristianismo significar sempre a trans-
gressão do que Deus propôs. Ora, toda a organização eclesiástica, toda a instituição social fundada
pela Igreja, toda a moral cristã é inevitavelmente uma transgressão da nova ordem proposta por Deus
no seu Filho Jesus Cristo, a ordem do Reino dos Céus. Não estou de modo algum a dizer que a Igreja
deve abster-se de tal ação, que deve permanecer desorganizada ou manter a sua estrutura primi-
tiva numa espécie de estado fetal. É o erro dos adamitas pensar que podemos voltar ao Éden e viver
como se estivéssemos lá, ou dos milenaristas pensar que podemos ir diretamente para o reino de
Deus e viver como se estivéssemos lá. Não, não podemos passar por cima da organização, da insti-
tuição ou da ética, mas temos de ter consciência de que, por mais honestos e escrupulosos que
sejam os que as criam e dirigem, tudo isso é inevitavelmente uma transgressão, por exemplo, das
bem-aventuranças ou das parábolas do Reino dos Céus. E depois? O que resulta dos exemplos que
recordámos é um facto fundamental que explica o processo de relação entre a vontade de Deus e a
organização humana. Não se trata de um processo de destruição, de pura negação. Mas, precisa-
mente porque todos estes mandamentos, preceitos, instituições e cerimónias foram criados em
transgressão da Palavra de Deus, quando a Palavra de Deus se faz ouvir de novo e é de novo apre-
endida (o meu Deus convenceu-me, e eu continuo convencido, de que as duas coisas são indispen-
sáveis e correlativas), então há uma transgressão da transgressão. É este o segredo do contínuo ir
e vir de que Jesus nos dá o exemplo, ao transgredir tantas vezes, e de facto tão constantemente, o
sistema religioso que proliferou progressivamente em torno da revelação de Deus.

Não há conflito, mas há uma origem ou derivação por transgressão, um retorno ao sentido de ori-
gem, uma transgressão da transgressão com uma exatidão espantosa. Os casos que apresentámos
devem, pois, ser bem compreendidos. Não se trata apenas de factos excecionais ou de acidentes
que sobrevivem por acaso. Também não temos simplesmente dualidade ou duplicidade na igreja,
pois ela às vezes apresenta uma face e às vezes outra. A igreja também não é uma coleção de brica-
braque em que se podem encontrar todos os tipos de coisas e os seus opostos. De modo algum. A
propaganda, ou uma visão vã e superficial, pode retratá-la assim. A verdade está nesse movimento
em que os tempos são estritamente relativos uns aos outros. Por isso, quando se fala de subversão
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do cristianismo, surge sempre a verdade, que é apreendida de novo na Palavra de Deus. Há uma
subversão da subversão, que se manifesta pelo reaparecimento do X a que nos referimos no início.

Assim, quando todo o cristianismo é reduzido ao temporal, a inserção do eterno no temporal tem a
última palavra, produzindo a inversão por uma reconquista do eterno que derruba decisivamente
o temporal. A reconquista do eterno, porém, é feita pelo próprio eterno. Por outras palavras, a Igreja
nunca se reforma a si própria. A experiência mostra centenas de vezes que a busca honesta e escru-
pulosa de melhores instituições, a reforma pela via legal da arregimentação, a busca séria de meios
mais autênticos de evangelização interior e exterior são todas inúteis e fracassarão inevitavel-
mente. Não há na Igreja nenhuma associação, segundo a fórmula habitual, pela qual uma instituição
sociológica possa ser também o corpo de Cristo, ou o corpo de Cristo possa ser colocado à força em
formas sociológicas.

Uma vez que a igreja se organiza e se clericaliza, ela é intrinsecamente uma transgressão da ordem
de Deus e, no entanto, produz em si mesma aquilo que irrompe como transgressão da transgressão.
Reduz-se progressivamente ao temporal e, no entanto, esconde em si uma reconquista do eterno
pelo eterno. Isso não acontece apenas “espiritualmente” ou de uma forma fácil, agradável, intelec-
tual e piedosa. Ela realiza-o sempre por meio de provas severas e perturbações terríveis. A transfor-
mação da igreja não começa na sua cabeça humana, mas com uma explosão que tem origem nos
que estão à margem. Assim, quando consideramos a história da cristandade e as contradições de
que falámos nos capítulos precedentes, se consideramos toda a história da Igreja, se consideramos
o galope do cavalo branco através da história da humanidade, como ele também faz esta história,
se olhamos para a aventura do povo cristão, temos de ter em conta o facto de que nada está fe-
chado, definitivo ou completo. Não temos o direito de emitir um juízo final sobre nada. Esse julga-
mento será o do Pai eterno, como lhe chama o Apocalipse. E isto significa que nada se perde. Pelo
próprio rigor do facto de que a transgressão comporta inelutavelmente em si mesma a sua própria
transgressão, insisto nisto. A redução ao temporal e ao poder exclui o sentido, e isso deixa um grande
vazio que tentamos em vão preencher, que grita sem cessar até que o eterno venha preenchê-lo. No
decurso da história, portanto, nunca nada se perde. O cristianismo nunca leva a melhor sobre
Cristo. Cristo pode, por vezes, repousar, mesmo durante longos períodos, tal como esteve escon-
dido no corpo daquele pequeno judeu. Quando nos apercebemos disso, podemos ler a história da
Igreja com outros olhos e, ao mesmo tempo, podemos começar a dominar a lógica específica do
Reino dos Céus85 que penetra e derruba as várias formas de lógica mundana.

85Recordo brevemente que o Reino dos Céus, em Mateus, não é o mesmo que o Reino de Deus, mas é uma entidade dentro
da história, da temporalidade e do mundo, no qual produz uma lógica diferente e um movimento específico.
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Apontando para as muitas contradições


entre a Bíblia e a prática da igreja,
Jacques Ellul afirma
neste livro provocador e estimulante
que o que hoje chamamos de cristianismo
está, na verdade, muito distante
da revelação de Deus.

As sucessivas gerações
reinterpretaram as Escrituras
e modelaram-nas segundo
as suas próprias culturas,
afastando assim a sociedade
da verdade do evangelho original.
A igreja também perverteu a mensagem do evangelho,
pois em vez de simplesmente acabar com as práticas e crenças pagãs,
reconstituiu o sagrado, estabeleceu a suas próprias formas religiosas
e, assim, ressacralizou o mundo.

Ellul desenvolve várias áreas em que esta perversão é mais óbvia,


incluindo a ênfase da igreja no moralismo
e o seu ensino na esfera política.
O cerne do problema, diz ele,
é que não aceitámos o facto de o cristianismo ser um escândalo;
tentamos torná-lo aceitável e fácil
- e assim pervertemos a sua verdadeira mensagem.

Em última análise, porém,


Ellul mantém-se esperançado.
Porque, apesar de tudo o que foi feito
para subverter a mensagem de Deus,
o Espírito Santo continua a mover-se no mundo.

“O cristianismo”, escreve Ellul, “nunca leva a melhor sobre Cristo”.

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