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Apresentação

Rogério Faria Tavares

No exato dia em que redijo estas linhas – 22 de setembro – a primavera


ainda não chegou, como era o previsto. Chegará? Já não tenho mais tanta
certeza... Talvez tenhamos de aceitar esse ano assim como ele veio, repleto de
acontecimentos estranhos. Será que acaba em 31 de dezembro? Inclemente, a
pandemia de 2020 persiste em sua agenda destrutiva, atingindo centenas de
seres humanos ao redor do globo, insensível a apelos de qualquer natureza.
Sem divindade ou cientista capaz de contê-lo, o coronavírus segue em frente,
insaciável, a despeito dos números impressionantes que sua atrevida circulação
pelo planeta já ostenta. Sorrateiro, engana a pretensa argúcia humana,
vencendo todo tipo de resistência ao seu poder. Zombeteiro, reserva o ridículo
àqueles que o desprezam, desmoralizando os que, maliciosa ou ingenuamente,
negam a sua letalidade ou até a sua existência. Aos discursos inconsistentes
opõe os fatos incontestáveis: a coleção expressiva de óbitos e as sequelas
atestadas pelos médicos. De quantas será possível livrar-se? Seguramente nunca
da dor e da tristeza pela perda de entes queridos e da saudade que deixaram.
Dos poucos recursos capazes de enfrentar a covid-19, o distanciamento
social e a quarentena vieram para alterar radicalmente nosso modo de ser, de
viver e de conviver, para muitos inaugurando um estilo totalmente inédito de
estar no mundo. Começando em março e sem prazo de validade, o isolamento
a que tivemos de nos submeter acabou por gerar material farto para a
comunicação digital, a experimentação artística e, em especial, para a
Literatura, companheira leal da humanidade desde tempos imemoriais. O
reencontro consigo mesmo, sem chance de escapar ou distrair-se, resultou em
re exão e, em muitos casos, em texto.
Consciente da força da produção literária como estratégia de abordagem do
Real e do Imaginário, como testemunha da História e espaço da Memória,
animei-me a convidar um grupo de vinte contistas mineiros para que
fabulassem “a quente” sobre a peste, na temperatura do momento, sem direito
à visão serenada que talvez o futuro forneça. A intenção foi a de montar um
rico painel a respeito do tema, capaz de instigar a inteligência e a fantasia das
pessoas e de atrair, daqui a algumas décadas, o interesse daqueles que
pesquisarão sobre como passamos por tudo isso.
A seleção dos nomes consagrou o princípio da diversidade, em toda a sua
extensão. O time aqui reunido é absolutamente heterogêneo, abrigando
representantes de gerações, origens, trajetórias e estilos bem distintos,
providência capaz de dotar a coletânea de caráter abrangente, inclusivo e, por
isso, democrático.
Para o presente empreendimento – contribuição cultural da Academia
Mineira de Letras a essa difícil quadra da vida brasileira –, contei, desde o
primeiro minuto, com o pleno acolhimento de Rejane Dias dos Santos e de
toda a equipe do seu excelente Grupo Autêntica, ao qual sou imensamente
grato. Por meio deles, exalto todos os que integram a cadeia produtiva do livro
no país: editores, ilustradores, diagramadores, livreiros, críticos, jornalistas
especializados. Ela merece ser defendida sempre, sobretudo dos ataques à sua
sobrevivência e à sua integridade. Agradeço, nalmente, a um de seus elos mais
preciosos: os autores. Sem a sensibilidade demonstrada pelas duas dezenas de
colegas que aceitaram colaborar, generosamente, com esse projeto, ele não teria
ido adiante. É um privilégio estampar os prestigiados nomes de cada um deles
na quarta capa deste volume. Que os leitores embarquem nessa viagem com o
mesmo prazer que tivemos, todos nós, em concebê-la.

Dedico este livro à memória dos dois mestres do conto que nos deixaram em
2020: Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna.
Felicidade crocante

Carla Madeira

Quarenta e sete dias de isolamento.


Sinara acordou com os olhos inchados. Tinha chorado na noite anterior.
Que ela se esquecesse de dar água para as louças que se acumulavam na pia,
tudo bem, mas para a samambaia? Único ser vivo ao lado dela no isolamento?
Aquilo foi a gota d’água. Naqueles dias, sempre que olhava para a samambaia,
vibrava certa promessa (nunca diria a ninguém) de que não lhe faltaria ar.
Sinara chorou de gratidão.
Poucos dias antes, tinha chorado de desconcerto. Decidira fazer as unhas
para levantar o astral. Encontrou, no balaio de coisas torturadas que
imploravam para serem jogadas fora, um esmalte velho. Vermelho escarlate.
Ótimo: cor quente, energia, luta, igualdade social. Passou o esmalte na mão
esquerda. Depois, veio o desa o da direita. Um desastre. Nunca suportou a
direita. Deu merda. Enrolou o algodão no pauzinho de laranjeira e, mal
começou a consertar as coisas, derramou a pouca acetona que ainda tinha,
virando o vidro sobre a mesa. Nesse caso, chorou dias seguidos enquanto
durou o mandato. Uma eternidade. Só parou de chorar por esse motivo
quando arranjou outro. O vizinho.
O vizinho de cima morreu de covid, soube pelo porteiro. O vizinho que
escarrava em sua varanda e a chamara de putinha, justamente quando ela não
transava há meses. Nunca o perdoou por lembrá-la disso. O idiota saíra em
carreata de verde e amarelo gritando: fora, gripezinha. Ela não ia ser falsa,
queria, sim, que ele morresse, mas mordendo a própria língua, não de covid.
Chorou, nesse caso, pelas estatísticas.
A considerar o nível das motivações, não faltariam lágrimas… até aquela
manhã em que completava 47 dias de isolamento e 47 anos de idade. Só podia
ser um sinal. Não a coincidência propriamente dita, mas o fato de que ela a
notara (andava tão sem pé nem cabeça). “Vou extrair felicidade do dia de hoje
a fórceps”, encheu-se de propósito. Depois considerou fórceps bruto demais
para se metaforizar com felicidade. Palavra fagueira que não suporta alicates.
Refez a promessa: “Vou extrair felicidade do dia de hoje como quem encontra
agulha no palheiro”. Achou linda a visão. Bater o olho no risco prateado,
rútilo, em meio a uma montanha de palha. Depois suspeitou (insegurança)
evocar uma imagem desanimadora, mas manteve, nunca tolerou ilusões
adocicadas. Coisas como oásis, em tempos de pandemia, desaparecem ao toque
da primeira linha do noticiário. Alucinados! Teve vontade de chorar pelos
elefantes, 47 no jogo do bicho. Mas se controlou.
Saiu da cama, antes arredou para o lado a manta de piquet que já, há alguns
dias, dormia com ela. O inverno estava vindo… teve ânsias de adiá-lo. Outros
vírus, senhor! Esse, sim, seria um bom motivo para chorar, mas Sinara sacudiu
o corpo em descarrego. Decididamente: hoje não!
Começou a abrir gavetas. Lembrou-se de um sabonete líquido, de espuma
macia, que comprara antes de tudo começar. Que sorte: achou no armário do
banheiro debaixo da pia. Para Sinara, era sempre impressionante achar as coisas
onde elas deveriam estar. Levou a espuma ao rosto e começou a girar, de leve,
as bolhinhas aeradas com cheiro de alecrim. Depois abriu a torneira e viu a
felicidade jorrar em estado de água. Farta. “Posso até viver sem felicidade, mas
como viver sem água?”, pensou, enxugando o rosto e se lembrando das
estatísticas nacionais. Nunca a falta de água alheia fora su ciente para que
Sinara chamasse de felicidade sua sorte. Mas hoje… água encanada, esgoto,
despensa cheia e toalha limpa deram um soco nela. Depois gritaram: encontre
a porra da agulha.
Sinara tinha pão de sal no congelador. Ligou o forninho e, em segundos,
tinha um pão crocante capaz de derreter uma bela lambida de manteiga. Fora
um rapaz que entregara o pão, de bicicleta, pedalando sem garantias. Tanto
morro pra subir, que não restava a ele fôlego para ter direitos. Sinara mordeu o
pão crocante que fez um barulho crocante, e ela, de súbito, absorveu um
aspecto físico da felicidade. Mesmo confusa sobre se deveria ou não comer com
tanto prazer um pão tão suspeito que segurava com a mão tão direita, Sinara se
agarrou à descoberta: a felicidade é crocante.
Depois, ligou o computador. Tinha emprego e tinha sorte: podia trabalhar a
distância. Achava seu trabalho muita palha para pouca agulha. Mas, mesmo
assim, não esmoreceu. Hoje o dia estava repleto de propósito. E depois, se bem
se lembrava, seu o ce já era desanimador bem antes do seu home, mas… ela
tinha plano de saúde, vale-refeição e CLT. Felicidade, felicidade, felicidade.
Concluiu, provisória.
E assim o dia foi passando. Já desembaraçada das estroboscópicas
videoconferências que, em dias anteriores, a levaram ao pranto diurno, Sinara
foi atrás de um pouco de distração. Passou longe do noticiário e nem chegou
perto do grupo da família, onde não faltava amor, mas sobrava contrariedade.
Sequelas eleitorais. Caiu nas redes sociais.
Todas as liquidações começaram a perseguir Sinara. Tudo pela metade do
preço. “Logo agora, que não tenho aonde ir, esses sapatos querem andar
comigo?” Sinara resistiu e, depois de ver pela sétima vez um vestido de linho
branco, caimento perfeito, teve necessidade de falar em voz alta com a
samambaia: “Serei feliz nos trapos, mas serei feliz, ”.
Talvez ajudasse se Sinara tirasse o pijama. E foi o que ela fez. Vestiu um
vestido novo, bem passado, e enfrentou com coragem a mãe onipresente: hoje
não, mamãe! Hoje vou usar roupa de sair, em casa! Agora, Sinara também
falava com os mortos.
Com dedos frenéticos, ela caminhou pelo mundo. E distraída, já quase em
estado de agulha, foi vítima da crueldade dos algoritmos: deu de cara com ele.
Eugênio. Tremeu dos pés à cabeça e gemeu: hoje não!
Há muito não podia mais beijá-lo. Nem car a seguros dois metros dele.
Estavam isolados há um ano, dois meses e seis dias. Não era culpa do vírus, foi
outra mulher. Fatal. “Farei um pudim”, decidiu Sinara.
Quebrou os ovos, a receita levava oito gemas. Detestava separar a clara das
gemas, e, então, se concentrou na primeira colherada. Outro aspecto da
felicidade: é cremosa.
Já estava entardecendo, e Sinara sentiu que havia espetado o dedo na agulha
que procurava. Doía. Eugênio parecia feliz na foto e não escondia mais, nem
ela nem a felicidade. “Ela é feia”, vingou-se Sinara. “Quer saber? Posso sentir a
crocância dessas palavras: ela-é-muito-feia.”
Pronto: gemas separadas, amarelinhas como o sol. “Há de brilhar mais uma
vez…”, cantarolou Sinara, invocando, sem convicção, uma esperança de luz
para seu coração. Foi até a despensa buscar uma lata de leite condensado, e aí
sim, aí sim, a vida apelou! Aconteceu o insuperável, o abalo monumental, o
desmoronamento estupendo: não tinha leite condensado na despensa.
Sinara começou a chorar. “Que se dane a felicidade!”, bradou. Chorou de
perder o fôlego, chorou de fazer barulho e sacudir o ombro, chorou de escorrer
na roupa de sair. Chorou de molhar todo o palheiro. Chorou.
Depois faria um omelete. Mas por hoje, chorou.
Faminta, fero“, irreprimível

Carlos de Brito e Mello

Consegue ver?
Não.
Nem facho de luz, nem brilho, nem minha mão, que abano?
Não.
Abra bem os olhos.
Estão muito abertos.
Não vê que estou perto?
Eu não enxergo nada. Nem sei dizer se estou perto de você.
Também nada enxergo.
Nadinha?
Nem mesmo a minha própria mão, que sigo abanando.
E por que ainda abana?
Na esperança de enxergar.
Você está mais para lá ou para cá?
Não sei onde cam lá e cá.
Também não sei.
Isso não é bom.
Nada bom.
Pode ser perigoso.
Pode mesmo.
Começo a sentir um medo imenso.
Medo? Tem medo de quê?
De coisas que enxergam no escuro.
Que coisas?
Coisas como os mortos. E as feras que abrem os olhos quando fechamos os
nossos.
Conhece de perto uma fera assim?
Só conheço as feras que estão nos livros.
Como elas são?
Cheias de dentes.
Dentes?
E patas com garras sujas da pele das presas.
Que presas?
Uma presa pode ser, por exemplo, um bicho, desses bichos que dormem
quando escurece, e quando acordam já estão dentro da boca terrível.
Coitado do bicho.
Mas não apenas do bicho.
Não?
Uma fera com dentes e garras é também uma fera que devora gente.
Que gente?
Gente que dorme no escuro.
Mas... Eu durmo no escuro.
Eu também.
Agora eu também sinto medo.
Deve mesmo sentir.
Nesta escuridão, pode haver uma fera disposta a nos devorar.
Pode.
A qualquer momento?
Agora mesmo.
Você acha que uma fera assim avisa antes de atacar?
Avisar?
Ela ruge, grasna, farfalha ou pia?
Não ruge, não grasna, não farfalha nem pia. Mas, desde já, esteja avisado de
que ela pode atacar.
Se dormirmos.
Se dormirmos, é bem capaz de uma fera dessas abrir os olhos perto de nós, e
nós acordarmos dentro de sua boca.
De sua boca terrível.
Acorde!
O quê?
Você estava dormindo!
Não estava!
Estava roncando!
Eu não ronco!
Como sabe que não ronca?
Não sei. Sempre estou dormindo quando...
Quando?
Quando ronco.
Pois foi você quem roncou!
É possível, é possível...
Quer ter a fera do seu lado?
Por que não me acordou?
Foi exatamente isso que eu z. Acordei você. Além disso, mais cedo ou mais
tarde, você mesmo acordaria. Acordaria sozinho, com o próprio ronco.
Não tenho certeza de que ronquei. E não estou sozinho.
Sim, porque estou aqui com você.
Você não está comigo. Está em algum lugar perto de mim.
Não basta?
Não basta.
Bem, se soubesse onde estou e onde você está, eu poderia me aproximar, e
você não se sentiria sozinho.
Não se aproxime.
Por quê?
Porque, como eu disse, não estou sozinho.
Não?
Não.
Tenho medo!
Deve mesmo ter!
Tenho medo de morrer. Também tenho medo de que você morra.
Eu morrerei.
De que você morra comido pela fera de dentes e garras.
Eu morrerei. Não está ouvindo?
Ouvindo o quê?
O ronco.
Não foi seu?
Quem ronca é a fera. Ela está perto de mim.
Então a fera ronca?
Não ruge, não grasna, não farfalha nem pia. Ela ronca.
Estou ouvindo, estou ouvindo!
E vai ouvir mais.
Mais o quê?
Vai ouvi-la mastigar-me!
O que acontece? O que acontece?
Fuja, fuja!
Fugir para onde? Fale comigo!
Dói muito!
A fera te atacou?
Ela me arranha os braços e me morde as mãos!
Não pode correr?
Correr para onde, se também não enxergo nada?
Lute, lute!
Estou tentando!
Proteja as entranhas, que virado de bruços.
Já me virei.
E a fera?
Tornou a me virar de barriga para cima.
Não se entregue.
Não posso.
Tente feri-la também!
Não há como.
Fale comigo!
Ela é maior do que eu, ela é mais forte do que eu. Fui descuidado, dormi e
agora serei da fera.
Não me deixe, não me deixe, por favor, não me deixe...
Acho que já consigo voltar a falar normalmente...
Achei que não falaria mais.
Também achei.
Por que demorou tanto a responder?
Estava sendo devorado.
E não foi?
Inteiramente, não.
Como a fera é?
Feita mesmo de garras e dentes.
Eu escutei o roncar. Depois, parou.
Pelo visto, ela não ronca sempre. Enquanto morde, por exemplo, não ronca.
Está muito machucado?
Sim. Escuta esse borbulhar? Acho que é de sangue.
E agora?
Ela se afastou para mastigar o que arrancou de mim.
E o que arrancou?
Não sei bem. Estou vendo.
Então já consegue ver?
Não. Estou tateando. Mas parece que não tenho mais dedos, inclusive para
conferir se ainda tenho dedos.
E então?
Não tenho dedos.
O que vem agora?
Não sei. Preciso descansar, preciso...
Ouviu?
O quê?
O ronco!
Não ouvi!
Estava dormindo?
Claro que não! Deve ter sido você, de novo.
Não consigo mais dormir com todos esses ferimentos.
Talvez tenha sido eu, então, já estou há tanto tempo nessa escuridão... A fera
roncou?
Ela deve ter terminado a mastigação, pois voltou a roncar. Preste atenção!
Estou prestando!
Escute!
Estou escutando!
Ela está vindo de novo.
Aqui ou aí?
Aqui ela já veio.
Então agora é comigo! O que posso fazer?
Se prepara.
Fale comigo, fale comigo!
Não consigo.
Mas está falando!
Então, quase não consigo.
Desta vez, fui poupado!
Desta vez, fui ferido.
A fera ainda está com você?
Não mais.
Está difícil entender direito o que você diz.
Eu avisei que não estava conseguindo falar.
Tem dedos?
Sim.
Tem mãos?
Sim.
Tem braços?
Sim. Tentei proteger dedos, mãos e braços, para não car como você.
E aí?
A fera comeu o meu rosto.
O rosto?
Pois é.
Pelo menos, não foi todo comido.
Não fui.
O que achou dela?
Faminta. Feroz. Irreprimível.
Não entendi.
Eu disse que ela é faminta, feroz e irreprimível.
Faminta, sim, ela é faminta. Feroz e irreprimível também.
Eu também acho que ela é seletiva.
Por quê?
Porque comeu algumas partes nossas, desprezou outras.
Sim, seletiva. Talvez volte para comer um pouco mais. Com o que nos
parecemos agora?
No escuro, não temos como nos parecer com coisa alguma.
Preste atenção no que vou lhe dizer.
Fale.
Podemos tentar nos arrastar.
Para onde? Nem sabemos onde estamos.
Para perto um do outro.
Por que faríamos isso?
Se ela atacar de novo, seremos dois. Podemos nos defender melhor.
Dois feridos.
Melhor do que cada um ferido e isolado.
Como faremos isso?
Podemos nos guiar pelas nossas vozes. Não custa tentar. Não estamos longe
um do outro.
Devíamos ter tentado fazer isso antes. Agora é tarde.
Podemos nos aproximar para, pelo menos, eu poder tocá-lo. Já será algo.
Você não vai conseguir tocar-me sem as mãos.
Verdade. Não pensei nisso.
E agora?
Nos aproximamos, e você me tocará, porque tem mãos, e eu...
Você me beijará, porque tem lábios. Com o rosto, perdi os meus. Que tal?
Isso. Vamos.
Não tenho certeza de estar indo na sua direção.
E eu, na sua.
Fale comigo, para eu saber onde está.
É difícil car falando o tempo todo, sem o rosto.
Então, faça um ruído qualquer.
Qualquer um?
Qualquer um. E contínuo. A fera não arrancou sua garganta. Use.
Você, também, faça um ruído, está bem?
Está bem.
Como é o ruído que você vai fazer?
Assim, ó.
Entendido. Eu farei assim também.
Temos de ser rápidos.
Temos.
Não podemos atrair a fera.
Não podemos.
Como está fazendo para se movimentar, sem os braços?
Estou usando as pernas.
Acho que estou mais perto de você.
Estique os braços.
Estão esticados.
Estamos quase.
Acho que ouvi um ronco.
Ouviu?
Sim, a fera voltou a roncar.
Mas não estamos dormindo.
Não vamos mais dormir. Nunca mais.
Está cando mais alto.
Vamos aumentar o nosso ruído também.
Assim ela saberá que não dormimos.
Como ronca a fera!
Basta não dormir, basta não dormir!
Como é que a gente dormiria com um medo desses, se arrastando na
escuridão?
Vamos mais depressa!
Acho que estou chegando até você.
Também acho.
Estique os braços para frente.
Não tenho braços.
É mesmo. Me desculpe. Deixe que eu estico.
Esticou?
Sim!
Um pouco mais...
Estiquei o máximo que pude!
Estou sendo tocado!
E eu estou tocando!
Conseguimos!
Sinta!
Estou sentindo! Estou sentindo!
Vou chegar mais perto.
Isso. Se ajeite. Não posso beijá-lo nos lábios porque, como você mesmo
disse, você não os tem.
Mas tenho um pouco de testa, perto dos cabelos.
Então vou beijá-lo na testa. Sinta como se fosse nos lábios.
Tá. Beije-me.
Ainda bem que deu tempo de nos aproximarmos.
De eu tocá-lo, e de você me beijar. E o ronco...
O ronco continua. Mas não vamos dormir, não vamos dormir.
E o que fazemos aqui, tão próximos?
Vamos car assim, do jeito que estamos.
Sim, podemos fazer isso.
Desse jeito?
Não sei, não estou vendo.
Sinta, sinta.
Estou sentindo.
Assim camos melhor, não acha?
Acho.
E se um de nós dormir?
Não podemos dormir.
Sim, eu sei que não podemos. Mas, e se acontecer?
O outro acorda.
Acorda, claro.
Pode ser que a gente que muito tempo assim.
A gente não teria para onde ir mesmo.
Vamos acabar dormindo.
Precisamos de algo para nos manter acordados.
Mas não tem nada para a gente fazer.
Precisamos de uma ideia.
Precisamos nos manter ativos.
Precisamos car despertos.
Podemos usar o que temos.
O que a fera não comeu.
Podemos ser como as feras, que acordam na escuridão.
Atrás dos meus lábios, cam muitos dentes.
E, ao nal dos meus dedos, cam garras.
Duas irmãs

Cristina Agostinho

A mais nova se surpreendeu. Havia três meses que estava ali, e mal se
lembrava da pandemia. Sua decisão tinha sido a mais acertada. Foi difícil
recusar o convite de uma amiga para passar a quarentena com ela. Amiga
querida de muitos anos, quase irmã. Sim, havia o pedido da mãe. Que as duas
cassem juntas. Uma cuidasse da outra. No entanto, o que a levou a fazer o
isolamento social no sítio da irmã mais velha foi o medo. Um medo difuso,
impalpável. Medo do presente, medo do futuro. Medo de ter medo. De não ter
tempo su ciente para se reaproximar dessa irmã tão distante e desconhecida.
As duas estavam sentadas nas poltronas da pequena sala, com mantas nas
pernas, diante da lareira. A mais velha fazia a barra de crochê de uma toalha, o
gato ronronando a seus pés. Sem conseguir se concentrar na leitura do livro, a
mais nova observou o crepitar da madeira, o bailado das chamas, o bule de chá
sob o delicado abafador de tricô, os sequilhos na cestinha de vime, o vaso de
ores no aparador. Sentiu culpa por estar naquele ambiente tão aconchegante,
enquanto milhares de brasileiros, em moradias precárias, nem tinham como
fazer o distanciamento, nem o que comer. Pessoas que dependiam da pequena
ajuda nanceira do governo, que negava a existência da epidemia e as incitava a
sair às ruas para morrer como moscas. Pensou no que zera para mudar aquela
situação, além das dezenas de manifestos inócuos que assinara e da doação de
algumas cestas básicas. Nada. Mais havia feito a irmã para os moradores da
vizinhança, distribuindo víveres, máscaras, material de limpeza e higiene,
dando-lhes noções básicas de prevenção. Avessa a qualquer discussão intelectual
ou política, dava a sua contribuição sem outra intenção além da solidariedade.
Da mesma forma, trabalhara durante anos como voluntária num asilo de
idosos. Quanto a si mesma, pensou a mais nova, tentara se iludir com a ideia
de que permanecer em isolamento social era um ato de resistência, enquanto a
tragédia sanitária, política e econômica acontecia no país inteiro. Logo ela, a
ativista incansável dos anos 1970. Ativismo que arrefeceu ao longo de décadas
dedicadas à vida acadêmica. Antes da pandemia, o trabalho em regime integral
na universidade, as bancas de doutorado, os seminários, os congressos no
exterior, a vida social e cultural sequestravam seu tempo. Nas poucas horas
disponíveis, dedicava-se aos exercícios físicos. Caminhadas, natação, pilates.
Uma disciplina férrea para se manter em boas condições físicas e mentais.
Orgulhava-se de ter chegado aos setenta anos com aparência de cinquenta.
Tudo corria bem. Até que um vírus microscópico, com aspecto de
brinquedo infantil, a transformara numa idosa pertencente a um vulnerável
grupo de risco. Impedida de sair de casa, de dar aulas, de fazer qualquer
exercício ao ar livre, de encontrar amigos, viajar, ir ao teatro, ao cinema, até
mesmo de entrar numa livraria para folhear um livro. En m, impedida de viver
para não correr o risco de morrer. Memento mori. A morte espreitando a
qualquer momento, em qualquer lugar. De nada serviam os muitos anos de
estudos, o mestrado em Teoria Literária, o doutorado e o pós-doutorado em
Filoso a da Literatura. Em meio à tanta ansiedade, indagava-se sobre a
possibilidade de a loso a ajudá-la a contemplar o abismo que se aproximava,
essa estranha sensação de incerteza em tudo. Na dúvida, selecionara alguns
livros para reler na quarentena. Sobre a brevidade da vida, de Sêneca, Saber
envelhecer, de Cícero, Meditações, de Marco Aurélio, e os Ensaios, de
Montaigne. Estoicismo e humanismo poderiam ser e cazes para produzir
anticorpos emocionais. Ou seria a literatura o melhor caminho para
compreender o sentido dessa experiência humana recorrente há séculos?
Também levara na bagagem quatro narrativas sobre epidemias que considerava
emblemáticas. Decameron, de Bocaccio, A peste, de Camus, Um diário do ano
da peste, de Daniel Defoe, e Ensaio sobre a cegueira, de Saramago. Três meses
depois, ainda estava a meio caminho da leitura dos Ensaios de Montaigne. A
vida monótona que havia pre gurado naquele pequeno sítio, na Serra da
Moeda, paradoxalmente se revelara muito mais intensa. Não havia jornal,
televisão nem internet. Rede de celular, só de vez em quando, no ponto mais
alto do terreno. No início, julgou que ia enlouquecer. Impossível viver
desconectada nesse momento tão fervilhante de notícias atualizadas a cada
minuto. Qualquer pousada nos lugares mais remotos do planeta dispunha de
uma internet decente. Numa quarentena forçada, a única forma de mitigar a
solidão eram os meios digitais. Por precaução, havia baixado vários e-books no
seu Kindle, su cientes para seis meses de isolamento. No entanto, se fosse
honesta, diria que não sentiu falta de nenhum aparato digital.
Aos poucos, a irmã mais velha a envolvera nos cuidados do sítio. Pôr as
mãos na terra desanuvia a cabeça, falava. Enquanto revolvia com a pá o
canteiro das ervas, ia explicando para que servia cada uma delas. A mais nova,
que jamais distinguiria um pé de hortelã de um de manjericão, ou salsinha de
coentro, se espantava com tanto conhecimento. As verduras e os legumes
exigiam cuidados diários. Era época da colheita das laranjas, dos limões, caquis
e abacates. Cuidados especiais eram dedicados ao jardim. Rosas, hortênsias,
orquídeas, íris, dálias, tulipas de todas as cores se distribuíam entre alamedas de
alfazema, qual pinceladas de Monet. Uma pequena fonte vertia num poço,
onde utuavam ninfeias. Num canto, azaleias de várias cores se entrelaçavam,
formando um caramanchão que dava sombra a um banco azul de madeira. No
nal da tarde, as duas sentavam ali para ver o pôr do sol tingindo a silhueta das
montanhas. Pela primeira vez em anos, a mais nova se percebia sensível às cores
e aos perfumes da natureza. Também faziam longas caminhadas pelas trilhas da
serra, e a mais velha ia identi cando as espécies de plantas silvestres e o canto
dos pássaros. Tomavam banho de cachoeira e se estendiam nas pedras para
secar. Pouco conversavam, não fazia falta. Havia nesse silêncio uma comunhão
que a mais nova jamais sentira na presença da irmã. Um dia rompeu o silêncio
e perguntou, você não se sente muito solitária aqui? A outra disse, não, quando
estou sozinha é que me sinto mais acompanhada. A resposta surpreendeu a
mais nova. Certamente a irmã nunca tinha lido Cícero, no entanto vivia na
prática as prédicas do lósofo. A experiência da solidão sempre fora um
tormento para ela, a doutora em loso a. Cícero estava certo, pensou, não
basta conquistar a sabedoria, é preciso usá-la.
A mais nova voltou o olhar para a irmã e cou comovida. Os cabelos
cacheados, totalmente brancos, iluminavam a expressão tranquila do seu rosto
moreno. Não havia nada nela que denunciasse medo, ansiedade ou
preocupação. A agulha de crochê deslizava entre a linha e os dedos com suave
agilidade. Não tinha a menor ideia de quando a irmã havia começado a se
interessar pelos trabalhos manuais. Da mesma forma, foi uma surpresa
descobrir que a outra se tornara uma exímia cozinheira, do trivial aos pratos
mais re nados, além de fazer bolos, biscoitos, pão de queijo, doces em calda e
geleias. Até o delicioso limoncello que tomavam após o jantar era feito por suas
mãos habilidosas. Sem dúvida, era ela a cópia nova da mãe. Filha minha não
entra na cozinha! Não vai passar a vida com a barriga num fogão! Quantas
vezes não tinham ouvido esse mantra materno para justi car uma tirânica
exigência nos estudos? As duas irmãs teriam um destino diferente. Estudariam,
se formariam, o intelecto seria o seu instrumento de trabalho. A mais nova
lembrou o quanto seguira à risca os desejos maternos, e pensou na inutilidade
do seu instrumento de trabalho nas circunstâncias atuais. Algumas cenas da
infância voltavam à sua memória e doíam. A mãe, que a havia ensinado a ler e
a escrever aos quatro anos, dizendo orgulhosa para as visitas que a caçula era
mais inteligente do que a mais velha. Também era a mais bonita, porque tinha
os cabelos lisos e claros. E se parecia com ela. Minha cópia nova! A outra era o
patinho feio da família. Mediana na escola, magricela, cabelos escuros e muito
anelados. Essa puxou a família do pai. Num canto da sala, a irmã se encolhia,
enquanto ela, o macaquinho amestrado, soletrava palavras, fazia contas de
cabeça ou dizia o nome das capitais dos estados brasileiros. Durante as
inevitáveis brigas infantis, chamava a irmã de burra e feia. Maldades que a mais
velha nunca revidou. Ao contrário, era a primeira a defendê-la quando suas
traquinices resultavam em castigos ou memoráveis surras. Muitas vezes se
interpunha entre a mãe e ela para receber as duras chineladas no corpo
franzino. A mais nova se perguntava se o distanciamento entre as duas não
tinha começado ali. Podia ser, mas com certeza se acentuara depois da sua
mudança para Belo Horizonte, fugindo do ambiente as xiante da pequena
cidade onde haviam nascido. Fugindo do tacão autoritário da mãe e da
passividade conivente do pai, que entregara à mulher a jurisdição absoluta da
casa e das lhas.
A despeito de tudo, a mais velha permanecera com os pais. Sem necessidade
alguma de deixar a família, de viver novas experiências, de correr o mundo. Ali
mesmo desempenhara sua vida pro ssional como professora primária até a
aposentadoria. As di culdades ou possíveis tensões na convivência duradoura
da irmã com os pais permaneciam um mistério para a mais nova, sobretudo
porque a outra havia crescido como uma boa menina. Na verdade, nunca
haviam conversado sobre isso. Nas poucas vezes em que se encontravam, nas
visitas esporádicas de Natal, conversavam sobre coisas banais, sempre na
presença vigilante do pai e da mãe. Será que temiam que ela, a ovelha
extraviada, convencesse a irmã a deixá-los? Nada de con dências íntimas ou
con ssões inesperadas na privacidade do quarto, à noite. Nenhuma pergunta
sobre a felicidade ou infelicidade da outra. Nenhum abraço. Na chegada e na
saída, se cumprimentavam com dois beijinhos no rosto. Contudo, havia afeto
entre as duas. Afeto que se revelava nos momentos mais dolorosos da vida.
Quando o companheiro da mais nova faleceu num acidente de carro, a mais
velha percorreu os setecentos quilômetros que as separavam para dar o seu
apoio. E a mais nova tirou uma licença da universidade para acompanhar o
tratamento quimioterápico da irmã. Depois, tudo voltava a ser como antes.
Durante quarenta e cinco anos, tinham vivido em mundos apartados. Até
que os pais morreram. Primeiro o pai, meses depois a mãe. A mais nova
compareceu aos velórios e fez companhia à irmã até as missas de sétimo dia. A
mais velha sentiu profundamente as perdas. Enquanto chorava desconsolada, a
mais nova recebia os pêsames de pessoas que não conhecia ou não reconhecia,
com a incômoda sensação de não pertencimento àquele lugar e à própria
família.
No dia seguinte ao enterro da mãe, encontrou a irmã no quarto dos pais
separando roupas, sapatos e objetos para doação. Ficou perplexa. Parecia
loucura fazer aquilo mal o corpo da falecida esfriara. Porém havia algo
admirável nela, ali, esvaziando as gavetas e os armários sem qualquer hesitação,
num ato doloroso e realista de reconhecer que os objetos do ente querido
jamais substituiriam a pessoa morta. Ou, quem sabe, se libertava
simbolicamente dos impulsos prepotentes da mãe, que a dominara a vida
inteira. Depois, com a mesma resolução, disse que, quando vendesse a casa,
compraria um pequeno sítio na Serra da Moeda, para carem mais perto uma
da outra.
Agora estavam ali, as duas, tentando recuperar o tempo perdido. Nunca
haviam tido uma convivência tão longa e tão próxima.
A mais velha se levantou para avivar o fogo da lareira e servir o chá. Esse
livro é bom?, perguntou. Sim, disse a mais nova. Montaigne foi um grande
lósofo e ensaísta do século XVI. Escute o que ele escreveu sobre a morte:
Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade. Aprender a morrer é
aprender a viver. Você pensa muito na morte?, a outra quis saber. Antes não
pensava, ultimamente tenho pensado bastante. E você? Tem medo de morrer?,
a mais nova indagou. Eu tinha. Deixei de ter quando papai morreu. Nos seus
últimos momentos, ele apertou minha mão levemente, pediu para me
aproximar e sussurrou no meu ouvido, abre a porta da gaiola que o passarinho
quer voar. Então fechou os olhos e se foi. Achei bonito aquilo. Desde então,
não penso na morte como uma coisa ruim. Foi por essa razão que decidi me
mudar para cá. Para car mais perto dos passarinhos, disse sorrindo. Ficou
calada um instante. Em seguida perguntou, você se lembra daquela vez em que
cuidamos de um lhote de canarinho machucado? Quando ele cou bom, você
não queria soltá-lo de jeito nenhum. Não, a mais nova respondeu. Não se
lembrava. A maioria das recordações da infância havia se apagado da sua
memória. Eu não tenho boas lembranças da nossa infância, confessou à irmã.
Como não, se vivemos tantas coisas lindas juntas?, retrucou a mais velha.
Conte-me então, pediu. Enquanto ouvia os relatos daquele passado tão
distante, a mais nova percebeu que muitas evocações dolorosas para ela eram
relembradas sem nenhum vestígio de mágoa pela irmã. A forma enternecida
como falava dos acertos e erros dos pais, sem julgamentos, se colocando no
lugar deles, foi dissolvendo aquele emaranhado de ressentimento e culpa que a
atormentara a vida toda. Sabe, disse por m a mais velha, a única coisa que me
doía eram as exigências de mamãe para que você fosse a lha perfeita, a melhor
aluna, a mais inteligente. Todas as vezes que recebíamos visitas, e ela queria que
você exibisse seus conhecimentos, eu cava escondida atrás da porta para
soprar a resposta, caso você titubeasse.
A mais nova não conteve as lágrimas. Chorou pela primeira vez em muitos
anos. A mais velha se aproximou, envolveu carinhosamente os ombros da irmã
com os braços e disse, venha, querida, vamos até o jardim, hoje é noite de lua
cheia e não podemos perder essa maravilha.
A praça

Carlos Herculano Lopes

Sem dar ouvidos à sua mulher, nem às notícias trazidas pela imprensa de
que deveria car em casa, ou sair o mínimo possível, porque uma doença
mortal, de origem desconhecida, estava se alastrando, todas as tardes, tão logo
voltava do trabalho, ao qual dedicava dez horas do seu dia, aquele homem, que
se recusava a acreditar em “alarmismos”, como não se cansava de repetir, fazia
um lanche. Depois calçava o tênis, colocava uma bermuda e ia caminhar em
uma praça, que cava a uns poucos quarteirões da sua casa, em um bairro
central de Belo Horizonte.
Era um local movimentado, com muitas árvores, passeios largos e uma
igreja ao centro, na qual, há mais de vinte anos, ele se casara, após muito
tempo de namoro, quando quase mais ninguém acreditava que fosse acontecer.
Conhecera sua mulher por acaso, durante uma viagem a uma cidade do
interior, e não se separaram mais. Um álbum com capa de couro, guardado em
uma gaveta, e que às vezes, nos dias de folga, entre uma taça e outra de vinho,
eles gostavam de rever, testemunhava aquele dia, que talvez tenha sido o mais
emocionante da sua vida.
Não se lembrava, mesmo tendo passado por tantas coisas, algumas muito
dolorosas, de ter vivido outros momentos com tamanha intensidade, ou que
tocassem tão fundo no seu coração. Sua mãe e seu pai, que ainda eram vivos,
apareciam em várias fotogra as. Algumas delas feitas ali naquela praça, na
porta da igreja, pouco antes do começo da cerimônia, que foi o cializada,
como bem se lembrava, por um padre chamado José. Anos depois, em plena
Avenida Afonso Pena, voltaria a vê-lo; como ele, também já com os cabelos
brancos, e mais velho. Mas com o mesmo sorriso e bom humor de quando se
conheceram.
Ali naquela praça, que até então fervilhava, homens e mulheres se
exercitavam, crianças brincavam no parquinho, adolescentes andavam de skate;
outros, de bicicleta; vendedores ambulantes, aos gritos, ofereciam água de coco,
sorvete, caldo de cana e alugavam carrinhos que as crianças adoravam dirigir,
fazendo a maior algazarra, que enchia de vida aquele lugar. Não existia outro
espaço, em Belo Horizonte, que se igualasse àquele.
Isso sem falar das pessoas que passeavam com seus cachorros e de outros
frequentadores, como alguns vizinhos do prédio, que preferiam car assentadas
nos bancos, conversando, enviando mensagens pelo celular ou se divertindo
jogando dama e partidas de baralho, que entravam tarde adentro. Muitas delas
a dinheiro, prática que, embora fosse proibida, assim mesmo acontecia. Como
um dia um daqueles vizinhos, “seu” Agnaldo, que acabou morrendo de
repente, dizem – contagiado pela tal doença –, lhe revelou, quando coincidiu
de voltarem juntos para o prédio. Começava a chover, e esse vizinho dividiu
com ele o guarda-chuva, além de haver contado, sem disfarçar o orgulho, e
uma ponta de tristeza, que era ex-pracinha e que havia lutado na Itália.
Não raramente, pois aquela praça cava em frente à Assembleia Legislativa,
o local servia também como palco para manifestações populares, com as
pessoas fazendo reinvindicações, que costumavam terminar em confronto com
a polícia, cuja presença ali era permanente. Quase sempre, dos mais diferentes
pontos da cidade, ou do interior do estado, chegavam caravanas de ônibus. E
os manifestantes, às vezes, armavam suas barracas entre os canteiros, ou
debaixo das árvores, e por ali permaneciam dias, ou semanas inteiras, lutando
pelo que achavam ser seus direitos.
Faziam comidas, vendiam produtos artesanais e entoavam cantos, muitos
dos quais antigos conhecidos dele, dos tempos em que estava na faculdade e
ainda se permitia sonhar, sem o mínimo de preocupação com o dia de amanhã.
Num daqueles atritos com a polícia, uma jovem que usava camiseta com a
inscrição “Paz e Justiça”, depois de um grande tumulto e corre-corre, acabou
atingida por um tiro no peito, que a matou instantes depois, logo após a
chegada dos socorristas. Estes ainda tentaram reanimá-la, ante os olhares
perplexos das pessoas.
Ele, que terminava sua caminhada, assistiu a tudo, e durante várias noites,
sempre pela madrugada, a imagem da moça, com os olhos arregalados, e a boca
aberta, como se não acreditasse que estava perdendo a vida, voltava à sua mente
e perturbava seu sono. Tinha pesadelos, e via outra vez a mancha escura do
sangue escorrendo pelo passeio, até encontrar o asfalto e se grudar às rodas dos
carros que passavam. Por dias seguidos, a televisão, até que tudo acabou caindo
no esquecimento, noticiou com estardalhaço aquele fato, com os repórteres
especulando de onde havia saído o tiro. Acusações, tanto da polícia como dos
manifestantes, uns jogando a culpa nos outros, não faltaram.
Meses depois, como se não bastasse, também ali naquela praça, embora o
movimento, dia a dia, estivesse diminuindo, talvez devido às notícias da tal
doença, na qual ele continuava se recusando a acreditar, pois nunca fora de
“alarmismos”, ocorreu mais uma tragédia: um lavador de carros, que vivia nas
imediações, e de quem se lembrou, ao ver sua foto estampada no jornal, foi
encontrado morto numa manhã de sábado, dentro do coreto. O corpo, todo
perfurado, estava envolto em sacos de plástico, como um objeto qualquer,
pronto para ser descartado.
O homem, que foi identi cado como Josué de tal, e era natural do Ceará,
mas há anos vivia em Belo Horizonte, recebeu mais de vinte facadas: o
assassino, como também foi noticiado, mas cujo nome não chegou a ser
revelado, seria um colega, e a briga teria se originado porque o morto, ao vê-lo
espirrando e tossindo, o chamou de “infectado”, desencadeando toda aquela
tragédia.
O vigia de uma lanchonete ali perto, que cara conhecendo meses antes,
pois sempre passava por lá para comprar água mineral ou comer alguma coisa,
lhe contou sobre o crime. Falava em voz baixa, enquanto tentava ajeitar a
máscara, que insistia em sair do lugar: “Essa praça, meu amigo, não é
brincadeira, desde que estou aqui, já morreram muitos; aqui, os mortos
costumam voltar; ainda mais agora, com essa peste, que não para de matar”,
disse. Em seguida abaixou os olhos e se calou, como que arrependido do que
comentara. Aquela frase, solta assim, como se ao acaso, o deixou assustado. E
ele voltou a sentir um tremor nas pernas, e os lábios ressecados, como no dia
em que presenciou a morte da moça, da qual não conseguia se esquecer.
Um cartaz com uma foto dela, a família pedindo justiça e a prisão dos
assassinos, durante um bom tempo permaneceu colado em uma árvore, que
cava ao lado da igreja onde ele havia se casado, e na qual, vez ou outra,
costumava fazer suas orações, sobretudo no Natal ou no início de cada ano.
Nos últimos dias, como vinha acontecendo em toda a cidade, ela havia sido
fechada, assim como lojas, shoppings, bares, academias. Estas, para a tristeza da
sua mulher, que de uma hora para outra se vira privada dos exercícios, dos
quais tanto gostava.
A tudo isso aquele homem, que insistia em continuar levando uma vida
normal, pois detestava “alarmismos”, via e ouvia sem tirar nenhuma conclusão,
ou tentar entender os porquês, como muitas outras coisas da sua vida. E em
casa, às vezes comentava com a mulher, a quem continuava sem dar ouvidos.
Até o dia em que, depois de haver testemunhado a morte de alguns colegas de
trabalho, contagiados pela doença, e de ele próprio ter cado várias semanas
internado na enfermaria de um hospital, ao tentar retornar àquela praça, já
cercada por grades, ele só avistou, para seu espanto, e terror, a moça que havia
levado o tiro. Viu também o ex-pracinha, o lavador de carros e os seus pais, na
porta da igreja. Além do seu corpo, estendido em um banco.
Dois pontos

Ana Elisa Ribeiro

5:00
5:01
Nunca pensei que ver meu pai pudesse se transformar em um grande
dilema. Menos ainda uma aventura impossível. Não preguei os olhos. Trouxe o
rádio-relógio até a cozinha escura para continuar me divertindo com o pisca-
pisca dos dois pontos entre os números. Quando preciso dormir mais cedo,
en o o rádio embaixo da cama. É impossível lidar com essas luzes numa
madrugada normal. O quarto não ca totalmente escurecido e meus olhos não
conseguem parar de prestar atenção aos movimentos.
Na cozinha, viraram diversão. Alternam com a beleza da sombra das grades
da casa ao longo da parede de azulejo branco. Não se encontram mais grades
dessas. As de hoje não passam de listras sem graça. Estas, desde a casa antiga,
fazem ores e oreados na parede sem graça do cômodo. É, de dia, uma das
peças mais claras da pequena casa, mas à noite, tenho a impressão de que se
transforma no palco destas ores sombreadas, quase vivas. Enquanto os dois
pontos do relógio piscam em vermelho, quase vejo a natureza sob o vento nas
paredes. As grades ganham vida à luz branca dos postes da rua, muito
próximos, quase moradores. E o silêncio completa o quadro deste lme mudo
e terrível.
Não vou pregar os olhos. Já é hora de desistir do sono. Do sonho. A ideia
então é esperar as 7:00 ou as 7:30, tomar um café e tentar novamente. Às 8:00,
meu pai certamente já terá acordado. Estará, provavelmente, sentado sozinho à
mesa pequena da copa, naquela grande casa com copa!, e talvez ainda leia um
jornal impresso, jogado na rampa de entrada por um motociclista meio
desastrado. O velho lerá notícias sobre a cidade, depois política nacional,
criticará em sussurros o governo atual, culpará as vítimas do racismo e do
estupro, passará sem ler pelas notícias sobre cultura e TV. Talvez se demore um
pouco mais nas notícias sobre automóveis. Deixará o jornal de lado e passará a
pensar nas peças de carpintaria que gostaria de terminar, no quintal. Está só. E
sente-se muito bem. Se sentir saudade, não perceberá.
Da minha cozinha cheia de sombras orais, só consigo me lembrar dele e de
suas manias cada vez mais de nitivas. Um homem só. Um homem satisfeito,
que fez o que quis, sempre que quis. Viúvo, nem assim se curvou. Quanto deve
custar tanta resistência? Enquanto lia o jornal, tomava um leite morno,
esquentado em micro-ondas, e comia um pão mal besuntado de manteiga. A
mordidas espaçadas, distraídas... Sabia das coisas que o jornal trazia, mas não
queria saber de mais ninguém. Parava nas notícias sobre a pandemia apenas a
ver se a extinção das visitas perduraria. E era isso.
São oitocentos metros de distância. Não fossem as ladeiras sobre as quais a
cidade é mal assentada, seria fácil de percorrer a pé. Venci essa distância de
bicicleta quatro ou cinco vezes, mas me arrependi ao chegar ao destino. Muito
suor para pouco afeto. De carro, talvez não chegasse a cinco minutos de trajeto.
Não valia o risco de furto na porta. Oitocentos metros entre nossas casas, no
limite entre dois bairros, na fronteira entre dois universos.
Quando contava a alguém, no escritório ou na especialização, que morava a
oitocentos metros de meu pai viúvo, logo abriam sorrisos de nostalgia e
admiração. Você deve vê-lo sempre, bom que pode ajudar, podem tomar café
juntos, podem se ver. Mas não. Já não era bem assim. No entanto, as poucas
visitas tentadas eram minhas, só minhas. Eu me deslocava os oitocentos
metros, subia, subia, até alcançar o portão verde-folha, descascado, meio
oxidado em alguns pontos, batia aquela campainha antiga, aguardava uma
demora. Era a lentidão de um velho robusto subindo escadas, tentando
enxergar o buraco da fechadura, abrindo a porta e pensando, na verdade, o que
ela veio fazer aqui? Era a lentidão de quem toma fôlego para uma visita
indesejada, dispensável. Para ele.
Oitocentos metros para cima e eu reencontrava a casa de minha infância, os
ecos da voz grave de minha mãe morta, a risada espaçada de meu irmão caçula
imigrante e meus próprios zelos. Encontrava também a aridez de um pai vivo,
resistente, muito amenizado em sua violência e em suas incompreensões. Um
homem velho que desistira dos embates, mas ainda impassível quanto aos
afetos. Assim mesmo, eu o visitava.
Neste momento, os oitocentos metros são incontáveis. Como imaginar algo
assim? A leitura do livro de um conhecido tratou de morti car ainda mais meu
coração, já entristecido com uma situação tão inesperada e compulsória. Numa
mistura de poesia e imagem, o amigo publicou um volume em que cria uma
narrativa visual a partir de fotogra as que tirou do caminho rodoviário que
separa sua casa da de seu pai, entre a capital e o interior, trezentos e cinquenta
quilômetros apartados. As árvores, os barrancos, as casas caiadas esparsas, as
beiras de estrada, as lanchonetes ensebadas, as borracharias sempre abertas, as
bitucas de cigarro e as calotas no acostamento, a sensação de velocidade das
fotos tiradas de dentro do carro em movimento, aqueles trezentos e cinquenta
quilômetros sendo vencidos entre dois homens, lho e pai. A espera, o aviso,
estou chegando, vem com calma, cuidado, estrada perigosa (qual estrada em
Minas não é?), quase aí, as mensagens de celular, o sinal ruim, o sinal falhando,
mas o abraço entre o pai e o lho não falha, reconecta. Reconectados. Era uma
grande movimentação, pensei enquanto lia. Uma grande movimentação, por
estrada, em perigo, para um abraço, dois cafés coados, pão feito em casa, broa
quente. E a volta, toda a volta, as casas esparsas, caiadas de branco, o mato, um
boi ou outro, os cigarros, um acidente, uma calota abandonada, um cachorro
morto, a capital adiante, pujante, aquelas indústrias à beira da estrada, aqueles
galpões e, de novo, a solidão do apartamento no centrão da cidade, tão alto
que nem se ouve barulho de rua, de carro, de gente. Vez ou outra, a voz do
vendedor cego de loteria.
Oitocentos metros. Assim, à beira da pia, vendo as grades fazerem orestas
na parede, quei pensando que a distância entre uma lha e um pai não se
mede em quilômetros. Os dois pontos piscam céleres no mostrador e a vida
continua seu curso. A lha insone, sentada num banco de lata fria; o pai,
dormindo um sono profundo, quase a acordar para mais um dia de vazio.
Às 8:00 vou tentar. É sempre uma tentativa. Todas as visitas, desde a viuvez,
são tentativas de aproximação. Difíceis, profundas, irritantes. A presença de
minha mãe ativava algumas coisas naquele ambiente: a distração e o
ngimento. Ela ainda viva nos chamava a atenção para si, nos distraía do pai,
aquele espectro que passava entre uma sala e outra, descia escada, deslizava
sobre o corredor com um tapete velho e desbotado. Ela viva tinha mais vida do
que ele, nos contava casos do ordinário, da semana, do sacolão. Mas era
elegante, sem fofoca, sem insu amentos. Ela viva nos perguntava sobre o
trabalho, mesmo que não entendesse disso fora de casa. Jamais trabalhara fora
na vida, era dona de casa de nascença, mas queria saber de escritório,
departamento, reunião, diretoria, essas coisas que lhe pareciam chiques,
importantes. Ela falava de si e de nós, às vezes não se esquecia de contar algo
sobre o pai: uma dor, um silêncio, um médico, um passeio à praça mais
próxima, mas era só. Isso fazia aquela casa parecer maior e a habitava, enquanto
o pai fazia seu papel de espectro, sem relevância, quase. Mas ela morreu antes.
Inesperadamente, morreu antes. E isso era de uma falta de lógica mordaz.
A morte dela foi primeiro percebida por ele. Ao chegar à cozinha, depois de
cessar o barulho dos passos e de ouvir a água escorrer mais do que o necessário,
resolveu reclamar. Não teve tempo. Flagrou-a caída no chão, num gesto
desesperado ainda de puxar os cabelos, olhos vidrados, um susto dolorido. No
laudo, aneurisma. Um aneurisma de que nem ela soube. Nunca soubemos. E
ele cou ali, sem saber por onde começar a tocá-la. Socorro, qual socorro? Até
chamar uma ambulância lhe parecia incômodo. Os outros, o que os outros vão
poder fazer? Morta? Não sabia ler sinais vitais. Nunca soubera mesmo. O jeito
foi chamar a ambulância, num telefonema constrangido, e aceitar o laudo com
a causa mortis mais espantosa que jamais imaginara.
Chegava a pensar em sua remota vida de solteiro. Casara-se jovem, novo
para os padrões masculinos. Viveram juntos, desunidos, por cerca de quarenta
anos, longos anos, mas conseguiram estabelecer uma conexão de afetos
craquelados. Ela foi a mãe; ele foi pai sem saber. Ela nos nutriu e cuidou; ele
assistiu, meio desinteressadamente. Mas ela se foi primeiro, talvez vítima de um
cansaço indescritível; ele cou. Que azar, que sombra.
Aquela mulher descabelada, de avental de plástico, caída no chão da
cozinha, tornou-se uma imagem xa naquele espaço da casa. Ele o atravessava
sem querer, apenas por urgentes necessidades, vendo ainda a sombra dela sob a
luz. Não precisava mais dar um telefonema, pedir ajuda, que alívio, mas
conviveria com aquela cena sem despedida. E terminaria por fechar, en m, a
torneira aberta, desperdiçando água.
Daí sumimos todos. O enterro dela, os abraços chorosos, os parentes de
longe, os pêsames sem sentimento, o olhar interditado dela, a mão pálida
segurando um terço que jamais rezara inteiro, uma roupa de domingo num
cadáver imprevisível. Ele ali, ao lado do caixão, sentado e calado, quieto, com
os pés levemente cruzados, chinelos, na simplicidade de sempre, mas olhando-a
xamente, como que a fazer perguntas indecifráveis. Ela queria viver mais que
ele. Ela sabia viver mais que ele. Ela pedia ajuda sem cerimônias. Ela dava
abraços e tinha contrapartidas. Ela ouvia as notícias pela TV e tecia
comentários mais ou menos esclarecidos. Acompanhava novelas como quem
tem grandes compromissos. Ele, não. Ele não sabia bem como viver, mas
continuava vivo. Parado, silente, ao lado do caixão, visivelmente irritado
quando tinha de abraçar alguém e grunhir algo depois de um “meus
sentimentos”. Pensava nela jovem, ela mulher, ela mãe. E aquelas duas crianças
pequenas, ativas, e o chão frio da casa, as meias coloridas, ela entre as crianças,
ele sempre à espreita. Sem coragem.
Depois da viuvez, a solidão lhe caíra bem. Era isso. Menos obrigações,
menos ajudas, menos visitas. Minha mãe nos distraía da aridez dele, nos fazia
prestar atenção à vida ordinária, às narrativas do comum, provocava risadas,
passava o café, o açúcar, fomentava movimentos de curto alcance, incentivava
os toques dos dedos ao entregar uma xícara, o toque das mãos ao emprestar o
Caderno 2 do jornal, obrigava à troca de olhares quando fazia uma pergunta
direta. Ele, não. Ele apenas orbitava, certo de sua dispensabilidade. E estava
errado, como sempre. Covarde.
Depois da morte dela, enquanto o pai cavava mais fundo a cova de sua
solidão e de sua avareza afetiva, meu irmão se mudou para um país vizinho.
Cismou que a Argentina vivia melhores dias, aboletou-se em um quarto e sala
na capital de lá e nunca mais voltou. Sequer para uma visita. Usou, algumas
vezes, um programa de videoconferência, por onde trocamos informações sobre
o calor, o frio, o trânsito, a aparência das pessoas e rudimentos de castelhano.
Era uma capital, uma capital maior que Belo Horizonte, menor que não sei
onde, entre esta e aquela, com certo ar quase europeu e pessoas apressadas.
Conseguiu um emprego de meio horário, passava diante de dezenas de
ferreterias daquelas dos lmes com Ricardo Darín e ava uma vida cheia de
pequenas hostilidades xenofóbicas e alguma antipatia antibolsonarista. Os
gringos nos associavam ao presidente que apenas metade elegeu. A outra
metade estava à sombra, no mau sentido.
Numa de minhas persistentes visitas ao nosso pai, insisti numa conversa on-
line com meu irmão, nos vermos os três, ao vivo, conversarmos, falarmos de
como era lá, prometermos uma visita ao país hermano, mas nada. Meu pai se
negou. De jeito nenhum, essas bobagens. Ou a pessoa está ou não está. O
menos pior era o telefone, mas ele também não gostava. Era de uma
in exibilidade tecnológica incontornável. Não. Ficou o não ecoando em meu
irmão, não comunicação, não ligação, não presença. Assentou-se esse conjunto
numa conclusão: não afeto. E diante disso, não nos falamos mais.
Sem a distração de minha mãe e sem a presença solidária de meu irmão,
quei sendo a única ameaça de visita ao velho, que sempre aparecia à porta,
depois de vários minutos, com as chinelas do dia do enterro dela e com um
pedaço de jornal nas mãos. Um pouco, ele queria dizer que estava ocupado;
outro tanto, sua demora cada vez maior em atender à porta era uma tentativa
de me fazer desistir, pensar que ele estivesse dormindo ou no banheiro. Queria
uma desistência que não vinha. E a cada demora dessas, mais eu queria car,
averiguar a casa, ver se ele estava ao menos vivo e bem. E sempre estava. Só que
nunca era receptivo.
Na ausência de nitiva minha mãe, recaiu sobre ele, completamente, a
atenção. E ele claramente se recusava a atrair cuidados e olhares. A visita se
transformava no maior incômodo da semana. Uma visita dominical, quase
sempre, que lhe roubava uns momentos de paz que faziam falta. Nem café,
nem pão, nem manteiga rançosa. Nada. A ideia era ser repelente. O despreparo
para a recepção vinha em desculpas mal costuradas, como não tive nem tempo
de fazer o café, não tive como sair para comprar pó, o gás acabou. Qualquer
coisa de intolerável entre nós. Antes o silêncio.
Ainda assim, eu ia. Eu ia porque era uma espécie de herança e
responsabilidade. Uma espécie de humanidade. Eu ia porque era um velho
sozinho, numa casa grande, numa copa ampla, convivendo com o fantasma e a
imagem da morte súbita. Era um velho árido, desértico, já sem enxergar
direito, sem grandes habilidades culinárias. E eu era uma lha. Uma lha
próxima, primogênita, divorciada, sem lhos, empregada, diligente. A
oitocentos metros, mediu o Google Maps.
Fiz esse percurso por algum tempo, alguns meses, alternando entre a
atenção ao velho e a vontade de acionar meu irmão. Nunca cumpri. Duas ou
três vezes, passei a levar a broa e o suco, ao menos, que deixava sobre a mesa da
copa e de que ngia me esquecer, na hora de ir embora. Descer umas quadras
apenas, passar pelas ruas de casas baixas e antigas, cumprimentar duas ou três
senhoras que conheceram minha mãe, parar na esquina, acelerar, entrar na
garagem, viver uma vida normal até o próximo domingo. Sem netos, ele. Sem
minha mãe. E dispensando quem quer que tivesse sobrado.
Nesta madrugada, quase às 6:00 da manhã, enquanto espero para tentar
uma visita, calculo tudo o que farei para chegar até lá. Os protocolos mudaram
muito. Os oitocentos metros se transformaram em um oceano. O
intransponível se juntou a nós, agora na forma de um impedimento, de um
vírus, de uma peste. A alma refratária daquele homem já estava lá, mas agora
não posso sequer me aproximar do corpo dele e ver, com meus próprios olhos,
o que lhe acontece. Uma queda, uma ferida, o cabelo mais branco, a calvície
mais avançada, a chinela arrebentada, a magreza progressiva, a mesma aridez.
Não posso mais. Minha insônia é ansiedade, é medo, é tristeza. A oitocentos
metros não o alcançarei. Igualei-me ao meu conhecido, autor de um livro, que
viajava algumas horas para encontrar o pai. Tanto faz, agora, se são quinhentos,
trezentos e cinquenta quilômetros, outro país, algumas ruas. Estamos longe,
impedidos de nos encontrar, escorados na distância determinada por
protocolos de saúde, sustentados pela ciência de epidemiologistas que aparecem
na TV para nos ensinar a manter o distanciamento, convencidos por
informações que nos chegam de todos os canais, em uníssono, ensinando a
viver com segurança, a descon ar de todos ao redor, a nunca mais dar abraços
despreocupados. Às vezes, penso que podem ser impostores, todos eles. É um
plano macabro para separar lhos e pais. Mas logo recupero a razão. E nada há
de mais e caz para separar pessoas do que elas mesmas e suas incompetências.
8:00. Às 8:00 tomarei um café, vestirei uma roupa de rua, calçarei o tênis,
que agora dorme no pequeno alpendre, cobrirei metade de meu rosto com uma
máscara branca ou preta ou oral, sairei de carro, percorrerei oitocentos
metros, lentamente, parando em cada esquina, estacionarei na porta da casa
grande e baterei a antiga campainha. Meu pai demorará dez ou mais minutos
para chegar à porta, apenas com a cabeça insinuada, e dirá, em voz baixa e
propositadamente rouca: é você? Não será surpresa alguma, mas ele fará
parecer. E não uma surpresa grata ou animada, mas certo fastio em receber
uma visita, ainda que seja da lha, a única.
Às 8:15, aproximadamente, estarei repreendendo meu pai por não estar de
máscara. Você tem atendido as pessoas assim, no portão? Quando bate o
carteiro, quando vem o vendedor de ovos, quando passa o leitor da luz ou o
pessoal do posto de saúde, você atende sem máscara? Quantas máscaras eu já
lhe trouxe? Onde estão? Não sabe onde pôs? Junto com os óculos? Mas sabe
que vai adoecer se mantiver esse comportamento teimoso? Tem lido os jornais
direito? A parte da cidade, do mundo? Tem visto a pandemia? Tem visto as
pessoas morrerem doentes, sozinhas, se comunicando com parentes por meio
de tablets? Entendeu que a desgraça está próxima? Ou ainda duvida? É uma
conspiração? Sabe que os médicos estão dizendo que a única forma de se
proteger é não ter contato com pessoas de perto? Nem te abracei, nem tentei,
porque eu nunca passo da tentativa, não é? Nem tentei te abraçar. Agora é
o cial: não se pode abraçar. Nem o pai. É que fui à rua estes dias, z compras
de supermercado, inclusive trouxe umas coisas para você. Você esteve no
mercado? Que dia? Eles não trazem para você aqui? É só ligar. Estão atendendo
assim agora. Você liga lá, diz o que quer e eles trazem. Conhecem você,
conheceram os hábitos da mamãe, vão saber de cor as coisas. Pode con ar.
Aqui você paga. Mas precisa pôr a máscara para atender o rapaz, o carregador.
Não o deixe entrar, nem se ele se oferecer para ajudar. Quando as compras
chegarem, limpe tudo, higienize, antes de pôr na geladeira. Já deixei álcool
70% aqui e você nem abriu. Não pode. Quer morrer? Silêncio. Quer morrer?
Desculpe, mas eu preciso falar. Se você está lendo as notícias e não está fazendo
nada... o que posso fazer? Preciso alertá-lo sobre o perigo que está correndo.
Posso vir aqui de dois em dois, três em três dias, trazer as coisas que você
quiser. Pode ser? Silêncio. Podemos combinar isso? Facilita sua vida? Protege
sua vida?
Não. Ele não quer, não aceita. Ajuda, mesmo que seja de sua única lha, lhe
custa muito. É tão difícil lidar com o amor e a preocupação de alguém. Quanta
delicadeza é necessária para fazer isso? Não precisa devolver nada. Não precisa
comprar nada para que eu traga para casa, não precisa. É apenas doação. É
amor, creio. Mas a aridez imensa daquela alma não era capaz de se abrir, de
abrir a porta da casa mais de uma vez por semana. Que terror ele sentiu ao
pensar que poderia ser visitado pela lha amiúde. Que terror interromper o
curso dos dias pequenos, escurecidos; interromper o uxo dos pensamentos em
looping; cortar a sequência de horas e dias de uma densa solidão para atender
outra pessoa. E uma pessoa de afetos. Nem pensar.
Às 8:00. São pouco mais de três horas de espera e insônia. Oitocentos
metros tornados muito mais, quase insuperáveis, por conta de uma doença que
distancia até as pessoas que moram sob o mesmo teto. Bem, não é novidade.
Sou capaz de listar muitas pessoas que moram sob o mesmo teto e estão
separadas de muitas maneiras. Mas agora... qualquer desejo que eu tenha de
ainda conquistar aquele velho, antes que ele morra, está obrigado à suspensão
dos protocolos sanitários, da ciência e da epidemiologia. Toda vez que penso
em fazer mais uma visita, mais uma investida sobre aquela casa de grades verde-
folha, preciso pensar antes nos cuidados que nos impedem tentativas de abraço,
a vizinhança mais febril dos corpos. Sendo meu pai quem é, não nos compete
nem a brincadeira de um toque de cotovelos ou dos pés. Ele é o deserto e o
silêncio. Ele é, antes, a recusa. Ele não acha graça e ele não nge nada. Ele não
quer atenção para si. E se pensa nisso, não permite que o agremos. Ele não
fala mais com o lho emigrado e quase dispensa a lha persistente. Ele ainda é
ao menos educado.
8:00
Os dois pontos vão piscar sessenta vezes antes de o número mudar. Espero.
As sombras de ores sumiram das paredes há mais de uma hora. Quando o dia
se rma, as sombras se transformam em coisas boas. Tenho medo de morrer
subitamente na cozinha, ao lavar a louça. Mas é preciso sempre estar ali,
naquela mesma situação de minha mãe, ao se despedir da vida. Nada mal. As
vantagens do súbito. Penso assim e logo penso em meu pai, que cou e que
sempre diz que sobrou. Passa das 8:01, quase 8:02, e começo a achar que não
me decidi. Mais uma tentativa? Com todos os protocolos? E se ele não estiver
lá? E se estiver dormindo ainda, extraordinariamente? Por que uma pessoa que
não gosta da vida acorda cedo? Que vantagem há em estender o dia? Mas ele
acorda cedo, sistematicamente, toma um café, distraído pelas notícias de um
mundo que mal habita, depois muda de cômodo para desenhar uma peça, um
móvel, um pé de mesa. Não trabalha para fora faz tempo. Diz que lidar com
clientes era um castigo. Só faz as coisas que quer e os consertos dos móveis
velhos da própria casa. Móveis carunchados, móveis fora de moda, móveis de
madeira maciça, móveis remendados. Tem bom gosto, mas falta-lhe paciência.
Faz isso até a hora do almoço, tira uma soneca, volta a fazer as mesmas coisas.
E acha uma tremenda sorte quando o dia termina sem que ele tenha tido de
ouvir sequer uma voz ao longe. Nem a minha.
Não vou. Hoje não. E se eu telefonar? Ele não atenderá, eu sei. Evitará o
telefone, dirá que não ouviu, reclamará para si a mentira de que tem cado
surdo. Não tem. Tem cado duro, impermeável, inalcançável, isso sim. Dirá
que estava ocupado com uma máquina ligada. Ou que agora deu para dormir
pesado. Dirá. Se não atender, em meio a esta pandemia, acharei que teve um
acesso de falta de ar, que precisa de socorro, isso me transtornará o dia. Melhor
ir. Melhor car. Deixa estar. Agora, às quase 9:00, quem sabe me deito e
durmo o sono atrasado, já que estou em home o ce? Quem sabe? Quem sabe
esqueço-o por umas horas e deixo a visita para mais tarde ou para a próxima
semana? Evito o risco de transmitir a ele uma doença e meu amor, sem retorno.
9:00
Meu telefone toca. Insistentemente.
Ando alguns passos no chão frio, de camisola, sem paciência.
Alô?
Você não vem aqui hoje?
Senhora do Fogo A“ul, farol na tempestade

Cidinha da Silva

Em meio à guerra declarada à sua gente, guerra também de um vírus aliado


na execução do plano genocida, ela completou 70 idades, radiante, um farol na
tempestade. Enquanto Iku levava milhares, Obaluaê ofereceu a milhões a
oportunidade da doença como batalha derradeira na peleja de todo vivente, a
arte de driblar a morte.
Discreta, silente e atenta, a Senhora do Fogo Azul esperou pela celebração e
a acolheu. Sorriu. Desbordou o coração, distraiu-se da pandemia ao som de
nossos ngomas e mbiras, mambos e pontos cantados. Espalhamos perfume,
ores e água fresca pelo caminho aberto e limpo por ela, liberto de espinhos,
pedregulhos e armadilhas. Convocamos makotas, kumbas, ngangas e
kimbandas, todos bambas na ciência de encantar a vida e distrair a morte.
Ela, a Senhora do Fogo Azul, acolheu a festa, mas não deixou de guerrear.
Ela que é lha daquele que é ferreiro, caçador, general, rei. Ela que luta com
astúcia e sagacidade. Ela, sentinela da memória do conhecimento acumulado,
da tecnologia de transformação da natureza e da produção de in nitos.
Festejamos e continuamos o combate pelo direito de morrer de morte
natural quando chegue a nossa hora, para que a gente possa morar na dobra do
tempo, como o Reinado já anunciou. Os marços vão acabando conosco, mas
nosso mundo é encaixado, os tambores não estão mais frios, podemos aquecer
nossa passagem pela Terra e anunciar às sete direções, à esquerda e à direita, em
baixo e em cima, à frente, atrás e dentro, podemos anunciar o mundo novo,
aquele que nasce das cinzas da fogueira de Nzázi, da cabeça, onde tudo começa
e termina, da palavra de kurimá, da palavra de kuendá, kuendá, kuendá.
47 segundos

Cris Guerra

A porta do apartamento se abre para um corredor comprido e escuro. A


Senhora 907 usa máscara tapando do alto do nariz até abaixo do queixo, um
par de óculos de lentes grossas e sobre tudo uma proteção de acetato
transparente que se assemelha a um para-brisa. Sobretudo máscara e luvas e o
para-brisa de acetato, ao menos na cabeça e ao redor dela, embora ela sonhe
com um chapéu de tecido que viu num site chinês, acoplado a uma camada
transparente de acetato ou algo que o valha, na parte da frente, mas de cuja
compra desistiu ao supor seu prazo de entrega visto que vem da China, que
inventou o vírus a m de dominar o mundo, vírus este que não sobrevive por
muito tempo em superfícies de tecido segundo informou o Doutor Bactéria na
tevê, que agora entende também de vírus apesar de se chamar Doutor Bactéria
(impressionante como na crise os pro ssionais se reinventam). E da China
nunca se sabe, ela é capaz de industrializar tudo até mesmo um vírus, imagine
se não poderá fabricar acetatos que o tragam congelado para acordar do sono
profundo tão logo desembarque em solo ocidental com esse calor todo.
Nesse calor todo, o vizinho do 906 surge no m do corredor trazendo as
compras – e ele vem sem máscara, abarrotado de sacolas, lento e arrastando os
chinelos pela reta comprida que se torna mais longa ao acompanhar os
pensamentos da Senhora 907.
O calor percorre a cabeça da Senhora 907, mais por dentro do que por fora,
e a temperatura aumenta com a proximidade cada vez maior do Senhor 906,
que arrasta seus chinelos displicentemente pelo corredor imundo em direção ao
seu apartamento cruelmente vizinho. A Senhora 907 tenta trancar a porta
rapidamente, mas o faz lentamente porque se atrapalha com as luvas e os
pensamentos longos acerca do corredor (que sob o seu ponto de vista se torna
curto na iminência da chegada do Senhor 906) e a preocupação especí ca com
o tubo de álcool gel setenta por cento debaixo do braço pois tão logo ela
termine de trancar a porta com a chave de metal ela limpará os dedos com o
álcool gel, sem saber ainda como fará para lidar com a tampa depois de fechado
o tubo. Fará isso com a mão esquerda, limpando os dedos da mão direita, visto
que é destra, mas nessas horas gostaria de ser ambidestra, e que o cotovelo
tivesse dedos. Quisera também poder resolver tudo com uma leve torcidinha
de nariz como fazia a Feiticeira do velho seriado exibido da tevê dos anos
setenta, apesar de preferir o que passava em seguida, Jeannie é um gênio, mulher
à frente do seu tempo por já viver em quarentena desde aquela época, reclusa
numa confortável garrafa de interior ricamente decorado. A Senhora 907
passara a infância sonhando con nar-se naquela garrafa, da qual sairia em meio
à fumaça colorida com exclusivo poder atomizador de vírus.
A cabeça da Senhora 907 lateja ansiosa à medida que o som do Senhor 906
se torna mais nítido. Tensa com a sua aproximação, ao mesmo tempo que
distraída em sua saudade de um Carnaval que nunca aconteceu mas no qual
teria se fantasiado de Jeannie, o gênio, a roupa de odalisca ornando com o
saltitante rabo de cavalo loiro (o rabo, não o cavalo), a Senhora 907 se
atrapalha nos cálculos sobre qual mão ela limpará primeiro, enquanto o Senhor
906 vem se aproximando sem máscara, terrivelmente sem máscara e sem luvas,
sem pudor e sem bom senso, com seus dedos sujos prestes a alcançar a
maçaneta contaminada de seu apartamento imundo.
Enquanto a Senhora 907 tenta higienizar seus pensamentos e atenuar seu
semblante, distrai-se abrindo ligeiramente um dos braços e o tubo de álcool gel
lhe escapa das axilas em direção ao chão, no qual se enterrará a esperança de
qualquer possibilidade de controle sobre as coisas sujas por mais que limpas.
No trajeto do tubo a senhora 907 tenta checar mentalmente o pagamento
mensal do seu seguro-funeral, mas só consegue contabilizar os beijos não
dados, as palavras não ditas, o amor não expresso, o perdão não concedido, os
anos de silêncio e o remorso. Sente na boca um gosto de ferrugem do tempo
que não volta. E o tempo não volta mesmo, porque a essa altura o Senhor 906,
na ilusão solícita de evitar a queda do tubo, acelera o passo a m de se
aproximar mais rapidamente, sorrindo ameaçador. A política da boa vizinhança
jamais se mostrou tão perigosa.
É
É então que a Senhora 907 decide fazer de sua saída uma entrada. Tenta
abrir a porta que já se encontrava destrancada e se atrapalha com a chave, que
roda no sentido anti-horário quando deveria fazê-lo no sentido oposto, e o
relógio que corre agora é o do tempo. Sem saber distinguir se aquela é sua mão
direita ou esquerda, o importante é que abra, a Senhora 907 arromba apressada
a sua garrafa-casa, como quem estoura champanhe sem tempo para
comemorações. Adentra o apartamento com sua fumaça cor-de-rosa, deixando
o tubo de álcool gel cem por cento lá fora, cem por cento no chão do corredor
imundo, inteiramente perdido com o tempo que não volta mais.
De um lado da porta, a Senhora 907 se desespera nos cálculos sobre seu
próximo ritual de limpeza. Do lado de fora, o Senhor 906 agora tem uma
interrogação no rosto fazendo as vezes de máscara. Olha com desprezo para o
tubo de álcool gel setenta por cento, dá de ombros, abre a porta do
apartamento irritantemente vizinho com qualquer mão, retira com a mesma
mão qualquer uma latinha de cerveja, de uma sacola qualquer entre as que
trouxe. Abre a lata, senta-se ao sofá, planta os pés sobre a mesinha de centro
onde alguns salgadinhos de ontem repousam mortos e liga a tevê para mais um
noticiário, que contempla sem esforço como quem observa uma paisagem pela
janela do quarto de hotel em frente ao mar.
Meio dia, nove minutos, quarenta e sete segundos, centésimo sexagésimo
quarto dia de quarentena.
Arma branca

Eliana Cardoso

Hoje a máquina de lavar roupa quebrou. Pode ser a gota d’água. O botão de
comando gira de modo contínuo, sem controle, como meus pensamentos.
Neste caso, diz o manual, chame um técnico. Ao lado do telefone me deparo
com as anotações de ontem.
Insônia? Sim.
Taquicardia? Também.
Falta de energia? Total.
Irritabilidade? Sem m.
Melancolia? Insegurança? Pensamentos negativos?
Desesperança.
Milhares de vidas se acabaram ontem. A gente se acostuma com os
números. Uma morte é uma tragédia, cem mil, uma estatística, disse um
ditador. E somos duzentos milhões de ratos incapazes de isolamento, vivendo
sem condições de higiene.
Vejo a roupa suja que se acumula no tanque. Escorre um pouco de água por
debaixo da máquina de lavar e se espalha no piso de porcelanato. Como pode
isso? Fui tão cuidadosa. Há dois meses, quando pensei que o m do mundo
estava chegando, veri quei o funcionamento dos eletrodomésticos, corri para o
supermercado e comprei álcool gel, desinfetantes, sprays, lenços, máscaras,
macarrão, arroz, sal, azeite, manteiga. E o pão de forma que coloquei no
congelador. O apartamento virou uma toca. Aqui me escondo. Daqui não saio
nem para caminhar na rua vazia em dia de sol.
Melhor louca e saudável do que equilibrada e morta? Alguns pesquisadores
a rmam que o vírus permanece nos pacotes que chegam da rua. Uso o serviço
de entrega e pago centenas de reais pela falsa segurança. Desembalo as compras
na área de serviço com a janela aberta. Lavo e desinfeto embalagens e produtos.
Compro máscaras e luvas. Deixo que as cartas entregues pelo correio
descansem 48 horas antes de abri-las. Passo álcool gel nas mãos a cada 10
minutos e limpo as superfícies dos móveis.
Telefono para a loja de máquinas de lavar. Atende uma gravação. Você ligou
para o lugar certo. Temos todas as marcas e assistência garantida. Digite o
número de seu CPF. Digite o CEP de sua residência. Tecle um para comprar.
Tecle dois para fazer um pagamento. Tecle três para assistência técnica.
Três.
Tecle um se a máquina está na garantia.
Um.
Tecle quatro se a máquina é Brastemp. Tecle cinco se a máquina é Eletrolux.
Tecle seis se a máquina é Consul. Tecle sete se a máquina é LG. Tecle oito para
outras marcas.
Oito.
Aguarde na linha para ser atendido. Se o tempo de espera exceder 30
minutos, a ligação será desconectada automaticamente.
Mergulho em expectativas sombrias. Se há saída, parece distante. O
caminho, incerto. Lá fora o sol brilha forte. A cortina fechada escurece o
quarto. Devo ter passado o produto errado no espelho, que cou embaçado.
Sua face de prata e cristal cobre metade da parede do quarto e re ete a
luminária redonda, que vira lua cheia, imóvel na bruma da meia-luz. Naquela
superfície lisa de guras invertidas, o encosto vazado da cadeira traça a imagem
de uma jaula vazia. Na mesa repousa uma jarra. Pétalas de rosa caíram entre
formigas invisíveis junto às patas do elefante do tapete. Sopra um resto de luz e
a brisa balança o vestido pendurado na porta do armário. Ao parco luar da
luminária, a superfície do meu espelho meio cego re ete o cemitério de letras
do livro esquecido sobre a cômoda. Para onde foi minha vaporosa indiferença
aos desastres da vida? Espelho que abandonou a exatidão, que fez você do meu
rosto? Da saboneteira acima da clavícula, o re exo de um outro eu mais
curioso me espreita. Seria preciso não este, mas um espelho d’água no qual
nunca me olhei, para reconhecer aquela que eu poderia ter sido e não fui, o
leãozinho afoito que há muito deixou de existir. Espelho, espelho meu, não
quero re etir sobre incertezas passadas. Fujo do quarto.
Chega de devaneios. Leio o jornal, ligo a televisão, navego pelas mídias
sociais. Repasso os números das fatalidades, do desemprego, da falta de
respiradores em hospitais lotados. Modelos preveem o tempo para sobrecarga
hospitalar e o tempo para reabrir os negócios. O peso da informação e o
contrapeso da desinformação viajam de mãos dadas com o coronavírus e a
marcha dos camisas pardas. Eles agora vestem verde e amarelo e acampam em
frente ao Congresso. A pandemia segue seu curso natural na estratégia
incompetente da imunidade de rebanho. O presidente da República anuncia
um churrasco. Nega o perigo. Declara inúteis os esforços e incertas as
vantagens dos que a ele se opõem.
Insisto na leitura do jornal. Encontro meu nome na seção de obituários. O
que estou fazendo ali? Leio a notícia da minha morte:
“Sara Bernardes foi encontrada morta na madrugada de ontem no Largo do
Arouche. Sara Bernardes, que desde 2010 abandonou os palcos e as novelas de
televisão, morava sozinha e não tinha parentes na cidade. A polícia identi cou
o corpo graças à fotogra a que um dos policiais, admirador da artista, guardava
na carteira. O enterro será hoje, sem a presença de amigos, pois existe a
suspeita de morte pela covid-19.”
Estou morta de fato? Deixei o mundo para sonhar eternamente? Não pode
ser. Com certeza sofro de alguma forma aguda de alucinação. Pulo da cadeira.
Bato os pés no chão. Coloco as mãos na mesa. Agarro de volta o jornal. Releio
a notícia. Nunca fui estrela de novela. Portanto, não pode ser eu. Volto à
realidade.
Meus pais eram fãs de Sarah Bernhardt, cujo nome escolheram para a lha.
No cartório, o o cial fez alguns ajustes para não causar vexame à menina. Virei
Sara Bernardes, como tantas outras. Ponho o jornal de lado. A identi cação
pelo policial me faz sorrir. Teria um fã se eu fosse a outra.
Vou até a área de serviço olhar a máquina de lavar roupa. Aperto um botão
a esmo. Ela responde com um ruído de carro de corrida que aos poucos
esmorece. Lembro-me do obituário e penso que não seria a primeira nem a
última vítima de uma troca de cadáveres nesta pandemia. Na Santa Casa de
Piracaia, Antônio, com suspeita de covid-19, e José Frederico, vítima de um
infarto, tiveram os corpos trocados. O enterrado com caixão fechado foi José
Frederico, que deveria estar no caixão aberto no velório. A lha olhou o
homem no caixão e não encontrou o pai. Meu caso de obituário prematuro é
menos trágico e bom motivo para enviar mensagens de WhatsApp aos amigos:
“Sara Bernardes, recentemente assassinada pelo novo coronavírus em notícia
de jornal paulista, ressuscitou. Tenho o prazer de contar a você que voltei do
inferno. Quem morreu foi outra. O diabo ainda não me carregou daqui”.
Chovem respostas, comentários e mensagens de apoio.
Então, você não morreu?
Morri e não morri. São as contradições da vida.
Foi milagre? Quem te salvou?
O diabo, que se assustou com minha gura sem maquilagem.
O que você fez quando a polícia reconheceu o cadáver?
Não era eu. Garanto que nem sei onde ca o Largo do Arouche.
Se roubaram seu celular, é preciso denunciar.
Roubar como? Eu não estava lá.
E eu que acreditei que você tinha sido mais uma vítima da covid-19!
Eu sou uma vítima. Faz sessenta dias que não saio de casa.
E o inferno, é legal?
Parecido com a vida por aqui.
O diabo é vermelho?
Não. Verde e amarelo.
Estou cá pensando... Se você voltou, não é a morta. E se é a morta, não
voltou.
Esquece. Não é hora de literatura.
“Fique em casa” aparece em mais da metade das mensagens que recebi até
agora. Mas há outras palavras edi cantes. Acalme-se. Não invente histórias.
“Vai passar” é o mantra do momento.
Deixo a máquina de lavar ligada na esperança de um milagre. Posso ouvir os
borbulhamentos e a vibração surda como a do gás se movendo no meu
intestino. O porteiro me chama ao interfone:
– Tem um cara no portão para a senhora. Disse que se chama Potifar.
– Não conheço.
– Disse que veio consertar a máquina lava e seca.
– Até que en m! Manda subir.
Abro a porta para o Potifar. Ele me olha, olha os papéis que tem nas mãos,
lê meu nome e pergunta:
– Sara Bernardes?
– Eu mesma.
– Deu no jornal que Sara Bernardes morreu. Encontraram o corpo no Lago
do Arouche.
– Não morri.
– Tá no jornal.
– Mesmo nome. Outra pessoa.
– Não tenho medo de assombração.
– Não sou assombração.
Potifar coça a cabeça, tira a máscara e limpa o nariz na manga da camisa.
– Fique calma, dona Sara.
– Seu Potifar! Não estou para brincadeiras.
– A senhora sabe de onde vem o meu nome?
– Potifar?
– Sim.
– Não sei.
– Do Egito, dona Sara. Sou conhecido pela minha inteligência.
– Tudo bem. E a máquina de lavar?
– Ela está ligada?
– Está ligada, mas não muda de ciclo.
– Não muda de ciclo?
– Não. O botão de controle gira, mas a única coisa que acontece é uma
variação no ronco da máquina.
Potifar espirra, dá alguns passos, para em frente da máquina de lavar e gira o
botão de controle. O corpo da máquina responde com um ruído agudo ao qual
se segue o som de um ronronar mortiço. Potifar olha o painel e me pergunta:
– Qual é a marca?
– Ariston.
– Aris, o quê?
– Ariston.
– Com essa não trabalho. Trabalho com Brastemp, Electrolux, Consul, LG e
tanquinho.
– E aí?
– Aí que essa... Ariston? Não conheço, não conserto.
– E por que aceitou o serviço?
– Porque recebo o preço da visita.
Potifar espirra e tosse. Aponto a porta da saída:
– Chega.
– Um momentinho, dona Sara. A senhora precisa assinar esse papel.
– Não assino.
– Bastam as iniciais. Aqui onde tem um x.
O interfone toca mais uma vez.
– Dona Sara? Está aqui um delegado de polícia. Disse que veio tomar seu
depoimento.
– Manda subir. Quem sabe ele prende o patife que está aqui.
– Patife, não, dona Sara. Potifar.
O delegado está na porta.
– Boa tarde.
– Boa tarde.
– Sou o delegado Heró lo. A senhora é parente da Sara Bernardes?
– Sou ela. Eu mesma.
– Não pode ser.
– Como não pode ser?
O delegado me estende uma foto.
– Olha o retrato de Sara Bernardes: loura, esguia, linda. Transmite calma,
ternura, inocência. A senhora, me desculpe, mas vou dizer. Nada a ver com a
senhora.
– Pois é. Nada a ver.
– Mas o nome é o mesmo. Ela era sua lha?
Potifar nos interrompe.
– Delegado Heró lo, sou o Potifar. Lembra de mim?
– Já nos vimos antes? Não estou lembrado.
– Claro que lembra. Dos tempos do laboratório Alexandrino.
– Você esteve lá?
– Por pouco tempo. Vi com que precisão o senhor escalpelava os réus ainda
vivos, bra por bra, durante oito dias.
– Isso é balela.
– Sei não, delegado.
– Já viu galo velho botar ovo de galinha?
– Essa é boa. E esse coronavírus? O senhor já viu?
Chega! Chega! Chega! Eu, sempre tão calma, estou histérica.
Completamente enlouquecida, cuspindo dentro da máscara protetora. Ouço
meu grito cada vez mais estridente: chega!
– Não chega, não, dona Sara. Tem de assinar o meu comprovante. Olha
aqui, delegado. A velha não quer assinar o comprovante da minha visita.
– O senhor sabe se ela tinha uma lha?
O delegado mostra o retrato de Sara Bernardes para Potifar. Potifar examina
o retrato amassado.
– Bem diferente dessa velha aqui. Mas Sara Bernardes foi o nome que ela
deu à loja da linha branca.
– Arma branca?
– Não. Linha branca. As máquinas que lavam, ensaboam, enxaguam,
esfregam, clareiam, puri cam, desinfetam, absolvem pecados. Que eu saiba
ainda não foram usadas como armas brancas. A não ser que o primeiro dia seja
hoje.
Heró lo deixa de seguir o argumento de Potifar e se vira para mim.
– Quero ver seus documentos, minha senhora.
Potifar esbarra na máquina cujo ronronar ca mais forte. O balde vazio em
cima dela balança e cai. Segue-se um martelar que parece vir da parte de trás da
máquina. Potifar tosse. Não sei se é ele ou a máquina que ronca.
Busco meu RG, CPF e comprovante de residência.
– Aqui está.
O delegado olha os documentos e tira um maço de papel do bolso.
– Assine aqui.
– Aproveita e assina meu comprovante também – diz Potifar.
Não assino nada. Antes que eu comece a gritar de novo, há um ruído de
motor vindo da direção da máquina de lavar que começa a tremer. O sol se
esconde. O dia escurece. Lá fora, o vento uiva e geme. A vidraça da janela
estremece tocada pelo vento que passa por frestas invisíveis. Uma lufada
violenta escancara a janela. Luz de raio. Trovoada. E a chuva despenca soberba
num tropel de cascata brava que invade a área de serviço. Imagino a cidade em
ruínas e cavalos alados em odisseia pelo céu escuro. Na mesa da cozinha,
espadas de estrelas brilham em suas capas de ferro. Os pratos voam da mesa
para o chão, santos guerreiros desvairados na conquista do espaço doméstico.
A máquina de lavar solta fumaça, apita, estremece. O hercúleo corpo branco
balança em espasmos veementes. De nada vale a trava da porta quando um
parafuso se desprende. Um estrondoso bamboleio escancara a tampa da lava e
seca. Voam pelos ares rolamentos, miolo rotor, correias, placa de potência.
Bendito parafuso que põe a correr meus inimigos. Potifar e o delegado
atravessam a porta num pulo e descem as escadas em disparada sem esperar o
elevador. Desligo a tomada da máquina da parede. O interfone toca ainda uma
vez. Não atendo. Vai passar, eu penso.
Feli“ aniversário, qainer

Francisco de Morais Mendes

Cinco pessoas de máscara num quarto, quatro delas cantando “Parabéns pra
você” e um homem emocionado recostado à cama.
O casal de lhos não se aproximou do pai, e as enfermeiras, depois de uma
delas repetir as recomendações para o paciente e os visitantes, deixaram o
quarto. O lho então apontou para o pai o rótulo do vinho.
– É para aguçar seu paladar, pai. Reconhece o rótulo ou eu devo ler?
O homem colocou os óculos, apertou os olhos como quem procura o foco.
Depois retirou os óculos e riu:
– Nessa distância, não preciso de óculos para reconhecer esse rótulo.
– Reconhece ou não, pai?
– Claro. Você é um perdulário, Humberto – respondeu, rindo.
Era um Pêra-Manca tinto.
– Isso é um estímulo, pai, para você sair daqui o mais depressa possível. Já
combinei com a Maria Paula, ela vai preparar seu peixe predileto para o dia da
alta, se lembra qual é?
– O dia da alta ou o peixe? Ah, peguei vocês. Querem testar minha
memória, não é? O dia da alta é como o dia da minha morte, nem adianta
insistir, eu não me lembro.
– Oitenta e cinco anos, papai – disse Maria Paula. – Você é mesmo uma
rocha, não é, seu Pedro? Vencer a doença nessa idade é para poucos,
pouquíssimos. Por isso, temos muito que comemorar. Nem pense em falar em
morte. Olhe o azul do dia lindo que está aí fora.
Olharam os três pela janela.
– Dia belo mesmo. Não sei como deixaram vocês entrarem aqui. Podem me
contaminar – ele disse, rindo.
– Não foi nada fácil – disse Humberto.
– Foi uma negociação dura – disse a lha. – Conseguimos autorização com
a ajuda do seu cardiologista. E ainda conseguimos trazer um bolo. Nem vamos
tocar nele. É todo seu.
Ele quis protestar, mas lembraram que seguiriam o combinado.
– Estou feliz com a visita de vocês, mas não é um dia feliz.
– Por que diz isso, papai? Todo aniversário é uma felicidade, é uma vitória
da vida. Por isso, zemos essa surpresa para você.
– Surpresas também tenho eu para vocês. A primeira delas é esta. Ele afastou
o lençol e sentou-se na beirada da cama. Não usava a camisola hospitalar, mas
um vistoso pijama verde.
– Estava guardado há uns dez anos. Presente de sua mãe. Triste ela não estar
aqui. Estão vendo, já posso andar. Tenho caminhado pelo quarto.
Aproximou-se da mesinha onde estava o bolo, perguntou se a embalagem
tinha sido desinfetada e, mesmo com a resposta a rmativa de Maria Paula,
usou um guardanapo para destampar o bolo.
Cortou um pedaço usando os talheres retirados de outra embalagem,
dizendo para os lhos que ali somente ele tocava, nem enfermeiro, nem
médico, e serviu-se do bolo.
– Vamos viver assim para sempre, existe uma la de vírus esperando para
entrar em ação, sabiam? Agora será cada um com seu copo, talheres, máscara.
Nada de abraços, beijos, isso tudo acabou. Um abraço? Nada mais anti-
higiênico.
– Sem exagero, papai. Logo a pandemia estará debelada, depois demora a
vir outra. Ou nem vem.
– Eu vejo o noticiário na televisão. O derretimento das geleiras está trazendo
para o leito dos rios vírus que estavam, digamos entre aspas, adormecidos, há
centenas, alguns há milhares, de anos. Encontraram um vírus que vivia nos
porcos há três mil e quinhentos anos. Imaginam o que é isso?
– Você devia evitar o noticiário, papai. É só tragédia.
– Tragédia é esse governo, mas disso não quero nem falar.
– Mais notícias ruins, por isso melhor nem ligar a televisão.
– Está muito bom esse bolo. Provem dele. Você que fez, lha?
– Não, papai. A Maura, sua neta, foi quem fez. Ela te mandou um beijo.
– E por que ela não veio?
– Ela preferiu não vir. Ela irá encontrar você quando sair daqui.
– Agradeça a ela. Muito bom o bolo.
Ele se afastou da mesinha, sentou-se à beira da cama.
– Estou surpreso com sua desenvoltura, pai. Muito bem. E a outra surpresa?
– Bem, a outra surpresa não é tão agradável quanto essa. Eu estar bem
sicamente não quer dizer nada, porque na minha idade pode-se morrer de
uma hora pra outra. Eu não vou viver mais muito tempo. Talvez eu nem saia
daqui.
– Não fale assim, papai! Justo no seu aniversário!
– Por favor, lha, deixe-me falar, eu preciso falar. Me ouçam, eu peço.
– Está bem.
– Uma tarde dessas vi um lme chamado Philomena, com “ph”, já viram?
Não? É daquele inglês, Stephen Frears. Numa noite de Natal, Philomena revela
à lha que tinha outro lho, que teria cinquenta anos. O lho fora tirado dela
por umas freiras sacanas e dado ou vendido para um casal de norte-americanos.
A lha conta a história para um jornalista e, com a ajuda dele, Philomena sai à
procura do lho. É uma história real. O jornalista trabalhou com Tony Blair, o
primeiro-ministro. Esse lme me fez lembrar de um irmão que eu tive, o
Wainer.
– Irmão? Você nunca disse que...
– Não, não. Não era irmão de sangue. Era de coração. Meu melhor amigo.
Essa história tem setenta anos.
A voz do pai tornara-se carregada de gravidade, dissipando a atmosfera de
descontração. A sombra da tarde parecia cair no quarto, embora lá fora
houvesse o azul incomum do céu de outono.
A lha pensou em perguntar se podia acender a luz, mas não o fez.
– Você acha que é o momento de falar disso? – perguntou Humberto.
– Sim – disse o pai, depois de alisar a pele, começando da nuca e
circundando o pescoço, para deter-se com a mão espalmada na garganta, um
gesto bem característico dele. Em seguida, ele pressionou o nó dos dedos na
palma da outra mão, revezando as mãos, como se zesse um exercício.
– Vocês são lhos leais, que eu amo, e é de lealdade e de amor que eu vou
falar. É, a seu modo, uma história de amor e de amizade.
Fez uma pausa. Olhou pela janela.
– Me lembrei agora da mãe de vocês. Ela conhecia parte dessa história, mas
morreu sem saber o que vou contar.
Outra pausa. Repete o gesto de levar a mão da nuca à frente do pescoço.
– Engraçado, há pouco tempo eu comecei a me perguntar se Wainer era
nome ou sobrenome. Não me lembro ou nunca soube se era nome ou
sobrenome. Meninos não se interessam por essas coisas. É tudo meio estranho,
e eu sei, os remédios que estava tomando têm efeitos colaterais, ora eu tinha
visões, ora confundia nomes. Se Wainer for sobrenome, como suspeito, eu
esqueci o nome do meu melhor amigo. Quando eu sair daqui, talvez eu vá ao
cemitério procurar o nome no túmulo dele. Mas isso também não tem muita
importância. Wainer, aliás, é um belo nome.
Pedro Rocha abaixou um pouco o rosto e contou a seguinte história: ele
tinha treze anos e Wainer, quatorze. A diferença de idade era de três meses.
Estudavam em escolas diferentes, mas, fora o tempo da aula, estavam sempre
juntos. Faziam juntos os deveres, brincavam juntos, liam juntos o mesmo livro.
Eram da mesma turma, jogavam no mesmo time, estavam sempre no mesmo
grupo em qualquer brincadeira que dividisse a turma.
Combinaram de fazer um acampamento, numa manhã de sábado. Não
teriam aula, devia ser um feriado.
– Talvez o sábado de Carnaval. Não há outro feriado nesse período.
O bairro onde moravam terminava numa avenida em obras, inacabada. Do
outro lado, começava um morro e, quando se alcançava talvez a metade do
percurso até o topo, havia uma planície, um descampado onde os garotos
costumavam jogar futebol. Com as obras de abertura da avenida, cou difícil
passar para o outro lado. O lugar foi abandonado pela garotada e o mato estava
tomando conta de boa parte do terreno. Então era o lugar ideal para se ngir
uma oresta e acampar.
Saíram cedo, por volta das sete e meia. Na véspera, haviam preparado
sanduíches de pão com salame, uma garrafa de suco de laranja para cada um.
Levavam também água e barras de chocolate. Um cobertor velho serviria de
coberta para a cabana, caso viesse o sol, ou de cobertor mesmo, caso lá em cima
estivesse frio. Juntaram tudo numa única mochila e tomaram o rumo do morro
– da montanha, na imaginação deles.
Na avenida, deserta àquela hora da manhã, foram surpreendidos por um
grupo de meninos que iam jogar bola. O que aparentava ser o chefe do grupo
mandou-os parar e, brincando de policial, colocar as mãos para cima,
encostados à parede. Wainer quis argumentar, mas o menino deu nele um
empurrão, dizendo que era melhor obedecer. Os outros apenas acompanhavam
a movimentação do chefe. Enquanto repetia que era melhor carem quietos,
tomou a mochila de Pedro.
Depois de examinar o conteúdo da mochila, disse que cariam com as
mercadorias, e que os dois voltassem para casa. Seria pior se não obedecessem.
Wainer pediu a interferência dos meninos, pois aquilo era sacanagem e
covardia. Os meninos nada zeram. O chefe deu-lhe um tapa de mão aberta na
orelha e perguntou quem era o sacana e o covarde. Wainer disse que era ele,
covarde porque fazia aquilo em bando, sozinho não mexeria com eles. O
menino aplicou-lhe, com as mãos em concha, um tapa nas duas orelhas,
deixando-o atordoado, e gritou para irem andando, senão o pau ia comer pra
valer.
– E assim terminou nosso passeio, e começou o tormento de Wainer.
Ao contrário da pessoa risonha de antes, ele se tornou arredio, a cada dia
mais fechado, trancando-se numa cápsula de tristeza e silêncio. Afastou-se do
amigo, os encontros rarearam. Pedro sabia que a culpa era daquele menino,
mas a tratava como se fosse sua também, por não ter reagido como Wainer.
– Eles eram nove ou dez e tomaríamos uma surra medonha. Eu comecei a
afundar junto com Wainer, mas tínhamos uma natureza diferente: eu não
conseguia car muito tempo no fundo, precisava subir para respirar. Quanto a
ele, metia-se cada vez mais no atoleiro.
Pedro tentava minimizar a importância da agressão, dizendo que qualquer
um deles podia comportar-se daquela maneira em turma, que a valentia era...
Não, Wainer não aceitava esse argumento. Para ele, a maldade não era uma
escolha, ela existia e alguns eram simplesmente maus. Os maus não eram
produto do meio, como tentava ensinar o professor de história, ou do
demônio, como insistia o professor de religião. Aquele acidente tinha mexido
muito fundo com todos os seus valores.
A mãe de Wainer acabou levando-o ao médico, o médico o encaminhou a
um psiquiatra, e o psiquiatra receitou a arma que iria matá-lo. Na manhã do
dia em que completaria quinze anos, Wainer foi achado morto pela mãe. Na
madrugada, tinha tomado a caixa inteira de remédios. Uns dois meses depois
da agressão.
– Você tem quatorze anos e vê seu melhor amigo se suicidar. Você faz o quê?
Uma revoada de pássaros em algazarra atraiu seu olhar para a janela. E ele
voltou a abaixar os olhos, sem olhar os lhos.
– Eu me tornei um pouco Wainer, decidido a viver por nós dois. Me
aproximei da menina de quem ele gostava na escola, foi minha primeira
namorada, um ano mais tarde. Relia os livros de que ele gostava, estudava as
suas matérias preferidas, mesmo se eu não gostasse; ou seja, durante algum
tempo eu vivi a vida que Wainer não pôde viver.
Calou-se.
– Bem, papai, você já contou a história do seu amigo. Que história triste.
Agora descansa. Daqui a pouco vai anoitecer. Virão nos pedir para ir embora.
E ela tentou se conter, esforçando-se para não chorar.
– Está bem, vou fazer uma pausa. A história não acabou. Quero ir até o m.
A parte que sua mãe não conheceu.
– Não é melhor acender a luz? – disse Humberto.
– Não faço questão, mas se você quiser... Olha como o azul é bonito pouco
antes do anoitecer.
Humberto olhou para a janela, depois, para a irmã, mas não se moveu para
ir acender a luz. Daí a pouco, Pedro Rocha voltou a falar:
– Vida que segue, como dizem, salta pra vinte anos mais tarde. Eu tinha
trinta e quatro anos e um carro velho. A região onde tínhamos tentado
acampar havia virado um bairro. Ruas cortavam o morro e foram construídos
conjuntos de prédio, virou um bairro operário. A avenida era meu caminho
para o trabalho. A outra parte da história começa no bar onde parei uma noite
para comprar cigarros.
O homem no balcão era quase cego, praticamente cheirava o dinheiro e
alisava as moedas para veri car o valor. Enquanto eu esperava pelo cigarro, um
sujeito que bebia num canto levantou-se da mesa. Àquela hora, sete da noite, já
estava bastante bêbado. Parou perto de mim, me olhou xamente, disse “oi” e
seguiu a caminho do banheiro.
Peguei o cigarro, dei dois passos em direção à porta e parei, com uma
certeza: era o cara que tinha batido em Wainer. Se antes era mais alto, agora
mal dava no meu ombro. A imagem me veio nítida, sem qualquer dúvida. Era
ele, acabado, envelhecido. Eu parei ali porque o trânsito estava péssimo,
naquele horário era sempre assim. Então acendi um cigarro e, na porta do bar,
decidi esperá-lo voltar. Para con rmar minha certeza.
Passei a parar ali duas vezes por semana, para comprar cigarros? Talvez por
outro motivo. Ele estava sempre lá, bebendo sozinho. Numa noite, me
convidou para beber.
Sentei-me de costas para o homem do balcão. Algo em mim conspirava
desde o dia em que reconheci o asssassino de Wainer. Tomei a cerveja com ele,
o z a falar de si, e ele falou. Morava com a mãe, teve por um breve período
uma mulher, não trabalhava mais, tinha conseguido uma licença por invalidez
e esperava convertê-la em aposentadoria.
Podia ter me dado por satisfeito por saber da merda em que vivia o cara,
mas isso não aconteceu. Uma noite estacionei pouco antes da porta do bar,
veri quei se ele estava lá dentro e quei no carro esperando. Ele saiu, veio
caminhando. Ele passou e eu deixei o carro, o segui. Ele começou a subir a rua.
No primeiro quarteirão, um muro altíssimo ocupava toda a extensão da rua.
Nesse muro, ele se amparava. Seria uma presa fácil. Do outro lado, lotes vagos.
Faço aniversário no mesmo dia que Wainer, só que três meses mais tarde.
Na véspera do meu aniversário, parei o carro ali nas imediações, atravessei para
o outro lado da avenida, para não ser visto, e andei até poder ver o interior do
bar. Me certi quei de que lá estava ele, lá estava o homem quase cego.
Voltei para o carro. Demorou um pouco mais, ele saiu do bar, sei lá, quase
às nove horas. Começou a subir a rua, fui atrás dele. Subia devagar, escorando-
se no muro. Apressei o passo e logo o alcancei. Ele me reconheceu, me
cumprimentou. Minha intenção era dizer a ele o que ele tinha feito, mas não
consegui. Dei nele uma gravata, e nem precisou muita força. Ele me pareceu
uma criatura feita de papel, resmungava alguma coisa, e eu não sabia o que
fazer, pensei em bater com a cabeça dele no muro, mas não z isso, virei o
corpo para o lado da rua e atirei-o para a frente, deu dois ou três passos e
estatelou no calçamento. Desci a rua, entrei no carro e arranquei. Tive de parar
um pouco adiante, meu corpo inteiro tremia e eu precisava chorar. Eu não
chorei no enterro de Wainer. O choro guardado todos aqueles anos.
Dias depois, vi a notícia no jornal. Atribuíram a morte a uma queda, ao
tentar subir a rua íngreme alcoolizado.
Pensei em procurar a polícia, mas depois considerei que a polícia nunca
procurou o assassino de Wainer, então cavam elas por elas, jogo empatado. Eu
não sentia remorso, eu não sentia culpa. Essas coisas te empurram para o colo
da polícia.
No dia seguinte, pude fazer algo que repeti durante todos esses anos.
Acordar e dizer: “Feliz aniversário, Wainer”.
Passei a comemorar o aniversário de Wainer junto com o meu. Bom,
passaram-se cinquenta anos. O crime está prescrito. E é isso, meus lhos. Fim.
Por um momento, os lhos nada disseram, presas da perplexidade. Depois
Maria Paula falou:
– Papai, por que justo hoje você resolveu desabafar?
– Ver aquele lme me trouxe essa história de volta, minha lha. Me fez tirá-
la do lugar escuro onde estava guardada. Eu vinguei meu amigo. Foi um gesto
de amizade, de lealdade. Mas a morte foi acidental. Eu não queria matar o
sujeito; só machucá-lo, dar-lhe uma lição.
– Mas, pai, o senhor pensou em fazer justiça agredindo um bêbado?
– Não é fazer justiça, Humberto. Não é mesmo. É vingar, é outra coisa.
Hoje, pela manhã, quando pensei em contar a vocês, me ocorreu a imagem de
estar embolando um papel para jogar fora. Tirando isso de mim.
– Compreendo, compreendo.
– Da minha parte, nada há a fazer. Já cerquei essa história por todos os
ângulos. Foi um gesto de amizade, de lealdade. Já pensei ter sido também uma
traição a Wainer, porque a angústia que o matou tinha a ver com violência sem
motivo. Justi quei com a aplicação da lógica da guerra, ir atrás do inimigo e
eliminá-lo. Mas, como já disse, a intenção não era matar, era dar uma lição no
sujeito. Cada vez que remoía o caso, chegava a uma conclusão diferente. Mas
hoje, não chego a lugar nenhum. Somente a uma grande indiferença, um
grande nada. Desculpem-me, pela crueldade de contar isso a vocês.
Quando deixaram o hospital, Maria Paula dirigia, e Humberto sentia-se
levemente embriagado.
– Uau, até parece que eu bebi desse vinho.
Tardia, despontava a lua cheia e imensa. A lha começou a falar:
– Ele tem uma nebulosa na cabeça. Junta problema neurológico com os
medicamentos, o estresse da internação e mais esse lme. Ele cou muito
impressionado com o lme.
– Ele não tem problema neurológico. Ele seria capaz de matar alguém? Você
acha?
– Nunca. Nunca. Com toda certeza, nunca.
– E se for verdade essa con ssão?
– Ele pode até ter dado uns trancos num bêbado, contou com muita
convicção. Mas não o matou. Isso pode ser efeito de uma fantasia longamente
trabalhada, de um desejo não consumado de matar, de vingar o amigo. Da
culpa de não ter reagido. Uma raiva nunca resolvida. Pode ser tudo. Mas,
matar?
– Nem bater num bêbado, ele bateria. Ele nunca teve per l para isso. Olha
essa lua, Maria Paula. Como somos pequenos!
Incomodada, Maria Paula procurou o arquivo do maior jornal da cidade.
Pediu licença para pesquisar, deu as datas prováveis que lhe interessavam.
O jornal estava sendo informatizado, mas não haviam alcançado ainda o
período desejado por ela, era bastante antigo. Ofereceram-lhe um acervo de
micro lmes e ela consumiu ali algumas manhãs. Quando quase desistia,
encontrou a notícia sobre a morte de um bêbado; as características do local
lembravam a descrição feita pelo pai.
A ocorrência foi tratada como acidente. Ela esquadrinhou o jornal dos dias
seguintes para saber se o caso tinha sido encerrado. Na edição de uma semana
mais tarde, encontrou numa nota curta a menção à suspeita de assassinato do
homem. Marca no pescoço da vítima, mencionada na autópsia, poderia indicar
sinal de luta. Conhecidos da vítima, porém, diziam que ele era praticamente
cego, podia ter tropeçado e caído.
Ela voltou ali mais algumas vezes, pesquisou oito meses de noticiário
policial sem encontrar qualquer outra referência ao caso.
Humberto e Maria Paula foram buscar o pai no hospital. Chovera de
madrugada, e a manhã tinha o céu limpo. Esparramado no banco de trás,
Pedro Rocha falava com animação, chegou a pensar que não veria novamente
um céu daqueles, aquela paisagem. Parecia estar completamente lucido, livre
dos remédios.
– É como se eu estivesse chegando a uma cidade estrangeira, numa viagem
há muito tempo desejada.
Os lhos compartilhavam a alegria do pai. Começaram a brincar,
identi cando monumentos estrangeiros na paisagem. Vendo uma praça, Maria
Paula perguntou:
– E ali, papai, poderia ser a entrada do Palácio de Buckingham ou do Hyde
Park?
Ela queria e tentou evitar o assunto, mas não se conteve:
– Papai, o senhor não matou aquele homem, não é verdade?
– Você não acreditou na minha história, Maria Paula. Podemos fazer o
seguinte: pesquisar num jornal da época. Se você zer questão... É uma prova.
– As notícias não provam nada, papai. Todo dia alguém morre e a polícia
nunca conclui se foi acidente, assassinato ou sei lá o quê. O que mais tem por
aí é crime sem solução.
– Tudo bem, minha querida. Crime não solucionado... Não precisa car
irritada.
Voltou a olhar pela janela, ver a paisagem da manhã era encontrar de novo
um sentido para seguir vivendo, alongando a boa sensação e o prazer de estar
vivo, depois de um tempo cercado pelas paredes do quarto de hospital, dos
aparelhos de hospital, e médicos e enfermeiros e todos aqueles uniformes.
Fez um carinho no cabelo de Maria Paula.
– Se bem conheço minha lha, você já pesquisou os jornais e já sabe o que
há para saber. Então podemos mudar de assunto. Vamos falar daquele vinho,
Humberto, aquele vinho magní co. Quando você vai preparar o peixe, Maria
Paula? Hoje ainda dá tempo ou vai car para amanhã?
Diálogo virótico

Frei Betto

I
E agora?
Agora o quê, companheiro?
Estamos fritos. Esse povo conseguiu deter o nosso avanço em pouco tempo.
Ora, Corona, você wsabe como os chineses são disciplinados. Funcionam
como um exército. Quem libertou um país deste tamanho do colonialismo
euronipônico, haveria de nos enfrentar com agilidade. E ainda mais agora, que
contam com avançadas tecnologias que permitiram detectar com rapidez cada
pessoa que conseguimos infectar.
Felizmente, caro Covid, logramos ultrapassar a muralha da China. Bem que
você teve a brilhante ideia de nos introduzir nas equipes de resgate de
estrangeiros que pousaram em Wuhan para levar de volta americanos, franceses
e ingleses.
Mal sabiam eles que, ao penetrarmos na célula humana, em menos de vinte
e quatro horas nos reproduzimos em cem mil cópias! Os humanos são a nossa
salvação, Corona. Fora deles nosso prazo de validade é muito curto.
Sim, Covid. Segundo nosso Manual de Sobrevivência, podemos ter
brevíssima vida útil em superfícies plásticas e metálicas. Mas fora da célula não
temos salvação.
Nossa saída, agora, é emigrar. Vamos acertar o seguinte: eu viajo pelo
mundo e você ca aqui monitorando, combinado?
Combinado, Corona.

II
Olá, Covid, como vão as coisas aí na Itália?
Maravilhosas! Giuseppe Sala, prefeito de Milão, declarou que não
representamos nenhuma ameaça. Em poucos dias, nossos replicantes já zeram
um enorme estrago na Lombardia. São centenas de mortos a cada vinte e
quatro horas e milhares de infectados.
Parabéns, Covid! E as outras regiões do país?
Tomaram precauções. A partir da experiência dos chineses, adotaram
medidas preventivas rigorosas, o que di culta a nossa disseminação. Todo
mundo ca em casa, as ruas estão vazias e o comércio fechado. Todos usam
máscaras e lavam as mãos diversas vezes ao dia.
Não é uma boa notícia, confesso. Embora sejamos resistentes aos mais
potentes antibióticos, descobriram o nosso calcanhar de Aquiles – o sabão.
Impossível suportar uma bolha de sabão. Estoura a nossa pele e nos leva
imediatamente a óbito.
As máscaras, Corona, retêm as gotículas que nos transportam. Felizmente
encontro aqui gente que não faz o uso correto delas e a todo o momento leva
as mãos ao rosto.
Esses são os nossos aliados, Covid, considerando que temos apenas três
portas de entrada no corpo humano – olhos, narinas e boca. Quanto mais
colocarem as mãos no rosto, mais nos liberam o trânsito.
Avançamos também no Reino Unido, cujo primeiro-ministro andou nos
desdenhando. Então, decidi infectá-lo. Foi parar num hospital público, onde
esteve aos cuidados de uma enfermeira lipina e um enfermeiro português.
Logo ele, o homem do Brexit, que defendia a privatização do sistema de saúde
e a expulsão de imigrantes e refugiados do país!
Bem feito, amigo! Assim ele abaixa aquele topete despenteado. Quais seus
planos agora?
Viajar a dois países cujos presidentes são nossos aliados – Estados Unidos e
Brasil.
Excelente ideia, companheiro! Vá em frente!

III
Aqui nos Estados Unidos, caro Corona, nosso avanço colhe o maior sucesso!
Comecei por Nova York, a m de dar uma rasteira na petulância da cidade. Ela
se julga o umbigo do mundo.
Então encontrou condições favoráveis?
Muito. O presidente Trump me deu o green card no mesmo dia em que
cheguei. Favoreceu-nos muito ao minimizar o nosso potencial de letalidade.
Pelo jeito, aqui teremos mais êxito. Milhares e milhares de mortos! Diante do
desespero da população, Trump sugeriu que os infectados se curassem com
injeções de desinfetante. No primeiro dia, após o anúncio, apenas em Nova
York morreram trinta pessoas que deram ouvidos à Casa Branca.
E o Brasil?
Também o presidente preparou um terreno muito propício à nossa
expansão. Declarou que o nosso efeito na saúde humana não passa de uma
“gripezinha”, e todo m de semana ele dá o exemplo de que não se deve
guardar quarentena. Assim, circula pelas ruas sem máscara, põe as mãos no
rosto, cumprimenta e abraça as pessoas. Um grande aliado!
Tive notícias aqui, Covid, de que o SARS e o MERS, gerações viróticas que
nos antecederam, estão com muita inveja de nosso sucesso. Não conseguiram
se disseminar tanto como nós e foram logo contidos por e cazes vacinas.
Vai ser difícil os humanos nos deterem, Corona. Os laboratórios atuam na
lógica capitalista, de acirrada concorrência. Os da Alemanha não compartilham
suas pesquisas com os dos Estados Unidos e nem os deste país com os da
França. É a nossa sorte. Houvesse cooperação entre eles, uma vacina já teria
sido criada para nos exterminar.
Que belo estrago causamos, amigo! O sistema capitalista cou de joelhos.
Agora as Bolsas de Valores deveriam ser chamadas de Bolsas de Desvalorização,
tão profunda foi a queda do valor das ações. Com a redução dos transportes
terrestres, aéreos e marítimos em todo o planeta, o preço do barril de petróleo
despencou e as empresas petroleiras já não dispõem de tanques para estocar
combustível. O desemprego aumentou em todo o mundo. Nos Estados Unidos
subiu, em duas semanas, de 16 milhões de desocupados para mais de 35
milhões. O rombo na economia global será maior do que o causado pela crise
de 1929, a grande depressão.
Quem manda essa gente não investir em sistema público de saúde!
Transformaram a medicina em mercadoria e hastearam, como panaceia para
todos os males, a bandeira da privatização. Resultado: falta o básico nos
hospitais, como pessoal quali cado, respiradores, equipamentos de proteção
individual, e até álcool em gel, essa gelatina que nos faz escorregar para o
corredor da morte.
Não sou ingênuo, Covid. Sei que um dia seremos contidos por uma vacina.
O que me consola é a certeza de que teremos descendentes, assim como somos
o nono galho de nossa árvore genealógica viral.
Por que diz isso com segurança, Corona?
Porque os humanos continuarão a criar condições para novos coronavírus
enquanto devastarem o planeta, alterarem seu equilíbrio ambiental e
aumentarem o aquecimento global. Apesar da rasteira que levaram agora com a
nossa ofensiva global, os humanos voltarão a ser indiferentes à desigualdade
social, e bilhões deles não terão como sobreviver senão em locais desprovidos
de saneamento básico e, portanto, propícios ao surgimento de nossos
descendentes.
Medo de respirar

Ivan Angelo

No primeiro mês da pandemia, quando ainda não haviam proibido o acesso


das pessoas às praias do Litoral Norte e uns restos de calor do verão atraíam
para a orla, como sereias, os incautos turistas daqueles dias que prenunciavam o
outono, quando o mar ca gelado e se esbate em advertência, a família
aproveitava o sol daquele último domingo antes da proibição geral.
Ninguém na água, arrepiante. Estavam na areia, ao sol ameno, a família e as
famílias, o marido, a mulher, o lho, a lha e as famílias. Iam àquela praia nas
férias de todos os anos e nos feriados de todos os meses porque gostavam do
lugar, as crianças cresceram ali. Mantinham um pequeno apartamento de praia
a duas quadras da orla.
Sem que as famílias se dessem conta, o mar cou estranhamente calmo. Os
que estavam na praia não souberam dizer, mas supunham que ele foi cando
calmo muito lentamente, a ponto de não se perceber; só poderia ter sido va-ga-
ro-sa-men-te, porque antes, quando chegaram à praia, ele não estava assim, liso
como um lago. Aquele esbater-se incessante e ruidoso havia se tornado uma
respiração de bebê.
Não perceberam também quando o homem, o marido, se encaminhou para
a água. O certo é que quando atinaram ele já estava com a cintura encoberta,
mais tarde alguém disse que ele caminhava tranquilo, e entrou e avançou sem
que a água oferecesse ao menos uma leve resistência ao seu avanço, sem aquela
pequena luta que é o entrar na água do mar, avançava como se tivesse pés
pesados e estáveis, pés de pedra, disse um, pés deslizando como se fossem
peixes, disse outro, e logo os ombros sumiram, e muitos gritavam chamando-o,
a mulher, o lho, e a cabeça dele sumiu e ele não ressurgiu – não se debatia! –
nem voltou.
Por vários dias os bombeiros procuraram o corpo nas praias agora desertas,
interditadas. Não sabiam como deveriam se dirigir à mulher estupefata que os
procurava da manhã à tarde em busca de uma notícia, um sinal, um aceno de
Deus. Diziam dona, só isso: dona. Nada ainda, dona. Fique em casa, dona,
cuidado com o vírus. Descansa um pouco, dona. Qualquer novidade a gente
chama a senhora, dona. Evitavam referir-se a ela como a viúva, ou a mulher do
desaparecido, ou a abandonada, ou a coitada; falando com o pessoal da
imprensa diziam apenas, respeitosamente, a senhora. Repórteres foram
amolecendo o corpo com a falta de novidades sobre o homem que desapareceu
no mar, passando a ocupar-se ora com uma sur sta que decidiu brigar contra a
proibição de car na areia ou entrar no mar, alegando que era pro ssional, que
precisava treinar, que ia perder seu patrocínio, esbravejando arrastada pela
polícia, abraçada à sua prancha; ora com um dono de hotel que reclamava
compensações do governo porque os turistas estavam impedidos até mesmo de
tomar refeições no estabelecimento, estrada fechada por barreiras, daí a pouco,
dizia, ia ter de pôr na rua os empregados; e ora com uma quantidade de
perplexas quituteiras que sustentavam suas famílias vendendo empadinhas,
coxinhas e cocadas para os turistas nas praias – e agora?
No décimo dia a senhora tomou a decisão dolorida de subir a serra de volta
com os lhos, levando no banco do carona aquela ausência, a não morte
inexplicável. Os lhos de cinco e sete anos iam encolhidos no banco de trás do
carro, abraçados com seu medo do que e do como ia ser. Quando chegaram, a
incontrolável, barulhenta cidade de São Paulo era outra, chocante: parada, ruas
desertas, silêncio. Como aquele dia na praia, em que alguma coisa poderosa
tinha parado o mar. Agora era ela, mãe, quem entrava naquele oceano alisado,
e sentiu-se parte de uma coisa maior, incompreensível, forte e inevitável.
Aquilo de certa forma a paci cou, não seria só ela a desgraçada.
Anoitecia, parou na padaria para levar pão, leite e frios para casa, e foi
barrada por um funcionário de máscara portando um esguicho de álcool gel:
proibido entrar sem máscara. Amarrou a echarpe de seda sobre o nariz como
um bandido de faroeste, aceitou uma borrifada nas mãos e pôde entrar. Na
farmácia, já minguavam álcool gel e máscaras, comprou o resto. No
condomínio, pediu ao lho que fosse buscar a correspondência na portaria
enquanto descarregava o carro e ele voltou com a notícia de que o seu Geraldo
zelador tinha morrido dois dias atrás com a peste, foi a palavra que o porteiro
de máscara usou: peste. Era obrigatório usar máscara no prédio e passar álcool
gel nas mãos antes de entrar no elevador e ao sair também, borrifar com álcool
70% tudo que entrava no prédio, inclusive a correspondência, as compras, os
sapatos e as patas dos cachorros. A piscina estava fechada, o parquinho, a
brinquedoteca e a sala de ginástica. A senhora alimentou as crianças, esperou
que adormecessem respondendo suas perguntas irrespondíveis sobre o pai, a
escola, o amanhã de manhã. Adormeceu de puro cansaço e acordou no meio
da noite com o marido deitado ao lado dela. Sufocou um grito de susto e era
um apo de sonho.
De manhã procurou a vizinha de porta, Elêusis, para avisar que estava de
volta e contar por alto que o marido havia desaparecido no mar. Eu soube,
disse a vizinha, a televisão deu, compartilhamos no WhatsApp das mães do
prédio. Não é todo dia que a gente conhece alguém que apareceu na televisão.
Coisa estranha, não? Tá acontecendo muita coisa estranha. Sabe a vizinha aqui
debaixo, a Marli, do sétimo? A mãe dela tinha câncer, lembra?, morava na
Penha. Ela começou a ter convulsões, foi levada de maca para o hospital
público da Lapa, nem deixaram a Marli entrar, por causa do coronavírus.
Passou a noite, ligaram de manhã para a lha ir até lá autorizar a cirurgia do
braço quebrado em três lugares. Quebrou lá, olha que absurdo, caiu da maca,
parece, tinha dormido na maca, faltam leitos. Não deixaram a Marli entrar.
Dia seguinte ligaram para dizer que não foi feita a cirurgia porque a mãe estava
com a covid-19. Morreu durante a noite, assim, pá-pum, dois dias. Não podia
levar para enterrar, fazer velório, nada. Ela insistiu, foi lá, insistiu, acabaram
perdendo a paciência e falaram vai lá pegar, tem dez corpos embrulhados em
sacos pretos lá no chão, e ela foi e não tinha ninguém para ajudar a abrir os
sacos amarrados, um moço ajudou a abrir, abriu uns três ou quatro, sei lá, e
encontrou, mas não pôde levar para enterrar no jazigo da família, podia só
colocar uma plaquinha, marcar o lugar do sepultamento e só retirar três anos
depois, é a norma agora. A vizinha fez uma pausa, suspeitando que falara
demais com uma pessoa que estava ainda traumatizada, e se despediu dizendo:
alguma coisa nós zemos pra Deus.
Não teve pressa para abrir a correspondência acumulada, levou dias. Havia
um comunicado da escola avisando que as aulas estavam suspensas, as crianças
teriam aulas on-line e os pais deveriam apanhar as apostilas na portaria da
escola ou no portal da internet. Além de dona de casa e gerente de marketing
de venda de joias pela internet, professora primária. No telejornal da manhã
apareceu uma mulher hospitalizada com covid-19 mandando recado para os
lhos e netos, dizendo que se sentia bem, recuperada e duas horas depois estava
morta. A senhora separou na correspondência os boletos bancários, as contas
de luz e telefone, os pedidos de dinheiro de ONGs, jogou no lixo os folhetos
de propaganda e chorou.
– Mamãe, por que você tá chorando?
Atrás dela, os pezinhos descalços da lha não zeram ruído e ela preferiu
mentir:
– É que eu preciso ir ao banco, não tenho onde deixar vocês. A vovó, mãe
do papai, está com a doença.
– O papai tá aqui, ele falou comigo de noite.
Chorou no abraço, irmanadas pelas sensações noturnas. Não podia contar
com a própria mãe nem com o pai, dois alucinados que andavam enrolados na
bandeira do Brasil em manifestações na Avenida Paulista gritando contra as
máscaras, o isolamento social, o fechamento do comércio, o prefeito, o
governador. Queriam o quê, morrer? Ou que ela morresse, que os netos
morressem?
– Você ca na Elêusis? Lá tem peixinho, cachorrinho...
A gerente do banco disse que a apólice do seguro de vida estava em ordem,
porém sem o atestado de óbito não poderia iniciar o processo de indenização.
Sem o corpo não conseguiria o atestado. É meio demorado, mas a senhora
pode abrir um processo de declaração de morte, com testemunhas e laudo dos
bombeiros. É, ia demorar.
Outro impasse na la do caixa, ela com pressa. Lá dentro da área de
atendimento, demora, demora, e os de fora ouviam o caixa falar repetidamente
“digite a sua senha”. Por causa da máscara do caixa, o senhor surdo não
conseguia fazer leitura labial e não entendia o que este lhe pedia. Os
impacientes da la berravam para o caixa tirar a máscara ao falar com o cliente
surdo, e o caixa gritava de volta que não podia de jeito nenhum, poderia ser
suspenso ou despedido por não cumprir a nova norma obrigatória. A senhora,
apreensiva com os lhos, foi lá dentro, abaixou a máscara e escandiu para o
cliente surdo: digite a sua senha! Alívio da la, do caixa, do homem. Agora é
isso em todo lugar, queixou-se ele. Na saída do banco um homem sem máscara
com duas crianças pedia dinheiro, a senhora deu-lhe algum e ofereceu-lhe duas
máscaras, que ele não quis, obrigado, pobre morre de corona ou de fome, tanto
faz. Tarde da noite, uma sexóloga entrevistada na tevê dizia que a masturbação,
considerada um pecado, um vício ou uma perversão décadas atrás, era agora até
recomendada pela Organização Mundial da Saúde como a forma de sexo mais
segura na pandemia, além de relaxamento para as tensões e carências da
quarentena. Olhou para o lado na cama e o marido sorria com malícia.
Desenvolveu na semana, excitada, uma campanha para venda de joias pela
internet com o tema do sacrifício dos prazeres durante o con namento. Você
tem sacri cado na quarentena todos os seus prazeres – seria o áudio de uma voz
cálida, insinuante, cheia de promessas, acompanhando as imagens –, o
cinemão com pipoca, namorar, dançar agarradinho, paquerar, o restaurante, o
shopping, o teatro, shows, baladas – é hora de compensar tudo isso dando a si
mesma muito prazer, o prazer íntimo, insubstituível de uma bela joia. Os
diretores aprovaram na hora. Creditou aquele gol ao sorriso noturno do
marido.
Passou a ter vontade, mas acabava esquecendo, coisas demais para fazer.
Acompanhar as videoaulas do lho, seis matérias, no momento importante da
alfabetização, imprimir as apostilas e os exercícios, corrigir, cobrar, buscar
atividades e vídeos educativos para a lha, dar atenção, cozinhar, faxinar, pôr a
louça e as roupas nas máquinas, fazer em casa o trabalho do escritório, chique
agora dizer home o ce, comprar víveres a cada dez dias... Não admitia
descuidar-se do mínimo detalhe para impedir que o vírus entrasse na casa.
Seguia os novos hábitos urbanos, deixava as compras do supermercado na área
de serviço, borrifava álcool 70% em cima de tudo, passava pano com álcool nas
maçanetas que havia tocado, deixava as sandálias no tanque, tirava a roupa da
rua e punha na máquina, lavava a máscara, lavava cartões bancários e dinheiro,
tomava banho, vestia camiseta, lavava com sabão os perecíveis empacotados e
levava para a geladeira, hortaliças e frutas cavam meia hora na solução de água
sanitária, higienizava com álcool todos os pacotes e garrafas e proibia as
crianças de mexerem em qualquer coisa da área por dois dias. Com a faxineira
semanal tinha o mesmo rigor, até nas descidas para levar o lixo. Punha esses
cuidados na conta do amor. À noite é que vinha a vontade, coxas apertadas.
Sussurrou isso para o marido, numa das suas aparições. Ele sorriu com a
malícia daquela noite e evanesceu. Às vezes dava tempo de falar com ele,
olhando para o teto, para ele não ir embora, presença incorpórea. Contava que
o lho sentia muita falta dele, não falava mas sentia, estava cando muito
calado, fechado, um sofrimento como o do pai, mudo. A lha estava melhor,
ele devia saber, pois ela dizia que falava com ele, a mudança foi que cou
muito muito apegada, difícil até para se falar ao telefone perto dela, trabalhar.
Numa outra noite, tocada pelo mistério, falava baixinho para o marido que a
pandemia devia ter algum propósito, melhorar as pessoas, porque elas estavam
cando mais solidárias, menos egoístas, sentindo falta de verdade umas das
outras, ajudando-se por telefone e pela internet. Olha os médicos, dizia para o
marido ali deitado, antes só se interessavam pelas suas carreiras, fazer dinheiro,
agora só pensam na cura do doente, se desdobram, arriscam a vida, tocam no
leproso como São Francisco. Volta e meia falava intimidades, contou que a
Elêusis estava fazendo sexo virtual, interagindo com umas pessoas na rede
social, uma amiga tinha passado a dica para ela, tinha hora que era no celular e
quando queria ver melhor era no laptop, e perguntou se ela não queria, podia
passar uns endereços, e ela não quis, ai, não, tenho medo. Em algumas noites
arengava coisas do dia a dia, como se faz com um amigo de conversas, era o
caso da mulher que cou presa no navio de cruzeiro, com ataque de pânico,
sem poder descer, porque tinha corona a bordo, era o caso dos brasileiros
impedidos de viajar para fora, era o caso do lho do presidente metido com
criminosos, era o caso dos pê-emes matando negros pobres nas periferias...
Segredou: já não estava aguentando tanto trabalho e preocupação, deprimida,
tinha vontade de sumir. Contou uma noite que os papéis do seguro de vida
estavam prontos, agradecia muito aquele dinheiro, ia chegar em boa hora.
Também ia entrar um dinheirinho da herança da mãe dele, que tinha morrido
na pandemia, fazia mais de um mês, não te contei? Morreu em casa. Estão
morrendo em casa seis pessoas por dia aqui na cidade. Uma noite, já era
inverno, disse que estava precisando ir ver o apartamento da praia, abrir as
janelas, arejar, achava que ia ser muito difícil para ela, para as crianças, mas
tinha de ir. Olhou para o lado e teve a impressão de que a sombra fez sim com
a cabeça, e já não havia sombra.
Penando, pensando, cresceu nela a impressão de que estava tudo ligado, o
desaparecimento do marido, o novo coronavírus, o novo fascismo. Tinha medo
de fazer alguma coisa errada que acrescentasse desgraça à desgraça. A sós com
ele, olhos no teto, falava dos medos, as pessoas têm medo umas das outras, de
estar levando ou recebendo alguma coisa ruim, de dizer algo que acorde um
lobo, de fazer compras, de comer a comida que pedem em casa, de abraçar,
medo de sair na rua e encontrar um amigo porque teria medo de abraçá-lo,
medo de respirar perto das pessoas, pode isso, medo de respirar, respirar no
elevador, na padaria, no mercado, no táxi, medo de pegar condução, de visitar,
de perder o emprego porque os empregadores estão quebrando, de perder parte
do salário que já é pouco, medo de manifestações, de milícias, de polícia, de
assalto, medo do governo, medo desses medos todos.
Arrumou as coisas e foi. Ao contrário do que esperava, a sensação foi de paz
ao entrar no apartamento do litoral, as crianças animadas por reencontrar o
que haviam deixado. No segundo dia, quis rever a praia. Deitou-se de roupão
na areia, acariciada pelo sol do inverno, preguiçosa, ninguém para impedir.
Dormiu? Um homem foi saindo do mar, outra vez liso como um lago,
retornando de um mergulho, a cena parecia uma sequência da primeira, como
se o tempo tivesse apenas deslizado naquele canto de mundo, excluído do
grande relógio universal, e o homem – seu homem! – se aproximou com o
mesmo sorriso, parou junto dela e disse: você demorou, meu bem, vem, tira a
roupa e vem, vem comigo, é outro mundo, livre de tudo, desse medo, dessa
gente, desse vírus, e ela só teve tempo de gritar Não! e se salvar, e ele se foi para
sempre.
O outro outro

Jacques Fux

O evento ocorreu em agosto de 2020, durante a pandemia, no Café com


Letras, cidade de Belo Horizonte. Não o escrevi imediatamente porque meu
primeiro propósito foi o de esquecê-lo para não perder a já desvalida razão.
Agora, em 2022, repleto de cicatrizes e traumas, decidi revistar aquele
encontro. É preciso, a nal, percorrer o enorme e esburacado rio das memórias
que clama por remissão, superação ou quem sabe compreensão – mesmo que
seja um projeto impossível e in nito. Revivo, elaboro, ccionalizo. Sei que
outros lerão este relato como fantástico e, com os anos, ele também o será para
mim. Porém, no momento em que o vivi, só eu fui capaz de sentir sua
atrocidade – pior ainda foram as noites desveladas que o seguiram.
Seriam quatro da tarde. Eu estava recostado em um dos quatros bancos que
cam do lado de fora do Café com Letras. Há um assento construído sobre um
mosaico que esconde, e por vezes também revela, uma Chanukiá; do lado
oposto, outro assento onde esse mesmo mosaico recria a imagem do correr de
um rio. Sentei, como de costume, em um dos extremos do bar e re eti sobre
mosaicos e silêncios – simulacros de uma vida “ ctícia” ou de um sonho “real”?
O rio me fez pensar sobre o tempo, os muitos ciclos e veredas, e a milenar
imagem de Heráclito; a Chanukiá me trouxe à memória a possibilidade literária
de um milagre – de uma cura ou de uma vacina para pôr um m (e iniciar uma
nova efígie) a estas a ições à or da pele. Apesar do horário, o lugar estava
ainda mais vazio que habitual em razão das restrições de distanciamento social
impostas pelo momento.
Confesso que, de repente, senti uma forte impressão de um déjà-vu –
segundo os psicólogos do século passado, corresponde a lapsos causados por
estados de fadiga e estresse, e, de acordo com os neurocientistas
contemporâneos, é o cérebro checando uma memória que acabou de criar a
m de assegurar o não esquecimento e que o evento de agora não seja
confundido com os do passado. Essa sensação se deu quando, na outra ponta
do Café, alguém havia acabado de se sentar. Meu primeiro impulso foi o de me
levantar e partir – preferia continuar sozinho com meus temores, já que, após
mais de cinco meses de isolamento e sem nenhum contato social, meu coração
disparava e cava completamente sem ar quando cruzava com alguém. A
pandemia desvelou o pânico que se ensaiava por anos dentro de mim – desde
sempre, metamorfoseamos o medo de algo que vem de fora em uma angústia
inde nida e íntima. Porém, não fugi daquele local, e nunca saberei por que não
decidi partir de imediato quando o outro se sentou.
O outro vestia uma familiar camisa azul bordada com o escrito Habonim
Dror (Pássaros da Liberdade) e estava sem máscara – possivelmente já teria sido
imunizado e podia caminhar sem esse acessório a itivo. Também carregava um
livro, o que me desnorteava – tenho a mania de querer conhecer os outros pelas
suas leituras e seus mínimos desvios. Solitário tanto na vigília quanto no sonho,
também na infância e na velhice, nunca estava sem uma prosa em mãos; falsa
sensação de acolhimento e amizade que esse aconchegante peso ainda me
desperta.
Era a primeira vez que saía de casa após as dores da pandemia e depois de
ter nalizado o livro que escrevia (e me salvava) das notícias de mortes e
catástrofes que aterrorizavam e surpreendiam o mundo. Naquele dia, z
questão de deixar o meu O Sol também se levanta, de Hemingway, repousando
sobre a companhia da cama. Precisava voltar a ver a vida por meio dos olhos e
sensações, e não mais através da câmara desolada e adulterada da tecnologia. E
foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações daquela tarde. O
outro tinha acabado de abrir o primeiro conto d’O livro de areia, de uma
edição antiga, porém impecável e intacta. Senti vertigem quando percebi que
esse texto era “Ulrica” e, aterrorizado, aproximei-me e disse-lhe:
– Tudo bem? Você por acaso arrancou as seis primeiras páginas desse livro?
– Oi? Claro que não. Não gosto nem de marcar com lápis um livro, ainda
mais de cometer uma atrocidade como essa.
A resposta foi seca e rude. Um tanto arrogante, como era de se esperar.
Fiquei atônito e sem compreender. Será que eu tinha enlouquecido durante a
quarentena? Aquele era o meu livro de cabeceira, sabia de cor todos os contos e
enredos. Poderia recitá-lo e até reescrevê-lo com os olhos fechados.
Houve um silêncio longo e constrangedor. Prossegui:
– Está gostando?
Respondeu-me que tinha acabado de comprá-lo na livraria do Café e voltou
ao “Ulrica”. Foi quando reparei novamente em sua camisa bordada: Habonim
Dror, Snif (Sede) BH. Fui acometido por um turbilhão de memórias lacunares
dos meus vinte anos, quando era presidente desse movimento juvenil e
militante apaixonado pelo sionismo. Tempos de discussões ideológicas, utopias
e desejos de um jovem que tinha todo o mundo pela frente.
Não tinha mais dúvidas, apesar de nem sequer imaginar como aquilo estava
ocorrendo. Resolvi dizer-lhe assustado:
– Jacques Fux, esse livro vai mudar a sua vida!
Sem me dar atenção – e nada surpreendido pelo fato de eu ter enunciado o
seu (meu) nome, respondeu-me que nunca tinha lido Jorge Luis Borges. Que
tinham lhe presenteado com um texto que achou perturbador – embora não
tenha compreendido – e resolveu procurar algum livro do autor.
– Você vai ler todos os livros desse que se tornará o seu tutor e guia. E,
acredite, você vai querer se tornar escritor um dia.
– Não. De forma nenhuma. Não creio.
Respondeu-me categórico com a minha própria voz um tanto distante. E
depois de um respiro insistiu animado:
– Vou ser engenheiro. Estudar física e matemática. Viver fora do país.
Quem sabe trabalhar com as equações de Einstein, com a teoria dos “buracos
de minhoca”, universos paralelos, viagens no tempo, com as “supercordas”.
Literatura? Para quê? Claro que não.
E, pela primeira vez, decidiu me olhar nos olhos e exclamou:
– Verdade que nos parecemos um pouco, temos essa marca-ferida no canto
do olho esquerdo, mas você é mais velho, já nem tem mais cabelos.
Eu estava cando um pouco sem paciência com o (meu) atrevimento.
Surpreendentemente, não estava mais em pânico em virtude da proximidade
social – já que ele era eu, estávamos protegidos contra a peste que naquele (seu)
tempo mal existia. Decidi retirar a máscara e disse de forma peremptória:
– Sou o Jacques Fux, estamos no ano de 2020 e vivemos uma séria e terrível
pandemia. Inclusive, sugiro que, ao sair daqui, coloque uma máscara e se
proteja.
Ele sorriu com desprezo e contestou:
– Estamos em 1997. Daqui a pouco, vou me encontrar com meus amigos
de infância e decidir os novos rumos para o Dror. É um momento importante,
precisamos escolher se o objetivo do Movimento será perpetuado – o de se
manter a aliá (a subida para Israel) –, ou se vamos nos satisfazer apenas com a
luta pelo sionismo, sem obrigar nossos membros a emigrar.
Respondi com apatia, já que esse assunto era demasiado banal:
– Lembro-me dessa reunião. Você defendeu que a aliá não devia ser o único
foco, mas parte do percurso natural. Foi voto vencido.
Ele me olhou com certo desdém e me disse:
– Você está me importunando. Posso continuar com a minha leitura?
– Não. Espere. Vou te provar que não minto e que não estou louco. Vou te
dizer coisas que um desconhecido não poderia jamais saber. Você tem essa
postura arrogante e superior, mas isso não passa de proteção e receio. Você
acabou de dar seu primeiro beijo – e foi horrível, além de ter sido desprezado
logo em seguida – e ainda nem esteve com uma mulher de verdade. É por isso
que o “Ulrica” te chamou tanto a atenção. Não é?
Ele pelo menos estava atento. Continuei:
– Em casa, sei que as coisas estão bem – seu irmão excepcional é feliz e
saudável, embora você não ainda não saiba a dimensão do seu amor por ele.
Seus pais estão com saúde, trabalham muito e são explorados pela família. E
você só tem de estudar, mas, mesmo assim, se sente revoltado e insatisfeito,
fruto da sua mocidade, da ingenuidade e das suas leituras atuais – Herman
Hesse, O lobo da estepe, Sidarta e O jogo dos contos de vidro. Agora esses livros
lhe são importantes, mas no futuro não lhe dirão nada. Outros, como O duplo,
de Fiodor Dostoiévski, e o conto “O espelho”, do Primeiras estórias, de
Guimarães Rosa, te abalarão.
Lembrei-me da primeira leitura que z de Dostoiévski e Rosa. Engasgado,
percebi que o mundo poderia e deveria ser diferente. Progredi com minha
prosa pandêmica:
– Jacques, você vive nesse estado de melancolia por ainda não ser amado
pelas mulheres. No futuro, garanto, você vai continuar se desencontrando delas
(ah, como tenho saudades desse tempo em que a tristeza era uma criação
ccional, agora vivemos dias monstruosos e solitários). Infelizmente, essa
angústia que habita em seu interior se irromperá em 2020. A pandemia
mudará todas as relações externas e internas. Aceite um conselho: é melhor que
você consiga superar essas cções amorosas ainda por agora! Amor não é dor,
Jacques.
Ele me encarou assustado. Porém, ainda atado nesse seu mundo de
pragmático e matemático, interpelou-me:
– Essas suas a rmações não provam nada. Isso me parece um sonho. E, se
eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que já sei. Seu catálogo é prolixo e
totalmente vão.
Bem pensado, Jacques, re eti. (Também havia conjecturado a pandemia um
pesadelo). A sua objeção é sustentada pela lógica. Entretanto, insisti,
lembrando a citação do meu conto favorito:
– “Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que
pensar que o sonhador é ele. Talvez, em algum momento da vida ou deste
encontro, deixaremos de sonhar. Talvez tudo seja realmente sonho. Talvez não.
Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, a realidade. E nos
aceitarmos como engendramentos e subversões”.
Ele me olhou sem compreender. Vivia atrelado à realidade palpável. Avancei
com um argumento fantástico:
– Jacques, meu sonho já durou mais de vinte anos. E, no m das contas, ao
rememorar, ao escavar as próprias reminiscências, não há uma só pessoa que
não se encontre e se incomode consigo mesma. É o que está acontecendo
agora... só que somos dois. E dois tão distantes e diferentes, embora
entrelaçados e conectados.
Decidi importuná-lo um pouco mais:
– Não quer saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te
espera?
Ele assentiu sem uma palavra. Prossegui:
– No que se refere à história, estamos vivendo uma pandemia. Um vírus
dizimou uma parcela considerável da população – não somente da vida, mas da
ética e das relações íntimas e políticas. Um vírus, uma pequena e desprezível
virose nos aterroriza enquanto espécie humana supostamente racional. As
mortes são horríveis, e poderiam ser minimizadas se não passássemos por uma
anarquia de valores que retorna ao período das trevas.
Eu me insu ava, a nal estava vivendo meu luto. Isso poderia assustar o
jovem – nunca fui assim. Mas decidi continuar:
– Jacques, você quer se dedicar à ciência, eu sei, mas é justamente ela que
está sendo questionada neste momento por questões políticas. Um lado radical,
estúpido e mesquinho está no poder e tem enunciado besteiras e mentiras
sobre a ciência. O outro extremo também comete seus deslizes e absurdos.
Surdos e mudos brigando. É triste. Muito triste.
Como esperado, Jacques me indagou:
– Você falando de política? Você não pode ser eu.
Esse argumento era fatal. Ele estava coberto de razão, mas continuei
tentando:
– Até eu me surpreendo por ter decidido militar. Mas a minha luta é por
conta da necessidade de preservação da humanidade, ou o que restou dela.
Sim, sei, fomos sempre alheios à política, mas agora chegou um momento em
que é preciso brigar para permanecer vivo.
Notei que ele novamente não prestava atenção. Lembrei-me do conto que
estava inscrito em mim, e não na edição ilegítima que o jovem carregava: “O
medo elementar do impossível, e, no entanto, certo, o aterrorizava. Senti por
esse pobre moço, mais íntimo que um lho da minha carne, uma onda de
amor, apesar de não me dar muita con ança”.
Re eti em voz alta:
– Realmente uma pandemia é algo mais impossível que o encontro de nós
dois. É uma sensação surreal e constante de pesadelo. O que de fato é sonho,
Jacques? Para os tupis-guaranis, há uma diferença entre a vida e a consciência
da vida. Essa vida que vivemos é apenas um terço da real. A vigília representa
uma fração pequena do todo. Segundo eles, há três mundos, e este aqui é o que
chamam de mundo de baixo ou mundo das formas. Para se alcançar a
plenitude é necessário acessar também o mundo do meio e o mundo do alto
por meio dos sonhos. Na Índia, acredita-se que este nosso universo seja fruto
de um sonho de um único bicho que não pode ser despertado, senão o mundo
se acaba. Os futuristas creem que tudo isso aqui não passa de uma simulação:
uma inteligência arti cial brincando conosco, sobretudo agora, em meio à
pandemia. Para Jung, há um inconsciente coletivo que acredita ou imagina
também que tudo é sonho. Para as religiões, o mistério do universo não passa,
de forma trivial, de um sonho e das vontades de um Deus amargo e perverso.
Nós somos apenas sua criação imprópria e risível.
Jacques não conhecia de nitivamente esse meu lado. Faceta imbuída de dor
e perda. A peste tinha me transtornado.
Irônico, ele me questionou:
– E o que mais acontecerá comigo? Com o mundo?
– Você acabou de ler Kafka, certo? Lembro-me ainda de como ele me
abalou. Agora, neste momento, só penso no escritor tcheco. Esse
estranhamento, essa impostura, essas metamorfoses e mortes nos circundando.
Angústia, muita angústia.
Surpreendido com as mesmas sensações, Jacques exclamou:
– Senti o mesmo ao ler o livro.
– Sei disso.
E continuei:
– Pois é, durante essa pandemia, você brigou com seus melhores amigos –
esses com os quais irá agora discutir os caminhos do Dror e com quem, logo
em seguida, passará o m de semana em um sítio em Rio Acima. Não sei te
dizer como isso tudo começou. Quando foi que essas pessoas tão queridas,
inteligentes e afetuosas, que tanto você admirava e amava, começaram a
enxergar o mundo diferentemente de você. Para eles, você se tornou irracional,
irresponsável, leviano e defensor de ideias de esquerda; para você, eles se
tornaram pessoas autoritárias, pequenas, rasas, preconceituosas e, acredite, até
fascistas. Acredito que tenha sido fruto também dos algoritmos de inteligência
arti cial.
– Inteligência arti cial?
– Sim, neste momento são eles que vão modelar e moldar o pensamento. Os
algoritmos vão nos conduzir a lados cada vez mais extremos e jamais vistos na
história. Bombardeados constantemente por notícias falsas e absurdas, as
pessoas acabaram se tornando cada vez mais radicais e extremistas. Se você
tivesse uma leve tendência para a esquerda, então os algoritmos, conhecendo o
seu per l, o saturariam de notícias e mentiras bombásticas do lado contrário.
As pessoas passaram, então, a se odiar, e tudo culminou com a pandemia. Um
lado acreditou que estávamos sendo atacados por um vírus – e resolveu se isolar
e paralisar o comércio e as escolas –, o outro, com ódio e sangue nos olhos,
sugeriu que fosse o retorno do comunismo e decidiu enfrentar a ciência, os
cientistas e os estudos históricos epidemiológicos. Os algoritmos nadaram de
braçada nesse mar de ideologias cruzadas e paixões exacerbadas enquanto
centenas de milhares de pessoas morriam.
Jacques parecia estar emocionado. Eu também. Mesmo com dor, continuei
a narrativa apocalíptica:
– E não foi apenas com seus amigos próximos que essas desavenças
irromperam. Tantas pessoas próximas e queridas duelaram. O mundo virou de
cabeça para baixo! Brigas, passeatas, perseguições! O Estado interferindo na
Polícia e no Judiciário, as redes de televisão tomando posições políticas – e as
sagradas novelas interrompidas – e mais milhares de pessoas morrendo vítimas
da “peste”, para uns; da “escalada comunista”, para outros.
Engasguei, quase chorando. Recuperei-me sustentado pela literatura:
– No nosso Kafka, Jacques, um sujeito acorda pela manhã transformado em
um inseto asqueroso no qual ele não se reconhece. O estranho-infamiliar
freudiano, certo? Na sala de sua casa, a família está reunida, cada um exercendo
seu papel, mas o lho se metamorfoseia em uma anomalia pestilenta de um dia
para o outro sem qualquer explicação. É assim o mundo atual! Kafka pressentiu
a história contemporânea... a narrativa na qual as pessoas acordam de um dia
para o outro e não aceitam mais o mundo que julgam estar repleto de insetos
repugnantes com ideias radicais obtusas e irresponsáveis – convicções diferentes
das suas. Perceba que não quero dizer que estou certo, apenas que o mundo
não aceita mais o diferente nem luta pelo bem comum. O fato é que, para o
outro lado, também estou errado, assim como eles estão para mim. 2020 foi o
ano em que a possibilidade de conversa se extinguiu.
– Isso parece um pesadelo – contestou..
Tinha razão. Parecia que eu estava contando uma quimera e não um
acontecimento. Fiquei entristecido e em silêncio.
E foi então que ele me fez uma pergunta lancinante:
– Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido desse nosso
encontro?
Ele tem razão. Não havia pensado nessa di culdade. Respondi, sem
convicção:
– Talvez a pandemia tenha sido tão estranha que eu tenha tratado de
esquecê-lo.
Jacques aventurou uma tímida pergunta:
– Como anda sua memória?
Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem
de mais de quarenta era quase um morto. Respondi:
– Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe
pedem. Tenho escrito muitos livros e aprendido novas línguas.
Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho. Uma
súbita ideia me ocorreu. Lembrei-me de que esse conto que estava vivendo foi
escrito por Borges durante seu período em Harvard ministrando as belas e
eternas Norton Lectures.
Decidi contar-lhe um pouco do nosso futuro trabalho como escritor:
– Eu posso te provar imediatamente – disse-lhe – que não estás sonhando
comigo. Vou ler o capítulo do meu novo livro – um trecho no qual falo da
possiblidade da questão da cção e relato alguns momentos do nosso período
em Harvard. Sim, é verdade, estivemos por lá e foi maravilhoso! Ouve bem
estas palavras, que nunca leu nem as viveu.
Lentamente comecei a leitura:
“Borges, meu caro Borges, você foi a justi cativa de eu ter largado todo o
resto e me jogado no mundo incerto e pecaminoso da literatura. Era o canto
das sereias borgianas que vibravam retumbantes nas ruínas circulares do
Sanders eatre! E agora eu o observava sentado, curvado com as mãos
apoiadas em uma bengala mágica, totalmente cego, porém in nito em
lembranças e criações, encantando escombros do passado e desnorteando os
alicerces titubeantes do presente e do futuro. Bradavam sem falhas suas palavras
nesse recinto babélico. Nunca mais saí daquele templo. Mas tenho certeza de
que não sou merecedor desse júbilo, nem mesmo nesta cção”.
Assim terminou o capítulo do livro que escrevia durante a pandemia e que
se encaixava nessa narrativa. Olhei para Jacques após minha leitura e senti seu
temeroso estupor. Ele me disse:
– É verdade – balbuciou. – Eu não posso ainda ter escrito nada assim. Nada
que não vivi. Nem muito menos sonhei.
Resolvi a rmar o que sempre pensava:
– E, como você descobrirá, gestamos os nossos livros durante anos. O livro
sobre o nosso período em Harvard cou anos guardado dentro de nós e
nalmente foi escrito durante a pandemia. Apesar de todo o sofrimento e de
toda a entrega que é o ato de escrever, foram essas “horinhas de descuido” que
nos mantiveram vivos.
Ele ouvia um pouco mais atento. E me pediu um favor:
– Queria ter certeza de que não estou sonhando.
Lembrei-me novamente do conto e da fantasia de Borges em relação a
Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma
or. Ao despertar, ali está a or. “Se o sobrenatural ocorre duas vezes, deixa de
ser aterrador.”
Ocorreu-me artifício semelhante:
– Ouve – disse-lhe –, quem sabe podemos nos encontrar amanhã neste
mesmo local? No ano em que você está, 1997, Michael Jordan está em busca
de mais um campeonato! Sei o quanto é viciado em basquete – e o quanto sua
paixão pelo Jordan é grande. Aqui, durante a quarentena, passaram um
documentário que viralizou sobre os títulos do nosso astro. Há mais de vinte
anos essa paixão estava adormecida em mim. Posso te contar amanhã sobre os
próximos passos, ou melhor, os mais lindos saltos do Air Jordan. Que tal?
Assentiu logo com a cabeça, mentindo. “Despedimo-nos sem nos termos
tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito
sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O
encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que
pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me
atormenta”.
Canção de fim de mundo

Jacyntho Lins Brandão

1
O Dr. Weltschöpfung sentia um arranhão na garganta ao sair de casa para a
academia. Não se pode dizer que tivesse consciência disso, porque só depois do
ocorrido lembrou-se da irritação levíssima a ponto de não atingir a consciência.
Esse esclarecimento se impõe, apenas começada esta memória, a m de isentar
o ilustre Dr. Weltschöpfung de qualquer responsabilidade pelo sucedido.
Todavia, cada sucesso tem um princípio, ou supõe-se que tenha, caso seja uma
peripécia completa, o mais verossímil sendo acreditar que se tenha originado
desse arranhão de garganta. Muitas vezes as maiores consequências provêm das
menores sutilezas.
O nome do Dr. Weltschöpfung pode parecer estranho e com razão. No
google não surge em mais ninguém, agora ou outrora, e isso numa
comunidade, como se sabe, de mais de sete bilhões de humanos que caminham
hoje sobre a Terra, mais os talvez trilhões que já não mais caminham. É por
isso que convém alguma explicação.
Quando posto diante da grave situação de dar nome ao lho, o pai, cujo
próprio sobrenome se perde nas brumas do passado, interessado que estava nas
novidades assírias que a cada dia assolavam o noticiário, impressionou-se com a
palavra Weltschöpfung, lida no título do trabalho do sábio alemão Erich
Ebeling, Das babylonische Weltschöpfungslied. Achou que Lied era um acréscimo
desprezível, impressionando-se com Weltschöpfung. Soava-lhe um termo
estranho como as próprias antiguidades babilônicas, sugeriu-lhe ares exóticos e
tão surpreendentes que não podia deixar de voltar-lhe à mente reiteradas vezes,
nas situações mais inusitadas, incluindo em especial aquelas em que, sobre a
futura senhora mãe-Weltschöpfung, se sentia um deus a fecundá-la, ela uma
mãe também arcaica, o próprio ritmo em surdina do desce-sobe parecendo
escandir tão belo termo: Welt-schöpfung, Welt-schöpfung, Welt-schöpfung...
Foi por essa razão de raiz que, tão logo informado da prenhez da mulher, sem
perder tempo por não poder ter tão belo apelativo, mandou às favas o
sobrenome próprio e deu ao lho o sobrenome outro.
As coisas do mundo desdobram-se uma das outras, defendem muitos sábios
e prova-o a própria história do Dr. Weltschöpfung. No princípio, o orgasmo
do pai. Depois, o nome do lho. Que de espírito nunca foi, a bem da verdade,
dotado em nada, a não ser pelo nome. Colegial medíocre, reles escriturário, até
ser acolhido na academia e passar a ser tratado de doutor, algo que se lhe colou
tão naturalmente ao sobrenome pomposo que fez que se lhe remetesse o nome
às brumas do tempo. Falta dizer, para provar a tese exposta no início deste
parágrafo, que foi justamente o sobrenome que levou o Dr. Weltschöpfung à
academia.
Desde sua criação, que sempre se lembrava ter antecedido à da congênere da
capital, as cadeiras dos acadêmicos identi cavam-se não por números, como
costuma acontecer, mas pelas letras do alfabeto latino. O Dr. Amadora,
fundador, argumentara que, sendo uma academia de letras, nada mais
apropriado que reger-se por elas. Consta ter havido algum debate em torno de
tão delicada decisão, pois um ou mais poucos dos futuros confrades
descon ava que a intenção do Dr. Amadora era ocupar a cadeira de número 1,
aliás, a cadeira de letra A, o que dá no mesmo, pois de qualquer forma se trata
da cadeira que era primeira. O bravo fundador, contudo, apresentou logo seu
argumento irrefutável, que reproduzo ipsis litteris, conforme registrado nos
anais: se nossa academia, esta ilustre academia, se ela, meus senhores, é de
letras, então devemos privilegiar as letras, deixando os números para as
academias de ciências. Diante de raciocínio tão cristalino, proferido com
excessiva simplicidade ática, nenhuma voz divergiu. Isso dos fundadores.
Embora a decisão possa parecer bela por sua coerência, tinha um apêndice,
este sim casuísta: para pertencer ao sodalício o interessado deveria ter o
sobrenome correspondente à letra da cadeira pleiteada. Ora, era de
conhecimento geral que havia mais dois presentes na assembleia de fundação
cujos nomes iniciavam com a letra A e eram malqueridos do fundador. Como
este já ocupava aquela prima cátedra, tiveram os outros de declinar de sua
pretensão. Consta que um tal de Abramovich ainda argumentou que tinha
também um penúltimo sobrenome em F – ou E ou mesmo H –, en m, dessas
letras dotadas de ângulos retos as quais se confundem facilmente, mas a tese foi
descartada com base no nome do pai et caetera, não valendo a pena gastar o
tempo do leitor com picuinhas desse jaez.
O que interessa dizer é que a tal cláusula pétrea e sua interpretação à letra,
que, repita-se, existem os que juram que tinham interesses casuístas, foram
uma providência que não se pode dizer que não tenha causado alguma
di culdade. É que sobrenomes têm propensão conhecida por começar com
algumas letras, assim como com outras não. Para a letra K havia um Kosta
escrito desse modo, o que gerou alívio, o mesmo acontecendo com a
disponibilidade de um certo Zaluar e um conhecido Wanderley. Mas sempre
que vagava alguma cadeira de letra mais rara a preocupação era geral e até
atingia as rodas de conversas em esquinas e bares, mercê dos comentários dos
jornais, até os da capital. Pode parecer espantoso para quem lê que na capital se
desse notícia do que acontecia na academia de nossa cidade, pode-se dizer
cidadezinha, mas a curiosidade decorria justamente da originalidade das letras
em vez dos números, o que prova que nem sempre a importância de algo é
consequência direta de sua dimensão.
Quando faleceu, já provecto, o Dr. Wanderley, que tinha escrito uma
memória da própria academia, não havia conhecimento, na cidade, de outro
intelectual de sobrenome em W. Tal aporia perdurou pelo menos duas
semanas, até que um antigo colega de escola se lembrou do condiscípulo
Weltschöpfung. A dúvida residia agora noutro ponto, o que levou à
necessidade de consultar o plenário: seria condição sinequanão (por delidade,
reproduzo as atas como estão) que o candidato fosse homem de letras? A
resposta decidida foi que não tanto, desde que houvesse o W no sobrenome,
por tratar-se de cláusula pétrea. Nisso se encaixava perfeitamente o Dr.
Weltchöpfung, calorosamente recebido, ainda mais por livrar a instituição,
pelo menos até a sua morte, da situação difícil provocada pela carência de
nomes em dábliu.
Acrescente-se que, sendo escriturário, não se poderia dizer que o Dr.
Weltschöpfung não fosse um homem de letras, o que foi ressaltado no discurso
de sua recepção e por ele aprendido com atenção. Essa é uma re exão oportuna
às academias: a de nição de homem de letras. No caso do escriturário, nada
mais perfeito. Na esteira do debate, quis ainda algum dos acadêmicos que se
ampliasse o entendimento para abranger também os agiotas, que, a nal,
ocupam-se das letras de câmbio, tal extensão não parecendo todavia oportuna à
maioria, ainda que ter paz com usurários seja ideal nada desprezível, o que
poderia estar na base de mais um casuísmo da parte do proponente de tal giro
hermenêutico. Uma coisa, contudo, foi um argumento decisivo, é ocupar-se da
escrita de letras, como nosso nobre Dr. Weltschöpfung, outra é cobrar letras
aos outros, sem nada escrever. Isso representou um evidente aprimoramento
dos critérios.
Não há como saber qual entusiasmo e compromisso teria um cambista com
nossa academia, mas é fora de dúvida que o Dr. Weltschöpfung se mostrou um
membro dos mais devotados. Durante o ano e meio que decorreu desde sua
posse, jamais faltou aos chás das quintas-feiras nem aos jantares das primeiras
sextas-feiras de cada mês, sem que houvesse empecilho que o impedisse de estar
presente, até mesmo durante o veranico, que é especialmente imoderado na
nossa região.

2
Talvez seja o fato de nossa cidade, naquela época, ser muito pequena, e digo
isso sabendo o quanto ainda é, talvez essa fosse a causa de que a vida particular
de cada um dos seus habitantes fosse do interesse geral de cada um,
principalmente quando se tratava de guras de proa, como havia se tornado o
Dr. Weltschöpfung. É verdade que nem mesmo como escriturário passava
despercebido que Weltschöpfung, que ainda não se chamava doutor, mantinha
relações efêmeras com algumas senhoritas um tanto faladas do lugar, o que os
interessados na vida de cada um debitavam à naturalidade como os homens
solteiros se entregam a esse tipo de divertimento, para dizer no modo como os
maridos, à noite, explicavam o fato a suas esposas um tanto escandalizadas,
desculpando o rapaz.
Não era que ele, Weltschöpfung, tivesse ainda a idade que justi caria essa
classi cação, rapaz, pois já passava dos cinquenta, mas não ser casado dava-lhe
de algum modo o direito a ser chamado assim. Se em algumas situações isso
servia para livrar-lhe a cara, como no caso de amores furtivos, pesou-lhe pela
primeira vez desde quando, na aporia em que se encontrava nosso sodalício de
letras, o antigo colega de escola resolveu lembrar-se dele como alguém cujo
nome iniciava com a difícil letra W. Um homem que já passa dos cinquenta
mas age como um rapaz! Essa foi uma das manifestações de um futuro
confrade contra o ingresso de Weltschöpfung, a qual, registrada nas atas, pode
ser que lhe tenha chegado ao conhecimento. Se a ocupação de escriturário o
punha à salvaguarda de que o acusassem de não ser homem de letras, um rapaz
que ocupasse uma cadeira de letras era decerto alguma coisa inadmissível, não
que houvesse qualquer previsão em contrário nos estatutos, mas isso seria
sentido como uma contravenção moral de consequências máximas, em sentido
negativo, para a instituição e para a comunidade inteira que a abrigava. Como
perguntara outro futuro confrade, com indubitável ironia: Éramos até aqui
uma confraria de homens de letras... agora seremos rapazes de letras? A
gargalhada que tal fala incitou, acompanhada de tosses e arfadas da parte de
alguns mais avançados em anos, demonstra que a decisão nal de acolher o
rapaz Weltschöpfung se deveu à carência dos dáblius.
Não foi, todavia, nenhuma situação desesperadora. Desde que se tornou o
Dr. Weltschöpfung, aquele rapaz passou a ser cobiçado como marido e
terminou casado, posto que agora doutor, com uma enfermeira. Isso terminou
sendo providencial e, visto por retrospectiva, é provável que melhor teria sido
se fosse a Sra. Weltschöpfung que tivesse sido eleita, já que adquirira, com o
marido, o sobrenome em W, não fosse outra dura disposição, que um dos
consócios mais idosos tratava todavia de quamquam petrea dulcis tamen, uma
vez que versando sobre o sexo frágil, segundo a qual era vedada a participação
de mulheres naquele grêmio de letras. Quando coube ao Dr. Weltschöpfung a
incumbência de proferir seguidos epitá os, houve quem dissesse que era a
mulher que os escrevia, sendo ela ainda que os colecionou e mandou imprimir
como homenagem póstuma ao marido. A retrospectiva dos fatos que estavam a
ponto de ser desencadeados prova quanto nossa academia era fértil em criar
problemas para si. À argúcia de uma correligionária, ainda mais enfermeira,
decerto não passaria despercebida a anomalia que redundou no mais grave dos
sucessos.

3
Aquela tarde em que o Dr. Weltschöpfung sentiu o arranhão na garganta era
uma quinta-feira e a atividade gastronômica era o chá, ocasião em que, entre
bolachas e bolos, sempre se pautava um debate acadêmico. Pelo que se pode
deduzir considerando-se acontecimentos e datas, naquela tarde a controvérsia
fora se nos Vedas e nos poemas de Homero há exceções à lei de Grassmann,
não se chegando a nenhuma conclusão, mesmo que a peleja tenha sido
acalorada. Na consulta aos registros de tais encontros, alguém poderia com
razão concluir que, menos que chegar a um veredito, o que se apreciava era a
própria disputa, sempre em torno de temas sem consequências práticas, como é
o caso das leis fonéticas em linguística histórica.
O Dr. Paul, que naquela tarde defendera vigorosamente a tese de que a
citada lei tinha validade absoluta, saiu do congraçamento com uma coceira
também na garganta, o que debitou ao esforço e ao tempo que despendera para
defender sua posição. Foi para casa, como todos, e não pensou mais nisso,
certo de que uma noite de sono seria su ciente para tirar-lhe a rouquidão. De
modo análogo, o Dr. Mirandello sentiu algum distúrbio na região dos órgãos
internos do pescoço, sem distinguir com clareza em qual, e do mesmo modo
foi para a cama, dispensando a sopa que costumava tomar com pontualidade às
oito horas. Nenhum dos confrades deixou de, voltando da academia, fazer o
que sempre fazia, exceto essa recusa da sopa, como parece que ninguém na
pequena cidade deixou de fazer o que sempre até que chegasse a hora de todos
estarem na cama. Em conclusão: nada além de uma tarde e uma noite sem
sobressaltos.
A surpresa veio com a manhã. Como o Dr. Mirandello tardasse em
despertar e a governanta, que administrava tudo da casa desde a morte da
esposa de seu patrão, tivesse pudor em adentrar o quarto, posto que senhorita,
ainda que não mais moça, apelou para um dos consócios, o Dr. Orósio, que
diligentemente compareceu e, depois de bater mais de uma vez, foi até o leito
despertar o colega. Logo constatou a frieza do corpo que sua mão tocara e,
acendendo a luz, con rmou o óbito. Deu imediata notícia ao Dr. Amadora,
bem como ordenou à governanta que fosse à sede da folha local com a
incumbência de mandar publicar um anúncio fúnebre cujos termos lavrou com
agilidade num pedaço de papel: A Academia de Letras de... tem o doloroso
dever de comunicar o falecimento de seu congregado... Mais relevante,
contudo, cuidou da preparação do corpo, limpando-o e vestindo-o para que
estivesse em condições de receber as honras fúnebres.
E assim voltamos aos estatutos da academia, que eram especialmente
detalhados quanto ao modo como seus membros deveriam seguir para o
repouso eterno. Não que tratassem desse repouso, posto que igual para todos os
mortais, mas de tudo que o antecedia, nesse resto de existência em que os
mortais, mesmo já mortos, continuam a engajar-se à cata de distinções. Não
vale a pena percorrer todos os pormenores atinentes a indumentária, gestos,
palavras e protocolos que pouco acrescentam a esta pesquisa de como os fatos
se concatenaram, afora uma disposição em especial, a de que, no decesso de
um a liado, cabia ao sócio mais recentemente admitido, por ocasião das
exéquias, proferir a oração fúnebre. Era a vez, portanto, do Dr. Weltschöpfung,
a quem a coceira persistente na garganta não serviu de escusa, tão
compenetrado, já se disse, era ele em cumprir as obrigações da ordem em que
ingressara. Pode ser verdade que o estro da Sra. Weltschöpfung na composição
do discurso se tenha então manifestado pela primeira vez, mas o sucesso
pertenceu inteiramente ao marido.

4
A causa mortis do Dr. Mirandello permaneceu inde nida em virtude de o
único médico de nossa cidade, que já salientei mais de uma vez não ser
populosa, estar fora, gozando o repouso que se dava a cada ano, com a família,
no litoral. Tal inde nição de modo algum impediu que a Sra. Weltschöpfung
se referisse ao modo insidioso e abrupto com que a morte atingira aquele
luminar, dando mostras com isso de quanto era mais bem dotada para as
argúcias da retórica que para as habilidades da enfermagem. É justo, a nal, que
se registre a seu favor que o Dr. Mirandello já não era nenhum rapaz e, foi o
que se repetiu muitas vezes naquela tarde fúnebre, para alguém daquela idade a
chegada do m não con gura nenhuma surpresa.
Surpreendente, contudo, foi que o Dr. Orósio tenha se sentido mal
justamente quando o epitá o, dito com ênfase quiçá em excesso pomposa, se
encaminhava para o fecho de ouro, que não é necessário que se repita aqui,
mercê de ter sido dado ao prelo. A emoção que elevou a píncaros o
arrebatamento dos ouvintes era tanta que ninguém percebeu, dentre confrades
e mais assistência, o modo discreto como o Dr. Orósio escorregou do banco
para jazer no assoalho, sem outro movimento que a respiração ofegante. É
evidente que, quando se deu fé do caso, foi ele prontamente atendido e
carregado para sua própria casa, enquanto o féretro deixava nossa bela igreja,
orgulho desta pequena mas valorosa cidade, dela saindo na direção do
cemitério.
Os desdobramentos da inumação do Dr. Mirandello confundem-se com o
passamento do Dr. Orósio, para quem tudo se fez com o mesmo esmero,
cabendo ao Dr. Weltschöpfung nova oração, conforme voz geral da pena da
Sra. Weltschöpfung. Mas os imprevistos não terminaram assim, pois logo o Dr.
Ryan tombou doente, seguido do Dr. Benjamin, do Dr. Ugolino e do Dr.
Silvianus. Sempre o mesmo esquema: indisposição súbita na garganta, agonia
rápida e cuidadas honras fúnebres. Como não houve tempo de se proceder à
escolha de novos ocupantes para as cadeiras vagas, ao Dr. Weltschöpfung
continuou a responsabilidade pelas arengas póstumas, insistiam as línguas em
uníssono, boas ou más, compostas pela Sra. Weltschöpfung.

5
Tendo o número de acadêmicos mortos atingido numa semana essa cifra
espantosa de seis, o Dr. Amadora apelou a todos os confrades que não
deixassem de estar presentes na reunião do chá da quinta. Nela, depois de
relatar a natureza do problema, sublinhou a urgência de que os lugares vagos
fossem ocupados, mesmo que fosse hercúlea!, palavras suas, a tarefa de
encontrar substitutos para tantas letras, e apontou as cadeiras vazias. A sede da
academia era um amplo salão em torno do qual se punham as cadeiras em
círculo harmônico, cada qual tendo no encosto a letra que lhe correspondia, de
modo que todos estivessem ao lado de todos em torno da mesa do chá. Foi essa
disposição, a par da enumeração dos mortos pelo presidente da casa, que o fez
respeitando a cronologia dos óbitos, que sugeriu ao Dr. Xiang-Li a existência
de alguma mensagem por trás dos acontecimentos.
Lá estavam os lugares vazios dos mortos, , e ele não pôde omitir-
se de notar, tão logo chegou e assentou-se em seu posto, como uma das sílabas
formadas fosse justamente , de morte, talvez. Mas logo que o Dr. Amadora
referiu, pela ordem, os falecidos, Mirandello, Orósio, Ryan, Benjamin,
Ugolino, Silvianus, imediatamente o Dr. Xiang-Li matou a charada:
. . . . . . Acostumado à prudência, não comunicou imediatamente a seus
pares seu achado, mas o fez quase ao nal da reunião, depois de o presidente
enfatizar a incumbência moral de todos se porem em busca de substitutos,
lamentando que letras difíceis como O e U zessem parte do pacote. Em vista
da di culdade, determinou que a academia se pusesse em assembleia
permanente, até a mitigação das circunstâncias, convocando nova reunião para
a sexta-feira.
Tendo decifrado algo que ainda não compreendia, o Dr. Xiang-Li, com sua
oriental ausência de qualquer arroubo, desenvolveu uma breve preleção sobre
como as cadeiras vagas formavam uma palavra, morbus, como se quisessem
dizer algo sobre a doença que a igira os confrades desaparecidos. Ajuntou a
isso uma ponderação, a saber, havendo ao que parece um morbo desconhecido
que nos tem atacado, não seria mais prudente que as reuniões fossem
canceladas, mesmo as ordinárias, até que se saiba o que se está passando? Ainda
que a alguns essa re exão tenha parecido de todo prudente, o presidente de
pronto atacou-a como fruto de medo descontrolado, a decifração de mensagens
sendo digna de nada mais que riso. Com isso, o Dr. Xiang-Li calou-se.

6
Quando veio a vez do Dr. Coelho, que na mesma noite que seguiu aquela
tarde terminou seus dias, o sepultamento tendo-se dado já na data posterior,
mais de um consócio pensou se não teria razão o Dr. Xiang-Li, sobretudo
porque, ainda no cemitério, o Dr. Amadora havia instado que nenhum
deixasse de comparecer à reunião. Nela, foi mais duro ao enfatizar a
necessidade de que se encontrassem os substitutos, o que o levou a reiterar que
a academia se encontrava em assembleia permanente, a próxima sessão sendo
no sábado.
Esta terminou não tendo lugar, apesar da veemência com que foi marcada,
pois o próprio Dr. Amadora viu chegada a sua hora. Tudo se repetiu, talvez
com mais estupor, tratando-se do presidente e fundador do sodalício, o que
exigiu da Sra. Weltschöpfung o manejo de guras mais esplêndidas. A sessão de
domingo não foi cancelada pelo vice-presidente, o Dr. Tindale, sobretudo
porque era preciso escolher um novo condutor da casa, que não poderia car
assim acéfala. Ele próprio terminou fulminantemente eleito, porque mais de
um já era de parecer que perenizar esses encontros não era coisa de gente
prevenida.
E os que pensavam assim mostraram ter razão, pois nos dois dias seguintes
chegou a vez do Dr. Daudet e do Dr. Ibarburu, nessa ordem. Isso levou ao
primeiro grande feito do Dr. Xiang-Li, que teria sido para sempre lembrado
por todos os colegas, caso algum deles se mantivesse vivo. Ele continuava a
observar a sucessão das letras: . . . . . . . . , o que, sempre em sua prosa
rasteira, observou não fazer sentido, a não ser que se acrescentasse um T, o que
daria uma oração latina com sujeito e verbo: morbus cadit. Embora para o Dr.
Xiang-Li fosse uma simples descoberta gramatical, sua lição teve o efeito de um
raio, pois sugerindo que a próxima letra tinha de ser tê, ao mesmo tempo
a rmava que o próximo óbito seria do novo presidente Tindale, que sem mais
demora encerrou a assembleia, correu para casa e meteu-se sob as cobertas,

donde não mais saiu, sendo seguido pelo Dr. Eluard, a quem acompanhou
logo nosso decifrador de enigmas, o Dr. Xiang-Li, deixando incompleta a
mensagem que aquela peste acadêmica se esforçava por transmitir: morbus cadit
ex, “a doença cai de...”, o que parecia a expressão de uma etiologia. A partir de
então nem se teve condições de decifrar enigmas, mesmo que o Dr. Paul, além
de lólogo e eminente teólogo, a quem a garganta continuava arranhando
desde que defendera enfaticamente que leis fonéticas são infalíveis, pois desde
então, como cou dito, mesmo que ele tenha se referido a algo como morbus
cadit ex meritis, o que todavia não fazia muito sentido, sobretudo porque
apresentara sua hipótese numa sessão que tratava era de mais uma vez eleger
um presidente para substituir o presidente desaparecido, o próprio Dr. Paul
passando desta antes que pudesse dar mais esclarecimentos sobre suas
artimanhas hermenêuticas, deduzidas da sentença de inspiração paulina por ele
citada: si gratia cadit ex meritis jam non est gratia...
Não será preciso dizer que a desordem se instalou também desde então. Os
ritos fúnebres foram se tornando maçantes, sobretudo porque muitos dos
presentes criam ter sintomas que os tornavam candidatos à próxima leva, as
batinas acadêmicas apareciam amarfanhadas, indo contra toda a regulação
estatutária do decoro, e as próprias eleições caram inviabilizadas, em virtude
de mais uma cláusula pétrea, a de que os sufrágios para a diretoria dependiam
da metade mais um do número de cadeiras, ocupadas ou não. Quando,
portanto, a cifra de falecidos chegou a treze, as eleições ndaram, e quando
passou a quatorze, diziam os mais irônicos que nossa academia havia se
tornado dos mortos, sua sede se tendo transportado para o Hades. Alguns
ainda tentaram alguma salvação desesperada, encaminhando requerimentos
com o to de que fossem desligados da casa, mas não havia a quem entregar os
pedidos, pois apenas poderia recebê-los o presidente, que não mais existia, tal
atitude não passando, de qualquer modo, de manobra inepta, pois os
requerentes tinham pleno conhecimento de que o ingresso e a pertença àquela
distinta agremiação se faziam ad aeternum.
Na dissolução geral, apenas o Dr. Wetschöpfung não cedeu. A cada óbito,
uma oração fúnebre, a cada nova perda, um epitá o mais elaborado e
entusiástico da Sra. Weltschöpfung, que não soube dar nenhum detalhe a
nosso conceituado médico, regressado de um mês no litoral, para que pudesse
ele, em retrospectiva, arriscar qual moléstia atingira assim toda a academia. E
não o soube não porque não fosse boa enfermeira, mas porque os sucessivos
louvores fúnebres não lhe davam ocasião para buscar nada além de belas guras
de linguagem.
Foi apenas quando, ndo o alfabeto, restava só a letra com que começamos
este relato, ao comentar o marido com a esposa, antes de se deitarem, que no
dia imediatamente anterior à morte do Dr. Mirandello estivera na academia
sentindo aquele arranhão na garganta, foi então que ela, usando de seus
conhecimentos nosológicos, concordou: pois é, pode ter começado com você.
Ao que ele ajuntou, sem esperar alguma resposta: e termina com quem?
O mais curioso nesta breve relação de acontecimentos que muito têm de
extraordinários é que, publicado o volume póstumo das prédicas do Dr.
Weltschöpfung, a última arenga fúnebre, a exemplo do que zera Moisés na
Torah, fosse precisamente sobre o passamento do próprio Dr. Weltschöpfung.
Quando do aparecimento de tão curiosa brochura, rmou-se mais a suspeita de
que a autoria pudesse não ser do próprio doutor, mas de alguém de mesmo
sobrenome, não havendo, conforme garante-nos o google, nenhum outro
candidato a não ser aquela distinta senhora.
Que, em dedicatória breve ao marido, confessava ter aposto à obra, por sua
conta e risco, o curioso título de Canção de m de mundo.
O sono que eles dormem

Laura Cohen Rabelo

Com as luzes da sala apagadas e a tevê acesa, vejo no noticiário que um


grupo de dez ou doze homens tinha destruído um posto policial e explodido
caixas eletrônicos em uma cidade do interior, próxima daqui. Ao estrondo da
munição, seguia-se o barulho de vidro estilhaçado. Depois uma bomba. Outra
bomba. Os moradores, nas sacadas dos prédios e nas janelas das casas,
lmavam com seus celulares, as mãos trêmulas deixavam as imagens enjoativas.
Os sons não eram muito distintos de uma noite de ano novo, ou o meio-dia do
doze de outubro, minha esposa me encorajava que eu soltasse os foguetes no
quintal com as crianças. Talvez a diferença entre os tiros e os fogos seja que
aquele som foi escutado durante quase três horas e as pessoas não estavam
felizes. Isoladas em suas casas, não faziam pedidos para o futuro, nem
estouravam champanhe, nem davam presentes para as crianças.
A reportagem na tevê não diz quantos dígitos em dinheiro a quadrilha levou
consigo. Os homens estavam tão uniformizados que ninguém conseguiu
precisar exatamente quantos eram – capacete com viseira, máscara preta, colete
a prova de balas, roupas escuras, tudo igual, até o corpo deles era parecido –
dirigindo veículos pretos, grandes, sem placa. Pareciam os personagens do
videogame dos meus lhos. Talvez fosse mesmo uma brincadeira, um counter-
strike da vida real, porque aqueles homens, como eu mesmo, estavam muito
aborrecidos, trancados dentro de casa, perdendo tempo, e viram o isolamento
social e as ruas vazias como uma oportunidade para ganhar bem. Ninguém
morreu. Mas houve, além do prejuízo dos bancos e do posto, um dano
colateral: fechadas durante a pandemia, lojas comuns de eletrodomésticos,
roupas, material de construção foram saqueadas pelos próprios moradores da
cidade. Ao contrário dos bandidos iniciais, alguns habitantes foram
identi cados e presos pelos furtos aos estabelecimentos. A reportagem não dizia
se os vidros estilhaçados de vitrines eram fruto da farra dos mascarados ou do
trabalho extra.
Mesmo depois de um ano frequentando um clube de tiro, não consegui
identi car as armas que eles usavam. A correia grossa de couro sobre o ombro,
o longo metal escuro suportado por um par de mãos enluvadas, eram fuzis ou
metralhadoras? Deviam pesar muito. Durante a matéria, a câmera lmou os
cartuchos dourados espalhados por várias ruas da cidade, tão grandes que mal
cabiam na mão de um dos repórteres. Depois, lmou um pobre coitado
algemado, escondendo o rosto: tinha roubado roupas e ventiladores no saque.
Entrei no clube de tiro com a justi cativa da defesa pessoal, mas aquele era um
ambiente vulgar, com cheiro de graxa, desodorante masculino, gel de cabelo,
habitado por homens igualmente vulgares, de universo mínimo. Nunca tive
paciência para frequentar espaços onde o pensamento é estreito, mas em algo
eu sempre concordava com eles: a falta de sentido na di culdade que tem um
bom cidadão brasileiro em portar armas legalmente. Aqueles bandidos
conseguiram, como? É claro que logo eu abandonei a ideia das armas, mesmo
que eu fosse usar um silenciador, poderia haver barulho e bagunça indesejada,
as casas da vizinhança eram muito próximas umas das outras. Um dos
instrutores do clube até me ofereceu meios de obter armas fora do registro, mas
eu queria risco zero, a nal, estava planejando aquilo para me salvar. Diziam
que aprendiam a atirar para defender suas famílias, mas eu sabia que o
verdadeiro desejo deles – e isso era algo que eles próprios ignoravam – era ter
em mãos o poder da morte e do caos.
Minha casa está em ordem. Os meninos estão dormindo. Coloco a tevê no
mudo e vou até a cozinha, tentando me decidir entre um saquinho dos mil
sabores de chá que Carmen comprava, ou a última garrafa de cerveja, já
racionada. As placas no supermercado: apenas seis unidades por cliente. Os
meninos são grandes, mas, por hábito, os chamamos assim, quando não os
chamamos de crianças. Há muito resolvem boa parte das coisas sozinhos,
escolhem as próprias roupas, conversam assuntos densos de adultos. Ajudaria se
Carmen deixasse que eles andassem de ônibus, ou que pegassem táxi, aplicativo
de carona, o que fosse; eu não ia ter de car buscando e levando menino aqui e
ali, enquanto ela fazia as unhas no salão. Mas agora estão todos em casa. Lúcio
tem dezessete anos, a avó prometeu um carro a ele ano que vem; Eduarda tem
quinze; Marcus está com treze. Não me lembro de ter escolhido esses nomes
em algum momento, não consigo me lembrar de como eu e a mãe chegamos a
eles. Apesar de ter aquela história de que Eduarda é um nome forte, ela era
Duda na maior parte do tempo. Ela mesma se apresentava como Duda. Talvez
quiséssemos apenas nomes que soassem normais, que cassem bem em um
crachá, em um currículo, que não chamassem a atenção. Meu nome também
não chama a atenção: Paulo. Talvez por isso Carmen me escolheu.
São grandes, meus lhos, mas às vezes podem se comportar como uma
horda de crianças. Principalmente trancados em casa assim. Riam tanto, riam
de quê? As guerras de almofadas; a pipoca que Duda estourava diariamente na
panela grande, distribuída em bacias de plástico, o barulho da mastigação; a
disputa para escolher lmes; o War que eles jogavam in nitamente e aos
berros, às vezes deixavam uma pecinha no tapete da sala, eu pisava nelas com o
pé descalço, a dor pungente, poderia bater neles, com razão, quem largou isso
aqui?! Vocês precisam ter mais cuidado, porra! “Foi mal, pai.” E compunham
músicas que só tinham signi cado entre eles, berrando as letras; e acordavam,
batiam portas, trocavam escovas de dentes sem querer; davam cotoveladas e
gritavam; depois cavam ali agarradinhos no sofá da sala, embaixo da manta, às
vezes choramingando diante das notícias da tevê. Como podia ter criado
indivíduos tão frouxos? Quinze, vinte, trinta, cinquenta mil mortos que a peste
acabara de levar, eles ranhetavam diante das imagens das valas comuns, temiam
pela avó, temiam pela mãe, eu me impacientava, claro, meus lhos, não
estamos no Amazonas, temos água e sabão, plano de saúde, dinheiro à beça,
não vamos morrer. Mas o que desencadeava a fúria de Paulo era o fato de que
eles não cavam tristes apenas com a possibilidade da morte próxima, mas se
chocavam com os números, com as mortes de seres anônimos, miseráveis, que
nada tinham a ver com sua realidade.
“Os três são muito grudados”, diziam isso nas reuniões de pais e mestres na
escola, diziam isso na igreja, na rua, entre os vizinhos. Eu não me lembro de ter
sido assim com meus irmãos, com quem falo pouco. Apenas nas festas. Páscoa,
dia dos pais, dia das mães, Natal, tudo civilizadamente, as coisas feitas porque
devem ser feitas. As mesmas perguntas, as mesmas respostas. Eu sempre garanti
o status quo, estar em família, essa é minha prova in nita, minha ordem, meu
álibi.
Sei que os pais têm um sentido de propriedade com relação ao corpo dos
lhos: quando um dos três se machuca de forma estúpida – anteontem Duda
bateu o joelho na mesa de centro e cou com um hematoma, remediado
imediatamente por um saco de gelo que Lúcio foi buscar na cozinha – eu me
enfureço, não como se fossem corpos, mas coisas pelas quais eu tenho de zelar.
“Papai, você não cou bravo, cou? Eu não quebrei nada da casa.” Você precisa
ter cuidado para não quebrar a cabeça, Duda, estamos passando por um
momento difícil, imagina se nós tivéssemos de enfrentar um hospital lotado,
correndo risco de contaminação? O sentimento era semelhante a quando Lúcio
havia arranhado o tampo do piano novo. Talvez por isso eu brigasse tanto com
eles, em vez de acolhê-los, como ensinava Carmen. Eu tento melhorar. Os
lhos, minha extensão, carregando meu código genético, minha fúria, como se
fossem um dedo a mais, um excesso de gordura exagerado na barriga. Sempre
tive um bom corpo, um corpo que estou perdendo aos poucos. Por mais que,
trancado nessa casa, eu faça minhas exões, levante peso e pule corda, eu sigo
perdendo meu corpo e não vou car mais jovem. Tempus fugit, vita brevis,
memento mori.
Acabei optando por uma cerveja e, ao retornar para a sala, vejo imagens
aéreas de Milão vazia, percorrida por um drone jornalista. Ao ver as ruas onde
antes perambulei bêbado agora vagas, me lembrei de quando conheci Carmen.
Eu era um estudante do Conservatório de Milão, ela era uma patricinha com
passaporte Europeu, tempo para gastar e a desculpa de estar fazendo uma
peregrinação religiosa. Se o pai dela sempre lhe deu tudo, por que a mim ela
reservava tão pouco? Naquela época, Carmen me acolheu em seu apartamento
quando me expulsaram da república por não pagar o aluguel. A cidade cara, a
bolsa minguada, eu realmente não tinha como pagar, então por que pagar? E
meus colegas recebiam bolsas de estudos muito melhores que as minhas,
podiam pagar. Claro que começamos a namorar e tudo cou sério tão
rapidamente... Carmen, uma herdeira, mas ainda assim muito servil. Ela me
dava tudo que eu pedia, às vezes me dava antes mesmo de eu pedir. Até quando
engravidou. Éramos jovens, mas não houve escolha, apesar de eu insistir tanto
que poderíamos ter lhos depois, muitos lhos, uma família bem grande, eu só
precisava concluir meus estudos no conservatório. Mas o Papa não gosta de
aborto.
Então acabou a música, voltamos ao Brasil e nos casaram imediatamente,
tudo bem católico. Eu poderia ter deixado Carmen voltar sozinha e sumir,
deixar ela se haver com o menino e com os desfortúnios da mãe solteira, mas
acho que me deixei seduzir pelas passagens de avião de primeira classe e pela
crença de que eu teria tudo de mão beijada, assim como ela tinha desde
quando nasceu. Além de tudo, eu estava falido. Meus estudos foram
interrompidos e jamais retomados, apesar de Carmen, em algum momento, ter
prometido que nanciaria o que eu quisesse estudar depois do casamento.
Quando eu cobrava, e por um tempo cobrei, ela disse não se lembrar; e logo
emendou a justi cativa de que seu pai tinha pagado para mim o curso noturno
de administração, não bastava? E não bastava que ele tivesse me dado um
emprego com um bom salário na imobiliária da família? A música não podia
ser um hobby? Na cabeça dela, nunca foi mais que um hobby, a nal, não se
pode sustentar uma família com isso. Tão longe, na tevê, as ruas de Milão
geladas, a reportagem dedicada a elas já estava durando mais que a da pilhagem
à cidade do interior do estado.
Eu até me senti um homem de sorte. Isso até o pai de Carmen jogar na
mesa a separação total de bens. Eu tive de trabalhar para sobreviver, enquanto o
máximo que a família de minha esposa nos deu foi um apartamento, do qual
tínhamos de pagar condomínio e IPTU. Depois, quando veio o terceiro bebê,
deixaram-nos ocupar uma das casas que eles possuíam. Talvez estivessem
punindo Carmen por ter engravidado antes da bênção matrimonial, mas ela
diz que o pai sempre fora avarento. Dinheiro demais, o castelo real afastado do
mundo, e eu jamais poderia me juntar aos nobres nas altas torres, em seus
banquetes: sendo apenas o bobo da corte, eles me fariam dançar. Eu cava o
dia todo fora, trabalhando, estudando, enquanto Carmen mimava Lúcio,
sempre grudado na mãe, chorava quando eu o pegava no colo, incapaz de
reconhecer o rosto exausto que o sogro exigia que eu apresentasse sempre bem
barbeado. Isso continuou. Até o início da peste, eu cava na imobiliária todos
os dias até a hora de bater o ponto, e fazia hora extra; no m, ainda tinha de
buscar Duda no judô. Se Carmen tinha o direito de ser mãe em tempo
integral, o que sempre desejou fazer, por que me atribuía essas tarefas
estúpidas? O trânsito tardio, minha lha mudando os CDs no carro, não
gostava de Dowland nem de Bach, dizia que dava sono, e que ela ainda tinha
de estudar naquela noite.
As crianças tinham total adoração pelo avô. Mimavam o velho, chegavam a
me pedir dinheiro para comprar presentinhos para ele. Com seu dinheiro, ele
pagava a escola particular dos meus lhos, uma fortuna que ele nunca
trabalhou para ganhar, e ainda assim louvava em seus sermões sobre a
dignidade do trabalho. Não sei qual atividade ilegal ele tentava mascarar
falando daquilo. Quando ele morreu, os meninos caram tristes por semanas.
Falavam do avô o tempo todo, lembrando, rindo de casos, das piadas, das
macaquices. Achei que eu teria um pouco de paz sem ele, mas meu cunhado,
agora chefe no lugar do pai, continuou nas vezes de senhor feudal, chorando a
herança a ser dividida, da qual eu merecia uma parte que jamais recebi: direto
para Carmen, para a poupança dos meus lhos. Nunca toquei em um centavo
a mais do que me era dado. Guardar para o futuro, o futuro das crianças,
minha esposa chegava a falar de netos! Assim são os herdeiros.
E todo começo de ano eu dizia: vou voltar a estudar música. Carmen dizia
que sim. Mas quando eu ligava o computador e me inscrevia em uma matéria
da pós-graduação, ou me matriculava para estudar órgão no conservatório, ela
começava a bufar: “está pensando em fazer mestrado? Bem, você não está um
pouquinho velho para isso?”. Quando comprei o piano de cauda, ela surtou,
disse que eu estava tomando decisões importantes sem consultá-la; mas
Carmen não me consultou quando usou parte da herança para fazer uma
plástica no rosto murcho que a deixou ainda mais asquerosa, e por duas
semanas tive de trabalhar e car levando e buscando menino na escola, no
judô, na natação, na casa dos colegas, na aula particular, nas festinhas. Além de
reclamar do piano ocupando uma parte da sala que cava antes bem vazia, ela
listou as contas: a luz, a internet, a tevê a cabo, as mesadas, o colégio que eu
passei a pagar depois da morte do pai dela. Eu não tenho direito de fazer algo
de que gosto com o meu tempo? Ela respondeu: “Ah, você ca reclamando,
mas você mesmo sabe que não tem talento algum. Que não adianta estudar,
estudar e cismar com essa besteira de música antiga, se você realmente não tem
jeito para a coisa, meu bem. É uma realidade tão distante da nossa. E, além de
tudo, você não consegue se decidir: uma hora, música medieval, outra, estudar
órgão! Onde você vai tocar órgão nessa cidade? Para seguir uma carreira, é
preciso se especializar”.
Pouco antes da peste, levei meus lhos para ver uma bela apresentação da
Carmina Burana, de Carl Or . Como qualquer jovem que tem contato com
aquele tipo de música, eles caram deslumbrados, saíram da sala de concertos
falando alto, querendo ouvir tudo de novo, querendo saber mais. Mostrei a eles
um livro que eu tinha sobre o Codex Buranus, a reunião de textos do século XI
ao XIII que tinham sido encontrados em um mosteiro bávaro em 1803:
poemas e rudimentos de partitura sobre o amor, o espírito livre, as Cruzadas, a
juventude, a bebida, a natureza cambiante da sorte – era sobre aqueles textos
que a Carmina Burana de Or havia sido composta, utilizando livremente
vinte e quatro poemas daquele material, mas nada daquilo tinha totalmente a
ver com o que presumimos que a música era antigamente. Apenas uma
reinvenção criativa. Mostrei também a eles algumas versões diferentes das
canções, executadas por grupos de música antiga, e falei dos estudos que eu
tinha abandonado na Europa antes do nascimento deles, como eu mesmo
tinha tocado aquelas canções. Ouviram em silêncio, encantados.
Exibi a eles o latim que eu tinha estudado, e até expliquei o que
signi cavam algumas canções. Encantaram-se com uma das imagens mais
bonitas e famosas do Códex Buranus: a roda da fortuna. Uma mulher ao centro
da roda está coroada, é ela Fortuna imperatrix mundi. No alto da roda, um rei
se encontra ricamente vestido, portando seu cetro e sua coroa. Do lado direito
da roda, um homem despenca e sua coroa também despenca de sua cabeça.
Sob a roda, um homem de roupas simples, sem coroa, segue o uxo. Por m,
do lado esquerdo, um homem dependurado na roda que gira em seu favor
estende a mão e toca o pé do rei, pronto para depô-lo e tomar seu lugar. Os
homens se tornam reis, os reis caem, e a única coisa que controla esse
movimento é a Fortuna incógnita, sempre instável, sempre volúvel. Essa era a
realidade da vida do homem medieval. “E da nossa vida também”, atalhou
Marcus.
Essa partilha com meus lhos foi excelente, e eu até pensei que a minha
relação com eles mudaria. Foi assim até o momento em que Duda descobriu
sozinha que houve um envolvimento de Carl Or com o regime nazista, e que
Carmina Burana tinha sido muito popular no Terceiro Reich, sendo
considerado um renascimento e uma representação máxima da cultura ariana.
Quando Duda me confrontou com essa informação imprecisa, eu justi quei
que ser compositor alemão nos anos trinta e quarenta era algo complicado, se
você não se alinhasse aos nazistas de alguma forma, você poderia acabar morto.
Contei que Or , como muitos depois, diria ser avesso ao regime e a rmou ter
participado da resistência. Duda me olhou com a superioridade que herdara da
mãe: “você não compra essa merda, né, papai?”. A mão de Paulo atingiu a boca
da lha. Não xingamos nesta casa. Duda cou amuada por um tempo. Mas
não houve mais Carmina Burana e música voltou a ser uma espécie de tabu.
Marcus era o único que gostava de música: fez aula de piano, de violão, toca
bem. Gosta de ouvir. Talvez arrependida, depois da briga sobre Or , às vezes
Duda descia até a sala quando eu estava tocando e ouvia por algum tempo, até
um mandá-la para outro canto da casa, porque eu precisava me concentrar.
Decido desligar a televisão, meus olhos estão cansados. Há muitos dias
Carmen não está aqui e eu preciso cuidar sozinho das necessidades dos meus
lhos, dessa casa grande. Tão logo a doença começou a se espalhar, minha
esposa correu para a casa da mãe de oitenta anos, um saco de ossos e pele
recheado de um Parkinson que escalava furiosamente após a morte do marido.
Minha sogra tinha uma equipe de cuidadoras, enfermeiras, empregada, médico
particular que ia em casa, e eu via o dinheiro daquela família escoando em
esperanças de tratamentos e cura; o dinheiro ia embora, mas nunca acabava,
como uma fonte in nita jorrando do chão. No alto de seu senso de cristã,
minha esposa dispensou todos que cuidavam da casa de sua mãe e se
entrincheirou lá, dizendo que todo mundo tinha direito a quarentena, e que
não queria gente entrando e saindo, com o risco de infectar a velha. Os salários
continuavam sendo pagos, claro, Santa Carmen. Nem a empregada que vinha
arrumar minha casa duas vezes por semana Carmen deixou permanecer, de
forma que boa parte do meu tempo com o piano foi substituído por tarefas
domésticas.
Subo ao segundo andar, é belo o silêncio do sono dos meus lhos. No cofre,
estão nossos passaportes, e alguns milhares de euros, dólares, até mesmo libras
que Carmen mantinha em casa sei lá por quê. Sempre estava falando “se
acontecer alguma emergência”. Tinha medo de que os meninos fossem
sequestrados e tivesse de dar alguma quantia aos bandidos? A era dos sequestros
relâmpagos já tinha passado e Carmen continuava com medo. Meus meninos
tinham herdado o passaporte italiano da mãe, mas eu, nada, o cônjuge não tem
direito à cidadania, mesmo se casando na igreja, no papel. Durante nossas
viagens de férias, eles sempre passavam rapidamente na alfândega, enquanto
eu, com meu passaporte tupiniquim, enfrentava as maiores las. Ia encontrá-
los comprando besteiras no free shop. Certa vez, quando fomos à Itália passar as
férias, Carmen nos levou a um m de mundo e disse: “é desse vilarejo que veio
o avô de vocês”. Um trabalhador, certo, mas que fez fortuna muito
provavelmente de forma ilícita, mas todos fechavam os olhos para isso.
Uma excitação vaga percorreu minhas pernas quando vi dentro do cofre o
pacote de papel com a caixinha do Rivotril. Era preciso fazer tudo sumir, por
isso lavei as canecas onde as crianças tinham tomado chocolate quente –
Marcus andava meio enjoado de leite, não quis beber, Duda ofereceu para
beber o dele, mas eu disse: nesta casa, não se desperdiça comida nem se come
em excesso, anda, bebe; e de fato Marcus tomou quase tudo —, e separei-as
num saco junto da roupa que eu tinha usado na minha última visita a Carmen
e sua mãe, para levar as compras. Eu fui muito cuidadoso: a receita azul veio do
segundo psiquiatra que visitei, pagando a consulta em dinheiro e fornecendo
meus novos dados. O primeiro psiquiatra me prescreveu orais e toterápicos
quando eu disse que estava ansioso, só o segundo compreendeu que eram
tempos difíceis e todos estavam tendo ataques de pânico em suas casas. Eu me
apresentei como um pai de família sofrendo insônias graves, quando, na
verdade, eu sempre dormi muito bem.
Minhas crianças. Tenho-as agora. Enquanto cresciam, percebi que cada
posse pode se tornar uma miséria. Na igreja, no automatismo das missas, a voz
sonâmbula do padre, ali sim era um lugar bom para pensar, naquela repetição
de gestos eu tracei o meu plano; o resto do mundo era barulhento, o serviço, a
casa, o trânsito, a tevê da casa sempre ligada. Duda sempre prestava muita
atenção, Paulo tinha ódio disso, o modo como ela cantava as músicas para
Jesus com um louvor idiota, seu horrível timbre fanho e nada musical. Depois,
ela fazia comentários sobre a missa, sobre o sermão, como uma beata podre de
idade. Participava de tudo, de grupos de jovens, visitas em asilos de velhos,
lares dos aleijados, crianças retardadas babando, Paulo queria mesmo que esses
morressem de peste, precisavam deixar o mundo limpo de tanto excesso, da
população ímpia, os velhos que só sevem para gastar, enfear, sujar tudo, que
morressem junto dos pobres empilhados em suas favelas, seria para o melhor.
Um mundo novo. Assim foi no Decameron, diante de corpos empilhados na
cidade fétida, belos e bons jovens mudaram-se para um lugar melhor e, através
de belas e frutuosas histórias, reconstruíram o universo.
Durante as missas, eu percebia facilmente como Marcus parecia
incomodado, como se estivesse passando por uma crise de fé. Dos três, sempre
foi ele com quem mais me dei bem. Aprendi a jogar videogame com ele. Seria
bom se a vida fosse daquele jeito: bam, você morreu! Começar de novo? Play
again, dessa vez não haveria herdeira, não haveria mesmo Marcus. Quando
penso nos mortos, eu não sinto nada, e quando meus lhos estavam acordados,
eu tinha de ngir que me importava. Tanta gente já morreu, em outros
tempos, sob outras pestes, essa é só mais uma delas. Paulo mesmo conhecia a
sujeira de se viver em uma família numerosa, tudo imundo e desorganizado,
por mais limpasse, por mais que dobrasse e guardasse roupas, e lavasse, e
passasse, sempre os corpos exalando cheiros, a adolescência daqueles que
teimavam em crescer. Preservar a memória de Marcus era mais importante do
que levá-lo consigo, o menino cresceria, cando amargo, crítico e malcheiroso
como os irmãos. Ele ia car.
Diante da peste, meus lhos são fracos: Duda tivera várias crises de choro,
Lúcio passava o dia na internet falando de política e Marcus estava assustado.
Pediu dinheiro para pagar cestas básicas para os miseráveis e eu dei. Por isso foi
boa a ideia da medicação, o sono que eles dormem agora há dias não dormiam.
Sem eles, posso ter a ilusão de que sou ninguém. Desde antes de o isolamento
começar, eu desejava cada vez mais tornar-me ninguém em de nitivo, deixar
de ser um apêndice dessa quadrilha. Eu sou um indivíduo, não quero mais ter
de usar o plural para falar de mim mesmo, sempre acompanhado do peso
deles, tendo de consultar todos e discutir antes de tomar uma decisão, aonde ir,
o que fazer, o que pedir para jantar, o que preparar de almoço. Eles são muitos
e Paulo precisa voltar a ser um só. Falsi car um passaporte agora seria
complicado, podia mexer na carteira de motorista e identidade, que o levariam
a algum país do Mercosul, e, assim, desaparecer.
Minha cama está arrumada. Dois travesseiros de cada lado, como se
Carmen fosse retornar para dormir esta noite. Todos os dias eu rearrumava a
cama assim, como se papai e mamãe realmente fossem estar lá, perto de seus
lhinhos. Penso de novo na possibilidade de levar Marcus comigo, talvez como
um refém: não me procurem ou eu mato o menino. É o que mais se parece
comigo: o queixo, as sobrancelhas, o modo de falar, de olhar. Talvez se Marcus
fosse mais jovem, mas treze anos já tinham sido tempo o bastante. Já estava
imundo, seu garotinho. A ingratidão era o ferimento mais grave que um
homem podia experimentar em sua vida. Como lhos, estavam absurdamente
abaixo das suas expectativas de pai, um pai que deu tudo por eles, tudo que ele
tinha, tudo que lhe foi exigido, e ainda assim, não tinha sido bom pai o
su ciente.
Sempre que íamos viajar, Carmen fazia minhas malas. Então, essa foi a
tarefa que achei mais complicada, mais difícil até do que limpar a casa da
minha sogra. Comecei fazendo um teste, claro, fui à casa de minha sogra
levando um supermercado inteiro, verduras, arroz, produto de limpeza. Fiz o
teste do Rivotril no leite, Carmen dormiu bem rápido, mas minha sogra não,
certamente tinha mais resistência. Quando chegou a hora do gás, o
planejamento não deu certo. Pensei até em queimar a casa, mas queria ter
certeza de que elas não sobreviveriam. Então Paulo teve de degolar a velha, o
que provocou muita sujeira, de forma que optou por apertar o pescoço de
Carmen. De fato, foi mais fácil e rápido do que ele achou que seria. No
entanto, a marca dos dedos cou ali, escurecida no pescoço morto da esposa.
Eu tinha estudado ácidos, decomposição humana, encontrei substâncias que
podem disfarçar o cheiro por vários dias. Os corpos caram lá, mas por via das
dúvidas, limpei a casa, e demorei uma eternidade. E Paulo cou imundo, como
uma velha seca daquelas podia ter tanto sangue, precisou de muita água
sanitária e cou cheirando como empregada doméstica por dias. Não queria
deixar vestígios, mas se deixasse, tudo bem, já estaria longe.
Antes de trancar o cofre, decido mudar a senha. Con ro várias vezes se não
estou esquecendo nada. Melhor conferir, porque Paulo sabe que depois daqui
não há volta. E ele desce calmamente até a garagem e joga tudo no porta-
malas, o saco com o que o podia incriminar, a mala, o dinheiro. Paulo limpa a
cozinha mais uma vez, pensando no saque dos homens da tevê, pensando que
poderia realizar algo como aquilo, depois de ter feito coisas bem mais difíceis.
Na sala, Paulo vê o piano e re ete que é uma pena deixá-lo ali, tão valioso,
tinha juntado dinheiro por tanto tempo para comprá-lo. Tirando o erro de não
vender o piano antes de ir embora, a m de comprar outro piano quando
chegasse ao outro lado, Paulo sabe que fez tudo muito bem. Retorna ao
segundo andar e, depois de pegar o travesseiro da esposa, sabe que deve
começar pelo quarto de Duda.
Solstício de inferno

Luís Gi oni

Há uma árvore de Natal em frente à minha janela. As luzes brilham assim


que o sol se vai. Centenas de luzes amarelas e brancas. Duas azuis. Uma
vermelha. Uma eira verde. Não piscam. Brilham todos os dias, noite adentro,
até o amanhecer. Mesmo neste outono que nunca acaba. Sobretudo neste
outono, quando as descobri, tão longe do Natal. Elas sempre estiveram aí, eu
não as enxergava, ou melhor, não queria vê-las. Negacionismo infantil.
Lembranças difíceis. A árvore é enorme. Ocupa um morro inteiro. Posso dizer
que chega ao céu. Também chega ao inferno. Existem enfeites na minha
árvore: ônibus, carros, ruas e casas. Casas com telhados em cima da laje onde
roupas secam e as pessoas, nos nais de semana, fazem churrasco e bebem
cerveja. Pessoas que não temem, que não tremem feito eu diante de cada dia a
vencer. Andam sem máscaras. Conversam com os amigos nas vielas. Se
abraçam. Eu as invejo. Na verdade, nada há para invejar. Todos estamos
encurralados. Sei que, enquanto se divertem, meus vizinhos da favela pensam
que este pode ser o último mês de suas vidas. Todos pensam nisso, pelo menos
durante os telejornais. Também penso. Toda hora, toda meia hora, de cinco em
cinco minutos. Estou em pior situação. Muito pior. Mas eles logo me
alcançarão. É o que juram os infectologistas diante da explosão do contágio na
cidade, que levará os médicos à macabra escolha de quem deve ou não viver.
Espero que não cheguem a tanto. Seria injusto distribuir o inferno. As pessoas
não merecem. Só desejam curtir os dias, gozar a vida como podem, nada mais
justo. A justiça, porém, não está na moda hoje em dia. Dizem que é
politicamente incorreto falar favela. Bobagem. Favela ou comunidade, sei
como elas são. Meus pais moraram lá, saímos quando eu entrava na
adolescência, graças a um bilhete de loteria. Me lembro bem. Sei como era
difícil e continua sendo. Favela possui uma carga discriminadora muito pesada.
Discriminação é o que a gente mais vê no Brasil, de raça, de riqueza, de crença,
de tudo. Eu a conheço desde sempre, a sinto na pele, quer dizer, na cor, no
convívio, no trabalho, nos cochichos, na família. Ainda mais agora. Ninguém
me aceita. Claro, não quero nem posso ser aceito nesta situação. Virei o
monstro, o cavaleiro do Apocalipse, o caído, o contaminado. Ao mesmo
tempo, de mim para mim, continuo o Zeca, casado com a Dê, pai da Didi e
do Beto. Trinta e cinco anos, funcionário da Secretaria de Saúde, pedagogo
formado numa faculdade particular, ainda com nanciamento educacional
para pagar nos próximos dois anos. O primeiro da família a ter diploma
superior. Sem mercado de trabalho na pro ssão. Sem esperança nesta merda de
país. Reduzi as expectativas ao mínimo. Quero continuar sendo o José Carlos,
o Zé Carlos para alguns, o Zeca na família, quero um futuro melhor para meus
lhos, nada mais, porém melhorar está cada vez mais difícil. A cada hora o
Brasil piora. Ficar na janela bisbilhotando a vida virou meu passatempo
predileto. É minha maneira de sair de casa. Passeio lá fora com os olhos, quer
dizer, com binóculos. Sem pressa, exploro a vizinhança. Protejo-me na sombra,
atrás das persianas, às vezes me escancaro na janela, sem esquecer a máscara. A
máscara me ajuda a assaltar o alheio. Roubo apenas cenas da vida. Descobri
que a mulher do quarto andar do prédio ao lado tem um amante que chega às
duas da tarde, assim que o marido se despede, todo de branco, com um longo
beijo. Ele, o amante, deve ter a idade dela, pouco mais novo que eu. Não fazem
preliminares, vão direto ao assunto. São rápidos. Depois cam mirando o céu,
nus, a se exibirem para as nuvens. Numa das casas da favela, uma senhora
apoiada na janela da sala procura o que olhar – tal e qual eu faço, embora ela
não pareça estar doente –, possui todo o tempo do mundo, às vezes acho que
olha para mim, mas a distância é grande, ela pode avistar outra pessoa, há tanta
gente ao redor, eu jamais poderia dizer ao certo quem enxerga quem. Um casal
de velhos perto da esquina gasta o dia em frente à tevê, pula de um canal de
notícias para o outro, não dá nem tempo para o mundo acontecer. À noite,
num prédio atrás de um lote vazio, nas salas de todos os apartamentos os
televisores cam ligados no mesmo canal. Novela das sete. Do décimo-terceiro
ao térreo, as imagens mudam ao mesmo tempo, como se a tevê fosse a parte
viva da casa. Ou melhor, o coração. Todos pulsam igual. Também co
É
hipnotizado pela telinha. Comprei uma para o meu quarto. Meu, não. É do
Beto, quer dizer, era. Ele teve de sair para eu me isolar e foi dormir com a Didi.
A Dê pôs um colchonete no chão para ele. A expulsão de meu lho me
machucou por uns dias, mas fazer o quê? Correr o risco de contagiar toda a
família? Quem tem certeza de que está imune? Até a OMS se esquiva de
garantir. Se garantir, aposto que no dia seguinte muda de opinião. Já perdi a
conta das séries da Net ix que acompanhei. Tantas, que nem lembro. Se me
pedirem para relatar os episódios de alguma, não consigo. No domingo
passado, quando a Dê e os meninos foram matar a saudade de nossos pais, de
longe, dando tchauzinho e beijinho para os velhos de dentro do carro, nesse
domingo exagerei. Umas nove horas quase sem parar. Vi duas temporadas de
Vikings, acelerando e pulando episódios quando cava muito chato, até que os
três voltaram da visita, bateram na porta e me contaram, do lado de fora, como
tinha sido bom o passeio. Depois retomei a série, até encher o saco de vez. No
meio da maratona viking, dei uma guinada, assisti um lme pornô, me
arrependi, como se tivesse traído a Dê, mas já não aguentava mais. O alívio me
fez bem, o peso da abstinência sumiu da cabeça e, sem ninguém no
apartamento, me livrei do papel higiênico sujo sem me preocupar em ser
agrado. Corri até o banheiro, com duas máscaras para não espalhar o vírus,
me limpei de novo, lavei, enxuguei, joguei a papelada no vaso, aproveitei para
despejar lá dentro o urinol que estava cheio, senti vontade de cagar outra vez,
redescobri o conforto de sentar no trono de louça, ah, curti esse prazer tão
idiota, banido por dias de urinol, essa arena de metal gelado onde sucumbo
diante da necessidade, onde nem uma banda da bunda cabe direito, pensei no
perigo de contágio para a Dê e os meninos por ter abandonado o quarto, abri
as janelas, joguei Bom Ar no meu caminho, passei álcool gel em tudo, das
maçanetas ao botão de descarga. Tornei-me um estranho dentro de minha
própria casa, alguém que não pode infestar qualquer canto que não seja o
quarto de con namento, alguém que não pode ser visto pela família a não ser
pelo celular, como se estivesse a milhares de quilômetros de distância. Ou
talvez eu seja um presidiário perigoso, um serial-killer incontrolável, metido
numa cela que só abre uma frestinha para passar água, comida e os rejeitos do
corpo. Acompanho as notícias na internet e na tevê, vejo quanta bagunça
invadiu o país, quanta incompetência e descaso nos governam, como o
Planalto desrespeita os mortos, quantos sucumbem todos os dias, quantos
ainda vão morrer. Mais de um milhão de infectados neste outono de desespero.
Mais de cinquenta mil mortos. A caminho dos sessenta e setenta. Sessenta,
setenta, oitenta, cem, cento e cinquenta mil pessoas iguaizinhas a mim. Que
tinham pais, irmãos, lhos, amigos. E a contagem sinistra continua galopando.
As projeções futuras assustam. Nenhuma autoridade se importa. O país que
governam é outro. Não mandam nem um palavrão para nós, os contagiados, os
próximos defuntos, por estarmos atrapalhando os planos do governo e
aumentando o dé cit. Me canso do descaso, me irrito, me culpo por ter
chegado a este estado, ter posto em risco minha família, ter acabado com nossa
felicidade que pedia tão pouco, ter feito do passado recente uma lembrança
distante, vinda de outra vida. Me emociono, co com vontade de chorar, volto
para minha janela, assalto o dia a dia da vizinhança. A felicidade alheia me
incomoda, quer dizer, me aborrece a felicidade que imagino existir nas pessoas
que ainda não caram doentes. Não sei se voltaremos a ser felizes. Não sei mais
se abraçarei a Didi e o Beto. Não sei se beijarei a Dê, se transaremos ainda
outra vez. Se um dia sairemos de férias. Menos que isso. Se um dia iremos ao
cinema. Ou ao shopping tomar sorvete italiano de creme e chocolate em
espiral, o preferido do Beto e da Didi. Um pressentimento me persegue: vou
morrer em breve. Encho os pulmões, alcanço o limite, não tenho di culdade
para respirar, concluo que não será hoje. Faço exercício, quatro segundos
inspirando, sete prendendo o ar, cinco expirando. Dizem que é bom para
prevenir o sufoco. Às vezes, seguro a respiração por vinte segundos, para me
garantir que estou bem. Ouvi que, entre o primeiro sintoma de falta de ar e a
morte, decorrem um, dois dias. Mas vi na tevê que um rapaz morreu em casa
duas horas depois que a febre apareceu. Também escutei que tomar sol faz
bem. Vitamina D. Ao redor das onze horas, co pelado na cama assando os
vírus da pele. Quisera assar os de dentro do corpo. Racionalizo minha
condição. Para pessoas na minha faixa etária, a infecção nem chega a evoluir
para a internação em UTI. Apenas cinco por cento precisam de intubação.
Quase sempre idosos. O problema é que me sinto velho. Estou velho. Deprê.
Baixa resistência. Estes dez dias dobraram minha idade. Na árvore ao lado,
quatro bem-te-vis pousam, examinam o bairro, empoleirados nos galhos mais
altos, de repente o quarteto solta o canto que nunca soa como bem-te-vi, mais
como um tuscadi. Ou jequeri. Pássaros sempre estão felizes. Talvez fosse
melhor ser um beija- or. Nos piores momentos, sozinho de madrugada,
quando a febre sobe e a esperança acaba, quando sonho que uma sombra me
persegue até me estrangular com seus dedos de ar, nessa hora, sem hesitação, eu
trocaria esta vida pela de um beija- or. Mesmo se vivesse apenas uns meses,
valeria a pena. Quatro pombas também aparecem, cam com as penas
arrepiadas de frio, curtindo a paisagem de tijolos e janelas. Duas delas formam
um casal gay. Uma sobe em cima da outra, depois trocam de posição. Não
sabia que havia pomba gay. Dois tucanos também já deram as caras, logo uns
passarinhos amarelos os enxotaram. Foi uma surpresa. Nunca poderia imaginar
que existissem tucanos soltos na cidade. A Didi me arranca da vigília do alheio.
Bate na porta, quer saber se estou bem, respondo que sim, tento prolongar a
conversa, pergunto se as videoaulas já terminaram, se ela fez o para-casa, o que
havia de interessante em matemática, português e ciências, se ela sabe que o
solstício de inverno está chegando, se ela e o Beto jogaram algum game, sugiro
que leia um livro, menciono de novo Alice no País das Maravilhas, na estante da
sala ainda tenho meu exemplar ganho no aniversário de dez anos, minha
sugestão uma vez mais não foi aceita, tento abraçar a lha com as palavras,
como eu gostaria de abraçá-la de verdade, apertar até sair de mim toda essa dor,
todo esse medo, toda essa incerteza, toda essa desesperança, imaginar que tudo
é um simples pesadelo, tudo vai passar daqui a pouco, quando eu acordar
comentarei com eles o sonho pavoroso que tive, todos carão curiosos, pedirão
detalhes, direi que sonhei que estava com uma doença que nunca havia
aparecido antes, ninguém sabia direito como tratar, parecia gripe, tinha
sintomas de gripe, mas matava. Matava no mundo inteiro, sem poupar rico ou
pobre. Claro, tinha uma queda por pobre. No Brasil, havia devastado o
Amazonas, o Ceará, o Rio e São Paulo. Uns juravam que tal remédio era bom,
outros contestavam, gente que nada entendia palpitava, militar che ava o
Ministério da Saúde, surgiu médico picareta do Oiapoque ao Chuí, médicos de
verdade eram ignorados, não existia vacina, a doença dava febre, diarreia, dor
no corpo, alguns perdiam o olfato ou o paladar. Outros passavam incólumes. A
cara do Beto, muito sensível a histórias de terror – ele ainda fecha os olhos nas
cenas horripilantes dos lmes –, a esta altura estaria arregalada, e a Dê me
pediria para eu parar de assustar as crianças. É duro saber que não acordarei
desse pesadelo e posso carregá-lo até o último dos meus dias, escondido, quem
sabe, na terça ou na quarta da semana que vem. Reajo, penso outra vez que
estou fora do grupo de risco, não tenho comorbidade, dava minhas corridas no
bairro, jogava futebol com a turma, sábado sim, sábado não, não preciso
apavorar, logo sairei desta, basta cumprir a quarentena, tomar dipirona para a
febre e a dor, mais um comprimido de vitamina C e outro de aspirina, sem
esquecer a ivermectina que os colegas da Secretaria recomendaram, beber
muita água, descansar e me alimentar bem. E pensar positivo. Os médicos da
UPA já me examinaram, não detectaram manchas nos pulmões, aliás, não
identi caram qualquer alteração no corpo, febre é normal nos infectados, pedi
para car internado, meu caso não precisava de hospitalização, havia poucos
leitos disponíveis, me mandaram para casa com uma certeza: logo estarei
curado. É só uma gripezinha, o plantonista diagnosticou com sarcasmo e
completou: internação é para quem deveras corre perigo. Que só voltasse se
começasse a sentir falta de ar. Não zeram teste, nem de sangue nem de saliva.
Tinham acabado todos os kits, que, aliás, também eram poucos. O prefeito não
comprou mais. A rmou que testar a população só atendia à curiosidade de
cientista. Tranquei-me no quarto. Dez dias. Perspectiva de car mais dez. Ou
vinte. A família virou uma confusão, todos inseguros com o monstro que pode
matar sem querer. Ou morrer de repente. Fiquei com medo de contaminar a
Dê e as crianças. Pensei em pedir para meus pais ou meus sogros carem com
eles, todos foram contra. Não podia pôr em risco os quatro, mais suscetíveis à
doença por causa da idade: sessentões. Crianças são assintomáticas, porém
transmitem, é o que dizem os especialistas. Ou nada transmitem, contestam
outros. Nunca se sabe. Estou trancado aqui, só com a tela e a janela por
companhia. Ao meu lado, a Dê, a Didi e o Beto minoram esse sofrimento com
sua conversa econômica. O assunto logo se esgota, percebo que querem
prolongar o papo, não conseguimos. Sei que também sofrem. O urinol que
meu pai emprestou é um constrangimento. Tenho de abrir a porta para
entregar a urina e as fezes para a Dê. Cubro com bastante papel para que ela
não veja, não há como esconder tudo. Bobagem minha, eu me digo. O que
entra tem de sair, todo mundo funciona assim. Nunca imaginei que tivéssemos
de passar por isso. Ando preocupado com a tal exibilização. Apesar de os
novos casos estarem explodindo, a Fase 2 deve começar na semana que vem. A
Dê, mesmo com a metade do salário, voltará ao trabalho em tempo integral.
Como faremos com os meninos? Não temos dinheiro para pagar uma ajudante.
Minha sogra se ofereceu, levaria a Didi e o Beto para a quarentena na casa dela,
no entanto não podemos aceitar. Primeiro, a idade. Depois, ela já contribui nas
despesas e, se cuidar das crianças, meus cunhados não pouparão as críticas que
começaram ainda no namoro. A Denise merece coisa melhor, pai, ouvi o
Serginho alertar meu sogro. O José Carlos tem alma branca, a gente sabe, mas
não é da nossa classe. Casamento com muita disparidade social não dá certo.
Custei a engolir o preconceito, a Dê me deu muita força, que eu não ligasse
para essas bobagens e a mentalidade atrasada de sua família, o amor supera
tudo. Sim, superou. Superamos. Impressionante o número de motoqueiros de
delivery que passam na rua. Há dias sem carros circulando, nunca sem motos.
A cidade parece querer só comida pronta. Pelo menos deste negócio ninguém
deve reclamar, parece que todos estão ganhando muita grana. No resto, o que
mais vejo é quebradeira. Meu irmão, o Jorge, devolveu a loja onde vendia
roupas de cama e enxovais, depois de dispensar os funcionários, e ainda não
sabe como quitará as dívidas. O Serginho diz que não reabrirá sua sapataria no
shopping. Tempo demais fechado, mais de três meses, o estoque mofou,
perdeu. Não vê como pagar os salários, o aluguel e os boletos. Vai declarar
falência, assim o prejuízo será menor. É preferível CNPJ sujo que CPF de bolso
vazio. Aqui no prédio, a alta rotatividade de motoqueiros na porta acontece até
de madrugada, apesar da proibição do síndico para a entrada de delivery. O
pessoal ca com preguiça de descer até a portaria e manda o entregador subir.
Uma moradora do sexto protestou: além do risco de assalto, o elevador ca
cheio de vírus trazidos por esses desconhecidos, que vão nos contaminar, como
aconteceu comigo. Alguém lhe contou que quei doente. Espalhou no grupo
de zap. Sugeriu que eu fosse embora, para proteger os demais moradores. O
síndico me ligou. Perguntou, em nome de todos, se tínhamos a casa de algum
parente que nos pudesse receber, havia idosos no segundo, terceiro, oitavo e
décimo andares, inclusive ao lado do meu apartamento, como eu bem sabia,
no 1106, morava sozinha a dona Filomena, com mais de oitenta anos, a
doença é fatal nessa idade, o pânico estava espalhado, era obrigação dele me
consultar para ver se podíamos chegar a um acordo, sem recorrer à Justiça.
Fiquei com raiva. Muita raiva. Eu nessa merda, preso entre as paredes e a
janela, sem a família, com medo de morrer, vítima dessa porra de vírus, e o
lho da puta querendo nos expulsar. Não me lembro de tudo que despejei nele.
Dos palavrões me lembro, pois ele xingou minha mãe de volta, e não gostei do
nível. Também me lembro do meu pedido de desculpas, um tanto tarde
demais. O síndico encerrou a conversa, ameaçando procurar o dono do
apartamento e exigir uma providência. Não vai dar em nada, não é possível que
nos expulsem, mas eu não devia ter reagido com tanta raiva, foi pior para mim.
E minha família. A Denise logo cou sabendo. Não gostou do meu desabafo e
nos desentendemos. Mal conversamos desde anteontem, o contato reduzido ao
essencial. Nessa situação, ca terrível entregar a ela o urinol cheio. Imagino a
cara que faz. Que obrigação tem ela de recolher minha merda? Deve ter se
queixado com os meninos, pois o Beto ontem bateu na porta e se ofereceu para
levar o urinol para o banheiro. O problema é que ele ainda é pequeno, sem
coordenação, e pode se sujar, aumentando o risco. Outro motoqueiro chega
com seu bauzinho laranja-choque às costas, aperta a campainha, entra. Não
faço a mínima ideia de onde me contagiei. Na Secretaria, ninguém cou
doente. Pelo menos, que se saiba. Entre os amigos tampouco. O Márcio teve
uma febre no m de fevereiro. Se curou em dois dias. Ele jamais estaria
contaminando até hoje. Me cuidei desde março. Com exagero. Evitei sair de
casa. Só supermercado, farmácia e a corridinha para desanuviar a tempestade
anunciada. Suspendi as peladas de sábado. Lavei as mãos várias vezes ao dia.
Passei álcool até debaixo das unhas. Usei máscara quando poucos usavam. Subi
a escada do prédio para evitar o elevador. E também fazer exercício. No
trabalho, na hora do cafezinho, quei pelos cantos, resguardado. Até sofri
crítica. Cagão, disse o Marco Antônio. Vai tomar cloroquina que passa essa
frescura, a Lurdinha zoou. Azitromicina nele, completou o Paulo. Fiz tudo
pelos meninos. E pela Dê. A única hipótese de contágio que sobrou foi a
coleguinha da Didi na aula de inglês. Ela apareceu doente e morreu em três
dias. Tinha asma. A Didi deve ser imune. Ou melhor, assintomática. Nunca
tinha ouvido essa palavra. Tantas outras entraram para o meu dia a dia.
Comorbidade é a mais esquisita. Ganha até de suporte ventilatório. Ou
hidroxicloroquina. Ou a dexametasona que eu tomei na semana passada, sem
receita. Depois ouvi que essa droga só funciona em casos graves, parei na hora.
Também tomei chá de raízes, de folhas, de ores. E água com limão. Minha
mãe manda entregar esses remédios, sempre adoçados com mel e uma oração
poderosa para a Virgem Maria. Ela acredita que vão me curar. Quanta
ingenuidade. Não gosto de pensar na doença, co mais deprê, pioro, não quero
que minha imunidade caia ainda mais. Mas não tem jeito, o vírus não sai da
minha cabeça enquanto assa meu corpo. De noite, tudo ca mais bonito na
favela, por causa das luzes. Eterno Natal. Só de dia as faltas transparecem. São
paredes sem reboco, barracos à beira do barranco, muitos fechados com chapas
de madeira, roupas surradas no varal, mulheres mal vestidas, crianças com
bermudinha ou calcinha e sandália de dedo, sem escola e provavelmente sem
comida, sem a merenda escolar há meses, o sobe e desce até o mercadinho de
duas portas na rua de entrada, os fregueses à tarde na padaria, os dois rapazes
com fuzil na mão, peito nu e a camiseta ao redor da cabeça, a escola pichada
contra a violência policial, a la do posto de saúde que nunca diminui, a
confusão de os nos postes. Imagino quantos ali foram para a Caixa
Econômica pegar a ajuda de seiscentos reais que o presidente ofereceu, como se
o dinheiro fosse dele, e não do povo, para o povo. De repente, o governo
descobriu que quase a metade dos brasileiros era pobre, quase indigente, queria
ajuda, precisava de ajuda com urgência, enfrentava las desde a madrugada
para entrar no banco, arriscava-se ao contágio porque ninguém respeitava o
distanciamento tamanho o desespero, a desgraça virou prato cheio para a tevê.
Lá no alto da favela, tudo some numa confusão de telhas de amianto e de
barro, parece não haver mais ruelas ou separação entre os barracos. Do que eu
escapei por um lance de sorte na loteria. O mesmo acaso que me privilegiou na
adolescência agora me pune com esse beco sem saída. Com os binóculos,
acompanho as pessoas que nunca ganharam na loteria, sigo sua rotina, acabo
me misturando a suas vidas. Juro que não quero a vida de favelado para mim.
Estamos tão perto, no entanto tão longe. Dei sorte. Pelo menos tenho meu
quarto, limpo e seguro, e onde despejar o urinol. E não tenho miliciano no
meu pé. O telefone toca. É o Manuel, lá da Secretaria. Um caminhão veio
desgovernado na BR, atravessou a pista, pegou o carro do Paulo de frente, ele
morreu na hora. Puta que pariu! O Paulo também tem dois lhos. O que vai
ser deles? E a Renata, coitada, como vai se virar? Eu aqui chorando por causa
de minha tragédia remota, quase com certeza inexistente, e a desgraça
arrombando a casa do meu amigo. O mundo continua vivendo e morrendo
apesar de minha dor, apesar de minha febre. Tem infarto, AVC, câncer,
acidente de trânsito acontecendo lá fora, como sempre houve, e eu só descobri
quando o desastre me atingiu. Egoísmo e ignorância. Minha dor aumenta. A
Denise teve um ataque de choro ao saber. E uma crise de tosse de cachorro.
Também pensou na Renata e nas crianças. Crianças que são amigas das nossas
e não podem se encontrar. Tampouco poderemos ver o Paulo, nos despedir
dele, mostrar o tamanho do nosso pesar pela partida tão fora de hora, numa
má hora. Nem se eu não estivesse doente poderíamos vê-lo. Os velórios
reabrem apenas em agosto, isso se a tal curva for mesmo achatada. O Paulo
parte sozinho, coitado. Não desejo esse destino para ninguém. Se a família dele
não car esperta, talvez seja enterrado igual aos mortos de Manaus e São Paulo,
numa vala coletiva. Aqui já começaram, agora que a pandemia piorou, após a
reabertura do comércio. Os defuntos estão empilhados nos frigorí cos, à espera
de vaga nos cemitérios. Os coveiros não dão conta do recado, trabalham até de
noite, ameaçam greve. Imagino o desespero de quem procura o hospital com
falta de ar e ca sabendo que as UTIs estão lotadas, tanto na rede pública
quanto na particular, o máximo que podem oferecer é uma cadeira no corredor
com um ventilador manual, enquanto aguarda a vaga, o que pode demorar
dias. O corpo não espera, busca ar a cada minuto, e não consegue. Morrer
sufocado é meu pesadelo. Tio Eudóxio teve en sema de tanto cigarro.
Testemunhei. Espero nunca passar por isso. Nem minha família. O que farei se
um deles tiver de ser internado em estado grave e não houver UTI? Vou gritar,
brigar, dar chilique, me conformar? A revolta será minha única saída? Para me
consolar pela perda, direi que nunca quei tão indignado na vida? Soube que
três funcionários da Secretaria desviaram o dinheiro de vinte respiradores
comprados na China. Conheço esses caras. Trabalhamos no mesmo andar.
Nunca imaginaria que pudessem roubar, se aproveitar da confusão que reina no
governo e em todo lugar. O governador nge que tudo está sob controle, mas
quem conhece a realidade do Estado sabe que não é verdade. A Secretaria
parece marimbondo quando a gente põe fogo no ninho. Vai piorar quando o
inverno chegar. A tosse da Dê me preocupou. Acho que não era tosse nervosa.
Liguei de novo para ela, perguntei como estava, me garantiu que se sentia bem.
Ofereci-lhe o termômetro, recusou. Perguntei se respirava bem, ela se irritou.
Se você acha que estou com o vírus, Zeca, está muito enganado. Lhe pedi, pelo
amor de Deus, que se cuidasse, que eu nunca me perdoaria se ela casse
doente, que começaram a escolher quem vive, quem morre, como a gente vai
fazer com as crianças caso nós dois adoecermos. Ela resmungou que então foi
por isso que eu tinha cado doente primeiro, para evitar responsabilidade
maior. Toda a casa, os meninos e eu caímos nos ombros dela, estava cansada,
não sabia onde arrumava força para aguentar tanto peso. De noite, na cama,
pensava em sumir por uns dias, descansar, car olhando o céu, escutando
passarinho. Queria dizer fui e ir de verdade. Para ver se a distraía um
pouquinho, lembrei que era uma grande ironia eu trabalhar na Secretaria de
Saúde e estar doente. Ela grunhiu que eu não era um cara sério e desligou. De
nada adiantou chamá-la através da fresta. Quem tomou nossas dores foi o
Beto. Bateu na porta de leve, perguntou se eu queria suco de maçã, ele podia
trazer. Concordei. A Denise foi quem me entregou o copo, dizendo só faltava
essa, você querer que o Beto pusesse alguma coisa nessa mão contaminada, só
podia mesmo sair loucura da minha cabeça oca. Nem tive coragem de beber o
suco. Me faria mal, temperado com tanta raiva. Deixei-o no criado mudo, corri
para a janela. A cidade parece ter recuperado a vida. Carros se ajuntam na rua,
buzinas perdem a paciência, motoqueiros costuram saídas do engarrafamento,
disseram que vão entrar em greve porque se arriscam muito e ganham pouco,
na quadra do prédio ao lado seis meninos jogam futebol, alguém, não sei onde,
toca violino, quer dizer, tenta tocar a Ave Maria, o rapaz do décimo andar, bem
abaixo de mim, contra-ataca com uma música sertaneja enquanto curte seu
cigarrinho de maconha, como em todas as tardes a fumaça sobe, invade minhas
narinas, nada sinto. Me pergunto se um dia recobrarei o olfato. Dizem que
muita gente recuperada cou com sequela. Na Itália, além do olfato e do
paladar, pacientes perderam funções cognitivas, não sei exatamente quais. Será
que esqueceram como fazer conta, ler, lembrar de nomes e lugares, ou como a
vida era antes deste inferno? Vale a pena sobreviver quando a gente ca
reduzido a vegetal? E o que vem depois, quando chegar o novo normal? O
normal alguma vez foi novo? Ouço a campainha. Estranho. Não é o interfone.
É alguém que mora no prédio. Abro a porta do quarto, só um palmo, aguardo
a Denise atender. Dona Filomena a cumprimenta como se a revisse depois de
dez anos. Traz um bolo para os meninos. Diz que gostaria que fossem visitá-la
apesar da pandemia, eles vão gostar dos doces que preparou, não importa se
pegar o vírus, já viveu muito, prefere morrer que continuar na solidão sem m.
Não suporta mais. A família aproveitou a quarentena para se esquecer dela.
Que a gente lhe dá mais carinho que os próprios lhos. Salta sobre a Dê, a
abraça e beija. Percebo que a Dê ca assustada, mas dona Filomena se assusta
ainda mais: Filha, você está ardendo de febre! Precisa ir para o hospital e cuidar
disso! Estremeço. Não sei o que fazer. A Dê tem febre, mas eu também. Fecho
a porta, olho para o chão. Começa o panelaço contra o presidente. E os
insultos. Hoje parece ter mais gente. As buzinas também gritam. Os apoiadores
revidam. Palavrões circulam entre os prédios. A mãe de ninguém é poupada.
Ando de um lado para o outro. Fecho a janela. Ligo a tevê. Analistas
comentam a superlotação nas UTIs, o prefeito diz que avisou sobre a
necessidade de car em casa, usar máscara e manter o distanciamento social,
ninguém obedeceu, que agora não tentassem jogar a culpa no colo dele, ele
nada tinha a ver com a tragédia. Será que a Dê foi culpa minha? Sim, eu a
contaminei, mas foi culpa minha? Não z por querer. Não consigo me afastar
da tevê. Começa a previsão do tempo – muito frio e chuva nas próximas
quarenta e oito horas –, a repórter anuncia que o solstício de inverno aconteceu
hoje. Solstício de inferno. Signi ca que esta será a mais longa noite do ano, o
dia com menos sol. Didi e Beto me trazem um pedaço do bolo. Atrás deles, a
Denise. Diz que não consegue respirar direito faz umas horas, está cando
desesperada. Sua pele, sempre perolada, está vermelha. Sua muito. Põe as mãos
sobre o peito, comprime as costelas. Pois somos dois em desespero. Preciso
procurar ajuda imediatamente. Não há tempo para aguardar uma ambulância.
Penso nos meninos. Não posso deixá-los em casa. Mas não tenho com quem
quem. Saímos os quatro, descemos pelo elevador até a garagem, ligo o carro,
Dê começa a car com lábios roxos, parece que vai desmaiar, acelero pelas ruas,
chego ao hospital, há umas cinco ambulâncias na rampa de acesso com as luzes
girando, uma balbúrdia de vozes e protestos, furo a la, chego à recepção, o
atendente não me deixa falar e responde ao que não perguntei:
– Quantas vezes vou ter de repetir que não tem mais vaga, porra?
Memória além da quarentena

Olavo Romano

1
Otaviano amanhece macambúzio. Oitenta anos! Oitent’anos no lombo,
como diziam os antigos. Várias cirurgias, macacoas da idade e remédios
obrigatórios. Nada apagava o brilho de um espírito jovem: sonhos e projetos
sem conta. Con ante nos progressos da ciência, ele ia, dias após dia, renovando
seu prazo de validade. Sempre empolgado, tocava a vida, sem espaço para pré-
ocupações.
Dona Zilda, sua sogra, aos 101 anos, faz jus à herança da mãe, Vovó Zimba,
que chegou aos 103 com um trago antes do almoço. A lha centenária desperta
antes do sol, medita, faz exercícios, duas caminhadas diárias de meia hora e é
um sucesso nas redes sociais. Visita museus, adora sites esotéricos, perigo de
um dia entrar na rede e não mais sair de lá. Às vezes, pega uma pausa na
conversa trivial da hora do almoço e lança uma pergunta: “Vocês sabiam que os
arturos se alimentam de luz?”. Convicta de que criamos nossas próprias
doenças, pratica a cura pela alimentação. Evitou operar a vesícula cheia de
cálculos tomando o caldo de um a vinte limões na ida, de dezenove a um na
volta, e só ingeriu arroz integral durante seis meses. No retorno ao médico,
nem uma pedrinha pra remédio. Depois, livrou-se de dolorosa artrose
comendo casca de ovo moída no liquidi cador e o limão no mesmo ritmo já
conhecido. O marido, depois de uma cirurgia de tireoide, cou com uma
fístula que não fechava. Uma noite, ele apareceu no sonho dela tomando ovo
cru e passando a clara no pescoço. Aviou a receita sonhada e foi tiro e queda.
Segue à risca as prescrições de A cura pelos alimentos e de O poder do
subconsciente, cuja indicação aos amigos provocou la na porta da Ouvidor.
Naquela manhã macambúzia, Otaviano piscou os olhos, sacudiu a cabeça e
viu-se de calças curtas na fazenda do avô que, às vésperas dos setenta e sete,
perguntava ao cunhado, também compadre e malungo: “Será que a gente
escapa dos dois machados?” Eram todos longevos, contadores de histórias e
portadores de memórias prodigiosas.
Aí lembrou-se do tio e padrinho Aristóteles, as férias inesquecíveis com os
primos num lugarzinho pacato onde ele era farmacêutico e causava espanto ao
se dizer livre-pensador, coisa que ninguém sabia direito o que era. Admiravam
sua inteligência, mas poucos alcançavam o que dizia. Enforcar o último rei
com as tripas do último frade! Sabia-se lá o que era isso? De cada qual, segundo
sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. Não farás para ti
imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem
embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Ou seja, conforme a ocasião, ia do anarquismo ao marxismo, do Velho
Testamento a Gandhi, sempre ouvido com interesse e espanto. Dois livros na
estante do padrinho intrigavam Otaviano: Os santos que abalaram o mundo e
Lenine e Ghandi. Havia também a Bíblia Sagrada e A grande síntese, de Pietro
Ubaldi. Gostava da adivinha que, volta e meia, ele tirava do bolso: “Qual a
passagem do Evangelho em que Jesus chama os apóstolos de bule?”. Esperava o
silêncio escoar-se e recitava, escandindo “pouca fé”: “Por que duvidais, homens
de pô café? Sou eu!”
Altaneiro e combativo, Aristóteles se insurgia contra o mandonismo local da
ditadura do Estado Novo. Bastava o pequeno arraial encher-se de gente para
celebrar São João – uma semana de festa com fogueira, mastro, leilão, foguete e
banda de música – que aparecia um tenente, maior patente para aqueles
cafundós, para constranger o incômodo livre-pensador e dar exemplo ao povo
pací co do lugar. Um requinte era conduzi-lo a pé até o Grupo Escolar, com
todo mundo parando na rua ou chegando à janela para reparar. Na hora de
sair, disse à esposa: “Wanda, arruma minha mala. Dessa vez, acho que vou para
Neves”. O interrogatório, no entanto, surpreendeu: “O senhor sabe manipular
remédio, aviar receita, abrir abcesso, reduzir fratura, aplicar clister?”. A tudo
respondeu a rmativamente. “O senhor é formado?”.Ele contou a viagem que
fazia, duas vezes por ano, para repassar a matéria do semestre e fazer provas do
curso livre de Farmácia: à cavalo até São João del Rei, de trem até Juiz de Fora,
de ônibus até Ubá. Depois de ouvir atentamente o relato do farmacêutico, o
tenente quis saber: “E o que o senhor está fazendo até hoje num lugar tão
atrasado?”. “Retiveram meu diploma, com desculpa de um incêndio na
faculdade. Sem diploma, não posso exercer a pro ssão fora daqui”. E concluiu,
com amargura: “É como se me zessem um favor. Mas, na verdade, estou preso
pelo resto da vida. Sem grades e sem julgamento justo.”
Tote não chegou aos setenta. Coração dilatado, pulmão entupido de
alcatrão e nicotina, penava com um en sema. O cardiologista deu-lhe mais
cinco anos, no máximo. “Deixa ele aproveitar da melhor maneira possível.”
Não largou o cigarro, não deixou de pescar. Muitas vezes, sol baixando,
mandava pegar o Alazão ou uma das éguas, deixar arreada. Os animais viviam
soltos pelo arraial. Cuia, cabresto e uma espiga de milho, os meninos saíam
procurando, Otaviano junto. O lugar era pequeno, logo alguém dava notícia
dos animais. Para quem não sabe, a palavra “animal” só se aplica a equinos e
muares, nunca a outras criaturas de Deus. Às vezes, só de sacudir a cuia com
milho e chamar “Sempre-Viva, Sempre-viva, Sempre-viva”, por exemplo, a
égua vinha, a pessoa jogava o cabresto no pescoço, ia conversando, alisando,
punha a cabeçada, montava em pelo e pronto. Mas nem sempre era tão fácil.
Numas férias, depois de muito trabalho para pegar Alazão, Tote olhou o
movimento das nuvens, sentiu o friozinho na pele e falou: “Com esse vento,
traíra não vem ao anzol. Pode soltar o cavalo”. Certa ocasião, depois de levar
milho no moinho (munho, na fala local), Osvaldo, o segundo da eira que
chegaria a quase 20, mal apeou, a mãe foi avisando: “Seu pai foi a pé pra Lagoa
do Capim, mandou você levar o cavalo pra ele”. O tempo fechou no caminho,
uma chuva de pedra daquelas, vento entortando árvore, raio estrondando pra
todo lado. Em manga de camisa, aquele lençol gelado batendo no rosto,
Osvaldo começou a tremer. Mais de frio do que de medo. Ventania. Pra não
sufocar, puxou uma perna da rédea, o cavalo virou a cara, a tala do pescoço
formando uma barreira contra o vento. “Respirei fundo, enchi os pulmões e fui
pegando ar aos poucos. Até hoje lembro daquele cheiro úmido, água e vento
misturado com suor de cavalo”, lembrou um tempo depois. Quando
encontrou o pai, ele disse: “Tá escorregando muito. Você é mais esperto,
melhor eu ir a pé”. Osvaldo e os irmãos recordam com alegria a infância feliz,
cheia de tarefas e aventuras – algumas bem perigosas para a idade. E brincam
que, hoje, o pai seria preso por infringir a lei que proíbe trabalho infantil.
Pouco antes de sua viagem nal, Tote foi pescar no Rio Pará. Dois dias de
falha na contemplação da natureza, peixe quase nenhum. Levantou-se de
madrugada e, sem saber nadar, entrou no rio, só a cabeça de fora, cou um
tempão sentindo a temperatura da água antes do amanhecer. “Essa hora, água
morninha, é uma beleza!”, disse aos companheiros.
Triste por não poder celebrar os oitenta anos por causa da pandemia,
Otaviano repassou mentalmente os parentes e os amigos e amigas que gostaria
de rever, lembrou-se de cada um deles, emocionou-se rememorando episódios
marcantes. Contou os mortos, os doentes, os que moravam longe, os que
sumiram sem deixar rastro e constatou, emocionado, que sobravam poucos
para a festa que não ia haver. Pensou no avô e nos bisavós emoldurados na
parede e viu como antigamente as pessoas pareciam mais velhas. Ou cavam
velhas mais cedo. Uma velhinha, dita assim com tanto afeto, é senhorinha.
Wanda, esposa de Tote, passava dos noventa, toda lampeira. Um dia, contando
vantagem de suas muitas atividades nos grupos de terceira idade, o lho
Armando interrompeu: “Arreda pra lá, mãe. Terceira idade sou eu!”. O troco
veio na fumaça da pólvora: ela xou os olhos nos cabelos brancos do lho e
exclamou: “Nunca pensei ter um lho tão velho!”. Armando respondeu bem-
humorado: “Desculpa qualquer coisa”.
“Não sinto minha idade”, re etiu Otaviano. “Não me iludo nem me
apavoro. A memória falha, as pernas fraquejam, o fôlego encurta. Mas sempre
tive tanta coisa pra dizer e fazer (e não fazer, só curtir), tanto lugar pra
conhecer, viagem, passeio, que o tempo talvez não dê. Principalmente agora.”

2
Com a pandemia, que lembra tanto pandemônio, Otaviano e Catarina se
organizaram para a reclusão. Os remédios chegam com carinhosos bilhetes das
meninas da farmácia, trazendo abraço e desejo de que estejam bem, outro dia
até um chaveirinho veio. A feira semanal serve de banco: a lista, passada por
WhatssApp, pode incluir dinheiro, tudo acertado no cartão. Rafa é taxista e
cuida das compras maiores. Paga tudo, presta contas e recebe o valor
transferido pela Internet. Seu roteiro inclui o Mercado Central, o Verdemar –
na intimidade, Vardemar – a loja de grãos, com bom preço e estoque renovado
semanalmente. Na compra de cogumelos, “a carne dos vegetarianos”, cou
inseguro entre shiitake, maitake, hiratake e shimeji. Socorreu-o a dona da
mercearia, gentileza suprindo lacunas do vocabulário.
Rafa já foi Rafaela. Casado agora, barba cerrada, costuma incluir abraços da
esposa nas mensagens de áudio. Mas a voz, com suave toque feminino, açula
preconceitos. Dia desses, o porteiro interfonou: “Vou colocar no elevador as
compras que a moça deixou”.
Rotinas simpli cadas, pacto de leveza e de bom humor, Otaviano e Catarina
dividem as tarefas, relaxando o rigor da faxina. Outro dia, espantaram-se com a
quantidade de fuligem, uma espécie de picumã, debaixo da cama. Três dias
depois, a lanugem acinzentada parecia enorme taturana, ou um lhote de
carneiro. Preocupada em proteger o marido da colônia de ácaros, Catarina
pegou um balde com água sanitária, panos de chão, vassoura e rodo,
determinada a enfrentar o inimigo. Mas havia tanta coisa melhor no radar que
o balde passou dias num canto do banheiro. Mudou-se para o corredor.
Limpeza que é bom, neca. Então o balde virou “debalde”. Até que veio a
diarista. Chegou de Uber, trocou de roupa, usou máscara o tempo todo e
dobrou a jornada para tirar o cascorão do piso.
Alertados pelo aumento da violência doméstica, de separações e de
depressão, o casal manteve sempre uma boa música no ar. O celular, com
resumo de notícias, salvou-os dos telejornais nocivos e de má índole, com
entrevistados com egos enormes, saindo da telinha, disputando bastidores e
altas fontes. Sobrou tempo para leitura, cinema e séries na televisão. O
entusiasmo da neta, quase médica, levou os avós à Anatomia de Grey. A série
virou cachaça. Viciados, recuaram para dois episódios por dia, no m da tarde,
com tempo para namorar, trabalhar em novos projetos, copiar melhor as
modas. Assim nasceu Continhas para um colar, delicados versos de Catarina,
com sensíveis ilustrações de Juçara Costa, prefácio da amada poeta Yeda Prates
Bernis, a ser publicado com selo da Caravana, além do áudio com declamação
da autora e música de Daniel Viana, e do vídeo de Sônia Katherine Potier. O
colar poético furou a la e pulou à frente da história da família que nossa
inspirada autora vem pesquisando com ajuda da mãe e das tias de Uberlândia.
Dia desses, voltou à forte a gura do avô paterno, levado com nove anos para o
seminário em Roma. Por discordar de certas orientações doutrinárias da Igreja,
não recebeu ordens. Casado, pelejou na fazenda e no armazém do sogro,
deixou seu múltiplo talento impresso na política, na literatura, na educação e
na difusão da doutrina espírita. Convidada a conhecer a sede Centro Espírita
que leva o nome de seu avô, Camilo Chaves, Catarina acabou tornando-se
voluntária do SOS Prece, dedicando uma tarde por semana, às vezes duas, a
atender por telefone pessoas que buscam apoio e oração em suas a ições.
Otaviano remexeu gavetas e armários, buscou fotos, cartas, lembrando-se,
com cada um desses objetos, de histórias de parentes, inspiração para garimpo
mais fundo, vontade de também mergulhar na mina da memória familiar.
Numa fotogra a antiga, estavam seu avô, os irmãos e as irmãs, doze no
total. Quando morreu tio Américo, todos se reuniram, depois do enterro, na
casa de tia Maria. Tio João Augusto, marido dela, trabalhava na máquina de
café e usavam a casca para cozinhar. A casa cheirava a café o tempo inteiro. O
cheiro virou lembrança de algo que não conhecia e cou impregnado no
recanto de maravilhosas lembranças. O café cheiroso de tia Maria,
acompanhado das gostosas quitandas de sempre, animou um pouco os irmãos
enlutados. Foi quando Vovô Zezé falou uma coisa que a parentalha, os amigos,
os conhecidos, todo mundo passou a repetir e é lembrada a partir de então: “É,
a primeira banana despencou”. Veio um silêncio grande, dilatado. “Parece que
morte passou por aqui”, disse tia Judite, arrepiada. Um dos netos, rato de
livraria, citou frase de um autor que estava lendo, um tal de Castaneda: “Você
vive como se fosse eterno. Tome a morte como conselheira. Ela está sempre a
seu lado, meio metro à sua esquerda”.
Otaviano e Catarina acompanhavam com temor e espanto a curva da
pandemia. E viram como, alfange em punho, a morte não descansa. Só que,
como se dizia dos mineiros, costuma trabalhar em silêncio, a começar pela
gente anônima, desempregada, perdida nos cafundós, sem água encanada nem
saneamento, longe dos serviços de saúde. Os mais fracos seguem ainda mais
marginalizados – negros, jovens pobres, especialmente os da periferia das
grandes cidades. Ela, a indesejável das gentes, vai recolhendo famosos de
qualquer área, guras públicas, in uenciadores, donos de sólida bagagem e
reconhecimento.
A cada mórbido boletim, aumentam suposições, opiniões, discussões, cabo
de guerra cada vez mais forte, perigo de rebentar a corda. É coisa de comunista
como a China, que já nancia a OMS e quer dominar o mundo. O vírus
estava no morcego, que compram no meio da rua pra comer. Que nada, é coisa
do Trump pra não perder poder. E as hipóteses sobre o que é o vírus, qual sua
função, onde vive, como se multiplica, aumentam a cada dia. O papel das
pestes é descartar os mais frágeis, depurar a humanidade, a ançam os sem-
noção. Nada disso, o Corona é um ente vivo que busca evoluir em contato
com os seres humanos. Que isso, gente! É porque, na correria desenfreada por
dinheiro, poder e prestígio, perdemos contato com nossa natureza divina,
nosso Deus interior, nosso Eu Superior. Ninguém fala, mas o vírus é o
excremento das células doentes, deu numa revista cientí ca do Reino Unido. É
a eletri cação do planeta, rodeado de antenas de G5, que está fechando o cerco
em volta de Gaia, ser vivo que sofre, esperneia e reage. Pegas de surpresa, as
autoridades tentam ampliar o atendimento e achatar a velha curva normal de
Gauss, adiando a volta à normalidade, agora chamada de “novo normal!”. Na
fresta da abertura, sob pressão, o Prefeito, mesmo diante da crise econômica
que se alarga mais do que devia, administra o caos. Logo adiante, forte freada,
ameaça de lockdown depois do enorme aumento de mortos e infetados.
Márcio Sampaio, poeta, artista plástico, imortal de letras e artes, quando
soube que a máquina de Otaviano estava quebrada e que Juliana, morena do
Rio Doce, se incumbiu de cuidar da roupa suja da casa, relatou seus diálogos
místicos com a lavadora: enquanto batia roupa, recitava trecho do evangelho,
com capítulo, versículo e tudo. Dagmar Braga, animadora do Coletivo 21, que
reúne boa turma da literatura, postou sua vontade de virar roupa, só pra dar
umas voltinhas. Na Avenida Murici, nome chique para uma rua simpática e
estreitinha atrás da PUC, Miguel Gontijo madruga, pinta, desenha, escreve,
cria sem parar. Lete é professora aposentada. O endereço deles lembra
provérbio egoísta: “Em tempo de murici, cada um cuida de si”. Mas ela é
convivente e agregadora. Uma noite, foi pra janela conversar com as vizinhas
de frente. De um ralo bater de panela passaram a fervorosa ladainha de Nossa
Senhora comemorando o mês de maio.
Acompanhando o vai-e-vem da covid-19, Otaviano lembrou da expressão
“dança de rato”, que sua avó adorava usar. Primeiro, a OMS desautorizou
pesquisas e uso de Hidroxicloroquina, com base em amplo estudo que
concluiu pela sua ine cácia no combate ao corona. Horas depois, voltou atrás e
autorizou a continuidade de testes sobre a substância, para, nalmente, admiti-
la para doentes graves devidamente assistidos por seus médicos à vista dos
riscos de arritmia e infarto. Pesquisadores de Taubaté garantem que o problema
é hematológico, ligado à falha no transporte do oxigênio ao pulmão. Sendo
assim, comprar ventiladores, construir UTIs seria jogar dinheiro fora. O
presidente da República faz questão de contrariar ostensiva e reiteradamente as
orientações da OMS e do próprio Ministério da Saúde. Já ouvi muita gente
dizer que ele está em desobediência civil. Mais uma coisa esquisita pra gente
entender.
Com tanta controvérsia, o aposentado Otaviano desistiu de levar a sério
informações de autoridades governamentais e acadêmicas sobre a pandemia.
Ele morava em Beagá, tinha um casal de lhos em situação confortável, seis
netos, três dos quais universitários. Na mesma manhã em que lera ampla
reportagem abordando a tendência de mudança para o interior ou para
condomínios próximos de Belo Horizonte, recebeu telefonema de seu irmão
Aderone, também aposentado, chamando-o para participarem de uma
manifestação na Praça do Papa.
– Que manifestação é essa? A favor ou contra quem e o quê, Aderone?
– Não entendi direito, mas sei que é anti alguma coisa. Deve ser só para
aparecer na televisão, criar clima para as próximas eleições.
– Por que entrar nisso, irmão? Tô fora!
– Cada um vai por seus motivos. Para não enlouquecer nessa pandemia, eu
quero ir, desenferrujar, parecer livre, ver gente, gritar, agitar bandeira, me sentir
vivo!
O “me sentir vivo” de Aderone tocou Otaviano. Balançou mesmo. Fundo.
Nos últimos tempos, vivia pensando em radicalizar, dar um pinote na vida.
Primeiro, considerou mudar-se para Portugal, o governo estava estimulando a
cidadania de brasileiros aposentados com situação nanceira sólida, passaporte
garantindo livre trânsito pelos países do euro. Depois, conversando com
Catarina, imaginou uma temporada no interior da Itália, vivendo como
morador local, com a vantagem de poder passear por onde quisesse. Agora, a
ideia era experimentar a vida numa cidade menor, por aqui mesmo. Hoje em
dia, com Internet por todo lado, poderia escapar dos con itos, das inquietudes
e de outros inimigos da harmonia, da paz, da fraternidade e da evolução
pessoal.

3
Menino ainda, nas noites escuras do lugarejo sem eletricidade onde
costumava passar férias, Otaviano aprendeu a contemplar o céu estrelado. Aí
nasceu o gosto pelos mistérios das indagações transcendentais: de onde viemos?
onde estamos? para onde vamos? quem somos? quem éramos? quem seremos? o
que viemos fazer aqui? Henrique Mateus, raizeiro, benzedor e contador de
histórias do Quebra Cangalha, garantia que viemos buscar uma muda de
roupa. E explicava: “Nascemos pelados, morremos vestidos”.
Criado numa época de coisas feitas para durar muito, ninguém imaginava o
consumismo de hoje, ilhas de plástico no oceano. Contava-se na família o caso
de um parente enterrado com o mesmo terno do casamento. “Ninguém
gastava dinheiro à toa como hoje em dia”, falava o pai. “Nem mudava tanto de
manequim”, emendou a mãe, apertando as gorduras da barriga. Ele aprendeu
que mais vale ser do que ter, que dinheiro acaba, mas o conhecimento ca,
ensinamento reforçado com provérbio: “Pai faz, lho come, neto morre de
fome”.
Com espanto e gratidão, Otaviano entrou nos oitenta cada vez mais certo
de que o tempo é nosso recurso mais escasso. E, portanto, mais valioso. No
isolamento, a morte anda foiçando adoidada, foi longe e fundo em leituras
sobre energias cósmicas, crise espiritual da humanidade, caminhos e jeitos de
evoluir espiritualmente. Viu-se aluno de grupo escolar, calças curtas, brancas
como a camisa, faixa amarela e larga atravessando o peito do menino-
presidente da Cruzada Eucarística. No ginásio, dirigiu a União Colegial da
cidade. Em Belo Horizonte, mergulhou na doutrina social da Igreja, militou na
Ação Católica, leu Lebret (ver, julgar e agir), Mounier, Chardin, Omar Kayan,
Tagore. Paulo, o perseguidor de judeus transformado em veemente pregador de
um cristianismo renovador, infundia em seus jovens amigos um fervor
missionário de tornar-se sal da terra e luz do mundo no sonho de uma
sociedade fraterna e solidária. No Colégio Estadual, reencontrou Paulo
Haddad, colega de primário no Francisco Fernandes, em Oliveira. Vinícius
Caldeira Brant, último presidente da UNE até seu fechamento pela ditadura
militar, foi seu colega de sala por três anos. Betinho, que confessou mais tarde
seu desejo de ser santo, e que viria a levantar a bandeira do “Fome Zero”,
ensinando que “quem tem fome tem pressa”, era carisma amejante em corpo
frágil. Acompanhando seus dedos ágeis ao violão, Otaviano encantou-se ao
ouvir as Bachianas pela primeira vez, Villa Lobos de aperitivo antes da missa
vespertina na Igreja de São José. A explicação do professor Veloso de que São
Tomás era o Aristóteles de batina na Idade Média instigou uma olhada na
Summa eologica, na biblioteca da faculdade. O exame dos argumentos a
favor e contra cada questão (pecado, imortalidade da alma, existência do
inferno) encantou o moço militante e mostraram-se muito úteis nos embates
da política universitária.
Quando morreu Seu Henrique, pai de Betinho, de Wanda, talentosa
escritora, de Chico Mário, de um buquê de irmãs, Henriquinho (que ainda
não era Hen l, batizado por Roberto Drummond), chamou Otaviano de lado
e falou: “Vou te dar os macetes. Além da minha mãe, que você está careca de
conhecer, dá os pêsames àquela gordinha, à lha dela, de vestido azul...”
Uma das contribuições de Betinho foi tornar conhecida a pro ssão de
sociólogo. Mas Jack Siqueira, formado pouco depois, não revelava sua
formação para não ter de car dando explicação. Um dia, nos tempos quentes
pré-golpe de 64, Jack chamou um serralheiro para colocar grades em seu
apartamento. Falavam das reformas de base, da resistência à reforma agrária, da
possibilidade de derrubarem Jango, da real sustentação que o tripé militar-
operário-estudante poderia lhe dar. O serralheiro era militante do ativo
sindicato dos metalúrgicos, argumentava com muita desenvoltura. De repente,
perguntou: “Com que que você trabalha?”. Modesto, Jack omitiu sua formação
universitária: “Ah, sou jornalista e funcionário público”. O serralheiro disse:
“Quem costuma discutir estes temas com muita propriedade são os
sociólogos”.
Aluno brilhante, Paulo Haddad passaria fácil no concorrido vestibular de
Medicina, como seu irmão Toninho. Ou em Direito, como Emilinho. Mas
preferiu Ciências Econômicas, uma pro ssão ainda pouco conhecida. Foi
conversar com o pai, que os patrícios diziam não ter aprendido o português e
havia esquecido o árabe. “E o que você pode ser?”, perguntou. “Secretário das
Finanças, por exemplo”, respondeu Paulo, con ante. Anos depois, Itamar na
presidência, quando Paulinho lhe contou que ia ser nomeado Ministro do
Planejamento (depois, por breve período, assumiria a Fazenda), Otaviano disse:
“Já pensou o orgulho do seu pai?”. “Seu Emílio não estava mais aqui.”.
Emocionado, Paulinho foi para a janela, num longo silêncio, olhando ao longe.
Mais tarde, veio o encontro com Trigueirinho. Recém-chegado de
Findhorn, vila escocesa onde a pequena comunidade buscava evolução
espiritual junto à natureza, atendia individualmente, primeiro, numa garagem
no bairro Santo Antônio, depois, num hotel no centro. Ainda não havia
iniciado sua caudalosa produção literária. Convidado por ele, Otaviano foi
conhecer Figueira, ainda uma fazenda vazia e uma casa na cidade. Tempos
depois, com o núcleo dirigente já instalado e primeiras construções concluídas,
Otaviano passava um m de semana por mês na comunidade coordenando um
grupo de plantio. O contato com as poderosas energias do lugar di cultavam a
volta ao trabalho e causavam espanto aos parentes e amigos. Passou uma noite
em vigília junto a um enxame que só seria pego no dia seguinte. Não viu nave,
nem qualquer fenômeno estranho. Mas pode ser que, sob um céu estrelado,
olhando o lento mover dos astros, chispas brilhantes piscando em diferentes
cores, tenha-se rmado secreto pacto com as abelhas.
Tinha-se como certo que o resgate era iminente e a lista dos eleitos acabara
de se encerrar. Uma gigantesca nave-mãe e muitas naves menores estavam a
postos para a missão. Estar ou não na lista dos resgatáveis era escolha prévia de
cada um ao decidir viver no planeta, nessa época e lugar, embora pouquíssimos
se lembrassem disto. Otaviano jamais teve nem buscou qualquer experiência
extrafísica.
As primeiras notícias de UFOs, OVNIs, avistamentos e abduções foram
publicadas pela revista semanal O Cruzeiro, na década de 1950, com fotos de
Ed Kefell e texto de João Martins. Mais recentemente, Otaviano ouviu relatos
de seu amigo Eros Jardim, famoso nas ondas do rádio como o mais jovem
locutor da época, cuja esposa conta, com graça, haver namorado um advogado,
cado noiva de um promotor e se casado com um juiz – sempre a mesma
pessoa. Em companhia de seu amigo Húlvio Brant Aleixo, advogado e ufólogo,
fundador do CICOANI – Centro de Investigação Civil de Objetos Aéreos Não
Identi cados. Em suas pesquisas na região da Serra do Cipó, recolheram
inúmeras histórias de avistamentos, medos e correrias. Uma senhora da roça,
apavorada com canudos luminosos voando em sua direção, morta de medo de
ser levada, relatou: “En ei numa moita e quei lá, feito um nhambu”. Sem
entender, o pesquisador perguntou: “Feito um nhambu, como?”. A
entrevistada ensinou: “Uai, cabeça no chão, bunda pra riba!”. Um morador da
região, ao ser indagado sobre quantos lhos tinha, começou a contar, nos
dedos das duas mãos. Num certo ponto, parava. Uma vez, duas. Na terceira, o
doutor da cidade perguntou se havia alguma dúvida. “Os particular também
conta?”
Gostava do silêncio e do recolhimento, do contato com a natureza, das
escolas místicas. Movido por uma sincera busca interior, pelo desejo de
contribuir para uma vida mais justa e fraterna, cumpria cada etapa até que o
ciclo se esgotasse. Assim foi sua caminhada de busca e de trabalho. Passou pela
antroposo a, pela homeopatia, bordejou a numerologia, os tarôs de várias
espécies. No livro Um Curso em Milagres, no lugar da culpa, do pecado e do
fogo eterno, encontrou a consoladora visão de que somos todos inocentes
lhos de Deus, ou seja, somos todos isentos de culpa e em busca do amor. O
amor incondicional, o perdão, o autoconhecimento, o uso dos dons pessoais
como alavanca para vencer desa os e superar os próprios limites são marcos na
jornada do buscador. A leitura e a meditação semanal de trechos do Bhagavad
Gita, feita em Belo Horizonte em um dos grupos de Figueira, alimentava a
alma e abrasava o coração de Otaviano.
Envolvido na oportunidade daquela experiência, ajudou a rever originais
dos primeiros livros de Trigueirinho , participou da tradução de Ideias em
perspectiva, compilação em 14 volumes dos Cadernos de Paul Brunton,
jornalista e místico inglês que iniciou a partilha de sua jornada interior em A
Índia secreta e O Egito secreto”, e construiu extensa obra que inclui O caminho
secreto, A crise espiritual do homem e A sabedoria do eu interior. Mais tarde, por
sugestão do mentor da Figueira, Otaviano traduziu Um mundo dentro de um
mundo, conjunto de artigos originalmente publicados pelo British Journal of
Psychology, que editado pela Pensamento, hoje, pela Irdin.
Certo dia, Otaviano contou a Trigueirinho que estava programando ir ao
Pará estudar a história de um índio pego matando animais na fazenda de um
amigo no Curral do Fogo, perto de Paracatu. Quando começaram a aparecer
animais mortos a echadas, pediram ajuda à FUNAI, que examinou as echas
e descobriram sua origem. Eles associaram o fato ao sumiço de um índio
depois de uma briga no alojamento em Brasília. Consultado, o pajé garantiu
que ele estava vivo, pois não aparecera para se despedir. Somando dois mais
dois, trouxeram um amigo da aldeia, que logo o rastreou e surpreendeu o
parente antes de novo ataque. Desorientado depois da briga, com medo de ser
preso, ele saiu andando, mas, com a implantação do projeto de ocupação do
cerrado, experiência que tornou possível a arrojada expansão de nossa fronteira
agrícola, não encontrou caça su ciente e precisou matar animais das fazendas
para sobreviver. Pensando nos mitos, nos arquétipos, nos estudos sobre
inconsciente coletivo, Otaviano imaginou ir à aldeia para estudar as histórias
contadas para as crianças, os valores ensinados desde cedo, e pensou que com
essas narrativas podia fazer um livro muito bonito.
Trigueirinho ouviu, impassível, depois garantiu: “Isto não vai acontecer.”.
Otaviano disse que já estava tudo programado, iam mandar Megaron, membro
da tribo e funcionário da FUNAI, talvez o próprio Raoni, presente à reunião
de planejamento da viagem, também fosse. “Eu vou em voo normal até
Redenção, de lá um avião da tribo me leva”, garantiu Otaviano, já meio
desapontado. “O que a gente programa aqui só vale se estiver decidido no
Alto”, disse, encerrando a questão. Tomou um gole d’água e disse: “Você vai
fazer um trabalho ligado a esse assunto do cerrado. Mas esquece a viagem”.
Otaviano cou atento, acompanhando. O tempo passando, nenhuma notícia,
nenhum contato. No dia marcado para a viagem, Megaron e Raoni aparecem
na televisão ao lado do cantor Sting. Em Londres, buscando recursos para a
preservação da Amazônia.
Meses depois, veio o convite para entrevistar membros do grupo pioneiro de
colonos, que há dez anos haviam se instalado em suas glebas, ainda dormindo
em barracas, bicho rondando, onça esturrando em noite de lua. Estava
começando o projeto de ocupação do cerrado mineiro, com oferta de crédito,
assistência técnica e comercialização por meio de cooperativa agrícola. A soja,
desconhecida entre nós, seria vendida ao Japão. Veio gente de todo o país,
muitos do sul. Cada colono (assim se dizia), com uma área média de 300
hectares, verdadeira sesmaria para descendentes de poloneses, holandeses e
alemães, cujas propriedades, muito fragmentadas, desestimulavam as gerações
mais novas.

4
Deuzinha nasceu no Pantanal do Mato Grosso, em 1947. Filha de um
fazendeiro forte e de uma buscadora dos ensinamentos místicos, sempre dizia
não ser daqui, e “queria voltar para a sua gente, a sua terra...”, os Incas. Aos
nove anos teve o primeiro contato com aquele que, aos 17, a conduziria a um
“certo lugar”, como já lhe dissera. Em uma nave, que chama de “laboratório”,
ela recebeu instruções dos Mestres da Fraternidade Branca para a missão de
obreira e a promessa de que estariam sempre à sua volta para orientá-la e dar
suporte na busca e na instrução dos discípulos que viriam a compor a
Irmandade do Sétimo Grau. Depois de anos de buscas, de encontros e de
desencontros, seu trabalho se rmou no Santuário Místico e Ecológico do
Roncador, localizado no Planalto Central, entre os paralelos 14 e 15, onde se
encontra um portal dimensional para os mundos intraterrenos. Dentro de uma
imensa caverna, são realizados rituais místicos de cura, quando um dos Mestres
atua por meio do corpo de Deuzinha, denominada a Vestal do Roncador,
realizando cirurgias e trazendo alento para os buscadores ali presentes.
Num domingo, durante um almoço em Sabará, Deuzinha contou a história
da menina que acompanhou a construção de duas pontes pertinho de casa:
uma no Araguaia, outra em Barra do Garças, entre Goiás e Mato Grosso. Um
dia, ela roubou manga, chupou umas, guardou no bornal duas mais
madurinhas. Calorão dos infernos, deixou o bornal no barranco, pulou no rio,
nadou feito peixe, refrescou bem. Subiu para a ponte com o bornal a tiracolo.
Veio vindo um homem bonito, calça listrada, acompanhado de enorme
comitiva. Lá adiante, uma ta amarrada de um lado ao outro da ponte. Parecia
festa grande. Pertinho, um avião Constelation furado de balas, lembrança da
revolta da Aeronáutica contra Juscelino.
Ela cou esperando, sentada numa calçadinha perto do corrimão. Então eles
vieram vindo. O homem bonito na frente, com porte de rei; o povo todo atrás,
em cortejo. Ele chegou, parou pertinho da menina sentada na calçadinha
chupando uma manga rosa. “O que é que você tem aí nesse saco?”, perguntou.
“Não é saco, não. É bornal. Tem manga. Roubei por aí, nas hortas dos outros”.
Ele botou um olho comprido no bornal e pediu a manga rosa, grandona. A
menina olhou para ele, tão distinto, olhar pidão, quase vacilou. Mas tomou
coragem e ofereceu a menor, comida pela metade. Ele pegou na mesma hora e
acabou de chupar, com a boca melhor do mundo. Então, os dois limparam as
mãos na roupa dela, ainda molhada. Ele acabou de secar as mãos no lenço,
tirou do bolso uma moeda grande, deu pra ela e disse: “Agora não precisa mais
roubar manga.”
Ficaram mais um tempo sentados na calçadinha, conversando. Aí, ele
despediu-se dela e foi andando até a ta amarrada na ponte. A menina correu
para casa. Tomou banho, trocou de roupa. Ainda assustada, contou à mãe o
encontro com o homem bonito na ponte, o caso da manga, o tanto de gente.
“E sabe quem é o homem que chupou manga com você? É o Juscelino, minha
lha, o Presidente da República!”
Mais tarde, chegaram uns homens desconhecidos numa rural, o irmão dela
junto. “Troca esse vestido, esse sapato, arruma a ta direito, que nós vamos sair
agora mesmo”, disse o irmão. Daí a pouco, estava diante do moço, do
Presidente. Uma mesa, enorme, as pessoas mais importantes do lugar, um
montão de gente desconhecida. Ele a chamou para junto de si, abraçou-a
carinhosamente, depois a fez sentar em sua perna. O irmão fazia sinal para ela
se afastar, mas o presidente a mantinha junto a ele, olhando-a com
encantamento.
Como se não houvesse mais ninguém por perto, começou a fazer perguntas.
Se ela estava indo bem na escola, que brincadeiras ela preferia? “Pular da lapa,
mergulhar, pescar e assar peixe na areia, roubar manga no quintal dos
vizinhos.” Ele achava tudo muito engraçado e continuava perguntando,
divertido. Se ela gostava de História. “Gosto. A mãe preta conta a da Princesa
das Pedras Finas pra gente dormir.” “Você é que parece uma princesa.”
Ele, então, contou que vinha de um lugar onde havia muitas pedras, de
todas as cores, cada qual mais bonita. Ia convidá-la para uma visita, prometia
arranjar-lhe muitas pedras de presente. Chegada a hora do almoço, ordenou
que ela fosse servida primeiro, que casse ao seu lado e almoçasse na calma.
Mais tarde, despediu-se carinhosamente e mandou levá-la em casa.
No templo do Roncador, Otaviano e Catarina assistiram a rituais místicos,
apresentações de dança sagrada (de que Catarina participou), de retirada de
tumores com a mão. Deuzinha previra, com quase dois anos de antecedência, o
encontro de Otaviano com sua alma gêmea. “Ela está pronta, só esperando
você se liberar.” Em sua busca, Catarina havia adaptado uma oração de Lauro
Trevisan, gravado uma ta com uma ária de Bach ao fundo e toda noite, antes
de dormir, lançava ao Universo sua mensagem ao companheiro. “Sinto você
por perto. Estou à sua espera para vivermos nossa jornada de amor e de
crescimento”. A espera levou um ano e meio, mas foi um encontro fulminante:
uma semana depois estavam juntos. E juntos permanecem há vinte anos. Uma
tarde, faziam a sesta ouvindo clássicos. Relaxado, quase dormindo, Otaviano,
de repente, deu um salto. “Olha a música da gruta do Roncador, a dança
sagrada!” Calma e segura, ela respondeu: “É a ária da quarta corda que eu
punha pra te chamar”.
Dois meses depois daquele encontro marcante, embarcaram rumo aos
Andes chilenos para duas semanas de vivências no Condor Blanco, sob o
comando de Suryavan Solar. Investigador de culturas ancestrais e autor de mais
de 50 livros, Suryavan é considerado Homem Sagrado pelos índios Lakota e
recebeu ensinamentos do budismo tibetano, diretamente do Dalai Lama. Com
recursos ganhos na Amway, onde atingiu a categoria Diamante, o topo da
carreira, comprou o terreno onde implantou sua organização. É lá que vive –
meditando, escrevendo, divulgando seus livros e realizando conferências e
seminários.

5
Uma tarde, no intervalo do almoço, Otaviano disse que não acreditava em
“animal de poder”, o protetor de cada um, tema abordado na palestra da
manhã. Acabou de falar, sentiu uma pontada aguda e dor fortíssima no mamilo
esquerdo. “É a sua abelha”, disse Catarina na mesma hora.
Ela sabia que, com sua primeira esposa, ele estava tomando chá de erva
cidreira no sítio de amigos quando, com forte rumor, enorme enxame pousou
no estrado encostado na parede. Antes que pusessem fogo ou jogassem água
quente no enxame, Otaviano pediu ajuda a Ricardo, o dono do sítio. “O que
preciso fazer?”, indagou ele. “Só car calmo e não ter medo. Vamos tirá-las
daqui”. Pegaram o estrado e saíram lentamente, as abelhas se emaranhando no
cabelo, en ando nos óculos. Otaviano conversava com elas: “Estou salvando
vocês. Fiquem tranquilas, agora mesmo a gente chega”. Apoiaram o estrado em
um poste e voltaram, ilesos. Depois disso, onde quer que ele esteja, elas
aparecem, se juntam, voam em volta, pousam no braço, no rosto, depois, vão
embora. Na praia, certa ocasião, não puderam tomar um refrigerante, o copo
cou cheio delas. Outra vez, seu neto Samuel era pequeno, estavam no sítio, as
abelhas foram chegando. Assustado, queria espantar as visitantes no tapa. O
avô explicou que elas eram amigas, não iam picar ninguém, era só não ter
medo. O zumbido aumentando, elas vindo de todo lado, Samuel batia as mãos
assustado e dizia: “Eu não quero car com medo, eu não quero car com
medo!”.
Samuel tornou-se um jovem belo e generoso. Em missão humanitária da
JOCUM – Jovens Com Uma Missão, passou seis meses na Nova Zelândia,
morando em um navio, com todo o trabalho dividido. Esteve em Vanuato, um
arquipélago em que cada conjunto de ilhas é governado por um conselho de
anciãos. Cada animal tem seu dono, mas são todos criados juntos. Cada
galinha, por exemplo, tem determinada parte de certo dedo cortada para
indicar o proprietário. Samuel e Juliana se conheceram lá, tornaram-se
melhores amigos. Na volta, apaixonados, marcaram casamento para maio.
Mesmo desempregados, e em plena pandemia, mantiveram data e propósito.
Num cenário de cinema, enxame de coraçõezinhos subindo na tela dos
celulares, ninguém podia imaginar que no belo sítio, iluminado pelo sol quase
poente, havia menos de vinte pessoas, incluindo o pastor e a equipe de foto e
vídeo. Depois do casamento, ainda vestidos de noivos, visitaram os avós. Forte
alegria mascarada, sem beijo, abraço ou cotovelada, tudo registrado para o
álbum das memórias futuras.
Também marcante foi a entrada no Grupo Mineiro da Simbólica Junguiana,
no qual Otaviano piou como jacu em festa de nhambu. Aulas, um encontro de
m de semana por mês, muita leitura e discussão, amizades para a vida toda.
Arquétipos, mitos, inconsciente coletivo, Eu Superior, animados seminários,
experiências encaixando boas teorias, tudo clareando a consciência de si e o
papel no mundo. Inesquecível foi o estudo do Centauro Quíron, o Curador
Ferido que, echado por Zeus, conheceu a dor na própria pele e, pela empatia,
tornou-se sensível à dor do outro. Daí o lema: “Curador, cura-te a ti mesmo.”.
Quíron foi mestre de Asclépio, Esculápio, em latim, o Deus da Medicina.
Antes de entrar em seu templo, na Grécia, onde seria atendido, o peregrino
passava sete dias em dieta levíssima, quase um jejum, dormia em pele de
carneiro para se lembrar dos sonhos e cumpria uma trajetória que terminava no
centro de uma espiral – simbolicamente, o centro do seu Ser.
Os mestres ascencionados da Grande Fraternidade Branca chegaram
durante um seminário, Catarina mostrando um livro que lhe queimava as
mãos. Uma simples olhada mostrou forte conteúdo pedindo boa revisão.
Alguns telefonemas depois, estavam aceitando a tarefa, que os acompanhou
por oito anos e vários livros, até que o processo se esgotou para os dois. Uma
a rmação recorrente nas mensagens, canalizadas por Mara Furtado e
trabalhadas por pequeno grupo de voluntários, era que “o tempo urge” e
“aqueles que não vibrarem em seus corações o Amor Incondicional não
conseguirão permanecer na Terra”.
Pensando na viagem que acabava de fazer em torno da própria trajetória,
com tantos mestres e mensagens, Otaviano deu graças a Deus pelas muitas
oportunidades de estudar, de buscar conhecimento e de sentir-se mais perto do
nosce te ipsum. Entrou em estado de relaxamento e dormiu.
Quando abriu os olhos, o ônibus estava entrando em Oliveira, cidade para
onde seu pai, há muitos anos, fora transferido, como coletor da Secretaria das
Finanças. As lembranças da infância certamente contaram na decisão. Mas a
simpática cidade era rica em atividades sociais, ambientais, culturais e
educacionais do Lions, do Rotary, da Maçonaria, das igrejas de todos os credos
e das ONGs. Além do mais, não era um polo regional, com tantas situações
semelhantes a BH; e nem pequena demais, sem infraestrutura ou serviços
básicos, principalmente, na área de saúde. E cava a uma distância razoável da
capital, com acesso por rodovia de duas pistas. Já focalizada nacionalmente ao
pressionar os vereadores a baixar salários, Oliveira voltou a chamar atenção
num jornal vespertino por ser “uma notícia boa no meio de tanta tragédia”:
uma cidade tranquila, fechada por barreiras sanitárias e preparada em sua rede
hospitalar para a chegada do corona. Dias antes, um visitante postara um varal
de máscaras, junto à Matriz, era só pegar e usar. “Olhem o exemplo de
Oliveira, gente! É o que toda cidade devia fazer!”
“Oliveira!!! Salve Oliveira, terra de Carlos Chagas!”, exclamou mentalmente
Otaviano. O lema Quasi oliva speciosa in campis, como uma oliveira no campo,
exibido no hino da cidade e nos estandartes da Igreja, o fez voltar aos tempos
do Ginásio Pinheiro Campos, terminado o primário, hoje, ensino
fundamental, no “Francisco Fernandes”, prédio imponente junto à Praça XV,
cenário de footing, ertes, des les e paradas, missas e procissões.
Tinha voltado uma vez para matar saudades e rever o Carnaval de Cai
N’Agua, numeroso grupo embuçado que lembra o antigo entrudo e saía
cantando: “Cai n’água pato, cai no seco peludo”. Voltou depois para as belas e
tradicionais apresentações dos ternos do Congado. Claro que pesou, como era
de se esperar, a simpatia ainda pulsando em sua memória afetiva.
Não passou uma semana, recheada de telefonemas e de pesquisas sobre a
Oliveira de hoje, e Otaviano já estava tomando providências para experimentar
seu novo jeito de ver, sentir, cuidar e agir em plena pandemia.
Enquanto isso, Catarina promovia uma segunda rodada de doação de livros,
roupas, calçados e objetos descartáveis, agora que tinha ido por água abaixo o
plano de mudança para o interior da Itália ou Portugal. Ainda bem que há
pouco tempo, durante uma semana, três moças PO – Personal Organizers –
tinham posto o apartamento de cabeça pra baixo, varejado cômodo por
cômodo, revirado cada gaveta, liberado sacos e sacos de lixo. Ficou um brinco,
só que até hoje muita coisa está perdida dentro de casa, em lugar incerto e não
sabido. Inclusive, uma pasta com cheques, agora obsoletos, e muitas apostas de
loteria não conferidas e certamente vencidas.

6
Pouco mais de duas horas e meia desde a saída de BH, estava Otaviano
chegando ao seu apartamento no Hotel Vila Mineira, reservado pela Rogéria.
Ele ainda não tinha nada, absolutamente nada programado para os próximos
minutos, os próximos dias, os próximos meses, os próximos anos. Lembrou-se
dos motivos de Aderone para participar da manifestação de rua e sentiu-se
vivo, livre e desenferrujado para experimentar a nova etapa de sua vida.
Nos primeiros dias, sem pressa, satisfeito com a decisão, cou entocado no
hotel, ouvindo as rádios locais, lendo o Gazeta de Minas, remoendo as últimas
páginas de um livro que tinha levado e assuntando sobre a cidade. Percebendo
seu interesse, a gerência do hotel providenciou um exemplar de História
contemporânea de Oliveira, consistente obra dos jornalistas Márcio Almeida e
João Bosco Ribeiro, expressa em alentadas 1102 páginas. Chamaram-lhe a
atenção os versos de Belmiro Braga, escritos em 1910:
Foram-me as horas benditas
Em vossa terra feliz:
das moças bonitas,
Terra dos homens gentis!
De repente, Otaviano lembrou-se de como o saudoso Tio Neca, já doente e
desanimado, dizia de seu estado de saúde: “Ah, o físico abatendo o moral”.
Lembrou-se também de Lebret – ver, julgar e agir. Pensou nos sete níveis de
energia, sete níveis de realidade. E teve clareza de que, para contribuir de modo
elevado e objetivo, teria de botar o pé na rua, ver e ouvir como a cidade lidava
com a pandemia. De carro, para evitar maiores contatos, saiu meio sem rumo
até chegar à Praça XV, considerada o centro de Oliveira, com seus casarões
centenários, a sede da prefeitura, as agências de quatro bancos, as lotéricas, o
único cinema local e muitas lojas.
Ficou chocado ao ver tanto movimento. E encantado com o jeito
descontraído das pessoas, parecendo que o vírus não amedrontava o povo. Até
ele entrou no clima. Estacionou em frente à Casa de Cultura e oliveirou-se na
sugestão de conhecer a lanchonete do Russo, ali ao lado. Sentou-se em um dos
banquinhos do balcão e, enquanto saboreava duas coxinhas, puxou prosa com
quem estava mais perto. Logo logo cou sabendo o motivo de os bancos da
praça estarem cheios de gente, uns sentados, espremidos, e outros em pé. Uma
turma era de ex-atletas do Social Futebol Clube, outra de bancários
aposentados, outra de negociantes de café em sacas, outra de catireiros,
compradores e vendedores de gado bovino. Estas eram as turmas da manhã, até
hora do almoço, porque à tarde vinham outras, também barulhentas e também
movidas a casos de humor, bullyings e discussões sobre futebol e política.
Ao saber que havia outra bonita praça, chamada Manoelita Chagas, perto
do hospital, da sede do bispado e de muitas farmácias, lá foi Otaviano, subindo
pela Avenida Pinheiro Chagas, embelezada em seu canteiro central por
exuberantes e delicadas rosas e dezenas de pés de oliveira, que, como é sabido,
produz azeitonas, matéria-prima do azeite. Aproveitou a saída para comprar
umas coisinhas na Farmácia Nossas Ervas, onde conheceu Kiko, o simpático
proprietário responsável pela recuperação da Fazenda Bom Retiro, onde nasceu
Carlos Chagas. Um dedo de prosa e cou sabendo como os oliveirenses
pareciam se recusar a sofrer com a ameaça da covid-19.
– Não é só no centro – disse Kiko – o mesmo comportamento você vê nos
bairros Alto São Sebastião, Rosário, Dom Bosco, Elias Raimundo, por aí afora.
Cheio de gente sem máscara, sem medo e sem noção do perigo.
Na saída, Otaviano avistou, a poucos metros, a sorveteria Picogel, do
Bartinho, e cou com água na boca. Pegou uma bola de passas ao rum, uma de
ameixa e outra de limão. Sentou-se em uma das mesas na calçada e cou
matutando no que vira e ouvira sobre o comportamento dos oliveirenses. Na
mesa ao seu lado, estava uma senhora bem-apessoada e parece que ela
adivinhara seus pensamentos.
– Como é que pode tanta gente despreocupada como em Oliveira? No
começo, assustei, mas agora, co é admirada. Vim de São Paulo há trinta anos,
acompanhando meu falecido marido. Agora não saio daqui nem morta. É uma
cidade que não sai dos trilhos. Veja aquele ali com sua rotina – disse ela,
apontando para um senhor bem cuidado, do outro lado da avenida, na entrada
do hospital. Todo dia ele vem visitar pelo menos um internado. Dizem que
muitos familiares de doentes não gostam dele por perto, porque ele tem fama
de agourento. Muitos doentes morreram depois de sua visita.
Foi um momento de emoções e de decisão para Otaviano. No dia seguinte,
voltou a procurar Kiko e Russo para programar seus contatos, começando pelo
Bispo Dom Miguel e os dirigentes do Rotary e das Lojas Maçônicas.
A grande surpresa foi o reencontro com Teninho, colega de ginásio no
Pinheiro Campos, hoje presença certa em qualquer iniciativa comunitária e
evolutiva da cidade, principalmente as de cunho ambiental. Na juventude, era
respeitado beque do Social. Pelo tipo galã, tinha o maior cartaz com as moças,
ganhou do Rogério Vieira o apelido de Pedro Armendáriz, famoso ator
mexicano da época. Jornalista reconhecido por sua capacidade e liderança,
Teninho havia trabalhado em grandes empresas e veículos nacionais de
prestígio. Aposentado, vivia a poucos quilômetros da cidade, na aprazível
Fazendinha Boi Parido. Pouca gente entendia o nome, muitos entendiam
errado. Era só para lembrar Guimarães Rosa: “P’ra uns as vacas morrem...pra
outros até boi pega a parir”.
Otaviano encantou-se com a casa enorme, arejada, ensolarada, água caindo
do bicame no pequeno lago rodeado de ores. Canteiros em forma de
mandala, ervas medicinais raras e variadas, um pomar com muitas frutas, horta
com mangarito, cajá (também chamado tomate de árvore), aspargo. No
galinheiro, pato, peru, ganso, marreco, angola, tudo quanto é bicho de pena
em ruidosa latomia. O xodó daquele dia eram os pintinhos nascidos de ovos
azuis vindos de Lima Duarte; a expectativa é ver os futuros galos músicos,
comprido canto acompanhando a cabeça descendo, descendo até quase
encostar no chão. Criadores destes famosos galos arrastam mala, contam
vantagem: juram que em tempo de chuva, se o galo for bom de verdade,
enterra o bico no barro, carece enxadão pra desenterrar. Sempre buscando boas
novidades, Teninho anda atrás de uma raça que bota ovo azul. “São de origem
chilena, araucana, mapuche”, explica. Pergunta daqui, pergunta dali, descobriu
criadores no Ouro Fino, no Pé do Morro, no Engenho. “As galinhas são mais
peludas no pescoço e na cabeça, algumas formam uma espécie de orelhinha.”
Esta semana descobriu galinhas músicas botando ovo azul – um prêmio extra
da Mãe Natureza a seu cuidadoso lho. Na exuberante moita de bambu, ca
um banquinho, próprio para meditação. Impressionante é o templo ecumênico
construído em um silo desativado – nas paredes, símbolos das religiões mais
antigas, lemas e princípios éticos comuns à humanidade. Junto à parede
circular, bancos de cimento próprios para recolhimento e meditação.
Depois do almoço, Teninho deu uma aula sobre as plantas medicinais, que
ele chama de “uma farmácia viva, farmácia da Natureza, farmácia de Deus”. E
prossegue:
Elas resgatam saúde, enquanto os medicamentos alopáticos atacam doenças. Na Idade
Média, como preventivo e curativo para ferimentos e fortalecimento muscular, os
soldados tomavam chás de Milefólio/Mil-em-ramas e de Ginseng/Fá a, antes e depois
de guerrear. No Brasil rural, um mal-estar era inicialmente tratado com Panaceia/Para
todos/Para tudo. Para má digestão, recorria-se a Jurubeba, Hissopo/Mané-turé; se fosse
uma tosse ou outro distúrbio respiratório, o recurso era Guaco, Eucalipto, Agoniada,
Lípia ou Flor de Laranjeira; cistite e outros problemas urinários eram cuidados com
Cavalinha ou Cervejinha do campo; se fossem gases em crianças, santos remédios eram
chás de Poejo e de Marcelinha.
En m, a Natureza dava e ainda dá medicamentos de comprovada e cácia em disfunções
nos sistemas circulatórios, respiratórios, urinários, digestivos, etc. É só querer e procurar.
Aqui na Fazendinha Boi Parido, temos cerca de 200 variedades de plantas medicinais,
muitas delas em uma mandala energizada por Capim Limão/Capim Cidreira, Erva
Cidreira Verdadeira/Melissa, Valeriana, Hissopo, Agoniada, Cavalinha, Menta,
Mertiolate, Terramicina, Guaco, Insulina, Espinheira Santa, Panaceia, Bardana,
Tanchagem, Dente de Leão, Lípia, Ginseng/Fá a, Milefólio, Estévia, Louro, Cervejinha
do Campo, Jurubeba, Confrei, Poejo, Alecrim, Assa-Peixe, Capuchinha, Mirra, Incenso,
Jambu, Cânfora, Arnica, Bálsamo e muitas outras...
Vitorioso gestor de mobilização comunitária, Demóstenes envolveu famílias
e lideranças do interior, garantindo evasão zero nas cidades em que atuou. Seu
livro Salve, Água! é louvor e reverência ao ser vivo existente desde os primeiros
dias da criação. A Água (sempre com maiúscula para ele) nos antecede e nos
garante a existência. Indo da ideia à ação, coordena grupo de pequenos
agricultores da nascente do Rio Jacaré, em bonito trabalho de manejo de solo e
produção de água. Indagado do porquê deste engajamento, responde: “Não
quero salvar o Planeta, não trabalho com a ideia da escassez. Apenas quero ver
se me torno uma pessoa melhor”.
A visita à fazenda Boi Parido, a simpatia e receptividade de Beatriz, de quem
Otaviano se lembrava nas quadras da Praça de Esportes e do Oliveira Clube, a
a nidade de propósitos com Teninho, resultou numa surpresa: convite para
que Catarina viesse logo, se hospedassem na Fazendinha até resolverem a vida.
Como não podia deixar de ser, ela também cou encantada com o lugar,
com a hospitalidade de Beatriz, a comida saborosa de Meirinha, o alto astral da
casa. Na remexida e na reorganização do apartamento em Belo Horizonte,
apareceram dois livros de receita da Vovó Orozimba, Zimba, na fala carinhosa
dos netos. Entre os inesquecíveis cheiros e gostos de férias e de infância, uma
cena fez-se conta no poético colar de Catarina, pronto para publicação:
Mas o bichinho do mato
virava gente quando,
lá nas Furnas de São Domingos
vovó Zimba
entornava aquele
requeijão quentinho
sobre o doce vermelho de
toranja
Em pouco tempo, o casal belo-horizontino parecia oliveirense. Ele,
proseando com novos amigos, andando folgado e prestando serviços como
ambientalista voluntário em projetos do GRAMDS – Grupo Ambiental de
Desenvolvimento Sustentável, como educador no cuidado com crianças e
adolescentes no Ipê Amarelo, como incentivador de leituras no projeto Livro
Amigo e integrado em campanhas do Rotary, da Maçonaria e de Pastorais da
Igreja. Ela, depois de conhecer todas as irmãs de Beatriz, sentiu-se ainda mais
em casa. Eram seis lhas, todas com nome começando por B. O caçula chama-
se E gênio e é médico como o pai. Quando nasceu, ganhou do Teninho o
apelido de Zé, e Zé ele cou sendo na família. As lhas eram chamadas
“ephiguetes”, em analogia às chacretes, por admiração delas ao pai, Dr.
Ephigenio, médico e ex-prefeito da cidade. Suas opiniões fortes, temperadas
por certa teimosia, caram lembradas na história da família. Quando dividiu a
fazenda, pertinho da cidade, cada genro ocupou sua área, principalmente
colocando gado. Zé Antônio, engenheiro de alma urbana, lho de intelectual,
morava em Belo Horizonte e cou mornando, como se usava dizer. Num
domingo, família toda reunida em Oliveira, sugeriram que ele plantasse
braquiária, arrumasse umas rezes para pisotear. As mais próximas eram as do
sogro. Mas ele foi taxativo: “Vaca minha não come braquiária.”. Deixaram pra
lá. Tempos depois, tornaram a lembrar do assunto, todos olharam para ele, que
pegou a coisa no ar e disse: “Ô, Zé Antônio, traz o que quiser lá de casa e põe
pra pisotear seu capim.”. Dois, três meses passados, sogro e genros no sítio do
Zé Antônio, um deles, não sei se Teninho, Rubinho ou Geraldo, tomou
coragem e falou, olhando pro sogro, despistado: “Olha lá, gente. As vacas tão
comendo braquiária”. Doutor Ephigenio fulminou: “Comer, come. Mas come
de cara ruim.”.
Braquiária à parte, o fato é que ninguém sabia como ia car a situação. Nem
em Minas, nem no Brasil, nem em qualquer lugar do planeta. A pós-verdade,
criada nos laboratórios da politica para tocar emoções e in uenciar pessoas,
inventando versões convenientes dos fatos, vicejou como praga com o nome de
fake news, expulsando para o lixo do esquecimento o tempo em que a palavra
empenhada ou um o de bigode dispensava documento. A doença da
enganação, do ódio, do joio que prospera ngindo ser trigo, ser obra de Deus,
isso, sim, é doença até agora sem cura nem vacina.
A política sanitária empreendida pelo jovem Secretário Lucas Lasmar tem
protegido a cidade e seus moradores do agelo da covid-19 e causa orgulho aos
oliveirenses. O exemplo mais radical de fechamento à pandemia parece ser o da
Nova Zelândia, com 1549 casos con rmados, 1506 recuperados e 22 mortos,
comparados com um total global de 13.885.746 de casos con rmados,
7.779.604 recuperados e 592.573 mortos. Os dados de Oliveira eram ainda
mais expressivos. A última pesquisa disponível apontava 788 casos suspeitos,
158 em isolamento domiciliar, 1 hospitalizado. Dos 639 testados, 575 foram
negativos, 64 positivos, dos quais 28 estavam em isolamento domiciliar, 35
recuperados e apenas 1 hospitalizado.
Com dois meses naquela vida descontraída e cheia de boas novidades,
Catarina e Otaviano começaram a pensar. Uma hora, o surto passa. Na
incerteza quanto ao prazo para uma vacina segura, todos estariam vulneráveis
por não terem entrado em contato com o vírus. Alguém poderia sugerir que
cidadãos saudáveis buscassem contaminar-se para passar a doença a outros,
também de menor risco. Seria uma política sanitária às avessas, que ninguém
aprovaria pelos riscos imprevisíveis e por anular todo o competente trabalho
desenvolvido até agora. Assim, em plena pandemia, Otaviano e Catarina
ncaram os pés em Oliveira. Como disse Teninho, ele “abriu seu coração para
serviços comunitários, fortaleceu suas energias cósmicas e harmonizou sua
consciência crística como suporte de sua evolução espiritual”.
Alugaram uma casa simpática na Avenida Américo Leite, perto do antigo
coqueiro abraçado. Nas horas vagas, ele começou a trabalhar no romance que
sempre quis escrever; ela continua aberta às visitas das musas e, depois de trocar
receitas com as animadas ephiguetes, testou, provou e aprovou tudo o que
Vovó Zimba zera nas Furnas de São Domingos. Com a competente
consultoria de Beroca, que durante muito tempo manteve um caderno semanal
no Estadão, colocou no ar um blogue que vem fazendo o maior sucesso, cada
dia com maior número de seguidores.
O casal vivia em paz, com caminhadas diárias, novos amigos, trabalho
voluntário grati cante, o romance caminhando bem, Catarina ocupada entre o
blog e a visita das musas. Olhando para trás, nada a reclamar, só gratidão. Mas
Otaviano não estava feliz. Reconhecia a pancada dos oitenta, mesmo estando
bem-disposto, todas as coisas em ordem. Depois de ler sobre a Ressonância
Schumann impressionou-se ainda mais com o vertiginoso passar dos dias,
imaginando como bem viver a vida que lhe restava em boas condições.
Quantas vezes ouvira os mais velhos dizendo como a vida passa num piscar de
olhos. Só que agora o velho era ele, mesmo não sentindo. O geriatra lhe
dissera: “Você não pode continuar vivendo como veio até aqui”. O desa o é
conciliar os sonhos de um espírito que não envelhece com um físico que sofre e
paga pelos desgastes inevitáveis.

Epílogo
Numa manhã em que caminhava sozinho, sentou-se em um banco à beira
do Maracanã, pegou o celular, foi ao Google, selecionou conceitos,
ensinamentos, crenças populares sobre a vida, geralmente compreendida entre
o nascimento e a morte: Taiô o sangue, cabô (Manuelzão, em momento de
descrença); o que sei é que nada sei, mas descon o de muita coisa. (Rosa); O
homem nasce, cresce, ca bobo e casa (dito popular que nada diz); o maior
problema da vida é a morte (ateu e materialista); porque, onde estiver o teu
tesouro, aí também estará o teu coração.(Mateus 6:21); além da terra, além do
in nito, eu procurava em vão o céu e o inferno. Mas uma voz interior me
disse: O céu e o inferno estão dentro de ti mesmo (Omar Kháyyám, Rubayat);
ninguém nunca voltou pra contar como é lá (dito popular, cético); pr’a o céu
eu vou nem que seja a porrete (Augusto Matraga, desistindo de cortar a bala
um talo do mamoeiro); a volta à Casa do Pai começa no dia que a gente nasce
(Padre, durante batizado); não somos seres humanos vivendo uma experiência
espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana (Teilhard
de Chardin); eu quase que nada não sei. Mas descon o de muita coisa
(Guimarães Rosa); Faça o que eu falo mas não faça o que eu faço (ditado
popular que inspirou Renato Russo); A viagem mais longa que você pode fazer
é de 30 centímetros, entre o cérebro e o coração (ouvido em uma palestra); A
distância mais longa é aquela entre a cabeça e o coração ( omas Merton).
De memória, anotou uma frase de Robert Karku : “A pessoa morre como
viveu”. Então, lembrou-se de uma historinha que o Ronaldo Simões Coelho
adora contar. Havia um fazendeiro muito poderoso, mulherengo feito ele só,
lho pra todas quinze bandas, mas que morria de medo de penar eternamente
no fogo do inferno. Já nas últimas, em raro momento de consciência, talvez o
derradeiro, viu uma gura em pé do lado da cama, roupa preta, não
reconheceu o padre que viera lhe dar a extrema unção. Olhou, pegou a batina
com o polegar e indicador, viu que era pano de qualidade, perguntou: “Viúva
de quem?”.
Bebeu o resto de água, levantou-se, foi pra casa. Abriu o Grande sertão,
folheou, sôfrego, até encontrar o que lhe sossegaria o coração:
O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. A nam ou desa nam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que
me alegra montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma
beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo
pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o
milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.
Força maior

Afonso Henriques Neto

Há no teatro, como na peste, um estranho sol, uma luz de intensidade anormal na qual o
impossível e o difícil parecem tornar-se elementos naturais. [...] E a peste é um mal superior por ser
uma crise completa, não sobrando nada depois dela a não ser a morte ou a puri cação.
Antonin Artaud

Claro que uma força maior me levara àquele pequeno museu de velhas
pinturas da história norte-americana em Washington. Antes, saíra da Union
Station e caminhara por variadas ruas da cidade até chegar ao Teatro Ford, hoje
um teatro-museu bem popular, local onde o presidente Lincoln fora baleado na
cabeça na noite de 14 de abril do distante ano de 1865. Socorrido e
transportado para a Petersen House (hoje também museu), localizada do outro
lado da rua, defronte ao teatro, o presidente agonizara naquele lugar durante
toda a noite até a morte, ao amanhecer. Eu cumprira as visitas sombrias ao
teatro e à residência onde morrera Lincoln junto a um casal de turistas – uma
mulher alourada e estranhamente comovida ao lado de um homem quase calvo
com antiquadas costeletas negras –, e então o prosseguimento de meu andar
solitário por Washington, empurrado sempre por vigorosa força. Em meio a
um confuso delírio de cores que se enovelavam de forma extraordinária e me
assaltavam como se dentro de um sonho, recordava a visita que realizara dias
atrás ao Museu de Arte da Filadél a, também atraído por um anseio que se
fazia urgente e implacável, e então as horas inteiras que passei (ou que
passarei?) como que hipnotizado frente ao Nu descendo uma escada nº 2, a tela
pulsante de Marcel Duchamp. Não havia nenhuma relação aparente entre o
pequeno museu de pinturas históricas, localizado nessa casa de dois andares
que acabara de encontrar em rua tranquila de Washington, e o portentoso
Museu de Arte da Filadél a; nem muito menos entre a famosa obra de
Duchamp e o quadro que descrevia a morte do presidente Lincoln nesse
simples museu histórico, como narrarei mais à frente (ou como teria narrado
antes?), mas isso era o que menos importava.
Lembrava-me agora (agora?) da conferência de conhecido crítico literário
em que ele discorrera sobre um assunto que me impressionara na época e que
poderia talvez resumir na expressão tempo-labirinto-inacessível na literatura.
Sim, aquela nebulosa temporalidade em que passado, presente e futuro
abandonassem as balizas do mundo natural e se perdessem por dimensões em
que qualquer signi cado para tempo (ou lugar) fosse puro espelho do irreal
(irreal?) universo novelesco. (Mas o tempo no plano da realidade não resvalaria
também para certa abstração?). Eu fui agora o personagem que amanhã
passeará nesta rua, ou algo do gênero, se fosse possível me fazer entender assim.
Pois talvez pudesse dizer de um tempo-fantasma a encadear e tornar as palavras
irreparáveis, quando quem sabe tempo-poesia fosse a denominação mais justa.
A nal, que espécie de tempo (e de lugar) habitaria uma frase-verso do tipo “um
vendaval de violinos varria agora o vermelho da montanha”? Varre, varreu,
varrerá, onde quando? Não haver tempo nem espaço na tensão poética, na
ardência-esponja? Tempo-metáfora? Metonímia-espaço? Existência-linguagem?
Oxímoros-coágulos. Ausência de tempo, o nenhum chão plausível. Amanhã fui
a tempestade que ora varre em cor a montanha. Ressoar mundos impalpáveis
na amplidão. In nito buraco no aberto. Abstrações.
É que sempre voltava a essas considerações um tanto absurdas ao buscar
marcos para qualquer enredo a ser desenvolvido de modo literário. Ou, de
outra forma, seria como se houvesse sempre o meu próprio nome, este João
José a que me acostumei desde que me entendo por gente, inarredavelmente ao
lado da personagem de qualquer narrativa que estivesse a desenvolver; no
momento um Marcelo (que neste enredo talvez fosse bem mais o próprio João
José, vá se saber) a seguir sem aparente direção pelas ruas de Washington (mas
essa confusão de nomes ou caracteres também seria o que menos importava,
pois indicaria tão só que realidade e fantasia muita vez se misturam em
desconcertantes cerimônias de abismo, ou alguma coisa semelhante, quando
falamos da criação artística). Marcelo sorria dessas pretensas di culdades,
quando a a ição maior talvez fosse mesmo se ver de súbito, e por inteiro
desarmado, de frente para o Nu descendo uma escada nº 2 no Museu de Arte da
Filadél a. O que acontecera é que, apesar de saber que sair de Nova York era
um erro, uma vez que tanta coisa ainda havia por se fazer na Big Apple,
Marcelo se vira de fato arrancado da cidade. Vamos dizer que a ideia era que
casse mais uma semana em Manhattan a anar entre as magní cas
cordilheiras de concreto e vidro dos prédios de todos os estilos, nessa formação
de um mosaico de prodigiosa energia e beleza, assombro a se cristalizar de
maneira poderosa e a se exibir em sinfonia arquitetônica absolutamente
singular. E que após essa intensa semana, em que visitas a museus estariam
incluídas, voltaria direto para o Rio de Janeiro, de onde às vezes parecia nunca
ter saído. Esse o plano. Mas então a violenta e inesperada força que me puxara,
que me levara quase arrastado até a Penn Station, onde embarquei em um trem
para a Filadél a sem pensar duas vezes. Antes, precisei ir ao hotel pagar a conta
e arrumar às pressas a mala, sempre conservando com cuidado o elegante e
antiquado jaquetão escuro por debaixo das roupas comuns. O pai me dera a
peça inusitada explicando ser relíquia familiar. Parece que pertencera ao bisavô
irlandês que emigrara para a América do Norte e seguira mais tarde para o
Brasil. Só a experimentei uma vez e quei impressionado, pois além da peça
não apresentar nenhum cheiro de mofo, parecia feita sob medida para mim.
Quando dessa viagem a Nova York, alguma coisa em minha cabeça dissera de
modo incisivo ser importante que eu levasse o jaquetão ancestral, e, pela
primeira vez, retirei a vestimenta do armário e a coloquei na mala para seguir
comigo. Paguei, portanto, a conta do hotel e me dirigi à Penn Station. De
maneira sonambúlica e quase em ligação direta, cheguei ao Museu de Arte da
Filadél a, o imponente prédio ao alto dessa também imponente escadaria,
cenário utilizado em tantos lmes, para cair de um pulo bem defronte à tela de
Marcel Duchamp. Não tinha nenhuma ideia sobre a razão de ter sido esta e
não outra a tela escolhida, ou melhor, o quadro que estaria destinado desde
sempre para mim. São leis secretas e implacáveis, semelhantes à lei da gravidade
(e sorria ao pensar nisso e ao me lembrar de um poeta que a rmara ser contra
todas as leis, inclusive a da gravidade). No trem de Nova York para Filadél a
passei os olhos na primeira página de um jornal velho de muitos dias, guardado
em uma das bolsas colocadas na parte de trás dos assentos, que noticiava a
epidemia que surgira na cidade de Wuhan, na China, e que se espalhava
perigosamente não só em outras regiões chinesas, mas por diversas partes do
mundo. O problema fora talvez causado por vírus existente no morcego e que
teria passado para outros animais silvestres, tal como o mamífero pangolim,
espécie semelhante ao tatu, muito consumido por camponeses caçadores. A
continuada ingestão desses animais acabaria por contaminar o ser humano.
Tratava-se, em suma, de novo coronavírus responsável por doença grave e
muito infecciosa que no momento se propagava pela região italiana da
Lombardia, cuja capital é Milão, e onde havia número alto de mortos. E a
notícia terminava por dizer que a ameaça se transformava com rapidez em
perigo global, ou seja, que estaríamos diante de feroz pandemia. Os habitantes
dos lugares atingidos eram obrigados a permanecer trancados em casa, pois essa
era a maneira mais e caz para se conter a transmissão da moléstia, mesmo
porque não havia ainda nenhum remédio e caz para combater o vírus, esse
microscópico, misterioso ser gelatinoso, alguma coisa que escorre entre o que é
vivo e, de modo simultâneo, morto. Um frio cortante percorria meu corpo,
mas a ensolarada paisagem vista da janela do trem conduzia uma energia tão
intensa que nenhum inimigo parecia ter força su ciente para sequer arranhá-la.
Contudo, a ameaça que grassava invisível mundo afora era de tal maneira
concreta, que me levou por último a lastimar ter saído de casa para realizar
uma viagem que talvez estivesse em de nitivo fora de qualquer controle ou
sentido, vez que tudo mergulhava em insegurança e desordem, enquanto o Nu
descendo a escada brilhava diante de meus olhos.
Era nítido que Duchamp estava interessado nas experiências de análise e
decomposição do movimento por meio da desaceleração. Naquela longínqua
década de 1910 em Paris, quando a obra pictórica se realizara, as experiências
cronofotográ cas estavam na moda. Consistiam em tirar sucessivas fotogra as
de vários instantes de um deslocamento, capturadas em única chapa
fotográ ca, promovendo o registro realista da trajetória desse movimento.
Assim, tornava-se possível ver o que o olho não conseguia capturar. Na pintura,
Duchamp desacelera a gura que desce a escada. Com isso se permite visualizar
o movimento dilatado no tempo. O artista francês chamava essa experiência de
retard, um atraso. Era como se estivesse sempre um passo atrás, bem ao
contrário do tempo futurista, que desejava acelerar o movimento. Duchamp
queria um retardamento do tempo, uma pulsão do deslocamento em
descendência. Com a desaceleração imaginava talvez revelar as entranhas do
movimento. Assim, a tela apresenta o tempo na forma de gomos de instantes.
Isso é patente nos contornos feitos entre uma silhueta e outra da gura que
desce a escada. Na superfície da pintura se abre uma fenda, constituída por
contornos escuros, como se o movimento se distendesse e simultaneamente
absorvesse todos os instantes não percebidos pelo olhar. O Nu transborda em
seções que se fundem, formando espécies de estratos sobrepostos em
deslocamento. Por ser pintura, e não cinema, todos os ‘presentes’ se encaixam
na superfície plana como que unidos por uma linha que segura todos os
instantes amarrados entre si. Dessa forma, temos a instalação de um paradoxo
temporal. Contudo, a existência de paradoxos temporais (e espaciais) acaba por
ser algo bastante natural não só em qualquer pintura, mas na escritura literária
em geral, dado representar as construções de universos paralelos a respirarem
em campos impenetráveis. Luz coagulada. No caso do Nu, a luta de Duchamp
se dera na direção de se revelar em todas as nuances o esqueleto de algo que
virtualmente se move, imaginando com isso desenhar a própria compleição
(signi cação?) do tempo, o que, convenhamos, será sempre pretensão do plano
do disparate. Ou de um inútil novelo de hipóteses. Essas considerações que
pertencem mais ao corpo crítico ou losó co da arte me ocorriam sem cessar,
pois lera vários estudos sobre a tela, e agora uma miscelânea de ideias expressas
por tantos estudiosos me vinham à cabeça em cambulhada, o que não queria
dizer grande coisa. A nal, o que importava era o deslumbramento de ter o
quadro original a poucos metros do nariz. Não esqueço o momento em que
lágrimas profusas escorreram sem que conseguisse me controlar. Emoção e,
principalmente, obsessão. Ossos expostos. Só saí da frente do quadro quando
fui colocado para fora do museu por guardas que desejavam fechar a casa. Em
geral era o que acontecia em relação às telas que me atraíam; permanecia horas
inteiras em estado catatônico diante delas, até ser expulso do lugar. No ano
passado voara com urgência até Nova York para mergulhar na tela A noite
estrelada, de Van Gogh, no Museu de Arte Moderna da cidade, chamado
também por inexplicável força. Passara dias seguidos em estado de alucinação
abraçado aos ébrios astros que giravam e, assim, desenhavam as vertiginosas
galáxias vangoguianas. Sinfonias noturnas da febre. Matizes de azul a
transfundirem poesia de abismo ao céu e à terra imersos em clamores de lápis-
lazúli. Visões de sa ra, por vezes anil mortiço, tremor soturno, júbilo
emudecido. Esplendor cósmico, lampejos de contorções exaltadas. Porém, o
mais louco é que esses delírios poéticos se davam sem que a qualidade da obra
fosse o fator determinante. Por vezes quadros de qualidade bem duvidosa
também serviam de polos atrativos, de implacáveis ímãs de fúria indomável.
Fiquei alguns dias em Filadél a. Era comum a vida se paci car quando toda
aquela pulsão que me tomava e me arrastava na direção de telas variadas por
m se acalmava. Coisa que nunca entendi bem foi essa minha forte atração
pelas artes visuais, uma vez que sou professor aposentado de literatura
brasileira. A verdade é que sempre fui leitor incurável de obras sobre a história
da arte: para cada livro de história ou crítica literária que lia, sempre percebia
que ao menos cinco volumes sobre artes visuais eram por mim devorados.
Penso que a pessoa mais importante na construção dessa paixão pela pintura
foi minha mulher. Casei-me aos trinta anos e vivi muito bem com Cristina por
quinze anos. Contudo, o destino quis que ela se fosse ainda jovem, fulminada
por doença avassaladora. Não tivemos lhos. Cristina adorava conhecer os
melhores museus do mundo, e sempre que era possível lá íamos visitá-los,
curtindo os pintores e escultores de nossa predileção. Depois que quei só não
perdi esse hábito, e penso que muitas das viagens que realizei foram na
realidade emocionadas homenagens à memória de Cristina. Tive alguns
namoros ao longo desses últimos vinte anos, mas nunca mais desejei me casar.
Realizava, portanto, as viagens solitariamente. Tornara-me misantropo, sem
dúvida, ainda mais em razão de ser lho único e de não ter os pais vivos, nem
outros parentes ou amigos com quem convivesse. E então, de uns tempos para
cá, o surgimento dessas violentas compulsões, desse vago e poderoso monstro
que me empurrava em corpo e mente na direção das obras de arte eleitas sabe-
se lá por quais entidades. Uma enfermidade psíquica? Não conseguia de nir
bem. No momento, estava eu a passear com certa calma por Filadél a, depois
do esmaecimento do desvario que me levara ao Nu descendo a escada. Seguia a
pensar na pandemia que se espalhava de maneira funesta por todos os
continentes. As mortes se multiplicariam e as sociedades se fechariam em busca
de proteção em todos os lugares. Multidões trancadas em casa. Nunca uma
epidemia atingira tanta gente ao mesmo tempo. Parecia-me ser tal desastre
fruto do fenômeno da globalização econômica e social que experimentamos
cada vez com mais força nas últimas cinco décadas, junto ao desequilíbrio
ecológico que é o substrato do aquecimento global (e de que a destruição da
Amazônia é um dos terríveis exemplos). A verdade é que as pestes antigas se
espalhavam mais devagar e não iam tão longe. De outro lado, as epidemias
neste novo século vinham surgindo em intervalos bem menores. Colhi no
caminho uma or e a coloquei no bolso: durante a peste negra as pessoas
costumavam guardar ores nos bolsos para espantar a morte. Quem sabe se
essa simpatia não haveria de me salvar de uma ameaça que se anunciava no
fundo de meus ossos e que eu não conseguia de nir como se revelaria em toda
a assustadora extensão. A economia dos países em todo o mundo por certo vai
se derreter e a fome vai se propagar com fúria, dizia a mim mesmo enquanto
entrava no hotel em busca de um banho reconfortante.
Acordara no meio da noite sacudido por pesadelos pesados. Era a recorrente
sensação de atravessar realidades esponjosas, gelatinosas. Abrir tormentoso
caminho através de uma montanha de metal azul. A preocupação com a
pandemia, que já grassava na América do Norte, me parecia ser o disparador de
tantos sonhos angustiantes. Ainda não contei que ao lado da irrupção dessas
forças que me conduziam a ferros de um lugar a outro sempre na direção das
mais diversas obras de arte, outro fenômeno – que procurava de todas as
formas ocultar de mim mesmo – passara a incomodar bastante. Sonhava com
alguma frequência com pinturas que me impressionavam e, por vezes, acordava
gelado, coberto de suor e a trazer na carne a sensação de haver entrado em
contato corporal com a obra. Há pouco tempo tive um sonho erótico com A
maja desnuda, de Goya. Vira-me, sempre envolto em confusão de cores,
deitado ao lado daquela macia e cálida mulher que, para minha surpresa,
colou-se a meu corpo e me beijou com avidez. Fiz, então, selvagem amor com a
maja e despertara ainda sentindo os últimos espasmos de um orgasmo intenso.
Você poderá car espantado, mas ao acordar também continuei a perceber no
ar todos os perfumes corporais da maja, que aos poucos se desprendeu de
minhas mãos e se desvaneceu no espaço. Fora uma experiência tão vívida, tão
real, que senti espessa nuvem de terror a se arrastar por dentro de mim. Antes
já me acontecera algo semelhante em relação às banhistas nuas do Renoir e à
Origem do mundo do Courbet, tudo por vezes misturado a uma orgia de corpos
nus, femininos e masculinos, pintados por Rubens e a se enroscarem em fúria,
os sexos confundidos (de um lado, eram contatos que me proporcionavam
vigoroso prazer; de outro, estranhas, bizarras sensações que me corriam na pele
e me arrastavam a uma espécie de sofrimento psíquico, algo próximo de um
contato com a necro lia ou fusões doentias entre sombras que pulsavam em
violeta sujo num céu tempestuoso). Afastava essas sensações tentando me
convencer de que tudo era apenas algum desequilíbrio emocional que logo
desapareceria sem necessidade da ajuda de medicação. Se os surrealistas
imaginavam a existência de uma força mágica responsável pela fusão de vida e
obra, quem sabe fosse melhor falar em pinturas que dentro de mim se
tornavam solúveis, peixes que eram água e vento. Metamorfoses em labirinto.
Borbulhar de febres assombrosas. De outra parte, todas essas desordens, esses
roteiros lúbricos, essas estranhas cerimônias da luxúria não tinham nada que
ver com preocupações de cunho religioso a se moverem entre ideias de pecado,
culpa, arrependimento, expiação. Mesmo porque nunca acreditei em deuses
punitivos. O que de verdade me a igia era que o fenômeno provocava uma
espécie de angústia a me tomar inteiro, algo sentido até nos ossos toda vez que
o abismo se entreabria e ameaçava me engolir para sempre. Quem sabe tudo
fosse resultado de permanentes, profundas carências em meio à solidão em que
me sentia submergir (ou o súbito aparecimento da capacidade para se capturar
relâmpagos caídos da eterna luta de Eros contra os e úvios mortais de
Tânatos?). Hoje o pesadelo se dera em relação a outra obra de Goya, o terrível
Saturno devorando um lho. Sentia na boca a textura da carne e o gosto de
sangue daquele corpo dilacerado. Eu era esse Saturno licida e antropófago e,
sem intervalo, já me via a deslizar no meio dos monstros pintados por Bosch
nas telas que sempre me impressionaram, o Jardim das delícias e As tentações de
Santo Antão. Era um turbilhão áspero para se descrever com palavras. Imensos
cogumelos escarlates linguagens fantasmáticas orações de cores guturais
estupros gritos quebrados secreções sorvedouros pestilências linfas canceradas
alquimias encharcadas de vinhos incendiados utuantes arquiteturas nas
enxurradas negras em estrângulos estrondos sem pernas ou almas, árvores
negativas, genitais de sombra, cães-ladraduras-abissais. Verbos fraturados, caos
em convulsões, escombros constelados. Minha pele ardia nesses convívios de
assombro. Acordei de um salto, pois os pesadelos eram folhagens vivas que
uivavam, eram músculos contorcidos e elétricos a se roçarem veementes contra
meu corpo exausto. Todo esse contato com uma arte macabra, indagava
também em desassossego, seria resultado da angústia que a pandemia cravara
no espírito? Ou não? Corredeira de mortos. Corri até o banheiro a tremer e
mergulhei em outro banho quente. Precisava me acalmar. Não era possível
permitir que os sonhos (sonhos?) ardessem tão violentos e não parassem jamais
de sonhar.
No dia seguinte tudo recomeçou. Logo após o café um forte calor no peito
anunciou a chegada daquela conhecida ânsia, daquela espécie de terror surdo
que, paradoxalmente, me excitava tanto. Só que hoje parecia que a coisa vinha
com bem mais vigor. Sem dúvida, estava bastante preocupado com a
pandemia, dizia a mim mesmo enquanto caminhava, melhor, enquanto era
levado por uma força maior na direção da estação ferroviária, onde embarquei
rumo à Union Station, em Washington. Na viagem quei a repassar todo o
pesadelo que me tirou o sono na noite anterior. Revi as imagens das telas
surreais, de cunho fantástico, do polonês Zdzislaw Beksiński, dono de uma
fantasia enigmática e sombria, que giraram de modo fúnebre em minha mente
durante a noite passada, misturadas às gurações de Bosch. O pintor polonês
nunca colocava títulos nas obras, mas uma pintura em especial não se
desprendia de minhas preocupações. Representava criaturas misteriosas em
marcha, seres melancólicos e aterrorizantes, mistura de formigas, besouros e
aranhas (com aspecto humano?), a entrarem numa boca escancarada,
desenhada em rosto descomunal e grotesco pousado no chão. Ao fundo se
viam prédios em ruínas e um céu avermelhado, perfazendo o conjunto o
cenário mais desolado que se possa imaginar. Era o retrato da peste em marcha.
Eram as vísceras do terror. E eu agora (agora?) me encaminhava de certa forma
para o coração da própria epidemia. Parecia não ser possível nenhuma salvação.
Ao menos era o que sentia crescer em mim de maneira inexplicável.
Em Washington, como dissera, conduzido por uma energia sem limites e
que parecia arder do lado de fora de meu espírito, se assim pudesse falar,
caminhei, sempre a puxar minha mala com rodinhas, até encontrar o Teatro
Ford e a Petersen House, locais onde a tragédia da morte do presidente Lincoln
se consumara. Em ambos os lugares vira o casal de aspecto antiquado (ao
menos as roupas que usavam me pareciam muito fora de moda), aquele
homem quase calvo de costeletas negras e a mulher loura que então enxugava
lágrimas comovidas em frente à cama em que Lincoln agonizara e falecera. Da
Petersen House prossegui a zanzar pela cidade até que, movido cada vez mais
por uma força que então quase me carregava no colo, alcancei essa ruazinha
desacordada onde a sóbria casa de dois andares trazia na parede a pequena
placa de aço polido a informar que ali se encontrava um museu de arte da
história norte-americana, localizado bem fora do roteiro turístico convencional.
Tudo ia se tornando irreparável. Ástreo breu. Policromias do silêncio. Sentia
explosivo novelo kandinskiano a girar em mim tal fosse turbilhão de
relâmpagos na pele das cores, enquanto um impulso violento me levava a
retirar da mala o jaquetão escuro e a vesti-lo ainda na rua. Cerimônias de
abismo. Abri então a porta da casa-museu e entrei no vestíbulo onde um
porteiro sonolento se encontrava sentado atrás de uma mesinha. O homem me
disse que o museu encerraria as atividades em uma hora e que a partir do dia
seguinte seria fechado por tempo indeterminado em razão da pandemia. O
senhor deverá ser, portanto, o último visitante, completou com meio sorriso. A
peste chegara a esta rua perdida, disse sem sentido a mim mesmo. O ingresso
tinha o preço simbólico de um dólar; entreguei a nota, deixei a mala em um
canto indicado pelo porteiro e entrei no salão principal. Expostas se viam oito
telas a óleo de grandes dimensões, representando vários momentos históricos,
na maior parte a Guerra de Secessão e imagens variadas da escravidão. À direita
havia um corredor que conduzia a outras três salas menores com telas também
de menor dimensão. Antes dessas salas, uma escada em caracol levava o
visitante ao segundo andar. O museu estava vazio no térreo. Passei os olhos
pelas obras desses três outros ambientes, mas a força que me empurrava pelas
costas logo me levou à escada espiralada. Foi na subida que senti o súbito
aumento do frio, um frio que brotava na verdade do interior dos ossos e uía
para fora de mim, um frio de extensas geleiras interiores, apesar do jaquetão
encorpado que vestira. De modo simultâneo, ouvi um abafado soluçar, uma
espécie de choro contido que vinha da parte de cima da escada. Ao entrar na
primeira sala do andar superior, pude ver num dos ângulos do aposento um
homem que tentava consolar a mulher que chorava baixinho e, como se dentro
de uma nuvem de susto, percebi ser esse casal muito parecido com aquele que
visitara a meu lado, há poucas horas, a casa-museu com o quarto e a cama onde
o presidente Lincoln morrera. Durante aquela visita eu havia percebido que a
mulher se mostrava muito comovida. O homem de grossas costeletas negras
agora (agora?) conduzia, melhor, empurrava a mulher para o interior da outra
sala mais à frente, desaparecendo assim de minha vista. O frio era violento. A
esfregar os braços com força para tentar esquentá-los, percorri as telas da sala
sem as ver, me dirigindo para o espaço aonde o casal tinha ido, e quando não
os vi por lá, apertei o passo até a passagem que levava à última sala. Ao entrar,
parei, petri cado: o casal simplesmente desaparecera, sem que houvesse outra
saída além do portal onde me encontrava. Uma força maior me levou direto ao
grande quadro da parede ao fundo, que, em uma absurda coincidência,
representava a morte do presidente Lincoln sobre a cama que havia visto há tão
pouco tempo. Aproximei-me a ponto de perceber que Lincoln era atendido por
duas pessoas que, num misto de terror e incredulidade, vi terem grande
semelhança com o homem e a mulher que haviam acabado de sumir da sala em
que agora (agora?) eu estava, no instante em que a força me empurrava com
extrema rmeza para frente e bem a tempo de me fazer enxergar a um canto do
quarto panos, almofadas e lençóis sujos de sangue empilhados (mas isso não
estava na tela), e encontrar o rosto da mulher alourada que ainda chorava
abraçada ao homem de costeletas negras em meio a outras sombras que
utuavam, para então me voltar lentamente na direção da cama do presidente,
que tinha o corpo tomado por secreto estremecimento (que expressão injusta)
e, logo em seguida, por completa paralisia, tudo dentro de uma resistência de
pasta oleosa cada vez mais espessa contra meus movimentos, entre cores que
rangiam e a tudo embaçavam como em um pesadelo sem ar – agora era uma
chuva de agulhas nas e geladas a perfurarem e como que a anestesiarem todo
o corpo –, enquanto o frio se tornava esmagadoramente insuportável.
(– Você não vai descer de jeito nenhum. Parece até que resolveu apoiar o
presidente genocida que deseja todo mundo na rua a se infectar.
– Calma, Márcia, eu só pensei em andar um pouco à beira-mar. Às vezes é
muito a itivo car preso semanas seguidas nesse pequeno apartamento com pouca
luz, tendo a praia tão perto de nós, – disse Mário, surpreso com a veemência da
mulher.
– Copacabana é um dos bairros com maior número de infectados na cidade. E
com muitos mortos, inclusive o dentista do décimo andar, não está lembrado? Ele
estava direitinho em casa, mas resolveu dar um pulo no banco, se contaminou e deu
no que deu. A verdade é que a peste já entrou em nosso prédio. O risco aumentou
muito quando simplesmente descemos para pegar e pagar as compras do mercado.
– Fique calma. Não vou sair. E não diga que estou apoiando a besta do
presidente. Você sabe a minha posição. Penso que os apoiadores desse imbecil e de
políticos semelhantes a ele sempre seguiram uma ideologia que nunca procurou
explicar bem a real constituição das classes sociais, para assim se poder ajudar de
forma consciente e adequada os que mais necessitam, aqueles que não têm condições
materiais para uma vida digna e que, por isso, vão sofrer o diabo com a epidemia.
Essa ideologia é espelho do que se chama política liberal-conservadora, que há
muito se tornou hegemônica. Seu carro-chefe, o mercado nanceiro, que só
alimenta a desindustrialização, é hoje algo bem naturalizado. Esse mundo
neoliberal de que a classe média aprendeu a gostar é um líquido homogêneo em que
não há mais nada de novo para se ver ou criticar. É claro que no liberalismo tudo
pode ser discutido livremente, desde que não pulemos fora dos discursos de mão
única, das releituras do mesmo. As posições mais críticas são tratadas com desdém. E
os que seguem de modo cego essas ideias neoliberais, principalmente na economia,
não têm consciência dos comportamentos fascistas que vêm no pacote, igual a esse
dissimulado pouco caso com a pobreza, para não falar logo em ódio ao pobre. Duro
é que se dizem até mesmo cristãos. Em geral são pessoas metidas a besta, egocêntricos
ignorantes que só veem televisão e leem jornais e revistas idiotas a vida inteira. E
que votaram em massa no energúmeno psicopata que governa o país e segue
facilitando a multiplicação de milícias armadas, além de disseminar seguidas crises
que corroem passo a passo a República.
– Você sempre com esse jeitão professoral e um pouco exagerado, querido. Tome
fôlego e preste atenção: é você que deve car calmo, pois esse isolamento deixa todo
mundo alterado. Chega de agitação. Eu só quero protegê-lo quando peço que não
saia – disse Márcia sorrindo, a passar a mão com carinho nos cabelos grisalhos do
marido.
Mário se levantou, foi até a janela e chamou a mulher.
– Venha cá, Márcia. Já viu o casal de bem-te-vis que está morando no ar
condicionado da janela ali em frente, no quarto andar?
– Já percebi sim. Com a diminuição dos carros e das pessoas na rua, os pássaros
estão invadindo todos os espaços. Ali onde estão os bem-te-vis não é o apartamento
daquele professor que você conhece? Aquele que você costuma cumprimentar daqui
da janela?
– Isso mesmo. O nome dele é João José. E estou preocupado, pois ele não voltou
de viagem.
– Como assim?, indagou Márcia.
– Acho que já lhe contei que conheci João José aí na padaria a comprar pão e
tomar café. Passamos a trocar sempre umas palavras quando nos encontrávamos. A
última vez que o vi não faz muito tempo, quando sentei ao acaso ao lado dele no
almoço do self-service da esquina. Pudemos pela primeira vez conversar bastante.
Ele é um sujeito solitário, excêntrico. Mulher e pais mortos. Não tem irmãos nem
lhos. Mencionou primos em Cuiabá com quem nunca se encontrava. Estava
preparando uma viagem naqueles dias para Nova York a m de ver obras de arte e
me disse que regressaria em um mês. Ao falar da viagem me pareceu apreensivo,
nervoso, sei lá por quê. Já se passaram quatro meses e ele ainda não voltou.
– Deve estar em isolamento na casa de algum amigo – falou Márcia.
– Ele insistiu muito em dizer que só conversava comigo, pois não tinha
conhecidos.
– Pode ter cado preso lá na América do Norte ou em outro lugar qualquer em
razão da pandemia e ainda não conseguiu regressar. Há muitos brasileiros no
exterior tentando voltar. Ou cou lá fora por vontade própria.
– Talvez. Mas como tinha passagem de ida e volta marcada com antecedência,
acho que pode ter acontecido alguma coisa ruim – disse Mário pensativo. E, a
espiar o vazio, ainda considerou para si mesmo em utuação algo literária,
depressiva e sem sentido aparente: O que são essas insaciáveis medusas, esse misto
de es nge e horror, esses seres mortos-vivos e epidêmicos a roerem todas as
esperanças? O que signi cam a nal essas ventanias de chumbo dentro de
arfantes hospitais? Pegou então a caneta e anotou essas frases no caderno em que
estava colecionando fragmentos que servissem para a confecção de um relato sobre os
tempos sombrios. O trecho que escrevera naquela manhã no caderno era lúgubre, e
Mário o releu: Pensei em responder-lhe que estávamos mortos, mortos de uma
morte a nos arrancar do útero para que sempre servíssemos de alimento a ela; e
arrancados ainda antes que orescessem úteros, arrastados das trevas do
espírito, anteriores aos deuses do vazio, mas me calei, pois seria dramático e
inútil demais. Não tinha ideia em que lugar encaixar isso. Talvez jogasse fora.
Márcia olhava pela janela e viu um bem-te-vi surgir no vão do ar condicionado
da casa de João José, o professor que não regressara de viagem. Súbito o pássaro voou
até a amendoeira vizinha. Ah, se me fosse possível voar assim, com toda essa
liberdade e sempre ao sol, ao sol de uma incendiária primavera, ela pensou de
forma arrebatada e sorriu de leve. Espesso silêncio parecia petri car a paisagem.)
A sinfonia

Ana Cecília Carvalho

Primeiro movimento
“O amor virá depois”, ele costumava dizer. “Não se afobe não, que nada é
pra já”, cantarolava enquanto me levava de carro para a clínica e enfrentava o
meu mau humor com determinação e in nita paciência, fazendo gracejos de
todo tipo. No início, era uma brincadeira depois da outra, para tornar mais
leve o que eu teria de enfrentar desde o acidente. Com o tempo, as tiradas dele
viraram uma rotina que eu desprezava com todas as minhas forças. Enquanto
me conduzia gentilmente pelo longo corredor, ele, já conhecido pela maneira
amistosa como interagia com o pessoal da clínica e pelas mágicas que fazia,
tirava moedas e objetos de todo tipo das orelhas das pessoas. Sempre se referia a
mim como “o teclado de ouro”, o que me aborrecia e constrangia. Eu mal
disfarçava a minha vontade de me ver longe dali. Já na calçada, diante do carro,
ele fazia oreios antes de abrir a porta. Era comum que retirasse alguma coisa
do chapéu, uma caixa de chocolate ou um feixe de lenços coloridos e, é claro,
pombas brancas que se transformavam em ores, seu número clássico. Eu
virava o rosto para o lado, no meu desgosto in nito. “Temos tempo”, ele
murmurava, “tempo é o que temos”.
Nunca se atrapalhava ao me ajudar com o assento, por mais que eu tornasse
isso difícil. Ele tinha as mãos experientes de quem sabia como evitar a dor. No
caminho, ele dirigia com cuidado, evitando as depressões no asfalto, o que
quase sempre duplicava o tempo para percorrer um trajeto curto, de poucos
quilômetros, entre a clínica e a minha casa. Minha irritação era impossível de
disfarçar. Eu o odiava com todas as minhas forças, certa de que tanta
demonstração de cuidado era apenas para me lembrar da minha própria
dependência. Queria que ele desaparecesse. E, de fato, um dia ele não veio
mais. Nem me interessei em perguntar por ele. Eu me lembro muito pouco dos
que o substituíram. Na minha memória, diferentemente dele, eram todos
parecidos em suas expressões de desinteresse. Ou porque usassem máscaras, que
então passaram a ser obrigatórias. Depois que também esses pararam de vir,
não veio mais ninguém.

Segundo movimento
Isso foi quando tudo se interrompeu pela reclusão. O tempo cou suspenso,
os relógios da casa parados na mesma hora, as portas e as janelas fechadas, frágil
proteção contra o que continuava a nos destruir. A marca dos dias sempre
iguais cou impressa no calendário de uma página só, pendurado sobre o
piano. A clínica encerrou as atividades, mas eu continuei a me exercitar como
podia, sozinha, me arranjando de algum modo com a dor, minha companheira
inseparável desde o acidente. Evitava me aproximar do “teclado de ouro”, então
tornado inútil. As chamadas logo se tornariam raras e cada vez mais monótonas
em sua mesmice. Os que sobreviviam alimentavam-se da recusa em admitir a
própria fragilidade. Talvez esse fosse o meu caso, mas acabei reconhecendo que
era difícil continuar.
No nal de um dia especialmente difícil, em que tudo parecia doer além da
conta, inclusive a desesperança, eu me sentei diante do teclado, temerosa de
iniciar o primeiro toque e, com isso, me lançar em um projeto que talvez
nunca pudesse concluir. Então comecei a sentir falta dele. O amor que ele
havia previsto a nal tinha chegado. No início, não reconheci esse sentimento,
que se expressou como um vago interesse do tipo “por onde andará?". Depois
foi cando mais nítido, até tomar a forma de uma busca obsessiva, dia após
dia, enquanto eu tentava localizar o seu paradeiro no mundo virtual. Não o
encontrei, e me entristeci quando pensei que também ele poderia ter se
transformado em mais um número na estatística assombrosa da pandemia, que
fazia da morte um acontecimento banal. Hesitei muito antes de desistir de
procurá-lo, certa de que, se desistisse, isso seria o mesmo que anular a sua
existência e torná-lo irreal e inconsistente como um sonho, ou o personagem
de uma história.
Então, no nal de uma tarde, eu o vi do lado de fora da janela, olhando
para mim. Fez menção de tirar a máscara, para que eu o reconhecesse. Não foi
preciso. Entre todos os rostos, o dele tinha cado eternizado pela magia da
esperança no meio da brutalidade da morte.

Terceiro movimento
Eis o que ele me disse, nesse dia: “Hoje penso que, no seu rosto, o que mais
me chamou atenção foi certo esforço para esconder a beleza. Os cabelos
desalinhados, os lábios ressecados, as olheiras da insônia que as mulheres
geralmente disfarçam com maquiagem pesada e que você, ao contrário, fazia
questão de exibir, tudo parecia de propósito, para ser coerente com a dor – dor
transformada em uma raiva incontida, na recusa dos gestos mais leves que
poderiam tirá-la do tormento em que o seu corpo se via aprisionado. Isso tudo,
em vez de me afastar, me atraiu, convencido em conseguir o seu afeto se me
solidarizasse com seu medo, com a sua solidão.
Um depois do outro, você desdenhou todos os meus agrados e incentivos,
cada dia mais irritada e embrutecida. Você não apenas me rejeitava, mas
sobretudo excluía de si qualquer convite que não fosse para continuar amarga.
Desde o primeiro dia, entendi que, para você, nada era mais importante do
que voltar a tocar. Mas infelizmente isso só voltaria a acontecer se fosse possível
encontrar um modo de restabelecer as conexões lesadas no acidente. Você vivia
de ressentimento e, quanto mais demonstrava isso, mais me atraía. Acabei me
cansando diante da sua determinação para recusar qualquer oferta de leveza.
Então fui embora, sem nem ao menos me despedir. Por algum tempo, guardei
secretamente para mim o desejo de que você me pedisse para voltar. Como isso
não aconteceu, segui a minha vida. Tudo isso foi um pouco antes de se tornar
obrigatório o uso das máscaras. A pandemia, com a sua presença inarredável,
passou a não deixar espaço para nada mais que não fosse a sobrevivência. Os
imensos espaços vazios, a cidade disfuncional, a multiplicação assombrosa das
valas comuns e o tempo suspenso logo começaram a fazer parte das nossas
vidas, chamas frágeis diante do vento da morte.
Uma vez telefonei, mas o número não era mais o seu. Cheguei a pensar em
visitá-la, mas, para isso, eu teria de enfrentar riscos que pareceriam inúteis.
Passei a me consolar com a ideia de que um dia, tendo dito que o ‘amor
poderia esperar’, isso a tornaria imune ao horror que nos rodeava.
Depois que, um a um, se foram todos os meus queridos, derrotados pelo
inimigo, reconheci que eu já não tinha mais nada a perder. Então decidi
procurá-la e fui até a sua casa, esperando que ainda morasse ali. Tive de
enfrentar as barreiras sanitárias e, em cada uma delas, fui obrigado a mostrar o
passe que dava permissão para os deslocamentos pela cidade. Não foi fácil
convencer os guardas sobre a importância de uma visita a uma velha amiga.
Eles não mostraram interesse algum quando a chamei de ‘teclado de ouro’. Mas
acabei conquistando a con ança deles, quando me vali do velho truque de tirar
pombas brancas do meu chapéu. Elas sempre se transformam em ores quando
voam, você sabe, e, na barreiras, isso não só fez com que eu fosse aplaudido,
como garantiu também a minha passagem.
Quando cheguei a sua casa, tive a impressão de que você me esperava. Da
janela, você me olhou com maldisfarçada alegria. Fiz menção de retirar a
máscara, para que me reconhecesse. Não foi preciso. Então você estendeu as
mãos. Talvez estivesse apenas praticando parte dos movimentos que tinham se
restabelecido. Talvez quisesse me chamar para entrar. Talvez estivesse tocando
música no ar. Ficamos parados algum tempo, separados pela vidraça. O tempo
começou a se mover, a mesmice agora alimentada de esperança.”

Quarto movimento
Estou sentada à frente do teclado, há horas. Ele se foi há alguns dias, levado
contra a minha vontade. “Não temos controle sobre nada, não é mesmo?” Foi
o que ele me disse na última vez que o vi.
Teria sido melhor se não tivesse vindo, se tivesse cado no mundo da ilusão,
para não me encher desse sentimento contra o qual lutei durante anos e do
qual agora, uma vez insu ado em mim, tal como um vírus, não consigo me
desvencilhar. No entanto, eu continuo, todos os dias, fazendo as mesmas coisas
para me manter viva, como prometi a ele. Mas não apenas isso, eu me sento à
frente deste teclado, à espera do primeiro toque, a partir do qual ele tinha tanta
certeza de que se seguiriam outros, tecendo sons, palavras e sentidos, como
costumava acontecer com facilidade antes do acidente, naquele dia em que eu
me apressava para cumprir a agenda do dia, alheia ao fato de que bastaria um
gesto para me tirar o futuro. Não vi que a distração em um cruzamento
encerraria as minhas mãos na clausura de uma dor cujo único antídoto seria,
ironicamente, a alternativa da imobilidade. Durante muito tempo, senti o
gosto amargo de uma opção que eu não daria conta de fazer, até que escolhi a
dor.
Ele sabia de tudo isso, embora nunca tivéssemos conversado sobre essas
coisas. Com o seu sorriso sempre aberto, ele continuava a abrir portas e a tirar
pássaros encantados do chapéu. Quanto a mim, na minha determinação de
recusar a leveza que ele me oferecia, z de tudo para que ele me deixasse. E ele
o fez, indo embora um dia, sem me avisar.
Quando ele voltou, atraído, quem sabe, pelo chamado da minha desolação,
a dor já tinha se instalado e se transformado em uma companhia suportável,
embora continuasse a ser pessoal e intrasferível, como li em algum lugar, na
época em que os livros ainda faziam algum sentido. A pandemia continuava
em seu ritmo de guerra, tão atroz quanto invencível, alheia ao que se descrevia
sobre ela. Mais do que isso, ela se impunha, irremovível, inexorável, não
deixando espaço algum para se criar cção ou partitura. Sentíamos, ele e eu,
uma gratidão mútua, porque, cada um ao seu modo, nos queríamos e nos
bastávamos. Ao anoitecer, quando vinha me visitar, ele me encantava com as
criaturas que tirava do bolso do paletó. As máscaras obrigatórias, que
enclausuravam as nossas expressões, transformavam-se em borboletas e se
multiplicavam, cheias de brilho, pousando como um convite sobre o teclado
aberto. A música era sempre uma possibilidade tão desejada quanto temida.
Mas, como ele não cansava de me dizer, “tudo tem o seu tempo, tudo isso um
dia vai passar”.
Uma noite ele disse que não era certo que conseguiria passar nas barreiras
para vir me visitar no dia seguinte. Parecia cansado, um pouco incomodado
com a máscara.
– Por que você diz isso? –, perguntei.
– Os guardas já não estão mais tão encantados com as mágicas. Parecem
cada vez severos. Não os culpo. É o que eles têm de fazer para tentar deter a
praga, não é mesmo?
Cada palavra era emitida por ele às custas de muito esforço. Depois, cou
muito tempo em silêncio, sentado do outro lado da sala, olhando para mim
como se me visse pela primeira vez.
– Não se preocupe –, ele disse. – Estou bem. Seria tão bom se cássemos
assim para sempre, você e eu, e que nada nos separasse. Mas a verdade é que
não temos controle sobre nada.
Deixei-o um minuto sozinho na sala, enquanto fui à cozinha para buscar
alguma coisa para ele beber. Quando voltei, ele já tinha ido embora.
E foi assim que não o vi mais. Às vezes, penso que ele não existiu de fato;
que era apenas uma ideia, um desejo ou, quem sabe, um temor que, como em
um sonho, se transforma em uma via menos assombrosa do que a realidade de
fato representa.
Seja lá o que tiver sido, uma noite, sobre o piano, debaixo do calendário que
permanecia pendurado na parede, encontrei uma anotação que custei a ler, por
causa da caligra a toda embolada e que não reconheci como sendo minha ou
de qualquer outra pessoa: “Tudo que temos é este minuto”. Então toquei a
primeira tecla e todas as outras se seguiram, libertadas, en m, do
con namento, como se pudessem ganhar o in nito.
Amor de quarentena

Paula Pimenta

3 de fevereiro de 2020
Não eram nem cinco da manhã e eu já estava de pé. Aquele dia que eu havia
sonhado durante praticamente toda a minha vida tinha chegado! Não é
exagero, minha mãe tem fotos que provam que com apenas três anos eu já
brincava de repórter e queria entrevistar meu pai e ela várias vezes por dia... O
problema é que com essa idade meu repertório de perguntas não era lá muito
extenso, então os dois tinham de responder repetidamente o nome, a idade e a
comida preferida. Nunca esqueci que minha mãe adora canja de galinha e que
meu pai é fã de rabanadas.
O fato é que agora não era mais brincadeira, eu havia passado em 12º lugar
para Jornalismo e não via a hora de o meu sonho de infância se tornar
realidade. E exatamente por isso eu havia despertado antes mesmo do nascer
do sol.
Porém, agora, ao me ver naquela sala cheia de rostos desconhecidos, minha
vontade era de não ter me apressado tanto... Eu havia passado a vida inteira
estudando na mesma escola, conhecia todos os alunos, professores e
funcionários desde a infância. Mas talvez isso não tenha sido tão bom quanto
eu pensava. Estava começando a perceber que não tinha muito preparo para
fazer novos amigos.
Para cada lado que eu olhasse via pessoas conversando como se já se
conhecessem há séculos. Bem que podiam ter entregado junto com o horário
das aulas e o número da sala um manual explicando como puxar assunto com
desconhecidos. Eu não entendia como tinha gente que fazia isso tão
facilmente.
– Filoso a. Metodologia do trabalho cientí co... Será que estou no curso
certo? Aqui é mesmo o 1º período de Jornalismo?
– Oi? – perguntei sem graça, após perceber que aquela garota de cabelo
chanel e óculos vermelhos se dirigia a mim.
– A grade curricular – ela falou me estendendo um papel. – Não entendo a
razão de termos de estudar essas matérias. Será que tem algum sentido nisso?
– Hum, espero que sim... – falei forçando um sorriso e analisando a grade. –
Pra dizer a verdade, eu imaginava que no primeiro dia já sairia entrevistando as
pessoas no corredor, mas estou vendo que não vai ser nesse semestre que isso
vai acontecer...
– Ei, eu também achava isso! – ela disse rindo. – Qual é seu nome? Eu sou a
Hanna.
Respondi depressa, eu mal podia acreditar que alguém estava conversando
comigo:
– Lis. Com s no nal.
Ela me estendeu a mão formalmente, conversamos mais um pouco e o
professor chegou. Porém, ele mal havia começado a falar quando várias pessoas
entraram na sala ao mesmo tempo, gritando tão alto que quase infartei de
tanto susto.
– São os veteranos, corre que é trote! – o menino que estava sentado ao meu
lado falou, já se levantando e se dirigindo para a janela. Para a minha surpresa,
ele a pulou. Tive um leve surto de pânico, mas logo lembrei que estávamos no
primeiro andar, então o garoto não ia morrer nem nada parecido...
– Prende depressa esse cabelo lindo se não quiser que ele que todo pintado!
Eu ainda estava olhando para a janela, que alguns outros alunos também
estavam pulando, mas me virei a tempo de ver o garoto que tinha acabado de
dizer aquelas palavras. Ele ainda estava sorrindo para mim, mas logo foi em
direção ao grupo de veteranos. Percebi que vários deles estavam com latas de
tinta e pincéis na mão, e, antes que eu tivesse tempo de pensar alguma coisa,
um menino segurou meus braços atrás das minhas costas.
Uma garota então se aproximou com um pincel e disse:
– Quietinha, novata, você vai car bem bonitinha com o rosto e esse
cabelinho louro pintados de verde. Vai combinar com seus olhos...
Tive vontade de gritar, mas meu olhar foi sugado pelo veterano que tinha
me aconselhado a prender o cabelo. Ele ainda estava sorrindo para mim, e
então balançou os ombros, gesticulando com os lábios: “Eu avisei...”. E então
começou ele mesmo a pintar um dos meus colegas. Por algum motivo, não z
o menor esforço para me livrar daquele trote. Pelo visto a faculdade seria ainda
mais interessante do que eu imaginava...

4 de fevereiro de 2020
– Como você fez pra tirar toda aquela tinta do cabelo? – perguntei para a
Hanna, enquanto mordia um pão de queijo fumegante. Era o segundo dia de
aula, eu havia passado a tarde anterior inteira esfregando meu cabelo debaixo
d'água, mas ainda assim se viam nele algumas partes esverdeadas. Cheguei a
pensar em cortar bem curtinho, mas eu adorava o meu cabelo comprido. Além
disso, alguém no dia anterior havia dito que ele era lindo...
– Passei removedor de esmalte, saiu até rápido – a Hanna respondeu
enquanto tomava um suco de laranja. Ela tinha novamente se sentado ao meu
lado na sala, e, ao contrário do dia anterior – quando acabamos todos voltando
para casa, pois era impossível assistir à aula com todo aquele cheiro de tinta –
rumamos para a cantina assim que o sinal do intervalo bateu.
– É sério isso?! – respondi horrorizada. Eu tinha certeza de que se passasse
acetona no meu cabelo iria car careca.
A Hanna começou a explicar que tinha aprendido uma técnica com uma tia
que era cabeleireira, mas de repente o garoto que havia me mandado prender o
cabelo no dia anterior apareceu perto de onde estávamos sentadas. Sem querer
comecei a observá-lo. Parecia popular, pelo número de pessoas que ele
cumprimentava a cada passo que dava. Alto, magro, cabelos castanhos
encaracolados, umas pintinhas no rosto que davam um charme, e um sorriso
de matar... que por sinal não havia saído da minha cabeça desde a manhã do
dia anterior.
– Gostou do veterano?
Eu estava tão concentrada olhando para o menino que custei para perceber
que a pergunta da Hanna era pra mim.
– Eu? – indaguei enrubescendo enquanto ela achava graça do meu
constrangimento. – Não, quer dizer, não sei. Ele conversou rapidinho comigo
ontem, quei curiosa, só isso.
– Vamos descobrir o nome dele! – ela falou rindo e já se levantando.
– Espera, Hanna! Como você pretende descobrir isso? – falei indo atrás
dela.
– Perguntando, ué... – E ela então saiu andando em direção ao menino e eu
quei parada, morrendo de vergonha sem saber bem o motivo.
Vi de longe quando ela simplesmente cutucou o garoto e começou a
conversar com ele. Eu realmente não tinha a menor ideia de como as pessoas
podiam ser tão extrovertidas! Será que tinha algum curso que ensinava a ser
assim?! Pouco depois ela olhou para trás, apontou para mim, o menino riu e fez
sinal para eu me aproximar. O que será que ela tinha dito para ele?
Engoli depressa o último pedaço do pão de queijo e fui em direção aos dois.
– Lis, esse é o Téo – ela falou assim que me aproximei. – Perguntei para ele
se teria mais algum trote surpresa hoje, para a gente poder fugir a tempo, mas
ele me assegurou que foi só ontem mesmo.
O veterano, quero dizer, o Téo me cumprimentou com um beijinho e eu
senti meu corpo inteiro esquentar.
– Pode car tranquila, Lis, nada de trote hoje – ele falou dando uma
piscadinha. – Mas tenho que dizer que você cou muito bem com essas
mechas verdes...
Ele então acenou para nós e foi em direção a alguns meninos que eu
reconheci do dia anterior.
– Téo e Lis. Gostei. Combina – a Hanna falou assim que ele se distanciou. –
Acho que ele gostou também...
– Cala a boca... – falei dando nela um empurrão de brincadeira.
Ela então me deu o braço e fomos para a sala sorrindo.

15 de fevereiro de 2020
Era tanta novidade que os dias iam e vinham sem que eu nem percebesse.
Minha sala logo cou bem unida, e por isso duas semanas após o início das
aulas os meus colegas já resolveram fazer um churrasco, na casa de uma das
meninas que morava em um condomínio em Nova Lima.
Cheguei ao local completamente sem graça. Apesar de já conversar com
algumas pessoas além da Hanna, eu ainda não tinha conseguido vencer minha
timidez inata, por isso chegar sozinha a uma festa era realmente bem difícil
para mim. Bati a campainha sentindo meu coração disparar, mas logo vi que eu
não precisava ter cado tão ansiosa. A minha colega que era a dona da casa
abriu a porta com o maior sorriso, me abraçou, perguntou se eu queria beber
alguma coisa e me levou direto para a mesa onde a Hanna estava sentada com
um pessoal da sala.
Em poucos minutos eu já estava me sentindo à vontade. Todos estavam
conversando descontraídos, em uma mesa alguns meninos tocavam violão, um
churrasqueiro de tempos em tempos aparecia trazendo tira-gostos e eu me senti
feliz por estar ali.
– Vocês viram que o tal vírus da China está avançando? A Itália já está
dominada! Eu pensava que isso era coisa de lme, cção cientí ca... – o César,
um dos meus colegas, comentou em certo momento. Eu sabia bem do que ele
estava falando. Minha mãe era muito hipocondríaca, morria de medo de car
doente, nossa casa tinha um cheiro constante de desinfetante e álcool, e a
possibilidade de o tal vírus chegar ao Brasil estava fazendo com que ela tivesse
pesadelos.
– Ah, acho que não chega aqui, não... – o Bernardo, outro colega, falou. –
Tá muito longe! E mesmo que vier pra cá, não vai dar conta do nosso clima!
Vai morrer de calor!
Como aquele assunto vinha sendo o mais abordado no momento pela
minha família, eu sabia que tinha sim grandes possibilidades de não só chegar
ao Brasil, como também causar o maior estrago no país, mas não consegui falar
nada, porque bem nesse momento o Téo apareceu cumprimentando todo
mundo e me deixando sem fala. O que ele estava fazendo ali? O churrasco era
só da minha sala e ele estava uns dois períodos na nossa frente...
Desde o dia da cantina nós não havíamos mais nos falado, mas às vezes ele
passava por mim no corredor e sempre acenava com um sorriso... Tudo o que
eu mais queria era ter a chance de conhecê-lo um pouco melhor. E talvez agora
esse momento tivesse chegado.
Apesar da timidez, prometi a mim mesma que iria puxar qualquer assunto
caso ele viesse me cumprimentar. O problema é que pelo visto ele era mesmo
bem popular, pois a cada rodinha de amigos que parava, cava ao menos meia
hora conversando! O tempo estava passando depressa, já estava começando a
escurecer, e em pouco tempo meu pai chegaria para me buscar. Era o
aniversário da minha avó, iríamos jantar fora com ela, eu não podia me atrasar.
Resolvi tomar uma medida drástica, pelo menos para os meus padrões. Me
levantei e fui buscar um refrigerante, porém, em vez de ir direto para o isopor
onde estavam as bebidas, dei uma volta e passei bem em frente ao Téo. Meu
plano deu certo. Ele não apenas me viu, mas também sorriu e veio em minha
direção.
– Oi, Lis! – ele disse me dando um beijo na bochecha. – Que bom te
encontrar aqui!
Comecei a gaguejar e não consegui responder nada, por mais que eu
quisesse falar que era ótimo vê-lo também... Por isso, ele que voltou a falar:
– Moro aqui no condomínio, sou vizinho da Carla, ela me chamou pra vir
ao churrasco, o pessoal da sua sala é animado, né?
Ele apontou para a minha colega que era dona da casa, que, ao ver que
estávamos falando dela, veio até nós.
– Já conhece o Téo, Lis? – ela disse dando um beijo estalado no rosto dele. –
Ele é veterano, mas é gente-boa...
Era impressão minha ou tinha algo rolando entre os dois? Com certeza
tinham muita intimidade, pelo jeito como se abraçavam. Como eu não queria
fazer papel de boba nem nada, inventei uma desculpa para sair de perto. Mas
assim que cheguei novamente à mesa em que estava sentada, dei um jeito de
sondar com o Pedro, um dos meus colegas que eu sabia que era muito amigo
da Carla.
– Tem algo rolando entre aqueles dois? – perguntei como quem não quer
nada, apontando para o suposto casal.
– Entre o Téo e a Carla? – ele franziu as sobrancelhas como se não tivesse
entendido direito e então deu uma gargalhada antes de responder. – A Carla
gosta de meninas, ela está de rolo com a Janaína, do 4º período! E, pelo que
estou notando pelos olhares, acho que o Téo está interessado é em você...
Enrubesci instantaneamente. O Pedro então me deu uma piscadela e
continuou a conversar com o resto do pessoal. Nesse momento, meu celular
vibrou e vi que era uma mensagem do meu pai, dizendo que já estava
chegando para me buscar.
Sem a menor vontade de ir embora, me despedi de todos com pesar.
Quando cheguei ao Téo, ele falou: “Mas, já?”, parecendo realmente chateado
por eu não car mais. Expliquei sobre o aniversário da minha avó e ele disse:
“Manda parabéns pra vovó. Nos vemos na faculdade!”. E então me deu outro
beijo no rosto, bem demorado. Respirei fundo e fui embora depressa. Eu não
queria que ele percebesse o quanto havia me desorientado...

18 de fevereiro de 2020
Eu fui encontrá-lo novamente na terça-feira. Meus professores haviam dado
vários trabalhos em grupo e por isso eu vinha passando meus intervalos dentro
da sala. Porém, na terça, tive de ir à copiadora, que cava no segundo andar,
onde também era a sala do Téo. Eu tinha esperança de vê-lo, mas ainda assim
tomei um susto quando me deparei com ele no corredor, junto com dois
colegas, indo em direção à escada.
– Oi, moça bonita!
Respondi um “oi” quase inaudível e continuei meu caminho. Sem conseguir
me conter, dei uma olhadinha para trás e dei de cara com ele me olhando. Me
virei rapidamente e só quando cheguei à minha sala percebi que eu não tinha
tirado a cópia que precisava...

19 de fevereiro de 2020
– Veterano se aproximando à esquerda, vou dar o fora daqui!
Eu estava concentrada lendo uma apostila da prova que teríamos no horário
seguinte, então só processei o que a Hanna havia dito quando ela se levantou e
vi o Téo bem na minha frente.
– Oi, Lis... –, ele falou com um tablet na mão. – Posso sentar aqui?
Ele apontou para o lugar que a Hanna tinha acabado de vagar na mesa da
cantina em que estávamos sentadas, e eu só z que sim com a cabeça, muito
surpresa para dizer qualquer coisa.
– Você é bem tímida, né? – ele disse sorrindo. Eu estava olhando para baixo,
mas me forcei a me virar para ele.
– Não muito, quero dizer, sou, quero dizer, só com quem eu não conheço
direito... – falei já sentindo minha pele queimar. De que adiantava negar? Meu
rosto vermelho sempre me denunciava!
Ele ngiu que não viu meu rubor e falou:
– Ah, então não vejo a hora de te conhecer melhor... – Senti meu coração
disparar, mas ele logo mudou de assunto: – Eu estava vendo aqui no meu iPad,
tenho umas provas digitalizadas que z do 1º período. Se quiser, posso te
mandar, talvez te ajudem nos estudos, acho que os professores ainda são os
mesmos. Pode ser que algumas questões sejam iguais.
– Quero sim! – falei depressa. Seria ótimo estudar a partir de provas antigas.
– Legal, me passa seu número, te envio pelo WhatsApp! – ele disse já
pegando o celular para anotar.
Aquilo estava melhor do que eu imaginava. Ele ia ter meu telefone?! Pensei
que iria me mandar por um simples e-mail...
Falei rapidamente o meu número, ele então se levantou sorrindo e disse:
– Hoje à tarde mesmo eu envio. Tchau, menina!
Eu apenas acenei, meio sem palavras. Será que existia um jeito de passar o
tempo mais depressa para a tarde não demorar a chegar?!

20 de fevereiro de 2020
Ele foi enviar as tais provas só no dia seguinte. Cheguei a pensar que tivesse
esquecido, mas logo depois do almoço meu telefone anunciou a chegada de
uma nova mensagem. Nem acreditei quando vi a foto dele!

Téo: OO,LOs!1KsculpaadKSorapraSaTdarasprovas,tOvKuSdOacorrOdooTtKS!6atKLalar
TaLaculdadK,SasTeotKvO...2spKroquKtKaPudKaKstudar
.AudobKSporaj-

Lis: OO!MuOtoobrOMada!0oScKrtKzaveoaPudar!3OquKOtraTcadaaSaTNeOTtKOraTaSOTNa
sala,tjTNaSosquKaprKsKTtaruStrabalNoKSMrupoTorltOSoNorbrOoKprKcOsaSosLOcarlb
ToOTtKrvalopraacKrtarosrltOSosdKtalNKs...

Téo:C ourKclaSarTasKcrKtarOa!NadaavKrKssKsproLKssorKspassarKStrabalNosteo
coSplOcadosapoTtodKOSpKdOrquKSKTOTasboTOtasaTdKSpKlocorrKdorparaaalKMrOada
MKTtK...

Meu coração deu um salto de três metros! Ele estava mesmo me


paquerando? Ok, agora ele ia ver quem eu era de verdade. Por escrito eu me
saía muito melhor do que pessoalmente!

Lis: AaSbgSvourKclaSar
.NadaavKrasalado(vpKrjodosKrteoloTMKdasalado1v...SK
LossKSaOspKrtodavapraMKTtKvKrosaluTosdo(vcoSSaOsLrKquiTcOa...

Téo: AN,g-4ostadKvKralMugSdo(vKSKspKcOal-

Lis: AKSuSvKtKraTolbquKgbKSLoLoKMKTtK-boa.
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A praMKTtKdostrotKsKtal...Ci-lo
coSSaOsLrKquiTcOasKrOantOSo...

Téo: AN,acNoquKKusKOquKSg!2lKgMKTtK-boaSKsSo!A
KTNocKrtKzadKquKKlK
taSbgSMostarOadKtKvKrSaOsvKzKs,OTclusOvKLoradaLaculdadK...PorLalarTOsso,aSaTNe
coSKfao0arTaval.QuaOsseosKusplaTos-4ostadKbloquOTNos-SKrOalKMalpodKrtK
KTcoTtrarKSalMuSdKlKs...

O quê? Ele queria me encontrar em pleno Carnaval? Que espécie de garoto


era aquele? Eu não podia acreditar. Pena que eu realmente já tinha planos...

Lis: SKrOaSuOtolKMal...Masvou.vOaPar
MOTNaSKlNoraSOMasKSudoupara
OtnrOa
C ToLOSdo
aTopassado
CouvOsOtb-la.6TclusOvKvouLOcarasKSaTatodalb...

Téo: AN,quKpKTa.MasaprovKOtabastaTtKsuavOaMKS!7ujzo,vOu-0oTvKrsaSosquaTdo

vocivoltar!

3 de março de 2020
Minha viagem foi ótima, mas não consegui parar de pensar no Téo... Por
isso estava tão ansiosa para chegar à faculdade na segunda-feira. No primeiro
momento possível dei um jeito de passear pelo andar dele. Não o avistei em
lugar nenhum. No intervalo também não o encontrei na cantina, e nem na
hora da saída. Eu só fui vê-lo na terça-feira, na la da copiadora. Ele estava
equilibrando vários livros na mão e, quando perguntei se precisava de ajuda, ele
apenas disse que estava tudo sob controle, meio seco, sem aquele costumeiro
sorriso no qual eu já estava viciada. Achei aquilo estranho e não falei mais
nada, mas cheguei em casa frustrada, eu pensava que poderíamos continuar do
ponto onde havíamos parado na semana anterior. Mas pelo visto eu podia
esquecer. No mínimo tinha arrumado alguma namorada no Carnaval...

5 de março de 2020
Eu já tinha até perdido as esperanças, o Téo estava realmente distante... Nas
poucas vezes em que o vi na faculdade durante a semana, ele mal me
cumprimentou. Por isso, quei completamente surpresa quando no meio da
tarde de quinta-feira meu celular apitou.
Téo: OO,Sofa!AudobKSporaj-
Fiquei um tempo sem reação. Resolvi ter cautela e deixar que ele
desenvolvesse o assunto.

Lis: Audo,Kvoci-

Téo: MaOsouSKTos.MOTNaSadrOTNaKstbdoKTtK,soSosSuOtoprn]OSos,SasKlaSora
KSuSsjtOoKSA ris0orafqKs,KTteoTeopossoaPudb-lacoSoMostarOa.3OquKOasKSaTa
OTtKOraquKrKTdoKstarlb,SascoSoKstoutKTdoprovasKtrabalNos,snaSaTNevoupodKr
vOaPar
.

Puxa, então era por isso que ele estava distante... E eu pensando que era
comigo!

Lis: Nossa,TKSsKOoquKdOzKr!OquKKlatKS-Neog“covOd”,Tg-

Na minha casa só se falava no tal coronavírus. Em São Paulo já havia oito


casos con rmados e minha mãe estava em pânico por antecipação, sabendo
que mais dia, menos dia ele chegaria a Minas Gerais.

Téo: Neo,KlacaOuKquKbrouobrafo.PorOssoKstbprKcOsaTdotaTtodKaPuda,poOsSora
sozOTNa,coOtada.MasporLalarTOsso,quKloucuraKssKvjrus,Tg-2spKroquKdKSorK
bastaTtKacNKMaraquOKSB5!
Lis: LoucuraSKsSo.PKTsavaquKOssosnacoTtKcOaKSLOlSKsdKLOcfeo,cOKTtjLOca...

Téo: PorLalarKSLOlSKs,quKrOasabKrsKvocitopaOraocOTKSacoSOMouSdOadKssKs...
OuLazKralMuSaoutracoOsa.NKssKLOSdKsKSaTarKalSKTtKvoutKrquKvOaParparatoSar
coTtadadOTda,SasquKSsabKToprn]OSo-

Meu coração disparou e abri involuntariamente o maior sorriso!

Lis: ATOSosOS...AdorocOTKSa.

Téo: 2utaSbgS!2vouadorarSaOsaOTdasKLorcoSvoci...OlNa,tKTNoquKOraMora,
prKcOsotKrSOTardKKstudarpraprova.SKaMKTtKTeosKKTcoTtraraSaTNeTaLaculdadK,
uSntOSoLOSdKsKSaTa!

Eu me despedi e então me deitei na minha cama, segurando com força o


celular. Eu não sabia bem o que estava se passando no meu peito... mas não
queria que aquele sentimento fosse embora nunca mais.
11 de março de 2020
– A Organização Mundial de Saúde acaba de declarar que o mundo vive
uma pandemia de covid-19, você viu? – a Hanna falou enquanto andávamos
para a cantina. – Estou meio preocupada, meus pais são mais velhos, fazem
parte do grupo de risco...
– Na minha casa só se fala nisso – respondi desanimada. – Minha avó mora
conosco... além de ter 81 anos, ela é diabética e hipertensa. Minha mãe está
surtando.
A Hanna respirou fundo e bem nesse momento escutei alguém gritando
meu nome. Olhei para trás e vi o Téo vindo em minha direção. Falei para a
Hanna que eu a encontraria em alguns minutos e esperei que ele chegasse, me
sentindo muito feliz de repente.
– Oi – falei assim que ele se aproximou. – Não te vi nem ontem nem na
segunda... Tudo bem com sua madrinha?
– Sim, na medida do possível... – ele balançou os ombros. – Ela vai car na
casa de uma vizinha até melhorar. Estive lá até ontem e vou visitá-la de novo
assim que der.
Desejei melhoras e ele então disse: – Quero saber se nosso cinema está de
pé... Que tal no sábado?
– Acho ótimo... – falei depressa, mas então olhei pra baixo, sem graça por
ter topado tão rápido.
Ele pegou de leve o meu queixo e fez com que eu olhasse para ele. Em
seguida disse:
– Mal posso esperar... Me passa seu endereço por WhatsApp? Eu posso te
buscar em casa.
Concordei e fui para a cantina utuando. Eu também mal podia esperar...

14 de março de 2020
– Oito casos suspeitos em BH! E as pessoas continuam saindo de casa como
se nada estivesse acontecendo! É um absurdo isso, se eu fosse o prefeito dessa
cidade decretaria lockdown imediatamente!
Eu estava no meu quarto, com a porta fechada, mas ainda assim podia
escutar os berros da minha mãe. Eu não aguentava mais ouvir falar do tal vírus!
Parecia que ninguém tinha outro assunto! Eu não via a hora de entrar naquele
cinema com o Téo e car duas horas sem ouvir ninguém falar as palavras
“corona” ou “covid”! Meus ouvidos realmente precisavam de um descanso!
Olhei pela centésima vez para o espelho e quei feliz com a roupa que tinha
escolhido. Eu estava terminando de passar o rímel no olho esquerdo, quando
minha mãe apareceu. Pelo re exo pude ver que ela estava com a testa franzida e
a mão na cintura.
– Onde você pensa que vai assim?
– Ficou ruim? – perguntei preocupada, pensando que ela estava falando da
maquiagem. Eu não tinha passado nada so sticado, apenas o su ciente para
realçar os olhos e a boca. O Téo estava acostumado a me ver de cara limpa na
faculdade, eu queria impressioná-lo um pouquinho...
– Ruim? Está péssimo! Você acha mesmo que vai sair de casa em pleno surto
de coronavírus?
Ah, então era isso. Voltei a me virar para o espelho, eu ainda precisava
terminar de passar o batom.
– Não se preocupe, mãe, só vou ao cinema.
– Cinema? – ela falou chegando mais perto de mim. – Enlouqueceu?! É um
dos maiores focos do vírus! Uma sala fechada, cheia de gente respirando! Você
não vai de jeito nenhum!
Larguei o batom e me virei para ela.
– Vou sim. Aliás, o Téo já está vindo me buscar!.
– Eu te proíbo! – minha mãe falou ainda mais séria e mais alto. – Não quero
que você pegue essa doença terrível e a traga aqui pra dentro!
Eu comecei a gritar que ela não podia me proibir, mas aquilo acabou
atraindo meu pai, meu irmão e minha avó. Minha mãe fez questão de contar a
todos que eu queria “colocar a minha vida e da minha família em risco saindo
com um cara qualquer”.
– Deixa a menina namorar... – minha avó entrou no meio. – Sei muito bem
que essa confusão toda é por minha causa, por eu ser do grupo de risco e tudo
mais... Mas quer saber? Eu não ligo! Se eu tiver que morrer, tudo bem, chegou
a minha hora! Não quero que a Lis prejudique a vida dela por minha causa.
– Não diga isso! – minha mãe falou horrorizada para a minha avó. – Você
não vai morrer tão cedo! Muito menos por causa de um vírus desses! Está
decidido, a partir de hoje está decretada quarentena nesta casa! Ninguém entra
e ninguém sai! Vamos fazer supermercado por delivery, farmácia, tudo que
tivermos que comprar vai ser entregue aqui! – Eu comecei a reclamar, mas ela
continuou: – Você tem apenas 17 anos, Lis! Tem que me obedecer e ponto
nal. Eu só quero o seu bem!
E então saiu, me deixando tremendo de tanta raiva, prestes a ter um ataque
de choro. Olhei para o meu pai, pedindo ajuda, mas ele balançou os ombros e
falou:
– Você conhece a sua mãe... Não vai mudar de ideia tão cedo. E, se quer
saber, não discordo dela totalmente, a covid-19 é uma doença que pode se
mostrar muito séria. Inclusive minha empresa já permitiu fazer home o ce, vai
ser ótimo poder car um pouco mais com vocês.
Meu irmão, que tinha 12 anos, bateu palmas, já chamando meu pai para
uma partida de videogame, e eu então corri para o meu quarto, sem acreditar
que aquilo estava acontecendo.
Peguei meu celular depressa e liguei para o Téo. Eu nunca havia falado com
ele por telefone, só por mensagem, estava sem graça de fazer isso, mas não
podia correr o risco de ele vir me buscar à toa.
Ele atendeu de primeira. Expliquei rapidamente tudo que tinha acontecido
na minha casa e expus o quanto eu estava me sentindo mal de ter que cancelar
o nosso cinema.
– Que pena, eu estava ansioso pra te ver... – ele falou parecendo realmente
desapontado. – Mas entendo. Na minha casa todos estão bem preocupados
também. Faz assim, vamos encarar isso como um adiamento. Assim que esse
“coronga” passar, a gente marca de novo! Que tal?
– Combinado... – respondi desanimada. Como eu estava cando cada vez
com mais vontade de chorar, falei depressa: – A gente conversa direito na
segunda então.
Ele cou um tempinho calado, mas logo disse:
– Você não está sabendo? Não vai ter aula segunda. Aliás, não vai ter por
tempo indeterminado, zeram isso como prevenção para diminuir o contágio
do coronavírus. A faculdade mandou e-mail para todos os alunos avisando e
saiu no jornal também.
Eu não tinha checado o meu e-mail, e muito menos lido jornal. Havia
passado o dia inteiro me preparando para me encontrar com ele! Que raiva
desse vírus intrometido!
Bem nesse momento, minha avó apareceu na porta, perguntando se podia
falar comigo. Me despedi rapidamente do Téo e z sinal para que ela entrasse.
Ela se sentou na minha cama e pegou minhas mãos.
– Querida, não ca triste... Sua mãe é exagerada, mas o que ela falou é
verdade: ela só quer o seu bem. Sei que a maior culpada disso tudo sou eu, se
não morasse aqui talvez ela não fosse tão rígida em relação a esse vírus. Se eu
pudesse, juro que sairia daqui só para não impedir a sua felicidade.
– Não fala isso, vovó... – falei a abraçando. – Eu não quero que você vá
embora, de jeito nenhum! Só quei chateada porque esse garoto com quem eu
ia sair... sei lá, ele é especial. Gostei dele de primeira e parece que ele gostou de
mim também. Ele me faz sentir umas coisas que eu nunca senti antes. E agora,
quando achei que a gente ia se acertar, veio essa proibição! Não tenho a menor
ideia de quando vou poder encontrá-lo!
Minha avó cou me olhando meio com pena, mas então deu um sorrisinho
e disse:
– Talvez tenha um lado bom... Quando vocês puderem se ver, vão estar com
tanta vontade de estar juntos que o encontro vai ser inesquecível!
Balancei a cabeça, desanimada.
– O problema é que a gente está bem no comecinho, só na paquera
mesmo... Provavelmente vai aparecer alguma outra garota nesse meio-tempo,
que não esteja presa dentro de casa, e aí ele nem vai mais lembrar de mim!
Minha avó cou pensativa, pegou meu telefone que estava na cama, o
balançou e então falou:
– Ele não vai te esquecer se você continuar presente. Pode mandar pra ele,
vez ou outra, algum sinal para que ele continue com você nos pensamentos.
Sabe, quando eu comecei a namorar seu avô, ele morava em outra cidade. A
gente se comunicava por cartas! Era tão romântico... A cada carta dele que
chegava eu tinha vontade de entrar no envelope, e provavelmente ele sentia isso
também. E quando a gente nalmente podia se encontrar... era a maior paixão!
Pensei um pouco naquilo e então senti um enorme frio na barriga. Sim,
aquilo podia dar certo... Talvez fosse até bom assim, eu realmente conseguia
me expressar melhor por escrito!
Abracei a minha avó, agradeci pelos conselhos, e ela então saiu do quarto,
dizendo que era para eu mantê-la atualizada... Concordei sorrindo. Eu esperava
que pudesse dar boas notícias em breve!

15 de março de 2020
Lis: OO,Ago.1KsculpatKrdKslOMadodKprKssaoTtKS,SOTNaavnKstavaprKcOsaTdoLalar
coSOMo.AOTdaKstoucNatKadaporTeotKrSosOdoaocOTKSa.2taSbgSportKrKSLKcNado
aLaculdadK.AcNoquKvouLOcarcoSsaudadKdKalMugS...

Téo: OO,LOs!aSbgS
A LOquKOSKOoprabaO]o,KstavaKspKraTdoKssKcOTKSaasKSaTa
OTtKOra...MasSKcoTta,quKSgKssapKssoadKquKSvocivaOLOcarcoSsaudadK-
Lis: AN,guSMarotoquKKstudalb,TeosKOsKvocicoTNKcK.2lKSKdKspKrtavbrOos
sKTtOSKTtosquKTeoKTtKTdodOrKOto...AlgSdasaudadK,aoladodKlKLOcototalSKTtKsKS
palavras.0oSocorafeoSKOodOsparado...2coSvoTtadKSKapro]OSarSaOs.BKSSaOs...
NavKrdadK,talvKzsKPaatgSKlNorTeoovKrcoStaTtaLrKquiTcOa,TeosKOsKKudKvOa
sKTtOrKssascoOsas...MasSKcoTta,porquKvociKstavateoaTsOosoparaOraocOTKSa-O
LOlSKgSuOtoboS-

Téo: AN,sOS,KuKstavaloucoparavKrKssKLOlSK,dOzKSquKgntOSo!QuKro...
dOzKr
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vKrdadKaMKTtKTKScNKMouacoSbOTarqualLOlSKvKrjaSos,Tg-ATdoSKOodKsorOKTtado.
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prOSKOravKzKSquKKuavO,sKTtOvoTtadKdKcoTNKci-laSKlNor
.2laKstavacoSuSa
carOTNateoassustadaKtOTNauScabKloteolOTdo(quKKusabOaquKOrOaLOcararruOTadoKS
sKMuTdos)quKsKTtOvoTtadKdKprotKMi-ladKalMuSaLorSa.2dKsdKKTteoKlaTeosaOu
SaOsdosSKuspKTsaSKTtos...

Lis: AcNoquKvoutKrquKOraMora.OtalMarotoquKKutKLalKOSKdKO]ousKSpalavrasSaOs
uSavKz!2SKucorafeoKstbprKstKsaKTtrarKScolapso...PodKSoscoTtOTuaracoTvKrsa
aSaTNe-

Téo: MalpossoKspKrar
.PodKrOaLOcarcoTvKrsaTdocoSvociodOaOTtKOro...
cNau,SKTOTa
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lOTda.BSbKOPobKSMraTdK!

Lis: Outro!AaSbgSSalpossoKspKrar
...

22 de março de 2020
Téo: OO,LOs!C
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BrasOlKPbKstaSoscoStraTsSOsseocoSuTOtbrOaKSB5.MOTNaLaSjlOaKstbassustada,
KstaSosLazKTdocoSprasporaplOcatOvoKquaTdocNKMaStKSosquKlOSparKpassar
blcoolKStudo.NuTcapKTsKOquKKuprKcOsarOalavaracascadKuSabaTaTa!

Lis: O O,Ago!SOS,SOTNaSeKTeoSKdKO]aKsquKcKraaSKafadKssKvjruspaOraTdoTKS
uSsKMuTdosKquKr,aACdasalaLOcalOMada2)NoraspordOaTocaTaldKTotjcOas!PKlo
vOstoaLaculdadKTeovaOvoltarteocKdo,Tg-

Téo: 6TLKlOzSKTtK...MaspKloSKTosKstaSoscoTvKrsaTdoporvjdKotodasasToOtKs.6sso
SatauSpoucoavoTtadKdKtKvKr!PorLalarTOsso,coSbOTadoNoPKToNorbrOodKsKSprK-
Lis: 0laro!KAcNaSocs22N!2stouadoraTdopassarSOTNasToOtKsKSsuacoSpaTNOa...

26 de março de 2020
Lis: OO,Ago,dKsculpatKrdKslOMadodKprKssa.MKupaOacaboudKvOraquOToquarto
pKrMuTtaroquKKuKstavaLazKTdocoSaluzacKsaKolNaTdoparaocKlularcs)Nda
SaTNe!6TvKTtKOquKtOTNalKvaTtadoparaOrbuscarbMuaTacozOTNaKquKsnKstava
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Téo: OuvOavozdKlKaTtKsdKvocidKslOMar!NKSvOquKPbKrateotardK,vociSKLaz
pKrdKraTofeodotKSpo...BKOPo,lOTda,soTNacoSOMo!

Lis:

30 de março de 2020
Téo: OO,LOs!C
OuquKaTuTcOaraSaprOSKOraSortKporcovOd-19KSB5-MKuspaOsLOcaraS
KTlouquKcOdos.2staSosOTdoparaosjtOodaSOTNaSadrOTNa
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KSA vaSos
LOcaruSassKSaTaslb,KlKsacNaSquKvaOsKrSaOssKMuro.0oSoosdoOsKsteo
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coTtOTuaLKcNada.
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Lis: QuKboSquKvocisveopralb,vaOsKrntOSopraKlaKpravocis...4ostarOadKtKruS
rKLrMOodKssKsparaOrtaSbgS.NeoaMuKTtoSaOsLOcarprKsaTKstKapartaSKTto!AcNoquK
sKTeoLossKSasTossascoTvKrsas,KuPbtKrOaLOcadodoOda!
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KscapK...

Téo: Ô,prOTcKsa...QuKrOatKcoTvOdarpraOrcoSOMo,SasacNoquKsuaSeKTeovaO
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Lis: ÉSaOsLbcOldKscobrOrKSavacOTaparaocoroTavjrusdoquKKlapKrSOtOrOsso!

Téo: QuKpKTa.6aadoraraprKsKTtarSOTNaTaSoradapradOTdaKprosSKuspaOs.
Lis: QualTaSorada-

Téo: Bg,arTOcaquKKutKTNo.PorquKsnSKsSouSaTaSoradaSuOtoKspKcOalpraSK
prKTdKrTotKlKLoTKporpKloSKTossKOsNorastodososdOas,praSKdarvoTtadKdKcoTtar
tudodaSOTNavOda,praSKLazKrdKsKParquKoLuturocNKMuKloMoparapodKrti-laTos
SKusbrafosKcoTtarpKssoalSKTtKoquaTtoKlaSKKTlouquKcKSKsSoquKdKloTMK...

Téo: LOs-CociKstbajaOTda-AKStrisSOTutosquKTeoKscrKvKTada.3alKOalMoquKvoci
TeoMostou-

Lis: 1Ksculpa,acNoquKSKuTaSoradoSKdKO]ousKSpalavrasTovaSKTtK.2lKcostuSa
LazKrOsso.1KsdKaprOSKOravKzKSquKovO...

Téo: 2TteovociquKrTaSorarcoSOMo-

Lis: SnsKvociproSKtKrquKvaOcoTvKrsarcoSOMopKloSKTossKOsNoraspordOaatgKssa
quarKTtKTaacabar.

Téo: Po]a,dKpoOsquKacabarTeopodKSaOs-

3 de maio de 2020
Téo: LOs,acabKOdKcNKMaraB5.AcNaquKoquKcoSbOTaSospodKdarcKrto-

Lis: AKSquKdar!2uvoudaruSPKOtodKdKscKrrapOdOTNosKSpKrcKbKrKS.MassKalMugS
SKpKMarLazKTdoOsso,dOMoquKsnvoudKO]aruSlOvropra5aTTaTaportarOa.

Téo: OQ,aSaTNequaTdoKstOvKrcNKMaTdocsuacasaKutKavOso,tb-AcNoquKTKSvou
dorSOrKssaToOtK!
4 de maio de 2020
– Meu Deus, já são 100 mil casos no Brasil, continua aumentando e os
prefeitos querendo reabrir o comércio! Onde nós vamos parar?! Querem matar
o país inteiro?!
Minha mãe, como sempre, estava em frente à televisão na sala. Por isso, saí
pela porta da cozinha bem devagar, seria bem melhor não ter que usar a
desculpa planejada. Eu tinha medo de que ela percebesse que eu estava
mentindo...
Não esperei o elevador. Desci as escadas depressa, com o coração aos pulos.
Cheguei ao térreo me sentindo meio culpada, eu não devia furar a quarentena,
mas aquilo não podia mais esperar.
Pisei na rua pela primeira vez em quase dois meses. Abaixei a máscara que
eu havia colocado antes de descer, olhei para o céu e respirei fundo. Como era
bom estar ao ar livre...
– Lis?
Olhei para trás e lá estava ele. Também de máscara. Também parecendo
meio ansioso.
– Téo – falei sem conseguir segurar o sorriso. Ele estava um pouco diferente.
Parecia mais magro. Com o cabelo um pouco maior. Irresistível como nunca...
– Nem acredito que estou te vendo! Posso chegar perto de você? Juro que
não estou infectado, passei esse tempo todo isolado no sítio, não encontrei
ninguém de ontem pra hoje, entrei no carro na minha casa e parei só aqui.
– Eu não me importaria nem se você tivesse andado no meio de uma
multidão! – falei deixando a timidez de lado e chegando eu mesma mais perto
dele. – O risco valeria a pena...
O Téo então tirou a máscara e eu vi aquele sorriso que me tirava a paz. Em
seguida ele pegou as minhas mãos, dizendo: “Você é mais linda do que eu me
lembrava...”, e então passou a mão bem de leve pelo meu rosto.
– Téo, não posso demorar... – falei sorrindo, enquanto olhava para a boca
dele. Estava difícil resistir.
Sem esperar mais um segundo, ele me puxou e me deu um beijo que me
deixou até sem fôlego.
Depois de um tempinho, recobrei a consciência, me afastei um pouco e
falei:
– Eu queria car aqui pelo resto do dia, ou melhor, pelo resto da vida... Mas
se minha mãe perceber que eu saí, é capaz de me trancar no quarto até o
próximo milênio!
– Se ela zer isso vou ter que escalar seu prédio e te sequestrar pela janela! –
ele falou me puxando mais uma vez. – Não vou conseguir car tanto tempo
longe desse beijo...
E então nós nos beijamos várias vezes mais e nos despedimos sabendo que a
espera valeria a pena. Nós ainda tínhamos muito o que viver.

30 de novembro de 2020
– Feliz aniversário de namoro, Lis! Oito meses com você!
– Até que passou rápido... – falei depois de dar um grande beijo no Téo e
admirar a or que ele havia trazido para mim. – Quero dizer, depois que o
con namento acabou!
Enquanto ele ia entrando na minha casa, comecei a me lembrar de tudo que
havia se passado naquele tempo. O período da quarentena pareceu
interminável, mas aos poucos as coisas foram voltando ao “normal”. Ou
melhor, ao mais perto do normal que poderíamos chegar no momento. O
comércio da cidade reabriu e as pessoas começaram a perder o medo de se
encontrar... ainda que com máscaras. Sim, esse agora é o gurino o cial da
população.
Quanto ao Téo... Quando pudemos nos encontrar sem nos esconder, foi
como se nunca tivéssemos cado separados, como se durante todo aquele
tempo tivéssemos andado de mãos dadas. Meus pais o adoraram de cara e
minha avó mais ainda. Ela se sente um pouco responsável pelo nosso namoro,
por ter me dado a dica de tentar conquistá-lo pelo celular. Eu não me canso de
agradecer... Nunca imaginei viver um amor assim. Ainda mais em plena
quarentena.
– Ei, o que vocês estão fazendo dentro de casa? – minha mãe apareceu
pouco depois de nos sentarmos no sofá da sala para ver televisão. – Agora já
pode sair, olha o dia lindo que está lá fora! Não cansaram de car
enclausurados?!
– Acabei acostumando... – falei sem dar muita atenção e voltando a olhar
para a TV.
– Pois não devia! Acabaram de divulgar na internet que a vacina está prestes
a sair! Em pouco tempo poderemos viver totalmente sem medo, viajar, abraçar
as pessoas, beijar... Bem, algumas pessoas já se abraçam e beijam,
independentemente de ter vacina ou não, né?
Ela olhou para nós com a testa meio franzida, mas então revirou os olhos e
saiu, nos deixando sozinhos. O Téo só apertou minha mão, sorrimos um para
o outro, e pouco depois ele pegou o celular. Pensei que era para ver as horas ou
algo assim, mas de repente uma mensagem chegou ao meu telefone. Ao ver um
risinho no canto da boca dele, olhei curiosa para o visor.

Téo: SKLorprapassaraquarKTtKTaPuTtocoSvoci,podKvOraprn]OSapaTdKSOa!

Lis: 1KssKPKOtoKuTeovouTKSquKrKrSKvacOTar
...

Ele então me beijou longamente e eu tive a certeza de que dali para frente
tudo daria certo. O pior de nitivamente já tinha cado para trás.
FIM
Dentro de casa

Stella Maris Rezende

Ela cou pesarosa ao imaginar que eu permaneceria minguada, quase


desfalecida em meio à vivacidade das outras. Bem sei o quanto esperava de
mim, vive dizendo que sou a preferida. Desde menina, quando morava no
Mato da Lenha, um bairro de Belo Horizonte que faz tempo se chama Salgado
Filho, mas para ela continua Mato da Lenha, acha mais bonito, ela vive
dizendo que sou a preferida. Tem esse vezo de se enlear com nomes poéticos ou
inspiradores. Salgado Filho foi um senador gaúcho. Mato da Lenha atiça muito
mais os sonhos e a imaginação, ela disse, antes de retomar a leitura do Balzac.
Para suavizar esses dias de con namento, decidiu terminar tudo o que faltava
ler do Balzac.
Nas feições de menina, o quintal da casa tinha canteiros com pés de couve,
alface, tomate, salsa e cebolinha. No murinho do alpendre a mãe se esmerava
nos vasos de begônia, amor-perfeito, botão-de-ouro, margarida e miosótis. A
mãe e o seu diadema prateado segurando acima da testa o liso cabelão. Um dia,
a tia Marta inventou de trazer uma planta diferente. A madrinha e o seu cabelo
cacheado sempre solto e cheio de movimentos. Aqui, essa é para a minha
a lhada, viu, Célia? O vaso é singelo, bota reparo, mas o que vem dentro dele,
espia só, Marcela, já tinha visto coisinha mais mimosa? Duvido. Aqui, essa tem
formato de coração, espia. A espécie se chama paleta-de-pintor. A parte
vermelha é a bráctea, que atrai os polinizadores, sabe? As ores são esses pontos
petitinhos que cam em volta da espádice. Aqui, essa planta é a sua cara,
Marcela.
Quem diria que a madrinha ia trazer espádice, bráctea e paleta-de-pintor?
Tia Marta, com o seu aqui em quase todo início de frase, surpreendia amiúde.
O desastre é que a mãe virou a cara, nem cumprimentou a irmã.
Primeira vez que ela ganhava de presente uma mimosura com formato de
coração. Desse dia em diante, qualquer outra planta poderia ser bonita, mas a
preferida seria categoricamente a paleta-de-pintor.
Teve uma noite, a mãe conversou com ela, depois da janta. As duas na
lavação de vasilhas. O pai e a mãe se revezavam nessa lida e Marcela gostava de
ajudar no enxuga e guarda. Era bom ver a água tirando a espuma. E com um
pano limpinho, tratar de enxugar e depois ajeitar tudo em gavetas e prateleiras
do guarda-louça. Ensaboando, a mãe disse, a Marta inventa cada uma, chega a
me dar gastura. Ela quis saber: como assim, mãe? Não entendi. Ara, menina,
não se faça de desentendida. Onde já se viu? A Marta é muito inventadeira de
moda. A mãe fechou a torneira e deteve uma panela entre os dedos. Ela pegou
a panela, começou a enxugar e procurou o olhar da mãe, mas só viu um rosto
que se esquivava e mãos que por um instante se detiveram sobre os bolsos do
avental. Continuo não entendendo, mãe. Larga a mão de ser pamonha,
Marcela. E enxuga direito essa panela, tome tento. Nesse instante, o rosto da
mãe se virara para ela. Os olhos castanhos, pequenos e a itos. O nariz com
rosácea. A boca entreaberta em lábios nos e um pouco trêmulos. O que
Marcela já sabia se impôs. A senhora implica com a tia Marta, isso eu sei.
Alguns segundos de silêncio.
Mãos ensaboando e enxaguando, mãos enxugando e guardando.
E depois: essa sua tia não me engana! Essa sua irmã é a minha madrinha,
viu, mãe? Pelo que sei, foi a senhora quem chamou a tia Marta para ser a
minha madrinha.
Mais alguns segundos de silêncio.
Mãos ensaboando e enxaguando, mãos enxugando e guardando.
Se arrependimento matasse! Credo, mãe, larga a mão de implicância. Não
dá para esquecer o que a Marta fez comigo. A senhora sempre fala isso, mas
não esclarece. Não preciso dizer mais nada sobre a Marta. Ela é sua irmã, viu,
mãe? Infelizmente, Célia disse.
Passou a terminar assim qualquer assunto que se referisse à tia Marta. A mãe
dizia: infelizmente. Parecia que o nome da madrinha era Infelizmente Marta
Teixeira Medeiros.
Naquela noite, depois de tirar o avental, Célia se debruçou na janela da
cozinha e cou olhando para o pé de goiaba, tocou em algumas de suas folhas
atrevidas que quase invadiam a cozinha. A lha ainda ouvia: não dá para
esquecer o que a Marta fez comigo.
Marcela demorou a pegar no sono. Parecia que a tia Marta era
continuamente ensaboada, enxaguada, enxugada e guardada no fundo de uma
prateleira do vetusto guarda-louça, herança da vó Chiquinha. Não dá para
esquecer o que a Marta fez comigo.
Na manhã do dia seguinte, um domingo, Marcela cou na cama até mais
tarde. Acordara cedo, mas com um desânimo sem m. Ficou morgando
debaixo do cobertor até baterem à porta. Ela reconheceu o toque dos dedos do
pai. Ele sempre batia de um jeito brincalhão. A madame permite que eu entre
em seus aposentos? Entra, pai, já estou acordada faz tempo. Eu sei, madame,
ele veio dizendo e se aproximando. De camiseta sem mangas, cabelo ainda
molhado do banho, sorriso de dentes branquíssimos, nariz pequeno, olhos
negros e vívidos, sobrancelhas de Monteiro Lobato. Sentou-se na beira da
cama, depois de beijá-la na testa.
Vez ou outra, a madame gosta de car morgando até mais tarde. Eu te
invejo, lha. Já eu, o cuco avisa que são cinco e meia da manhã, levou quem
trouxe, não tem jeito, a cama me expulsa, não importa o dia, sempre fui assim,
eta diacho. E a gente tem relógio de cuco, pai? Quem dera! Eu acho poético,
mas na nossa família só a tia Marta tem relógio de cuco.
Ela procurou indícios, em vão. A sionomia do pai permanecia alegre e
despreocupada. O nome da tia Marta não provocara nenhum aviso de perigo.
A voz da mãe insistia: não dá para esquecer o que a Marta fez comigo. Será que
o pai não tinha conhecimento do imbróglio? Marcela desconcertada; de
repente, tomou-se de coragem.
Pegou as mãos do pai. Observou os dedos longos e nos.
Fala, mocinha. Desde ontem à noite estou te achando estúrdia.
A mamãe e a tia Marta, ela começou dizendo, e rápido ergueu o olhar para
o rosto do pai. Procurou indícios, em vão.
A minha madrinha me deu um presente gracioso! Nenhuma transformação
se avizinhou de qualquer traço do rosto do pai.
Eu vi, você colocou no peitoril da janela da sala, em vez de deixar no
murinho do alpendre, junto às da sua mãe. Na janela da sala bate muito sol à
tarde. Será que isso é bom para uma paleta-de-pintor? Pre ro que que na
janela da sala, para todo mundo ver a mimosura que eu ganhei de presente,
viu, pai? Eu sou exibida. Mas, pai, você já sabia que o nome dela é paleta-de-
pintor? Não, a Célia é que me disse. E a sua mãe estava com uma carantonha
daquelas.
Marcela se reanimou. O pai dava ousadia. Fico cismada demais com isso,
pai, acho muito triste a mamãe car assim de mal da tia Marta. Por que será?
Sem indícios de desconforto ou inquietação, o pai foi logo dizendo, a Célia
enca fou com a sua madrinha desde o dia que eu comentei que a franja toda
cheia de cachinhos da Marta é uma pintura do século dezessete. Marcela danou
a rir. Depois, respirou fundo. Mais uma vez esquadrinhou cada pedacinho do
rosto do pai. Procurou indícios, em vão.
A franja toda cheia de cachinhos da Marta é uma pintura do século
dezessete, Marcela repetiu, agora séria e baixando novamente o olhar sobre as
mãos do pai. Os dedos longos e nos do pintor. Mário é professor de artes,
além de pintor. Fez de uma parte do alpendre o seu ateliê. Célia é professora de
ciências.
A mamãe tomou raiva da minha madrinha. Pois é, apenas porque eu disse
que a franja dela cheia de cachinhos lembra uma pintura do século dezessete. A
Célia é muito inventiva na malsinação. Ela vê o que não há e esquece de ver o
que há.
E puxando-lhe os braços, o pai disse: vamos, mocinha, já chega de tanto
morgar nessa cama, está um dia lindo e daqui a pouco a sua paleta-de-pintor
morre esturricada na janela da sala. É melhor você ver como vai indo o
presente da madrinha.
Antes de sair, Mário piscou para ela e convidou: vamos passear de charrete
no m da tarde? Marcela pulou da cama, radiante. Eba! Passear de charrete é
tão poético quanto um relógio de cuco!
A minha antecessora, a primeira paleta-de-pintor, não durou muito, a
a lhada não soube cuidar do presente da madrinha. Infelizmente.
Felizmente havia brotado a preferência por mim.
Talvez eu seja um pedido de perdão.
Aos poucos, Marta desistiu de visitar a irmã, embora adorasse a a lhada.
Célia parou de citar o nome da irmã. Começaram a envelhecer e nunca mais se
viram. Mário separou-se de Célia, foi para São Paulo, tornou-se um pintor
conhecido, telefona para a lha todos os dias, vez ou outra lamenta sobre as
irmãs. Marcela bem que tentou diminuir o desarranjo, descobriu o novo
endereço da madrinha e a visitou algumas vezes. Tocava no assunto da
desavença. Uma vez, teve conseguimento de ouvir uma única explicação acerca
da ingresia: aqui, a Célia pôs na cabeça uma coisa que na verdade não existe,
nunca existiu. A sua mãe prefere viver de imaginação malsã. Imaginar é uma
bondade, desde que não tenha um viés malsadio. Aqui, deixemos a Célia. Me
conte sobre você.
E o imbróglio permanece. Vira e mexe, Marcela ca assuntando o que a
irmã do diadema preto pôs na cabeça do liso cabelão e nunca mais tirou.
Segundo o cunhado da Marta da franja toda cheia de cachinhos, que lembra
uma pintura do século dezessete, a Célia é muito inventiva na malsinação.
Segundo a Marta, a irmã vive de imaginação malsã.
Foi a tia Marta que um dia comentou com Marcela: o seu pai tem
sobrancelhas de Monteiro Lobato. Essa frase, ainda que solta no meio de uma
conversa, não alterando em nada a expressão do rosto da madrinha, os olhos
verdes luzidios como sempre, o nariz redondo na ponta, os lábios grossos com
batom roxo, os brinquinhos de pérola, a franja toda cheia de cachinhos
saltitantes, a frase pendurou-se na a lhada. Sobrancelhas de Monteiro Lobato.
E não é que eram mesmo? A madrinha tinha toda a razão. Por que a Marcela
ainda não se dera conta desse detalhe tão poético? O pai tem sobrancelhas de
Monteiro Lobato. Quem constatou a minudência? A tia Marta. A cunhada de
franja toda cheia de cachinhos que lembra uma pintura do século dezessete. A
madrinha que deu à a lhada uma paleta-de-pintor. Aqui, não outra espécie,
mas exatamente uma paleta-de-pintor. Marcela teve medo de começar a sofrer
também de imaginação malsã.
Pois bem. Faz uns dias, Marcela olhava para as outras e cava alegrinha; no
entanto, ao estender o olhar para o meu espaço na mesa diante da janela da
sala, apertava os lábios, meneava a cabeça, esquecia o olhar desanimado sobre
mim, até me esquecer um pouco. Só um pouco. Eu sei que ela não tinha
conseguimento de me tirar da memória; a nal, sou a preferida.
Até pouco tempo atrás, inexistia qualquer uma de nós, preciso revelar. Cadê
que ela nos queria? Argumentava que trabalhava demais, que não sobrava
tempo, que a correção de provas dos alunos a absorvia por horas e horas,
principalmente quando corrigia as redações, fazia questão de elogiar a
criatividade, o ponto de vista inteligente, deixava recados de ânimo e coragem a
cada aluno, que ser professora de português não é bolinho, trabalha muito e
ganha pouco nesse país que desdenha do conhecimento e da arte, que seria
complicado cuidar da gente, que preferia as falsas. Sim, o apartamento recebia
as falsas. Ainda há algumas; fazer o quê? Eu olho para as falsas e respiro fundo,
me disponho a exercitar compaixão. Pensando bem, e é sempre bom pensar
bem, as falsas conservam uma beleza que de certa maneira deve ser benfazeja
aos olhos nesses dias estranhos.
Fico atenta aos olhos dela, sempre.
Tem dia, castanhos ansiosos e confusos.
Tem dia, mais alentados.
O cabelo curtinho batido na nuca. Acima da testa, um rodamoinho joga a
franja para o lado. O nariz com rosácea igual ao da mãe. Os lábios nos com
batom cor-de-boca. De raros os se compõem as sobrancelhas. Quem dera ela
tivesse as sobrancelhas do pai! Ia ser um escândalo de beleza hereditária. Mas
coube apenas ao Mário a parecença.
E por que os olhos verdes só couberam à Marta? Os outros irmãos, Eugênio,
Miguel e Regina, mais novos que Célia e Marta, moravam longe, mas
telefonavam com frequência e visitavam Célia nas férias de julho e no Natal; os
três tinham os mesmos pequenos olhos castanhos da irmã mais velha.
Nos primeiros dias de con namento-quarentena-isolamento social, Marcela
ouvia todos os noticiários, queria saber tudo o que ocorria na política e no
enfrentamento à pandemia. Quem devia dar o exemplo subestimava o vírus,
provocou a saída de ministros da Saúde em plena crise, andava sem máscara,
tinha atitudes de fascista. Acontece que, aos poucos, Balzac exigiu todas as
atenções. A comédia humana se compõe de quase noventa livros? Vou ler um
por um, ela decidira. E continuou a por a.
Com Balzac, Marcela ca pertinho de mim quase o dia inteiro. Vez ou
outra, troca de posição no sofá, estende as pernas, recosta a cabeça na
almofada, depois torna a car sentada, as mãos só abandonam o Balzac nas
pausas para o almoço e os exercícios físicos que considera indispensáveis: fazer
alongamento, pular corda, dançar feito doida, caminhar da sala para a cozinha
e da cozinha para o quarto, do quarto para a sala e da sala para a cozinha e vai e
vai, trinta minutos diários de exercícios físicos.
Pois bem. Acho até que ela já havia desistido de mim.
Eis que senão quando, após receber o telefonema de uma amiga que lhe
explicou sobre nós, constatou que estava completamente errada a meu respeito.
Eu não era como as outras.
Ora, as outras cavam muito bem ali na mesa diante da janela da sala. A
claridade da manhã lhes bastava. Estavam cada vez mais exuberantes. Só eu
parecia minguar a cada dia, e ela demorou demais para compreender que eu
sou muito especiosa.
É uma bondade haver telefonemas de amigas que nos conhecem e fazem
questão de falar sobre nós.
Mas antes de contar qual foi a atitude dela sobre mim, preciso relatar como
foi que decidiu nos trazer para o apartamento em frente à enseada de Botafogo.
Como já falei, ela insistia em dizer que não convinha ter a nossa presença e
só abria exceção para as falsas.
Naquela manhã, com a pandemia ainda no início, Marcela entrou no
supermercado. Antes de pegar o carrinho de compras, a máscara rme no
rosto, ela dirigiu os pequenos olhos castanhos para o nosso lado. Viu os
formatos e as cores. Como num susto, observou as tonalidades, os viços, os
meandros de nossos movimentos. Eu acompanhei os olhos dela, desde o
primeiro instante. Não sei explicar, mas tive certeza de que me levaria para
casa.
Ao vê-la erguer a cabeça e se encaminhar para o compartimento dos
carrinhos de compras, murchei um pouco. Em seguida, con ei. Fiquei
esperando. As falsas também sentem essas coisas, eu imagino, embora talvez
sejam mais conformadas. Nós, não. Nós reagimos. Nós sonhamos. Nós
entendemos esse mundo azoretado.
Não sei dizer exatamente quanto tempo ela demorou para fazer as compras
daquele dia. Para mim, foi um tempo de raízes profundas numa terra úmida.
Eu já estava impressionada com os olhos dela, devo confessar. Queria-os de
volta o mais rápido possível. E con ei. E esperei.
Quando a vi tomando entre as mãos as outras, aguardei a minha vez, com
paciência. Eu tenho paciência. Eu compreendo as di culdades humanas. Ela
me deixou por último, e esse foi o sinal de que eu era a preferida, pois ao me
tomar entre os dedos de unhas pintadas de azul, cou me olhando extasiada.
Parecia que nada mais importava. Estava ali entre as mãos o que ela sempre
quis dentro de casa. A preferida, desde que era menina no Mato da Lenha. A
madrinha dissera o meu nome e com certeza ela o achou sonoro. Desde
menina, ela tem paixão pelas palavras mais deliciosas de serem proferidas.
Alpendre, por exemplo. Ela adora alpendre. Terlinta. Alvedrio. Serendipidade.
Araçá. Alefriz. Tranchã. O meu nome ela também se apraz em dizer.
Então ela disse o meu nome em voz alta ali no supermercado, sem se
importar que a tomassem por louca. Estremeci de contentamento. No fundo,
sempre esperei pelos olhos dela, pelas suas mãos, pela sua voz, pelos seus
descuidados. Sim, ela descuidou de mim, desde o início. Fui colocada na mesa
junto com as outras diante da janela.
Tive de ter toda a paciência do mundo.
Ainda bem que ela recebeu o tal telefonema, foi a salvação. Na voz da
amiga, ouviu detalhes importantes sobre mim. Em primeiro lugar, preciso de
um pouquinho de sol da manhã, não posso ter apenas a claridade da janela. Os
primeiros raios solares é que me regam de ânimo para as tarefas diárias.
Marcela passou a me deixar por alguns minutos ao sol bem cedinho no
mármore do peitoril da janela. Em seguida, vou para um suporte mais alto que
a mesa, sem o risco de pegar sol forte, mas ainda com vista para o Pão de
Açúcar e a Baía de Guanabara.
Ela me conta sobre a sua vida de professora. Sua família de vários
professores. Sua vida de lha e a lhada. É detalhista. Quer que eu saiba de cada
minudência de tragédias e comédias humanas.
Dias depois do primeiro banho de sol, ao me namorar mais uma vez, viu as
ores em folha vermelha. Gritou de alegria.
Disse o meu nome em voz alta, pulou corda, fez passos de uma dança
maluca e tocou em mim com cuidado, dizendo, minha preferida, desde
menina no Mato da Lenha.
Minhas colegas e eu somos as irmãs que Célia e Mário não deram a ela.
Mora sozinha, o namorado nunca mais telefonou, nunca mais mandou
mensagem. Marcela tenta saber o que está acontecendo, constata que Adriano
visualiza o que ela perguntou e não responde. Será que pretende dar m ao
namoro? Adriano tem tendência à depressão, também mora sozinho e talvez
não esteja dando conta de tanta ansiedade e tanto pavor.
Com toda a certeza, a nossa presença no apartamento em frente à enseada
de Botafogo, a presença das verdadeiras, é um alpendre nesses dias de portas
fechadas. Ela continua atenta a todas nós e sabe que gostamos de retribuir
cuidados. Nós nos fazemos companhia.
Ninguém sabe quanto tempo tudo isso vai durar. Meses e meses e meses de
angústia. Haja Balzac. E outras leituras que ela ainda fará.
Muita gente plantada dentro de casa.
Todo dia, o sol da manhã espera pela in orescência da a lhada e da sua
preferida, a de nome que ela se apraz em dizer, antúrio.
Autores

Afonso Henriques Neto


Nascido em Belo Horizonte (MG), em 1944. É poeta, contista, romancista e tradutor.
Publicou O misterioso ladrão de Tenerife (1972), Restos & estrelas & fraturas (1975), Tudo
nenhum (1985), Abismo com violinos (1995), Cidade vertigem (2005), Uma cerveja no dilúvio
(2011) e Cantar de labirinto (2018), entre outros livros de poesia. É autor do livro de traduções
poéticas Fogo alto (Catulo, Villon, Blake, Rimbaud, Huidobro, Lorca e Ginsberg), de 2009, e
de um volume de contos, Relatos nas ruas de fúria (2014). Os odiados do sol (2019) é seu
primeiro romance. É membro da Academia Mineira de Letras.

Ana Cecília Carvalho


Nascida em Belo Horizonte (MG). Escritora e psicanalista, é autora de O foco das coisas &
outras histórias (contos, 2019), A memória do perigo (romance, 2019), Os mesmos e os outros: o
livro dos ex (contos, 1a ed. 2017; 2a ed. 2018), O livro neurótico de receitas (crônicas, 2012), A
poética do suicídio em Sylvia Plath (ensaio, 2003), Uma mulher, outra mulher (contos, 1993) e
Livro de registros (contos, 1976), entre outros. Recebeu o Prêmio Brasília de Literatura em
1991 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 1975 e 1985.

Ana Elisa Ribeiro


Mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. É autora de livros de poesia, conto, crônica e
infantojuvenis. Seus títulos mais recentes são os poemários Álbum (Relicário, 2018, vencedor
do prêmio nacional Manaus) e Dicionário de imprecisões (Impressões de Minas, 2019), além de
Renascença, publicado em 2018 na coleção BH. A Cidade de Cada Um. É professora do
CEFET-MG.

Carla Madeira
Nascida em Belo Horizonte, em 1964. Jornalista, publicitária, autora de dois romances:
Tudo é rio e A natureza da mordida.
Carlos de Brito e Mello
Nascido em Belo Horizonte (MG), em 1974, onde reside. É escritor e psicanalista. Doutor
em Comunicação Social pela UFMG, defendeu a tese Reverbera o verbo-estrondo ante o Fim:
gurações da palavra aguilhoada na obra de Arthur Bispo do Rosário. Publicou O cadáver ri dos
seus despojos (contos, Scriptum, 2007), A passagem tensa dos corpos (romance, Companhia das
Letras, 2009) e A cidade, o inquisidor e os ordinários (romance, Companhia das Letras, 2013).
Foi nalista dos prêmios São Paulo de Literatura (2010 e 2014), Jabuti (2010) e Portugal
Telecom de Literatura (2010 e 2014). Também se dedica às artes plásticas, desenvolvendo
projetos, especialmente, em escrita, desenho e pintura.

Carlos Herculano de Oliveira Lopes


Nascido em Coluna (MG), em 1956, é escritor e jornalista. Detentor de prêmios
importantes, como o Guimarães Rosa, o Cidade de Belo Horizonte e a Quinta Bienal Nestlé, é
autor de vários livros, entre eles os romances Sombras de julho, O vestido e Poltrona 27, levados
ao cinema, respectivamente, por Marco Altberg e Paulo iago. Durante 14 anos, o escritor,
que vive em Belo Horizonte desde a adolescência, foi cronista do Estado de Minas, onde
também trabalhou como repórter. Seu último livro, Versinhos de Danne, foi lançado no ano
passado.

Cidinha da Silva
Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1967. É prosadora, publicou 17 livros nos gêneros
crônica, conto, romance, dramaturgia e ensaio. Os nove pentes d’África (2009), Kuami (2011),
#Parem de nos matar! (2016) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na
área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014) são alguns de seus livros. Um exu
em Nova York foi premiado pela Biblioteca Nacional em 2019. Tem textos publicados em
alemão, catalão, francês, inglês e italiano.

Cris Guerra
Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1970. Seu livro de estreia, Para Francisco (ARX,
2008), surgiu das cartas escritas para seu lho ainda bebê, cujo pai faleceu quando Cris estava
no oitavo mês de gestação. O livro ganhou edição especial de 10 anos (BestSeller, 2017). Em
2013, publicou Moda intuitiva (Lafonte), com edição revista e ampliada em 2016 (Planeta).
Também em 2016, lançou com a jornalista e escritora Leila Ferreira o sucesso Que ninguém nos
ouça (Planeta). Cris também é autora de Mãe (Miguilim, 2016) e de duas coletâneas de
crônicas, Procurava o amor em jardins de cactos (Gulliver, 2018) e Escrever uma árvore, plantar
um livro (Gulliver, 2019).
Cristina Agostinho
Mineira de Ituiutaba, tem 18 livros publicados, entre infantojuvenis, biogra as e memória
social, além de contos em antologias no Brasil e Portugal. Dentre seus livros, destacam-se: Luz
del Fuego, a bailarina do povo (N30 Editorial, com a colaboração de Branca Maria de Paula e
Maria do Carmo Brandão); As duas Fridas (Dimensão), selecionado para a Brazilian Book
Magazine e para a Feira de Livros de Bolonha, Itália; Amor inteiro para meio-irmão (Ática),
Prêmio João de Barro de Literatura Infantil; Pai sem terno e gravata (Moderna), Prêmio Adolfo
Aizen, da União Brasileira Escritores (UBE), categoria Realidade; Nativos e biribandos:
memórias de Trancoso (coautoria com Fernanda Carneiro), patrocínio da Petrobras.

Eliana Cardoso
Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1944. É doutora em Economia pelo Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT). Estreou na cção com Bonecas russas (Finalista do Prêmio
São Paulo de Literatura, 2015), seguido em 2016 por Nuvem negra, ambos publicados pela
Companhia das Letras. Em 2017 lançou uma coletânea de crônicas literárias, Sopro na aragem
(Córrego). Com Dama de paus (Nova Fronteira) venceu a edição de 2019 do Prêmio Kindle de
Literatura. Seu livro mais recente é Pedrinho Papa-Mel (Moderna).

Francisco de Morais Mendes


Nascido em Belo Horizonte (MG), em 1956. É escritor e jornalista. Autor dos livros de
contos Escreva, querida (Belo Horizonte, Mazza, 1996), A razão selvagem (São Paulo, Ciência
do Acidente, 2003), Onde terminam os dias (Rio de Janeiro, 7Letras, 2011) e Sacrifício e outros
contos (Lisboa, Gatobravo, 2019). Participou das antologias Os cem menores contos brasileiros do
século (Ateliê Editorial, 2004), Coletivo 21 (Autêntica, 2011) e Retratos de escola (Autêntica,
2012).

Frei Betto
Nascido em Belo Horizonte, em 1944. Autor de 69 livros, diversi cados em diferentes
gêneros literários (ensaios, memórias, contos, romances, espiritualidade etc.). Tem obras
traduzidas para 25 idiomas, em 33 países.

Ivan Angelo
Nascido em Barbacena (MG), em 1936. Autor de Duas faces (contos, 1959, Prêmio Cidade
de Belo Horizonte), A festa (romance, 1976, Prêmio Jabuti), A casa de vidro, A face horrível
(Prêmio APCA), Amor? (Prêmio Jabuti), Pode me beijar se quiser (Prêmio APCA), entre outros.
Tem obras publicadas em inglês, francês, alemão e espanhol. Jornalista, vive em São Paulo.

Jacques Fux
Nascido em Belo Horizonte (MG), em 1977. Romancista, é autor de Antiterapias
(Scriptum, 2012, Prêmio São Paulo), Brochadas (Rocco, 2015, Prêmio Cidade de BH),
Literatura e matemática (Perspectiva, 2016, Prêmio Capes), Meshugá: um romance sobre a
loucura (José Olympio, 2016, Prêmio Manaus), Nobel (José Olympio, 2018), Georges Perec: a
psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de guerra (Relicário, 2019), O enigma do in nito
(Positivo, 2019) e Ménage literário (Relicário, 2020).

Jacyntho Lins Brandão


Nascido em Rio Espera (MG), em 1952. É professor emérito da Universidade Federal de
Minas Gerais e autor, entre outros, de Relicário (José Olympio, 1982), O fosso de Babel (Nova
Fronteira, 1997), Que venha a Senhora Dona (Tessitura, 2007) e Mais (um) nada (Quixote +
Do, 2020). Traduziu do grego Como se deve escrever a história, de Luciano de Samósata
(Tessitura, 2009), do acádio, Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh (Autêntica, 2017) e Ao
Kurnugu, terra sem retorno (Kotter, 2019), bem como, do francês medieval, O romance de
Tristão (Editora 34, 2020). É membro da Academia Mineira de Letras.

Laura Cohen Rabelo


Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1989, é formada em Letras e mestre em Estudos
Literários pela UFMG. Publicou os romances História da água (Impressões de Minas, 2012),
Ainda (Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017) e as plaquetes de poesia Ferro
(Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). É idealizadora do
projeto Estratégias Narrativas, no qual oferece o cinas literárias e consultorias editoriais, e faz
parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Luís Giffoni
Nascido em Baependi (MG), em 1949. É contista, romancista, cronista, ensaísta,
dramaturgo, tradutor e editor. É autor dos romances A árvore dos ossos (2002), Adágio para o
silêncio (2003), A verdade tem olhos verdes (2004), O pastor das sombras (2010), além dos livros
de contos e crônicas A jaula inquieta (1988), Riscos da eternidade (2003), Os chinelos de raposa
polar (2005) e O acaso abre portas (2016). Recebeu várias premiações e indicações, como da
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Prêmio Nacional de Romance (e de Contos)
Cidade de Belo Horizonte, Prêmio Jabuti, Prêmio Henriqueta Lisboa – Prêmio Minas de
Cultura. É membro da Academia Mineira de Letras.
Olavo Romano
Nascido em Morro do Ferro (Oliveira, MG), em 1938. Registra a fala de nossa gente do
interior e o jeito mineiro de ser. Tem algumas incursões pela prosa poética. De seus 20 livros
publicados, citam-se, editados pela Caravana – Grupo Editorial, Um presente para sempre (16.
ed.) e Os mundos daquele tempo (7. ed.). Em processo de reedição pela Caravana: Casos de
Minas (1983, 9. ed.); Minas e seus casos (1985, 2. ed.); Prosa de mineiro (2. ed.); Dedo de prosa
(2. ed.). Com legendas poéticas sobre fotos de José Israel Abrantes: São Francisco Rio Abaixo (2.
ed.) e Retratos de Minas. Pela Ramalhete, A cidade submersa e outras histórias sortidas (2016). É
membro da Academia Mineira de Letras.

Paula Pimenta
Nascida em Belo Horizonte (MG), formou-se em Publicidade pela PUC Minas, estudou
Música na UEMG e Escrita Criativa em Londres. Além de escritora em tempo integral, é
compositora e já deu aulas de violão e técnica vocal. Paula cou conhecida pelo público em
2000, ao lançar o primeiro livro da série Fazendo meu lme, que possui três sequências, mais de
800 mil exemplares vendidos e três volumes de uma versão em quadrinhos. Em 2011, lançou o
primeiro volume de Minha vida fora de série, que conta com quatro volumes lançados. Seus
livros já foram publicados na Espanha, em Portugal, na Itália e em toda a América Latina.
Paula foi escolhida pela revista Época como um dos 100 brasileiros mais in uentes em 2012 e,
em 2014, foi a autora que mais vendeu livros no Brasil, segundo o ranking do PublishNews. O
número de vendas de suas obras ultrapassou a marca de dois milhões de exemplares.

Stella Maris Rezende


Mineira de Dores do Indaiá. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
Vencedora de quatro Jabutis, Barco a Vapor, Prêmio APCA, Bienal Nestlé, Selo Cátedra
Unesco e de três João de Barro, entre outros prêmios. O romance para jovens A mocinha do
Mercado Central recebeu o Jabuti de Melhor Livro para Jovens e o Jabuti de O Livro de Ficção
do Ano em 2012. Reside no Rio de Janeiro. www.stellamarisrezende.com.br.

Organi“ador

Rogério Faria Tavares


Nascido em Belo Horizonte (MG), em 1971. Advogado e jornalista. Mestre em Direito,
com diploma de Estudos Avançados em Direito Internacional e Relações Internacionais pela
Universidade Autônoma de Madri. Doutor em Literatura. Cronista semanal do jornal Diário
do Comércio desde 2016. Foi secretário adjunto de Comunicação da Prefeitura de Belo
Horizonte e Supervisor de Relações Públicas da Fiat Chrysler para a América Latina. Presidiu o
BDMG Cultural e hoje preside a Academia Mineira de Letras. Também é membro do
Instituto Histórico e Geográ co Brasileiro, do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Pen
Clube do Brasil. Tem seis livros publicados. Mantém o site www.literaturanainternet.com.br.
po“es(Negras(em(Comunicação
Corrêa,(Laura(auimarães
L788551307144
244(p�ginas

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Tensionadas(pelos(sujeitos(e(pelos(movimentos(emancipatórios,(as
articulações(entre(comunicação(e(raça,(bem(como(as(imbricações
entre(mídia(e(racismo,(apresentam-se(como(desafio(para(aquelas(e
aqueles(que(acreditam(e(lutam(pela(justiça(social(e(cognitivaA(Os
artigos(que(compõem(este(livro(interpretam,(indagam(e(propõem
alternativas(a(esse(tema(por(meio(de(análises(de(autoras(e(autores
de(diversos(campos(teóricos(em(diálogo(com(a(comunicaçãoA(São
experiências(e(investigações(que(compreendem(a(centralidade(da
raça(na(realidade(brasileiraA(E(maisM(compreendem(sua(centralidade
nas(teori“ações(e(nas(práticas(políticas(interseccionais(que
desmascaram(a(colonialidade(do(ser,(do(poder(e(do(saber,
escondidas(sob(o(mito(da(democracia(racialA(Nada(melhor(do(que
uma(investigação(crítica,(política(e(epistemologicamente(engajada
para(compreender(e(desvelar(como(a(mídia,(que(atravessa(as
nossas(vidas,(é(forjada,(historicamente,(no(contexto(de(profundas
desigualdadesA(Nilma(Lino(aomes

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A(invenção(de(si(e(do(mundo
Kastrup,(pirgínia
L788582178812
256(p�ginas

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,É(muito(agradável(o(sentimento(que(agora(me(cativa(diante(desta
singela(certe“aM(a(de(que(estarei(vivendo(feli“(minha(tentativa(de
escrever(u…](coisas(favoráveis(a(este(livroA(Digo(tentativa(porque
pressinto(que(minhas(frases(elogiosas(serão(insuficientes(para
delinear(a(efetiva(importância(que(as(pessoas(descobrirão(nesta
obra,(sejam(elas(especialistas(ou(nãoA(Primeiramente,(trata-se(de
um(livro(bem(escritoA(Não(digo(isso(apenas(para(salientar(a
qualidade(pra“erosa(de(sua(leituraA(Ele(é(bem(escrito(porque(sua
clare“a(é(especialA(Com(efeito,(em(ve“(de(fingir(simplicidade,(em
ve“(de(expor-se(como(fácil(lu“(comunicativa,(dessas(que(acabam
ofuscando(por(exibirem(tão-somente(a(si(próprias,(a(clare“a(deste
livro(envolve-se(com(a(complexidade(do(assunto(que(o(imanta,(que
nos(dispõe(e(nos(leva(a(pensá-lo(com(rigor(que(ele(mereceA(A
fluência(do(estilo(de(pirgínia(Kastrup,(com(simpatia,(carinho(e
competência,(e(sem(perder(um(ar(de(paciente(sorriso,(vai(cuidando
de(um(tema(difícil(e(escorregadio,(o(tema(da(cognição,(essa
misteriosa(potência(que(é(capa“(de(nos(lançar(para(além(da(mera
aquisição(de(conhecimentoA,(Lui“(BA(LA(Orlandi
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Educação(matemática(e(educação
especial
Manrique,(Ana(Lúcia
L78658823L780
144(p�ginas

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Este(livro(apresenta(um(panorama(de(como(o(diálogo(entre
Educação(Matemática(e(da(Educação(Especial(se(desenvolveu(no
território(brasileiro(nas(últimas(décadas(e(culminou(em(um
amadurecimento(científico(significativo(da(Educação(Matemática
quanto(a(inclusão(e(diversidade(humanaA(Aqui,(uma(discussão(de
nature“a(teórica(é(associada(com(a(prática(docente,(explorando
estratégias(extraídas(tanto(de(experiências(dos(autores(na(formação
de(professores(e(no(Atendimento(Educacional(Especiali“ado((AEE)
como(dos(resultados(de(estudos(reali“ados(por(educadores
matemáticos(de(diferentes(regiões(do(BrasilA(Nesse(panorama,(são
descritas(as(principais(contribuições(dadas(por(pesquisas(já
reali“adas(e(são(anunciados(novos(caminhos(de(investigação(que
se(mostram(necessários(no(tratamento(de(questões(elaboradas(no
campo(da(Educação(EspecialA

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Anne(de(areen(aables
Montgomery,(Lucy(Maud
L788551305L5L
320(p�ginas

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Se(você(gostou(de(Pollyanna,(vai(se(apaixonar(por(Anne(de(areen
aablesA(Quando(os(irmãos(Marilla(e(Matthew(Cuthbert,(de(areen
aables,(na(Prince(Edward(csland,(no(Canadá,(decidem(adotar(um
órfão(para(ajudá-los(nos(trabalhos(da(fa“enda,(não(estão
preparados(para(o(,erro,(que(mudará(suas(vidasM(Anne(Shirley,(uma
menina(ruiva(de(11(anos,(acaba(sendo(enviada,(por(engano,(pelo
orfanatoA(Apesar(do(acontecimento(inesperado,(a(nature“a
expansiva,(sempre(de(bem(com(a(vida,(a(curiosidade,(a(imaginação
peculiar(e(a(tagarelice(da(menina(conquistam(rapidamente(os
relutantes(pais(adotivosA(O(espírito(combativo(e(questionador(de
Anne(logo(atrai(o(interesse(das(pessoas(do(lugar(–(e(muitos
problemas(tambémA(No(entanto,(Anne(era(uma(espécie(de
Pollyanna,(e(sua(capacidade(de(ver(sempre(o(lado(bonito(e(positivo
de(tudo,(seu(amor(pela(vida,(pela(nature“a,(pelos(livros(conquista(a
todos,(e(ela(acaba(sendo(,adotada,(também(pela(comunidadeA
Publicada(pela(primeira(ve“(em(1L08,(esta(história(deliciosa,(que
ilustra(valores(fundamentais(como(a(ética,(a(solidariedade,(a
honestidade(e(a(importância(do(trabalho(e(da(ami“ade,(teve
numerosas(edições,(já(tendo(vendido(mais(de(50(milhões(de(cópias
em(todo(o(mundoA(Foi(tradu“ida(para(mais(de(20(idiomas(e
adaptada(para(o(teatro(e(o(cinemaA(Mais(recentemente,(inspirou
também(a(série(Anne(com(E,(já(com(duas(temporadas(na(NetflixA

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aênero
Teperman,(Daniela
L78658823L803
140(p�ginas

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Se(durante(muito(tempo(certa(fixide“(normativa(entre(sexo,(gênero(e
parentalidade(permaneceu(inquestionada,(a(partir(da(leitura(deste
livro,(a(potência(de(uma(análise(plural,(interseccional(e(implicada
sobre(a(temática(ganha(novo(fôlegoA(Apoiados(tanto(em(uma(leitura
rigorosa(da(subversão(que(marca(a(psicanálise(quanto(nos(desafios
impostos(pela(tensão(entre(estrutura,(história(e(poder,(os(textos(que
compõem(este(volume(têm(o(mérito(de(encontrar(sua(unidade(na
produção(teórica,(clínica(e(ética(de(suas(diferençasA(Os(autores(nos
lembram(que(—(desconfiando(da(naturalidade(com(a(qual
feminilidade(e(masculinidade,(maternidade(e(paternidade(são
tratadas(tanto(na(cultura(quanto(pelo(próprio(sujeito(—(a(psicanálise
e(as(reflexões(críticas(da(história,(da(sociologia(e(dos(estudos(de
gênero(convergem(num(método(que(lê(nos(não(ditos(a(verdade(que
a(ordem(dominante(tenta(silenciarA(Despatologi“ações,(novas
parentalidades,(críticas(raciais(e(de(gênero(a(paternidades
hegemônicas,(raí“es(históricas(das(maternidades,(dimensões
estruturais(das(funções(parentais,(entre(outras(reflexões(dão(o(tom
de(uma(obra(que(já(nasce(como(incontornável(para(quem(estuda(o
temaA(Pedro(Ambra
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