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Lembretes à Editora, relativos ao Tomo III

TRADUÇÃO
Getúlio Mota Grossi

DIGITAÇÃO
Douglas Gomes de Oliveira

REVISÃO
Cosme Damião da Silva
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OBRAS
COMPLETAS
3

OBRAS
COMPLETAS
SÃO VICENTE DE PAULO

TOMO III
CORRESPONDÊNCIA
Agosto de 1646 – Março de 1650
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5

Reprodução de um quadro que pertenceu à Rainha Ana d’Áustria, depois ao edifício dos Inválidos
e pertence hoje à Casa-Mãe dos padres da Missão, 95 rua de Sèvres, Paris. Este quadro foi feito, no
dizer dos peritos, no tempo de São Vicente, por um pintor que tinha o Santo sob os olhos.
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SÃO VICENTE DE PAULO

CORRESPONDÊNCIA, CONFERÊNCIAS E DOCUMENTOS


I
CORRESPONDÊNCIA

TOMO III (Agosto de 1646 – Março de 1650)

EDIÇÃO PUBLICADA E ANOTADA


POR
PIERRE COSTE
PADRE DA MISSÃO

PARIS
LIVRARIA LECOFFRE. J. GABALDA, EDITOR
RUA BONAPARTE, 90
1921
7

NIHIL OBSTAT
Clemente VIDAL, Padre da Missão.
Emílio NEVEUT, Padre da Missão.

PERMISSÃO PARA IMPRIMIR


Paris, 18 de novembro de 1919
F. VERDIER,
Superior Geral.

IMPRIMATUR
Paris, 19 de novembro de 1919.
Ed. THOMAS,
Vigário Geral.
8

ABREVIAÇÕES E NOTAS
–––––––

C. aut. – Carta autógrafa, i. é, toda inteira das mãos de São Vicente de Paulo.

C. as. – Carta assinada, i. é, escrita por um de seus secretários e assinada por São Vicente de Paulo.

i. p. d. M – indigno padre da Missão. Obs: A partir do Tomo III, suprimimos da sigla a letra “l”, conforme
consta no Tomo II, em razão do original francês (i. p. d. l. M.). O motivo é óbvio: O “de la” do original
francês, corresponde ao “da”, em português. Portanto, o “l”, na tradução é dispensável.

N. do T. – Nota do Tradutor.

A introdução indica o que significam as expressões Reg[istro] 1, Reg[istro] 2, e fornece detalhes


circunstanciados sobre as outras fontes.

Os colchetes ( [ ] ) no corpo da carta indicam palavras ou frases interpretadas por Pierre Coste a
partir de originais ou cópias ilegíveis ou omissas.

SÃO VICENTE DE PAULO


9

CORRESPONDÊNCIA
___________________________

829. – A ESTÊVÃO BLATIRON

Paris, 2 de agosto de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não posso exprimir-vos a consolação da minha alma com a leitura da vossa carta, admirando a
bondade desse santo Cardeal1 e sua conduta para convosco. É justo que nos acomodemos um pouco ao
tempo, no que diz respeito às dificuldades do estabelecimento. Não sei para que fim me enviais o projeto
que deduzo de vossa carta2, o qual o Padre Codoing redigira em Gênova3.
Escrevo de novo ao Padre Dehorgny que vos envie um outro coirmão em vez do Padre Dunots 4 e
que o enviado seja sábio, de vida interior, judicioso e que saiba trabalhar em seminário. Seja ele, no
mínimo, o menos distante possível dessas qualidades.
O Padre Dufestel5 retirou-se para a sua casa, por causa da contínua oposição que nutria, e
transmitia aos outros, contra o regime da Companhia, a ponto de ameaçar que, depois de mim, ele
acabaria com ela. De fato, estava ele lançando os fundamentos para isso. Há muito tempo, me prometera,
por várias vezes, se ajustar. Entretanto, em vez disto, fazia o contrário. Providenciamos-lhe o decanato
Lillers, em Artois, uma cidade obtida por conquista6. Está satisfeito, e a Companhia, em paz.
O Padre Codoing7 continua sempre do seu jeito. Temo pelo que vós e o Padre Martin me dizem a
respeito dele, embora ele pareça voltar atrás. Seguiremos vossos comuns pareceres relativos à Casa e ao
ofício dele8. Exercera influência negativa tão forte sobre o Padre Dunots9 que este último chegou a
propor-lhe irem os dois para Gênova.
Meu Deus! senhor Padre, que me dizeis da horrível maldade desse pobre Irmão Pascal 1010! O
espírito maligno teve o poder de levar um padre da Companhia a dizer o que ele conta 1111, e a ele a tal
impostura! Meu bom Deus! de que mal não é ele capaz, ou o outro, culpado! Enviai-no-lo de volta, por
favor, o mais cedo possível e com a maior suavidade que puderdes. Recorrei, entretanto, ao serviço de
outra pessoa, aguardando a chegada de quem mandarei partir amanhã ou dentro de três dias. Não será
aquele do qual vos escrevi anteriormente 1212, porque o enviamos para Le Mans, depois que me dissestes
que poderíeis passar sem ele.
Estou vendo com clareza que esses senhores tiveram razão, na conclusão a que chegaram.
Contudo, cui fini (a que fim) me enviastes o projeto da fundação? Estaria Sua Eminência disposto a
.
Carta 829. ─ C. aut. ─ O original foi posto à venda pelo senhor Charavay, de quem obtivemos a cópia. É da mão do Santo, salvo a parte do
pós-escrito, que começa com as palavras: Há muito tempo.
1
1. O Cardeal Durazzo, Arcebispo de Gênova.
2
2. A carta de Estêvão Blatiron.
3
3. Ele permanecera ali por algum tempo, voltando de Roma.
4
4. Humberto Dunots, nascido perto de Saint-Claude (Jura), foi atraído para a Congregação da Missão por Bernardo Codoing, que o recebeu
em Annecy em 1642. Era padre e tinha quarenta anos. Foi com o Padre Bernardo Codoing para Roma e lá permaneceu até sua morte. A peste
o levou em Saint-Sauveur, perto de Roma, a 29 de setembro de 1649, alguns dias depois de ter confessado um pestilento, que lhe transmitira
sua doença. Numa carta escrita após sua morte (Bibl. Mun. De Lyon, ms. 774, fl. 219-223), Martin Le Vasseur, padre da Missão, depois de
fazer o elogio de sua grande piedade, de sua regularidade e de sua mortificação, que o levava a fazer uso de instrumentos de penitência,
acrescenta: “É muito difícil possa uma pessoa chegar nesta vida a pureza e inocência maiores do que as desse bom servo de Deus”. Humbert
Dunots era escrupuloso e pouco apto para o ensino. Vemos por esta carta que ele sofreu a lastimável influência de Bernardo Codoing.
Felizmente, por um espaço de tempo muito curto.
5
5. O nome de Dufestel está rasurado no original.
6
6. Foi tomada dos espanhóis.
7
7. O nome de Codoing se lê com dificuldade sob as rasuras que o recobrem.
8
8. Foi posto à frente do Seminário de Saint-Méen.
9
9. Procuraram tornar este nome ilegível sob rasuras, no original.
10
10. Jean Pascal Goret.
11
11. O Santo acrescentara as palavras: Ó Jesus! senhor Padre, que maldade! Rasurou-as depois.
12
12. O Irmão Nicolau ou o Irmão Le Rogueux (Cf. c. 827).
10

realizar a fundação quanto antes? Há nesse projeto algumas condições que poderiam alterar a ordem da
Companhia e talvez levá-lo ao fracasso naquele lugar. Peço-vos comunicar-me cui fini (para que fim) esse
escrito (não consegui percebê-lo bem da leitura de vossa carta). Dir-vos-ei, então, meus humildes
pensamentos sobre essas dificuldades.
Escrevo-vos de Orsigny1313, onde estou desde ontem e de onde volto para Paris, dentro de duas
horas. De lá, mandei vossa carta para a Madame Duquesa de Aiguillon, que desejava vê-la.
Não me recordo dos outros itens de vossa carta, para vos dar resposta.
Nossas pequenas notícias. Pela graça de Deus, a Companhia trabalha bastante bem por toda
parte 14, fora o que me dizeis desse Irmão. Ela ainda está, em Paris, com cerca de 60 padres no
14

Seminário dos Bons-Enfants. O seminário menor do pequeno São Lázaro 1515 está com cerca de quarenta
seminaristas e começa muito bem, com a graça de Deus. Chamam-nos para Notre-Dame de Plancoët, um
lugar de notável devoção, iniciada há pouco em Saint-Malo. O Padre Nouelly e o Irmão Barreau partiram
para dar assistência aos pobres escravos cristãos de Argel. Estamos também a ponto de enviar um padre e
um irmão para Salé, no reino de Marrocos, na Barbária.
Eis, senhor Padre, o que vos posso, aproximadamente, dizer. Meu humilde coração, quero ainda
dizer-vos, ama o vosso mais do que a si mesmo e é, com invariável afeição, no amor de Nosso Senhor,
senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

Escrevo ao Padre Dehorgny que, terminando tudo, vos envie alguém que saiba trabalhar em
seminário e vos peço enviar-nos de volta o Irmão Pascal, logo depois de receber a presente. Mandaremos
partir nosso bom Irmão1616 dentro de três dias.
Há muito tempo vos foram enviados, via Marselha, tesouras, canivetes, livrinhos e folhetos de
devoção. Creio que o Padre Chrétien1717 está demorando em vo-los enviar, aguardando aquele que deve
ir visitar-vos. Se estais com pressa, escrevei a ele.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, padre da Missão, em Gênova.

830. – A LUÍSA DE MARILLAC

Paris, 4 de agosto de 1646.

Senhora,

Já passou uma semana e meia, desde vossa partida, sem termos notícias vossas. Todos aqui
querem sabê-las e não sei o que dizer aos que mas pedem. Eu mesmo, mais do que qualquer um, me sinto
aflito e só posso dirigir-me a vós para obtê-las. Receio tanto que o grande calor ocorrido e os incômodos
do coche não vos tenham abatido, ou pelo menos, enfraquecido, que aguardo vossas notícias com grande

13
13. Na comuna de Saclay.
14
14. Primeira redação: por toda parte, pela graça de Deus.
15
15. O pequeno São Lázaro, ou Seminário São Carlos, dava para a Rua Faubourg Saint-Denis e ocupava o ângulo formado hoje, no lado dos
números ímpares, pelo encontro dessa rua com o Bulevar de La Chapelle.
16
16. O Irmão Sebastião Nodo.
17
17. Jean Chrétien, nascido em 6 de agosto de 1606 em Oncourt (Vosges), ordenado padre em 5 de abril de 1631, recebido na Congregação
da Missão em 26 de novembro de 1640, superior em Marselha de 1645 a 1653, subassistente na Casa-Mãe em 1654, superior em La Rose de
1655 a 1662. Fazia parte da casa de Troyes em 26 de novembro de 1667.
.
Carta 830. ─ Manuscrito São Paulo, p. 64. A carta seguinte revela que a presente foi escrita pelo Irmão Ducournau.
11

impaciência, e com o propósito de agradecer muito a Nosso Senhor, se estais ainda com a mesma
disposição com que partistes1.

831. ─ LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Recebi ontem uma carta que me pareceu de algum modo ser de vossa caridade. Mas como não vi
nela nenhum sinal de escrita vossa, senti-me presa de não pequena aflição, temendo que estivésseis muito
doente. Mas fiquei um pouco aliviada com o que o prezado Irmão Ducournau teve a caridade de
comunicar-me. Em nome de Deus, senhor Padre, sabeis a necessidade que tendes de reservar um pouco
de tempo para recobrar vossa saúde e conservá-la para o serviço de Deus.
Estranha-me muito que não tenhais recebido a carta que escrevi a vossa caridade em Orléans,
onde só permanecemos a manhã do sábado, para continuar a viagem enquanto nosso bom Deus me
concedia força suficiente. Ó meu muito honrado Pai, se vossa caridade soubesse dos auxílios da conduta
divina, ela se encheria de reconhecimento a esse respeito, por suprir minhas infidelidades e ingratidões.
É o que vos suplico muito humildemente, pelo santo amor de Deus.
Não sei o que será desse estabelecimento1, no qual ainda não vi espinhos, a não ser alguns
murmuriozinhos populares, pelo contrário, tanto aplauso de todo mundo, que chega a ser incrível.
Permanecemos apenas três dias em Angers, de onde ainda me dei a honra de vos escrever, 4 ou 5 horas
em Tours e só chegamos a Nantes em oito de agosto. Tivemos de passar longo tempo navegando pelo rio,
cujas águas estão extraordinariamente baixas. Embora tenhamos feito tudo que nos foi possível, para
que não tivessem conhecimento do dia de nossa chegada, a amável senhora La Carisière deixou ordem
de nos irem receber no barco e levar, depois da visita ao Santíssimo Sacramento, para a casa da senhora
des Rochers, que vos saúda muito humildemente. Ela me testemunhou certa dor por não ter obtido a
resposta de duas cartas que se dera a honra de vos escrever, depois da morte do seu marido, muito
amado e estimado nessa cidade.
Já vos informara sobre alguma dificuldade de solicitar ao senhor Padre des Jonchères para ser
diretor espiritual de nossas Irmãs. Mas como não tenho de vossa caridade outra ordem diferente da que
nos deu, não vejo possibilidade de fazer escolha, a não ser com o seu parecer, dizendo também a ele que
faremos à vossa caridade2 a proposta de cuidar disto. Ele não é como me disseram, e não vejo que a
senhora sua irmã possa prejudicar em coisa alguma, pois é muito zelosa e judiciosa; faz o bem não
apenas em favor deste hospital, mas para todas as casas de piedade e carentes.
Prouvesse a Deus, meu muito honrado Pai, tivesse eu bastante força e amor para reconhecer a
solicitude da conduta da Providência divina sobre nós. Oh! como cantaria em alta voz seus louvores!
Fico extasiada e inerte, contentando-me em convidar a corte celeste a glorificá-la o quanto lhe for
possível, e a vós, nosso muito honrado Pai, a quem Deus manifesta sua conduta sobre nós, que supra
nossas falhas.

1
1. Luísa de Marillac deixara Paris em 26 de julho, em companhia de Francisca Noret, da Irmã Turgis, destinada a Richelieu, e das Irmãs que
deviam compor a pequena comunidade de Nantes: Elisabeth Martin, Cláudia, Margarida Noret, Catarina Bagard, Perrette, de Sedan, e
Antoinette, de Montreuil. O pequeno grupo chegou a Orléans no dia seguinte, à tarde. Passaram ali a manhã do dia 28 e tornaram a partir.
Passaram a noite em Meung-sur-Loire, fizeram nova parada em Cour-sur-Loire e em Mont-Louis. No porto de Ablevoie, a Irmã Turgis se
desligou do grupo e tomou a direção de Richelieu. Em Tours, parada de seis ou sete horas. Novas etapas em Saumur e peregrinação em
Notre-Dame des Ardilliers. As viajantes passaram a noite seguinte em Ponts-de-Cé, na casa da esposa de um cirurgião. No amanhecer do dia,
tomaram o barco que as deixou, em 3 de agosto, em Angers, onde, durante três dias, viveram em companhia das Irmãs do hospital. De
Angers a Nantes, o trajeto, interrompido por três breves paradas, foi feito ainda por via fluvial. Chegaram ao termo da viagem na quarta-feira
(Cf. Cartas de Luísa de Marillac, pp. 261-273).
Carta 831. ─ C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
.

1
1. O estabelecimento de Nantes.
2
2. Havia então no hospital um antigo capelão, que o Padre des Jonchères, confessor ordinário das religiosas da Visitação, desejava
substituir. Luísa de Marillac tinha sido até então pouco favorável a essa escolha, por motivos que dá a entender aqui, e também porque temia
desagradar as Visitandinas.
12

Esta santa Providência que conhece meus apegos às minhas decisões permitiu que
encontrássemos nossa Irmã, que queríamos trazer para aqui, com o joelho doente, e assim nos levar a
trazer outra, cuja transferência era necessária. Oh! bendigamos para sempre a Deus por sua
misericórdia, e quanto a mim, muito especialmente, pela graça de ser, senhor Padre, vossa muito
obediente filha e mui grata serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Penso que quinze dias de permanência por aqui adiantarão muito nossos negócios.

11 de agosto de [16463].

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

832. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 12 de agosto de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estou vos escrevendo, um pouco às pressas, para vos dizer que louvo a Deus por vossa conduta
em vossa tarefa e peço-lhe que a abençoe sempre mais, em Richelieu e nos outros lugares.
Estou em dúvida, há alguns dias, se vos devo solicitar que volte para trabalhar em nossas regras,
se for necessário, naquilo que me dissestes ser preciso mudar. Como suponho que vos lembrais do que se
trata, peço-vos que mo comuniqueis. Não prestei a devida atenção ao assunto, quando dele me advertistes,
e agora teria dificuldade em adequá-lo por mim mesmo. A razão é que o senhor Bispo Coadjutor 1, que
agora detém o poder de aprovar nossas regras, como Vigário Geral do senhor Arcebispo, durante sua
ausência, vai trabalhar nelas. Comunicar-me-eis, portanto, de novo, o que pensais seja preciso mudar em
nossas regras e nas das Filhas da Caridade.
Tereis trabalho nas Casas de Saintes e de La Rose. Enviamos o Padre Dufour como superior da
primeira, e lhe demos como companheiro o Padre des Noyelles. Este último ficou chocado com o espírito
do Padre Dufour, a tal ponto que chega a ser preocupante. O Padre Le Soudier 2 se junta a ele: escreveu-
me num tom, ao que parece, indisposto. Sendo assim, parece conveniente que tireis um coirmão de
Richelieu, se for possível, para colocar no lugar do Padre Noyelles. Precisa ser um padre apto para a
pregação, porque deverá dirigir a missão em Saintes, ao passo que o Padre Dufour trabalhará no
Seminário. O Padre Bourdet se dará bem com o Padre Noyelles. Mas não vejo quem poderíeis tirar dos
que estão com ele. Já não falo da Casa de Saint-Méen, porque os beneditinos reformados os expulsaram
de lá, por decreto do Parlamento. Estão trabalhando para tornar a estabelecê-los lá; há sentença do
Conselho neste sentido3.
3
3. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
Carta 832. ─ C. aut. ─ Dossiê da Missão, original.
.

1
1. João Francisco Paulo de Gondi, futuro Cardeal de Retz.
2
2. Samson Le Soudier.
3
3. Os beneditinos de Saint-Maur viram com maus olhos a transformação da abadia de Saint-Méen em Seminário e fizeram seus protestos
diante do Parlamento da Bretanha, ao qual eram dirigidas as cartas patentes reais de secularização, conforme o uso, para que as verificasse e
as registrasse. Quando o Bispo de Saint-Malo viu a oposição levantada, receou pelo seu projeto e, em vez de apresentar as cartas, voltou-se
para o lado da corte e pediu outras, que remetessem, para o registro e a execução, ao Conselho-Mor e não ao Parlamento. Entretanto, as
novas diligências demandavam tempo, e o Parlamento da Bretanha, pressionado pelos beneditinos de Saint-Mélaine, intimava o prelado a
exibir as cartas que dizia ter recebido do Rei. Diante de suas respostas dilatórias, sempre reiteradas, o Parlamento proibiu-lhe, a 1° de junho
de 1646, fazer inovação alguma na abadia, condenou-o a arcar com as despesas, avaliadas em quarenta libras, e ordenou que o procurador do
Rei solicitasse ao Superior Geral da Congregação de Saint-Maur que enviasse quantos religiosos fossem necessário “para cumprir os
encargos, sobretudo os referentes ao serviço divino, conforme a piedosa intenção... dos fundadores”. Em 22 de junho, depois da investigação
de commodo et incommodo (sobre o que convém e não convém, i. é., vantagens e desvantagens), o Conselho-Mor emitia seu decreto no
13

Quanto ao Padre Le Soudier, ser-vos-á fácil aplacá-lo.


Em La Rose, Deus dispôs do caro Padre Jegat, uma pérola na Companhia. Ele se afogou no rio
Lot, que passa lá perto, onde fora banhar-se por ordem médica. Mandareis fazer as orações e as
conferências de costume, por favor. Restam apenas quatro missionários, dos sete que deveriam ser.
Mandaremos partir três, o mais cedo possível, para ocupar as vagas. E ainda, se pudermos, enviar-vos-
emos o Padre Michel4, pároco da Normandia, muito judicioso, mas que está, apenas três ou quatro meses,
no Seminário.
Peço a Nosso Senhor vos abençoe lá, como por toda parte. É necessário agilizar um pouco; o
Padre Dehorgny tem pressa em Roma.
Não posso escrever de próprio punho ao Padre Alméras. Eu o saúdo de coração, com a ternura que
Nosso Senhor sabe, como também a todos da Casa, prostrado em espírito aos pés de cada um e aos
vossos, dos quais sou, no amor de Nosso Senhor, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Richelieu.

833. – A LUÍSA DE MARILLAC

Paris, véspera da Assunção de Nossa Senhora1 [16462].

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Ainda não recebi nenhuma de vossas cartas e não posso crer que não me enviastes alguma 3.
Deixo-vos pensando em que aflição estaríamos, se não tivéssemos tido notícias vossas por outros meios.

sentido dos desejos do bispo. Estava aberto o conflito entre os dois poderes. A 17 de julho, o Parlamento confirmou sua decisão de 1° de
junho, proibiu, a quem quer que fosse, pôr em execução a do Conselho-Mor, sob pena de multa de 3000 libras, e intimou os padres da Missão
a deixarem a abadia. A 23 de julho, o senhor de Montbourcher, conselheiro no Parlamento, comissário, o senhor Monneraye, substituto do
procurador geral, um conselheiro adjunto, um porteiro da corte, o Visitador dos beneditinos reformados, o prior de Saint-Méen, cinco outros
padres beneditinos e um irmão leigo estavam, de madrugada, às portas do mosteiro. Todas as saídas estavam cercadas com barricadas, e tão
bem, escreve Dom Germain Morel, “que dificilmente se poderia imaginar que as barricadas de Paris, tão afamadas na história, pudessem
comparar-se com elas”. Os sitiados tiveram logo de ceder lugar e refugiar-se na hospedaria abacial. As partes beligerantes viveram assim,
lado a lado, até os primeiros dias de agosto. As paixões estavam superexcitadas e as querelas explodiam a cada instante. Os seminaristas e
funcionários da casa experimentavam um prazer maligno em exasperar os monges, sem que os diretores o soubessem. Um dia, encheram o
único poço do recinto de toda espécie de imundície. Os monges não aguentaram mais. Levaram suas queixas ao Parlamento. A 7 de agosto
de 1646, aparecia um decreto pelo qual a corte ordenava que se endereçassem ao Rei humildes advertências a respeito da decisão do
Conselho-Mor e que ordem seria dada aos padres da Missão, aos seminaristas e seus partidários, de sair da abadia e de devolver aos
beneditinos as sagradas relíquias, os móveis e alfaias, sob pena de prisão. Os diretores do seminário e seus alunos obedeceram. As coisas
estavam neste ponto, quando São Vicente escrevia a carta acima.
Todas as informações dadas aqui foram tiradas de um manuscrito de Dom Germain Morel, beneditino da Congregação de St-Maur
e prior de Saint-Mélaine, de Rennes, um dos principais oponentes à entrada dos padres da Missão na abadia de Saint-Méen (Bibl. Nat., fr.
19831). A obra de Dom Morel não é um livro de história; é uma apologia. Não o censuramos por isso. Está no seu direito, sustentando uma
causa que lhe é cara e que estima boa; e sustentando-a com verve e calor. Mas estas espécies de livros são daquelas que é preciso ler com
muita cautela, porque revelam apenas uma parte da verdade histórica e contêm com frequência mais de um exagero. Foi o que não discerniu
suficientemente Ropartz. Ele teve conhecimento do manuscrito do fogoso beneditino por um exemplar conservado, antes de 1903, no
Seminário Maior de Rennes (in4º de 300 páginas) e o resumiu numa brochura intitulada: Dom Germain Morel. Histoire de la sécularization
de l’Abbaye de Saint-Méen. Contudo, se é preciso desconfiar das apreciações de Dom Morel, podemos por fé em numerosos documentos que
nos conservou seu escrito.
4
4. Guilherme Michel, nascido em Estevile (Seine-Inférieure), deixou sua paróquia de Saint-Valery para entrar na Congregação da Missão
em 19 de junho de 1646, com a idade de trinta e nove anos. Saiu, espontaneamente, antes de fazer os votos e tornou a voltar depois. Pertencia
à casa de Sedan em 1657 e à de Fontainebleau em 1666.
.
1
Carta 833. ─ C. as. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original. O postscriptum é da mão do Santo.
. 14 de agosto.
2
. Ano da viagem de Luísa de Marillac a Nantes. Todos os outros detalhes confirmam esta data.
3
. Luísa de Marillac escrevera de Orléans (Cartas de Luísa de Marillac, c.147), de Angers e, no dia 11, de Nantes.
14

A Madre deposta da Visitação de Órleans 1, passando por aqui, para ir a Dieppe, nos garantiu que estivera
convosco, e o senhor Padre de Vaux escreveu de Angers que estivestes por lá e partistes em boa
disposição. Isto nos consolou e nos faz esperar que estais agora em Nantes 5; queira Deus com as forças
necessárias para trabalhar neste estabelecimento. Por ele peço à divina misericórdia vos dê uma ampla
participação em seu espírito, a fim de poderdes comunicá-lo a vossas queridas filhas e difundir com elas o
odor da mais santa piedade nas almas!
Nada vos digo de especial a respeito de como procederdes com esses senhores 6, pela confiança
que tenho de que Nosso Senhor vos concederá bastante luz e discernimento para esse fim. Só ele sabe
com que afeição lhe recomendo todos os dias vossa alma e vossa viagem, e como são grandes as bênçãos
que lhe suplico por vós e vosso pequeno grupo que eu saúdo em espírito, com toda a ternura a mim
possível.
Só pude estar uma vez com vossas assistentes daqui 7. Devo ir vê-las hoje, se Deus quiser. Tudo lá
vai bastante bem, com a reserva de algumas intempéries ocorridas em uma ou outra. Vossa presença
reporá tudo em ordem e talvez, também, a conferência que me propus fazer-lhes na próxima semana8.
Vosso filho está adoentado e de cama, na casa do seu médico 9. Mandei-lhe oferecer nossa casa e
tudo que de nós depende, para maior alívio seu, ou, então, duas Irmãs para servi-lo, caso queira
permanecer onde está. Preferiu o auxílio das Irmãs, que estão ao seu lado, há alguns dias. O Padre Brin o
visitou recentemente e me garantiu que ele está melhor e que nada há que temer. Peço-vos, portanto, não
vos afligir com isto, mas, antes, cuidar para que eu possa bem cedo sair da preocupação em que me
encontro, a respeito das Damas da Caridade do Hospital Geral, que me movem uma guerra impiedosa por
vos ter deixado partir, particularmente Madame Nesmond. Se voltardes com saúde, como espero da
bondade de Deus, a paz será logo refeita. Suplico-vos, pois, ter todo cuidado possível com vossa saúde.
Aplicai todo tempo necessário, sem nada apressar, nem vos incomodar a respeito do vosso retorno.
Nosso Senhor o estimará muito, pois tudo fareis por seu amor.
É neste mesmo amor que sou, com toda verdade, senhora, vosso muito humilde e afeiçoado servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

Depois de ter escrito a presente, recebi vossa carta de Angers, que contém duas coisas principais:
uma é a dificuldade com a irmã Perrette 1010, e a outra é a relativa ao confessor de vossas filhas de Nantes.
Quanto à primeira questão, será necessário ver se ela vai mudar, e proceder como dissestes. Quanto à
segunda, estou um pouco hesitante; entretanto, tudo bem ponderado, penso que será preferível ater-se à
proposta que fizemos aqui, por causa desse começo de coisas, e porque há certa cogitação em empregá-lo
em outro lugar, dentro de algum tempo. Ocorrendo isto, podereis então convidar o diretor espiritual da
Visitação1111, se, por acaso, não julgueis conveniente outra opção, dado o conhecimento que tendes do
contexto daí. E é o que vos peço fazer.
Acabo, no momento, de saber que vosso filho está quase curado. Vou pedir a vossas oficiais que
venham até aqui, logo depois do almoço, para tratar com elas do que se haverá de fazer.
Peço-vos cuidar de vossa saúde e rogar a Deus pelo maior pecador do mundo, que é v.s.,

V. D.
1
. Marie-Renée Rousseau dirigira o mosteiro de Orléans, de 24 de maio de 1640 a 21 de maio de 1643. A Madre Claude-Espérance sucedeu a
ela durante dois triênios sucessivos.
5
5. Chegara lá dia 8.
6
6. Os Administradores do hospital.
7
7. Eram Jeanne Lepeintre, à qual Luísa de Marillac passara seus poderes, Julienne Loret, “uma grande alma num pequeno corpo”, e
Elisabeth Hellot, a tão dedicada e tão inteligente secretária da Fundadora.
8
8. Esta conferência nos foi conservada. Ela trata do respeito mútuo e cordial.
9
9. O doutor Vacherot (Cf. Cartas de Luísa de Marillac, c. 155)
10
10. Irmã Perrette causava muita inquietação em Santa Luísa de Marillac (Cartas de Luísa de Marillac, c.178 bis e 182 bis). Na esperança
de que uma mudança lhe fosse útil, colocaram-na em Nantes. Não adiantou. Veremos mais adiante que ela fugiu de Nantes e voltou para a
família, em Sedan.
11. O Padre Janchères.
11
15

Novamente vos peço seguir a inspiração que Nosso Senhor vos der sobre a questão do confessor
das Irmãs.

Destinatário: À senhora Le Gras, superiora das Filhas da Caridade, aos cuidados dos senhores
Administradores do hospital de Nantes, em Nantes.

834. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

[Túnis], agosto de 1648.

Creio que é meu dever tornar-vos ciente de que, no dia de Sant’Ana, um segundo José 1 foi
sacrificado nesta cidade de Túnis, pela fidelidade à sua castidade, depois de ter resistido, por mais de um
ano, aos violentos assédios de sua despudorada patroa e recebido quinhentas bastonadas, por causa das
falsas acusações dessa prostituta. Acabou conquistando a vitória, ao morrer, gloriosamente, por não ter
querido ofender a Deus. Por três dias, permaneceu fortemente acorrentado na prisão. Nessa ocasião, fui
visitá-lo, a fim de consolá-lo e exortá-lo a padecer todos os tormentos do mundo, antes que faltar à
fidelidade devida a Deus. Ele se confessou e recebeu a comunhão, e me disse depois: “Senhor Padre, que
me façam sofrer o quanto quiserem; quero morrer cristão”. Quando vieram buscá-lo, para conduzi-lo ao
suplício, confessou-se ainda uma vez. Quis Deus, para sua consolação, nos fosse permitido assistir a ele
em sua morte, o que jamais fora concedido entre esses desumanos. As últimas palavras que disse,
elevando os olhos ao céu, foram as seguintes: “Ó meu Deus, morro inocente”. Morreu, corajosamente,
sem deixar transparecer sinal algum de impaciência, em meio aos cruéis tormentos que lhe infligiram.
Depois de tudo, lhe fizemos honrosas exéquias.
Sua malvada e impudica patroa não demorou a receber o castigo devido à sua perfídia. Com
efeito, o patrão, de volta a casa, mandou estrangulá-la, imediatamente, para acabar de descarregar sua
cólera.
O santo jovem era de origem portuguesa e tinha vinte e dois anos de idade. Estou invocando sua
proteção. Como nos amava aqui na terra, espero que não nos dedique menos amor, lá no céu2.

835. – AO CARDEAL MAZARINO

Paris, 20 de agosto de 1646.

Senhor Cardeal,

O senhor Bispo de Saintes 1 vai procurar [Vossa Eminência]. Vai confirmar o que me dei a h[onra]
de escrever a V[ossa] E[minência] a respeito de Bordéus e M[aillezais] 2 em favor de La Rochelle. Dir-
lhe-á como os par[tidários do] Senhor de Maillezais3 aceitam esse tratado4 e ficarão gratos a V[ossa]
E[minência], e como o referido Senhor [de] Maillezais gostaria que aprouvesse à bondade [de Vossa
.
Carta 834. ─ Abelly, op. cit., I, II, cap. I, sec. VII, § 8, 1ª ed., p. 125.
1
. Antonino da Paz
2
2. Este martírio é relatado com mais detalhe na noticia sobre Juliano Guérin (Notices, t. III, p. 67 e seg.).
.
Carta 835. ─ C. s. ─ Dossiê da Missão, minuta. Algumas adições são da mão do Santo.
1
1. Jacques Raoul de la Guibourgère.
2
2. Hoje, centro administrativo de Cantão, em Vendée, no distrito de Fontenay.
3
3. Henrique de Béthune, Bispo de Maillezais.
4
4. Tratado importante, pelo qual a sede episcopal de Maillezais era transferida para La Rochelle, o Bispo de Maillezais nomeado para
Bordéus e o de Saintes para La Rochelle. Esperava-se dar um golpe decisivo no protestantismo, erigindo em bispado um dos seus principais
redutos (Cf. L. Bertrand, La vie de Messire Henri de Béthune, Archevêque de Bordéus, 2 vol., in-8º, Paris, 1902).
16

Eminência] dar-lhe a esperança de alguma abadia com [um benefício], para suprir a diminuição da renda,
que sofre no tratado, mas em total submissão à vontade de V[ossa] E[minência]. Trabalhou muito bem em
[Maillezais] e se propõe a fazê-lo melhor ainda em Bordéus.
Quanto a mim, senhor Cardeal, continuo a fazer minhas [pobres] preces pela conservação de
V[ossa] E[minência], [para o] bem do Estado e pela santificação de sua prezada alma, eu que sou, pela
graça [de Deus], de Vossa Eminência, muito humilde e obediente servo.

836 . – A LUÍSA DE MARILLAC

Paris, 21 de agosto de 1646.

Senhora,

Recebi a carta que me escrevestes de Nantes 1. Louvo a Deus por tudo que me dizeis,
particularmente a respeito de vossa boa disposição, que peço a Deus vos conserve, e a vós, fazer tudo que
vos for possível de vossa parte para esse fim.
Folgo em saber que achastes a senhora de que me falais 2 bem diferente do que vo-la tinham
desenhado. Sendo assim, fareis bem em vos ater à vossa primeira resolução, quanto à direção de nossas
Irmãs, caso, contudo, nada tenha ocorrido que vos tenha levado a mudar de opinião3.
O senhor Padre de Vaux me comunicou que uma das Irmãs de Angers 4 está grave e perigosamente
enferma. Talvez vos tenha também informado dessa ocorrência e, desse modo, vos tenha dado a
oportunidade de pensar em quem poderíamos enviar em seu lugar, caso seja necessário.
A Rainha nos ordenou lhe enviássemos duas Irmãs para a Caridade de Fontainebleau. Atendemos-
lhe à ordem, e escolhemos a Irmã Bárbara5, juntamente com outra6 que, por ser muito jovem, me leva a
crer que será preciso trazê-la de volta7.

837. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Nantes, terça-feira, 22 de agosto de [16461].

Senhor Padre,

Creio que tenhais recebido a carta na qual vos comunicava acreditar que a divina Providência
queria que seguíssemos a ordem que vossa caridade nos dera quanto à direção de nossas Irmãs.
Igualmente, falei-vos da graça que a bondade divina nos concedeu a respeito das dificuldades de que vos
escrevera em relação à Irmã Perrette. Creio que nossas Irmãs terão como confessor ordinário o das
religiosas da Visitação2, o qual pretende oferecer-se ao hospital como capelão, no lugar daquele que lá
está desde longo tempo. Receio muito que essas religiosas não nos atribuam sermos a causa do

.
1
Carta 836. ─ Manuscrito São Paulo, p.64.
. A carta 831.
2
. A senhora des Jonchères.
3
. O primeiro nome levantado para a direção das Irmãs era o do Padre des Jonchères.
4
. A Irmã Maria Marta Trumeau.
5
. Barbara Angiboust. Ela estava encarregada dos pobres e dos doentes.
6
. Ana Scoliège, diretora da escola das jovens.
7
. Alguns meses depois, três outras Irmãs foram mandadas para Fontainebleau, para o serviço do hospital.
.
Carta 837. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. O Padre des Jonchères.
17

descontentamento que sentirão por isso. Não têm ainda conhecimento do caso, e tudo farei a meu
alcance para ter a honra de ir estar com elas, antecipadamente, temendo que me censurem pelo caso,
embora não tenha contribuído em nada para isso.
Agradeço-vos muito humildemente, meu honorabilíssimo Padre, pela bondade que tendes para
com meu filho, o que me traz grande tranquilidade. No dia em que tive a honra de receber vossa querida
carta, eu tinha tido um pensamento muito mais forte de entregá-lo a Deus e de abandoná-lo inteiramente
a ele. Foi o que me ajudou a acolher a notícia que vossa caridade me deu.
Espero que amanhã cheguem a termo nossas questões com esses Senhores (os Administradores do
hospital). Nada mais resta a não ser verificar o cumprimento dos ajustes que lhes solicitei e ver nossas
Irmãs na prática exata, dentro de um tempo determinado, de sua regra, cada uma em seu cargo. O receio
que tenho de buscar minha própria satisfação, sem necessidade, e de ficar doente, me faz tomar a
decisão de partir na próxima semana para pegar a carruagem de Angers, se estiver com a saúde que
Deus me concede. A Irmã Jeanne Lepeintre me comunicou que um homem de igreja esteve em nossa
casa, pedindo me dissessem que passasse por Le Mans. Não o farei, ao menos para lá me deter, se vossa
caridade não me ordenar e não me disser o que fazer lá.
Sinto-me muito desgostosa por não ter o meu filho aceitado a honra que lhe destes de admiti-lo
em vossa Casa. Meu Deus! chego a pensar que não serei atendida, pedindo sua total conversão. Parece-
me que a doença que teve é mais perigosa do que ele pensa. Receio muito que se faça de surdo e não
queira acolher o temor que ela poderia introduzir em seu espírito, com medo que ele o engaje felizmente
no caminho de sua conversão.
Nada sei sobre vossa saúde, o que me causa certa preocupação. Pelo amor de Deus, senhor
Padre, suplico-vos tranquilizar-me a respeito.
Creio que as Madames do Hospital Geral ficarão contentes comigo, quando virem que não deixei
de escrever. Admiro-me de tanta aflição, pois estou certa de não merecê-la. Deus, que tudo sabe, como o
permite? Sem dúvida, para humilhar-me.
Ponho na conta de vossa caridade as honras que aqui nos tributam. Em nome de Deus, não
deixeis que ninguém se iluda a meu respeito. Tomam-me por grande dama. Penso que não há dama de
qualidade que não nos tenha vindo ver, e até mesmo há o caso de pessoas que vieram expressamente dos
campos para esse fim. Oh! um dia serei queimada e receberei grandes humilhações! Seja feita a vontade
de Deus, na qual sou, senhor Padre, vossa muito obediente serva e indigna filha.

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

838. – A ALGUNS PARENTES1

Não é, sem dúvida, sem um desígnio particular da Providência que fostes difamados. Deus assim o
permitiu para sua glória e vosso bem: para sua glória, a fim de que vos conformeis com seu Filho, que foi
caluniado a ponto de o chamarem de sedutor, ambicioso e possesso do demônio; para vosso bem, a fim de
satisfazerdes a justiça de Deus por outros pecados que possais ter cometido e que talvez não conheceis,
mas que Deus conhece.

1
Carta 838. ─ Abelly, op. cit., l. III, cap. XIX, p.291.
. Sob acusações de miseráveis caluniadores, diz Abelly, um Parlamento célebre, o de Bordéus, provavelmente, intentou perseguições contra
alguns parentes de São Vicente. Apesar das instâncias dos seus amigos, o Santo se recusou a intervir, a não ser para moderar a severidade dos
juízes que condenaram os difamadores, e para levar seus parentes, pela carta acima, a bem suportar essa penosa provação.
18

839. – A JEAN BARREAU

Paris, dia de São Bartolomeu1, 1646.

Bendito seja Deus, meu Irmão, por vos ter felizmente levado a Argel, vosso consulado. Suplico-
lhe a divina bondade vos conceda aí o seu espírito para servir nesse lugar à sua Majestade e ao público,
nesse mesmo espírito, à luz do procedimento do seu Filho e sob a tutela do anjo da guarda que ele vos
destinou.
Não posso exprimir-vos a consolação que sentiu minha alma ao receber vossa estimada carta. Oh!
quanto suplico a Deus vos abençoe a permanência nessas plagas, como o fez em vossa chegada, e tudo
que fareis por aí!
Escrevi ao Padre Nouelly a respeito do que se faz por esses pobres resgatados e cativos; na
realidade, ainda muito pouco.
Vossa tia veio ter conosco, para saber de vossas notícias. Ficou maravilhada com o que lhe disse
sobre vossa chegada, e eu, com a bondade que pude notar nessa querida alma. Ela se recomenda a vossas
preces. Quanto a mim, meu Irmão, recomendo-vos minha alma, para que praza a Deus tornar-me
participante do bem que fazeis por aí. Aguardo notícias de tudo com todo interesse, e peço, entretanto, a
Nosso Senhor abençoe sempre mais vossa querida alma e a santifique.
Não temos nada que mereça vos escreva, no presente, a não ser a bênção que apraz a Nosso
Senhor conceder aos pequenos trabalhos da pequena Companhia. O Padre Gallais acaba de pregar uma
missão de três ou quatro meses. Não sou capaz de exprimi-vos as bênçãos extraordinárias que Nosso
Senhor lhe dispensou, como também à missão de Gênova.
A bondade divina, que vivifica e mortifica, nos submeteu ao sofrimento e à humilhação, por causa
da perseguição que nos movem no estabelecimento do Saint-Méen, ou antes, que desferem contra o
senhor Bispo de Saint-Malo2 que lá nos estabeleceu. Bendita seja sua divina bondade, que dispôs as
coisas desta maneira!
Sou, em seu amor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Irmão Barreau, cônsul em Argel.

840. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

Paris, dia de São Bartolomeu1, 1646.

Senhor Padre,

Só Deus, senhor Padre, poderia exprimir-vos a consolação que tenho a respeito de vós e do Padre
Martin, e por tudo que fazeis. Ó senhor Padre, vou celebrar a santa missa com a maior alegria, para que
sua divina bondade santifique cada vez mais vossas queridas almas! Escrevi, há pouco, ao Padre
Dehorgny o que acabo de vos dizer e lhe peço, se ainda não o fez, vos envie aquele que vos destinou2.
O Padre Jegat, que o Padre Martin conheceu, morreu em La Rose. Recomendo-o a vossas orações.

.
Carta 839. ─ C. aut. ─ Dossiê da Missão, original
1
1. 24 de agosto.
2
2. Aquiles de Harlay de Sancy.
.
Carta 840. ─ C. aut. ─ Dossiê da Missão, original.
1
. 24 de agosto.
2
. Francisco Richard.
19

Nosso estabelecimento1 de Saint-Méen está sofrendo perseguição por parte dos religiosos
reformados2. Querem expulsar-nos de uma abadia, cuja renda dos religiosos o senhor Bispo, com a
permissão do Rei e do Conselho-Mor, ofereceu à Companhia em favor do seu Seminário.
Ajudai-nos a honrar a expulsão de Nosso Senhor de certas regiões de sua terra e os atos de virtude
que então praticou. Rogai, suplico-vos, por esses reverendos Padres, que estimo mais do que a mim
mesmo e que procurei servir em todas as ocasiões, assim como nossa pequena Companhia.
Nessa mesma ocasião, Nosso Senhor, que vivifica e mortifica, nos consolou com maravilhosas e
quase miraculosas bênçãos que concedeu a uma missão pregada sob a direção do Padre Gallais, no
mesmo lugar, durante quatro meses, nos confins do Maine. Envio a carta dele para o Padre Guérin, em
Túnis.
As coisas que pedistes vos foram enviadas, há muito tempo. Creio que as recebestes e que o Irmão
que vos enviamos5 esteja convosco, quando esta carta chegar.
Penso que é melhor que nos mandeis de volta nosso Irmão Pascoal 6 e procureis logo algum
rapazinho para vosso serviço, aguardando até que vos mandemos algum outro coirmão.
Abraço aqui o Padre Martin, com todo afeto, e a vós, senhor Padre, que estimo também mais do
que a mim mesmo. Sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Retende convosco nosso bom Irmão Pascoal o tempo que [dele precisardes]7.

841. – A LUÍSA DE MARILLAC

Paris, dia de São Luís3, 1640.

Senhora,

Rendo graças a Deus pelas graças que vos concede e, de modo particular, pela vossa saúde.
O Padre de Jonchères me escreveu sobre a acolhida do pedido que lhe havíeis feito, a respeito da direção de
vossas queridas Irmãs. É-me impossível escrever-lhe: o correio vai partir. Transmiti-lhe a reiteração de minha
obediência, por obséquio.
Encontrareis aumentado de mais três o número das Irmãs. Dentre elas, duas me parecem excelentes.
Desconfio um pouco da terceira. Mas qual! ela veio de cem léguas daqui: disse a todas elas que passariam por uma
experiência. São originárias de Poitou.
O senhor vosso filho esteve ontem aqui. Está totalmente curado. Não o vi, porque não desci a tempo.
Mas quando vireis, senhora?
Eis o resultado da conferência de nossas caras Irmãs, redigido por minha estimada Irmã Hellot 4. Acabo de
ler uma parte. Confesso-vos que cheguei a chorar um pouco, por duas ou três vezes. Se não fordes voltar logo,
mandai-o de volta para nós, depois de o ter lido.
Esperamo-vos com a afeição que Nosso Senhor conhece. Sou, em seu amor...

1
. O Santo escrevera primeiro: nossa casa.
2
. O Santo acrescentara: de São Bento. Riscou depois estas palavras.
5
5. Sebastião Nodo, ou Sebastião Drugeon, nascido em Briançon-l’Archevêque (Yonne). Entrou para o São Lázaro a 1° de novembro de
1645, e fez os votos em novembro de 1648.
6
6. Jean Pascoal Goret.
7
7. Estas palavras ou outras equivalentes desapareceram do original, em consequência de um recorte inepto da extremidade da folha.
.
Carta 841. ─ Dossiê da Missão, cópia tirada do original em poder do senhor Butel, advogado, em Pau (Rua Marca, 14).
3
. 25 de agosto.
4
. Irmã Elisabeth Hellot, nascida em Paris. Entrou nas Filhas de Caridade em 1645. Faleceu em 1652. Soube merecer a confiança de Luísa de
Marillac, que a tomou como secretária.
20

842. – A GILBERTO CUISSOT

Paris, dia de São Luís1, 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Peço-vos humildemente perdão, prostrado em espírito aos vossos pés, por não vos ter respondido
mais cedo e mais detalhadamente ao que me escrevestes, no dia primeiro deste mês.
A questão do Senhor Vasse é uma indenização que tem direito de receber de Coëffort2, na
mudança do superior.
Entramos em acordo com um cônego de Le Mans e referendário, sobre a soma de 400 libras, que
lhe serão dadas por toda sua vida, até a morte. O Padre Gallais vo-lo explicará. E é necessário seja ele
pago quanto antes. Não sabia eu de todas essas dívidas. O que podemos fazer é tratar de satisfazer aqui ao
senhor Abade Lucas3; quanto a vós, podereis vos servir do que o arrematante dos impostos régios lhe
deve. Escrevo sobre isso ao Padre Gallais.
Direi ao Padre Bajoue4 o que me dizeis de nossos Irmãos: que aprendam a servir à santa missa.
O Padre Gallais vos poderá instruir sobre o assunto do senhor Pousset e resolver convosco o que
importa fazer, comunicando-me depois a solução.
O Padre Alain padece de uma febre terçã. Teve ontem o quinto acesso. Esperamos que não seja
nada. Tão logo venha a melhorar, pedir-lhe-ei que responda à vossa carta.
O Padre Gallais e vós, senhor Padre, julgareis se é conveniente entregar a direção interna e externa
do seminário ao Padre Le Blanc.
Vosso sobrinho está bem, graças a Deus. Entrou de novo, espontaneamente, no Seminário e nele
se comporta como convém.
Quanto a mim, rogo a Nosso Senhor vos fortaleça, cada vez mais, e sou, em seu amor, com a
ternura que não saberia exprimir-vos, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Cuissot

843. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 25 de agosto de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não posso exprimir-vos a consolação que recebi pelo êxito de vossa visita a Richelieu. Rogo a
Nosso Senhor que abençoe igualmente as outras e vos fortaleça, a vós e ao Padre Alméras. Saúdo ao

.
Carta 842. ─ C. aut. ─ Dossiê da Missão, original.
1
1. 25 de agosto.
2
2. Notre-Dame de Coëffort, igreja colegial de Le Mans, unida à Congregação da Missão.
3
3. Conselheiro e Capelão do Rei, abade comendatário de Saint-Hilaire na diocese de Carcassonne. Morava em Paris, rua Neuve-Saint-
Honoré, na Paróquia Saint-Roch. Foi dele que os padres da Missão receberam a prepositura da igreja colegial de Notre-Dame de Coëffort e
seus direitos sobre o Hospital Geral.
4
4. Emerand Bajoue, nascido em Céaux (Viena), entrou, já padre, na Congregação da Missão, 1° de dezembro de 1640, com a idade de 31
anos. Fez os votos em 24 de abril de 1657. Morreu em 28 de fevereiro de 1671. Foi superior em La Rose (1649-1652) e em Notre-Dame de
l’Orme ou de Lorm (1652-1654).
Carta 843. ─ C. aut. ─ Dossiê da Missão, original.
.
21

Padre Alméras e lhe suplico vá pedir perdão ao senhor seu pai 1, por ele e por mim, por não se ter
despedido dele. Ficou aborrecido comigo, a tal ponto que não vos posso explicar.
Em Saintes, encontrareis algo a trabalhar: os Padres Soudier e Noyelles não andam procedendo
bem e nem se entendendo com o Padre Dufour. O grande recolhimento deste último chocou aos outros.
Pode haver excesso no Padre Dufour. Nem todos são capazes de se ajustar ao santo rigor que ele cultiva.
Mas a principal falha vem da liberdade, embora honesta, dos outros. Tratai de acomodá-los. Mas se o
Padre Noyelles não vos der esperança de se adaptar à exata observância da regularidade, será melhor
enviá-lo para Saint-Méen; o Padre Bourdet ficará muito contente com isso. Mas não sei quem enviar para
Saintes, em seu lugar, que seja capaz de falar em público. Pensai nisso, senhor Padre, por obséquio.
Acabo de escrever ao Padre Coudray2 que logo estareis com ele, depois de terminar o trabalho em
Saintes. Pedi-lhe que vos receba bem e ponha em prática vossas determinações. Encarreguei-o de ir, em
seguida, fazer a visita em Cahors, do mesmo modo como vos verá fazê-la. O senhor Bispo de Cahors 3 não
está satisfeito com o Padre Delattre4 e pede um outro em seu lugar, o que me está causando embaraço.
Não sei se soubestes da morte do Padre Jegat. Afogou-se quando foi banhar-se, por ordem médica,
num rio que passa perto de La Rose. Não vos posso dizer que perda foi para nós. Mandareis fazer a
conferência sobre ele, se o Padre du Coudray não o fez, logo que lá chegardes. Já lhe escrevi a respeito.
Mandareis escrever o que se disser sobre suas virtudes e no-lo enviareis, para fazermos a nossa,
inspirando-nos na de lá. Há aqui poucos que o conheceram.
Não sei se vos escrevi sobre a partida do Padre Le Soudier 5 para Salé, situada na África, para além
do estreito, à margem do oceano Atlântico. Os religiosos reformados de São Bento nos expulsaram de
Saint-Méen, servindo-se da autoridade do Parlamento. Acabo de receber uma carta do senhor Bispo de
Saint-Malo6 pela qual me comunica ter sido informado de que os nossos foram reintegrados pela
autoridade do Rei, com a assistência do capitão de guarda do senhor Governador da província 7. Se
dependesse de nós, chamaríamos os nossos de volta. Mas é uma questão do referido senhor Bispo, que
agiu em nome próprio, e lançou um interdito sobre a igreja de Saint-Méen, proibindo, sob pena de
excomunhão, o seu povo de entrar nela, enquanto os reverendos Padres lá estiverem. Meu Deus, senhor
Padre, como isso me aflige! Diríeis jamais que pudéssemos ter esse incômodo a partir desses bons Padres,
que procuramos servir com tanta afeição, como se se tratasse de nossos próprios negócios? Espero que
Nosso Senhor olhará o pouco que procuramos fazer por eles como procedendo da caridade, quae patiens
est (que é paciente8). Praza à misericórdia de Deus que assim seja e que me conceda o meio de os servir
para o futuro! Proponho-me fazê-lo com maior afeto do que nunca, com a graça de Deus, que vos suplico
pedir-lhe para mim.
Eis por onde estou terminando, depois de me ter recomendado a vossas preces e às dos senhores
Padres e Irmãos, que abraço, prostrado em espírito a seus pés e aos vossos, de quem sou muito humilde
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, atualmente na Missão de Saintes, em


Saintes.

1
1. Renê Alméras, nascido em Paris em 12 de novembro de 1575, desposara em primeiras núpcias Margarida Fayet, e, em segundas, Maria
Leclerc que lhe deu seis filhos. Primeiramente secretário do Rei, depois, tesoureiro da França, em Paris (19 de janeiro de 1608), secretário de
Maria de Médicis, contador de 1622 a 1656, controlador geral dos correios (1629-1632), secretário de ordens de Maria de Médicis, cumpriu
com dignidade todos esses cargos. Depois de ter dado seu filho à Congregação da Missão, nela entrou por sua vez em 2 de março de 1657,
com a idade de 81 anos. Terminou seus dias em São Lázaro em 4 de janeiro de 1658 (Notices, t.II, p. 453-461).
2
2. Superior em La Rose.
3
3. Alain de Solminihac.
4
4. Superior do Seminário.
5
5. Jacques Le Soudier. Não passou de Marselha.
6
6. Aquiles de Harlay.
7
7. O Marechal de la Meilleraye, Governador da Bretanha, havia, a pedido de Aquiles de Harlay, enviado quinze cavaleiros a Saint-Méen,
sob as ordens de Grand-Maisons, para expulsar os beneditinos da abadia.
8
8. 1 Co 13, 4.
22

844. – O CARDEAL MAZARINO A SÃO VICENTE

27 de agosto [1646].

Senhor Padre,

Prestei contas à Rainha do que o senhor determinou juntamente com o senhor Bispo de
Maillezais. Ela o aprovou por inteiro e deseja que tudo seja pontualmente executado. Envio-vos para este
fim o diploma que emitiu de nomeação do senhor Bispo de Maillezais para o arcebispado de Bordéus,
não duvidando de que, de sua parte, ele vos remeta em mãos sua demissão.
Quanto às duas mil libras de pensão e das 400 em benefícios que acordastes, sua Majestade me
ordenou que vos desse, quanto a isso, garantia de sua parte, a fim de que nada retarde a conclusão desta
questão.
Sou, entretanto...

845. – JEAN GARRON A SÃO VICENTE

27 de agosto de 1646.

Aqui está um de vossos filhos em Jesus Cristo a recorrer a vossa paternal bondade. Dela pôde
outrora experimentar os efeitos quando o gerastes para a Igreja, pela absolvição da heresia, que vossa
caridade lhe deu publicamente na igreja de Châtillon-les-Dombes, no ano de 1617. Vós lhe ensinastes os
princípios e as mais belas máximas da religião católica, apostólica e romana. Pela misericórdia de Deus,
nela perseverei e espero continuar o resto da minha vida. Sou o pequeno Jean Garron, sobrinho do
senhor Beynier, de Châtillon, em cuja casa vos hospedastes durante vossa permanência em Châtillon 1.
Suplico-vos proporcionar-me o socorro necessário para me impedir de fazer seja o que for contra os
desígnios de Deus. Tenho um único filho que, depois de ter terminado os seus estudos, concebeu o
propósito de entrar para os jesuítas. É o jovem mais agraciado pelos bens da fortuna em toda esta
província. Que devo fazer? Minha dúvida procede de duas coisas...
Temo poder falhar, e julguei que me faríeis a graça de expressar vossa opinião, no caso, em favor
de um de vossos filhos que vo-la suplica com toda humildade.
Aceitai que vos diga que, em Châtillon, a associação da Caridade das servas dos pobres está
sempre em vigor.

846. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Não temos quase nada a fazer e contudo não saberia como apressar esses Senhores que me
retiveram ainda por esta semana. Estamos enfrentando uma grande dificuldade com o costume desta
cidade de ter um provedor que adianta seus recursos gratuitamente para a despesa do hospital; sua
mulher estava acostumada a vir preparar as porções dos doentes e ainda vem distribuí-las a seu critério:

.
Carta 844. ─ Arquivos dos Negócios Estrangeiros, Memórias e documentos, França, 1646-1647, Cartas de Mazarino, Reg. 261, fl. 186 vº,
cópia.
.
Carta 845. ─ Abelly, op. cit., 1.I, cap. XI, 1ª ed., p.49.
1
1. Abelly consagrou vários capítulos de sua obra (1.I, cap.IX, X, XI, XII) à permanência de cinco meses de São Vicente em Chatillon, em
1617.
.
Carta 846. ─C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
23

de tal modo isso é contrário aos nossos artigos. Propus estas dificuldades aos pais, que me concediam
tudo que lhes pedia. Temo que isso nos embarace e nos amarre um pouco mais do que eu pensava.
Prevejo com efeito grandes inconvenientes para a tranquilidade e a união de nossas Irmãs, tanto mais
quanto essa mulher não está contente com a gerência delas e pretende demonstrar inteligência ora com
uma, ora com outra. E penso que não devo deixá-las antes que fiquem livres desse empecilho. Se isso
acontecer esta semana, espero que partiremos na segunda-feira. Como, porém, a coisa não é garantida,
suplico- vos, muito humildemente, senhor Padre, dar-vos ao trabalho de me escrever o que terei de fazer,
pois esta senhora e seu marido vão parar com suas iniciativas dentro de três ou quatro meses; e os
senhores Administradores propõem suprimir esse cargo, por causa de vários outros inconvenientes. Com
esta esperança, deveria eu partir? Temo, com efeito, que as desordens, as queixas e a falta de serviço de
qualidade aos pobres, durante esse tempo, não passem aos espíritos a impressão de que todas essas
falhas viriam das nossas Irmãs. Se me concederdes a honra de me escrever, suplico-vos, muito
humildemente, senhor Padre, que vossa caridade enderece essa carta a Santa Maria 1, para que não caia
em outras mãos, caso todas essas dificuldades sejam bem superadas, e com segurança, e que eu venha a
partir no dia que vos assinalei.
É verdade que o senhor Padre de Vaux me avisou da doença e da recaída de nossa Irmã Maria
Marta2 em Angers, e, desde a semana passada, não tive mais notícias. Ainda que Deus a tenha levado,
penso, senhor Padre, que não haveria ainda necessidade de enviar uma outra, visto que nossas Irmãs me
tinham dado a entender a necessidade das quatro Irmãs que pedem, há muito tempo. Os Senhores pai dos
pobres3, por conta própria, mas pediram, vendo-me prestes a sair de Angers sem lhes falar disto.
Prometeram-me tudo que julguei necessário pedir-lhes para a acomodação delas. Prometi-lhes falar-vos
a respeito ao voltar e assegurei-lhes que lhas enviaria o mais cedo possível, como também duas outras
para este hospital daqui de Nantes. Sendo assim, senhor Padre, serão sete que precisamos suplicar à
divina Providência.
Deus seja eternamente glorificado pelas bênçãos que dispensa a nossa pequena Companhia!
Espero sempre o seu crescimento, já que vossa caridade se empenha com tanta força por sua perfeição.
Não seria capaz de exprimir-vos a consolação que meu coração sente por isso. Deus me dá a conhecer
que não sou de modo algum necessária e até mesmo muito pouco útil para esse fim.
Senti muito a dor do Senhor e da senhora de Liancourt. Temo muito que a maneira como
aconteceu a morte de seu filho4 trará, por longo tempo, grande aflição para essa bondosa mãe.
Alimentava a esperança de que a doença do hospede do senhor Vacherot 5 lhe teria beneficiado;
mas, pelo que me informaram, ele anda passeando e pernoitando fora de casa. Escreveu-me dando-me a
perceber de novo o ressentimento por ter sido detido, e, na minha humilde opinião, ele colocou e coloca
certa barreira em seu coração, no sentido de impedi-lo de reconhecer o estado em que está sua alma.
Vejo todo este mal, mas com bastante tranquilidade, e me parece que não tenho mais responsabilidade
alguma a respeito dele, cuja salvação, contudo, desejo ardentemente. Suplico muito humildemente vossa
caridade que a peça ao nosso bom Deus, pelos méritos do seu Filho; é da alçada, creio eu, do Todo
Poderoso.
Minha saúde está um pouco melhor do que quando tive a honra de vos escrever da última vez.
Conheceis todas as minhas necessidades, mas não minhas infidelidades, que quase me afastam dos
exercícios de piedade, sempre imersa que estou no mundo ou nos cuidados com minha saúde. Sou digna
de piedade, embora seja, verdadeiramente, e Deus queira que não o seja para minha grande humilhação,
senhor Padre, vossa muito humilde e grata filha e serva,

L. DE MARILLAC.
[Nantes], 28 de agosto [1646 ]. 6

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.


1
. Convento da Visitação.
2
. Maria Marta Trumeau.
3
3. Assim eram chamados os Administradores do hospital (N. do T.).
4
4. Henrique Roger du Plessis, Conde de la Roche-Guyon, Marquês de Montfort, morto no cerco de Mardick em 6 de agosto de 1646.
5
5. Michel Le Gras, seu filho.
6
6. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
24

847. – A LUÍS CALLON

Paris, 28 de agosto de 1646.

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Rendo graças a Deus pela graça que nos fazeis esperar, a de vir em breve repousar-vos depois dos
vossos grandes trabalhos. Ó senhor Padre, como sereis bem vindo e como vos abraçarei com alegria!
Vinde, pois, por obséquio, e não tardeis, senhor Padre. Asseguro-vos que teremos um cuidado todo
especial com vossa saúde e que sereis o dono da casa para dizer e fazer o que vos aprouver. Sereis
particularmente o meu senhor que sempre vos amei com mais ternura do que ao meu próprio pai.
Se de fato estais precisando das quatro mil libras que doastes aos Padres Bernardos 1 como
arrendamento e aplicadas à Missão, de muito bom grado vos faremos a retrocessão, sendo justo, como
julgo, que um fundador que se encontra em necessidade, recorra à renda da fundação que fez. E faremos
mais: se tiverdes necessidade do capital para vos socorrer em vossa velhice, nós vo-lo transferiremos.
Assim procedemos com o senhor Pároco de Vernon2. Doou-nos seiscentas libras de renda, mas no-las
pediu depois, afirmando que precisava delas. Fizemos-lhe a retrocessão, tanto da renda como do capital.
Mas se não tendes necessidade do capital, desfrutai, não obstante, da renda, senhor Padre, como
fizestes até o presente. Quanto a nós, continuaremos as missões que começamos e temos prosseguido com
tantas bênçãos. Fizeram-nos algumas propostas de um estabelecimento por aqueles rincões de lá e isto
poderia ser-lhes útil. De minha parte, senhor Padre, não terei jamais consolação maior do que a de poder
vos agradar, como a meu bom e muito caro pai, que estimo mais que a mim mesmo. Sou, no amor de
nosso senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

848. – A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

[Fim de agosto de 16461].

Senhor Padre,

A graça de nosso senhor esteja sempre convosco!


Vossa carta trouxe-me um consolo infinito, como todas as outras que escreveis. Dou graças a Deus
e lhe rogo vos santifique a querida alma, cada vez mais.
Estou preocupado com a pequena viagem do Padre Blatiron nesses tempos de calor intenso. Mas
fico muito satisfeito por ter ele prestado esse pequeno serviço a Deus, na pessoa de Madame de
Guébriant2, gente de notável consideração.

.
1
Carta 847. ─ Coleção do processo de beatificação.
1. A doação remontava a 23 de agosto de 1629. Ela foi feita com a finalidade de que dois padres da missão pregariam uma missão todos os
anos na diocese de Rouen, mais especialmente no decanato de Aumale. A soma foi reembolsada aos Padres Bernardos a 23 de novembro de
1650 (Arq.Mac. M 211, Maço1).
2
2. Hoje centro administrativo de cantão no Eure.
.
Carta 848. – Dossiê da Missão, cópia.
1
1. A carta acima, com evidência, se situa entre a carta 840 e a 853, isto é, entre 24 de agosto e 6 de setembro de 1646. Como São Vicente
costuma escrever de oito em oito dias, é provável que ela seja do dia 31 de agosto.
2
2. Renata du Bec-Crespin, viúva de João Batista de Budes, Conde de Guébriant, Marechal de França, falecido, em 24 de novembro de
1643, pelas sequelas de um ferimento sofrido no cerco de Rotweil e enterrado em São Lázaro. A Rainha Ana d’Áustria lhe confiou a delicada
missão de levar para o Rei da polônia, em 1645, a Princesa Maria Gonzaga, que ele desposara por procuração. Madame de Guébriant voltou
para Paris em outubro de 1646 e morreu em Périgueux, em 2 de setembro de 1659.
25

Acabo de escrever agora ao Padre Dehorgny que se apresse em vos enviar o Padre Richard. Penso
que tenhais recebido nosso Irmão Bastien antes dessa carta. Vereis que é muito boa pessoa.
Eis, senhor Padre, o que minhas ocupações me permitem dizer-vos, muito apressadamente.
Renovo a oferta de minha obediência, que vos faço com toda a humildade e afeição possíveis. E sou, no
amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO.

849. – A JEAN DEHORNY, SUPERIOR, EM ROMA

Paris, 31 de agosto de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não recebi vosso pacote esta semana. Traço-vos, contudo, estas linhas para manter a troca de
cartas por todos os correios ordinários, como também para vos dizer que estive com o R.P Charlet. Ele me
disse, a respeito de nossos votos, que, no momento, é preciso ater-nos aos que temos.
Gostaria muito de saber o parecer daí sobre se é necessário que a perpetuidade do Geral 1 seja
autorizada pelo Papa, ou se basta a autorização do senhor Arcebispo de Paris.
Encontro-me amarrado pela recusa que vos fazem de dar as faculdades aos missionários de Argel.
Recebi carta deles dizendo que foram bem recebidos e já começaram a trabalhar lá com muito fruto.
O padre Le Soudier 2 partiu para Salé, cidade do litoral da África, à margem do Atlântico, além do
estreito.
Que faremos diante disso? As coisas continuarão do mesmo modo depois de Dom Ingoli?
Os capuchinhos pedem aqui que nenhuma outra comunidade se estabeleça nas cidades da Grécia,
da África e da Ásia, nas quais o Rei tenha cônsules e onde eles estão estabelecidos, sem que apresentem
cartas do Rei ao cônsul. Intermediei o caso; mas como a resolução ainda não foi expedida, vou pensar
nisso.
Confesso-vos que alimento, a meu ver, grande amor e devoção, pela propagação da Igreja nos
países infiéis. Com efeito, temo que Deus a aniquile pouco a pouco por aqui e que dela não sobre nada ou
quase nada, daqui a cem anos, por causa dos costumes depravados, das novas opiniões que crescem cada
vez mais e do estado em que andam as coisas. Perdeu, de cem anos para cá, em razão de duas novas
heresias3, a maior parte do Império e os reinos da Suécia, da Dinamarca e Noruega, da Escócia, da
Inglaterra, da Irlanda, da Boêmia e Hungria. Restam a Itália, a França, a Espanha e a Polônia. Mas a
França e a Polônia produzem muitas heresias.
Ora, estas perdas da Igreja em cem anos nos dão motivo para temer, no meio das misérias
presentes, que nos outros futuros cem anos, a Igreja não desapareça totalmente na Europa. Com este
receio, felizes aqueles que puderem cooperar com a expansão da Igreja em outras partes.
O Padre Martin me comunica que dissestes ao Padre Blatiron que ides enviar para ele o Padre
Richard e que estão contentes por isso. Peço-vos fazê-lo quanto antes e rogar a Deus por mim que sou, no
amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Dehorgny.


.
Carta 849. – C. aut. – Coleção de Henri de Rothchild, original.
1
1. O Superior Geral da Congregação da Missão foi eleito como vitalício.
2
2. Jacques Le Soudier.
3
3. As heresias de Lutero e Calvino
26

850. – A JEAN BOURDET, SUPERIOR, EM SAINT-MÉEN1

Paris, 1° de setembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


[Vossa carta] do mês passado, por um lado, me consolou, por outro, me afligiu [A consolação]
veio do fato de que nada fizeram contra vós, a respeito [das coisas] de que esperáveis violência no dia
seguinte. [A aflição] veio do fato de que me comunicais que não podeis manter a comunidade no perigo
em que se encontra. [Sobre isso vos direi] que, se o caso dependesse da Companhia, nós vos teríamos
chamado de volta, à primeira intimação . Mas estamos [ligados a] um prelado em jogo nessa causa, e o
caso diz respeito ao bem dos outros. Pensando então em observar o conselho do Evangelho de não entrar
em processo, cairíamos na ingratidão, que é o crime dos crimes, e há aqui uma questão de justiça. Além
do mais, que risco incorre nisso a Companhia? O de sofrer a prisão, me direis; e é o que há de pior. Meu
Deus! senhor Padre, de que seríamos capazes, se não o somos disto [por Deus]? Ser-nos-ia possível ver
centenas de milhares de homens que se expõem em operações de guerra, desde o menor dentre o povo até
os príncipes de sangue, pelo serviço do Estado, não somente à prisão, mas à morte, e que Nosso Senhor
não encontre cinco ou seis seguidores fiéis e bastante corajosos para o seu serviço?!
Sim, mas isso é contra a máxima do Evangelho, que nos proíbe entrar em processo, e contra o uso
da Companhia, – São Paulo e Nosso Senhor aconselharam a tudo perder de preferência a entrar em juízo.
Mas ambos foram constrangidos a enfrentá-los e perderam seus processos e neles a própria vida. A
máxima da Companhia, é verdade, é de preferir antes perder do que pleitear, e peço a Deus nos conceda a
graça de sermos bem fiéis à prática desta máxima. Mas isto é quando a coisa depende de nós. Mas qual!
Não somos nós que estamos em causa; é um prelado que nos chamou para servir a Deus com ele, em sua
diocese, enquanto pessoas destituídas de direito dela vos expulsam. Uma abadia de São Bento que não
está na Congregação dos reformados, nem em outra alguma, não depende de nenhuma outra; e nenhum
abade tem direito de se introduzir na abadia de um outro, como também nem no benefício de uma outra
Ordem. Além do mais, esses bons reverendos Padres não têm permissão de se introduzirem numa abadia
para nela estabelecer sua reforma, a não ser com o consentimento dos religiosos, do abade e do bispo.
Ora, os religiosos trataram com o senhor Bispo de Saint-Malo, [e o senhor Bispo de Saint-Malo] 2, no qual
reside o direito de abade, que ele o é, e o de bispo, foi contrário a sua introdução.In qua ergo potestate3?
Sim, mas o Parlamento [os leva] e os introduz lá dentro. – É verdade; mas este soberano senado
não tem poder de introduzir, nem de manter uma pessoa particular em um bem,[se ele não] lhe pertence
de direito; e tudo indica que o de Bretanha, [que] tem a reputação de ser dos maiores justiceiros do reino,
[não sustentará] esses Padres, quando [estiver] bem informado. Ademais, o Rei, em quem reside o poder
soberano [acima] do poder dos Parlamentos e o de sentenciar acima deles [nos auto]riza. Como podereis

.
Carta 850. – C. aut. – Arquivos da Missão, minuta. Esta minuta se encontra em mau estado. Nos lugares onde o texto apresenta falhas, nós o
reconstituímos segundo uma cópia do registro 2, p. 287.
1

1. Para nos darmos conta do estado de espírito de Jean Bourdet no momento em que São Vicente lhe escrevia esta carta, importa saber que os
religiosos de São Bento, expulsos da abadia, em 20 de agosto, pelos soldados do Marechal de la Meilleraye, tinham solicitado ajuda e
proteção no Parlamento da Bretanha. No dia 22, a corte determinava uma investigação. No dia 28, ela decretava a captura dos Padres
d’Orgeville, Vigário Geral, Bourdet, Beaumont, Grand-Maisons e vários outros. Para evitar, sem dúvida, uma colisão sangrenta, o Marechal
de la Meilleraye chamou de volta seus soldados. Pierre Beaumont ficou sozinho guardando a abadia. Jean Bourdet, escreve Dom Maurel
(citado por Ropartz, p 195), “foi tomado de pânico e terror, o que o levou a botar o pé no estribo e sair a cavalo durante um dia e uma noite
sem puxar as rédeas. Não ousou botar o pé no chão, temendo cair nas mãos da justiça, até que, enfim, nem o cavaleiro nem o cavalo
aguentassem mais. Desceu à porta de uma hotelaria que encontrou numa aldeia da diocese de Vannes, onde queria permanecer algum tempo
para recuperar o fôlego e se refrescar. Por infelicidade, encontrou dois cavalos que lhe disseram pertencer a dois oficiais de diligências que
acabavam de chegar. Apavorou-se a tal ponto que, sem se informar sobre donde tinham vindo, para onde estavam indo, nem quem os
montava, torna a pegar sua bagagem, pula de novo no animal e recomeça de novo a lhe apertar as esporas até fazê-lo cair morto entre suas
pernas ”.
2
2. Estas palavras, requeridas pelo sentido, não se encontram no texto.
3
3. Mt 21,23: portanto, com que autoridade?
27

conhecer melhor a vontade de [Deus nas] coisas temporais do que pelos decretos dos príncipes, e nas
coisas espirituais, pelos dos senhores bispos, cada um em sua diocese?
Sim, mas este bem é de São Bento; por conseguinte, seus filhos têm o direito de reclamá-lo,
quando estão querendo aliená-lo de sua Ordem e aplicá-lo a outros usos. – [Respondo] que o bem da
Igreja pertence à Igreja. Se São Bento ainda estivesse vivo, ficaria muito triste ao ver negarem esta
sentença, ele, filho da Igreja. Acresce, por outro lado, que os bens de sua Ordem lhe foram dados pela
Igreja, por causa da assistência que ele lhe prestava na ocasião, por meio dos seminários de eclesiásticos
que então ele educava para o serviço da Igreja e para preencher com eles os cargos e benefícios. Ora, eles
não fazem mais isso, e a Igreja determinou que o façam os bispos, e os decretos do Rei a isso também os
obrigam, como também a aplicar para esse fim benefícios e outras rendas. Não é justo que a mesma
Igreja que doou aquele bem a essa Ordem em favor dos referidos seminários, que eles não estão mais
dirigindo e nem mais em condição de fazê-lo, não é justo que a mesma Igreja se sirva desse pouco bem,
pela autoridade do príncipe e do prelado, para suprir ao que esses Padres fizeram outrora e não fazem
mais, conquanto o façam com o consentimento dos que o possuem por justiça?
Sendo assim, senhor Padre, estais fundado em direito, na decisão da autoridade, na necessidade da
Igreja e na execução de sua intenção. Depois de tudo isso, como poderia haver entre nós quem não
quisesse nada sofrer em favor dessa causa! O’ meu bom Deus! que ocasião melhor podereis esperar para
sofrer alguma coisa por Deus ? Na verdade, não vejo outra. Em nome de Deus, senhor Padre, não sejamos
tão pouco devotados ao serviço de Deus, a ponto de abandonar o posto que nos concedeu.
Sim, mas a Companhia será censurada e cairia no descrédito... O’ senhor Padre, que orgulho o
nosso se, sob a aparência de deferência e de humildade, abandonássemos a honra de Deus para não
colocar a nossa em risco! Oh! Como São Paulo estava longe disso, quando dizia que era preciso servir a
Deus [per] infamiam et bonam famam, quasi seductores et tamem veraces 4]! (Na infâmia e na boa fama,
tidos como impostores e, no entanto, dizendo a verdade). Acabo de dizer que estais [ancorado na justiça]
e, posto isto, segundo a apreciação de todos, bem-[aventurados sereis] por sofrer algo propter justitiam5
(por causa da justiça),[pois que por esse] meio o reino dos céu vos pertence. E é este o [fim para]o qual
fostes chamados por Deus: o estabelecimento e a manutenção do que concerne à sua glória; não,
certamente, como leões entre ovelhas, mas como ovelhas entre leões, prontos a serem dilacerados e
devorados. Praza a sua bondade conceder-nos esta graça!
Sou, em seu amor...

851. – AO CARDEAL MAZARINO

Paris, 4 de setembro de 1646.

Senhor Cardeal,

A presente é para informar a Vossa Eminência que um professor da Sorbona morreu, há pouco
tempo. Trata-se de proceder a nova eleição na mesma faculdade. O senhor padre penitenciário 1 me disse
que os jansenistas estão fazendo muitas manobras para elegerem alguém do seu partido. Os da opinião
comum da Igreja combinaram entre eles para lançar o nome do Padre Le Maistre, muito sábio, bom
pregador e dotado de uma das melhores penas do reino, e é do partido bom 2. Perguntaram-lhe se, uma vez
eleito, aceitaria a eleição. Ele opôs dificuldade, porque um prelado lhe oferece uma condição muito mais
vantajosa. É o motivo, senhor Cardeal, pelo qual esses senhores do partido bom desejaram que eu
propusesse a Vossa Eminência, se lhe aprouver, garantir a ele presentemente 1200 libras de pensão de
algum benefício, ou de dar a ele a palavra de que irá fazê-lo, dentro de algum tempo.
4
4. 2 Co 14,8.
5
5. Mt 5,10.
Carta 851. – C. as. – Arquivo da Missão, original.
.
1

1. Jacques Charton.
2
2. Nicolau Le Maistre aceitou o posto a ele oferecido. Foi proposto em 4 de julho de 1661 para a diocese de Lombez e morreu no dia 14 de
outubro seguinte.
28

As vantagens para Igreja, nesta medida, Senhor Cardeal, estão em que Vossa Eminência
impedirá que essa perigosa opinião seja ensinada publicamente na Sorbona; oporá igualmente um
poderoso gênio contra aquelas pessoas; usará sua providência ordinária em todos os negócios de
importância, especialmente num que diz respeito à glória de Deus e ao bem da Igreja. Enfim, será um
motivo para exaltar o Rei e Vossa Eminência. A eleição deverá acontecer na próxima segunda-feira.
Preciso saber da vontade de Vossa Eminência sexta-feira à tarde3.
Peço, entrementes, a Deus, senhor Cardeal, conserve Vossa Eminência e lhe santifique a querida
alma cada vez mais. Sou, em seu amor, senhor Cardeal, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

852. – A JEAN BARREAU

Paris, 6 de setembro de 1646.

Senhor Irmão,

Só Deus vos poderia exprimir a consolação que experimentamos com o êxito de vossa viagem e
pelos inícios e progressos após vossa chegada. Rendo graças à infinita bondade de Jesus Cristo, pela
graça que vos concedeu, e lhe rogo santifique, cada vez mais, vossa querida alma, a fim de que procedais
sempre santamente em todas as coisas.
Vão aqui alguns conselhos que julgo ser meu dever vos dar. Parece-me que vos apressastes um
pouco demais em prometer o dinheiro do direito postal:1º poderia acontecer que não obtivésseis esse
dinheiro no tempo prefixado; 2° tomando emprestado aí esta soma aos comerciantes para devolvê-la a
eles em Marselha, poderia ocorrer que o dinheiro não estivesse à disposição, na chegada deles a Marselha,
o que acarretaria descrédito de vossa pessoa e de vosso ministério. Isso não aconteceu, entretanto, porque
a Providência inspirou confiança nos Maturinos reformados, no sentido de fornecerem doze mil libras, no
espaço de dez ou doze dias, em Marselha, à pessoa à qual teríeis enviado a ordem de recebê-las.
O segundo conselho é de jamais escrever nem falar das conversões daí e, o que é mais, de não dar
atenção às que se fazem contra a lei do país. Tendes motivo para temer que alguém venha a fingi-lo para
estimular algum vexame. Lembrai-vos, por obséquio, senhor Irmão, do que vos disse que os jesuítas
fizeram em outra ocasião, em Pera1, em semelhante conjuntura . E’ de se desejar tenhamos um código, se
souberdes como utilizá-lo. Posso enviar-vos um.
A alma do vosso ministério é a intenção da glória de Deus, unicamente; o estado de contínua
humilhação interior, uma vez que não podereis vos aplicar muito às exteriores; a submissão interior do
juízo e da vontade àquele que vos foi designado para vos aconselhar; e nada fazer, quanto possível, sem
consultá-lo, se não fordes obrigado a uma resposta imediata. Jesus Cristo era o soberano senhor [de
Maria] e de São José e, no entanto, nada fazia sem o seu parecer. É este mistério, senhor Irmão, que
deveis honrar de modo particular, a fim de que apraza à sua infinita bondade conduzir-vos, na condição
em que estais.
Eu vos escrevi que estive com vossa tia, e sobre a edificação que dela recebi.
Sou, no amor de Nosso Senhor, meu Irmão, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

3
3. 7 de setembro.
.
Carta 852. – Esta carta foi publicada na Revue des documents historiques, de junto de 1873, p.45, conforme o original posto à venda pelo
senhor Charavay.
1

1. Bairro de Constantinopla.
29

Planejo enviar-vos uma pessoa para servir de chanceler. Estamos urgindo com os Padres de la
Merci; mas a desordem entre eles é tão grande, pelo que eles me disseram, que parece não será possível
conseguir algo com eles. O Rei encarregou o Senhor de Morangis2 de examinar o caso. Isso vai...
Tentaremos fazer o que nos for possível. Louvo a Deus por terdes acolhido esse reverendo Padre
convosco3.

Destinatário: Ao senhor Irmão Barreau, cônsul de Argel, em Argel.

853. – A JEAN MARTIN

Paris, 6 de setembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não vos posso exprimir a consolação que me trazem vossas cartas, particularmente a última que
recebi, de 17 de agosto. Peço-vos escrever-me com frequência.
Aflijo-me por saber que o Padre Blatiron ainda não voltou de junto da Madame Marechala de
Guébriant. Temo tenha ele adoecido por lá, ou que o incômodo dessa bondosa dama não esteja piorando;
o que Deus não permita!
Tive notícias do Padre Dehorgny, a respeito do pedido que lhe fiz, há bastante tempo, para enviar-
vos alguém. Escreveu-me que aguardava a primeira chuva para mandar partir o Padre Richard. É boa
pessoa e espero que recebais dele grande alívio. Sem dúvida alguma, causam-me dor os longos trabalhos
que padeceis, dor como nenhuma outra. Sempre roguei ao Padre Blatiron fizesse com que o senhor
Cardeal Arcebispo moderasse seu zelo e vossas ocupações. Proponho-me escrever-lhe ainda, seriamente,
sobre isso, no próximo correio. Entrementes, senhor Padre, suplico-vos poupar-vos, quanto vos for
possível.
Louvo a Deus pela disposição que concede a esses dois padres que estão convosco de se doarem à
Companhia, e peço a Nosso Senhor lhe comunique cada vez mais o seu espírito. Saudai-os cordialmente
de minha parte, por favor, como faço à vossa querida alma, que a minha, em sua pequenez, abraça com
ternura e afeição particular.
Enviei uma carta a Madame vossa mãe; se ela me enviar a resposta, farei com que esta chegue até
vós.
Aqui, não cessamos de pedir a Deus por vós e vosso trabalho. Fazei o mesmo por mim, que sou,
de todo meu coração, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin

854. – CARDEAL MAZARINO A SÃO VICENTE

Senhor Padre,
2
2. Antônio Barrillon, Senhor de Morangis, referendário em 1625,conselheiro de Estado em 1648.
3
3. Uma nota escrita de próprio punho pelo Irmão Barreau nos informa que esta carta foi recebida em 22 de janeiro e por ele respondida a 25.
.
Carta 853. – C. as. – Dossiê de Turim, original

.
Carta 854. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
30

Dir-vos-ei, em resposta à carta que tivestes o trabalho de escrever-me, do dia 4 deste mês, que só
posso louvar o zelo que demonstrais por tudo que se refere à gloria de Deus e ao bem de sua Igreja. O
empenho que assumis em obviar às tramas dos jansenistas, mediante a eleição do Padre le Maistre, é
para mim uma nova prova. Folgo então que se escolha uma pessoa que, pelo testemunho que me prestais,
é tão digna de ocupar o lugar em vacância na Sorbona. Podeis, entretanto, assegurá-lo, de minha parte,
das mil e duzentas libras de pensão, que julgais conveniente lhe sejam dadas, a partir de algum
benefício, e que isto se efetivará na primeira ocasião que eu tiver.
Crede-me, em vosso particular, que serei sempre, com toda verdade, senhor Padre, vosso todo
afeiçoado a prestar-vos serviço,
CARDEAL MAZARINO

Fontainebleau, 7 de setembro de 1646.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Missão, em São Lázaro, subúrbio
Saint-Denis, Paris.

855. – A CLÁUDIO DE MARBEUF1

Paris, 8 de setembro de 1646

Excelentíssimo Senhor,
Sou o indigno superior da Congregação da Missão e me permito a confiança de vos escrever a
presente, prostrado aos vossos pés e aos dos excelentíssimos senhores de vosso Parlamento. Venho
suplicar-vos, pelas entranhas de Nosso Senhor, que tenhais a bondade de proteger a inocência de um dos
maiores homens de bem do mundo, que trabalha na salvação do povo pobre, com tanta bênção de Deus.
Trata-se do Padre de Beaumont, um dos sacerdotes de nossa Companhia. Os religiosos reformados de são
Bento mandaram encerrá-lo em vossas prisões, onde lhe acorrentaram os pés, por ter sido encontrado em
Saint-Méen2.
Suplico-vos considerar, Excelência, que ele e seus coirmãos foram chamados para esse lugar pelo
senhor Bispo de Saint-Malo, a fim de estabelecer ali um seminário de jovens eclesiásticos, de fazer com
que sejam instruídos sobre todas as coisas necessárias a sua condição, de acordo com o Concílio de
Trento e os decretos de nossos reis, que desejam que nossos bispos instituam seminários de eclesiásticos
em suas dioceses, onde sejam formados segundo o antigo uso da Igreja, e que anexem a eles benefícios,
para sua manutenção. O referido senhor Bispo de Saint-Malo erigiu o seu na abadia de Saint-Méen e
anexou a esta boa obra a renda dos religiosos, com seu consentimento, com a reserva das pensões
constantes no acordo feito com eles. O Rei o confirmou com cartas patentes e diversos decretos. Penso
assim, Excelência, que vós e os ilustres membros da corte, uma vez bem informados das coisas, nada
tereis a dizer, a não ser talvez que esses reverendos Padres dizem que o senhor Bispo de Saint-Malo não
podia fazer a anexação da citada renda, nem aprová-la, dado que ela pertence à Ordem de São Bento e
não ao senhor Bispo de Saint-Malo. A isto respondemos, Excelência, que ela pertence a São Bento na
medida em que depende da jurisdição do bispo, de tal sorte que o Geral dos Regulares só tem jurisdição
.
Carta 855. – Não assinada. – Dossiê da Missão, minuta da mão do secretário. O documento está em mal estado.
1
1. Primeiro presidente no Parlamento de Rennes.
2
2. Vimos anteriormente que, depois de uma ordem de prisão, pronunciada pelo Parlamento de Rennes, Pierre de Beaumont permaneceu
sozinho na abadia de Saint-Méen. La Fontaine, oficial real de justiça, foi a essa localidade, à frente de uma pequena tropa, para a execução
das ordens do Parlamento, apoderou-se dele e o conduziu para as prisões de Rennes. Descontente por ter deixado escapar personagens
insignes que esperava surpreender, descarregou seu mau humor sobre o único prisioneiro e ordenou ao carcereiro acorrentar-lhe brutalmente
os pés. É o que relata Dom Morel, e acrescenta que, com sua própria intervenção, Pierre de Beaumont foi tratado com consideração e até
mesmo solto, depois de passar por um interrogatório na câmara criminal em 4 de setembro. A detenção do prisioneiro durara 4 ou 5 dias.
Estava em liberdade, quando São Vicente escreveu esta carta (Cf. Collet, op. cit., p.416).
A conduta de São Vicente quando da questão de Saint-Méen foi uma das principais objeções levantadas pelo advogado do diabo no
processo de beatificação (Cf. Novas advertências do R.P.D., promotor da Fé, sobre a dúvida a respeito das virtudes tanto teologais quanto
cardeais, quarta dificuldade, p. 9, e Últimas advertências, p. 3). O advogado da causa não teve dificuldade em mostrar que não somente nada
havia a censurar em seus atos, mas que se comportara como santo. Esta carta admirável é uma prova.
31

sobre os religiosos das abadias de sua Congregação e não tem autoridade alguma sobre os outros que a ela
não pertencem; por conseguinte, ele, nem outro qualquer da Ordem, não teve o direito de se opor à união
da citada renda ao seminário, uma vez que ela não depende de nenhuma Congregação.
Aduzo outra razão a esta, Excelência: sendo a abadia de Saint-Méen dependente da jurisdição do
Bispo de Saint-Malo, é muito provável que os bispos são os fundadores dessa abadia, que eles lhe
concederam os dízimos que ela possui e uma boa parte de seus bens, tendo em vista que esta casa servia
de seminário para a diocese, com a finalidade de nela educar jovens eclesiásticos, e que fornecia bons
párocos às paróquias dela dependentes. Sendo assim, não parece razoável, Excelência, que, como eles não
fazem nem uma nem outra coisa, antes pelo contrário, os reformados mudaram, em pouco tempo, seu
estado de operários da vinha do Senhor, a Igreja retome seus direitos e aplique o bem que lhes concedera
a operários que procuram fazer o que eles não fazem?
Acrescentemos a isso, Excelência, que eles não puderam solicitar à Congregação a permissão de
entrar na dita abadia, visto como a bula de ereção de sua Congregação não lhes permite entrar em
nenhuma abadia, embora sejam chamados por religiosos, se o abade e o bispo não derem o
consentimento. E longe de terem pedido a permissão ao senhor Bispo de Saint-Malo, que é o abade, e a
quem pertence a jurisdição de Sant-Méen, pelo contrário, ele tem em mãos carta do Geral de Saint-Maur,
pela qual fica claro que o referido Bispo de Saint-Malo lhe tinha pedido colocasse reformados seus na dita
abadia, e que esse reverendo Padre se escusa por não ter quem lá colocar. Diante disto, o senhor Bispo de
Saint-Malo, tanto para pôr remédio às desordens presentes nesta abadia, como para estabelecer seu
seminário para o bem de sua diocese, agiu como se sabe. Após tudo isso, Excelência, esses reverendos
Padres teriam motivo para proceder com tanta veemência contra o seu prelado e os operários que ele
colocou em sua vinha, a ponto de mandarem prendê-los e acorrentar-lhes os pés?! Não digo isto,
Excelência, como queixa que eu faça contra eles. Não há pessoa no mundo que os honre e os estime tão
afeiçoadamente como trato de fazer, pela graça de Deus, conforme eles mesmos vo-lo poderão dizer.
Se acham, contudo, algo a censurar no fato de o Padre de Beaumont ter voltado para Saint-Méen,
contra os decretos do Parlamento, ficai certo, Excelência, que ele agiu assim com a simplicidade de um
pobre padre da Missão, que não entende de processo, e que pensava proceder corretamente, seguindo a
ordem do seu bispo e do Rei. Podeis crer, Excelência, que, se o caso tivesse dependido de nós, que não
estamos em causa, nós os teríamos chamado de volta, à primeira intimação.
Sendo tudo assim, Excelência, recorro a vossa bondade, já que sois o principal ministro da justiça
soberana de Deus em vossa província, para lhe pedir muito humildemente a proteção em favor do citado
Padre Beaumont e de nossa Companhia. Além do mérito que tereis por isto diante de Deus, sereis credor
de nossa eterna gratidão, que nos levará a procurar as ocasiões de vos prestar nossos muito humildes
serviços, dos quais, Excelência, suplico-vos, com toda humildade e afeição possíveis, aceitar a oferta que
deles vos faço, assim como à vossa família. Vou começar as orações que me proponho fazer por vós a
vida toda, Excelência, e pela santificação de vossa querida alma. Sou, no amor de Nosso Senhor,
Excelência, vosso humílimo e muito obediente servo.

856. – AN***

12 de setembro de 1646.

São Vicente de Paulo anuncia ao seu correspondente que, depois de quatro ou cinco dias de
detenção, Pierre de Beaumont, padre da Casa de Saint-Méen, fora posto em liberdade

.
Carta 856. – Collet, op. cit.,t. I p. 415. O destinatário é provavelmente Antônio Portail; sabemos pelo senhor Charavay que São Vicente lhe
escreveu, em 12 de setembro de 1646, uma carta de três páginas in-4º.

32

857. – A JEAN DE FONTENEIL


Paris, 13 de setembro de 1646.

Senhor Padre,

Suplico-vos, em nome de Nosso Senhor, colocar o endereço neste pacote, para ser enviado e
entregue ao Padre du Coudray, em La Rose. Sei que vos estou importunando; mas sabeis que vos dedico
meus serviços tanto quanto o meu coração, que saúda o vosso com toda a humildade e afeição possíveis,
sendo eu, com toda a verdade, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente
servo
VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Fonteneil.

858. – A CLÁUDIO DUFOUR

Paris, 13 de setembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Espero escrever-vos longamente de minha própria mão, na primeira ocasião; não o posso agora,
porque já é tarde e o correio vai partir.
Não posso exprimir-vos a consolação que experimento pelo que o Padre Portail me escreveu a
vosso respeito e que eu já sabia. Rogo a Nosso Senhor comunicar-vos cada vez mais seu modo de
proceder e seu espírito.
Escrevo aos senhores Padres Le Soudier e des Noyelles; entregai-lhes, por favor, fechadas, as
minhas cartas, como se faz em outros lugares. Digo ao último, diante das dificuldades em que se encontra
em Saintes, que se transfira para La Rose. Para isto, suplico-vos, senhor Padre, fornecer-lhe o que precisa.
Quanto ao Padre Le Soudier, eu o conjuro a fazer o possível para unir o seu coração ao vosso, e a viver
convosco no entendimento e submissão requeridas. Se proceder de outro modo e, por fim, não ficardes
satisfeito com ele, enviai-o para mim, por obséquio; enviar-vos-ei algum outro em seu lugar; de fato,
enviar-vos-emos, na primeira ocasião, um padre e um irmão clérigo.
Recomendo-me humildemente a vossas orações e vos saúdo com toda a afeição do meu coração.
Sou no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Dufour, superior dos padres da Missão, em Saintes.

859. – A JEAN MARTIN

Paris, 14 de setembro de 1646.

.
Carta 857. – C. as. –Dossiê da Missão, original

.
Carta 858. – C. as. – Dossiê da Missão, original
.
Carta 859. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
33

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Fico tão consolado ao receber cartas vossas que não posso deixar de lamentar, quando não as
recebo, como nesta semana de agora. Essa privação me causa aflição, a vosso respeito e do Padre
Blatiron, do qual não tenho notícia alguma, desde que foi prestar socorro a Madame de Guébriant. Quanto
a mim, procurarei continuar, quanto eu puder, a troca de cartas por todos os correios, embora, no presente,
nada tenha a vos dizer, a não ser o que vos escrevi, há oito dias, a saber, que o Padre Dehorgny aguarda
apenas a primeira chuva para vos enviar o Padre Richard. É o que ele me garantiu por duas vezes, o que
me leva a crer que, se ele (o Padre Richard) ainda não chegou a Gênova, vai aparecer por aí, sem demora.
É um coirmão tão bom que o Padre Dehorgny só dispõe dele com pesar; e como ele não pode enviar-vos
um outro que vos seja adequado, nós vos mandamos também daqui um Irmão Coadjutor, muito exemplar
e paciente; comunicai-me, por favor, se ele chegou e o que vos parece dele.
Tenho agora muita esperança de que vossos trabalhos ficarão mais moderados, sobretudo se o
Padre Blatiron fizer ver ao senhor Cardeal Arcebispo o perigo a que vos expõe, pelos trabalhos contínuos
a que vos abriga, e que nisso vos leva a contrariar a prática ordinária da Companhia e a recomendação,
que vos tenho tantas vezes reiterado, de descansar de tempos a tempos. Rogo ao Padre Blatiron fazê-lo
entender isto, uma vez por todas; pois espero que ele o levará em consideração.
O Padre Guérin, que está em Túnis, me comunica que pode facilmente manter convosco a troca de
cartas, por causa da frequência com que aportam àqueles lugares alguns barcos provindos do principado
de Gênova. Gostaria muito que assim o fosse, para servir tanto de distração para o Padre Guérin, como
também por causa da consolação que tereis com a leitura de suas cartas. Quando as recebo, é sempre com
particular satisfação.
Não escrevo ao Padre Blatiron, na dúvida em que estou se já chegou de volta. Se por acaso já
estiver aí, esta carta servirá, por favor, para vós e para ele.
Saúdo a ambos, prostrado em espírito aos vossos pés, recomendando-me, humildemente, às vossas
orações. As minhas são na intenção de que apraza a Deus conservar-vos, e conceder-vos, cada vez mais,
uma ampla participação em seu espírito, e a mim, a graça de convencer-vos de que sou, no amor de Nosso
Senhor, senhor Padre, nosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da missão de Gênova, em Gênova.

860. – A JOÃO FRANCISCO DE GONDI, ARCEBISPO DE PARIS

[Entre agosto e novembro de 16461].

É com toda a humildade que Vicente de Paulo, Superior Geral da Congregação dos padres da
Missão, dirige a presente súplica.
Aprouve a vossa caridade pastoral conceder aos referidos padres da Missão o poder de estabelecer
a Confraria da Caridade, para a assistência aos pobres doentes, em todas as paróquias de vossa diocese,
onde ela puder ser convenientemente estabelecida.
Depois de terem feito, com bênção, o citado estabelecimento, em várias aldeias, algumas damas
caridosas de Paris ficaram de tal modo sensibilizadas com isto, que intermediaram junto aos seus párocos
a fundação de semelhante estabelecimento em suas paróquias, como a de Saint-Germain-l’Auxerrois, de
Saint-Nicolas-du-Chardonnet, de Saint-Leu, a de Saint-Sauveur, de Saint-Merry, de Saint-Etienne, de

.
Carta 860. – Dossiê das Filhas da Caridade, cópia do tempo, Luísa de Marillac escreveu, ela própria, no dorso do documento: “Cópia das
Filhas da Caridade”. Esta súplica é uma segunda redação; a primeira foi publicada sob o número 773.
1

1. A primeira data é a da entrada das irmãs no hospital de Nantes; a segunda, a da aprovação da súplica.
34

Saint-Sulpice, de Saint-Gervais, de Saint-Paul e outras, onde a dita Caridade está estabelecida e trabalha
com bênção.
Como, porém, as damas de que é composta a Caridade são, na maioria, de uma condição que não
lhes permite cumprir as funções mais humildes que convém exercer, como a de carregar o pote pela
cidade, fazer as sangrias, dar os banhos, pensar as feridas, arrumar as camas e velar os doentes que estão
sozinhos e tendem para a morte, chamaram algumas jovens dos campos, a quem Deus inspirou o desejo
de assistir os pobres doentes, as quais se entregam a todos esses pequenos serviços, depois de preparadas
para esta finalidade por uma virtuosa viúva chamada senhora Le Gras. Elas têm sido mantidas, durante a
permanência na casa da citada senhora, pela assistência de algumas caridosas viúvas e outras pessoas que
têm contribuído com suas esmolas.
Desse modo, desde há treze ou quatorze anos do início desta obra, Deus lhe tem concedido sua
bênção, e a tal ponto que, atualmente, há, em cada uma das referidas paróquias, duas ou três dessas
jovens. Elas trabalham todos os dias na assistência aos ditos pobres doentes e até, por vezes, na instrução
das meninas pobres, quando podem, e vivem às expensas da confraria das paróquias onde estão
empregadas, de modo tão frugal que gastam apenas cem libras, no máximo, por ano, com alimentação e
vestimenta. Em algumas paróquias, gastam só 25 escudos por ano.
Além dos trabalhos das referidas filhas nas paróquias, umas três são empregadas, pelas Damas da
Caridade do Hospital Geral, no serviço aos pobres doentes e no preparo de guloseimas que levam para
eles todos os dias do dito Hospital Geral. Ademais, há dez ou doze ocupadas, de ordinário, na educação
das crianças abandonadas desta cidade e duas ou três na assistência aos pobres forçados.
Além das que são aplicadas às supracitadas tarefas nesta cidade, há ainda outras no hospital de
Angers, no de Nantes, em Richelieu, em Saint-Germain-en-Laye, no Hospital Geral de Saint-Denis, na
França, e em outras regiões do campo, onde fazem mais ou menos as mesmas coisas, no que diz respeito
ao tratamento dos doentes, na cura das feridas e na instrução das meninas.
Para prover dessas filhas todos esses lugares e outros para onde são solicitadas, a referida senhora
se aplica à formação de outras em sua casa. De ordinário, abriga mais de trinta que ela emprega, algumas
na instrução das meninas pobres, que frequentam a escola em sua casa; outras, nas visitas aos doentes da
paróquia, para levar-lhes alimentos e remédios, ou cuidar deles; outras, para fazer curativos das feridas
dos pobres de fora que vêm até elas para esse fim; outras, no aprendizado da leitura e da escrita; outras,
enfim, na arrumação de casa.
Ela as sustenta, em parte, com o dinheiro que as filhas ganham com seus trabalhos manuais,
quando lhes sobra tempo, depois dos seus trabalhos ordinários, em parte, com as esmolas habituais, mas,
especialmente, com a renda que o falecido Rei e Madame Duquesa de Aiguillon caridosamente lhes
doaram, em caráter perpétuo, no montante de cerca de duas mil libras por ano.
O que é mais considerável nos trabalhos dessas pobres filhas é que, além do serviço corporal que
prestam aos pobres doentes, cuidam de contribuir para o bem espiritual deles, da maneira como podem,
particularmente, dizendo-lhes, vez por outra, uma boa palavra, dando alguns conselhos aos que estão para
morrer, a fim de partirem deste mundo em bom estado, e aos que se curam, para ajudá-los a viver bem.
Nosso Senhor lhes abençoa de tal modo os pequenos serviços prestados com simplicidade, que há
motivo para glorificá-lo, pelos bons efeitos que deles resultam.2
Entretanto, como as obras que concernem ao serviço de Deus costumam terminar, quando vêm a
falecer os que a iniciam, se não houver um laço espiritual entre as pessoas que a elas se aplicam, o
suplicante receia que aconteça o mesmo com essa Companhia, se não for erigida em confraria.
Por esta razão, pondera a Vossa Excelência Reverendíssima, com todo respeito que lhe é possível,
que parece desejável vos apraza erigir a dita assembleia de moças e de viúvas em confraria, com o título
de Confraria da Caridade das servas dos pobres doentes das paróquias e de lhes assinalar como
regulamento os artigos seguintes que lhes pautaram a vida até ao presente e segundo os quais se propõem
viver o resto dos seus dias3.

VICENTE DE PAULO,
muito indigno Superior Geral da
Congregação da Missão.
2
2. O Santo suprimiu aqui um longo trecho da primeira súplica, provavelmente porque continha o elogio de sua obra.
3
3. O regulamento será publicado no volume dos documentos.
35

Destinatário: Ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Arcebispo de Paris.

861. – A ANTÔNIO PORTAIL

22 de setembro de 1646

Senhor Padre,

A graça de N. S. esteja sempre convosco!


Escrevo-vos, às pressas, de Fontainebleau1, para onde vim em razão dos negócios a mim
confiados. A finalidade é dar continuidade às minhas cartas e vos dar renovada certeza do afeto do meu
pobre coração pelo vosso, tão caro a mim. Quero dizer-vos, também, senhor Padre, que o senhor Bispo de
Cahors me comunica que ficará muito grato se derdes uma chegada até Cahors, a fim de verificar o estado
de nossa Casa e como andam as coisas por lá. É o que vos quero pedir por estas linhas. Ide até lá, o mais
cedo possível.
Saúdo, com toda ternura a mim possível, o Padre Alméras, o Padre du Coudray e os outros da
família, recomendando-me humildemente às vossas orações e às orações de todos. Sou, no amor de Nosso
senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Já que o senhor Bispo manifesta este apreço, vede com o Padre du Coudray, que eu saúdo com
ternura, se é conveniente que vos faça companhia. Se for o caso, peço-lhe que o faça.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, presente em Notre-Dame de la Rose, em


La Rose.

862. – A JEAN DEHORGNY, SUPERIOR, EM ROMA

Orsigny, 27 de setembro de 1646.

Depois de ter falado de vários negócios relativos à sua Congregação, o Santo agradece a Jean
Dehorgny pelo envio de Francisco Richard para Gênova:
“Esta pequena comunidade1 goza de notável consideração, pelo que me relatou o intendente da
justiça do exército do Rei, na Itália”.
A pequena perseguição de Bretanha não está ainda aplacada,
“Embora o senhor Bispo2 e o Coadjutor de Saint-Malo3 tenham ido ao local expressamente para
isso. Nosso prisioneiro4 foi libertado cinco dias depois, e a comunidade está dispersa por aqui e por ali.
Nosso senhor a recomporá quando for do seu agrado”.

Carta 861. – C. as. – Dossiê da Missão original. O postscriptum é da mão do Santo.


.

1
1. Residência da corte.
Carta 862. – Catálogo de venda do Senhor Laverdet,janeiro de 1854, n° 1060. Descreve assim o original: “Carta autógrafa assinada..., duas
.

páginas in-4°, rasgão no alto da margem exterior eliminando o fim de sete linhas da primeira página e o início de quatro linhas no verso”.
1
1. A comunidade de Gênova.
2
2. Aquiles de Harlay de Sancy
3
3. Ferdinand de Neufville.
4
4. Pierre de Beaumont.
36

863. – A JEAN MARTIN

Orsigny, 27 de setembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta de 11 de novembro deste mês, com a consolação que vossas cartas costumam
trazer-me, de tal modo vossa alma me é cara e o que vem dela me causa contentamento.
Louvo a Deus pela chegada do irmão Sebastião e pela boa acolhida que lhe dispensaram os
senhores eclesiásticos que estão convosco, até mesmo o senhor Cardeal. Rogo a Nosso Senhor lhe
conceda a graça de contentá-los sempre e edificá-los com seus bons exemplos. O Padre Dehorgny me
comunicou que o Padre Richard estava também de partida para Gênova. Creio que já esteja hoje
convosco, e tenha chegado a tempo para vos aliviar nos trabalhos da ordenação, na falta do Padre
Blatiron, que dizeis estar retido pela Madame Marechala Guébriant. Louvo a Deus igualmente por estar
ela satisfeita com os serviços dele, e aprovo plenamente que ele os continue enquanto ela precisar deles.
Não deixareis, com a ajuda de Deus, de obter bom êxito em vossos procedimentos e trabalhos, porque a
obra de Nosso Senhor não se faz tanto com multidão de operários, quanto pela fidelidade do pequeno
número que ele chama. E como vos vejo cheio de zelo e de caridade, espero igualmente bom êxito e
grandes bênçãos de vosso desvelo, se for do agrado de nosso Mestre comum dispensar-vos as graças que
lhe suplico. Peço-vos, senhor Padre, recomendar-lhe muito minha pobre alma, pois sou, em seu amor,
senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

864. – A RENÊ ALMÉRAS, O PAI

São Lázaro [28, 29 ou 30 de setembro de 16461].

Prezado Senhor,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Prostro-me em espírito a vossos pés e vos peço perdão com toda a humildade e afeto a mim
possíveis, por vos ter dado, inadvertidamente, motivo para se queixar de mim, pelo fato de que o Padre
Alméras, vosso filho, não tenha ido despedir-se de vós antes de partir. Disse-vos, meu senhor, que cometi
esta falta inadvertidamente. Realmente, não atentei de modo algum a isso, antes de sua partida.
Eis como tudo se passou. Estivemos por muito tempo em dúvida se ele iria para os campos, tanto
por causa de sua indisposição, quando pelas dúvidas a respeito dos lugares para onde iria. De início,
pensáramos em enviá-lo para visitar algumas poucas casas que temos, a começar por Sedan. De lá,
chegaria a Toul, a Troyes, a Annecy, a Marselha e a Roma, não tanto para fazer as visitas, mas para ver se
essa distração lhe recobrasse a saúde. Consultamos os médicos neste sentido, e foram do parecer de
enviá-lo aos campos, não, porém, a Roma, a não ser que se encontrasse em perfeita saúde ao chegar a
Marselha, lá pelo fim do outono. Passamos bastante tempo pensando na viagem via Sedan; como, porém,
sobreveio um grande calor, tememos enviá-lo por aquelas bandas, porque não havia coches com toldo, a
.
Carta 863. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
.
Carta 864. – C. aut. – Original pertence ao Senhor Morel, empresário em Rouen.
1
1. Mão estranha, acrescentou ao lado do destinatário: “setembro de 1646.” De fato, é a única data compatível com a carta. Como foi escrita
depois da viagem a Fontainebleau e o Santo não tinha ainda regressado a 27 de setembro, nossa escolha só pode recair entre os três últimos
dias do mês.
37

não ser depois de Troyes. Isso nos fez mudar de plano, de um dia para outro, quando se apresentou a
ocasião de enviá-lo a Angers, para onde podia ir a coberto nos coches, até Orléans, e de lá, pelo rio. Desse
modo, a decisão foi tomada à tarde e ele partiu no dia seguinte, sem que me ocorresse reflexão alguma a
respeito de sua obrigação filial de ir receber vossas ordens. Penso que aconteceu o mesmo com ele, pois
nada me falou a respeito. Vede, assim, meu senhor, como minha falta não foi voluntária, mas, antes, a
consequência de não ter refletido no que deveria ter feito.
A carta de vosso filho, que estou vos enviando, levará ao vosso conhecimento outra falta, prezado
senhor. É a de tê-la recebido, há cerca de vinte dias, e de só agora vo-la enviar. Ainda neste caso, trata-se
de uma falha não minha, mas de um de nossos irmãos, ao qual a tinha entregue antes de partir para
Fontainebleau, e que se esqueceu de vo-la enviar. Fiquei muito surpreso, quando de minha volta, ao
perguntar-lhe se vo-la tinha enviado e ele me respondeu que não. Embora, pela graça de Deus, seja muito
cuidadoso, desta vez não o foi. Penso que nossa partida repentina para Fontainebleau, para onde veio
comigo, foi a causa deste esquecimento. Presto-vos conta de tudo isto, prezado senhor, para que tenhais a
bondade de crer que não me faltou, nesta ocasião, boa vontade, mas memória, e assim, por conseguinte,
me deis a graça de conceder-me, com maior boa vontade, o perdão que vos suplico em meu favor e no de
vosso filho.
O Padre Portail me escreve de nossa Casa de La Rose, da diocese de Agen, no dia 8 deste mês,
que vosso filho e ele jamais estiveram tão bem, são suas próprias palavras, e que partiriam de lá, dentro
de oito dias, para Marselha. De Marselha um iria para Gênova e Roma, e o outro, para Annecy, diocese
de Genebra, conforme a ordem que lhes enviaria em Marselha. Acontece que estou em dúvida sobre qual
dos dois irá para Roma ou então, se os dois irão para lá. Asseguro-vos, prezado senhor, que vosso filho
não irá para Roma, se o senhor Merlet e nosso médico, o senhor Vacherot, virem nisto o menor
inconveniente do mundo. A vida do senhor vosso filho nos é cara demais, prezado senhor, e vossa
satisfação, igualmente. E embora os médicos julguem que poderá seguir viagem, mandarei que não o faça
caso sua saúde não esteja tão bem, ao chegar a Marselha, quanto estava quando chegou de La Rose.
Eis, prezado senhor, nosso humilde modo de agir a respeito de vosso filho, que estimo como só
Deus sabe, a quem desejo bem, mais do que a mim mesmo. Sou, no amor de Nosso Senhor e de sua Santa
Mãe, meu senhor, vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao ilustríssimo senhor Alméras, conselheiro do Rei e seu ministro chefe do Tribunal
de Contas.

865. – AO SUPERIOR DA CASA DE TOUL1

1646.

Só entramos em processo o menos possível e quando somos constrangidos a fazê-lo, e só lhe


damos início depois de nos aconselharmos com os de dentro e os de fora da comunidade. Preferimos
ceder do que é nosso a desedificar o próximo2.

Carta 865. – Collet, op. cit., t. II, p. 236


.
1

1. A casa de Toul teve dois superiores em 1646: Jean Bécu (1642-1646) e Charles Aulent (1646-1647). Aquele a quem a carta é dirigida, diz
Collet, “embarcara num negócio em que tinha fracassado”. Pensamos tratar-se de Jean Bécu.
2
2. Depois de ter relatado essas palavras do Santo, Collet acrescenta: “Deus permitiu, entretanto, que tivesse alguns processos. Ganhou
alguns e perdeu outros. A Providência quis fazer dele um modelo para todos os estados, e o dos pleiteadores precisa de grandes exemplos”.
Na verdade, São Vicente só entrou em processo quando foi impelido, não por seu próprio interesse, mas pelo interesse dos outros (Cf. carta
850).
38

866. – A UMA RELIGIOSA DA VISITAÇÃO1

[Entre 1 e 6 de outubro de 16462].

Minha cara Irmã,

Louvo a Deus pelo que me dizeis da disposição de nossa Madre 3 e pelo que ela me comunica que
nada fará em Chartres, se suas filhas rigorosamente não lhe pedirem 4. No caso de La Perrine5,
considerarei a decisão ali tomada como procedente de Deus.
Quanto ao que me dizeis para ir até vossa casa, a fim de assistir à vossa conferência, antes da
chegada de vossa Madre, peço-vos, minha querida Irmã, escusar-me: eu escandalizaria nosso pessoal, se
saísse durante o retiro. Mais ainda, minha cara Irmã, peço-vos estender minhas escusas a nossa Madre e a
vossa querida comunidade, pois não terei mais a felicidade de continuar a prestar-lhe meus pequenos
serviços. Este retiro me fez ver, com muita clareza, que estou em dívida para com nossa Companhia, por
me ter aplicado a outros cuidados que não os seus, tendo, por causa disso, de prestar contas diante de
Deus. Há ainda outra razão que não me pressiona menos: a Companhia tem por regra não se aplicar ao
cuidado das religiosas, para se reservar totalmente ao serviço do pobre povo dos campos; e, contudo,
estou andando na contramão desta regra. E como, depois de mim, é de se temer que olhem menos para o
teor das regras do que para a maneira como procedi, é obrigação minha retirar-me, em consciência. Se agi
de outra maneira, não foi sem algum remorso. E se tenho maiores empecilhos 6, espero que N.S. me livrará
deles também. Há muitas pessoas em Paris capazes de vos servirem, e com bênção. Tereis o Padre Feret
que vai chegar para ser o Pároco de Saint-Nicolas-du-Chardonnet 7, e ainda o Padre Abelly. São pessoas
que vos prestarão serviço dentro do espírito de nosso bem-aventurado Pai8, e com mais graça de Deus do
que eu, incomparavelmente. Eu próprio me ofereço para falar-lhes a respeito, com a condição de que nem
vossa Madre, nem vós me escrevais, nem mandeis escrever-me ou falar-me por intermediários, no sentido
de retomar essa responsabilidade, e me dispenseis de ir até vós, já que tomei a resolução de não fazê-lo
mais. Afirmo-vos, porém, minha cara Irmã, que não se trata de descontentamento algum; oh! não,
garanto-vos diante de Deus, mas simplesmente por princípio de consciência, pelas razões anteriormente
expressas. Tivestes, até demais, caridade e tolerância para com minhas misérias. Rogo a Nosso Senhor
seja a vossa recompensa e que me perdoe as faltas cometidas entre vós. Tende a certeza, minha cara Irmã,
de que vos terei toda reverência e vos estimarei em N.S., tanto e mais do que nunca, e que serei em vida e
até a morte...

867. – AO CARDEAL GRIMALDI

Paris, 4 de outubro de 1646.

.
Carta 866. – Reg. I, f° 23 v°, cópia tirada da minuta autógrafa.
1
1. A carta 873 nos leva a pensar que a presente é dirigida a uma Irmã do primeiro mosteiro de Paris, muito provavelmente à Irmã Luísa
Eugênia de Fonteines, anteriormente superiora nele.
2
2. O anúncio do regresso próximo de Hipólito Féret, o próprio assunto da carta e o fato de ter sido escrita no final do retiro anual, encerrado
a 6 de outubro de 1646, não deixam dúvida alguma a respeito da data.
3
3. Helena Angélica Lhuillier.
4
4. Trabalhava-se então no estabelecimento de um mosteiro da Visitação nessa cidade.
5
5. Na diocese de Le Mans. A Irmã Luísa de Fonteines fizera outrora reviver a observância monástica na abadia de religiosas, estabelecida
nesse lugar.
6
6. O ofício no Conselho de Consciência.
7
7. Hipólito Féret estava em Alet, há vários anos. São Vicente, que o enviara para junto de Nicolau Pavillon, o chamava de volta para Paris,
provavelmente a pedido do Arcebispo João Francisco de Gondi.
8
8. São Francisco de Sales.
Carta 867. – Reg. I, f° 14 v°, cópia tirada da minuta autógrafa. Uma outra minuta autógrafa da mesma carta se encontra nos arquivos da
.

Missão. Como nela se encontra mais de uma lacuna, preferimos seguir o texto do registro I, e colocar em nota as variantes da minuta.

1. O nome do destinatário nos é conhecido pelo Mémoires do P. Renê Rapin, Paris, 1865, 3 vol. in-8°, t.I, p.115. o Cardeal Grimaldi fora
Núncio na França.
39

Eminência Reverendíssima,

O motivo da presente carta é renovar meu protesto de obediência a Vossa Eminência e suplicar-lhe
muito humildemente haja por bem que eu lhe enderece alguns escritos sobre os dois grandes chefes, São
Pedro e São Paulo, que foram redigidos por um dos mais sábios teólogos que temos, e um dos maiores
homens de bem, o qual não quer ser citado . Compôs esses escritos na dúvida se os mandaria imprimir.
Soube, porém, pela Gazeta de Roma, que estavam examinando aí o livro do autor dos chamados dois
chefes, que dois doutores da Sorbona, atualmente em Roma, sustentam ser a doutrina de sua faculdade.
Soube, por outro lado, que a mesma faculdade foi informada de que lhe era atribuída essa opinião e que se
tinha reunido em assembleia e enviado uma delegação ao senhor Núncio, no sentido de desaprovar esses
doutores, certificando-o do contrário e suplicando-lhe que interviesse para que a próxima gazeta fizesse
menção de que lhes atribuíam falsamente essa doutrina . Foi o que levou esse bom e virtuoso personagem
a me trazer hoje esses escritos, com o intento de que eu os envie a Roma, para servirem de relatório aos
que Sua Santidade incumbiu de examinar o referido livro. Eles encontrarão nesta obra todos os autores
alegados como favoráveis à pretensa igualdade de São Paulo com São Pedro, refutados pelos mesmos
autores cujas passagens alegam, uns após outros. Ora, a quem poderia eu endereçar esta obra senão a
Vossa Eminência, senhor Cardeal, para dela fazer o uso que esse bom doutor deseja ? Vossa Eminência é
o príncipe e o protetor das coisas de nossa religião e me destes a honra de me mandar dizer que me
dirigisse a Vossa Eminência em todas as questões referentes ao serviço de Deus. Isso me faz esperar,
senhor Cardeal, que não deixareis de levar a bem o que estou fazendo, assim como o fato de me arrogar
sempre a distinção com que me honrais, a de ser vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Esse bom doutor sentir-se-á consolado se aprouver a Vossa Eminência dar-me a honra de mandar
que me escrevam sobre a recepção e o êxito de seus relatórios.

2. Raul Allier pretende erroneamente no La Cabale des dévots, Paris, 1902, in-16, p.168, que o Santo tem em vista Francisco de Raconis,
Bispo de Lavaur, que defendeu a doutrina ortodoxa em duas obras: Examen et jugement du livre de la fréquente comunion, Paris, 1644, in-4°,
e De la primauté et souveraineté singulière de Saint Pierre, Paris, 1645, in-4°. Francisco Raconis morrera a 16 de julho de 1646 e assinara
seus escritos.
,
3. A doutrina da igualdade de São Pedro e de São Paulo, sustentada primeiro no prefácio do livro De la fréquente communion, fora
combatida, como acabamos de ver, por Francisco Raconis, Bispo de Lavaur. Reapareceu em 1645 em duas obras anônimas que alguns
atribuem a Barcos, sobrinho do Abade Saint-Cyran, outros, a Antônio Arnauld: De l’autorité de S. Pierre et de S. Paul, qui reside dans le
Pape, successeur de ces apôtres, e La grandeur de l’Eglise romaine établie sur l’autorité de S. Pierre et de S. Paul. A intervenção de Isaac
Habert, teologal de Paris, e de Dom Pierre de Saint-Joseph, frade bernardo, em favor da doutrina tradicional, provocaram em 1646 os
Esclaircissements de quelques objections qu’ on a formées contre le livre de La grandeur de l’Eglise romaine.

4. Os bispos que tinham aprovado o livro De la fréquente commuunion, enviaram a Roma, para impedir a condenação desta obra, Jean
Bourgeois e Jerônimo Duchesne.

5. As palavras “desaprovar esses doutores” (désavouer ces docteurs), faltam na minuta.

6. Informado pelo núncio Dom Bagni que Jean Bourgeois e Jerônimo Duchesne pretendiam em Roma que a doutrina do livro de Barcos
tinha a aprovação da Sorbona, Nicolau Cornet, doutor de Navarra e síndico da Faculdade, informou disso os seus colegas, que se insurgiram
contra essa imputação e condenaram imediatamente o erro que lhes atribuíam (Cf. Rapin, ibidem).

7. Esta frase, fora uma pequena modificação, on trouvera (achar-se-á), em vez de ils trouveront, (eles encontrarão), foi escrita pelo próprio
Santo no dorso de uma carta a ele dirigida pelo Cardeal Mazarino, em 7 de setembro de 1646. Acrescentaram embaixo: “ Nota quod haec
verba sunt scripta manu Vicentii a Paulo. Videtur quod opus illud de quo loquitur servus Dei fuerat editum a D. Le Maître, de quo sermo est
in libris Dupin... líber Magistri Morel, doctoris Sorbonici, edict. apud Recolet ann. 1646, in quo falsificationis textuum...” (Cf. Rapin, op.
cit., t.I, pp.114-115):“Notar que estas palavras são escritas pela mão de Vicente de Paulo. Vê-se que a obra de que fala o servo de Deus fora
editada por D. Le Maitre, do qual se fala nos livros de Dupin... livro do Mestre Morel, doutor da Sorbona, edit. por Recolet no ano 1646, no
qual “da falsificação dos textos...” (NB: Tradução para o português pelo tradutor).

8. O santo escrevera na minuta, depois dessas palavras, algumas linhas, que rasurou depois, para modificar sua frase. Ei-las: “que esse bom
doutor... o autor pretende que eu... de novo, no dizer do público, dos mais sábios do mundo e dos maiores homens de bem. Suplico-vos muito
humildemente levá-lo a bem, senhor Cardeal, e de me admitir sempre na qualidade, graça que Vossa Eminência me fez esperar, de me ter por
seu muito humilde e muito obediente”.

9. Encontramos aqui, ainda na minuta, três linhas riscadas: “Essas opiniões, senhor Cardeal, perturbam ainda um pouco a Igreja daqui, não,
contudo, com aquela veemência do início, ao que me parece. Depois de Deus, o que mais contribuiu para esse abrandamento foi a Bula de
Sua Santidade”.

10. A doutrina dos dois chefes foi censurada por Inocêncio X, em 24 de janeiro de 1647, como perigosa e oposta à constituição da Igreja.
Mas a condenação de Roma não pôs fim à polêmica (Cf. Histoire ecclésiastique du XVII° siècle, por Luís Ellies Dupin, Paris, 1714, 5 vol. in-
40

868. – AO SENHOR DESGORDES

São Lázaro, 4 de outubro de 1646.

Prezado Senhor,

Madame Desgordes, vossa mãe, e vossos parentes desejaram que lhes mandasse, como também a
vós, prezado senhor, um eclesiástico para ficar convosco e vos prestar serviço em vossos estudos.
Indiquei a Madame vossa mãe o Padre Le Noir, portador da presente, eclesiástico dessa cidade, aceito por
ela. Tem as qualidades requeridas no caso, e espero, prezado senhor, que fiqueis plenamente satisfeito
com ele, depois de conhecê-lo. Em nome de Deus, senhor, acolhei-o e obedecei nisso à Madame; a
natureza a isso vos obriga, Deus vo-lo ordena, e sabeis, senhor, que é a intenção da corte. Posso afirmar-
vos que a Rainha ficará particularmente satisfeita, e que, se porventura surgir alguma vez ocasião de vos
servir, fá-lo-ei de todo coração, sendo, no amor de Nosso Senhor, meu prezado senhor, vosso muito
humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

869. – A ANDRÉ PRAT, CÔNSUL DA FRANÇA, EM SALÉ

Paris, 5 de outubro de 1646.

Exmo. Senhor

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não posso exprimir-vos, senhor, a gratidão que sinto pela caridade com que vos apraz honrar
nossa pequena Companhia, querendo aplicá-la ao serviço de Deus, na assistência de nossos pobres
escravos de Salé e em vosso serviço. Agradeço-vos muito humildemente, senhor, e vos ofereço os
pequenos serviços de nossa pequena Companhia e os meus, com toda a humildade e afeição possíveis.
Não sei o que dizer do procedimento desse reverendo Padre que nos tomou a dianteira , senhor, a
não ser que temos por máxima ceder aos outros as boas obras que se oferecem para fazer, estimando, com
razão, que as farão melhor do que nós. Além disso, tememos que aconteça alguma contestação no local e
que isso acabe redundando mais em escândalo do que em edificação para os cristãos e os infiéis. Se
acontecer, porém, que vosso filho não tenha recebido esse reverendo Padre, ou se a viagem dele é
unicamente para o resgate dos escravos, como disse ao partir, segundo me informaram, neste caso, ou em
caso semelhante, de muito bom grado faremos o que ordenardes. Com efeito, sois escolhido pelo Rei, e,
por conseguinte, por Deus, para dar a conhecer sua vontade pela vossa, em tais ocasiões. E mais, se, em
reconhecimento desta obrigação, se apresentar alguma ocasião de vos prestar nossas honras, fá-lo-emos
com toda satisfação, senhor.
Rezaremos, entretanto, a Deus, pela conservação de vossa pessoa e a do vosso filho, que vos
representa em Salé. Que ele vos proteja, a vós e ao vosso filho, e santifique cada vez mais vossa querida
alma e as dos outros de vossa família. Sou, no amor de Deus, senhor, vosso muito humilde e obediente
servo,

8°, t. II, p. 145 e ss.)


.
Carta 868. – C. as. – A minuta desta carta pertence às Filhas da Caridade de Castelsarrasin.
.
Carta 869. – C. as. – Bibl. Nac. n. a. f. 3533, minuta.

. Um franciscano (Cf. c. 870)

2. Henri Prat. Sucedeu ao pai em 20 de setembro de 1648.
41

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

870. – A ANTONIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM LA ROSE

6 de outubro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi duas cartas vossas, uma de 21 e a outra de 22 de setembro. Vou escrever ao Padre du
Coudray. Envio-vos a presente carta por um portador. Meu Deus! senhor Padre, que faremos?... Dizei-nos
para levar essa pessoa a voltar atrás em suas opiniões. Não parece viável, por causa da qualidade do seu
espírito e porque já chegou ao ponto de julgar que os Concílios não entenderam muito bem as Sagradas
Escrituras. Voltar atrás não é da têmpera do seu espírito. O outro  é de humor e volúvel. O primeiro é
irascível e determinado. Conservá-lo conosco é incômodo, despachá-lo é também incômodo; entretanto,
tudo ponderado, seremos constrangidos a chegar a esse ponto. Vereis pela carta que lhe escrevo, que vos
envio aberta e que lacrareis depois com nosso selo, como lhe suplico ir a Richelieu, onde me proponho ir
estar com ele e refletir sobre o que importará fazer. Entregar-lha-eis quando e da maneira como julgardes
conveniente. Diga ele ou faça o que fizer, permanecei sempre no espírito de mansidão e de humildade.
Quanto ao Padre Boucher, se quiser acompanhá-lo, dir-lhe-eis que é necessário ordem minha. Não
é conveniente que ele o acompanhe. Mas se o fizer por conta própria, nós o veremos.
Quanto ao que devereis deixar em seu lugar, o que me dizeis sobre o Padre Dufour, de Cahors, e
sobre o Padre Delatre, de La Rose, não é viável em se tratando do Padre Dufour; seria afligir demais o
senhor Bispo de Saintes. Vede, porém, o que me ocorreu ao espírito: colocar o Padre Testacy em Cahors,
se o senhor Bispo concordar e se não virdes algum inconveniente, levando em conta a sua conduta e a
proximidade de sua bondosa mãe . Ele parece ser homem de bom senso, fiel às suas práticas, habilitado e
entendido nos negócios. [É verdade que] se ordenou padre há pouco tempo e que [talvez] haja certa
dificuldade para vê-lo, de um salto, [chegar] ao primeiro posto. Mas, como os padres... são bons e sem
ambição, podereis levá-los a acatá-lo, mostrando-lhes a inteligência que tem nos negócios. Quanto ao
senhor Bispo de Cahors, talvez o encontreis receptivo a respeito; caso contrário, trataremos de enviar-vos
o Padre Grimal ou o Padre Dufestel, ou o Padre Berthe. Tinha pensado no Padre Bourdet; mas penso que
o enviaremos para a Irlanda, para onde somos pressionados a enviar missionários do país, sob a direção
de um superior francês. Poderão partir dentro de quinze dias, se o Padre Bourdet estiver pronto. Restar-
vos-ão aí o Padre Rivet, um bom padrezinho da Normandia , e o Padre des Noyelles. O Padre Le
Soudier, [destinado] para a Barbária, está ainda em Marselha, na dúvida se vai embarcar, em razão da

.
Carta 870. – Cartas e Conferências de São Vicente de Paulo (suplemento), p. 61, C. 3040. O editor reconhece ter aos olhos uma cópia
incorreta (Ver, no “Anexo” deste tomo, o original, da mesma data: N. do T.)

. Francisco du Coudray.

. A carta 885 nos dá a conhecer algumas.

. Leonardo Boucher.

. Charles Testacy era de Condom.

. Este nome não deve encontrar-se no original. Francisco Dufestel tinha deixado a companhia e obtido a paróquia de Saint-Omer-de-Villero.
Não parece provável que tenha solicitado sua readmissão, pois não encontramos mais o seu nome na correspondência do Santo.

. Louis Rivet, nascido em Houdan (Seine et Oise) em 19 de fevereiro de 1618. Entrou na Congregação da Missão em 13 de junho de 1640,
fez os votos em 16 de outubro de 1642, foi ordenado padre em 19 de setembro de 1643. Foi colocado em Richelieu em 1646, depois, no
Seminário de Saintes, que dirigiu durante vários anos (1648-1650, 1656-1662,1665-1675).

. Guilherme Michel.

. Jacques Le Soudier.
42

circunstância de um franciscano que lhe passou à frente; além do mais estávamos na dúvida sobre qual,
ele ou o Padre Lesage, haveria de partir.
Se o Padre Le Soudier não for para La Rose, o Padre Cuissot , que está indo para o seu lugar, e no
presente está trabalhando muito bem, irá para La Rose e o Padre Perraud  para Sainte. Procuraremos
enviar os outros quanto antes.
Fomos restabelecidos pela segunda vez em Saint-Méen, por decreto do Conselho; mas o
Parlamento, do qual o comissário que expulsou os nossos e o procurador geral têm a intimação,
colocou tal sevícia(?) que estimamos jamais venhamos a ter tranquilidade naquela província, se não nos
acomodarmos neste emprego. O Padre Codoing que para lá enviamos, trabalha...
O senhor Bispo de Cahors me comunicou que desejava que fizésseis a visita em sua casa. Ele vai
desafogar convosco o coração. Está um pouco sentido [conosco]. Penso que não servi a ele o bastante, a
contento desses reverendos Padres, no processo que têm aqui.
Jamais fizestes algo tão a propósito como permanecer em La Rose, até que todas as coisas
ficassem no melhor estado em que vos era possível colocá-las.
Penso que não teremos dificuldade em fazer mudar o que vós e o Padre Dehorgny julgais
conveniente mudar nos ofícios que me assinalastes, nem nos outros. Não deixarei de urgir com o
Coadjutor, que é um pouco lento. Estamos em retiro cerca de quarenta pessoas. Dou assistência ao
grupo dos padres; Deus me deu forças para isso. Estamos no oitavo dia. Pensamos em adiar apenas nossa
visita, em vosso regresso, que peço a Deus seja o mais rápido possível.
Escrever-vos-ei em Marselha e vos enviarei as Regras Comuns em latim.
Abraço, entretanto, essa pequena comunidade com toda a humildade, e com todo o afeto a mim
possível.
O Padre Bourdet me expressou grandes escusas por vos ter contraditado e protesta sua obediência
às determinações. Se não for para a Irlanda, poderemos enviá-lo para La Rose, se não detiverdes um ou
outro dos que vos indiquei.
Escrevi ao senhor Bispo de Cahors, em seguida ao que ele me recomendara, no sentido de chamar
de volta o Padre Delattre, que eu pensara retirar-lhe, que não tínheis outro, a não ser ele, que entenda dos
negócios, mas que faríamos, contudo, o que recomendar.

871. – A FRANCISCO DU COUDRAY

6 de outubro de 1646.


. Jacques Lesage, nascido em Auffay (Seine-Inféricure), entrou, já padre, na Congregação da Missão em 7 de outubro de 1639, com a idade
de cerca de 25 anos e fez os votos em 26 de novembro de 1645. Embarcou para Argel em janeiro ou fevereiro de 1648 e se entregou
inteiramente, sem olhar fadigas e perigos, ao ministério em favor dos pobres escravos. Depois de uma visita aos pestíferos , foi, ele próprio,
acometido pela terrível doença, que o levou em 12 de maio de 1648.

. Jean Cuissot. Veremos adiante que ele foi colocado em Saintes.

. Hugues Perraud, nascido em Arguel (Doubs) em 4 de outubro de 1615. Entrou na Congregação da Missão em 5 de janeiro de 1640. Fez
os votos em 23 de março de 1644 e foi ordenado padre em 1646. Foi colocado em Saintes (1646), em Richelieu (1651), e morreu em Paris
em 26 de dezembro de 1659.

. Senhor de La Touche-Frélon, conselheiro no Parlamento.

. Senhor Huchet de la Bédoyère.

. Esta frase é muito obscura e incorreta. Não deve reproduzir fielmente o original (Ver na Carta 870, no início, a nota do tradutor).

. Na qualidade de superior.

. Os religiosos dos mosteiros que dependiam da abadia de Chancelade.

. João Francisco Paulo de Gondi, mais tarde Cardeal de Retz.

. As determinações da visita, deixadas pelo Padre Portail em Saint- Méen.
Carta 871. – Collet, op. cit., t.II, p. 162.
.


. Collet diz que a carta de que temos aqui um trecho foi dirigida a um missionário. A expressão: “Meu caro padrezinho”(em francês: mon
cher petit Père), nos permite afirmar que esse missionário era Francisco du Coudray.

. O trecho acima combina muito com as circunstâncias em que foi escrita a carta de 6 de outubro de 1646, dirigida a Francisco du Coudray e
anunciada ao Padre Portail na carta 870.
43

Não posso, não, não posso, meu caro padrezinho, exprimir-vos a dor que senti por vos contristar.
Suplico-vos acreditar que se não fosse a importância das coisas, preferiria mil vezes suportar esse
sofrimento a vo-lo causar.

872. – ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR EM GÊNOVA, A SÃO VICENTE

Gênova, 1646.

Escrevemos, em nome do senhor Cardeal Durazzo, Arcebispo desta cidade, a todos os arciprestes
dos lugares onde a missão foi pregada, para mandarem avisar a todos os párocos e padres de seu
arciprestado, que os exercícios espirituais devem começar em tal dia, na casa da Missão, e que todos os
que quisessem servir-se dessa boa ocasião poderiam vir para aqui, em tal hora. Vieram muitos, e já
foram embora. Não vos posso exprimir a grande consolação que receberam, nem a abundância das
graças que Nosso Senhor lhes comunicou, nem sua humildade e sinceridade em partilhar suas orações,
nem as conversões admiráveis e quase milagrosas ocorridas então.
Entre outros, houve um pároco que me disse, e quase em público, que viera pensando em fazer
zombaria, e antes por hipocrisia do que por devoção, a fim de que o senhor Cardeal lhe concedesse
algum aumento em suas rendas. Disse, mais, que a Missão não teve inimigo maior do que ele, que
dissera dela todo mal que tinha podido imaginar, e até mesmo de sua Eminência. Era um homem muito
dado ao vício, que obtivera um benefício por simonia, que tinha recebido as ordens sem título algum, a
não ser esse benefício, exercera as ordens, administrara os sacramentos, realizara todos os ofícios
paroquiais e permanecera vários anos nesse estado; um homem de negócios e de intrigas, etc. Deus,
porém, enfim, o tocou com muita eficácia: converteu-se, chorou, humilhou-se e deu grandes testemunhos
de sua transformação. Todos os que o viram nesses exercícios espirituais, ou que dele ouviram falar,
ficaram extremamente edificados; e nós não o ficamos menos, como também com todos os outros, que
produziram muitos frutos, cada qual segundo suas precisões.
Não é preciso dizer-vos agora, senhor Padre, quão grande foi a alegria e a consolação que
recebeu sua Eminência. Com toda certeza, as lágrimas que lhe saíam dos olhos, quando alguns desses
padres lhe expressaram seus sentimentos, o podem testemunhar melhor que minhas palavras. Causou isto
uma tal ressonância na cidade e nos arredores, que muitos outros se apresentam para vir fazer o mesmo.

873. – A UMA RELIGIOSA DA VISITAÇÃO

Dia de São Dionísio [1646].

Minha querida Madre,

A graça de N.S. esteja sempre convosco!

Carta 872. – Abelly, op. cit., t.II, cap. IV, 1ª ed., p.290.
.

Carta 873. – Reg. I, f° 34, cópia tirada da minuta autógrafa.


.


. Muito provavelmente Maria Inês Le Roy, superiora do segundo mosteiro de Paris.

2. 9 de outubro.

. Em sua carta de 19 de maio de 1647 à Madre Catarina de Beaumont, São Vicente diz que tentou se desincumbir, sete ou oito meses antes,
das funções que desempenhava junto aos mosteiros da Visitação. Há, portanto, razão para se crer que esta carta é de 1646. A conclusão fica
corroborada pelo fato de que a Irmã Madalena Augustina, a mais nova das filhas de Madame Fouquet, religiosa do mosteiro da Visitação, fez
profissão em 1646.
44

O motivo, minha cara Madre, pelo qual vos solicitei apresentar minhas escusas a Madame
Fouquet por não poder assistir à profissão de nossa cara irmã, sua filha , e que convidassem outro,
escolhido por vós e por ela, foi o retiro que acabo de fazer. Ele me fez ver que não posso satisfazer ao
meu dever para com nossa Companhia e ao serviço que devo a vossa casa. Além do mais, nossa pequena
Congregação tem por regra que não nos apliquemos ao serviço das religiosas, para não nos desviarmos do
serviço que devemos ao pobre povo dos campos. Sendo assim, sinto-me, em consciência, obrigado a
observá-lo, por que, no futuro, não se pautarão tanto pelo teor de nossas regras, mas pelo modo como eu
as tiver observado. Se procedi de outra maneira, não foi sem alguma reserva, embora me tenha prometido
fazê-lo por algum tempo, dada a afeição que tenho por vossa santa Ordem. Se é verdade que tenho
maiores empecilhos, espero que N.S. deles me livrará. Por tudo isso, minha cara Madre, suplico-vos
muito humildemente aceitar de bom coração a resolução que tomei de me retirar, e pensar em algum
outro, para vos servir como pai espiritual. Há muitas pessoas em Paris, cheias do espírito de Deus e do de
nosso bem-aventurado Pai, que vos servirão com muito mais graça de Deus do que eu.

874. – RENÊ ALMÉRAS, PAI, A SÃO VICENTE

[Outubro de 16461].

Quando reflito de que modo e com que acatamento consenti na vocação de meu filho, sem que as
ternuras da natureza me tenham impedido de entregá-lo em vossas mãos; que, desde cerca de dez anos,
não exigi visita alguma, nem dever algum que os filhos prestam aos pais; que jamais lhe falei de sua
vocação, a não ser em termos de aprovação, de alegria e de total apoio; protesto-vos, então, diante de
Deus, que perscruta os corações, que não encontro nada a censurar nos planos que tendes a respeito da
pessoa de meu filho, nos encargos e ofícios que lhe confiais, nem nas viagens que o mandais fazer, ainda
que fossem para as Índias. Creio, com toda certeza, que nada fazeis, em tudo isso, senão para a glória de
Deus. E tendo uma vez, desde a primeira em que vo-lo conduzi, colocado nas mãos de Deus e em vossas
mãos a autoridade paterna que tinha sobre ele, para vos tornar senhor absoluto dela, não posso e nem
devo revogar a oferta que fiz, com tanto agrado e boa vontade. Assim, resta-me apenas rogar a Deus que
lhe abençoe as ações, lhe conceda êxito nas viagens, e a vós, senhor Padre, me reserve alguma parte em
vossas preces.

875. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 13 de outubro de [1646].


. De nascimento, Maria de Maupeou. São Vicente dizia que “se por infelicidade o Evangelho viesse a se perder, encontraríamos seu espírito
e máximas nos costumes e sentimentos de Madame Fouquet”. Acrescentava: “Ela torna a piedade tão amável que anima todo mundo a vivê-
la” (Année sainte, t. I, p. 627). A notícia da infelicidade de seu filho lhe arrancou este grito: “Agradeço-vos, ó meu Deus: eu vos tinha pedido
a salvação de meu filho; foi esse o caminho”.

. Madalena Augustina Fouquet, então com a idade de 16 anos. Do segundo mosteiro, passou para o terceiro, quando da sua fundação. Nele
foi conselheira durante trinta anos e, sucessivamente, diretora, assistente e ecônoma. Três de suas irmãs, Ana Madalena, Elizabeth Angélica e
Maria Teresa eram religiosas no primeiro mosteiro. Uma outra, Luísa Inês, esteve primeiro com ela no segundo mosteiro e, depois, no
terceiro. Morreu em 2 de novembro de 1705, com a idade de setenta e cinco anos. L’Année sainte nos transmitiu a lembrança de suas
virtudes.

. O oficio no Conselho de Consciência.
. São Francisco de Sales.

Carta 874. – Vida manuscrita do Padre Alméras, p. 15 (Cf. Notices, t. III, p. 234)
.

1
1. O autor da notícia impressa data esta carta de 1647. O autor da notícia manuscrita se contenta em dizer que Renê Alméras, pai, a escreveu
“para responder às escusas” que São Vicente “lhe dirigira por ter seu filho ido a Roma sem o avisar, nem despedir-se dele”. Portanto, a
presente carta não deve ser colocada distante da carta 864.
Carta 875. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
.


. O conteúdo exige esta data.
45

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A presente carta é para vos [certificar do que] vos disse pela minha última [carta a respeito] da
pessoa de que se trata  e [também porque] escrevi para Richelieu que o [recebam com] o respeito e a
cordialidade que merece. Usareis dela, nesse caso e em todos os outros, conforme vossa prudência julgar
conveniente. Nosso Irmão Champion me disse a mesma coisa que vós, no tocante à Ascensão e à Cruz de
Nosso Senhor. Será bom que redijais uma palavra de informação a respeito, em vosso nome,
mencionando os erros do personagem, e que colhais os relatos do Padre Alméras e dos outros que lhe
ouviram expressar e sustentar esse erro. Serão necessárias a assinatura vossa e a deles e deveis enviar-me
tudo lacrado.
Fizestes bem em ficar com os cem escudos que vos entregaram; repô-los-emos nesta cidade.
Deveis fazer a visita a Cahors. Se o Padre Delattre estiver destinado para La Rose e o Padre
Testacy para Cahors, avisar-me-eis, a fim de louvarmos a Deus por isso, caso o tenha conseguido. Se não,
para vos enviar alguém, para dirigir La Rose.
Eis o que vos posso dizer no momento, às pressas. Sou, de vós e do senhor Padre Alméras, senhor
Padre, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portais, padre da Missão, em La Rose.

876. – A EDMUNDO DWYER, BISPO DE LIMERICK

[PRIMEIRA REDAÇÃO]

Paris, 15 [de outubro de 1646].

Senhor Bispo,

Eis finalmente oito missionários que [vão partir] para a Irlanda. [Entre eles] cinco são irlandeses,
[um padre e um clérigo francês, e um Irmão inglês. O padre francês vai] dirigir a comunidade, de acordo
com o parecer do falecido Padre Skyddie, que me disse, antes de morrer, pensar que seria bom assim; e o
clérigo aprendeu o canto. Uns e outros temem e amam a Deus e têm zelo pela salvação do próximo, por
graça de Nosso Senhor. Vão lançar-se a vossos pés, senhor Bispo, e se oferecer para servirem Vossa
Excelência Reverendíssima e nossos reverendíssimos prelados, aos quais poderão prestar algum pequeno
serviço, com o tempo. Estamos preparando outros aqui, que vos poderemos enviar quando estiverem
formados, se houver recurso para a sua subsistência, pela atribuição de algum benefício, a fim de não
serem pesados ao povo ao qual pregarão missão. Oxalá, senhor Bispo, fosse eu digno de estar entre eles!


. Francisco du Coudray.

. Havia então dois Champion na Companhia: Luís, clérigo, e Renê, irmão coadjutor. Pensamos que se trata aqui de Luís Champion, recebido
na Congregação da Missão em 12 de abril de 1643, com a idade de vinte anos, admitido aos votos em 17 de junho de 1646. Era, ainda,
apenas tonsurado em 1650 e, contudo, ensinava moral nos Bons-Enfants. Foi superior em Montmirail, de 1652 a 1654, e foi transferido para
a casa de Marselha, onde se encontrava em 1655.
Carta 876. – C. aut. –Dossiê da Missão. Depois de uma primeira minuta, que não o contentou, São Vicente escreveu uma segunda de
.

próprio punho. Apresentamos aqui as duas redações.



. Richard Arthur, Bispo de Limerick, falecido em 23 de maio de 1646, tivera como sucessor seu coadjutor Edmundo Dwyer, que atravessou
os maus dias da perseguição religiosa, dando exemplo de uma fé inabalável e de uma coragem sem igual. Obrigado a se exilar, após a queda
de Limerick, morreu em Bruxelas, dois anos depois, em 1654.

. Mês e ano da partida dos missionários para a Irlanda.

. Os nomes aparecem na carta 877.
46

Deus sabe com que coração eu iria e com que afeto lhe ofereço este pequeno grupo, e a vós, senhor Bispo,
minha perpétua obediência! Suplico-vos, muito humildemente, senhor Bispo, havê-lo por bem.

[SEGUNDA REDAÇÃO]

Tive a honra de dizer a Vossa Excelência Reverendíssima, quando estava nesta cidade, a ordem
que recebera, da parte de nosso Santo Padre, de enviar alguns missionários de nossa Companhia para a
Irlanda. Várias dificuldades nos impediram de enviá-los, há mais tempo. Estão aqui agora oito, senhor
Bispo, que irão prostrar-se a vossos pés e vos pedir vossa santa bênção.
Falam-nos aqui maravilhas sobre a conduta de Vossa Excelência, senhor Bispo, e que dela,
unicamente, depois da de Deus, procedem os felizes êxitos da religião e do Estado nesse país. Meu Deus,
senhor Bispo, não há dificuldade alguma para crer naqueles que tiveram a felicidade de se aproximarem
de Vossa Excelência, como eu, que jamais me separava de junto de vós sem o pensamento de que a ação
de Deus e seu espírito habitam em vós. Se for do agrado de Nosso Senhor levar a bom êxito o projeto,
segundo vossas santas intenções, vossa memória ficaria imortalizada, na terra e no céu. É o que peço a
Deus, senhor Bispo. Que ele me dê a honra de beijar as mãos sagradas de Vossa Excelência
Reverendíssima, prostrado em espírito a seus pés, a mim que sou, no amor de Nosso Senhor, e de sua
Santa Mãe...

877. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM LA ROSE

[Paris, 20 de outubro de 1646].

Senhor Padre,

Fiquei muito contente com vossas últimas cartas escritas de Cahors, e aguardo o resultado. Eu
mesmo vos escrevi duas vezes para Cahors. Depois de ter respondido a vossas questões, dizia-vos,
ademais, o que penso que devíeis fazer em La Rose; em especial, empenhar-se no sentido de que o
personagem em questão venha a Richelieu, e veremos se será necessário mandá-lo vir até aqui.
Vejo com clareza, pelo modo com que me falais a respeito do Padre Testacy, que importa não
tentar o que vos escrevi em minha última carta, qual seria confiar-lhe a direção de La Rose ou a de
Cahors. É preciso esperar que Nosso Senhor faça o que for melhor. Estava pensando em enviar para lá o
Padre Lucas ou o Padre Grimal, ou então o Padre Le Soudier, o mais jovem , que estou duvidando possa
ir para a Barbária, pois um franciscano se antecipou a ele, tomou-lhe a dianteira e a condição que lhe
estava destinada em Salé. Uma palavra sobre vosso parecer a cerca de tudo isso, por favor, o mais
brevemente que puderdes.

. São Vicente teve dificuldade para encontrar a frase adequada. Escrevera de início “com que coração eu trabalharia, segundo as
determinações com as quais aprouvesse a Vossa Excelência Reverendíssima honrar-me”; depois, “com que coração iria sujeitar-me a vós,
senhor Bispo”.

. Quando terminou sua segunda minuta, o Santo, insatisfeito, riscou tudo que escrevera, exceto as palavras que precedem, e substituiu a
parte riscada pelo que se segue.
.
Carta 877. – Pémartin, op. cit., t.I, p. 591, carta 505. Tirou seu texto do original, em poder do senhor Charavay.

. Nenhuma dúvida de que esta carta seja de outubro ou de novembro de 1646. Durante esses dois meses, o Santo escreveu semanalmente ao
Padre Portail. Temos suas cartas de 6, de 13 e de 27 de outubro, assim como as de 3, de 10 e de 23 de novembro, que foi seguida pela do dia
primeiro de dezembro. A carta acima parece, portanto, que deve ser colocada ou no dia 20 de outubro, ou no dia 17 de novembro. As duas
primeiras frases levariam à preferência por esta última data. Decidimo-nos por esta última hipótese. A dificuldade, que as primeiras linhas
levantam, provavelmente se esvaziaria, se pudéssemos consultar o original. O senhor Charavay escreve em seu catálogo, referindo-se a esta
carta: “Rasgão em um ângulo, levando um certo número de palavras”. O Padre Pémartin cometeu o erro de suprir as palavras que faltaram
por palavras de sua escolha, sem enquadrar, em colchetes, o que supunha do que lia. Suspeitamos que escreveu Cahors onde constava La
Rose e duas vezes onde deveria estar duas ou três vezes.

. Francisco du Coudray.
,
. Jacques Le Soudier.
47

O Padre Barry, o Irmão [O’Brien], o Irmão Leclerc e nosso Irmão Patriarche partiram para a
Irlanda e devem levar os Padres Le Blanc e Duiguin , e o Irmão Vacher, de Le Mans, e talvez o Padre
Bourdet, da Bretanha. Urgiram conosco, neste sentido, Roma e os prelados do país. Não poderemos
abrir nenhuma outra fundação, durante muito tempo, pois dispusemos de todos que estavam em condição
de trabalhar.
Acho que tendes razão em mandar o Padre Alméras partir para Annecy, se sua saúde lhe permite
enfrentar a viagem. Contudo, estou atento ao que me observais, e podeis dizer-lhe que, se sentir alguma
tendência a experimentar as fadigas do ano passado, é melhor permanecer pouco tempo em La Rose e ir
para Richelieu, onde ficará, pronto para voltar. Envie algum outro para Annecy e para as outras Casas,
que pedem sem cessar pela visita. O principal ao que vos peço estar atento, no caso, é a saúde; Nosso
Senhor proverá ao resto.
Ficareis sabendo em Marselha da falta que cometeu o Irmão Barreau, cônsul em Argel, ao se
obrigar ao pagamento de quarenta mil libras pelo resgate de um cativo, contra a proibição expressa que
lhe fora feita. Esta questão nos aflige. E o que é mais amolante é que o Padre Nouelly o tinha
conjurado a não fazê-lo, uma hora antes. Peço-vos que mandeis cada um da comunidade de La Rose
celebrar uma missa nessa intenção, como também pela missão da Irlanda.
Fomos estabelecidos de novo em Saint-Méen, por ordem do Rei, mas não sei se isso vai durar.
Acabamos de fazer nossos retiros com fruto, pela graça de Deus, em cujo amor sou...

878. – AO MARQUÊS DE MIREPOIX, GOVERNADOR DO CONDADO DE FOIX

Paris, 20 de [outubro de 1646].


. Edme Barry nasceu na diocese de Cloyne, na Irlanda, em 24 de junho de 1613. Foi ordenado padre em Cahors, em 1639, e recebido na
Congregação da Missão em 21 de julho de 1641. Fez os votos em São Lázaro, alguns dias antes de partir para a Irlanda, de onde voltou em
1652, depois da tomada de Limerick pelo exército de Cromwell. Dirigiu o seminário da diocese de Montauban de 1656 a 1664, e de 1675 a
1680, ano de sua morte.

. O Padre Pémartin escreveu Aubriez. Trata-se com certeza do irlandês Dermot O’Brien, nascido em Emly. Ingressou na Congregação da
Missão em 23 de outubro de 1645, com a idade de 24 anos, e faleceu, já padre, em novembro de 1649.

. Pierre Leclerc, irmão coadjutor, nascido em Meaux em 24 de junho de 1624. Entrou na Congregação da Missão em 28 de abril de 1644, e
fez os votos em 21 de novembro de 1646.

. Salomão Patriarche, nascido na Ilha de Jersey. Entrou na Congregação da Missão, como irmão coadjutor, em 24 de julho de 1642, com a
idade de 22 anos. Fez os votos em 1646. Voltou para a França depois de perturbações mentais. Foi colocado em Saint-Méen, e perdeu
completamente o uso da razão em 1651.

. Dermot Duiguin (ou Duggan), nascido na Irlanda. Entrou, já padre, na Congregação da Missão em 26 de agosto de 1645, com a idade de
25 anos. Voltou para a França em 1648, mas para tornar a partir, dois anos depois, para a Escócia, onde passou o resto da vida, no meio de
inúmeros perigos, animado pelo zelo dos apóstolos e pela coragem dos mártires. Morreu, em 17 de maio de 1657, na Ilha de Uist, onde uma
antiga capela traz ainda seu nome e comemora sua lembrança (Notices, t, III, pp 114-121).

. Filipe Le Vacher, nascido em Ecouen (Seine-et-Oise), a 23 de março de 1622. Entrou na Congregação da Missão em 5 de outubro de 1643
e fez os votos em 5 de agosto de 1646. Chamado de volta para a França em 1649, foi enviado para Marselha. Lá, foi ordenado padre em 2 de
abril de 1650 e embarcou para Argel com os títulos de Vigário Apostólico e de Vigário Geral de Cartago. De volta para a França em 1657,
fez coleta em favor dos escravos. Sua ausência, que devia ser de alguns meses, durou dois anos. Tornou a partir em setembro de 1659,
retornou de novo ao seu país, depois, acompanhou a Argel em 1661 o Irmão Dubourdieu, que ia substituir o Irmão Barreau, cônsul da França
nessa cidade. Pagou as dívidas deste último, pôs em ordem diversos negócios e deixou definitivamente a Barbária em 1662, em companhia
de setenta e cinco escravos, que acabava de resgatar. Foi colocado na casa de Fontainebleau, onde levou até 5 de agosto de 1679, dia de sua
morte, uma vida das mais exemplares (Notices, t. III, p. 595-606).

. Abelly nos conservou (op. cit., t. II, p. 187) os conselhos que São Vicente deu de viva voz aos missionários que o deixaram para ir
trabalhar na Irlanda. Depois de uma parada forçada em Nantes, onde ocuparam os tempos de folga junto aos pobres e doentes, embarcaram
num navio holandês, que os conduziu sem incidente ao término da viagem. Lá, se dividiram em dois grupos, para evangelizar, alguns, a
diocese de Limerick, os outros, a de Cashel.

. O Irmão Barreau cometera a fraqueza de se comprometer em favor de um religioso mercedário, o Padre Sebastião Brugière, o qual,
depois de se haver imprudentemente, coberto de dívidas para resgatar escravos, foi perseguido pelos credores, lançado numa masmorra, com
proibição de sair (Dan, Histoire de Barbarie et de ses corsaires, Paris, 1649, p.151; Documents algériens, Certificat des souffrances du Père
Sébastien, na Revue africaine, t. XXXV, 1891).

. Superior do Irmão Barreau.
.
Carta 878. – C. aut. – Dossiê da Missão, minuta.

. Os contornos das partes atacadas pela umidade do documento original mostram que esta carta deve ser aproximada das cartas escritas nos
três últimos meses do ano 1646. É, muito provavelmente, de 20 de outubro.
48

Prezado Senhor,

A graça de Nosso Senhor esteja [sempre convosco!]


Reitero aqui a [oferta de minha] obediência com toda a humildade e afeto a mim possíveis.
Suplico-vos muito humildemente se digne acolhê-la, assim como a humilíssima súplica que vos faço, no
sentido de considerar o senhor Bispo de Pamiers  como um dos bispos mais zelosos da glória de Deus,
que eu conheço, no reino. Teve ciência da honra que me dispensais, reconhecendo-me como vosso
servidor e deseja muito que vos torne ciente de que vos estima e afeiçoa, para além de tudo que seria eu
capaz de expressar-vos, e que almeja entender-se convosco, meu senhor, nas questões que dizem respeito
ao serviço de Deus, em sua diocese, cujo território está dentro de vossa jurisdição. Embora o tenha
assegurado de que ele não precisa de mediador, [pois que tendes] o espírito plenamente eclesiástico, não
deixo, contudo, de vos [escrever, conforme o de]sejo do referido senhor Bispo. A experiência [mostra
que], na medida em que os bispos e governadores[vivem em boa] harmonia, o reino de Jesus Cristo [se
estabelece fir]memente nas almas e que, [em caso contrário], os negócios do bom Deus [não]
caminham[bem].
Ele tem desavença com os eclesiásticos associados de sua diocese; com um, entre

outros [poderosa]mente apoiado por algumas pessoas de condição, que favorecem a impunidade desses
escândalos. Seria coisa digna de vossa incomparável piedade, meu senhor, se houvésseis por bem mandar
dizer-lhe, de vossa parte, que se submeta às ordens do seu prelado e que viva de tal modo que Sua
Excelência não seja obrigado, em consciência, a agir contra ele. E Deus, meu senhor, talvez abençoe
vossa intermediação, não somente a respeito desse eclesiástico, mas também em relação a muito outros,
que se encontram quase no mesmo estado.
Prezado senhor, parece-me que isto merece ser feito, com certeza, e já dou graças a Deus pela
vossa mediação. Suplico-vos, outrossim, meu senhor, considerar-me como a pessoa do mundo [sobre a
qual tendes] poder absoluto. E [se vos posso servir em] alguma coisa, honrai-me [com vossas ordens, vos]
suplico.
Rogarei, entretanto, a Nosso Senhor [vos abençoe], cada vez mais. Sou, em seu amor, vosso servo.

879. – A UM PADRE DA MISSÃO1

Paris,... outubro de 16462.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


. Francisco de Caulet, sagrado Bispo de Pamiers em 3 de março de 1645.

. Provavelmente o arcipreste de Ax. (Cf. Doublet Georges, François de Caulet, évêque de Pamiers, et la vie ecclésiastique dans un diocèse
ariégeois sous Louis XIV, Foix, 1896, in-8°, p. 39 e seguintes.
.
Carta 879. – Reg. 2, p. 289; dossiê da Missão, minuta autógrafa. A minuta sofreu deteriorações do tempo. Como, com muita probabilidade,
o copista do registro 2 tirou seu texto do original, é esse texto que seguimos aqui, embora colocando em nota as variantes da minuta.
1
1. A minuta não dá nenhuma indicação sobre o destinatário da carta. O registro dois observa que é dirigida “a um padre da Companhia que a
deixara sob pretexto de enfermidade”. O manuscrito de Avinhão, que também a reproduz, traz: “A M. N. em Le Mans”. Se esta última
informação é exata, como, na ocasião, só estavam em Le Mans, ao menos de nosso conhecimento, os Padres Gallais, Le Blanc e Cuissot, e já
que, por outro lado, como o indica o conteúdo da carta, o destinatário não era superior e fizera os votos, o nome de Gilberto Cuissot parece
impor-se. É o que pensa o autor da notícia a seu respeito (Notices, t. II, p. 87). Entretanto, a conclusão não concorda muito com o registro 2.
Nele vemos, com efeito, que esta carta e a carta 896, de 24 de novembro, tiveram o mesmo destinatário. Ora, a carta 896 não pôde ser
dirigida a Gilberto Cuissot que estava, então, em São Lázaro, como resulta do cotejo das cartas 891, 899 e 900.
Dois missionários abandonaram a Companhia em novembro: Jean Bourdet, superior em Saint-Méen, e Tomás Berthe. As cartas
879 e 896 não se podem aplicar a Jean Bourdet, a quem São Vicente oferecia a direção da Missão da Irlanda. Não conviriam, porém, a
Tomás Berthe, que São Vicente teve o pensamento de enviar a Cahors, e que, colocado em Sedan, voltou para seus familiares, por despeito
de não ter sido nomeado superior? (Cf. c. 888).
2
2. Na minuta, o canto onde estava a data desapareceu. O registro 2 só aduz o mês e o ano. Somente o manuscrito de Avinhão assinala o dia;
mas suspeitamos muito que o copista escolheu o dia primeiro de outubro sem fundamento sério. A carta parece mais bem situada no fim do
mês do que no início.
49

Podeis imaginar a aflição que vossas cartas me trouxeram, em razão do afeto que tive por vós e
terei por toda a minha vida. Todas as razões que me alegais estão fundadas em vossa indisposição e na
esperança que tendes de melhorar nos vossos ares natais, aos quais estais querendo voltar, a fim de
cumprir as promessas3 que fizestes a Deus. Permiti que vos diga, senhor Padre, que não é tão grande
vantagem para nós viver por longo tempo, mas caminhar na vocação à qual Nosso Senhor nos chamou,
segundo o conselho do Apóstolo, e manter-nos firmes no que a Deus prometemos. “Vovete et reddite Deo
vestro”4(Fazei votos a Javé, vosso Deus, e cumpri-os). Além disto, pensais 5 que os ares natais
prolonguem os dias de vossa vida para além do número que Deus deles estabeleceu em sua conta? Ó
Deus! senhor Padre, como um pouco do ânimo daqueles que vão enfrentar as doenças e se expor à morte,
por vaidade, nos exércitos, seria de proveito para a nossa piedade! Três pessoas da Companhia 6 se
deixaram lisonjear por essa esperança de que iriam melhorar de saúde em sua terra. A primeira 7 nela
apressou a sua morte: morreu três dias após ter retornado. Foi o caso do Padre Perdu. O Padre Senaux 8
passou quatro meses na casa dos seus pais 9, onde não encontrou melhorias. O Padre Dubuc 10101010, que
está atualmente entre os seus, me comunica 1111 que está mal, da mente e do corpo. Talvez aconteça de
modo diferente convosco. Seja como for, não vejo, como acabo de vos dizer, que haja motivo para
dispensa1212, no caso, nem, por conseguinte, de segurança para vós. E deveis suspeitar disto tanto mais
quanto a raiz de vossa resolução vem do fato de que fostes lisonjeado pela expectativa do superiorato.
Mas, como as coisas aconteceram de outro modo, vosso espírito desejou sair, primeiramente, do lugar
para onde o tínhamos enviado1313; posteriormente, a tentação vos impeliu para mais além, e vos levou a
sair da Congregação. Com efeito, aí está o fundo da questão, embora a natureza trapaceira vos tenha
levado a ver o contrário. Se tivésseis menifestado 1414 este sentimento oculto às pessoas de quem pedistes
o parecer, provavelmente vos teriam aconselhado a não sair 1515, sobretudo se lhes tivésseis falado do
cuidado que aqui temos, graças a Deus, com as pessoas enfermas, não somente no que toca à alimentação
e aos remédios, mas também no que diz respeito às mudanças de lugar e de ofícios. A propósito, escrevi
ao senhor Bispo1616 de Cahors1717, um dia antes de receber vossa carta, que vos destinávamos para ir
assumir a direção do seminário dele1818. Assim sendo, voltai, senhor Padre, eu vos conjuro, pela
promessa que fizestes a Deus de viver e morrer na Companhia, e pelo adorável julgamento que fará de
vossa alma, na hora da morte. Tendes dois exemplos notáveis, na mesma Companhia, de duas pessoas
que, tendo cedido à tentação de sair, voltaram logo atrás e retornaram1919. Um partiu para abrir um
estabelecimento em seu país2020, com mais sete ou oito companheiros, o outro2121 trabalha com bênção
(de Deus), e lhe temos a mesma confiança que antes; a confiança que teremos igualmente em vós, porque
conheço a bondade de vosso coração, que peço a Deus santifique cada vez mais. E sou, em seu amor...

3
3. Texto da minuta: fazeis questão de cumprir a promessa.
4
4. Sl 75,12.
5
5. Minuta: pensais, senhor Padre.
6
6. Minuta: da casa.
7
7. Minuta: desta esperança que levariam para sua terra, da qual a primeira...
8
8. Nicolau Senaux, nascido em Auffay (Seine-Inférieure) em 9 de maio de 1619. Entrou na Congregação em 12 de Junho 1639, foi ordenado
padre em 20 de fevereiro de 1640, fez os votos em 23 de março do mesmo ano. Faleceu em Troyes em 28 de março de 1658. São Vicente
faz um belo elogio de sua regularidade, de sua resignação e do seu espírito de indiferença, em uma carta de 12 de abril de 1658 e na
conferência de 28 de junho seguinte.
9
9. Minuta: quatro meses em sua terra.
10
10. Luís Dubuc, nascido em Eu (Seine-Inférieure), recebido na Congregação em 1636.
10

11
11. Minuta: e o Padre Dubuc, que lá está, no momento, me comunica.
12
12. Minuta: Talvez aconteça de outro modo convosco. Peço a Nosso Senhor Jesus Cristo que assim seja, e lhe pedirei todos os dias de
minha vida. Segundo o que acabo de vos dizer, não vejo que haja razão para dispensa, no caso.
13
13. Sedan. A palavra se encontra, com todas as letras, na minuta, mas riscada.
14
14. Minuta: e se tivésseis feito ver.
15
15. Minuta: eles vos teriam aconselhado diferentemente.
16
16 Minuta: senhor Padre.
17
17. Alain de Solminihac.
18
18. Minuta: de sua missão.
19
19. Minuta: os quais tinham cedido à tentação, voltaram logo atrás, e retornaram para a Companhia, dos quais um...
20
20. Na Irlanda.
21
21. Marcos Coglée.
50

880. – NICOLAU PAVILLON, BISPO DE ALET, A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Estou agora vos devolvendo o Padre Féret, que tivestes a bondade de emprestar-me, por alguns
anos. Rendo-vos, por isto, muito humildes agradecimentos, reconhecendo sinceramente que vos fico
devedor de um favor todo especial. Ele prestou enormes serviços a Deus nesta diocese, e nela espalhou,
por suas instruções e pelo testemunho de suas virtudes, o bom odor dos bons exemplos, em todas as
situações. Por esta razão, todos têm para com ele um grande amor e é chorado por todos. Volta para se
colocar inteiramente à vossa disposição, em espírito de indiferença, para se entregar a uma total
submissão aos vossos conselhos e decisões, no que julgardes dever empregá-lo. Tem tudo para obter feliz
êxito e buscar com proveito o serviço de Deus e da Igreja. Reconhecê-lo-eis, como espero, pela
experiência, muito mais do que sou capaz de vo-lo exprimir. Embora sintamos que a perda para esta
pobre diocese é muito grande, aceitamo-la, contudo, com mansidão e paciência, como vinda da bondosa
e paternal mão de Deus, que nos dá e tira conforme lhe apraz. Ele há de vos confiar todas as nossas
pequenas necessidades, para as quais vos suplico muito humildemente conceder-nos vossa assistência.
Espero que o façais, senhor Padre, com tanto maior agrado, quanto sabeis que dizem respeito ao
restabelecimento do serviço de Deus e da disciplina de sua Igreja. O Padre Féret vos informará mais
claramente de todos esses negócios e dos expedientes possíveis para resolvê-los. Não duvido, senhor
Padre, de que vosso zelo e habilidade, unidos ao crédito que Deus vos concedeu, não contribuam muito
para o seu progresso. É o que me obriga a implorar-lho, nesta oportunidade, assim como imploro vossas
preces e sacrifícios em favor de nossas extremas necessidades espirituais. Suplicarei, em contrapartida, a
Nosso Senhor, vos cumule das mais santas bênçãos, e a vós, a honra de me crer, cada vez mais, em seu
amor, senhor Padre, vosso muito humilde e muito obediente servo,

NICOLAU,
Bispo de Alet.
Alet, 25 de outubro de 1646.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Congregação dos padres da Missão.

881. – A ESTÊVÃO BLATIRON

Paris, 26 de outubro de 1646.

Senhor Padre,

A graça do Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não recebi carta vossa esta semana, e não posso interromper as minhas para vós. Experimento tão
grande alegria ao ler vossas cartas, e em saber das notícias de vossos trabalhos, que vos peço, senhor
Padre, escrever-me sempre que houver correio. A alegria não é só minha. Partilho com toda a Companhia,
sempre que há algo especial, e aproveito a oportunidade para vos recomendar às orações de cada um.
Vejo como bom o motivo do senhor Cardeal Arcebispo 1, no sentido de não vos conceder o alívio
em vossos trabalhos, considerando-o à luz do seu zelo, ou 2 t2 das disposições e entusiasmo presentes do
.
Carta 880. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
.
Carta 881. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. O Cardeal Durazzo.
2t
2. O Santo escrevera primeiro: ou mesmo; reflexão feita, riscou a segunda palavra.
51

povo. Mas é preciso olhar ambém para o futuro, e conservar os operários, em favor da duração dos
trabalhos. Fazei, portanto, ainda, por favor, alguns esforços na linha dessa moderação. Se o senhor
Cardeal insistir, tende ao menos o cuidado de agir com menos ardor, no púlpito e em outras funções. Falai
com o povo mais familiarmente, e em tom mais moderado, fazendo com que se aproximem de vós. Com
efeito, a virtude, afinal, não está nos extremos, mas na discrição; eu a recomendo, quanto me é possível, a
vós e ao senhor Padre Martin.
O Padre Portail irá logo estar convosco. Encontra-se ainda em La Rose, mas prestes a partir para
Marselha, e depois para Gênova.
Nosso Irmão Pascoal3 ainda não chegou; quando chegar, recebê-lo-emos da maneira como pensais
e ele o deseja.
Saúdo vossa querida alma e vosso rebanhozinho, com uma consolação e ternura toda especial do
meu coração, prostrado diante dos pés adoráveis de Nosso Senhor. Suplico-lhe vos acolha a todos sob sua
proteção e vos anime cada vez mais do seu espírito e do seu amor, no qual sou, senhor Padre, vosso muito
humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, padre da Missão, em Gênova.

882. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 27 de outubro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta, escrita de Cahors. Ela me impele a render graças a Deus por tudo que me
dizeis e por todos os bens que Deus opera por vós. Peço a sua divina bondade continue a dispensar-vos
suas luzes e inspirar-vos sua conduta, para o bom êxito do que vos resta fazer, como aconteceu no que já
fizestes.
Escrevi para Richelieu, no sentido de acolherem o Padre Coudray e de que ele permaneça lá, até
que o andamento das coisas nos leve a dispor de outro modo. Quanto ao mais, no que diz respeito a La
Rose e a Cahors, nada posso concluir antes de terdes finalizado tudo, e que tenha conhecimento do vosso
parecer.
Peço ao Padre Alméras que vá para Annecy, já que suas disposições o permitem 1, e vós, senhor
Padre, para Marselha, depois de ter terminado tudo onde estais.
O Padre Brin e outros 4 ou 5 de nossos irlandeses 2 partiram para a Irlanda. O Padre Bourdet deve
ir juntar-se a eles em Nantes, e assumir a direção deles. O Irmão Vacher3 , que estava em Le Mans, é do
número deles, e o Irmão Patriarche, também. Recomendo-os a vossas orações.
Temos agora o Padre Lambert como superior do colégio 4, e o Padre du Chesne está em missão com o
senhor Bispo de Tréguier5. O Padre Bécu6 nos fica ajudando aqui, de onde a maior parte de nossos padres
estão partindo, presentemente, para as missões. O Padre Bajoue fica por aqui, para fazer o Seminário
Interno.

3
3. Jean Pascoal Goret.
.
Carta 882. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Sua saúde.
2
2. Ver os nomes na C. 877.
3
3. Filipe Le Vacher.
4
4. No Seminário Bons-Enfants.
5
5. Balthazar Grangier de Liverdi.
6
6. Jean Bécu.
52

Tornamos a enviar para Le Mans o Padre Alain com alguns outros, e chamamos de volta o Padre
Cuissot, por causa de sua enfermidade7. Seu sobrinho8 foi para Saintes, com o Padre Perraud e o Irmão
David9.
Não posso estender-me mais, dada a pressa para a reunião do conselho. Suplico-vos, senhor Padre,
recomendar minha alma a Nosso Senhor. Ela estima a vossa muito intimamente. Sou, no amor de Nosso
Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Cahors.

883. – A FRANCISCO PERROCHEL, BISPO DE BOULOGNE

Paris, 31 de outubro de 1646.

Senhor Bispo,

Agradeço a Deus por todas as graças que ele vos concede, e que, por vosso intermédio, concede às
almas a vós confiadas e, em geral, a toda a sua Igreja. Rogo a sua divina bondade a santifique cada vez
mais.
O senhor de Villequier1 falou maravilhas de seu bispo à Rainha e ao senhor Cardeal 2; por isso,
quando se referem a bons bispos, costumam nomear os senhores Bispos de Boulogne e de Alet 3. Por esta
razão, senhor Bispo, penso que vos servireis de todos os meios imagináveis, para manter esse bom
entendimento entre vós dois e, para esse fim, também com os que tomam conhecimento de vosso Hospital
Geral. Manifestei meus pequenos pensamentos a respeito ao senhor Abade de Colugri, que vo-los poderá
transmitir.
Vossa última carta faz menção da sobrecarga que tendes com as regiões conquistadas 4, e a
dificuldade de realizar nelas o que é preciso, pela insuficiência de renda; falarei sobre isto com a Rainha a
fim de que lhe apraza tomar as devidas providências, por outros meios.
Quando digo aqui que fazeis vossa visita com seis pessoas, com tração por um só cavalo, todos se
espantam e ficam admirados. Oh! Como é rico o bispo que suscita a admiração não somente de todos os
que veem, mas até dos que ouvem falar do tesouro de suas virtudes! É de suma importância que o mundo
publique, como mais estimável, a santa pobreza de um bispo que conforma a própria vida à de Nosso
Senhor, o bispo dos bispos, do que as riquezas, a comitiva e a pompa de um bispo possuidor de grandes
bens.
O que digo, senhor Bispo, não impedirá que aproveite a ocasião para representar vossas eventuais
necessidades.
Prostro-me em espírito a vossos sagrados pés e suplico vossa santa bênção, eu que sou, no amor de
Nosso Senhor, senhor Bispo, vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
7
7. Estava sujeito a acessos de febre quartã.
8
8. Jean Cuissot.
9
9. David Levasseur, irmão coadjutor nascido em Dancé (Orne) em 1608, recebido na Congregação da Missão em 2 de janeiro de 1638.
.
Carta 883. – C. aut. – Original em Panningen (Holanda), na casa dos padres da Missão.
1
1. Antônio, Marquês de Villequier, posteriormente Duque de Aumont, Governador da cidade e do território de Boulogne, nascido em 1601,
Marechal da França em 1651, feito duque e par em 1665. Faleceu em 11 de janeiro de 1669.
2
2. O Cardeal Mazarino.
3
3. Nicolau Pavillon. Os dois prelados se tinham conhecido em Paris. Frequentaram juntos as Conferências das Terças-feiras e pregaram
juntos mais de uma missão.
4
4. Sobre os espanhóis. Esta parte da diocese de Boulogne era muito pobre e frequentemente devastada pelas guarnições espanholas de Saint-
Omer, Aire e Renty, que pilhavam as igrejas e até mesmo as incendiavam.
53

indigno padre da Missão.

884. – A JEAN MARTIN

Paris, dia de finados1 [16462].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Escrevo-vos às pressas, mas não sem grande consolação por todas as coisas que me escrevestes,
pelo que vos agradeço. Peço a Nosso Senhor conceder-vos a plenitude de seu espírito, para difundi-lo por
vosso meio sobre esses eclesiásticos que sua divina Providência coloca sob vossa conduta. Crede-me,
tende grande confiança nele e não vos admireis de perceber em vós alguma incapacidade; pois será isto
um bom sinal e um meio necessário para a operação da graça que Deus vos destinou. Não cessaremos de
orar por vós. Mandarei que vos enviem os regulamentos e as práticas do seminário, para vos facilitar
nestes começos. Suplico-vos, sobretudo, cuidar de vossa saúde e de ter este mesmo cuidado com o Padre
Blatiron e demais, que eu saúdo afetuosamente, em especial vossa cara [pessoa] 3, por quem tenho a
consideração que Deus sabe. Peço a Nosso Senhor o cumule de suas graças e do seu amor, no qual e pelo
qual sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,
VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

885. – A ESTÊVÃO BLATIRON

Paris, 2 de novembro [16461].

Bendito seja Deus, senhor Padre, por tudo [que] me tornais a dizer e que já me tínheis escrito!
[Peço-lhe] seja ele mesmo seu próprio agradecimento por [todo bem] que vos dispensa de todos os modos
que [me comunicais]. Meu Deus! senhor Padre, vejo como um grande bem que Deus, por sua graça,
dirige vossa família, por vosso intermédio.
A minha única aflição é a vossa querida saú[de. Em nome de] Deus, senhor Padre, poupai-a ao
longo [dos trabalhos em que] vos deseja ocupado, e consolai-me com [vossas notícias em] todas as
ocasiões que tiverdes.
Ordenamos a partida de sete missi[onários para] a Irlanda e escrevera ao Padre Bourdet na
Bretanha que completasse o oitavo. Estou em dúvida se ele poderá ir.
Deus abençoa sempre mais a conduta e os trabalhos do Padre Guérin, em Túnis; e nosso cônsul de
Argel2 assumiu a hipoteca de 7 mil piastras pelo resgate feito e não pago de vários cativos. Estamos, por
isso, preocupados; mais preocupados ainda com relação a uma certa pessoa da Companhia 3, que não o
Padre C[odoing], o qual se deixou levar por algumas opiniões não ortodoxas e, o que é pior, nelas se
obstina. Crê que Nosso Senhor ainda não subiu ao céu, e diz que nem Roma, nem os Concílios, nem os
.
Carta 884. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. 2 de novembro.
2
2. Foi em 1646 que Jean Martin começou a ocupar-se dos ordinandos de Gênova.
3
3. Palavra esquecida no original.
.
Carta 885. – C. aut. – O original pertence às Filhas da Caridade espanholas de Madri, rua de Jesus. O canto superior da carta foi avariado
pela umidade.
1
1. O ano não deixa dúvida alguma; foi escrito antigamente no dorso da carta e é exigido pelo conteúdo.
2
2. O Irmão Jean Barreau.
3
3. Francisco du Coudray.
54

Padres entenderam bem a Escritura Sagrada; e outras fantasias similares. Estamos aflitos sobre o que
faremos. A curiosidade acerca da língua hebraica e dos rabinos o meteram nas extravagâncias que
sustenta. Pensam4 que será preciso mandá-lo embora da Companhia, se não recuar dos seus erros; e
seremos constrangidos a fazê-lo. Ó senhor Padre, como a vaidade do espírito é um estranho demônio!
Recomendo este assunto a vossas orações.
Temos em nosso seminário dos Bons-Enfants setenta padres, entre os quais está até um bacharel; o
seminário da Companhia, aqui, está com cerca de trinta. Deus abençoa a uns e outros Rogo-lhe abençoe
os vossos de Gênova. Em seu amor e no de sua Santa Mãe, sou, de vós e do padre Martin, o qual eu
saúdo, prostrado em espírito aos seus pés e aos vossos, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, padre da Missão, em Gênova.

886. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 3 de novembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


[Estou] surpreso por não ter recebido cartas vossas, relativas ao que fizestes em Cahors, tanto no
que se refere ao senhor Bispo, quanto ao que [diz respeito à boa] ordem e direção da Casa. Não posso
acreditar [de modo algum] que não me enviastes a relação, [a menos que] as coisas não tenham chegado
ao fim [e que vós] o aguardais. Seja como for, [desejo muito] saber o que fizestes por lá. De que maneira,
se retornastes para La Rose, procedestes, quanto ao que falta, para recolocar em ordem essa casa.
Tive notícia de que o Padre Coudray chegou... Quando estiver em Richelieu, comunicar-vos-ei o
que acontecerá a respeito dele1.
Entrementes, vou esperando vossas notícias e o auxílio de vossas preces e santos sacrifícios por
mim e por todas as necessidades da Companhia.
Prostrado aos vossos pés, abraço em espírito vossa querida alma, pela qual tenho grande
consideração diante de Deus, em cujo amor sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em La Rose.

887. – A JEAN DEHORGNY, SUPERIOR EM ROMA

Paris, 8 de novembro de 1646.

Senhor Padre,
4
4. Primeira redação: O padre penitenciário diz.
.
Carta 886. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. O secretário havia escrito antes: quando ele estiver em Richelieu e que eu souber o que acontecerá a seu respeito, avisar-vos-ei sobre
isso. A frase não agradou o santo. Ele suprimiu as palavras: e que eu souber o que acontecerá a seu respeito e acrescentou de próprio punho:
o que acontecerá a respeito dele.
.
Carta 887. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
55

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não recebi carta vossa esta semana. [Eis] o assunto da presente: o Parlamento de Rennes se [viu]
obstruído pelos decretos do Conselho que cassa os dele e intima pessoalmente o p[rocurador] geral e o
comissário que executou os decretos [desse] Parlamento contra nós. Promulgaram afinal um d[ecreto no]
qual se diz entre outras coisas que o s[enhor] Bispo de Saint-Malo só poderia nos esta[belecer em] Saint-
Méen pelas bulas do Papa, dirigidas aos Estados da província e verificadas n[o Parlamento] de Rennes 1.
O Padre Codoing, atualmente em S[aint-Méen, está à frente] da comunidade, fundada por decreto [do
Conselho], executado por um oficial do Conselho de Estado2, na presença do senhor Bispo de Auguste,
coadjutor de Saint-Malo3, irmão do senhor Marechal de Villeroi, Governador do Rei 4, que conduz este
negócio. Trata-se, para se permanecer em plena paz, de obter em Roma bulas de união da mesa religiosa
de Saint-Méen ao seminário erigido pelo referido senhor Bispo de Saint-Malo, cuja direção é confiada em
caráter perpétuo à5 Congregação dos padres da Missão. Mando aqui a história, e em seguida as razões.
O senhor Bispo de Saint-Malo, vendo o estado miserável da maior parte dos eclesiásticos de sua
diocese, obteve permissão do Rei, conforme as disposições de nossos reis e do Concílio de Trento, de unir
a mesa dos religiosos ao seminário de eclesiásticos que instituíra em Saint-Méen, no qual havia 12
eclesiásticos. Entregou sua direção aos padres da Missão. As cartas patentes do Rei foram dirigidas e
verificadas no Conselho-Mor, e a união consumada pelo referido senhor Bispo de Saint-Malo. O
Parlamento, estimulado pelos religiosos reformados de São Bento e irritado por ter o senhor Bispo de
Saint-Malo feito com que as cartas patentes fossem dirigidas ao Conselho-Mor, provocou toda espécie de
violências sobre as quais vos escrevi. Finalmente, vendo que o Conselho do Rei era inteiramente
contrário, buscou um meio de se colocar, de certo modo, a coberto. Arranjaram esse expediente no
sentido de nos viabilizar uma acomodação com esses reverendos Padres, ou de nos estabelecer segundo
seu modo de ver. Foi o que o primeiro presidente disse ao senhor Bispo de Rennes 6, que me escreveu a
respeito.
Além da indisposição de Roma contra as uniões, vereis ainda a oposição do lado desses
reverendos. Alegarão que o Concílio e os reis da França ordenam que os bispos anexem benefícios aos
seus seminários, mas entendem que não sejam benefícios dependentes das Ordens religiosas, mas apenas
os que dependem deles.
A isso se pode responder que essa abadia depende dos Bispos de Saint-Malo, e não de
Congregação nenhuma, nem de superior algum, seja qual for; e ainda, que os bispos, com toda certeza,
cederam à abadia de Saint-Méen os dízimos de que dispõem, em consideração do trabalho que
desenvolviam no seminário e que hoje procuramos fazer. Esta última razão não deve ser aduzida; não
deveis alegá-la, mas dizer somente que os religiosos da abadia estavam em grande desordem, deram
assentimento ao que se fez, aceitaram com satisfação as condições estipuladas e ninguém mais tem
interesse por ela.
Dir-vos-ão que apenas o Papa, e bispo algum, tem poder para suprimir um regime regular, em
favor da união a alguma corporação. Respondemos que é verdade, falando de modo ordinário, mas que os
Concílios atribuindo poderes aos bispos, [a respeito] de benefícios ordinários, e não assinalando o
[número] dos benefícios, é inteiramente provável que o [bispo] pôde realizar essas união, já que essa
abadia, como disse, depende de sua jurisdição, e sempre foi considerada como dependente dele.
Se disserem que é um bem de São Bento e [que o] geral dos reformados 7 teve direito de reclamar
[em favor de sua] comunidade, poder-se-á responder que a bula [da instituição] de sua Congregação diz
que eles se estabelecerão [nas] abadias onde os religiosos, o abade e o bispo os pedirem. Ora, na verdade,

1
1. Esse decreto era datado de 8 de outubro; foi confirmado por um segundo, de 28.
2
2. Chamava-se Quiqueboeuf.
3
3. Fernando de Neufville era, desde 1644, coadjutor do seu tio Aquiles de Harlay, que a morte levaria a 20 de novembro de 1646. Ele lhe
sucedeu e ocupou a sede de Saint-Malo até 1657.
4
4. Nicolau de Neufville, Marquês de Villeroi, nascido em 14 de outubro de 1508, serviu com êxito ao exército. Conquistou a confiança de
Mazarino, tornou-se Marechal de França (20 de outubro de 1646), Governador de Luís XIV (1646) e Duque de Villeroi (setembro de 1663).
Morreu em Paris em 28 de novembro de 1685.
5
5. Primeira redação: aos padres da.
6
6. Henrique de la Motte-Haudancourt (1642-1662).
7
7. Dom Grégorio Tarrisse. Governou por dezoito anos a Congregação de Saint-Maur, e morreu em Paris, em 24 de setembro de 1648. Collet
observa que os filhos de São Bento foram dos primeiros a pedir à Santa Sé a beatificação de Vicente de Paulo.
56

os religiosos da Casa não reclamam esta reforma; nem o abade, nem o bispo nela [consentem], pois o
abade e o superior da Casa é o próprio Bispo de Saint-Malo. Por conseguinte, nem o Geral, nem os
religiosos reformados têm o direito de se opor às bulas que solicitareis, nem de fazer o que fizeram.
Acresce a tudo que uma mesa de religiosos8 não é um benefício, que a corte romana não tem
interesse nesta união, visto como, não sendo benefício, o Papa jamais expede bulas em favor de tais
mesas.
Aí estão, aproximadamente, senhor Padre, as razões desta união. Há dois caminhos para trabalhar
a questão: ou conseguir que Roma julgue se a união realizada pelo senhor Bispo de Saint-Malo é boa ou
não, e, supondo que não o seja, apraza a Sua Santidade aprová-la e suprir-lhe as falhas, ou então, de
expedir uma bula que não faça menção da que já foi feita.
Suplico-vos, senhor Padre, fazer consultas sobre esse assunto e me comunicar o que pensais,
quanto antes possível. Se [for ne]cessário, providenciaremos que se escreva daqui a Sua Santidade. Os
senhores Bispos de Saint-Malo [estão] inteiramente dispostos a empenhar tudo que puderem nesse
negócio. E para vos falar a verdade, penso que Nosso Senhor será muito glorificado por isso e que a
Igreja receberá não pequeno auxílio de tudo, por causa dos seminários que poderiam fundar por esse meio
e não, certamente, por outro.
A Assembleia do clero levantou a questão da importância dos seminários eclesiásticos e tratou dos
meios de sustentá-los. Não encontrou outros mais vantajosos do que o da união de alguns benefícios, lá
onde os religiosos se encontram na desordem e não têm disposição de chamar os reformados; ou quando
os religiosos reformados não querem se estabelecer, por causa da pobreza das mesas, pelas quais não se
interessam9.
Segue a relação do nome, sobrenome e da diocese desse jovem nobre polonês 1010 que a Rainha da
Polônia1111 nos deixou aqui e que entrou no seminário menor, no pequeno São Lázaro 1212. Rogo-vos,
senhor Padre, providenciar-lhe uma dimissória ad omnes ordines (para todas as ordens). Tem certa
intenção de pertencer à Companhia, e eu, de ser, toda a minha vida, no amor de Nosso Senhor, vosso
muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

888. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 10 de novembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta e as que me [escrevestes] de La Rose, juntamente com o relatório q[ue vos
tinha] pedido. Fiquei sabendo da ordem q[ue ficou estabelecida] em La Rose pelo Padre Alméras [e a que
ele] implantou em Cahors. Fiquei [muito contente] com tudo e rendo graças a Deus [pedindo-lhe vos]
atenda sempre nas orações que lhe fazeis incessantemente em favor das luzes que lhe pedis em vossas
visitas.
Quanto à primeira carta, dir-vos-ei meus pequenos pensamentos sobre o que há a fazer a respeito
do Padre B[oucher], embora julgue que é conveniente resolver o problema do Padre C[oudray] antes do
8
8. Primeira redação: que uma mesa abacial.
9
9. A questão dos seminários tinha sido levantada na véspera, durante a Assembleia do clero, por ocasião de um relatório apresentado pelos
padres do seminário de Caen. (Coleção das atas das assembleias gerais do clero da França, Paris, 1769, t. III, p.372)
10
10. Talvez Estanislau Casemiro Zelazewski.
11
11. Luísa Maria de Gonzaga.
12
12. No seminário Saint-Charles.
.
Carta 888. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Todos os detalhes desta carta supõem o ano de 1646: a visita do Padre Portail a La Rose, a presença do Padre Alméras nessa casa, a
questão de Francisco du Coudray e de Leonardo Boucher, etc.
57

dele. Este último ainda está em Richelieu. Escrevi-lhe e lhe pedi esperasse algum tempo; julguei
conveniente proceder assim, aguardando o relatório que me enviastes, relativo a ele. Penso atualmente em
chamá-lo a Fréneville, e em tratar, lá, com ele, do seu problema, vendo algum inconveniente em mandá-lo
vir até esta cidade. Examinaremos, contudo, a coisa numa outra ocasião. Talvez seja [bom] proceder com
ele como fizemos com o Padre C[odoing], que não anda mais com essas opiniões e [trabalha agora] com
bênção no que lhe foi confiado [na Bre]tanha, onde ocupa o cargo do Padre [Bourdet] 2o, qual se encontra
em Nantes, fazendo seu retiro, e [aguardando] a dispensa que me solicitou de sair da Companhia, [por
causa] de um entrevero lamentável ocorrido [entre ele] e o senhor Bispo de Saint-Malo. O Padre Codoing
aderiu ao senhor Bispo, assim como alguns da Comunidade, que veem algo a censurar no seu modo de
exercer o ofício de direção. Isto é segredo. Fora o Padre Alméras, não falareis com ninguém a respeito,
por favor. Nós o tínhamos destinado para a Irlanda. Seria o oitavo enviado para lá, e com a
responsabilidade da direção da comunidade; mas ele se escusa. Veremos o resultado do seu retiro.
Conjurei-o por todos os meios imagináveis a permanecer na Companhia e a vir para aqui.
Mil e duzentas libras é muito para La Rose. Não imaginais a pobreza em que estamos. Peço-vos
dispor a comunidade a honrar as incomodidades de Nosso Senhor. As despesas feitas em Le Mans
reduziram aquela Casa e a daqui à penúria. Com o tempo, as acomodações vão se fazendo por si mesmas.
Só Deus pode ter tudo à medida de sua vontade; a seus servos resta fazer como Nosso Senhor fez.
Pegareis quinhentas ou seiscentas libras em letra de [câmbio, por] favor. Se é pouco para a Casa, estai
certo de que é muito para nós.
Meu bom Deus! senhor Padre, como [fizestes bem em dar] a ordem que destes a respeito [de...].
Penso ter-vos escri[to que] o Padre Berthe deixou-nos. Não foi capaz de [suportar, lá] onde o
tínhamos enviado3, a opinião de [mais de] um externo e o rumor que tinha espalha[do pela] cidade de que
estava indo para lá para ser superior. Ao desenganá-lo disso e chamá-lo para aqui, fez de conta em Reims
que estava doente, e de lá voltou para Danchery, a casa dos seus pais, a uma légua de Sedan.
Eis-vos agora prestes a partir para Roma. Sabe Deus com que ansiedade sois esperado lá e nas
outras Casas, assim como o Padre Alméras em Annecy. Rogo a Nosso Senhor vos abençoe, aos dois, e
santifique cada vez mais vossas queridas almas.
Sou, em seu amor... Saúdo muito humildemente a pequena comunidade de La Rose, onde julgo
que a presente carta vos encontrará. Prostrado em espírito a seus pés e aos vossos, sou, no amor de Nosso
Senhor, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Estou encontrando dificuldade para vos enviar as duas pessoas que pedis para Cahors e La Rose.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em La Rose.

889. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Novembro de 16461].

Senhor Padre,

2o
2. O original traz: Bourdet ; mas é evidente que o Santo escreveu um nome em vez de outro. Jean Bourdet deixou a Companhia. Dom
Morel nos informa que São Vicente obteve para ele um excelente benefício que dependia da abadia de Marmoutiers (S. Ropartz, op. cit.,
p.196). Se o senhor Ropartz tivesse lido a correspondência do Santo, não teria acrescentado, depois de relatar esse fato: “É a única
intervenção de São Vicente em todo esse negócio (a questão de Saint-Méen) e a única ocasião que teve Dom Morel de pronunciar seu nome.
Seria necessário dizer que me senti por isso inteiramente feliz?”.
3
3. A casa de Sedan.
.
Carta 889. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
58

Temos grande necessidade da orientação de vossa caridade, a respeito de uma falta bastante
notável de uma de nossas irmãs. Trata-se de Marta, filha de um horticultor que mora no caminho para a
aldeia de Issy. Esteve muito tempo na paróquia St-Leu. Parecia uma boa jovem, bastante simples, mas
receio que seja, antes, um pouco astuta e reservada. Pouco tempo depois de ter estado nas paróquias,
deixou-se levar pela ansiedade e o desejo de saber demais e, por si mesma, se aventurou no campo da
cirurgia. Sua mãe, uma pobre mulher, nos diz ter-lhe dado um grande estojo com instrumental. Depois de
ter sido colocada em Saint-Paul, aparece ainda com um bisturi e afirma ademais ser presente de sua
mãe. Às escondidas de sua Irmã servente, atreveu-se a fazer sangria, sem que ninguém lha houvesse
ensinado, a não ser, talvez, algum cirurgião, quando estava nas paróquias. Quando a Irmã servente lhe
pediu a lanceta, recusou-lha, dizendo que a entregaria a mim. Disse-me, porém, depois, que a jogara
fora para não ter diante dos olhos o objeto que a levara a ofender a Deus. Deixei-a aqui até saber de vós,
senhor Padre, o que fazer ante faltas semelhantes. Parece-me que faltas como essas devem servir de
exemplo para o futuro e para o bem da Companhia. Precisamos também saber como agir, em tais faltas,
com justiça e caridade.
Tende a bondade de pedir ao nosso bom Deus que meu filho, por sua misericórdia, participe um
dia dos méritos da vida e da morte de Jesus crucificado, fonte viva de toda santidade, como também eu,
miserável e infiel a Deus. Sou, embora muito indigna, senhor Padre, vossa muito grata filha e obediente
serva,
LUÍSA DE MARILLAC.

Esquecia-me de vos dizer que impedi essa Irmã de se confessar e comungar hoje; aguardo a
ordem que vossa caridade me der, para liberá-la.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

890. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Antes de 16501].
Senhor Padre,

O rapazinho que trabalha com meu filho acaba de dizer-me que ele o despachou ontem, e não
sabe por onde ele anda. Podeis imaginar minha aflição. Suplico muito humildemente à vossa caridade
aliviá-la e ajudar-me diante de Deus, e recomendar à sua misericórdia o estado em que poderá se
encontrar, no presente e no futuro. Se quisésseis fazer-me a caridade de mandar algum dos vossos, a fim
de saber se não disse nada ou o que fez, sem revelar minhas apreensões nem as disposições que vos
manifestou, seria para mim um grande conforto saber de alguma coisa. Como tenho receio de tudo, fico
a imaginar se não mandou retirar os móveis do seu quarto para mudar, definitivamente, sem que eu
saiba para onde.
Fico muito pesarosa por vos dar tanto incômodo, mas é impossível para mim buscar alívio
alhures. Não somente isto; tenho muito receio de que venham a saber do meu desgosto, e me procurem
para dizer-me algo a respeito, o que aumentaria minha aflição. Como é grande meu sofrimento! Se Deus
não me ajudar, não sei o que farei. Ajudai-me a manter-me estreitamente unida a Jesus Crucificado, no
qual sou, senhor Padre, vossa muito humilde filha e serva muito grata,
L. DE M.
Quis dizer uma palavra ao meu filho, por causa da grande dor que sinto.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

.
Carta 890. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data do casamento de Michel Le Gras.
59

891. – A MICHEL ALIX

Paris, 23 de novembro de [16461].

A graça de Nosso Senhor esteja [sempre] convosco!


Recebi vossa carta com grande alegria; deixou-me [entretanto] pesaroso, em razão do que estais
padecendo com a febre, e com os aborrecimentos que vos causam. Demos, porém, graças a Deus! Ele é só
bondade, para convosco e comigo. Para convosco, porque fazeis [bom uso de tudo] que pede de vós, para
[maior perfeição e] santificação de vossa querida alma. Com efeito, tais aflições vos trazem o sinal certo
da bondade de Deus sobre vós, dando-vos motivo para honrar as ações amorosas da vida e da morte do
seu Filho e Senhor Nosso. Muito bem! senhor Padre, exercitai-vos, pois, nesta virtude divina da paciência
e submissão ao beneplácito de Deus. É a pedra de toque com que vos prova e vos conduz ao seu puro
amor. Enquanto pedireis a força para sofrer como convém, pedir-lhe-ei a graça de vos aliviar. Prostrado,
no presente, em espírito, diante de sua infinita misericórdia, suplico-lhe, humildemente, vos devolva a
saúde do corpo e a paz interior do coração. Estamos também com duas pessoas na Companhia com a
febre quartã; uma se encontra atualmente aqui2; a outra, porém, não deixou de enfrentar a viagem para a
Irlanda, com a mesma coragem dos outros que estão com boa saúde; não duvido de que Deus o livre bem
cedo desse mal, de tal modo lhe apraz fazer o bem aos que, para servi-lo, se desapegam de si mesmos.
Prouvesse a Deus, senhor Padre, tivesse eu o meio de contribuir [para vo]sso alívio! Bem sabe ele com
que afeição a isso me [aplica]ria. Mais ainda, se surgir uma oportunidade de vos transferir de lugar, vereis
que não pouparei nada do que de mim depender.
Ter-vos-ia igualmente com muita satisfação prestado meus serviços, referentes à fundação que
querem instalar em vossa paróquia, se tivesse sabido do nome da fundadora ou que espécie de devoção
religiosa nela desejam estabelecer. Na falta disto, contentar-me-ei com o meio que me indicastes, indo
falar com a Madame Duquesa de Aiguillon [e ain]da com os magistrados de Pontoise. Farei tudo, quanto
mais cedo puder.
Mas o que me dizeis, senhor Padre, ao me comunicar que me dedicastes um livro 3? Se tivésseis
refletido no fato de que sou filho de um pobre lavrador, não me teríeis proporcionado tal confusão, nem
tal agravo a vosso livro, colocando-lhe no frontispício o nome de um pobre padre que não tem outro
brilho a não ser o das suas misérias e pecados. Em nome de Nosso Senhor, senhor Padre, se a obra se
encontra ainda em estado de poder ser dedicada a outrem, não me sobrecarregueis com esse favor. Já
tenho, há muito tempo, bastante conhecimento de vossa boa vontade para comigo. E não ignorais todo
reconhecimento que tenho para convosco e o desejo de ser, para sempre, no amor de Nosso Senhor,
senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,
VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Considerarei como uma bênção servir-vos a respeito da mudança de que falais, e vos prometo que
vou pensar nisso, embora não veja saída no momento e tenha motivo para temer que meus pecados me
tornem indigno dela.

Destinatário: Ao senhor Padre Alix, Pároco de Aumône4.

892. – A ESTÊVÃO BLATIRON


.
Carta 891. – C. as. – Dossiê da Missão, original. O postscriptum é da mão do Santo.
1
1. Data exigida, tanto pela data da dedicatória de que fala São Vicente (22 de novembro de 1646), quanto pelo conteúdo da carta.
2
2. Gilbert Cuissot. (Cf. c. 899 e 900).
3
3. Uma nova edição de Hortus pastorum de Jacques Marchant.
4
4. Saint-Ouen-l’Aumône, perto de Pontoise (S.- et-O.).
.
Carta 892. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
60

Paris, 23 de novembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi duas cartas vossas ao mesmo tempo. [Uma] e outra contribuíram para a consolação de
minha parte, com a notícia de que vossa saúde e vossa boa conduta continuam bem. Rendo graças a Deus,
e lhe peço vos proteja e abençoe aí.
Minha alma recebeu um acréscimo de contentamento, por vos ter dado o senhor Cardeal a
liberdade de tomar o repouso necessário depois de cada missão. Usai-a, portanto, vos suplico, e preservai-
vos como uma pessoa muito cara à Companhia, em especial, ao meu coração, que guarda para convosco
ternuras de afeição, não comuns.
Saúdo muito cordialmente os Padres Martin e Richard e me recomendo humildemente às suas
preces e às vossas, como também às dos senhores eclesiásticos que vão trabalhar convosco, aos quais vos
suplico renovar a oferta de meus serviços.
Enviei-vos, na semana passada, o tratado de vossa fundação, no qual fiz algumas observações.
Comunicar-me-eis o que fareis a respeito e crede-me, no amor de Nosso Senhor, por favor, senhor Padre,
vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, padre da Missão, em Gênova.

893. – A GUILHERME DELATTRE

Paris, 23 de novembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Traço-vos estas linhas para vos dizer que recebi vossa última carta e que não poderei dar-vos
resposta pormenorizada sobre o que [ela contém]. Digo-vos apenas que [podemos cair no] excesso, na
prática das [virtudes, e que] o excesso é por vezes um mal maior do que deixar de praticá-las. [Nessa
questão] se veem pessoas, e conheço algumas, que encontram, em tais exageros, volúpia sensual e
criminosa. Bastar-vos-á proceder como vos permiti: uma vez ao dia, um Miserere, absque emissione
sanguinis; non enim meritum tam in dolore quam in amore consistit 1. Em nome de Deus, senhor Padre,
pautai-vos por isto, e observai os conselhos que vos dará o Padre Portail. Fazei tudo, de modo geral, o que
ele vos ordenar. Dirijo-vos este pedido com tanto maior naturalidade quanto eu sei que a santa obediência
é a alma de vossa alma e que sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde e
obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Delattre, superior dos padres da Missão, em Cahors.

.
Carta 893. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Um Miserere (Sl 50): “Tende piedade” – sem emissão de sangue; com efeito, o mérito não está tanto na dor, quanto no amor (N. do T.).
61

894. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM CAHORS

Paris, 23 de novembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi ontem vossa carta de... e todas as outras que me escrevestes. Penso também ter respondido
a todas.
Se ainda não concluístes a visita a Cahors, peço-vos concluí-la, quanto antes, e ir para La Rose
terminar a que lá começastes. [As visitas] muito demoradas são, de ordinário, de pouco fruto. Os espíritos
se cansam [depressa]. Quem deseja remediar os males do corpo, e recuperar melhor saúde, precisa tomar
os medicamentos aos poucos. Do contrário, seria de se temer que lhe fizessem mais mal do que bem.
Basta, numa visita, que se tome conhecimento do mal, se mostrem os remédios e se dê a ordem para que
sejam administrados, deixando para o superior a execução. Tivestes razão ao explicar-lhes as regras e
verificar-lhes a prática por dois ou três dias somente. Depois disso, porém, é preciso entregar as coisas
para Deus e confiá-las ao superior. Oito ou dez dias, no máximo, em cada Casa, são o suficiente.
Fizestes bem em dar-lhes a conhecer os excessos cometidos no uso das disciplinas 2 e em moderar-
lhes o número, prescrevendo-lhes o tempo e a maneira de praticá-las. Podeis, sem dificuldade, consentir
em que o Padre Delattre a utilize todos os dias durante o tempo de um Miserere (Sl 50: Tende Piedade),
mas que a disciplina seja simples e sem alfinetes. Quanto aos outros, podereis permiti-las em menor
escala. Vós os consolareis por sua fidelidade nas práticas desta espécie de penitência tão rigorosa; mas
tereis o cuidado de regulamentar-lhes o uso.
Suplico-vos, além disso, senhor Padre, mandeis o Padre Alméras partir quanto antes para Annecy.
Ele não poderia atravessar as montanhas da Auvérnia. Ser-lhe-á preciso ir diretamente para Beziers e
Montpellier, passar por Nîmes e de lá para Saint-Esprit3, Lyon e, depois, para Annecy.
Nada vos digo sobre a ordem que devereis estabelecer em La Rose, porque o Padre Delattre 4 a
cumprirá.
Vede que não se pregou missão, há muito tempo, em Aiguillon. Peço-vos seja lá a primeira a ser
realizada, e façam lá o que for possível, a fim de restabelecer a harmonia entre a Madame Duquesa e sua
gente, e entre eles mesmos, e que passem ali o Advento até [as grandes] festas do Natal, para tudo fazer
detalhadamente. Cumule Deus com suas graças os que deverão falar, que dão... mais fortes e que são
dotados de graça para visitar os inimigos! Não dirão a ninguém que é por ordem minha, mas que temos
obrigação de ir lá de 5 em 5 anos e que não se considere como missão o que ali fez o Padre Coudray,
quando foi lá com o senhor Drouard.
Comunicais-me que devemos trezentas libras a Cahors. Não sei por que motivo entregamos aqui
400 libras ao senhor Bispo de Cahors, que ele nos deveria devolver, em sua chegada. Não sei se o fez,
mas não tocarão no assunto com ele.
Eis, senhor Padre, o que vos posso dizer no presente. Quanto ao mais, abraço-vos, prostrado em
espírito aos vossos pés, fazendo o mesmo com a pequena comunidade de La Rose. Sou, senhor Padre,
vosso e deles, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

.
Carta 894. – C. aut. – Bibl. Nac., n a. f. 1473, original. O documento está em mau estado. Uma cópia antiga nos ajudou a completar as
frases mutiladas.
1
1. Ano da visita do Padre Portail em La Rose e em Cahors.
2
2. Instrumento de penitência usado na época.
3
3. Para Pont-Saint-Esprit, distrito de d’Uzès(Gard).
4
4. O novo superior do estabelecimento de La Rose.
62

895. – A BONIFÁCIO NOUELLY

Paris, 2 de [... novembro de 16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Escrevo ao senhor cônsul2 a dificuldade em que estamos para obter o dinheiro com que se
comprometeu. O conselho ordenou que seja pago com as somas arrecadadas em Paris em favor dos
escravos tão logo seja feita a coleta... quer encarregar-se das referidas coletas [...] dos mercedários nem
dos maturinos, [os quais] nos dão esperança de maiores auxílios do que os [outros]; e é com eles que
estamos procurando entender-nos. Não perderemos tempo, se Deus quiser; logo que o dinheiro estiver
disponível, enviar-vo-lo-emos, pela rota de Túnis, como nos sugeris.
Rogo ao Irmão Barreau que nunca mais se empenhe com algo, e nem mesmo se interponha em
resgate de escravo algum, mas cumpra bem seu ofício. Peço-lhe também que não empreenda negócio,
pequeno ou grande, sem antes vo-lo comunicar. E vos peço fazer o mesmo, senhor Padre, vivendo juntos
com grande deferência, abertura de coração e plena confiança, como duas pessoas unidas em Jesus Cristo.
Escrevi também, por esse mesmo correio, ao Padre Guérin, em Túnis, para que vos transmita
alguma coisa sobre o método e a maneira com que age em relação aos pobres escravos, a fim de adotar o
mesmo modo de agir, quanto vos for possível.
Estou vos escrevendo muito às pressas, porque já é noite. Peço a Nosso Senhor seja sempre mais
vossa luz, vossa força, vosso espírito e, enfim, vossa recompensa.
Sou, nele, com todas as energias de minha alma, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: A senhor Padre Nouelly, padre da Missão, em Argel.

896. – A UM PADRE DA MISSÃO1

24 de novembro de 1646.

Recebi duas de vossas cartas que redobraram a minha dor, vendo que perseverais em separar-vos
de nós. Isto me obriga a perseverar, igualmente, mostrando-vos o perigo a que vos expondes, mas com
toda humildade e afeto de que sou capaz e com o pleno desejo de vossa salvação. Com este sentimento,
portanto, vos direi:
1° Não vejo razão alguma que justifique vossa dispensa dos votos. Por uma única que aduzis,
muito frágil, várias outras, bem sólidas, me persuadem de que deveis voltar. Estais doente, é verdade.
Mas este pretexto bastaria para obrigar a Deus a vos considerar livre da promessa que lhe fizestes? Não
ignoráveis, então, que estáveis sujeito a enfermidades corporais, como os demais homens. Tendo dado o
passo, um leve incômodo, agora, bastaria para vos desalentar?

.
Carta 895. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. A data colocada em cima desapareceu, juntamente com o canto superior direito, em consequência dos estragos causados pela umidade;
resta apenas o primeiro algarismo do dia do mês. Se dermos fé à data que foi antigamente acrescentada no dorso do documento, a carta seria
de 8 de março de 1647. Mas esta data levanta algumas dificuldades; está em oposição ao 2 do início; além disto, o contorno da parte mutilada
aproxima extremamente esta carta das cartas datadas de 23 de novembro de 1646, e, por seu conteúdo, parece mais bem situada não longe da
carta 877.
2
2. O Irmão Barreau.
.
Carta 896. – Reg. 2, p. 290.
1
1. Provavelmente Tomás Berthe (Cf. c. 879, nota 1).
63

2° A retirada para a vossa casa não irá curar-vos. De quais remédios utilizareis que não
encontraríeis aqui? Os ares de vossa terra não são melhores do que os de Paris, e sabeis muito bem que
não encontrareis na casa de vossos pais o repouso e os bons socorros que nossos enfermos encontram na
Companhia.
3° Suplico-vos pensar na bondade de Deus que vos chamou do mundo. Quantas almas há que se
perderão, por falta de semelhante graça! Mas, quanto mais merecerão perder-se as que a desprezarem,
depois de a terem recebido!
4° Declarastes tantas e tantas vezes que estáveis tocado de gratidão para com Deus, pelo benefício
de vossa vocação; por quê, agora, o rejeitais?
5° Deus vos concedeu com muita liberalidade talentos para todos os ministérios da Companhia; ao
vos retirar, o povo e os eclesiásticos ficarão privados dos auxílios espirituais em favor dos quais ele,
talvez, vo-los tenha concedido. E embora penseis em fazê-los render, assistindo o próximo
individualmente, não será, entretanto, com muito fruto, porque vos faltará a graça da vocação. A
experiência com alguns outros me leva a temer isto a vosso respeito.
6° Quantas vitórias haveis de perder, se perderdes vossa vocação. Com ela, de fato, podeis vencer
o demônio, o mundo e a carne, e, ao mesmo tempo, enriquecer vossa alma com a perfeição cristã, pela
qual se encarnariam os anjos, se pudessem, a fim de virem imitar na terra os exemplos e as virtudes do
Filho de Deus!
7° Quero crer que vos parece que vossa saída não procede do motivo de que falei, embora tenhais
motivo de julgar o contrário; com efeito, não fosse assim, donde poderia vir tão brusca mudança?
Partindo daqui para aquela Casa, estáveis tão feliz em vossa vocação como mais não seria possível, e eu
estava muito edificado com isso. Mas, ainda que fosse verdade que esse mal viesse de alguma outra
causa, e não daquela, como dizeis que o verei no dia do julgamento, que direis naquele grande dia,
quando se vos pedir conta de vossas promessas, das luzes que recebestes e do uso que tiverdes feito de
vosso tempo e vossos talentos? Imaginais que o cuidado de vossa saúde vos isentará, quando, na verdade,
é Deus que a concede e a retira, como bem lhe parece, e que foi dito que quem quiser salvar a própria
vida a perderá?
Em nome de Nosso Senhor, senhor Padre, pensai em tudo isto e não resistais às censuras de vossa
consciência. Colocai-vos no estado em que desejaríeis morrer, e espero da bondade de Deus que ele vos
dará a força para vencer a natureza, que só procura sua liberdade, com prejuízo de vossa pobre alma, pela
qual Deus me concedeu ternuras inexplicáveis de afeição. Em virtude de tudo isso, eu vos conjuro
novamente, em nome de Jesus Cristo, e pelo amor que ele tem para convosco, de voltar para aqui. Terei
em vós mais confiança do que nunca, porque não temerei mais perder-vos, ao vos ver garantido contra um
tropeço tão perigoso. Escolhei a Casa que quiserdes. Sereis recebido, em toda parte, de braços abertos, e
me dareis ocasião de vos testemunhar que sou, no amor do Senhor, senhor Padre, vosso...

897. – A UM PADRE DA MISSÃO

Paris, 27 de novembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Fiquei contente, ao ver por vossa carta, que o senhor pároco cedeu um pouco na decisão de não
permitir a comunhão das [crianças. Espero] que acabará concordando plenamente se [tiverdes o cuidado
de lhe] representar: 1° que somos a isto [obrigados] por nossas regras; 2° que tem sido sempre [esta a
prática em] todas as missões que [pregamos; 3° que as crianças] são bem instruídas e ficam em condição
de [bem se prepararem para a] comunhão, que serve, ao depois, de [disposição para bem] fazerem as
outras; 4° que é um dos princi[pais meios] de que dispomos para sensibilizar as pessoas mais idosas, que
.
Carta 897. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. O que se diz nesta carta a respeito de Luís Thibault nos leva a aproximá-la da carta 900, que é de 2 de dezembro de 1646. O estado de
mutilação do original, comparado ao dos originais das cartas que precedem e que seguem, elimina qualquer dúvida.
64

têm o coração duro e obstinado, e que se deixam vencer pela devoção das crianças e o cuidado que se tem
com elas. A propósito, informam-me de Gênova que o senhor Cardeal Arcebispo 2 tem tal apreço para
com a comunhão das crianças, que se faz presente na maior parte delas e derrama lágrimas de ternura,
como se ele próprio fosse uma criança. Por fim, a experiência que temos da bênção de Deus sobre esse
acontecimento deve servir de motivo para o referido senhor pároco aprová-lo em sua paróquia.
Se disser que deseja ele próprio realizá-lo, e que, durante a quaresma, as instruirá para
comungarem na Páscoa, poder-se-á responder-lhe que, na verdade, ele o fará muito melhor do que nós,
mas que aquilo que fizermos não o impedirá de fazer, então, a mesma coisa. Se temer que admitamos à
comunhão crianças não bem instruídas e sem as outras disposições necessárias, dir-lhe-eis, por obséquio,
que nosso costume é de examiná-las todas na presença dos senhores párocos, e eles próprios julgarão as
que devem ou não serem admitidas a esse sacramento. Ele poderá assim adiar para outro tempo as que
não estimar capazes. Enfim, se julga que há algo de censurável na solenidade da procissão, ela se
realizará da maneira mais simples possível, sem luxo, e sem vestir algumas crianças com trajes de [anjos],
como se tem feito em certos lugares. Opor-lhe resistência nisso não me parece viável3.
Peço-vos, pois, representar-lhe bem todas essas coisas, e espero que vos dará toda liberdade a esse
respeito; do contrário, veremos com a Companhia se é conveniente continuar a missão sem a citada
comunhão4.
Quanto à confissão, não se perderá nada com adiá-la até segunda-feira.
No que diz respeito a prolongar a missão até o fim do ano, tudo bem; fá-lo-emos se for necessário.
Enviaremos dinheiro ao Padre Thibault e o alertaremos no sentido de fazer o que sugeris em
relação ao senhor Raisin, a fim de saber se nada foi deixado por descuido em sua casa.
Como não tendes camas suficientes, vede, senhor Padre, se vos é possível enviar alguns para
dormirem nos Bons-Enfants.
Mandamo-vos de volta nosso Irmão Laisné5. Se vos for sem serventia, podeis devolvê-lo dentro de
dois ou três dias.
Enviar-vos-emos amanhã sobrepelizes e barretes.
Recebemos as duas pistolas que enviastes.
Saúdo toda a comunidade e a vós, particularmente, e sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre,
vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

898. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[16461].

Senhor Padre,

Não me ocorreu perguntar-vos se deveria comunicar isto2 às Irmãs; e não o fiz. Permiti-me dizer
a vossa caridade que a explicação contida em nosso regulamento de Filhas da Caridade leva-me a

2
2. O Cardeal Durazzo.
3
3. O Padre Villien, sábio professor no Instituto Católico de Paris, estima que São Vicente foi o primeiro a introduzir o uso de solenizar a
primeira comunhão (A disciplina dos sacramentos, na Revista do clero francês, 1° de janeiro de 1912, t. LXIX. p. 30).
4
4. Este final de frase, a partir de do contrário, veremos, é da mão do santo.
5
5. O catálogo do pessoal assinala dois missionários com o nome de “Laisné”, Nicolau e Pierre, nascidos ambos em Dreux, um, em 9 de
novembro de 1623, o outro, em 1625. Entraram na Congregação da Missão em 24 de setembro de 1641 e fizeram os votos em 4 de outubro
de 1643. Pierre recebeu todas as ordens sacras em dezembro de 1648. É dele, provavelmente, que se trata aqui. Fazia parte da casa de Saint-
Méen em 1657.
.
Carta 898. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Os termos do início “senhor Padre” mostram que a carta foi escrita antes de 1650. A nota 2 permite precisar o ano.
2
2. A ata de 20 de novembro de 1646, pela qual João Francisco de Gondi, Arcebispo de Paris, erigia em confraria a Companhia das Filhas da
Caridade.
65

desejar se continue dando-nos este título, omitido, talvez por inadvertência, no documento da aprovação
da instituição3.
Os termos tão incisivos de dependência do senhor Arcebispo4 não nos poderiam prejudicar no
futuro, dando-nos a liberdade de nos subtrair da direção do Superior Geral da Missão? Não seria
necessário, senhor Padre, que, mediante este documento de aprovação, vossa caridade nos seja
designado como diretor perpétuo? Seria intenção do senhor Arcebispo que os regulamentos que devemos
receber sejam os indicados em seguida à petição? Requer isto uma ata à parte, ou se deseja que se façam
outras, já que as menciona separadamente?
Em nome de Deus, senhor Padre, não permitais que nada se faça que deixe alguma possibilidade,
por pequena que seja, de separar a Companhia da direção sob a qual Deus a colocou. Podeis, com
efeito, ter certeza de que, bem cedo, deixaria de ser o que é, e os pobres doentes não mais seriam
socorridos. Creio, assim, que, então, não mais se cumpriria entre nós a vontade de Deus, pela qual tenho
felicidade de ser, senhor Padre, vossa muito obediente filha e serva muito agradecida5.

899. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 1° de dezembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta com grande consolação, ao ver tudo que me escreveis, e [não cesso de
agradecer a] Deus pela boa ordem em que [colocastes] nossas Casas. Rogo a sua divina [bondade
conceder sua] bênção sobre as [Casas que faltam], [naquilo] que lhes [fordes prescrever. Agora], senhor
Padre, eis-vos, afinal, [prestes a partir, como] vejo por vossa carta. [Sinto por tudo uma consolação]
inexprimível, porque sois aguardado em outros lugares com paciência e ansiedade, sobretudo em Roma,
para onde peço a Nossa Senhor vos conduza, e vos continue dispensando lá as mesmas graças, a fim de
reconduzir tudo à meta por ele desejada, naquilo que vos resta fazer, como ocorreu no que fizestes.
O Padre B[oucher] me escreveu por duas vezes de La Rose sobre os bons sentimentos e a gratidão
que Deus lhe inspirou. Peço-vos, senhor Padre, informar-me se devo sentir firmeza a respeito.
Nada mais tenho a dizer-vos, a não ser garantir-vos que aqui vai tudo bem, graças a Deus. Não
tenho outras notícias para vos dar. Ficai apenas sabendo que o Padre Cuissot está com a febre quartã e o
Padre Bécu, com gota, e eu, tenho a graça de ser, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito
humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Cahors.

3
3. O Coadjutor, que assinou a ata de ereção, em nome do tio Arcebispo de Paris, dá às Irmãs o nome de “servas dos pobres da Caridade”.
4
4. O Coadjutor especifica que a Companhia “permanecerá perpetuamente sob a autoridade e dependência” dos Arcebispos de Paris.
Acrescenta que confia e entrega a São Vicente “a conduta e direção da sobredita sociedade e confraria, por tanto tempo quanto aprouver a
Deus conservar-lhe a vida”.
5
5. Os temores de Luísa de Marillac não eram exagerados. Ao final da Revolução, os Vigários Gerais de Paris, apoiando-se nos próprios
termos da aprovação dada em 1646 e em 1655, reivindicaram o direito de dirigir a Companhia das Filhas da Caridade, e provocaram um
cisma que durou anos. A autoridade tradicional do Superior Geral da Missão sobre as Irmãs foi, finalmente, posta fora de discussão em 25 de
junho de 1882, com esta resposta de Roma: “Nada se deve inovar quanto à direção da referida associação das Filhas da Caridade, a qual, por
indulto pontifício, pertence ao Superior Geral da Congregação dos Padres da Missão, vulgo Lazaristas, fundada por São Vicente de Paulo”.
(Tradução do original latino – N. do T.).
.
Carta 899. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Ano da visita do Padre Portail a Cahors.
66

900. – A LUÍS THIBAULT

Paris, 2 de [dezembro de 16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estamos vos enviando esse portador para saber de vossas notícias e vos comunicar as nossas, que
são boas, graças a Deus. A comunidade está com boa saúde, com exceção do Padre [Bécu, com gota, e
do] Padre Cuissot, com a febre q[uartã. E vós, estais passando b[em, depois] de tantos e demorados
tr[abalhos? Talvez estejais passando por] algum incômodo; mas [rogo a Nosso Senhor] vos conserve para
a sua glória. [Agradeço-lhe] as bênçãos com que os [realizastes]; disso fomos informados aqui. Praza à
sua infinita bondade conceder a tantos pobres almas a graça de fazer bom uso deles para a sua salvação!
Estamos vos mandando cem libras, tanto para pagar o que estais devendo em Villeneuve-Saint-
Georges, caso o Padre Gentil2 não vos tenha enviado o necessário para esse fim, quanto para as despesas e
outras dívidas contraídas posteriormente por vós, assim como para vos dar condição de voltar. Suplico-
vos fazê-lo quanto antes, quinta-feira no mais tardar. Basta de trabalho, por essa vez; além do mais, temos
assunto a tratar convosco aqui. Enviaremos algum outro a Villejuif 3, e a missão de Orsay4 pode ser adiada
para o natal. Espero-vos, portanto, com o desejo de vos abraçar efusivamente e a esperança de vos ver
descansando bem, após tantas fadigas.
Deus nos dê a graça de nos repousar eternamente nele, em cujo amor sou, senhor Padre, vosso
muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Thibault, padre [da Missão, em Mont]geron5.

901. – A JEAN MARTIN

Paris, 7 de dezembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Eis-vos, pois, senhor Padre, sozinho em vosso novo ministério. Oh! Que Deus seja bendito por
vos ter dado ocasião tão feliz de consultá-lo sobre o modo de levar aqueles que vos são confiados a
progredir em seu amor! Onde faltam os recursos humanos, sobram os socorros divinos. E seja para
sempre bendita sua bondade tão amável, ao querer ser servido, ao mesmo tempo, na cidade e nos campos,
por apenas três pessoas, em negócios tão importantes, como são os seus! É sinal de que ele próprio quer
colocar nelas sua mão e fazer surgir dos trabalhos delas frutos de bênção eterna.
Minha alma se enternece quando penso em vós e na escolha que fez de vós, para aplicar-vos,
embora tão jovem, a tão elevado ministério, como o da perfeição dos padres. Rendo graças a Nosso
Senhor por vos ter merecido tal graça, e lhe peço levar a bom termo em vós seus eternos desígnios. E vós,

.
Carta 900. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Esta carta deve ser aproximada da carta 899.
2
2. Ecônomo da Casa-Mãe.
3
3. Grande comuna das cercanias de Paris.
4
4. Comuna dos arredores de Versalhes (S.-et-O.).
5
5. Comuna dos arredores de Corbeil (S.-et-O.).
.
Carta 901. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Foi no fim do ano de 1646 que Jean Martin foi encarregado do seminário.
67

senhor Padre, humilhai-vos muitíssimo, em vista da virtude e capacidade requeridas para ensinar os
outros, e educar os filhos do reino do céu na milícia cristã; mas confiai ousadamente naquele que vos
chamou, e vereis que tudo irá bem. Parece que, nesse início, Deus vos tenha querido facilitar o ingresso
nesta santa ocupação, pela boa disposição que concede aos vossos seminaristas para a piedade e os
exercícios espirituais, a fim de vos obrigar a empreendê-los com mais ânimo. Importa adorar sua conduta,
e, entretanto, contar que nem sempre encontrareis pessoas tão maleáveis e tão fáceis de dirigir. Ao mesmo
tempo, porém, deveis esperar que, à medida que as dificuldades forem aumentando, Deus vos aumentará
suas graças. De nossa parte, senhor Padre, para que sejais municiado de toda espécie de armas, exercitai-
vos na mansidão e na paciência, virtudes muito próprias para vencer os espíritos rudes e obstinados. De
minha parte, podeis estar certo de que insistirei com Nosso Senhor para vos conceder a plenitude de seu
espírito. Recomendai-lhe, por favor, minha alma, e entregai a carta anexa ao Irmão Sebastião. Escrevo-
lhe, no sentido de vossa sugestão, e sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

902. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 8 de dezembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Embora esteja eu em dúvida se esta carta irá encontrar-vos em Cahors ou em La Rose, não deixo
de [escrever-vos], a fim de estar, por meio dela, presente à vossa partida [daí, se] por acaso aí vos
encontrar, e [vos desejar em vossa viagem] especial proteção de Deus.
Escrevi para Marselha [anunciando vossa chegada] para breve; mas penso, [senhor Padre, que
fareis bem] adiando a visita de lá até [vosso regresso. É necessário] ir ao mais urgente, que é Roma. Não
[vos detereis] nem mesmo em Gênova, para esse fim, contentando-vos com estar com o Padre Martin, que
dirige o seminário, e dizer uma palavra de saudação ao Padre Blatiron e ao Padre Richard, no local onde
pregarão a missão, se puderdes vê-los, na passagem por lá, sem vos desviar do vosso caminho. Escrever-
vos-ei com mais detalhe, de agora até vossa chegada lá.
A próxima ordenação deve ser feita em São Lázaro; recomendando-a a vossas orações, sem
esquecer minha pobre alma nem a comunidade, que vai bem, graças a Deus.
Estou muito aflito a respeito do Padre Du C hesne que enviamos para Nantes, como sabeis, para
dirigir a missão da Irlanda. Partiu, há três semanas, e não sabemos onde ele está; não temos notícia
alguma dele. Queira Deus trazer-nos boas notícias a respeito dele e, quanto a vós, senhor Padre, que vos
proteja. Sua divina bondade me concedeu para convosco extraordinários sentimentos de afeição e de
estima, fazendo de mim, em seu amor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Cahors.

.
Carta 902. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. A data está assinalada no dorso do original, e o conteúdo a confirma.
68

903. – A JACQUES THOLARD

São Lázaro, 8 de [dezembro de 16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


É preciso dizer alto e bom som, senhor Padre, que [infligindo ao demônio o] mau trato a que o
submeteis, travando contra ele a guerra implacável que lhe fazeis e [expulsando-o das almas nas quais ele
insinuara a revolta, e que vós...2[Nosso Senhor Jesus Cristo abençoa] o [socorro] que prestais [às almas]
que ele resgatou com seu sangue precioso. [Em nome de Deus], continuai firme, não deponhais as armas;
[está em jogo] a glória de Deus, a salvação, talvez, de um milhão [de almas] e a santificação da vossa.
Lembrai-vos, senhor Padre, que tendes Deus convosco, que ele combate convosco e que vencereis,
infalivelmente. O demônio pode latir, mas não morder; pode fazer-vos medo, mas não algum mal. Eu vos
garanto isto diante de Deus, em cuja presença vos falo. Do contrário, duvidaria muito de vossa salvação,
ou, pelo menos, temeria vos tornásseis indigno da coroa que Nosso Senhor vos vai tecendo, enquanto
trabalhais por ele, de modo tão feliz. A confiança em Deus e a humildade vos obterão a graça de que
precisais para isso. Se, por acaso, fordes tão fortemente premido pela tentação, suspendei a confissão e
aplicai-vos a alguma distração. Dizei ao Padre Gentil3 que vos pedi o fizesse assim e que, se for
necessário, enviar-vos-ei um padre ou dois dos Bons-Enfants, para confessar em vosso lugar.
Faço-vos, entretanto, nova oferta do meu coração e saúdo o Padre Gentil4 e os outros da
comunidade, prostrado em espírito aos seus pés e aos vossos. Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor
Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Tholard5, padre da Missão em Villejuif6.

904. – A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

Paris, 14 de dezembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Vai aqui esta muito pequena carta, mas que leva ao meu caro Padre Martin a certeza da grande
afeição que Deus me concedeu por ele. Não a posso exprimir, mas a experimento muito vivamente no
íntimo do meu coração. Aquele que a vê vo-la dê a conhecer, como me fez ver a bondade de vossa alma e
as graças de que a cumulou e que constituem o motivo das minhas continuas consolações! Com

.
Carta 903. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Os estragos no documento original, causados pela umidade, correspondem demais aos que sofreu a carta 902. Dificilmente, por isto, não
seria esta de 8 de dezembro de 1646. De resto, é a conclusão a que se chega pelo estudo do conteúdo.
2
2. Das duas linhas que se seguem no original, restam apenas alguma palavras, e nos foi impossível compor umas com as outras.
3
3. Palavra rasurada no original, provavelmente para que não fosse reconhecido o destinatário da carta.
4
4. Palavra rasurada no original.
5
5. Palavra rasurada no original.
6
6. Palavra rasurada no original.
.
Carta 904. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
69

frequência, e exatamente neste momento, suplico a Nosso Senhor seja ele todo vosso, e vós, todo dele.
Que abençoe vosso trabalho e que vosso trabalho o honre e glorifique em si mesmo e em seus jovens
eclesiásticos, que sua providência vos confiou. Que vossas palavras sejam como sementes lançadas em
seus corações. Que produzam ao cêntuplo frutos de caridade e de bom exemplo para os pobres fiéis, a fim
de realizarem obras dignas do nome de Deus. Vede bem, senhor Padre, que, se meus desejos forem
cumpridos, os bens que haveis de operar chegarão ao infinito, e perdurarão depois de vós. Eu o espero da
bondade de Deus, que quer servir-se de vós em coisas de tal importância 1. Em razão disto, humilhai-vos e
vos entregueis a ele.
Sou, em seu amor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Martin.

905. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM SAINT-MÉEN

Paris, 15 de dezembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi duas cartas vossas que me levaram imediatamente a partilhar dos sofrimentos que
experimentais e me impeliram a suplicar a Nosso [Senhor que vos conceda a graça] de [vos li]vrar
deles ... 2[Tive a] oportunidade [de] lhe3 manifestar as [necessidades da] comunidade. Prometeu-me
continuar a prestar-lhe a mesma assistência do seu predecessor [e de nos] fazer o bem que lhe for
possível.
Falei-lhe igualmente sobre Plancoët4 4 . Pretende ir ao local, antes de vos conceder a permissão de
retirar os nossos que lá estão. Deverá ir até lá dentro de um mês ou seis semanas. Entrementes, senhor
Padre, peço-vos ter paciência, levando à frente os trabalhos segundo vossas possibilidades. Seria, porém,
de desejar que désseis continuidade, ao mesmo tempo, às missões e ao trabalho no seminário. Estou bem
ciente do pequeno número da comunidade; mas podeis convidar alguns padres que vos possam auxiliar,
nem que fosse apenas nas celebrações. Já vos escrevi que temos o exemplo, neste sentido, de uma Casa 5
na qual só há três dos nossos, dos quais um dirige o seminário e os outros estão quase sempre em missão.
Ficaria feliz se pudésseis fazer o mesmo. Deixo isso, porém, à vossa discrição, certo de que tendes
incomparavelmente mais afeição do que eu para com o bem e o progresso do próximo.
Ainda não pude enviar-vos o socorro que me solicitastes, tanto porque não temos aqui mais
pessoal do que nos é preciso, [quanto pelo temor] em que tenho [ficado de que] a tempestade [possa
voltar. Agora] sou coagido a adiá-lo...6 na boa vontade que ele7 tem de vos beneficiar.
Adeus, senhor Padre; cuidai de vós, vos suplico, para a maior glória de Nosso Senhor. Saúdo
muito afetuosamente vosso pequeno grupo, que peço a sua divina bondade abençoe com suas bênçãos
eternas, e, particularmente, vossa querida alma, que a minha abraça cordialmente.
1
1. O secretário escrevera: grandes; o Santo rasurou esta palavra para substituí-la de sua própria mão por de tal importância.
.
Carta 905. – C. as. – Dossiê da Missão, original. O documento está em péssimo estado.
1
1. Esta data impõe. Com efeito, foi no fim do ano de 1646 que Bernardo Codoing tornou-se superior do estabelecimento de Saint-Méen e
que Ferdinando de Neufville ascendeu à sede episcopal de Saint-Malo.
2
2. Foi com muita dificuldade que pudemos captar certas palavras esparsas nas três linhas que omitimos aqui.
3
3. Ferdinando de Neufville, o novo Bispo de Saint-Malo.
4
4. São Vicente tinha visto com maus olhos o compromisso assumido por Jean Bourdet de servir a capela de Plancoët. (Cf. C. 815). Estava
empreendendo os esforços para se desvencilhar deste compromisso.
5
5. A casa de Gênova.
6
6. As duas linhas que se seguem no original se encontram por demais incompletas para que possamos reconstituí-las.
7
7. Provavelmente, o novo Bispo de Saint-Malo.
70

Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Codoing.

906. – A LUÍS RIVET, PADRE DA MISSÃO, EM RICHELIEU1

Paris, 19 de dezembro de 16462.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Já recebi a vossa resposta, há muitos dias, e ainda me sinto pleno da consolação que ela me
proporcionou, ao ver os sentimentos que nutris a vosso respeito, que são muito necessários no ofício que
Deus vos confiou, na ausência do Padre Gautier 3. Sou muito grato a sua divina bondade pelas luzes que
vos dispensa, e lhe suplico que realize em vós seus eternos desígnios. Mas sabeis, senhor Padre, que essa
desconfiança de vossas próprias forças deve ser o fundamento da confiança que deveis ter em Deus, sem
a qual nos perceberíamos piores do que pensávamos ser. Com ela, faríamos muito, ou antes, o próprio
Deus faz o que pretende de nós. Não detenhais mais, portanto, vosso olhar sobre o que sois, mas
contemplai Nosso Senhor junto de vós e em vós, pronto para pôr mãos à obra, tão logo recorrais a ele; e
vereis que tudo irá bem.
Pensais acaso que, tendo a ordem de sua providência vos estabelecido neste cargo, não vos
concederia também as graças convenientes para bem desempenhá-lo, se, por seu amor, o exercerdes com
destemor? Disso não tenhais dúvida, senhor Padre, como também não a tenhais a respeito da sincera
afeição que meu coração tem pelo vosso, a ponto de não ser capaz de exprimi-la. Deus vo-la dê a
conhecer, se for do seu agrado, e queira cumular-vos cada vez mais de seu espírito, a fim de difundi-lo,
por vosso intermédio, nas almas que conduzis, e para a maior santificação da vossa!
Abraço em espírito a família toda e sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito
humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

907. – A DÊNIS GAUTIER, SUPERIOR, EM RICHELIEU

Paris, 23 de dezembro de [1646]1.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


.
Carta 906. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII.
1
1. Equivoca-se o registro 2 (p. 107) ao colocar como destinatário da carta “o Padre Rivet, superior em Saintes”. Luiz Rivet não foi nomeado
superior em Saintes a não ser mais tarde. Estava em Richelieu em 1646.
2
2. Na cópia de que nos servimos, um rasgão do canto superior direito eliminou o último algarismo do ano. A data nos é conhecida pelo
registro 2.
3
3. Superior da casa de Richelieu.
.
Carta 907. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original e assinalada pelo registro 2, p. 276; desapareceu deste lugar em consequência dos estragos
causados pela umidade.
71

Não sei se esta carta v[os chegará às mãos durante os] trabalhos da missão... 2 Deus seja, pois,
bendito para sempre! [Rogo-lhe sejais cada vez] mais animado pelo seu espírito para trabalhar para a sua
glória.
Vossa carta, que recebi ontem à tarde, me dá notícia da bênção especial que foi do agrado de Deus
conceder à sua obra, pelo que não sou capaz de agradecer suficientemente a Deus. Praza a sua divina
misericórdia colher do fruto desta missão as ações de graça em seu favor, concedendo a essas pobres
almas a graça de reconhecer e agradecer suas liberalidades, e a nós a de perseverar em nossos pequenos
serviços, em tudo que puder dilatar e consolidar o império de Jesus Cristo!
A proposta que me fizestes de receber, como pensionistas, estudantes que têm intenção de
ingressar no estado eclesiástico, e não outros, me levou a pensar que Deus, talvez, queira servir-se de nós,
em vossa Casa, para aprofundar as raízes destas jovens plantas e me trouxe ao mesmo tempo o desejo de
que lhe apraza dar-nos a graça de fazê-lo com proveito. Podereis, pois, fazer a experiência; mas que a
pensão seja de cinquenta escudos; não podeis acolhê-los por quantia mais barata; muito menos,
gratuitamente, pelo temor de empregar nisso o que é necessário para a manutenção dos padres destinados
[a evangelizar os po]vos e dirigir a paróquia...3.
Acabei acolhendo o desejo que manifestam de nos ter em Luçon 4. A solicitação que o senhor
Bispo de Luçon5 e seu cabido nos dirigem, a nova proposta do senhor arcediago 6 são sinais de que Deus o
quer, e meios que facilitam a concretização desse estabelecimento. Rogo ao Padre Chiroye dirigir-se para
lá, acompanhado apenas de algum Irmão, a fim de resolver com esses senhores o que será preciso. A seu
tempo, enviaremos os operários necessários. Já tenho em vista um de nossos padres, o qual me parece
bastante apto, e mais dois bons eclesiásticos do seminário dos Bons-Enfants, que alimentam o desejo de
prestar glória a Deus, durante um ou dois anos, no exercício de nossas funções. Aguardarei antes as
notícias do êxito da viagem do Padre Chiroye. Mostrai-lhe, por obséquio, minha carta.
Acho razoável o alívio que solicita o Padre Lucas, e é tanto questão de justiça quanto de caridade
conceder-lho. Suplico-vos, pois, senhor Padre, dispensá-lo de toda sorte de trabalho e função, que não
seja a de atender algumas confissões, nas festas e aos domingos...7.
Continuai a agir com caridade para com o Padre Coudray. Vós e a comunidade lhe prestaram bons
serviços. Muito vos agradeço por isto. Fiquei muito contente por terdes agido assim. Deixai-o, portanto,
fazer o que lhe aprouver, pois espero que nada haverá do que dizer em seus extrapolamentos. Estou
escrevendo a ele também, e, se puder, escreverei ao Padre Gobert para lhe testemunhar a alegria que sinto
pela saúde dele, e quanto me senti sensibilizado com seu fervor, ao vê-lo entregar-se tão logo ao trabalho.
Deus o abençoe, a ele e a toda a comunidade, que abraço em espírito com muita ternura e consolação,
particularmente vossa querida alma, pela qual a minha guarda afeições que só Deus conhece. Gostaria
imenso vo-las dar a conhecer, em seu amor, como sendo nele, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Enviar-vos-emos, o mais cedo possível, alguém, no lugar do Padre Chiroye.

Embaixo da primeira página: Padre Gautier.

2
2. A sequência está em falha, por um espaço de 4 linhas.
3
3. Das sete linhas seguintes do original restam apenas palavras isoladas, sem elo aparente.
4
4. Desde 1640, alguns padres da Missão se tinham estabelecido em Luçon, sob a direção de Gilberto Cuissot, ao qual sucedera o Padre
Jacques Chiroye, que dirigia ainda a casa a 3 de maio de 1645 (Cf C. 749). Ignoramos as circunstâncias em consequência das quais Jacques
Chiroye e os seus abandonaram Luçon e se retiraram para Richelieu. É muito provável que o abandono se deveu ao incômodo no qual se
encontrou a casa, em consequência da perda que lhe adveio, com a morte do Cardeal-ministro, da renda dos cartórios de Loudun, de que
participava com a casa de Richelieu.
5
5. Pierre Nivelle (1637-1661).
6
6. Cláudio Thouvant, conselheiro e capelão do Rei, Arcebispo de Aizenay. A discussão sobre sua proposta terminaria no contrato de 7 de
março de 1647 (Arq. Nac. S 6706), pelo qual ele atribuiria a Jacques Chiroye, superior, uma soma de 1.800 libras e lhe devolveria os direitos
que tinha sobre a hospedaria de Pont-de-Vie, casa comprada pelos padres da Missão em dezembro de 1641. Supunha tudo a condição de que
os referidos padres pregariam anualmente uma missão de três semanas em seu arcediagado.
7
7. Omitimos aqui quatro linhas do original, do qual restam apenas algumas palavras esparsas.
72

908. – A JACQUES CHIROYE, PADRE DA MISSÃO, EM RICHELIEU

Paris, 23 de dezembro de 1646.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Quem não receberia com afeto as cartas [que escreveis], e quem não se sentiria consolado ao [ver
que não cessais de] [procurar] a salvação [das almas? Vosso zelo] me [sensibilizou e] causou-me [tal
alegria que não sou capaz de exprimi-la. Não me canso] de [agradecer a Deus e de lhe pedir que vos
continue dispensando as graças que vos tem concedido no estabelecimento de Luçon. Tende confiança],
senhor Padre; ides, afinal, dar início a uma obra da qual Nosso Senhor quer tirar a salvação de uma
infinidade de almas e a plena santificação da vossa. Enquanto fordes negociando essa questão, iremos vos
preparando os operários necessários, a saber, um de nossos padres, que já tenho em vista, com algum
irmão clérigo e dois bons eclesiásticos de nosso seminário dos Bons-Enfants, que desejam passar um ou
dois anos no serviço aos pobres do campo, e que vos darão muito contentamento, como espero. Antes,
porém, de vos enviar alguém, colocai, por obséquio as coisas no seu devido estado, sem, contudo, aceitar
a conclusão das condições propostas, quer pelo senhor bispo ou seu clero, quer pelo senhor arcebispo,
sem antes me informar de tudo.
Rogo a Nosso Senhor, já que lhe apraz vos confiar o cuidado de um negócio que lhe diz respeito,
vos conceda a plenitude do seu espírito e do seu modo de agir, para conduzi-lo em proveito de sua honra
e sempre voltado para ele.
O senhor arcediago gostaria de ter a missão todos os anos, em seu arcediagado... 1 [Quanto à
primeira condição], podereis, de muito bom grado, aceitar o compromisso, [mas] não quanto à segunda,
atendo-vos a duas ou três vilas, no máximo. Esclarecei-me, por favor, sobre sua intenção. Permito-me a
honra de lhe escrever e lhe testemunhar nossa submissão aos desejos desses senhores e do dele, e o apreço
que sinto pela graça que ele nos oferta. Peço-vos transmitir-lhe toda garantia possível, como faço a vosso
respeito, da afeição que meu coração tem pelo vosso. Praza a Deus uni-los em seu amor, pelo tempo e
pela eternidade! Nele, senhor Padre, sou vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Adiei a remessa da carta para o senhor arcediago e os demais até a primeira ocasião para vo-la
enviar, em Richelieu ou em Luçon. Não direis que esses padres não são da Companhia.

Embaixo da primeira página: Padre Chiroye.

909. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

[Túnis, entre 1645 e maio de 16481].

Aguardamos uma grande quantidade de doentes, no regresso das galeras. Se esses pobres
suportam grandes misérias em sua viagem pelo mar, os que permaneceram aqui não padecem menos:
obrigam-nos ao trabalho de serrar mármore todos os dias, expostos ao ardor do sol, que chega a tal
ponto de podermos compará-lo a uma fornalha ardente. É espantoso ver o trabalho e o calor excessivo
que aguentam, capaz de levar cavalos à morte. No entanto, esses pobres cristãos subsistem, não
.
Carta 908. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Seguia aqui o enunciado dos desejos do arcediago; restam, porém, tão poucas palavras nesse local do original, que nos é impossível
reconstituir o texto.
.
Carta 909. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. 1, sec. VII, § 7, 1ª ed., p.118.
1
1. Período da permanência de Juliano Guérin em Túnis.
73

perdendo senão a pele, que expõem como presa desses ardores vorazes. Vemo-los botar a língua para
fora como fariam pobres cães, em consequência do insuportável calor em que precisam respirar. Um
pobre escravo, já muito idoso, acabrunhado pelo mal, e não aguentando mais, solicitou ontem a
permissão para se retirar; a única resposta foi a de que tinha de trabalhar, ainda que viesse a se
arrebentar sobre a pedra. Deixo-vos a imaginar quanto essas crueldades me cortam o coração e quanta
aflição me causam.
Esses pobres escravos, entretanto, sofrem suas penas com inconcebível paciência e bendizem a
Deus no meio de todas as crueldades que lhes infligem. E posso dizer-vos, em verdade, que nossos
franceses superam em bondade e virtude os de todas as outras nações. Temos dois doentes em situação
extrema que, segundo as aparências, não conseguirão escapar, e aos quais administramos todos os
sacramentos. Na semana passada, morreram dois outros, como verdadeiros cristãos, podendo-se dizer
deles que: “é preciosa diante do Senhor a morte dos seus santos”. A compaixão que sinto para com esses
pobres atormentados, que trabalham serrando mármore, me constrange a partilhar com eles os pequenos
refrigérios que lhes daria, se estivessem doentes, etc. Há outros escravos que não são tão maltratados.
Alguns ficam como sedentários nas casas dos patrões e lhes prestam toda sorte de serviços, de noite e de
dia, como o de assar pão, fazer a limpeza, preparar a comida e as bebidas, e outros pequenos ofícios
caseiros. Há outros que os patrões empregam nos seus negócios externos. E ainda outros que ficam
livres para trabalhar para eles mesmos, dando a seus patrões uma certa quantia por mês, que tratam de
ganhar e de poupar em sua pequena despesa.

910. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Entre 1645 e 16511].

Solicitamos à senhora Le Gras que avise a senhora de Lamoignon ser necessário que ela vá rogar a
Madame de Brienne se faça presente na assembleia. Precisamos do parecer dela e também do parecer da
Madame Duquesa de Aiguillon. Como esta última se encontra hoje envolvida em negócios urgentes,
importa, ao menos, insistir com a primeira.

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.
Destinatário: A senhora Le Gras.

911. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

Paris, 28 de dezembro de [16461].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta de [... Agradeço a] Deus por tudo [que relatais a respeito do êxito que] tendes
[em vossas missões...2]; com efeito, pelo que vejo, é um dos maiores santos em sua [Igreja3.

.
Carta 910. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original. Luísa de Marillac entregou esta carta à senhora de Lamoignon, que escreveu
à margem: “Para me alertar, por obséquio. Sou toda vossa, M. de L. Quarta feira, às 13 horas”.
1
1. A carta parece ser do tempo em que Madame de Lamoignon era presidente das Damas da Caridade.
.
Carta 911. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original. Ela desapareceu desse lugar em razão dos estragos causados pela umidade.
2
2. As poucas palavras restantes em oito linhas do original não nos dão possibilidade de reconstituir o texto.
3
3. Trata-se, com muita probabilidade, do Cardeal Durazzo.
74

Fico] sensibilizado com a moderação que demonstrais no artigo da fundação de que me falais, o
qual vos envio na forma que será necessário fazê-lo passar, se for do seu agrado.
Fiquei, por certo, muito contente com saber da boa ordem do seminário e do progresso que nele se
faz. É graça especial de Deus, da qual rogo a sua divina bondade tire ela mesma sua glória, e aceite o
reconhecimento que lhe tributo, em especial pela boa conduta do Padre Martin, que precisa ser sustentado
e fortalecido pelo Espírito Santo, nos diversos ofícios que tem. Deus sabe como receio venha ele
sucumbir sob seu fardo, como também vós sob o vosso.
Escrevo por esse mesmo correio ao Padre Dehorgny, para vos enviar aquele que solicitais, ou um
outro que possa substituí-lo bem; e o faça sem tardar. Para urgir mais com ele, envio-lhe vossa carta, a
fim de que vossas razões o aconselhem, diante da necessidade que deles ele possa ter. Espero que vos
atenda a vosso contento.
Não sei se vos lembrais de que, há algum tempo, o priorado de Saint-Nicolas-de-Champvant, da
diocese de Poitiers, foi doado [à Casa de] Richelieu, e que as provisões foram expedidas [em Roma para
que], no presente, seja atribuído o priorado à Congregação dos padres da [Missão, estabelecida em]
Richelieu. É preciso que dele façais a [renúncia] diante de [notário], para [remetê-la entre] as mãos de
[M...], e de um..., segundo o que foi regulamentado sobre o caso pelos abades e religiosos de Notre-
Dame-des-Noyers4, dos quais depende o referido priorado. A eles pertence a nomeação, pela ata de 6 de
novembro último, passada diante de Girard, notário real. Enviareis a demissão, por favor, com presteza,
ao Padre Dehorgny, a fim de que, a partir dela e da cópia do referido consentimento que lhe devo enviar,
obtenha o breve da citada união.
Quero crer que esta carta vos encontrará no fim de vossa grande missão. E praza a Deus que vos
encontre com plena disposição e em meio ao feliz êxito de vossos trabalhos pela salvação dos pobres que
evangelizais, e caminhando na santificação de vossa alma! Meu desejo não é menor em relação aos
padres que trabalham convosco, pelos quais Deus me concedeu ternas e especiais afeições, vendo a
bondade deles e o bom exemplo que dão a toda a nossa Congregação. Faço com frequência à Companhia
um relato de suas virtudes e seu zelo. Suplico-vos saudá-los humildemente e cordialmente de minha parte,
reiterando-lhes a oferta de minha disponibilidade. Abraço igualmente o Padre Richard e o Irmão
Sebastião, e [peço a Nosso Senhor] os abençoe cada vez mais.
Sou, [em seu amor, senhor Padre], vosso muito humilde servo,
VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

912. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

4 de janeiro 1647.

Podeis dizer ao senhor Cardeal1 que os senhores prelados são nossos patrões em todos os nossos
trabalhos externos e que somos obrigados a obedecer-lhes, como os servos do Evangelho obedeciam ao
seu senhor: se nos mandam partir, somos obrigados a partir; se nos mandam trabalhar, somos obrigados a
fazê-lo; se neles cometemos falhas, têm o direito de nos punir. Em resumo, devemos obediência aos
nossos senhores bispos em todas as coisas que dizem respeito aos nossos trabalhos nas missões, com os
ordinandos, etc; quanto à direção espiritual e doméstica, é atribuição do Superior Geral.

913. – ALAIN DE SOLMINIHAC, BISPO DE CAHORS, A SÃO VICENTE


4
4. Abadia de Beneditinos reformados da Congregação de Saint-Maur, na diocese de Tours.
.
Carta 912. – Reg. 2, p. 76.
1
1. O Cardeal Durazzo, Arcebispo de Gênova.
.
Carta 913. – Arquivos da diocese de Cahors, maço 5, n° 6, original.
75

[16471].

Gostaria muito que o Padre Testacy e os outros de nosso seminário não vos fizessem quebrar a
cabeça, como fazem em muitas coisas, sem necessidade alguma. O intendente de minha casa sempre me
disse que era possível alimentar os pensionistas com cem libras, e penso também o mesmo. Mas ainda
que assim não fosse, ponderei com eles que se trata de um decreto sinodal, emitido com o parecer de
todo nosso sínodo, e seria preciso ter paciência, até o próximo sínodo, para mudá-lo.
Há vinte e cinco bons eclesiásticos em nosso seminário, e dentro de pouco tempo chegarão a bem
perto de trinta e cinco. Por isto, é de toda necessidade que envieis alguns dos vossos para ajudar os
outros e, particularmente, para o canto, o que é muito necessário. Pedira ao Padre Portail vo-lo dissesse.
Conto com vossas providências.
Aguardando, crede-me vosso muito humilde servo,
ALAIN,
Bispo de Cahors.

914. – A JEAN MARTIN

Paris, 11 de janeiro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa querida carta com uma afeição muito sincera e muito terna por vossa querida alma,
que me parece cada vez mais abençoada e escolhida pela mão de Deus, para buscar sua glória naquelas
almas que conduzis, e, por elas, em uma infinidade de outras que o louvarão no tempo e na eternidade.
Trabalhemos, pois, com ousadia e amor, por tão bom Mestre como é o nosso; imitemos-lhe as virtudes,
sobretudo sua humildade, mansidão e paciência; e vereis um feliz progresso em vossa conduta.
Falo convosco, na verdade, com compaixão pelos grandes trabalhos que tendes; mas me consolo,
na confiança que tenho de que Deus vos duplica as forças e conserva vosso coração em paz. É a graça que
lhe peço, enquanto esperais a vinda do socorro que vos deverá chegar de Roma. Roguei ao Padre
Dehorgny, faz já 15 dias, vos envie alguém, sem demora; e pelo próximo correio vos enviarei o
regulamento de nosso seminário dos Bons-Enfants. Tinha encarregado alguém disto, há muito tempo.
Perdoai-lhe o esquecimento e o meu.
O Padre Portail irá estar convosco brevemente. Já se encontra em Marselha. Aguarda apenas a
ocasião oportuna para partir. O Padre Alméras irá com ele até Roma.
Recomendo-os às vossas orações, como também a mim, com eles. Sou, de todo meu coração, no
amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

915. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

1
1. A carta foi escrita no tempo em que Charles Testacy era superior do seminário de Cahors e pouco depois da passagem de Antônio Portail
por esta cidade, onde se encontrava em dezembro de 1646.
.
Carta 914. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
.
Carta 915. – C. aut. – Original comunicado pelo senhor Abade Le Gras, avenida du Parc, 8, Lyon.
76

Quarta-feira [entre 1643 e 16491].

Senhor Padre,

Enviei vosso bilhete, o qual foi entregue a Madame de Lamoignon, porque a senhora Viole não
estava lá; a Madame me comunicou que o dia da assembleia dependia de vós e que a senhora Violle
gostaria muito que fosse, se possível, na sexta-feira.
Sou, senhor Padre, vossa muito obediente filha e serva,

916. – A JEAN MARTIN

Paris, 1° de fevereiro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso senhor esteja sempre convosco!


Dais-me um prazer singular, ao me consolar com vossas cartas, por causa dos efeitos que
produzem em mim: jamais leio alguma delas sem ser tocado de reconhecimento para com Deus e de
ternura para convosco, vendo os sentimentos que vos inspira, de humildade e de confiança, origem da
santa generosidade com que sustentais o peso de um seminário. Praza a Deus, senhor Padre, fortalecer-
vos sempre mais e vos conceder a plenitude do seu espírito, para animar esse pequeno grupo e moldá-lo
segundo as máximas de Jesus Cristo! Jamais penso em vós sem vos confiar a ele, dando ação de graças
pelas que ele vos dispensa. Se não notasse sobre vós uma especial assistência de Deus, acreditaria estar
sonhando, quando me vem ao espírito como um homem tão jovem como vós1 conduz, de modo tão feliz,
o interior e o exterior de vários outros. Rogo novamente a Nosso Senhor que realize seus desígnios sobre
vós e por vós, e que, por vossas preces, tenha misericórdia de mim.
Sou, em seu amor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,
VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

917. – A JEAN MARRTIN

Paris, 18 de fevereiro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Ó senhor Padre, como vossas cartas me trazem sempre alegria! Deveras, senhor Padre, é algo que
não sou capaz de exprimir.
Meu Deus! senhor Padre, como tendes razão na descrição que me fazeis de vosso estado interior!
Mas Deus seja bendito pelo bom uso que dele fazeis. Enquanto estivermos neste vale de lágrimas, ainda
que fôssemos santos, sentiríamos sempre o que estais sentindo. Deus o permite, a fim de vos manter
1
1. Antes de 1643, Madame de Lamoignon não era ainda presidente das Damas da Caridade; depois de 1649, Luísa de Marillac não chamava
mais São Vicente de “Monsieur” – senhor Padre – mas de “Meu honorabilíssimo Pai” ou “Senhor, meu honorabilíssimo Pai”(Mon três
Honoré Père).
.
Carta 916. – C. as. – Dossiê da Turim, original.
1
1. Padre Martin nascera em 10 de maio de 1620; estava, portanto, com vinte e sete anos.
.
Carta 917. – C. aut. – O original foi doado em 1886 aos padres da Missão da casa de Chieri, pelo Padre Pierre Marietti, em reconhecimento
pela hospitalidade recebida em sua casa, quando nela fez os exercícios espirituais em preparação às ordens sacras.
77

sempre em forma, no exercício da santa mortificação e da humildade. Perseveremos inabaláveis nessas


ocasiões, e Nosso Senhor sairá como vencedor de nossas paixões dentro de nós, e reinará soberanamente
em nós e, por nós, nas almas para cujo serviço sua providência nos destinou. Firmeza, portanto, e
andemos sempre nos caminhos de Deus, sem nelas nos deter.
Ó senhor Padre, que diremos de vosso santo prelado 1, do qual me dizeis tantas coisas elogiosas.
Fico, sem dúvida, admirado e espero que, se Nosso Senhor o conservar por dez anos em sua Igreja, ele há
de renovar toda a sua diocese, como fez o senhor Bispo de Alet2.
Escrevo ao Padre Blatiron que é de se desejar que se proponha a esse santo prelado o
estabelecimento das conferências dos senhores párocos e outros eclesiásticos do campo. Espero que, se
aprouver a Nosso Senhor a continuação de sua santa bênção sobre os trabalhos desse santo prelado, como
tem feito até o presente, de modo particular a respeito dessa espécie de conferências, que o Padre Blatiron
conhece bem, por ter sido dos primeiros a nelas trabalhar, grandes frutos daí resultarão. Mas qual!
importa fazer as coisas aos poucos. A graça tem seus pequenos inícios e seus progressos.
Quanto à missão na cidade, tivestes razão de falar com ele sobre a maneira como é pregada.
Peço-vos, senhor Padre, transmitir-lhe, de tempos a tempos, novos protestos de minha obediência,
e de pedir-lhe para mim sua bênção. Eu lha suplico, prostrado em espírito aos pés de Sua Eminência. Sou,
no amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde e muito obediente servo,
VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

918. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Entre 1639 e 16491].

Senhor Padre,

Não saberia o que dizer de minha saúde, mas vos asseguro que preciso muito falar convosco a
respeito das necessidades de algumas Irmãs, antes de pensar noutra coisa.
Temos aqui nossa Irmã Carlota muito mal, há bastante tempo; é a irmã da Irmã Genoveva, do
Hospital Geral, que nele também ajudava a servir a merenda. Receio muito não venha acontecer-lhe
como à nossa falecida Irmã Bécu. Receitaram-lhe, várias vezes, sangria no pé, mas ninguém conseguiu
tirar-lhe sangue. Se vossa caridade quiser enviar-nos o Irmão Alexandre, talvez ele o consiga. De
ordinário, ela tem febre mais alta pela tarde do que pela manhã.
Nossas Irmãs estão em retiro; quando vos aprouver, poderão fazer sua confissão. Nenhuma fará
confissão geral.
A jovem de Lorena que conversou conosco no Hospital, ainda não encontrou serviço; faz mais de
quinze dias que está lá, para isto. Que faremos? Não lhe deis dinheiro, por favor. Disse à Irmã Genoveva
que lhe fornecesse tudo de que necessita. Que mais quereria ela, senão ficar por lá sem fazer nada, e
tendo dinheiro?
Vejo tanta desordem por toda parte, que me sinto angustiada. Entretanto, tenho esperança e
quero confiar na divina Providência, com as santas Marta e Maria.
No amor de nosso bom Jesus, sou, senhor Padre, vossa muito humilde filha e serva agradecida.

L. DE M.

1
1. Cardeal Durazzo.
2
2. Nicolau Pavillon.
.
Carta 918. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Em 1639, a Irmã Bécu ainda estava em vida (Cf. c. 387); Depois de 1649, todas as cartas de Luísa de Marillac a São Vicente começam
por “Meu honorabilíssimo Pai” e não por “Senhor Padre”.
78

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

919. – A JEAN MARTIN

Paris, último dia de fevereiro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Nesta semana, recebi uma carta vossa, não do Padre Blatiron, o qual, estando ausente e em meio a
grandes ocupações, não tem condição de dar providência a tudo. Na verdade, admiro vosso desvelo: em
meio aos apuros de uma Casa e de um seminário, não deixais de me proporcionar esta consolação. Desta
vez, foi extraordinária, na medida em que me informa sobre as bênçãos que apraz a Deus continuar
derramando, tanto sobre os trabalhos do Padre Blatiron como sobre sua própria pessoa. O que se opera
nele e por ele parece um pequeno milagre. Somam-se a tudo isso as graças singulares que apraz ao
mesmo Senhor conceder, também, a vós, abençoando vossa conduta e enchendo-vos o coração de perfeita
confiança em seu auxílio, o que é o meio dos meios para realizar as obras de Deus com pleno êxito.
Descobristes o segredo; quem não agir imbuído deste espírito, por mais capacidade que tenha, não logrará
êxito, nem para si, nem para os outros. Permaneçamos, pois, senhor Padre, permaneçamos firmes nesta
preciosa confiança em Deus, a força dos fracos e os olhos dos cegos. Embora as coisas não caminhem de
acordo com nosso modo de ver e nossos pensamentos, não duvidemos de que a Providência os
reconduzirá ao ponto certo para nosso maior bem. Não vos assusteis de modo algum com alguns
discursos ouvidos. Esse querido eclesiástico, o primeiro que trabalhou nas missões, e que conversou
convosco sobre o seu desprazer, no presente, a respeito delas, não deve servir para julgar os outros a partir
dele, nem deve levar a crer que se aplicam a esse santo exercício simplesmente para agradar ao senhor
Cardeal. Ainda que assim o fosse, Deus não deixa de tirar sua glória dessas intenções tortuosas, e muitas
almas serão salvas. E se vierem a desistir, como acontecerá, se não visarem a Deus, o senhor Cardeal
chegará então à conclusão de que, para fundar um sólido estabelecimento, ser-lhe-ão necessárias pessoas
que se tenham doado a Nosso Senhor para esse ministério, e não eclesiásticos da região que têm outras
pretensões.
Praza à sua infinita bondade nos conceder a graça de que todos os nossos tendam para o progresso
de sua glória e para a nossa própria humilhação!
Sou, em seu amor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

920. – A FRANCISCO ADEMAR DE MONTEIL, ARCEBISPO DE ARLES

Paris, 29 de fevereiro1de 1647.

Senhor Arcebispo,

.
Carta 919. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
.
Carta 920. – C. as. Bibl. mun. de Arles, ms. 142, t. III, original. Esse manuscrito vem da biblioteca de Laurent Bonnemant, padre de Arles,
e tem como título Atas antigas e modernas concernentes ao Arcebispo de Arles.
1
1. Distração do secretário; trata-se de fato do dia 1° de março.
79

Recebi a carta com que me honrastes, com todo respeito que devo a tão digno prelado. Já tinha eu
conhecimento, pela voz do povo e por um dos deputados de Marselha, do feliz êxito de vossa
intermediação na pacificação dessa cidade. Ela reconhece que, depois de Deus, deve todo reconhecimento
por isto à vossa prudente conduta. Quanto a mim, dei graças a Nosso Senhor, e não duvido de que, como
recompensa, vos conceda a perfeição e o dom desta felicidade. Peço-lhe, também, vos conserve por
longos anos, para a sua glória e o bem de sua Igreja.
Quanto à abadia de São Cesário, tende como certo, senhor Arcebispo, que, naquilo em que puder
contribuir para vossa intenção, fá-lo-ei de todo meu coração, tanto porque mo recomendais, quanto pela
devoção que tenho com o grande São Cesário. Aliás, estou ciente, desde há muito tempo, da necessidade
desse mosteiro, que vosso predecessor teve a intenção de remediar 2. Deus, porém, com a morte dele, vos
reservou a execução e o mérito dessa boa obra. Praza à sua infinita bondade realizar em vós seus eternos
desígnios! Não deveria oferecer-vos a não ser minhas pobres orações, que é tudo que posso para vosso
serviço; entretanto, senhor Arcebispo, tomo a liberdade de vos reiterar aqui a oferta de minha obediência
com toda a humildade e afeição a mim possíveis, na confiança que tenho de que não vos causarei
desagrado, já que foi Nosso Senhor que me colocou na condição de ser, em seu amor, vosso muito
humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Arcebispo de Arles, em Arles.

921. – ALAIN DE SOLMINIHAC, BISPO DE CAHORS, A SÃO VICENTE

Mercuès, 3 de março de 1647.

Senhor Padre,

Levantei a mesma dificuldade que vós, quanto a receber no seminário esses dois jovens dos quais
vos escrevi, e a comunicara ao Padre Testacy; mas julguei-me obrigado a vos escrever, remetendo tudo
ao vosso juízo. Entretanto, o senhor do lugar e parte dos habitantes que ofereciam resistência acabaram
cedendo. Mantê-los-ei nesse bom intento, esperando que Deus nos dê a conhecer sua vontade no sentido
de ter um colégio em Cahors, a fim de nele educar e instruir as pessoas que se dedicam ao seu serviço,
no estado eclesiástico, e nos propicie os meios de colocá-la em prática, como há de fazê-lo, se lhe
aprouver. Essa fundação de mil escudos para os dois jovens é um início.
Fizestes bem em não falar nada ao senhor de La Marguerie 1 sobre o que vos escrevi de seu filho2,
já que ele é da opinião que me dizeis.
O provincial dos capuchinhos não vos é bem conhecido. Não vos relatou as queixas que dele me
fazem os seus, não apenas por cartas, mas de viva voz. Envio-vos uma cópia da carta que o Rei me
escreveu a respeito dele, e uma outra do senhor Núncio. Lede-as em algum momento de folga;dar-vos-ão
a conhecer esse espírito. Ignorai tudo, se quiserdes, e deixai que o povo fale. Conheceis minha máxima
sobre esse assunto, da qual não me afasto.

2
2. Para restabelecer a regularidade no mosteiro de São Cesário, onde se tinham infiltrado os mais lamentáveis abusos, Jaubert de Barrault,
Arcebispo de Arles, nele tinha introduzido em 1639 religiosas de Billom, da Auvérnia (Gallia Christina novíssima, Arles, Valência, 1901, in-
f°, col. 967, n°2259, conforme os Arquivos das Bouches-du-Rhône, S. Cesário de Arles Reg. XXXVI, 2). Vistas com maus e invejosos olhos
por suas companheiras, perseguidas pela abadessa, que chegava ao ponto de privá-las de alimento, as infelizes reformadoras não tinham
podido, apesar das advertências do arcebispo e da vontade do Rei, remediar às desordens de que eram, todos os dias, as testemunhas
entristecidas (Arq. Nac. v° 187, n° 36).
.
Carta 921. – Arquivos da diocese de Cahors, caderno, cópia.
1
1. Elias Laisné, Senhor de la Marguerie.
2
2. Luís Laisné.
80

Peço-vos tenhais a bondade de receber esses dois religiosos nos Bons-Enfants, como pensionistas,
como os outros, enquanto permanecerem em Paris. Estão indo para agilizar o julgamento da questão de
Santa Genoveva, à qual vos suplico continuar vossa assistência.
Ficaríeis extasiado de alegria, se soubésseis o bem que faz nosso seminário. O Padre Testacy está
encantado. Ele é um excelente eclesiástico. Folgaria muito que tivesse tanta experiência como tem de
bondade.
Rogo-vos, em nome de Deus, ter piedade das dioceses de Montauban e de Sarlat, e da minha, que
está sofrendo com a desordem delas.
Uma palavra de recomendação ao Senhor de Morangis em favor dos nossos religiosos lhes será
muito útil.
Entrementes, crede-me, senhor Padre...

ALAIN,
Bispo de Cahors.

922. – A. – A JEAN DEHORGNY, SUPERIOR, EM ROMA

Março de 1647.

Deus vos dará, a seu tempo, outros operários. A necessidade não foi tão urgente até o presente, já
que não tivestes ordenação, e os tendes, até certo ponto, suficientes para as missões, embora não no
número como gostaríeis. Vamos levando os trabalhos, aqui e em outras Casas, como nos é possível. Seria
razoável tivéssemos fartura de pessoal, o que tornaria alguns ociosos durante uma parte do tempo,
enquanto a Deus estaria faltando em outros lugares onde nos chama? Santo Inácio, antes de sua morte,
não fundou cerca de cem estabelecimentos com duas ou três pessoas em cada um? Não deixava de haver
muitos inconvenientes, pois que enviava noviços para eles e, às vezes, era obrigado a estabelecê-los como
superiores; mas, também, não faltavam bons frutos nem as providências necessárias. Se fundamos
alguns, não foi, graças a Deus, por desejo algum de nos expandir, sua divina bondade o sabe, mas
unicamente de corresponder aos seus desígnios. Não foi, muito menos, por escolha nossa, nem por
solicitação de nossa parte, mas somente por disposição vinda do alto, que nossa indiferença nos deu
oportunidade e tempo para discernir e reconhecer.
Quem nos garantirá que Deus, no momento, não nos está chamando para a Pérsia? Importa não
ficar especulando que nossas Casas não estão completas; com efeito, as mais bem providas não produzem
mais fruto. Pelo contrário, não temos ocasião de crer e até mesmo de temer que Deus abandone a Europa
à mercê das heresias que combatem a Igreja desde há um século, que fizeram tantas devastações, e que a
reduziram como a um pequeno ponto? E por acréscimo de infelicidade, o que sobra parece exposto à
divisão, em razão de opiniões novas que pululam a cada dia. Quem sabe, digo eu, não queira Deus
transferir a mesma Igreja para as regiões dos infiéis, os quais, talvez, conservem no coração mais
inocência nos costumes do que acontece com a maior parte dos cristãos, que nada têm menos a peito do
que os santos mistérios de nossa religião? Quanto a mim, tenho consciência de que esse sentimento me
habita desde longo tempo. Mas, ainda que Deus não tenha tal desígnio, não deveríamos contribuir para o
crescimento de sua Igreja? Sim, sem dúvida; e assim sendo, em quem reside o poder de enviar ad gentes
(além fronteiras)? Não há dúvida de que deve pertencer ao Papa, aos Concílios e aos bispos. Ora, estes
últimos só têm jurisdição nas respectivas dioceses; quanto aos Concílios, não os há nesses tempos. Resta
a pessoa do primeiro. Se, portanto, ele tem direito de nos enviar, temos igualmente a obrigação de ir; de
outra forma seria vão o seu poder.
Sabeis, senhor Padre, desde que tempo a Sagrada Congregação lançou os olhos sobre nós, quantas
vezes nos mandou solicitar, quão pouco nos apressamos, para não mesclar nada de humano na decisão
desse santo empreendimento; mas como somos novamente pressionados, tanto por cartas quanto pelo
senhor Núncio1, não duvido mais de que seja preciso chegar-lhe à execução. Tinha disponibilizado para a
.–A
Carta 922. – Reg. 2, p. 72.
1
1. Nicolau Bagni.
81

Babilônia o Padre Féret; mas o senhor Arcebispo de Paris, querendo obtê-lo para Saint-Nicolas-du-
Chardonnet2, queixou-se comigo de que eu estaria querendo tirá-lo dele. Comuniquei-vos que, não
sabendo a quem me dirigir fora da Companhia, pensara no Padre Gilles ; mas isto não foi considerado
conveniente. Sondei, a respeito, entre outros dos senhores padres de nossa Conferência; mas não
encontrei ninguém com suficiente decisão ou aptidão. Resta-me apenas entender-me com o senhor Padre
Brandon. Na falta desse3, vejo-me obrigado a recorrer à Companhia para obter alguém. Rogai a Deus
nesta intenção, por favor. Definida a escolha, quer dentro, quer fora, avisar-vos-ei. Nesse ínterim,
aguardarei o relatório que o senhor Padre de Montheron vos prometeu, a respeito dessa viagem.
Sou...

923. – A JEAN MARTIN

Paris, 8 de março de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Quero apenas, com a presente carta, bendizer a Deus pelas bênçãos que concede a vossa conduta
no seminário e pelas boas disposições de vossa alma, que vos levam a agir com tanta confiança em Nosso
Senhor. Ao vê-la, pelas vossas cartas, sinto-me impregnado de seu odor. Esta virtude da confiança em
Nosso Senhor, aliada à humildade e à mansidão, praticadas todas para com esses bons eclesiásticos,
produzirão maravilhosos efeitos em seus espíritos, porque o próprio Deus animará com seu espírito
vossos exemplos e palavras, e cumulará o vosso com suas luzes e força; enfim, há de plenificar-vos com
suas eternas consolações. É a súplica que lhe faço, prostrado diante dele e que lhe farei durante toda a
minha vida, de tal modo ele vos tornou caro a minha alma e me fez, em seu amor, senhor Padre, vosso
muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

924. A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA1

8 de março de 1647.

Três cartas vossas chegaram ao mesmo tempo às minhas mãos; eu as recebi como se fossem vós
mesmo, senhor Padre, isto é, com alegria e consolação e, por certo, com gratidão para com Deus, pois vos
conserva com saúde em meio a tantos trabalhos e abençoa sempre esses mesmos trabalhos, apesar dos
empecilhos que o espírito maligno levanta contra eles. Podeis imaginar como agradeço com frequência à
sua infinita bondade por tudo, e como, ao lhe oferecer os frutos que opera por vós, apresento-lhe também
os desejos e afetos de vosso caridoso coração e até mesmo esse querido coração todo inteiro, a fim de que
ele o amenize com as suavidades do seu amor. Com efeito, vendo-me cheio de ternura por vossa pessoa e

2
2. Ele ocupou essa paróquia de 7 de setembro de 1646 a 16 de janeiro de 1676.
3
3. Brandon não aceitou.
.
Carta 923. – C. as. Dossiê de Turim, original.
.
Carta 924. – Reg. 2, p.198.
1
1. O manuscrito de Avinhão traz como destinatário desta carta “M.N, superior, em Richelieu”; é claro, porém, que esta destinação provém
de uma distração do copista, porque o registro 2, que segue de ordinário o manuscrito de Avinhão, diz que ela é dirigida a Estêvão Blatiron,
superior, em Gênova, e muitas passagens seriam inexplicáveis, se o destinatário fosse superior de Richelieu.
82

da apreensão de que ela venha a sucumbir aos seus penosos trabalhos, vejo-me, igualmente, sem cessar,
solicitado a invocar sobre vós o socorro divino, embora meus pecados me levem a temer pela ineficácia
de minhas preces.

925. LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

10 de março de [16471].

Senhor Padre,

A sobrecarga (de trabalho) que tendes com tantas pessoas importantes em vossa Casa, impede-me
de enviar-vos a carta do Padre des Jonchéres, juntamente com outras que devo comunicar a vossa
caridade, para pedir vosso parecer sobre elas.
Não creio que tenhais levado a mal o que meu filho disse, pois, a meu ver, não extrapolou os
limites do respeito a que está obrigado. O que, porém, me parece inaceitável é que o negócio se faça sem
o consentimento de vossa caridade. Prevejo que o atraso pode ser muito prejudicial a meu filho, por
várias razões que agora não posso enumerar. Temos, pois, de estar preparados para todos os
acontecimentos que pressinto, por desagradáveis que sejam.
Comuniquei-vos o que me disseram, a fim de impedir que continuassem as invectivas e
maledicência contra os costumes daqueles de cuja doutrina se suspeita. Observou-se que os deste partido
haviam assegurado, no púlpito, que tinham entrado para ele por espírito de união e caridade e sempre
falavam nesses termos.
Madame Condessa de Maure pediu-me que eu me empenhasse em devolver-lhe um livro que vos
havia enviado, a “Apologia de Jansênius”2. Ela vos envia este outro, como vos prometeu, a fim de que o
examineis.
Se eu soubesse que amanhã eu poderia dispor de alguma hora para falar convosco, suplicar-vos-
ia muito humildemente me concedêsseis esse favor. Trata-se de algumas necessidades de nossa
Companhia, além da de Nantes que é muito grande.
Nossa Irmã Madalena3 está bem melhor, graças a Deus, e tudo vai bem em Angers.
Sou a causa de muitas desordens por toda parte. Receio que vossa caridade se esqueça de minhas
necessidades. Elas me levam a desejar mais do que nunca que vossa caridade creia que sou, pela vontade
de Deus, senhor Padre, vossa muito obediente e mui grata filha,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

926. – A DOM INGOLI1

Paris, 15 de março de 1647.

Excelência,

.
Carta 925. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Obra publicada por Arnauld em 1644.
3
3. Madalena Monget, superiora das Irmãs de Angers.
.
Carta 926. C. as. – Arquivo da Propaganda, VI, Lettere di Francia, Inghiltera, Scozia, Ibernia et India, 1647, n° 145, f° 81, original.
1
1. Secretário da Propaganda.
83

Recebi a carta com que aprouve Vossa Excelência Reverendíssima honrar-me, com o respeito e a
devoção que Nosso Senhor me concedeu para com um dos prelados da Igreja que mais trabalham pela
expansão do império de Jesus Cristo por toda a terra. Entreguei-me a Deus para lhe obedecer a respeito da
ordem que Vossa Excelência Reverendíssima me deu de destinar alguém da Companhia para a
coadjutoria de Babilônia. Não pude encontrar nenhum externo, com as qualidades que me parecem
requeridas, que tenha querido ou podido empreender essa boa obra... Aquele que estou destinando para
esse fim, Excelência, é um dos dois assistentes que a Companhia me deu como conselheiros, na
responsabilidade de sua direção. Nele, aprouve à divina bondade colocar aproximadamente as qualidades
requeridas para esse santo ministério, pelo que me parece. Confesso-vos, Excelência, que a privação
dessa pessoa é, para mim, como arrancar-me um olho e cortar-me um braço. Mas o culto que dedico ao
poder que Nosso Senhor deu a sua Igreja, e que reside na pessoa de nosso Santo Padre, de enviar ad
gentes, e a obrigação de obedecer que têm, por conseguinte, todos os eclesiásticos da Igreja, nesse caso,
assim como o pensamento de que Abraão colocou-se em disponibilidade para sacrificar seu único filho, e
de que o Pai Eterno nos deu seu próprio Filho, tudo isso junto me levou à decisão de destinar esse bom
missionário para tal obra e a me oferecer a mim mesmo, se fosse digno.
Eis, Excelência, a disposição em que estamos a respeito desse negócio, do qual espero falar, na
primeira ocasião, à Rainha e ao senhor Cardeal. Sondarei a intenção de Sua Majestade sobre o caso.
Comunicarei tudo a Vossa Excelência Reverendíssima, a quem ofereço a obediência de nossa pequena
Companhia e a minha, sendo, no amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, Excelência, vosso muito humilde e
muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno superior da Congregação da Missão.

Embaixo da primeira página: Dom Ingoli.

927. U– M PADRE DA MISSÃO A SÃO VICENTE

Marselha, 1647.

Saímos de uma missão que nos reteve, pelo espaço de cinco semanas, presos aos confessionários,
ao púlpito e às conciliações dos processos, com tanto êxito e fruto, que posso dizer, sem exagero, não
seria possível desejar mais. Regularizamos nove ou dez casamentos clandestinos, fizemos cerca de vinte e
cinco ou trinta conciliações de processos, em alguns dos quais estavam em jogo somas muito notáveis.
Em outros, se empenhava a honra; em outros, a vida. Tudo foi feito com entendimento e acordo entre as
pessoas, sem a intermediação de ninguém. Alguns aconteceram até mesmo na igreja, publicamente, e
durante a pregação, com tantos sentimentos e lágrimas, que chegavam a interromper o pregador.
Aconteceu também que um homem de condição medíocre, num impulso emotivo de cólera, respondeu a
um dos nossos com menos discrição e acrescentou à sua resposta uma blasfêmia, em público, diante da
igreja; quinze dias depois, concebeu tal arrependimento que, espontaneamente, como satisfação pelo seu
pecado, impôs-se a si mesmo o pagamento de cem escudos, para a reparação da igreja diante da qual
tinha proferido a blasfêmia.

928.mç – A JEAN MARTIN

Paris, 15 de aro de 1647.

Senhor Padre,
.U
Carta 927. – Abelly, op cit., 1, II, cap. I, §4, 1ª ed., p.38.
.mç
Carta 928. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
84

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A presente carta é apenas para continuar a usufruir da consolação que experimento em nossa troca de
cartas. Vossas cartas me dão mais alegria do que qualquer outra coisa, porque nelas me parece estar
vendo vosso coração e, nele, muito desejo e disposição para amar Nosso Senhor. Por sua vez, Nosso
Senhor não deixará de vos proporcionar cada vez mais a comunhão em seu amor e em suas virtudes, para
delas cumular-vos a alma. E é o que lhe pedirei por toda a minha vida.
Não estou escrevendo aos Padres Portail e Alméras, porque julgo que estão mais próximos de Roma que
de Gênova, no momento em que escrevo. Tenho certeza de que ficastes feliz por ter estado com eles.
Aguardo notícias de sua partida e do que fizeram. O que estais pedindo, isto é, que eu mande que um
deles permaneça em Gênova, não é exequível, no momento. Eles têm algo mais a fazer em outros lugares
e Deus vos dará a graça, a vós e aos outros daí, de corresponderem aos planos de Deus sobre nosso
estabelecimento, no lugar onde estais, como o fez até o presente, pelo que lhe agradeço. Não desejemos
que a Companhia tenha fama e estima pela sua expansão. A humildade e a confusão nos são mais
adequadas, e Deus não precisa do favor dos homens, nem de nosso crédito para nos chamar para onde lhe
apraz. Peço-vos recomendar-lhe minha alma e crer que a vossa me é muito cara, e que sou, em seu amor,
senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

929. – A UM PADRE DA MISSÃO, EM ROMA

1647.
(16571).

Fico muito penalizado com vosso sofrimento, e, entretanto, contente que mo tenhais revelado. A
conduta de Deus é tal, sobre aqueles que destina a algo importante ou muito particular para o seu serviço,
que os testa, antes, com tristeza, contrariedades, aversões2,á e movimentos de inconstância. Deus o permite
ora para prov-los, ora para fazê-los experimentar a própria fraqueza, ora para desapegá-los mais das
criaturas3. Outras vezes, o permite para desfazer a fumaça de alguma vã complacência; mas sempre para
torná-los mais agradáveis aos seus olhos. Não tenhais dúvida, senhor Padre, de que a tentação que sofreis
contribua para vosso progresso espiritual, se a ela resistirdes.
Talvez, porém, penseis que não se trata de uma tentação, pois se esconde, como é o caso, sob a
aparência de um bem: dizeis, com efeito que não quereis ser motivo de escândalo para a Companhia.
Peço-vos acreditar que maior escândalo não lhe poderíeis dar, do que dela vos separando para ir fazer
vossa própria vontade.
Dizeis, também, que tendes amor à regra, mas, logo após, testemunhais o contrário, ao dizer que
não quereis ser obrigado a observá-la. É certo que a verdadeira caridade leva a amar as coisas boas, mas
é também verdade que a natureza refuga as que lhe tornam cativa a liberdade; e é de se temer que aderis
antes à rejeição da carne do que à atração dessa virtude. Dizeis, com efeito, que não cumpris mais o
regulamento por puro amor de Deus, e que, em vez de vos corrigir dessa falha, quereis ir em frente,
desafiando mesmo este amor, sacudindo totalmente o jugo de Jesus Cristo, e vos voltando para vós

.
Carta 929. – Reg. 2, p. 294. Encontra-se no dossiê de Turim a minuta desta carta, escrita pela mão do Irmão Ducournau (N. do T.: nesta
carta estão incorporadas todas as correções que constam no Tomo VIII, no “ÍNDICE DAS CORREÇÕES E ADIÇÕES”).
1
1. Data escrita pelo irmão Ducournau à margem da minuta. A carta não é, portanto, de 1647 (como consta no original francês, cuja correção
aparecem no Tomo VIII, no índice das correções e adições N. do T.) como pensou o copista do registro 2. Esta carta, portanto, deveria ser
transportada para o tomo VI.
2,á
2. Texto da minuta: por incômodos desgostos.
3. O
3. Texto da minuta: das coisas criadas
85

mesmo, depois de vos ter desprendido de vós em prol dele. Rogo à divina bondade não o permita. Tendes
grande necessidade de tomar consciência do espírito que vos impele, e de considerar que não há homem
algum, por mais perfeito que seja, e mais firme em sua vocação, que não sofra por vezes desagradáveis
abalos. O inimigo chegou a tal temeridade como a de acometer o próprio Filho de Deus, no sentido de se
fazer adorar por ele, a mais horrível tentação que a malícia pôde inventar. Houve, entre os apóstolos ou
entre os santos, quem não tenha sentido necessidade de se fazer violência para resistir aos ataques da
carne e do mundo? Vós mesmo nos relatastes que, para entrar em nossa Congregação, fizestes sobre vós
mesmo um grande esforço, quando viestes por várias vezes aqui, para pedir que nela fôsseis recebido,
contrariando a natureza, que desejava uma recusa de nossa parte; vós o dissestes com gratidão, pelo fato
de que o movimento de Deus tinha prevalecido, e nós o escutamos com satisfação, como um presságio de
vossas futuras vitórias sobre vossas paixões. Com efeito, muito as mortificastes depois, por sua graça; e se
comparardes vossa vida de missionário à que leváveis antes, encontrareis nela uma grande diferença.
Coragem, pois, senhor Padre! Permaneçamos firmes. Como padres, somos agora obrigados a
maior perfeição e a prestar mais socorro às almas. Em meio a tão belas ocasiões que Deus nos concede
nesse sentido, seria possível que uma pequena repugnância nos fizesse abandonar tudo?! Deus nos livre,
pois o Apóstolo diz que é impossível, aos que foram iluminados e depois se afastaram da luz, voltar ao
estado do qual desabaram4! Em conformidade com isso, vemos muitos que, por melhor intenção que
tenham, e por mais belas que sejam suas resoluções, ficam, entretanto, tolhidos quando é preciso chegar à
pratica, ou quando se trata de vencer as dificuldades . Tendo faltado à graça, a graça lhes falta, e os
escrúpulos os corroem, o amor próprio lhes modela uma consciência que se acomoda à sensualidade, e a
natureza triunfa. Não estou exagerando em nada; a experiência o mostra, diariamente.
Falei-vos, porém, demais sobre isto, meu caro Padre, porque, talvez, na hora em que vos escrevo,
já vos livrastes da sugestão que vos trabalhava o espírito. Se assim o é, louvo a Deus por isto; se não,
peço-lhe vos liberte dela.
Pedi-lhe vós mesmo esta graça; é o primeiro meio que vos aconselho; o segundo é que, no caso em
que a permanência onde estais, ou que as pessoas que estão convosco vos estejam afligindo, ide para...
Escrevo ao superior que lá vos receba com toda cordialidade possível. Ele o fará de muito boa vontade,
por causa da estima e da afeição que me testemunha ter por vós.

930. G
– UM PADRE DA MISSÃO A SÃO VICENTE

1647.

A missão de émozac1 produziu resultados muito consoladores: sete ou oito hereges abjuraram seus erros;
outros os teriam imitado, não fosse o temor da sobrecarga de impostos por parte dos chefes da localidade,
todos eles da religião reformada2. Os habitantes que não vão à missa, por respeito humano, aceitariam de
bom grado que o Rei os obrigasse a cumprir esse dever. “Um dos convertidos é um velho que tínhamos
exortado várias vezes, mas inutilmente; depois de uma última tentativa de nossa parte, um pouco antes de
nossa partida, vendo que nada poderíamos conseguir dele, veio-nos a ideia de recorrermos à Santíssima
Virgem e suplicar-lhe a intercessão em favor da conversão desse pobre transviado. Com este intento,
fomos prostrar-nos de joelhos e recitar as ladainhas. Mal acabamos de recitá-las, vimos o ancião voltar
até nós e nos declarar que reconhecia a verdade e queria abjurar sua heresia. Mandamos que o fizesse,
como também, em seguida, a sua confissão geral. Admitimo-lo depois à santa comunhão. Despedindo-se
de nós, rogou-nos instantemente recomendá-lo às orações dos católicos.

4
4. Hb 6, 4-6.
. G
Carta 930. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. II, § 2, 1ª ed., p. 28.
1
1. Centro administrativo de cantão dos arredores de Saintes.
2
2. “Religião reformada” vem da palavra Reforma que era, naquela época, a designação da confissão protestante que pretendia reformar a
Igreja Católica desviada, segundo eles, do seu rumo, da Palavra de Deus. A intervenção da Igreja Católica diante deste cisma, sobretudo com
o Concílio de Trento, ficou sendo conhecida como a Contra-Reforma (N. do T.).
86

931. – A CLÁUDIO DUFOUR

31 de março de 1647.

Rendo graças a Deus, senhor Padre, por tantas e tantas bênçãos que Deus concede a vossos
trabalhos nas missões e com os ordinandos. Peço-lhe abençoe igualmente o seminário que estais
iniciando, e que não permita venha perturbar a paz de vossa alma a tentação que tendes contra vossa
vocação. Bem sei que a Ordem dos Cartuxos, em si, é mais perfeita; mas não creio que Deus vos chama
para lá, depois de vos ter atraído para aqui e depois que respondestes e destes consentimento ao impulso
deste apelo. Sua bondade vos abençoa com bênção toda especial. Se refletirdes nessa bênção, vereis que é
para vos firmar, invariavelmente, na Congregação, sobretudo se vos colocardes no estado em que
gostaríeis de ser encontrado, quando do julgamento de Deus. Ponde, por favor, numa balança, os bens da
solidão, de um lado, e do outro, os que Nosso Senhor opera e vai operar cada vez mais por vosso
intermédio; vereis que estes últimos pesarão mais. Considerai também a conformidade de vossa vida
presente com a que Nosso Senhor levou na terra; é esta a vossa vocação. A maior necessidade da Igreja
hoje é a de ter operários que trabalhem para retirar a maior parte dos seus filhos da ignorância e dos vícios
em que se acham, e a de que lhe sejam dados bons padres e bons pastores. É o que o Filho de Deus veio
fazer no mundo, e vos estimareis por demais feliz com ser aplicado como ele, e por ele mesmo, nesta
santa obra.
Sabeis, senhor Padre, que, embora a vida contemplativa seja mais perfeita que a ativa, ela não o é,
contudo, mais do que a que abraça a contemplação e a ação, como é a vossa, pela graça de Deus. Mas
ainda que fosse o contrário, é certo que Deus não chama todo mundo às coisas mais perfeitas. Os
membros do corpo não são todos cabeça, e os anjos não são todos da primeira hierarquia; os das inferiores
não desejariam ser das superiores; alegram-se por estar na que Deus os colocou. Os bem-aventurados, em
grau inferior de glória, não invejam os que estão em grau mais elevado. Devemos, do mesmo modo, nos
contentar com o estado em que estamos por disposição da Providência e no qual Deus nos abençoa. Com
toda a certeza, o filho de uma pobre mulher deixa todas as outras mães, para se aconchegar ao seio da sua
mamãe.
Direis que experimentais muita dificuldade na Missão. Meu Deus! senhor Padre, não há condição
no mundo onde não exista algo a sofrer. Qual o homem que não sente dificuldades e contradições na
maior parte das coisas do seu estado e que não pensa que seria mais feliz numa outra condição? Tende
como certo, senhor Padre, que se trata, no caso, de uma astúcia do diabo, a fim de vos desviar do bem que
estais fazendo em prol da Igreja. É manha própria dele tentar as melhores pessoas de bem com a sedução
de maior perfeição, com o intuito de afastá-las daquela onde Deus as quer. Permanecei, portanto,
fielmente, em vosso estado, e caminhai na vocação para a qual fostes chamado1, sem vos desviar nem
para a direita nem para a esquerda 2; e ficai certo de que vossa vocação há de operar vossa justificação e,
finalmente, vossa glorificação. Esclarecei-me sobre o que é preciso fazer, neste caso, para vos levar
conforto. Se algum dos vossos estiver vos perturbando, enviar-vos-emos outro em seu lugar. Peço-vos
fazer uma hora de oração sobre o que vos estou dizendo e me comunicar os sentimentos que Deus vos
tiver inspirado a respeito. Nela, não vos esqueçais de mim, por favor, a fim de que Deus se digne ter
misericórdia de minha pobre alma.
Sou, em seu amor...

932. – A UM SUPERIOR1
.
Carta 931. – Reg. 2, p. 291. Um texto um pouco diferente nos é apresentado pelo registro intitulado: Coleção documentos relativos às
Filhas da Caridade, p. 675 (Arq. das Filhas da Caridade).
1
1. Ef 4,1.
2
2. 2 Cr 34,2.
.
Carta 932. – Reg. 2, p. 293.
1
1. O superior ao qual se dirige esta carta estava muito provavelmente à frente de um seminário. Ora, entre os superiores dos seis seminários
confiados à Congregação da Missão, fora de Paris, vemos apenas Bernardo Codoing, então em Saint-Méen, que pudesse ter idéias
semelhantes às que São Vicente critica aqui.
87

9 de abril de 1647.

Há cinco ou seis meses, recebi dois pacotes de cartas vossas; e recebi outro faz pouco tempo. Não
respondi aos primeiros, porque não sabia o que dizer-vos sobre tantas coisas que me propúnheis. A
consideração que sempre tive para com vossa piedade, me levou ao respeito pelas coisas que me dissestes
e escrevestes. Por isso, li esses dois pacotes de joelhos, na presença do Santíssimo Sacramento, e roguei a
Deus me desse a graça de reconhecer se as coisas que me dizíeis vinham dele, e, se fosse assim, as
acolhesse. Confesso-vos, porém, senhor Padre, que, se tudo for como dizeis, meus pecados me tornaram
indigno de reconhecê-lo. Pelo contrário, parece-me que deitaríamos abaixo o pouco bem que apraz a Deus
realizemos em favor dos eclesiásticos, pois parece evidente que lá onde as coisas chegam próximo do
modo como propondes, não há diferença entre tais eclesiásticos e bolsistas dos colégios. Já o
experimentamos de diversas maneiras, e a experiência nos mostrou que a maneira que utilizamos é a que
obtém melhor êxito.
Temos sessenta padres no Colégio Bons-Enfants, quarenta seminaristas menores no Seminário
São Carlos, trinta eclesiásticos no seminário de Cahors, com os quais o senhor Bispo me diz que está
satisfeito, pela graça de Deus. Há oito em Annecy que estão, também, começando bem, como outros
tantos em Le Mans e doze ou quinze em Saint-Méen. Essas pequenas experiências me levam a esperar
que Nosso Senhor abençoará sua obra, se aprouver à sua misericórdia não levar em conta a abominação
de minha vida.
Ousarei dizer-vos, senhor Padre, que o que mais me faz suspeitar de vossas opiniões é o espírito
de maledicência e injurioso que nelas transparece e que se me afigura totalmente distante da verdadeira
caridade, da qual temos um quadro que a representa ao vivo, no bem-aventurado Bispo de Genebra.
Não creiais, senhor Padre, que tomo como injúria o que dizeis de mim; ó Jesus! de modo algum;
refiro-me apenas ao que dizeis das instituições da Igreja, em geral, e dos outros, em particular. E é o que
se opõe, diretamente, à segunda condição da caridade, a benignidade. Finalmente, senhor Padre, será que
Nosso Senhor vos revelou esses modos de proceder que propondes?

933. – A FRANCISCO ADHÉMAR DE MONTEIL, ARCEBISPO DE ARLES

[16471].

Excelência,

Como Deus me concedeu sentimentos de inteira e perpétua obediência em relação a vós, vejo-me
obrigado a renová-los de tempos a tempos.
Eu o fiz dias atrás2 quando, em resposta à honra de vossa carta, assegurei-vos de que me aplicaria,
de bom grado, no sentido de obter da Rainha uma ordem tendente à reforma de São Cesário. Continuo, no
presente, a fazê-lo, senhor Arcebispo, com toda a reverência devida, suplicando-vos tê-lo por bem, pois se
trata de acolher a carta que Sua Majestade vos escreve a respeito da referida reforma. Só pode estar bem
redigida, já que está dentro do estilo do Padre Verthamon3.
Em nome de Deus, senhor Arcebispo, usai, em todas as ocasiões, do poder que tendes sobre mim,
que sou, em seu amor, senhor Arcebispo, vosso...

.
Carta 933. – Cartas e Conferências de São Vicente de Paulo (Suplemento), p. 526, c.3133.
1
1. Ver nota 2.
2
2. Pela carta de 29 de fevereiro de 1647.
3
3. Talvez Antônio de Verthamon, arcediago da Igreja metropolitana de Paris, cônego da Igreja de Cahors, conselheiro-clérigo do Rei em seu
Parlamento.
88

934. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

[Túnis, entre 1645 e maio de 16481].

Ficaríeis maravilhado ao ouvir, todos os dias de festa e domingos, em nossas Igrejas e capelas, o
canto do Exaudiat e de outras orações pelo Rei da França; os próprios estrangeiros dão testemunho de
respeito e admiração. Admiram-se também ao ver com que devoção esses pobres cativos oferecem suas
orações por todos os seus benfeitores, dos quais reconhecem que a maior parte está na França, ou vem
da França. Não é também pequeno motivo de consolação ver aqui quase todas as espécies de nações,
submetidas aos ferros e cadeias, rogando a Deus pelos franceses.

935.L – UÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Entre 1642 e 16491 ].

Senhor Padre,

Suplico-vos muito humildemente que tenhais a bondade de nos dizer se a assembleia de nossas Irmãs
poderá realizar-se amanhã, quarta-feira, para que mande avisá-las, assim como as de Issy e de
Fontenay2.
A senhora de Lamoignon me solicitou, ontem, soubesse de vós quando poderá vir estar convosco,
a fim de obter pleno alívio para o seu coração. Não quer, porém, que o saibam entre os seus. Avisá-la-ei
se tiverdes a bondade de mo dizer. Ela gostaria que fosse quanto antes.
Dai-me, por favor, vossa santa bênção, pois sou, senhor Padre, vossa muito humilde e muito
grata filha e serva,

L. DE M.

Terça-feira.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

936. –[ A LUÍSA DE MARILLAC

Entre 1642 e 16491].

Mandai avisar, senhora, por favor, que a assembleia será amanhã, após o almoço, e marcai para
esta tarde, às 18 horas, a vinda da senhora Lamoignon; ser-me-ia, porém, mais cômodo, se fosse às 13
horas de hoje, aqui.

.
Carta 934. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. VII, § 7, 1ª ed., p.122.
1
1. Duração da permanência de Juliano Guérin em Túnis.
.L
Carta 935. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. A carta foi escrita depois da fundação dos estabelecimentos de Issy e de Fontenay-aux-Roses (1642) e antes do
fechamento do estabelecimento de Issy (1649).
2
2. Essas duas localidades se encontram no subúrbio de Paris.
. –[
Carta 936. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Esta carta responde à precedente.
89

937. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Hoje, dia da Páscoa [21 de abril de 16471].

Senhor Padre,

Julguei necessário que vossa caridade me fizesse o favor de ler esta carta do senhor Padre de
Annemont, antes que nossas Irmãs sigam para Nantes. Gostaria de saber vossa opinião sobre duas
coisas: se será necessário comunicar nossa intenção da transferência da Irmã Catarina 2 aos senhores
Padres des Jonchères e de Annemont, como também à senhora La Carisière, e, caso tudo continue
tranquilo, se não seria conveniente chamar de volta a Irmã Elisabeth 3 que, como vereis, continua doente.
Ou será preferível deixar que Irmã Jeanne 4 cuide dessa mudança, segundo as ordens dadas a ela por
vossa caridade? Uma outra coisa, que considero muito necessária e de grande utilidade, é que vossa
caridade tenha a bondade de escrever uma carta para todas as nossas Irmãs, se vos parecer
conveniente, no sentido de lhes manifestar algum descontentamento, mas também de animá-las.
Na verdade, meu muito honrado Pai, esta pobre Companhia padece muito sob minha pobre
direção! Por isso, atrevo-me a pensar que Deus a libertará logo desse entrave, um empecilho tão grande
à perfeição de sua obra. Quanto a mim, tenho muitos motivos de temer que venha a morrer em minha
insensibilidade, se vossa caridade não me ajudar.
Não poderíamos esperar o benefício de uma conferência, nessas festas, para completar a que
fizestes sobre os deveres das Irmãs companheiras em relação às Irmãs serventes e sobre a conduta e
paciência das Irmãs serventes em relação às Irmãs companheiras5? Creio que tudo isso, bem entendido e
praticado, seria uma proteção contra todas as pequenas desordens da Companhia. Deveríamos ter
também nossos regulamentos6, para os lermos, de tempos a tempos, na Comunidade.
Uma senhora encarregou-me de informar-me se não haveria 50 “arpentes7” de terreno, à venda,
entre a casa em que residem as Crianças Expostas 8 e La Chapelle. Propus-lhe vossa casa, perto dos
Recoletos9, na esperança de que lá se poderia encontrar o terreno desejado, incluindo a casa. Suplico-
vos muito humildemente, senhor Padre, se julgardes que a coisa seja viável, tenhais a bondade de me
comunicar, pelo Irmão Ducournau1010, porque essa senhora deverá, passadas as festas, mandar um
homem para verificar o lugar.

.–
Carta 937. – C. aut. Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2.Catarina Bagard.
3
3. Elisabeth Martin, superiora em Nantes.
4
4. Jeanne Lepeintre. Foi nomeada, alguns dias depois, superiora das Irmãs de Nantes.
5
5. São Vicente tratara deste assunto no dia 2 de fevereiro precedente, numa conferência que nos foi conservada.
6
6. Os regulamentos ou estatutos da Companhia, aprovados em 20 de novembro de 1646 por João Francisco Paulo de Gondi, coadjutor, em
nome de seu tio, o Arcebispo de Paris. São Vicente os leu para suas filhas, no decurso da conferência que lhes fez, em 30 de maio de 1647.
A que atribuir esta espera de seis meses, que seria, ao que parece, prolongada, sem as instâncias de Luísa de Marillac? Não foi, ao menos de
modo exclusivo, por causa das inúmeras ocupações do Fundador, pois achara tempo para reunir as Irmãs em 2 de fevereiro. Talvez
alimentasse durante algum tempo a esperança de obter certas modificações de detalhes. Talvez, também, o documento pontifício lhe tenha
sido comunicado vários meses depois da data da aprovação.
7
7. “Arpentes”, do francês “arpents”. Os dicionários consultados não trazem esta medida agrária que consta de 35 a 50 ares.
8
8. A casa das Crianças Expostas dava para a rua do subúrbio Saint-Denis; situava-se bem em frente ao recinto de São Lázaro, nas
proximidades do local ocupado pela Estação do Norte. A avenida de la Chapelle, situada um pouco acima, acompanha os limites do que era
então a vila desse nome.
9
9. Esse convento deu o nome à atual rua dos Recoletos; transformou-se no hospital militar Saint-Martin.
10
10. Bertrand Ducournau, nascido em 1614 em Amou (Landes), foi recebido na Congregação da Missão em 28 de julho de 1644, na
qualidade de Irmão coadjutor, e fez os votos em 9 de outubro de 1646. Como era dotado de bela escrita, de espírito judicioso, de inteligência
aberta e de uma certa experiência dos negócios, em razão das diversas situações que ocupara no mundo, São Vicente o tomou como
secretário. Entre as cartas do Santo que nos foram conservadas, a primeira que foi escrita pelo Irmão Ducournau é endereçada ao Padre
Jacques Chiroye e datada de 3 de maio de 1645. Por sua dedicação, sua habilidade e seu amor ao trabalho, esse Irmão prestou inapreciáveis
serviços ao Santo e à sua Congregação. Vimos anteriormente como se saiu para arrancar da humildade de São Vicente os originais das duas
primeiras cartas. Mais do que ninguém em São Lázaro, talvez, compreendeu o que seria o Santo para a posteridade. Guardava a minuta de
suas cartas e tirava ou mandava tirar cópias de seus colóquios com os missionários. Pode-se dizer que, pela preparação dos materiais e suas
notas pessoais, ele contribuiu mais do que o próprio Abelly para o aparecimento da primeira biografia de São Vicente. Depois da morte do
Santo, ficou como secretário do Superior Geral e arquivista da casa. Morreu em Paris a 3 de janeiro de 1677. Seu auxiliar no secretariado, o
Irmão Chollier, escreveu sua vida, que se encontra no primeiro tomo das Notices, p. 377 e seg.
90

Vossa caridade poderia ter a bondade de se lembrar de conversar com a Madame Condessa de
Moure, acerca de meu filho? Com efeito, o outro assunto está se divulgando muito. Parece-me que só se
ouve falar de semelhante caso. Meu Deus! quanto sofre meu orgulho em tal circunstância e que
tranquilidade seria para mim ficar livre disso! A santíssima vontade de Deus não permitiu. Seja bendito
para sempre por isto e por ter eu a honra de ser, senhor Padre, vossa muito obediente e mui grata filha e
serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente

938. – A CLAUDIO DUFOUR, SUPERIOR, EM SAINTES

23 de abril de 1647.

Agradeço-vos muito humildemente, senhor Padre, pela confiança em mim depositada, pedindo
meu parecer a respeito do vosso desejo de entrar para os Cartuxos. Dir-vos-ei, com toda singeleza, o que
teria querido aconselhar-vos na hora da minha morte, isto é, que caminheis na vocação à qual aprouve a
Deus chamar-vos, sem dar ouvidos, doravante, à sugestão do espírito inimigo da perseverança final no
bem iniciado. O propósito dele é afastar-vos do lugar onde Deus vos colocou, sob o pretexto de maior
garantia para a vossa salvação, e, nesta ótica, introduzir-vos em maior perigo de o fazer. Com efeito, se
vos tirar do lugar em que estais, há de impedir-vos, depois, de entrar onde pretendeis, ou então, de lá vos
fará sair, depois que lá estiverdes. Disseram-me que há cem jesuítas em Paris que saíram do seio de sua
santa mãe (a Ordem da Companhia de Jesus), sob o pretexto de realizar maravilhas em outras partes: a
maior parte deles estão dando motivo de escândalo, e se encontram em grande perigo de se perderem.
Em nome de Deus, senhor Padre, permanecei firme no estado em que Nosso Senhor vos colocou.
Rejeitai o pensamento contrário como inimigo dos planos eternos de Deus sobre vós e sobre tantas almas
que sua divina Majestade quer salvar por vosso intermédio. Se a permanência em Saintes, ou o ofício que
tendes não vos estão agradando, comunicai-mo, por favor; destinar-vos-emos para outro lugar.
Digo-vos novamente, senhor Padre, que me entrego a Deus para responder diante de sua divina
majestade, por vós e por mim, pelo conselho que vos estou dando. Entrementes, rogo a Nosso Senhor vos
esclareça sobre a malignidade dessa tentação. É como a vejo. Ela tende a vos fazer perder o certo pelo
incerto, a tomar a opinião como inspiração e a lassitude como solicitude.

939. – ÀS FILHAS DA CARIDADE DO HOSPITAL DE NANTES

Orsigny, a 4 léguas de Paris, 24 de abril de 1647.

Minhas queridas Irmãs,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Penso sempre com alegria em vós e na felicidade que tendes de serem Filhas da Caridade, e entre
as primeiras a serem colocadas no lugar em que estais. Mas quando ouço dizer que viveis como

.
Carta 938. – Reg. 2, p. 294.
.
Carta 939. – Dossiê das Filhas da Caridade, cópia tirada por Irmã Hellot. – Esta carta, escrita a pedido de Luísa de Marillac e em
decorrência de observações apresentadas pelo Padre de Annemont, benfeitor das Irmãs (Cf. Cartas de Luísa de Marillac, c. 173), foi enviada
pela Fundadora, que quis, também ela, acrescentar sua palavra e dar seus conselhos (Cf. ibidem, c. 174). “Ó minhas Irmãs, dizia ela, falando
da carta do Santo, a suavidade do estilo, a advertência sobre as graças que Deus vos tem concedido e a nós, as instruções que sua caridade
vos dispensa com tanta mansidão, suscitou em mim tal assombro que não vos posso expressá-lo. Lembro-me, com efeito, de tantas vezes que
Deus nos advertiu, por meio dele, de nossas obrigações, tantas vezes teve conhecimento e quis esquecer nossas faltas e infidelidades, nunca
se cansando de nos estimular e encorajar, nem de ter para conosco desvelos totalmente paternais”.
91

verdadeiras filhas de Deus, o mesmo que dizer verdadeiras Filhas da Caridade, aumenta a minha
consolação a tal ponto que só Deus vo-lo poderia dar a conhecer. Continuai, minhas caras Irmãs, a vos
aperfeiçoar sempre mais em vosso santo estado. Eis os motivos que vos devem levar a isso.
O primeiro é a santidade de vosso estado, que consiste em serem verdadeiras filhas de Deus,
esposas de seu Filho e verdadeiras mães dos pobres. Este estado, minhas Irmãs, é tão sublime que o
entendimento humano nada pode conceber de maior em uma simples criatura na terra.
O segundo motivo está em que, para vos guindar a esta felicidade, Deus vos retirou da massa
corrompida do mundo.
O terceiro é a felicidade que tendes tido em corresponder à santa inspiração que Nosso Senhor vos
concedeu, ao vos chamar para este estado, o ardor com que solicitastes, no início, ser nele recebidas, as
resoluções que tomastes, então, de nele viver e nele morrer santamente.
Em quarto lugar, minhas caras Filhas, temos a bênção que aprouve a Deus dispensar aos vossos
exercícios de piedade e à assistência aos pobres; tantos bons exemplos que tendes dado dentro de casa;
tantas jovens piedosas que tendes atraído para junto de vós e que vivem santamente; tantos pobres
doentes que orientais para uma vida melhor; e tantos outros que tendes ajudado a se reconciliarem com
Deus, através de vossos bons conselhos em suas enfermidades; tantos outros ainda, que agora são bem-
aventurados no céu, e rogam sem cessar pela santificação de vossas queridas almas.
Aí estão, minhas caras Irmãs, as razões, entre uma infinidade de outras que várias resmas de papel
não seriam capazes de conter, que vos devem animar sempre mais a perseverar e a vos aperfeiçoar em
vossa santa vocação.
Tenho a impressão, minhas caras Irmãs, que me dizeis todas que o desejaríeis muito, mas que
estais agitadas por uma infinidade de tentações que vos acabrunham. Ao que respondo, minhas caras
Irmãs, que todas essas tentações vos são enviadas ou permitidas por Deus, pelas mesmas razões pelas
quais enviou e permitiu a seu Filho as que suportou, a saber, para dar provas de seu infinito amor pela
glória do seu Pai e pela santificação de sua Igreja.
Sim, poderíeis dizer, a meu ver, que tantas outras boas almas no mundo e em outras comunidades
religiosas, que não a vossa, não estão interiormente afligidas ao ponto em que estais. Ora! vos respondo:
não existem pessoas na terra que façam profissão de se darem inteiramente a Deus e aos seus pobres
membros, que não sofram as mesmas penas interiores e exteriores por que passais. Com efeito, é uma
determinação dada por Deus, não contra, mas em favor das devotas e santas almas, que todas, enquanto
viverem, padecerão tentações e perseguições.
Basta, me direis vós, minhas caras Irmãs, que sejamos tentadas algumas vezes. Mas sempre, em
toda parte, por quase todas as pessoas com que vivo, isso é insuportável. O beneplácito de Deus, minhas
caras Irmãs, é que as benditas almas de elite a quem quer tanto bem, sejam tentadas e afligidas todos os
dias; e é o que revela e ao que nos exorta, quando diz no Evangelho que aqueles que quiserem segui-lo
precisam renunciar a si mesmos e carregar a própria cruz 1. É o mesmo que dizer que padeçam aflições
todos os dias. Refleti nestas palavras todos os dias, minhas caras Irmãs.
Suporto tudo de boa vontade dos de fora, senhor Padre, direis. Mas que o seja de minhas próprias
Irmãs, que deveriam trazer-me consolação, e que são para mim causa de aborrecimento, de cruz e aflição,
e isso em tudo que dizem, em tudo que fazem e deixam de fazer!
Meu Deus! minhas Irmãs, de quem haveríamos de sofrer algo, a não ser daqueles com quem
vivemos? Seria das pessoas distantes, das que nunca vimos e jamais veremos? De onde sofre um dos
membros do corpo, a não ser do mal que lhe faz sofrer um outro membro? De quem e por quem sofreu
Nosso Senhor, a não ser por seus apóstolos, por seus discípulos e pelas pessoas entre as quais vivia, que
eram o povo de Deus? Um certo homem dizia um dia, em confissão, ao seu confessor, que lhe
perguntava que uso fazia das aflições que recebia da parte do próximo: “Meu Deus, meu Pai, nada sofro
dessa parte. Desde que minha mulher e filhos morreram, vivo totalmente só, e não poderia importunar-me
com ninguém, mesmo que o quisesse”. Quero dizer com isto, minhas caras Irmãs, que nossas cruzes do
dia-a-dia, da parte do próximo, só podem acontecer-nos a partir daqueles com quem vivemos.
Muito bem, dir-me-eis, suporto com muito melhor disposição as penas que me advêm de minhas
Irmãs do que as que vêm da parte de nossa Irmã servente 2: sua frieza, suas incomodidades, seu mutismo;
jamais me diz uma palavra graciosa, e quando me fala, é sempre com palavras secas e aborrecidas. Isto é
1
. Mt 16, 24.
2
. Elisabeth Martin. Seu estado doentio era sem dúvida a causa principal das desordens que se infiltraram na pequena comunidade de Nantes.
92

o que não posso tolerar e o que me leva a buscar consolo entre algumas de nossas Irmãs que têm a mesma
dificuldade que eu, o que me leva a me entreter o mais possível com meu confessor e expressar minhas
penas para com pessoas de fora.
A isso respondo, minha cara Irmã, que nisto está um sinal de que somos bem fracos ou enfermos,
pois temos necessidade de ser bajulados por nossos superiores, em tudo que dizem e ordenam. Uma Filha
da Caridade, longe de apreciar tais afagos como vantajosos, deve, pelo contrário, com razão, pensar que,
se a Irmã servente usar de meiguices, estará tratando-as como crianças ou pessoas doentes. Nosso Senhor
comandava os seus de maneira firme e seca e, algumas vezes, com palavras pesadas e aparentemente
injuriosas, a ponto de tratar alguns de hipócritas, a outros de satanás. De outra feita, tomou de algumas
cordas e as fustigava contra os que estavam vendendo às portas do templo. E o que é mais, só lhes
predizia males e aflições extremas que lhes deveriam acontecer. Depois de tudo isto, haveremos de querer
ser lisonjeados por nossos superiores e deles nos afastaríamos como fez esse infeliz que traiu Nosso
Senhor, para fazer grupo à parte com alguns descontentes e com nossos confessores! Ó Jesus! minhas
caríssimas Irmãs, Deus vos livre disto!
Tenho a impressão, minhas caríssimas Irmãs, que me dizeis que não caístes nesse infeliz estado,
pela graça de Deus, ou que me pedis alguns conselhos no sentido de vos subtrair dele, se nele caístes, para
vos aproximar de vossa superiora e de cada Irmã de vossa comunidade. Aproximar-vos-eis assim de
Nosso Senhor, que não suporta união com ele, se não a temos com aquelas pessoas que o representam e
com todos os seus membros. Se não caístes neste miserável estado, darei graças a Deus e celebrarei neste
sentido. Mas se caístes, minhas caras Irmãs, eis os meios para vos levantar, com a ajuda de Deus, que lhe
vou suplicar na santa missa para esse fim.
O primeiro meio é fazer vossa oração, duas ou três vezes, sobre o que escrevo. A primeira vez será
sobre a primeira parte desta carta, a segunda, sobre a parte seguinte, e a terceira, sobre a terceira parte.
O segundo meio é vos confessar com o Padre des Jonchères, acusando-vos de todas as faltas
cometidas a esse respeito, não somente as de depois de vossa última confissão, mas também as que
cometestes desde que estais em Nantes, e de tomar a resolução de acatar bem os conselhos que vos der e
de cumpri-los.
O terceiro é de vos abraçar, mutuamente, depois da santa comunhão, e pedir perdão umas às
outras, oferecendo reciprocamente o próprio coração.
O quarto é fazer a oração todos os meses, durante um ano, sobre o mesmo assunto.
O quinto é contrariar o impulso de vossos afetos, na escolha das irmãs com quem conversar,
evitando até mesmo as de vossa simpatia, e vos aproximando das outras, por quem não a tendes.
O sexto meio é não falar com vosso confessor, a não ser no confessionário, salvo o caso de uma ou
duas palavras sobre coisas necessárias, e só, imitando nesse caso o que fazem as Irmãs de vossa Casa de
Paris, em relação aos seus confessores de São Lázaro.
O sétimo é escrever-me, cada uma, os sentimentos que Nosso Senhor lhe inspirar, depois das três
orações e da confissão e comunhão que fareis para esse fim, como vos disse.
O oitavo é que a superiora escreva à senhora Le Gras, todos os meses, sobre o progresso de sua
comunidade nessas práticas.
O último meio é que façais vossa comunicação interior ao Padre des Jonchères, todos os meses,
em particular sobre os faltas cometidas contra o que se disse acima.
Eis, minhas caras Irmãs, meus pequenos pensamentos sobre o motivo que tendes de louvar a Deus
pela vossa vocação, de nela perseverar e de vos aperfeiçoar nela, uma relação dos defeitos em que uma
comunidade da Caridade pode vir a cair em sua nova Casa, e os meios para remediá-los. Suplico-vos,
muito humildemente, minhas caras Irmãs, aceitar o que vos digo sobre eles, pelo amor de Nosso Senhor
Jesus Cristo, sendo, no seu mesmo amor, minhas caras Irmãs, vosso muito humilde servo3,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Às nossas mui caras Irmãs, Filhas da Caridade, servas dos pobres doentes do
hospital de Nantes.
3
3. Lambert aux Couteaux e a Irmã Jeanne Lepeintre foram fazer a visita ao hospital de Nantes; esta última ficou lá como superiora, no lugar
da Irmã Elisabeth Martin, que foi para o hospital de Angers.
93

940.J – ACQUES LESCOT, BISPO DE CHARTRES,


A SÃO VICENTE

1647.

Não posso receber notícia mais agradável, nem mais promissora, do que a que me comunicam,
que desejais dar prosseguimento às missões em minha diocese, se eu estiver de acordo. Não há diocese
na França que esteja mais absolutamente a vosso inteiro dispor. E não sei se há outras onde as missões
possam ser mais úteis e mais necessárias, dada a estranha ignorância que encontro em minhas visitas e
que me causa horror. Não quero determinar nada, nem o lugar, nem o tempo, nem os poderes. Tudo fica
sob vossa responsabilidade. Para falar nos termos de Abraão: ecce universa coram te sunt; (Eis que tudo
está diante de ti). Eu mesmo, em verdade e de coração, sou...

941. – A JEAN MARTIN

Orsigny, 4 léguas de Paris, 26 de abril de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Tenho apenas duas palavras a dizer-vos; estou na zona rural há quatro ou cinco dias. Quero
somente assegurar-vos que, onde quer que eu me encontre, vossa lembrança é muito cara para mim e me
vem com muita frequência, e o meu coração é sempre e inteiramente vosso. Deus sabe com que afeto
rogo a ele por vós e com que consolação lhe ofereço vossa pessoa, conhecendo bem o quanto lhe
pertenceis e quanto fielmente correspondeis aos seus eternos desígnios.
Cuidai de vossa saúde e saudai cordialmente de minha parte ao Padre Richard e ao nosso Irmão
Sebastião.
Disse-vos que mandara entregar à senhora vossa mãe a vossa carta. Se ela tiver enviado para a
hospedaria sua resposta, eu vo-la enviarei.
Disseram-me que vosso irmão foi a Tolosa com o senhor Arcebispo, e que permaneceu ainda com
ele.
Deus nos dê a graça de permanecer inviolavelmente em seu amor, no qual sou, senhor Padre,
vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

942. – A JEAN DEHORGNY, SUPERIOR, EM ROMA

2 de maio de 1647.

.J
Carta 940. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. I, 1ª ed., p. 2.
.
Carta 941. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
.
Carta 942. – Reg. 2, p. 74.
94

Busco unicamente a vontade de Deus no negócio da Pérsia, como podeis imaginar. Eu vos escrevi
sobre todas as particularidades a respeito. Fiz o possível para conseguir alguém de fora (da Companhia)
para o bispado da Babilônia, que nos é oferecido, e ninguém se interessa por ele, ou não pode aceitá-lo
por questões pessoais, ou em razão de sua condição e do estado dos seus negócios. Essa obra me parece
de suma importância para a glória de Deus. Para ela Deus nos chama, pela voz do Papa, o único com
poder de enviar ad gentes, e a obediência nesses casos é questão de consciência. Sinto-me interiormente
pressionado a fazê-lo. Julgo que o poder dado por Deus à sua Igreja de mandar que se anuncie o
Evangelho por toda parte reside na pessoa do seu chefe, e esse poder seria inútil se, por seu lado, os seus
súbditos não fossem obrigados a partir para os lugares para onde ele os enviar, a fim de trabalharem na
difusão do império de Jesus Cristo. Além disso – talvez eu me engane – receio muito que Deus permita o
aniquilamento da Igreja na Europa, por causa de nossos costumes corrompidos, de tantas diferentes e
estranhas opiniões que vemos surgir de todos os lados, e do pouco progresso dos que se aplicam à tarefa
de remediar esses males. As novas opiniões operam tal devastação que se tem a impressão de que meio
mundo passou para elas; e é de se temer que, se surgisse algum partido no reino, não viesse ele a assumir
a proteção deste partido atual. Que não deveríamos temer, à vista de tudo isso, senhor Padre, e o que não
deveríamos fazer para salvar a esposa de Jesus Cristo desse naufrágio! Se não somos capazes de fazer,
nesse sentido, tanto quanto Noé para a conservação do gênero humano, no dilúvio universal,
contribuiremos ao menos com os meios de que Deus poderá servir-se, para a conservação de sua Igreja,
colocando, como a pobre viúva, uma moedinha no cofre. E ainda que eu estivesse enganado, como quero
esperar da sabedoria de Deus, que aparenta querer destruir para melhor salvar, ofertaremos um sacrifício a
Deus, como Abraão: em lugar de Isaac, sacrificou um carneiro, na santa ignorância do fim pelo qual Deus
parecia querer o primeiro para ter o último.
Esses motivos e vários outros nos levaram à decisão em favor deste santo empreendimento e a
passar por cima da consideração de nossa carência de operários e da necessidade que temos aqui de quem
destinamos para aquele lugar. E o que é determinante para mim, nesta dificuldade, é ver o sacrifício que
Abraão se dispunha a fazer do seu filho, embora só tivesse ele, e soubesse que Deus o tinha destinado a
ser o tronco da bênção do seu povo.
Passei ainda por cima do perigo de que esse exemplo venha dar motivo a alguns da Companhia
para ambicionar as prelaturas. Considerei que a distância longínqua do lugar em questão, os riscos que
correm os que para lá viajam e lá residem, a humildade apostólica com que poderá comportar-se o
destinado para o ofício, que será como a dos bispos da Irlanda, e vários outros inconvenientes,
desmotivarão para a aspiração a tais encargos.
Dirão, talvez, que se o bispo não andar naquele país in magnis (em alto estilo), a corte do príncipe,
os cristãos e os religiosos o desprezarão, e não terá aquela autoridade que Sua Santidade talvez pretenda,
para negociar, no alto nível requerido, a união entre o Rei da França e aquele príncipe, contra o inimigo
comum dos cristãos. Respondo que espero que ele suprirá a falta de brilho e de pompa, pela virtude.
Aliás, os bispos armênios daquela região, e até mesmo o seu patriarca, se apresentam apenas como os
simples padres daqui. Sendo assim, não sentirão tanta aversão para com nosso bispo, como aconteceria
caso o vissem com pompa, tanto porque Nosso Senhor e os santos apóstolos renunciaram e mandaram
que todos os cristãos renunciassem às pompas, quanto porque, quase naturalmente, os cristãos percebem a
diferença entre o estado pomposo e o de Jesus Cristo humilhado, e se escandalizam com isto.
Se disserem que é sobre o Padre Lambert que lancei os olhos para este ministério, é verdade que
pensei nele. Mas ainda não tomei decisão alguma sobre o caso. Já conversei com ele, em tom geral, sobre
o plano, e lhe solicitei o parecer nesse sentido. Ele se oferece para ir até às extremidades da terra, se for
enviado. Contudo, jamais lhe disse que tenho o pensamento voltado para ele, e ele ainda de nada sabe a
respeito do caso.
Quanto aos recursos temporais, esse bispado dispõe de novecentos escudos de renda. Para que o
antigo bispo, que goza do benefício e nele não reside, transfira a metade ao seu sucessor, lhe serão dadas,
a mais, mil e trezentas ou mil e quatrocentas libras, como benefício ou como pensão vitalícia, para
indenizá-lo por essa metade.
Eis o estado do negócio. Suspenderei, entretanto, minha decisão, até que tome conhecimento do
que quereis escrever-me sobre isto, com a intenção de ceder às vossas razões, se forem melhores que as
minhas.
95

943. – A JEAN MARTIN

Paris, 3 de maio de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Rendo graças a Deus pela bênção concedida à missão de Quarto 1, e a vós, pela assistência que
dispensastes à do Padre Blatiron, que me testemunhou grande satisfação e reconhecimento por ela. Ei-lo
agora, de volta a Gênova, e vós, em condição de prestar-lhe assistência de outra forma, cuidando que ele
repouse, tanto e por quanto tempo for necessário. Não tenho dúvida de que ele vos preste a mesma
caridade, pois me comunica o temor com que está de que o trabalho vos venha abater. Com certeza, não
tenho menos temor do que ele a este respeito; o que me leva com muita frequência a orar e mandar orar
por vossa saúde, da qual vos conjuro cuideis vós mesmo, com todo desvelo possível. Espero que os
Padres Portail e Alméras, tomando conhecimento da necessidade que tendes de ajuda, mandarão que se
apresse a partida do coirmão que o Padre Dehorgny vos deve enviar. Já lho pedi, há muito tempo, e vou
insistir ainda hoje com ele, a fim de contribuir, com o que posso, para vos aliviar. Quem dera pudesse eu
fazê-lo pessoalmente! Unir-me-ia com muita alegria a vós, para partilhar da felicidade que tendes, por
estardes continuamente aplicado ao exercício do amor divino2. Oh! possa vosso coração saborear para
sempre a suavidade do coração de Nosso Senhor! Rogo-lhe vos cumule de suas doçuras, para transmiti-
las às pessoas nas quais lhe prestais vossos serviços.
Quanto a mim, sou todo nele, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

944. – ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA,


A SÃO VICENTE

6 de maio de 1647.

Eis-nos de volta da missão de... Abrangia cinco paróquias, sem contar o concurso da vizinhança.
Aconteceram numerosíssimas conversões e confissões gerais, não obstante a dureza do povo, muito
difícil de se comover, a tal ponto que, de início, quase perdíamos o ânimo. Mas Nosso Senhor se dignou
consolar-nos, ao fim da missão. Tocou esses corações endurecidos e difundiu sobre eles graças tão
abundantes que aqueles, de início, que não queriam escutar-nos, no final da missão não aceitavam
separar-se de nós. No dia de nossa despedida, fomos à igreja para receber a bênção do senhor Pároco.
O povo todo veio também e se pôs a chorar e a gritar misericórdia, como se, ao partirmos, lhe fossemos
tirar a vida. A tal ponto chegaram que tivemos muita dificuldade para nos escapar.
Muitos nobres da cidade de Gênova vieram até esse lugar e assistiram aos exercícios da missão,
com muita edificação da parte deles. O senhor Cardeal Arcebispo de Gênova1 1 veio celebrar o
sacramento da Crisma. Depois dela, foi tomar refeição com os missionários e alguns nobres que o
tinham acompanhado. Nesta ocasião, um senhor da vizinhança lhe enviou um presente; mas ele se
.
Carta 943. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Quarto al Mare, povoado situado a dez quilômetros de Gênova.
2
2. São Vicente acrescentou esta frase, de próprio punho, na entrelinha.
.
Carta 944. – Abelly, op. cit., l. II, cap I, sec. IV, 1ª ed., p.170.
1
1. Cardeal Durazzo.
96

escusou ao não recebê-lo, dizendo que os missionários tinham por regra nada receber em missão, e o
despediu.

945. – A JEAN DEHORGNY, PADRE DA MISSÃO, EM ROMA

9 de maio de 1547.

Confesso que os cargos de superiores de nossas Casas não são adequadamente preenchidos.
Podeis, porém, ter certeza de que isto acontece de ordinário nas Companhias nascentes e que a dos
jesuítas, fora os nove primeiros Reverendos Padres e um pequeno número de outros, estava na mesma
situação, no início. A graça imita a natureza em diversas coisas: fá-las nascer brutas e pouco agradáveis e
com o tempo as aperfeiçoa. Quem ousaria dizer que a pouca ciência, a pobreza de bens e de condição e a
santa rusticidade dos prelados do primeiro século da Igreja fossem capazes de fazer o que fizeram? E
quem teria pensado que nossa insignificante Companhia, um aborto entre as outras da Igreja, fizesse o
que apraz a Deus fazer por intermédio dela, não somente na França, mas em países estrangeiros? É coisa
de admirar a bênção que Nosso Senhor concede aos nossos missionários da Irlanda, de Gênova, de Túnis
e de Argel. Ora, como isso se faz pela graça que Deus dispensa à mesma Companhia, temos motivo de
esperar que sua divina bondade lhe concederá também pessoas idôneas, como importa, para conduzi-la.
Sendo assim, não devemos julgar os desígnios de Deus sobre ela segundo os raciocínios humanos, aos
quais, entretanto, nossas espíritos miúdos se apegam.

946. – A RENÊ ALMÉRAS

Paris, 10 de maio de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Louvo a Deus por terdes chegado em perfeita saúde e lhe peço que vos dê seu espírito de direção,
para conduzirdes a comunidade daí. Ó senhor Padre, como desejo que a vossa conduta fique longe das
máximas do mundo, num total abandono aos braços da providência de Deus! Quando reflito, por vezes,
na conduta da pequena Companhia, experimento uma consolação muito sensível porque me parece que
todos se empenham, em sua pequena conduta, em seguir a mesma Providência, de modo a não se
apoiarem nos meios humanos mais do que nos caniços; e vos posso dizer, senhor Padre, que neles não
creio mais do que em nosso inimigo; e se a Companhia me der fé, jamais procederá de outro modo. Ó
senhor Padre, que felicidade nada querer senão o que Deus quer, nada fazer senão em conformidade com
o que a Providência nos apresenta, e nada possuir senão o que Deus nos deu por sua providência!
O espírito humano vos dirá que em Roma não é como em outras partes, que é preciso insinuar-se,
marcar presença, ostentar autoridade, agir humanamente com os humanos e se servir com eles de meios
humanos. Não lhe deis crédito, senhor Padre. Todas essas máximas dão em falso, em se tratando de uma
Companhia que Nosso Senhor suscitou para ele mesmo, que ele anima com suas máximas e que pretende
agir segundo o seu espírito. O que vos digo parece paradoxal; ficai certo de que a experiência vo-lo fará
ver.
Escrevo ao Padre Dehorgny e lhe rogo permanecer este verão convosco, para vos ajudar com sua
assistência. Peço-vos, senhor Padre, ter confiança nele, como também nos bons conselhos que o Padre
Portail vos deixará. Mas que digo eu? Meu Deus! senhor Padre, não tenho motivo para vos fazer esse
pedido, pois sei, pela graça de Deus, que é este vosso espírito.

.
Carta 945. – Reg. 2, p. 27.
.
Carta 946. – Coleção do processo de beatificação.
97

Ficaria muito satisfeito, se pudesse falar mais convosco. Mas lá embaixo o senhor Bispo de
Calcedônia1 me aguarda, há quase uma hora. Vejo-me constrangido a terminar, recomendando-me,
prostrado em espírito a vossos pés e aos de todos da comunidade, a vós, de quem sou, com o coração que
a bondade divina sabe, senhor Padre, muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Alméras, superior dos padres da Missão, em Roma.

947. – A JEAN MARTIN

Paris, 10 de maio de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não, não posso deixar de vos escrever, embora não tenha motivo novo algum para fazê-lo. No
presente, tomo como motivo recomendar-vos o cuidado com vossa saúde e com a do Padre Blatiron. Já o
fiz em minha última carta e continuarei insistindo sempre, temendo que vossos excessivos trabalhos
venham a abater-vos. Na verdade, senhor Padre, por nada no mundo podeis tornar-me mais responsável
do que por isso. Deve bastar-vos que Deus o quer, pois de vossa boa disposição depende o progresso de
muitos. Peço com insistência a Nosso Senhor por vossa saúde e que continue dispensando seus favores e
consolações a vossa alma, que a minha abraça com ternura.
Recebi, ontem, cartas do Padre Guérin, de Túnis. Deus lhe concede bênçãos extraordinárias.
Comunica-me que os coirmãos de Argel estão trabalhando igualmente muito bem. Não imaginais quanto
tudo isso, com mais o que sabemos de vossa pequena comunidade, consola e anima toda a Companhia.
Temos também notícias dos nossos coirmãos da Irlanda. Dizem-me que a guerra e a pobreza do
país são grandes empecilhos para eles; entretanto, depois da pregação de uma missão, a afluência do povo
foi tão grande, que não estavam dando conta das confissões, embora fossem cinco ou seis confessores. É
que de vários lugares circunvizinhos muitos acorreram ao eco das palavras do Evangelho, e alguns,
distantes de cerca de dez léguas, esperaram, durante quatro ou cindo dias, a oportunidade para se
confessarem. Recomendo-os às orações de toda a vossa comunidade, e minha alma, em particular, aos
vossos santos sacrifícios.
Sou, unicamente, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

948. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM SAINT-MÉEN

11 de maio de 1647.

1
1. Richard Smith, bispo in partibus de Caldedônia, antigo Vigário Apostólico na Inglaterra, para onde o enviara Urbano VIII.
.
Carta 947. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
.
Carta 948. – Reg. 2 p. 173.
98

O senhor Bispo de Tréguier1 deseja ter, por um ou dois meses, algum de nossa Companhia que o
estimule e o ajude a assumir suas funções episcopais, tão logo tome posse de sua diocese, onde deverá
chegar oito ou dez dias antes de Pentecostes. Ainda não falou em público senão duas ou três vezes, com a
intermediação inteligente do Padre du Chesne, que o levou a uma missão e o introduziu em nosso
pequeno método; ele o assimilou de tal sorte que não quer jamais pregar em outro estilo.
É homem de bom espírito, judicioso e de trato muito fácil. Demonstra muita estima para com a
Companhia, que ele está pensando em estabelecer em sua diocese, se dispuser dos recursos necessários.
Teme que, se não for amparado pelo recurso a esses exercícios espirituais, como as visitas, as exortações,
as pregações, os catecismos etc., não dê início nem continuidade a nada.
Diante de tudo isto, recorro a vós para essa missão e vos peço dirigir-vos para Tréguier, antes de
Pentecostes, e levar como companheiro o irmão... não preciso falar-vos do modo como convém agir com
esse bondoso senhor Bispo; a humildade, a mansidão, o zelo e o respeito com que Nosso Senhor vos
agraciou vos inspirarão o que for necessário.

949. – PARA A MADRE CATARINA DE BEAUMONT1

Paris, 19 de maio de 1647.

Minha cara Madre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossas duas estimadas cartas, com muita consolação, como podeis crer, minha cara Madre.
Rendo graças a Deus por ter sua providência vos confiado a um dos prelados mais excelentes da Igreja 2 e
a uma cidade das mais devotas existentes sob o sol, pelo que ouvi do senhor Bispo de Lisieux 3,
anteriormente Bispo de Nantes, quando ainda estáveis nessa cidade4.
Eis-vos, portanto, em vossa região, minha cara Madre, ou muito próximo dela. Oh! louvo a Deus
de coração, e lhe peço santifique sempre mais vossa querida alma e, por meio dela, as almas de tantas
excelentes jovens que a mesma Providência vos destinou.
O negócio de que me fala vossa caridade, minha cara Madre, refiro-me ao colégio de
Maguelonne5, me parece inviável, porque ele foi destinado à formação dos eclesiásticos e não aceitariam
que fosse aplicado em outra finalidade. Não adiantaria dizer que ele se encontra em grande desordem; dir-
vos-ão que virá um tempo em que será reformado.
Podeis crer, minha cara Madre, que, embora o senhor Bispo de Tolosa tenha, certa vez, pensado, a
respeito dele, em nosso favor, e que o diretor do Colégio tenha estado comigo várias vezes com este
propósito, com toda satisfação eu descarto essa possibilidade. E louvarei a Deus, se a coisa tiver o êxito
1
1. Balthazar Grangier de Liverdi (1646-1679).
.
Carta 949. – C. aut. – Original no convento da Visitação de Tolosa. Dom Douais colocou um fac-simile em sua obra A Visitação de Tolosa:
Estudos, lembranças e documentos, Paris, 1905, in-8°.
1
1. Ana Catarina de Beaumont-Carra era uma das colunas da Visitação. Do mosteiro de Annecy, onde passara os primeiros anos de sua vida
religiosa, acompanhou Santa Chantal até Bourges, para a fundação de um novo estabelecimento. O primeiro mosteiro de Paris colocou-a à
sua frente em 1622 e em 1625. Durante seu segundo triênio, fundou nesta cidade o segundo mosteiro, do qual foi eleita e reeleita superiora.
Dirigiu em seguida o convento de Grenoble (1629-1635) e o de Pignerol (1644). Foi, depois, fundar um estabelecimento em Tolosa (1647).
Morreu nesta cidade a 30 de janeiro de 1656. A Madre Faber escreveu e Dom Douais publicou apontamentos sobre o tempo em que Madre
de Beaumont passou em Tolosa. Lemos no Ano Santo (t. V, p 533): “São Vicente de Paulo... concebera grande veneração pelos seus méritos,
veneração cujo conhecimento chegou até a Rainha Ana d’Áustria. Esta ilustre Princesa, por sua vez, favoreceu a humilde Madre com suas
generosidades e não julgou indigno de sua Majestade honrá-la com suas visitas”. A Santa Fundadora da Visitação recorria com frequência às
luzes da Madre de Beaumont, como o demonstra sua correspondência. Vemos por suas cartas que Madre de Beaumont era “severa, por
demais firme e séria” e que a necessidade de estar em atividade a levava por vezes a descurar seus exercícios de piedade.
2
2. Charles de Montchal.
3
3. Filipe Cospéan, Bispo de Aire, de 18 de fevereiro de 1607 a 18 de março de 1622; de Nantes, de 18 de março de 1622 a 1635, e de
Lisieux, de 25 de julho de 1636 a 8 de maio de 1646, dia de sua morte. Ele administrara por algum tempo a diocese de Tolosa.
4
4. A Madre de Beaumont, no tempo em que era superiora do mosteiro de Grenoble, teve de ir até Nantes, para tratar da fundação de um
convento nesta cidade, onde deixou várias de suas filhas.
5
5. Colégio fundado em Tolosa em 1363. Como outros colégios da mesma cidade, servia de casa de moradia para os estudantes da
Universidade. Sobre este estabelecimento, ver Collége de Maguelonne, por M. Saint-Charles, nas Mémoires de l’Académie des Sciences,
Inscriptions et Belles-Lettres de Toulouse, 1883, pp. 110-128.
99

que desejais. Ofereço-vos até, para isso, meus pequenos serviços, com a afeição que me for possível,
embora, como vos disse, a questão se me afigure impossível, segundo o que vejo quanto à disposição do
Conselho do Rei, e no que tange à solução de semelhantes questões.
Meu Deus! minha cara Madre, estamos longe de deixar de vos servir em razão de interesse nosso.
Sabeis muito bem, minha cara Madre, que somos fiéis à máxima e à prática de não pedir fundação
alguma, e que foi unicamente Nosso Senhor que nos estabeleceu onde estamos. E se a Companhia crê em
mim, procederá sempre assim. O senhor Arcebispo poder-vos-á relatar, ele próprio, a isenção com que me
viu agir em tal negócio. Talvez até lhe tenhamos dado motivo para pensar que não tínhamos suficiente
reconhecimento pela graça que sua bondade nos oferecia, por não lhe ter dito o que vos digo, a saber, que
procuramos seguir a adorável providência de Deus em todas as coisas e jamais ultrapassar-lhe os passos.
Ajudai-me, vos suplico, minha cara Madre, diante de Deus, a nos firmar bem nessa prática.
É verdade, minha cara Madre, que solicitei a nossas caras Irmãs 6, me escusassem por não mais
poder servi-las como Pai espiritual, por causa dos embaraços em que me encontro, e que me impedem de
cumprir as coisas às quais sou obrigado. Fiz este pedido há sete ou oito meses 7. Deus sabe que não é falta
de afeição e que jamais tive da parte delas algum motivo para descontentamento; pelo contrário, recebi
delas, sempre, toda sorte de expressões de doçura, de bondade e de caridade. A bondade divina sabe que
me maltrato a mim mesmo, ao tomar tal decisão. Mas que fazer! Minha consciência me pressiona no
sentido de me deter no que posso fazer e em honrar a onipotência de Deus com o reconhecimento de
minha impotência.
Ainda não recorreram a ninguém. Procurei até o presente fazer o necessário, sem me deslocar até
elas, enquanto espero que encontrem alguém. Podeis crer, minha cara Madre, que não haveria ninguém
com maior poder para me fazer passar por cima de minhas dificuldades do que vós, não fosse a razão de
que vos falei. E faço aqui a renovação da oferta de meus pequenos serviços, com toda a afeição e
humildade possíveis, sendo, no amor de Nosso Senhor, minha cara Madre, vosso muito humilde e muito
obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: A minha reverenda Madre Ana Catarina de Beaumont, superiora da Visitação Santa
Maria de Tolosa, em Tolosa.

950. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

24 de maio de 1647.

Não sei se devo urgir convosco para descansar um pouco, já que sabeis que a maior satisfação que
poderíeis desejar para mim neste mundo seria a da conservação de vossa saúde. Cuidai pois dela, pelo
amor de Nosso Senhor, e aceitai que vos convide à moderação no trabalho, enquanto outros vos impelem
para o excesso.
De minha parte, falai com toda ousadia e, sem vos queixar, dizei que é demais.

951. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Túnis, 1647.

6
6. As Filhas da Visitação de Paris.
7
7. Ver Cartas 866 e 873.
.
Carta 950. – Reg. 2, p. 218.
.
Carta 951. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. VII, § 9, 1ª ed., p. 130.
100

Avisaram-me, no dia de Páscoa, que uma galera de Argel chegava a Bizerte, e parti
imediatamente para visitar os pobres cristãos acorrentados. Encontrei cerca de trezentos, e o capitão me
autorizou a pregar-lhes uma pequena missão de dez dias. Tomara comigo um padre que me ajudou a dar
catecismo e a confessar essa pobre gente que cumpriu todos os seus deveres, com exceção de alguns
gregos cismáticos. Ó grande Deus, que alegria ao ver a devoção desses pobres cativos, cuja maior parte
não se tinha confessado desde longo tempo! Havia alguns que não se tinham aproximado deste
sacramento desde oito ou dez anos, outros até mesmo desde vinte anos. Pedia todos os dias que lhes
tirassem as correntes e saíssem da galera para a terra firme, a fim de receber a sagrada comunhão numa
casa particular, onde eu celebrava a santa missa. Depois de terminada a missão, dei-lhes presentes e
mais cerca de cinquenta e três escudos de víveres.
Pousava na casa de um turco que me fornecia as refeições durante todo o tempo da missão. Não
aceitou, entretanto, dinheiro algum da minha parte, alegando que era preciso praticar a caridade com os
que a faziam aos outros – uma ação muito digna de nota na pessoa de um infiel. O que vos causará
maior admiração é que quase todos os turcos daquele lugar ficaram de tal modo sensibilizados e
edificados com a missão que vários deles vinham beijar-me o rosto e as mãos. Não duvido de que vosso
coração ficaria inundado de alegria. Mas se o fruto dessa pequena missão de Bizerte foi suave para mim,
o caminho para chegar até lá foi bastante sofrido e espinhoso. Com efeito, como não quis levar soldados
para me escoltar, fui surpreendido por árabes que me carregaram de golpes. Um deles me agarrou pela
garganta e ma apertou com tanta força que supus que ele iria estrangular-me. Chegou a ter-me como
morto; mas como sou apenas um miserável pecador, Nosso Senhor não me julgou digno de morrer por
sua causa.

952. – A JEAN MARTIN

Paris, último dia de maio de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Vossa carta produziu em mim dois sentimentos contrários: por um lado, alegrou-me, porque vinha de vós,
a quem minha alma estima ternamente; por outro, contristou-me por ver que não dão tréguas ao pobre
Padre Blatiron. Receio, com razão, não lhe aconteça prejuízo à saúde, se Deus não o conservar, como
espero que o faça, já que o excesso de trabalho só está sendo feito por pura obediência.
Não tenho menos apreensão a vosso respeito, pois, no dizer do próprio Padre Blatiron, andais
sobrecarregado de preocupações e trabalho. Rogo, porém, sem cessar, a Nosso Senhor, que seja vossa
força em tantos embaraços e vossa eterna recompensa.
Julgava que já tivésseis recebido o socorro de Roma, e meu espírito andava aliviado com o alívio
em que pensava que estáveis. Porque isso não aconteceu, se pedi, há tanto tempo, aos de Roma vo-lo
enviasse? Eia pois, senhor Padre, peçamos a Nosso Senhor que tudo se faça ao sabor de sua providência,
que nossas vontades lhe sejam de tal modo submissas que, entre eles e nós, haja um só querer e ele nos
leve a fruir de seu único amor, no tempo e na eternidade.
Com este desejo, sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

.
Carta 952. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
101

953. – LU. ÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[junho de 16471].

Senhor Padre,

Se vossa caridade fizesse o obséquio de propor ao dono da casa perto de Saint-Laurent que se
transferisse para a que cedeu ao fabricante de cerveja, no caso de as Damas aceitarem indenizá-lo, seria
muito conveniente para as criancinhas.
Não posso deixar de dizer-vos que hoje sofri muito por causa do temor da predestinação, em
razão de certos pensamentos que me vieram durante a oração.
Isso me perturbou tanto o espírito que fui impelida a fazer um ato de aceitação dos desígnios de
Deus sobre mim e meu filho, no sentido de estarmos sempre entregues ao comando de sua justiça.
Esqueci-me de pedir-vos licença para comungar durante toda a novena em que se celebra a missa
do Espírito Santo, que começou na sexta-feira. Servindo-me da permissão que vossa caridade me deu de
comungar quando a saúde me permitir, recebi a comunhão durante todos os dias da novena. Não me
atrevo a continuar, sem licença especial de vossa parte, que vos peço pelo amor de Deus, assim como o
auxílio de que tanto precisamos, e sou, senhor Padre, vossa mui grata filha e muito humilde serva,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

954. – A LUÍSA DE MARILLAC

Peço à senhora Le Gras que envie este pacote à casa da Madame Duquesa de Aiguillon. É em
favor das reverendas religiosas. Se ela não estiver na cidade, recomendem ao Suísso, de minha parte, que
o envie pelo primeiro portador a Rueil, onde ela se encontra.

955.Í – A LUSA DE MARILLAC

[Cerca de 16471].

Senhora,

A Madame Duquesa2 conseguiu cem escudos do senhor superintendente para essas religiosas. Eles
lhe serão enviados com a condição de que elas voltem de onde estão. Enquanto isso, mandai-as trabalhar
em vossa escola, por obséquio, e observai como procedem. Elas têm a graça de Deus para isso. Não lhes
digais nada, por favor, a respeito dos cem escudos.

956. – A LUÍSA DE MARILLAC

. – LU
Carta 953. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. A carta foi escrita entre a Ascensão e Pentecostes. Parece do mesmo ano que a carta 937.
.
Carta 954. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.

Carta 955. – Manuscrito São Paulo, p. 70.
1
1. Esta carta foi escrita lá pelo fim das perturbações que agitaram a Lorena.
2
2. A Duquesa de Aiguillon.
.
Carta 956. – Manuscrito São Paulo, p. 70.
102

Senhora,

Se Deus quiser, irei ver essas religiosas dentro de dois ou três dias. Não poderíeis sugerir-lhes que
se retirem ao seu mosteiro?

957. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Cerca de 16471].

Senhora,

A intenção da Madame Duquesa de Aiguillon é que essas religiosas voltem para Lorena. Mandou-
lhes dar essa garantia em razão disso, não para outra finalidade. Enviou-me igualmente duzentas libras
para o mesmo fim, e acha bom que as empreguem só com o que lhes é necessário para a alimentação, e
que nós mandemos que recebam em Toul tanto os cem escudos que ganharam como as duzentas libras
que estão convosco. Suplico-vos dizer que me comuniquem quando estarão prontas para partirem de
volta, e que não houve nenhuma, dentre todas as que vieram, que levasse de volta tanto quanto elas, de
Paris, ao menos de meu conhecimento.

958. – A JEAN MARTIN

Paris, 7 de junho de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A presente carta é apenas para alegrar-me convosco pelo socorro que vos chegou. Não duvido,
com efeito, de que o Padre Patrício 1 já esteja em Gênova, uma vez que partiu de Roma há mais de um
mês, conforme o Padre Blatiron me escreveu. Peço-vos abraçá-lo em meu nome, como a todos eu abraço
em espírito, suplicando a Nosso Senhor estreitar-nos em seu mais puro amor, para que juntos o amemos, a
ele, unicamente, com toda força e eternamente. Meu Deus! senhor Padre, como minha alma suspira pela
perfeição da vossa! Sim, com toda a certeza, tanto quanto pelo vosso progresso espiritual, pois não sei
pedir uma coisa sem a outra. Não cesso de implorar também sobre vós e vossos trabalhos os efeitos de
uma especial proteção de Nosso Senhor, que faz de mim, invariavelmente, senhor Padre, vosso muito
humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

.
Carta 957. – Manuscrito São Paulo, p. 71.
1
1. Esta carta foi escrita poucos dias depois da carta 955.
.
Carta 958. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Patrício Valois (nome afrancesado de Walsh), nascido em Limerick (Irlanda), recebido na Congregação da Missão em 21 de dezembro de
1644, com a idade de vinte e cinco anos, ordenado padre em 1646.
103

959. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM ROMA

14 de junho de 1647.

De acordo com vossa carta, não devemos mais considerar os Padres... e... 1 senão como pessoas
desmanteladas pela tentação e nas quais não é mais possível confiar. O primeiro traz no coração o veneno
dos bens temporais e o outro a corrupção da carne e do sangue. Aguardemos, pois, a maneira como Deus
irá dispor deles e fiquemos em paz.

960. – A CLÁUDIO DUFOUR, SUPERIOR, EM SAINTES

15 de junho de 1647.

Não podeis imaginar a alegria da minha alma ao receber a última carta que me escrevestes e ao
saber da decisão que Nosso Senhor vos inspirou. Sem dúvida, senhor Padre, penso que o próprio céu se
alegra com isso. Com efeito, ó meu Deus! a Igreja dispõe, por sua misericórdia, de muitas pessoas no
estado de solidão de vida. Outras, e são numerosas demais, que vivem como inúteis e, o que é ainda pior,
que a estão dilacerando! A grande urgência para ela é a de dispor de homens evangélicos, que trabalhem
para purificá-la, iluminá-la e uni-la a seu divino esposo. E é precisamente o que estais fazendo, por sua
divina bondade. Ultimamente, fiquei enternecido, quando da passagem por aqui, durante um dia inteiro,
do reverendo Prior da Cartuxa de Mont-Dieu 1, na ocasião das ordenações, para assistir aos exercícios
espirituais realizados em vossa Casa; sentiu-se tão tocado que chegou a me dizer palavras tão elogiosas a
respeito desse trabalho, que a modéstia me impede de vo-las repetir. Não sei como exprimir-vos os
suspiros que dava durante o pontifical2, escutando o que se dizia sobre o dever do diácono. Asseguro-vos,
senhor Padre, que esse reverendo religioso tem mais espírito de missionário do que eu. E se lhe fosse
permitido, deixaria a sua cela para ir anunciar Jesus Cristo ao povo pobre e para trabalhar na instrução dos
padres.
Trabalhemos na Missão, senhor Padre, com toda a energia de nossas forças, vos suplico, na
confiança de que Nosso Senhor, que nos chamou a viver como ele viveu, nos fará participantes de seu
espírito e, enfim, de sua glória. Rejeitemos, portanto, absolutamente, todo pensamento contrário à nossa
vocação. Caso vos sintais cansado da residência no lugar onde estais, escrevei-me; farei tudo ao meu
alcance para contribuir com vossa consolação. Conheceis a estima e afeição que Nosso Senhor me
concedeu a vosso respeito, e que vos amo mais do que a mim mesmo.

961. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO,


A SÃO VICENTE

Túnis, junho de 1647.

Tanto fizemos que resgatamos, com o dinheiro que nos enviastes, essa pobre mulher francesa que
sofreu durante tanto tempo a tirania de um bárbaro patrão. Foi um verdadeiro milagre tirá-la das mãos
daquele tigre, que não queria entregá-la nem por ouro, nem por prata. Certa manhã, revolveu chamar-
me. Estando em sua casa, entramos em acordo por trezentos escudos, que lhe entreguei de imediato.
Mandei que lhe desse a carta de franquia e levei-a logo para um lugar seguro. Duas horas depois, o
.
Carta 959. – Reg. 2, P. 101.
1
1. Talvez Pierre de Fondimare e o Padre de Restal (ver a carta 1068).
.
Carta 960. – Reg. 2, p. 292.
1
1. Comuna dos arredores de Sedan (Ardennes).
2
2. Durante a explicação do pontifical.
.
Carta 961. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. VII, §12, 1ª ed., p. 139.
104

miserável se arrependeu e chegou a pensar que morreria de arrependimento. Foi na verdade um lance da
mão de Deus.
Resgatamos também um jovem de Sables-d’Olonne, que estava a ponto de renegar a fé. Penso vos
ter escrito de que modo, por duas ou três vezes, o impedimos de fazê-lo. Custou cento e cinquenta
escudos. Dei, de minha parte, trinta e seis e mendigamos o restante onde nos foi possível.
Libertei igualmente a jovem mulher siciliana, escrava em Bizerte, cujo marido se tornara
muçulmano. Sofreu, por três anos a fio, tormentos inexprimíveis, recusando imitar a apostasia do
marido. Escrevi-vos, pelos idos da última festa de Natal, sobre o lamentável estado em que a encontrara,
toda coberta de feridas. Custou duzentos e cinquenta escudos, que foram conseguidos com esmolas, das
quais contribuí com uma parte.

962. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

21 de junho de 1647.

Sim, sim, senhor Padre, rogaremos a Deus por vós e pela reconciliação dessas pessoas, tão
fortemente aferradas à vingança, e mandaremos celebrar missas nesta intenção. A minha, se eu puder,
será celebrada em Notre-Dame, conforme vosso desejo. Mas, no final das contas, aceitaríeis que nossa
solicitude e preces ficassem sem efeito, se tal fosse da santa vontade de Deus? Com razão, senhor Padre,
o que seria de nós se tudo nos ocorresse com êxito, e que motivo temos nós, pobres pessoas que somos,
para pretender o sucesso, sempre? Menos motivo temos ainda para nos perturbar quando alguém resiste a
nossas pequenas persuasões. Como Deus se contenta com nossa boa vontade e justos esforços,
contentemo-nos também com os resultados que lhes concede, e jamais nossas ações ficarão sem fruto.
Digo tudo isso, referindo-me à tristeza que tendes porque alguns não tiram proveito de vossas missões.
Importa não se assustar com isso; mas antes, senhor Padre, estimar que tudo vai às mil maravilhas quando
não ficamos satisfeitos com o que acontece, conquanto saibamos humilhar-nos e redobrar nossa confiança
em Deus. Contudo, temos todos os motivos para louvar a Deus pelas graças que continua a vos conceder.
Rendo-lhe graças, portanto, e lhe peço vos proteja, tanto em vossas vigorosas disposções ordinárias,
quanto no desejo do progresso de sua glória.

963. – A JEAN MARTIN

Paris, 21 de junho de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Ser-vos-ia possível propor-vos algo mais acertado do que querer, invariavelmente, o que Deus
quiser? Não o creio. Que motivo, portanto, podeis ter, senhor Padre, para vos desanimar, quando as coisas
não vos sucedem bem? Até o presente, tendes muita razão para agradecer a Deus por tudo. Com certeza,
de minha parte, vos ajudarei a fazê-lo, quanto me for possível; tal é o apreço que sinto pelas graças que
ele vos tem concedido. Conheço a fidelidade e o desvelo que tendes pela obra de Deus. Que vos resta,
pois, a não ser permanecer em paz? Ele só vos pede isso, juntamente com um humilde acolhimento ao
êxito que vos concede, e que não posso duvidar de que habite por inteiro em vossa alma. Para que, então,
deixar-vos levar pela desconfiança? Apresentais-me vossas misérias; meu Deus! quem delas não está
cumulado? Tudo está em reconhecê-las e amar a humilhação delas resultante, como fazeis, sem se deter
nelas, a não ser para nelas estabelecer o fundamento da mais firme confiança em Deus. Então, com efeito,
a casa estará edificada sobre a rocha; a tempestade poderá vir e ela permanecerá inabalável. Não temais,
.
Carta 962. – Reg. 2, p. 218.
.
Carta 963. – C. as. – Dossiê da Turim, original.
105

pois, senhor Padre; estais sobre esse fundamento, bem o sei. Na verdade, essa timidez e desconfiança que
sentis vêm da natureza e só de longe se aproximam do vosso coração, que é muito mais generoso e está
acima disso. Portanto, faça Deus de nós e de nossos trabalhos, o que quiser. Ainda que surjam
sofrimentos da parte dos homens, e que os próprios homens só tenham por nós ingratidão e desprezo, não
deixaremos, com tudo isso, de continuar nossos afazeres, sabendo que, por eles, estamos cumprindo a lei,
que é de amar a Deus de todo coração e ao próximo como a nós mesmos.
Peço esta graça a Deus para vós e para mim que sou, em seu amor, senhor Padre, vosso muito
humilde e afeiçoado servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Martin, padre da Missão, em Gênova.

964.Í m
– LUSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Meu uito honrado Pai,

Fiquei muito surpresa com vossa partida antes de nos dar as determinações necessárias para a
viagem de nossas Irmãs para Montreuil1. Se os lugares na diligência já não estivessem reservados, nós a
adiaríamos; terão, porém, de partir quarta-feira. E que farão elas sem a bênção e as instruções de vossa
caridade, das quais têm tanta necessidade? Se nosso bom Deus não vos inspirar que nos envieis as
diretrizes para elas, ver-nos-emos em dificuldades. Asseguro-vos, senhor Padre, que estou com o espírito
tão angustiado que confesso ser eu a causa de nossas pobres Irmãs sofrerem essa contrariedade.
Quanto à ida de nossas Irmãs para Nantes 2, não temos absolutamente condição de autorizá-la,
antes de recebermos o parecer de vossa caridade a respeito de uma mensagem que nos aconselha não
transferir a Irmã Catarina Bagard3, que iniciou as confusões no hospital. Ela acredita ser absolutamente
necessário mandar de volta para cá a Irmã Elisabeth4 e trazer uma Irmã para a direção5.
Creio que tendes conhecimento da chegada de nossas Irmãs de Angers, que voltaram para cá. A
acusada, porém, parece a pessoa mais inocente do mundo. Não me atrevi a escrever para seu pai, antes
de saber de vossa caridade o que faremos com ela; creio que ela não tardará muito a vir.
Suplico ao bom Deus que vossa caridade esteja de volta em boa saúde antes desse tempo. Vossa
bênção, senhor Padre, por favor, para nossas Irmãs e para mim!
A Irmã Margarida Tourneton foi-se embora domingo, sem dizer uma palavra. A Madre Priora 6
escreveu-me que ela fora até o Hospital Geral esta manhã e que a tinha recebido. Pede um outro hábito
para devolver-nos o nosso7. Nada respondi e não o farei até vosso regresso. Só Deus sabe do estado do
meu pobre espírito diante de todas essas desordens, pois parece que nosso bom Deus quer destruir-nos
totalmente. Bem o mereço e admira-me que sua justiça venha adiando por tanto tempo a realização desse
desígnio. Contanto que sua misericórdia salve minha alma, isso me basta.
.Í m
Carta 964. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. As Filhas da Caridade eram chamadas para Montreuil-sur-Mer (Pas-de-Callais) pelo Conde Charles de Lannoy, Governador dessa cidade.
Luísa de Marillac enviou para lá Anne Hardemont e Maria Lullen, de Le Mans, as quais partiram a 26 de junho, depois de ouvir conselhos da
Fundadora (Pensamentos de Luísa de Marillac, p. 211). São Vicente já lhes havia dado os seus, no Conselho de 19 de junho de 1647.
2
2. Das três Irmãs que deviam partir para Nantes, conhecemos apenas uma, a Irmã Jeanne Lepeintre, que ia fazer a visita dos hospitais dessa
cidade e de Angers. São Vicente lhe dissera no Conselho de 19 de junho: “Por ora, agora, seriam necessários quatro espíritos para a Irmã
Jeanne; se pudesse levar o da senhora Le Gras, ficaria muito contente, não é verdade, minha filha?”
3
3. A Irmã Catarina Bagard estava no hospital de Nantes desde a primeira entrada das Filhas da Caridade no estabelecimento. Por seu
procedimento irregular, seu mau espírito e as imperfeições do seu caráter, ela tinha causado muitos aborrecimentos a seus superiores e às
suas companheiras (Cf. Cartas de Luísa de Marillac, 173 e 181).
4
4. Elisabeth Martin, superiora das Filhas da Caridade em Nantes.
5
5. A escolha de Luísa de Marillac recaiu sobre Jeanne Lepeintre.
6
6. A priora das Irmãs Agostinianas do Hospital Geral.
7
7. Ela se arrependeu do seu ato, voltou e morreu no ano seguinte.
106

Obtende-me esta graça, por vossa caridade, pois que sou, senhor Padre, vossa muito obediente
filha e muito humilde serva,

24 de julho de [16478].

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, superior geral dos padres da Missão.

965. – A LUÍSA DE MARILLAC

Fréneville, 26 de junho de 1647.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Parti tão inopinadamente que me foi impossível dizer-vos adeus. Vossa bondade há de perdoar-
me, eu o espero. Estarei de volta segunda ou terça-feira, de manhã, se Deus quiser. Suplico-vos,
entretanto, dar-me a conhecer vossas notícias por um de nossos Irmãos que vai partir amanhã para aqui.
Envio-vos uma ou duas cartas que recebi antes de partir, mas que não pude ler antes de chegar
neste lugar.
Peço a Nosso Senhor vos conserve a saúde. Estou passando bem e sou, inteiramente, em seu amor,
senhora, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

966. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

26 de junho [16471].

Senhor,

Nossas pobres Irmãs2 partiram esta manhã com grande tristeza por não terem recebido vossa
bênção, mas bem submissas aos desígnios da divina Providência. Queira nosso bom Deus, em sua
bondade, que vosso regresso seja em breve, e com saúde.
Toda nossa pobre Companhia está mergulhada em grande dor, assombro e temor pela perda de
nossa Irmã3. Comenta-se em surdina, porque ninguém ousa falar sobre o fato. Aguardo o retorno de
vossa caridade para fazê-las compreender a maneira como devem encarar essa transformação.
Parece-me, senhor Padre, que começo a me fortalecer um pouco, esperando que nada me
sobrevenha! Tenho, porém, tanto cuidado comigo mesma, que parece ser minha mais séria ocupação a
de procurar meu bem-estar. Não faço o mesmo com os interesses de minha alma, embora, pela graça de
Deus, tenha recobrado um pouco mais de serenidade do que quando tive a honra de escrever-vos, a fim

8
8. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
.
Carta 965. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
.
Carta 966. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Esta data corresponde ao conteúdo da carta.
2
2. As Irmãs destinadas à fundação de Montreuil.
3
3. A Irmã Margarida Tourneton.
107

de que vossa caridade pudesse ter ideia do estado desta que outra consolação não tem senão a da
felicidade de ser, senhor Padre, vossa mui obediente e mui grata filha e serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Penso que há algo a censurar na liberdade de nossas Irmãs de Serqueux4.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral dos padres da Missão.

967.Í – A LUS SERRE, PADRE DA MISSÃO, EM CRÉCY

2 de julho de 1647.

Quando esses senhores que têm a intenção de entrar na Companhia estiverem em condição de vir para cá,
nós os receberemos no Seminário, onde é preciso que permaneçam algum tempo, sejam quais forem as
qualidades que possam ter. A experiência nos mostrou que a virtude lança apenas raízes frágeis naqueles
que nele passaram muito pouco tempo. Muitos que nos pareceram bastante regulares no Seminário, ao
serem colocados muito cedo demais nas Casas, perderam a vocação. Vede, pois, como é imprescindível
que passem por esta prova.

968.h – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE RICHELIEU

7 de julo de 1647.

Falastes-nos de três moças que postulam a entrada na Caridade. Se forem jovens com a devida aptidão e
de decisão firme, enviai-as, por obséquio. E se aparecerem outras, escrevei-me, pois esta pequena
Companhia está carecendo de membros, tantos são os pedidos que nos chegam de todas as partes.
Relembrai, senhor Padre... no que diz respeito ao que lhe informastes sobre as Filhas da Caridade,
as dificuldades em que se encontram, e quanto é de se desejar que lhes seja garantida uma modesta
sustentação.

969. – [A LUÍSA DE MARILLAC

7 de julho de 16471].

As Damas da Caridade solicitam à senhora Le Gras que mande amanhã, a uma hora da tarde,
quatro crianças, dois meninos e duas meninas, com duas Filhas da Caridade, para o castelo de Bicêtre 2,
com roupas de uso diário, mas sem as camas, e o necessário para a alimentação do dia e do dia seguinte.
Madame Truluy irá pegar as crianças em uma diligência, na hora acima indicada, assim como a roupa

4
4. Comuna do entorno de Neufchâtel (Seine-Inférieure).

Carta 967. – Reg 2, p. 40.
.h
Carta 968. – O texto desta carta foi tirado de um manuscrito intitulado: Cartas escolhidas do Bem-aventurado Vicente de Paulo,
fundador e primeiro Superior Geral da Congregação da Missão. Esta coleção, escrita entre 1729 e 1737, se encontra na Casa-Mãe das Filhas
da Caridade. É da mesma família do manuscrito de Avinhão, reproduz todas as suas cartas, na mesma ordem, e acrescenta uma nona parte,
que contém dezenove cartas, todas relativas à direção das Filhas da Caridade. Se não falamos deste manuscrito na Introdução, nem também
de outra coleção semelhante em espanhol, de posse dos padres da Missão de Madri, é porque lhes ignorávamos a existência.
.–[
Carta 969. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data da transferência das Crianças Expostas para Bicêtre.
2
2. Parece que as quatro crianças de que se trata aqui foram as primeiras colocadas em Bicêtre.
108

necessária. Levá-las-á à casa de Madame Romilly, onde Madame Chanceler e as outras senhoras irão
apanhá-las, para transportá-las. Elas têm um motivo particular para agirem assim e desejariam muito que
a senhora Le Gras estivesse em condições de participar dessa iniciativa. Creio, porém, que importa não
pensar nisso.

970. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Julho de 16471].

Senhor Padre,

A experiência nos fará ver, finalmente, que não me faltava razão para temer a instalação em
Bicêtre. Essas Damas têm o propósito de pedir o impossível a nossas Irmãs. Escolhem para alojá-las
quartos estreitos, onde o ar ficará logo insalubre, e deixam desocupados os mais espaçosos. Nossas
pobres Irmãs, porém, nada ousam dizer. Não querem que se celebre missa em casa, mas, sim, que as
Irmãs vão assistir a ela em Gentilly. Enquanto isto, que farão as crianças? Quem se encarregará dos
trabalhos a serem feitos?
A Irmã Genoveva2 vai estar convosco. Rogo-vos a bondade de atendê-la. Explicar-vos-á todo
sofrimento por que passam e as pretensões das Damas. Receio muito se torne necessário deixarmos o
serviço dessas pobres criancinhas.
Seja feita a vontade de Deus! Nela sou, senhor Padre, vossa muito obediente e mui grata filha e
serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Vossa caridade, por favor, se lembre de que nossas duas senhoras estão prontas para se
confessar, amanhã de manhã, se for possível.

Destinatário: A senhor Padre Vicente.

971. – AS FILHAS DA CARIDADE DA CASA-MÃE


A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Queremos avisar vossa caridade que duas de nossas Irmãs foram embora esta manhã, sem dizer uma
única palavra. Uma delas é Perrette, que voltou de Angers, e a outra é Margarida, que voltou de
Fontainebleau. Enviamos uma Irmã ao coche de Sedan, pensando que pudessem estar por lá; mas, como
nossa Irmã não tem autorização para detê-las à força, caso as encontre, e como a senhora (Le Gras) o
julga necessário, ela suplica a vossa caridade nos disponibilizar um dos vossos Irmãos, se julgardes
conveniente. Caso contrário, tende a bondade, pelo amor de Deus, de nos dizer o que devemos fazer.
Entrementes, senhor Padre, permanecemos vossas muito humildes e obedientes servas,

As Filhas da Caridade.

.
Carta 970. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Genoveva Poisson.
.
Carta 971. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
109

23 de julho de [16471].

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

972. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Julho de 16471].

Bendigamos a Deus, senhora, por limpar a Companhia de pessoas desse tipo, e honremos o estado
de espírito de Nosso Senhor, quando seus discípulos o estavam abandonando. Dizia aos que restavam:
quereis vós ir embora com eles2 2 ?
Não vejo o que se poderia fazer com essas moças, quando as encontrarem. Não temos autoridade
para detê-las. São livres. Deixai-as ir. Vou mandar alguém ao coche de Sedan, que só partirá às nove
horas. O Padre Gallais3 3 não está aqui. Encontra-se na Picardia, há dez dias. As duas não irão juntas para
aqueles lados. É preciso informar ao pai de Perrette sobre o que ela fez, tanto em Angers como em
Nantes.
Acho que não tendes nada de novo a dizer a Jeanne Lepeintre 4, a não ser algumas palavras,
lamentando seu incômodo5 5 e encorajando-a. Dizei-lhe também que faça o possível para mandar embora
Catarina Bagard. E se [algo]6 acontecer, paciência! Em nome de Deus, não [nos assustemos] com coisa
alguma. Deus fará tudo da melhor maneira.

973. – . – LAMBERT AUX COUTEAUX A SÃO VICENTE

Nantes, 26 de julho de 1647.

Senhor Padre,

Vossa bênção, por favor!


Eis-nos prestes a partir de Nantes, depois de ter cumprido o que vou relatar-vos.
Posso assegurar-vos de que nossas Irmãs têm ficado muito agitadas. Na verdade, se cometeram
algumas pequenas faltas, as ocasiões em que a Providência as colocou foram motivos ponderáveis para
lhes experimentar os espíritos. A Irmã superiora se desentendeu com o confessor e ele, da mesma forma.
Tudo abertamente. Cada um tinha seus partidários, dentro e fora de casa. Basta dizer-vos isto para vos
dar a conhecer tudo mais, e, sobretudo, para concluir que tudo o que se disse de ambas as partes não foi
sempre a expressão da verdade, mas, antes, às vezes, fruto da paixão.
Retiramos três de nossas Irmãs: duas para Paris, as Irmãs Catarina Bagard e Antoinette Larcher;
a outra, para Richelieu, a Irmã Isabelle 1. Demos-lhes como companhia até Saumur, para distraí-las,
nossas Irmãs Claudia e Brígida e demos ordem para que a Irmã de Turgis se dirija para a fonte em
Saumur, onde estará domingo próximo, à tarde, para se juntar às nossas duas Irmãs Catarina e
Antoinette. As duas outras retornarão. Admiti aos votos a Irmã Brígida. Foi necessário fazer essa
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
.
Carta 972. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. São Vicente escreveu estas palavras na própria carta das Irmãs da Casa-Mãe, da qual dava notícia a Luísa de Marillac então em Bicêtre.
2
2. Jo 6,68.
3
3. Guilherme Gallais fora superior em Sedan, donde era originária a Irmã Perrette; talvez a tivera encaminhado para a Comunidade.
4
4. Então superiora em Nantes.
5
5. Uma congestão (Cartas de Luísa de Marillac, p. 323).
6
6. O mau estado do original não nos permite dar como certa a leitura dessas palavras ([quelque chose], algo) e das palavras [nos assustemos]
(em francês: [nous étonnons]) – NB: Parênteses do Tradutor.
.–
Carta 973. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Elisabeth Martin.
110

mudança, não somente de nossas duas Irmãs, mas também de nossa Irmã Isabelle, excelente Irmã, mas
que contribuiu, também, por imprudência, para todas as desordens que aconteceram. Resta aqui ainda a
Irmã Henriette2, que tem um comprometimento horrível com o bom Padre Capelão, embora ele seja
totalmente inocente desde os inícios até as sequelas do caso. Com efeito, o Padre Capelão é grande
homem de bem, e ela, Irmã muito sábia. Entretanto, porém, a ordem que deixo de que ela se prive de
qualquer comunicação com esse Padre vai perturbar essa pobre Irmã. Será necessário aguardar, para
ver como isso vai funcionar. Em todo caso, se ela não o conseguir, poder-se-á chamá-la de volta, embora
seja muito difícil arrancá-la daqui. Espero, contudo, que tudo se ajustará e que a Irmã Jeanne Lepeintre
administrará tudo.
Acertei com esses Administradores, os pais dos pobres, que irão estar com o senhor Vigário
Geral, para lhe pedir ou propor um confessor de fora. Consegui a aprovação do Padre Capelão e do
referido Vigário Geral. Prometeram-me, além disso, despachar o Irmão que a senhora Le Gras ou vós
lhes tínheis enviado.
Eis, senhor Padre, aproximadamente, o que fizemos, e espero da bondade de Deus que me perdoe
o mal que eu possa ter causado e que ele tirará sua glória de tudo mais. De resto, senhor Padre, não vos
poderia dizer quanto toda a pequena Companhia fica devendo, em termos de gratidão, ao senhor Padre
des Jonchères, em particular, e a toda a sua família, quer pela afeição que tem para com nossas pobres
Irmãs, quer pela bondade que tiveram para comigo, enquanto aqui permaneci. Hospedamo-nos na casa
da senhora mãe do Padre des Jonchères. Além de hospitaleiros, são de notabilíssima piedade e bondade.
Os Administradores, pais dos pobres, demonstram também total bondade para com nossas Irmãs.
Na verdade, se Deus nos concedesse a graça de que elas chegassem a viver em cordial entendimento
mútuo, teríamos aqui um pequeno estabelecimento que santificaria muito as Filhas da Caridade, pois
acredito que Deus lhes dará, ainda por longo tempo, a graça de sofrer da parte dos de fora. Recomendo,
senhor Padre, esse bem a vossas preces e às da senhora Le Gras.
Se Deus conceder a graça a nossas pobres Irmãs de irem até Paris, oh! com certeza, será preciso
recebê-las bem, pois não fizeram os males dos quais foram alvo de suspeitas. Se tudo tivesse sido bem
conduzido, creio que a culpa não teria recaído sobre elas.
Não escrevi à senhora Le Gras, embora ela me tenha escrito. Espero que esta carta servirá para
ela, se estiverdes de acordo.
Estou indo despedir-me de nossas Irmãs. A vós, senhor Padre, peço que continueis a orar por nós.
Tenho a esperança de que, no início do mês de agosto, estaremos em Luçon e de lá iremos para Saintes,
onde esperamos receber notícias vossas. Ainda uma vez, vossa bênção. Vosso muito humilde e muito
obediente servo,

LAMBERT,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Congregação da Missão, no Colégio


dos Bons-Enfants, próximo da porta Saint-Victor, em Paris.

974.Ô. – JEAN BARREAU, CNSUL EM ARGEL, A SÃO VICENTE

Argel, 27 de julho de 1647

Senhor Padre,

Pela última carta que o Padre Nouelly vos escreveu, via Gênova e Livorno, tivestes conhecimento
de que, em 26 de junho último, o bachá1 recém-chegado mandou prender-me por causa da fiança que fui
obrigado a fazer em favor dos Reverendos Padres Mercedários. A presente é para confirmar ainda o
2
2. Henriette Gesseaume.
.Ô.
Carta 974. – Ms, de Lyon, f° 208 e seg.
1
1. Diríamos hoje paxá. Os paxás eram nomeados por três anos.
111

episódio e vos informar de que saí da prisão a 20 do presente mês, graças a Nosso Senhor, com os
mesmos sentimentos interiores que teria ao sair de um retiro espiritual. Contribuiu para isso, não pouco,
o colóquio que teve então comigo o Padre Nouelly sobre a conformidade com a vontade de Deus. Com
toda certeza, ele o fez sob uma especial inspiração, preparando-me para a tempestade que me atingiu
depois e da qual ainda não fiquei livre.
Ora, o meio de que aprouve a Nosso Senhor servir-se para me libertar foi extraordinário: a
doença contagiosa recrudesceu e acendeu mais ainda o desejo do referido padre de socorrer os pobres
cristãos enfermos, tanto pela administração dos sacramentos, como por outros socorros temporais.
Acabou sendo acometido pelo mal, na quarta-feira, 19 do presente mês, entre as nove e dez horas da
manhã. Voltou para casa tomado de grande fadiga e todo molhado de suor, conforme me informaram na
prisão, onde ainda me encontrava. Com esta notícia, decidi-me a sair, a qualquer preço, para socorrê-lo.
Afinal, mediante 45 piastras que precisei dar a algumas pessoas com crédito junto ao Rei e a alguns de
seus oficiais, foi dada a ordem de soltura, e imediatamente executada. Dirigi-me assim para a casa, no
sábado, dia 20, pelas 3 horas da tarde. Julguei então que não estava tão fora de si como estivera durante
a noite e pela manhã. Fiquei muito aliviado, pois todos diziam que, se não acelerasse a minha saída da
prisão, não o encontraria vivo. Pela manhã, pedira o viático e a unção dos enfermos.
Minha presença lhe trouxe um certo consolo. Abraçou-me primeiro, ternamente, sem dizer uma
palavra, quase sem me conhecer. Contudo, algum tempo depois, voltando a si, disse-me que era o fim e
que acreditava que Nosso Senhor queria dispor dele. Não alimentava pesar algum de morrer, a não ser
pelos pobres cristãos que previa ficassem abandonados e sem socorro. Depois de encorajá-lo do melhor
modo possível, informei-me dele mesmo qual era o seu mal e os remédios que lhe tinham dado à noite e
no dia precedente.
Não procurei saber da causa, porque o choro e os gemidos dos cristãos eram o testemunho
convincente de que o cuidado em socorrê-los, particularmente aos mais abandonados, como eram os
atingidos pela peste, era a primeira causa, depois de Deus. E, certamente, cometeria eu notável injúria à
sua memória, se não tornasse público qual era a verdade. Não pequena foi a contribuição para o seu
estado o pouco cuidado que tinha com sua pessoa. Não se dava, pela manhã, antes de levar a Santíssima
Eucaristia aos doentes, o refresco de um gole de vinho ou de outra coisa, tão grande era o desejo de
socorrer seus filhos. Pouco tempo antes da doença, tomando refeição comigo na prisão, como era seu
costume, perguntei-lhe que precaução tomava para se proteger da doença, tão violenta que os enfermos
não passavam de 48 horas. Respondeu-me que outra não tinha a não ser a da confiança em Deus.
Repliquei-lhe que era, na verdade, um excelente remédio, mas que Deus não nos proibia, com isso, de
tomar um pouco de vinho antes de sair. Respondeu-me que ao ver, ao terminar a Missa, que todos saíam
logo da capela, parecia-lhe que cometeria grande irreverência se os deixasse a sós. A isso podemos
acrescentar o temor que tinha de que o mal acometesse com muita violência aos doentes e que chegasse
tarde demais para socorrê-los. E não adiantou dizer-lhe que ele era extremamente necessário aqui, e
que, se não queria proteger-se em atenção a si mesmo, que o fizesse ao menos em favor dos outros, e em
atenção a mim que precisava tanto dele, no estado em que me encontrava. Cheguei à temeridade de lhe
dizer que era tentar a Deus expor-se de tal sorte. Foi tudo em vão: o respeito que tinha para com o
Santíssimo Sacramento e o amor que dedicava aos pobres era incomparavelmente maior do que o amor
que tinha para consigo mesmo. Tudo que os amigos lhe aconselhavam não era capaz de diminuir uma
coisa nem alterar a outra.
Demonstrou isso antes de morrer. O Padre Ortensio Gaulteri, que ocupa aqui o lugar de Vigário
Geral do Bispo de Cartago, lhe disse que, se Deus lhe desse a graça de recobrar a saúde, iria proibi-lo,
até sob pena de excomunhão, de manter tanta aproximação com os doentes. Teria de pedir informações a
respeito deles e assisti-los por intermédio de um terceiro. Ele lhe respondeu com um grande suspiro que
isso não era possível, tão grande era seu zelo pela salvação das almas. Vede ainda uma prova.
Cerca de oito dias antes de sua doença, veio almoçar com o Padre Sebastião, religioso de Nossa
Senhora das Mercês2, pelo qual estava eu na prisão. Enquanto estávamos lavando as mãos, veio um
2
2. O Rvdo. Padre Sebastião Brugière tinha vindo a Argel em março de 1644, com os Padres Francisco Faure e Francisco Faisan, seus
coirmãos, para se ocuparem da redenção dos cativos. O dinheiro que tinha em mãos lhe permitiu o pagamento do resgate de duzentos
escravos. Noventa e seis outros cristãos foram libertados, mediante a promessa de 8.900 piastras e a troca de vinte e dois muçulmanos.
Permaneceu retido como refém em Argel, enquanto seus coirmãos voltaram à França, em busca das somas prometidas, que eles não
conseguiram. Teve de recorrer a empréstimos onerosos, à taxa de 50 por cento, a fim de contentar aos mais exigentes dos seus credores. Suas
dívidas acumularam. Em maio de 1645, um renegado francês, que lhe reclamava em vão cinquenta piastras pelo preço de um escravo,
112

pobre Provençal implorar-lhe socorro em favor de um tal Pierre Boquit, escravo há 25 anos, e que
ajudava a levar os mortos para o cemitério. Pediu-lhe fosse atendê-lo em confissão. Imediatamente,
deixando o guardanapo, ele o acompanhou, dando preferência ao bem da alma desse pobre cristão à sua
própria carência e necessidade.
Não vos relato esse exemplo como sendo o único. Nele era algo ordinário e quotidiano. Quantas
vezes o vimos, todo encharcado de suor, depois de estar correndo toda a manhã “à procura de alguma
presa”, assim denominava esse trabalho. Mal pensava em se entregar a uma pequena meia hora de
descanso, já entrava na casa de outro cristão que solicitava socorro para um terceiro. Para lá voava no
mesmo instante, sem interrupção alguma. Posso garantir-vos que não era sem motivo que dava a essa
labuta o nome de corrida, pois que a ela se entregava com tanto ardor, e muito maior do que o fazem os
corsários de Argel para se apoderar de algum navio mercante. Da mesma maneira, como não fazem eles
exceção de ninguém e se apoderam indiferentemente de tudo que encontram, assim também o fazia nosso
bom corsário: não havia para ele espanhol, italiano ou alguém de outra nação que não tratasse de
conquistar para Nosso Senhor e de colocar em bom estado.
Sua doença começou com uma grande dor no estômago e nos rins, acompanhada de grande
cansaço que lhe atingia todo o corpo. Acometeu-lhe febre tão violenta que todos acreditaram que não
passaria daquele dia. Apareceram, em seguida, surtos de vômitos que deram logo a conhecer a espécie
de sua doença. A febre lhe durou até a tarde do domingo, entremeada de inquietações, delírios e
sudoreses extraordinárias no domingo todo, o que fez abaixar-lhe a febre. À noite, voltou à lucidez, a tal
ponto que o julgávamos fora do perigo de morte. Permaneci velando-o durante a noite. A sós, com ele,
tive a ventura de fruir, no espaço de duas a três horas, de sua conversação, durante a qual me deu alguns
avisos sobre como me conduzir neste país, durante o tempo em que ficarei sozinho. Nessa ocasião, fez-me
ver a consolação que recebe uma alma que morre nos exercícios de sua vocação. Deu-me testemunho de
muito grande serenidade em acolher a morte, para a qual se dispusera desde que embarcamos em
Marselha, rumo a esta cidade, e, como me disse por várias vezes, pronto para ser queimado e empalado,
com perfeita resignação à vontade de Deus, mas com ternura tão grande que me levava a desejar estar
em seu lugar.
Finalmente, segunda-feira, pela manhã, a febra recrudesceu. É de se notar que este dia foi tão
lastimável, por ocasião de uma chuvazinha de um quarto de hora, após um ano de seca, que dizem ter
morrido 8250 pessoas. No início, portanto, do mau tempo, que começou cerca de duas horas da tarde,
entrou de novo em agonia, com movimentos e esforços violentos. Mantinha-se assentado no leito,
crucifixo à mão, como se estivesse no púlpito para pregar. Nesse estado, pronunciava algumas palavras
que não conseguíamos entender. De tempos em tempos, dava-lhe o crucifixo para beijar, mandava-o
rezar Santa Maria, etc, ou Maria Mãe, etc. Não posso exprimir-vos com que ardor e afeto o fazia do
melhor modo como lhe era possível. Depois de permanecer nessa peleja por mais ou menos uma hora,
faltaram-lhe as forças; foi se esfriando, e, após meio quarto de hora de tranquilidade, expirou, ou antes,
adormeceu, pois passou deste mundo com toda serenidade. Eis, aproximadamente, o progresso de sua
doença.
Imediatamente após ter expirado, a notícia de sua morte se espalhou tão depressa que logo a casa
se encheu de cristãos, tanto franceses, italianos, espanhóis, como de outros países. Testemunhavam todos
com lágrimas quanto lhes era sensível a perda que sofriam. Não houve meios de os fazer retirar-se,
apesar dos pedidos feitos neste sentido, em razão do ar pouco saudável. Ao final, fomos enterrá-lo num
lugar chamado Bab-Azoun3, na orla do mar, onde foi colocado junto do falecido Padre Luciano 4. Lá
estavam presentes cerca de setecentos a oitocentos cristãos de diversas nações, todos com lágrimas nos
olhos. Havia também vários muçulmanos, que sentiam muito sua perda, por causa do socorro que
precipitou-se sobre ele, com um punhal na mão, pronto para matá-lo. O Rvdo. Padre Sebastião escapuliu e caiu de modo tão infeliz, que
quebrou duas costelas e contundiu o baço. Seus gemidos chegaram até a alfândega da cidade. Foi pego, condenado, lançado numa horrenda
prisão, onde permaneceu dois meses. Como sua saúde inspirava inquietações, recebeu depois autorização para ir morar na casa do cônsul
francês, com a condição de não sair de lá. É la que se encontrava em 25 de novembro de 1645, quando fez, diante de Francisco Constans,
chanceler do cônsul de Argel, a declaração cuja ata a Revue africaine publicou no seu tomo XXXV, com o título de Certificado dos
sofrimentos do Rvdo. Padre Sebastião.
3
3. Porta do regato. Era o lugar onde estava o cemitério dos cristãos.
4
4. Em sua primeira viagem a Argel, em janeiro de 1643, o Rvdo. Padre Luciano Hérault, trinitário, resgatara quarenta e oito escravos. De
volta a essa cidade, em 1645, fez outros resgates e se ofereceu como caução. O dinheiro demorava a chegar, e foi lançado na prisão. Veio a
sucumbir logo após, em 28 de janeiro de 1646. Seu corpo foi sepultado fora da cidade, no cemitério dos cristãos, próximo da porta de Ban-el-
Oued (Dan, História da Barbária e de seus corsários, p. 136).
113

prestava a seus escravos em seus males; e isso me trouxe não pouco conforto, no estado em que eu
estava. Na verdade, teriam sido muito ingratos, se lá não fossem. O Padre Nouelly tinha adquirido
crédito no meio deles, pela graça particular que Deus lhe concedera de tocar o coração desses bárbaros,
no sentido de os levar à compaixão para com seus escravos.
Entrava com toda liberdade em suas casas, como o faria em nossa casa. A bênção que Deus
concedia aos seus trabalhos, pela convalescença de alguns, o fazia passar por médico. Sob esse manto,
ia visitar, livremente, consolar e assistir os pobres cristãos, por mais escondidos que estivessem, e lhes
administrava os sacramentos na presença de seus patrões, aos quais dava a entender que eram remédios.
E nisto não os enganava, de maneira alguma, já que operam com mais eficácia do que os do corpo.
Depois de lhe ter prestado as últimas obrigações, pensamos em proteger o que restou,
empregando todo cuidado e diligência possíveis. O Reverendo Padre Sebastião Brugière, religioso de
Nossa Senhora das Mercês, me aconselhou providenciar perfumes, queimar muita lenha cheirosa na casa
e particularmente no quarto onde morrera.
No dia seguinte à sua morte, senti-me tomado de grande fraqueza no coração, com contínuos e
extraordinários surtos de sudorese. A imaginação ainda muito ferida me dava a impressão de que já ia
morrer. Com esses pensamentos, procurei dispor de tudo, como se devesse morrer naquele mesmo dia.
Feito isso, comecei a desligar-me de todas as coisas da terra e a me entregar nas mãos de nosso bom
Deus. Nessa ocasião, lembrei-me do que havia lido, na prisão, do tratado da conformidade com a
vontade de Deus. Além disso, algumas vezes, refletindo na inspiração que tivera o falecido Padre Nouelly
de me dar esse trabalho, afigurava-se-me que tinha sido o efeito de sua divina e singular prudência. Com
isso, desejava dispor-me para acolher a morte com paciência, embora destituído do meu principal
socorro, distante dos meus mais próximos ou íntimos amigos, sem consolação alguma, num país onde
tenho sido tão vivamente perseguido. Sentia, contudo, em mim mesmo, que todas essas considerações me
davam mais coragem, crendo-me mais ainda entregue à sua vontade que assim o ordenava. Está,
contudo, parecendo que Deus quer me guardar para outra ocasião.
No dia seguinte à sua morte, foi celebrado um serviço religioso solene na prisão do Rei, onde se
aglomerava uma quantidade de pessoas, o quanto permitiam o lugar e o tempo. Na ocasião, o Reverendo
Padre Pierre, religioso de Nossa Senhora do Carmo, pronunciou a oração fúnebre e salientou muito a
causa de sua doença; ao chegar ao salmo Beatus qui intelligit super egenum et pauperem (Feliz quem se
preocupa com o indigente e o pobre), enfatizou de tal modo o socorro que levara tanto aos eclesiásticos
como aos seculares, que o fez passar por santo. Dois dias depois, mandou cantar um outro na prisão de
Cheleby5, onde também foi pregada uma oração fúnebre pelo Reverendo Padre Ange, religioso de São
Francisco, que tomou como assunto a oração fúnebre que fez outrora São Jerônimo sobre a morte de
Santa Paula e sobre o que então se relatava: in morte ejus omnes defecisse virtutes (na morte dela,
morreram todas as virtudes). Estendeu-se longamente sobre sua caridade para com os pobres cristãos;
sobre sua mansidão e afabilidade que não deixava jamais cristão algum partir de junto dele sem ser
atendido; sua modéstia, com que conquistava os corações de todos; e, assim, sobre as demais virtudes.
Entre as pessoas que o socorreram caridosa e cordialmente, não posso omitir o zelo do
Reverendo Padre Sebastião e o do R.P. Corse, diretor espiritual do citado falecido, que o assistiram até o
derradeiro suspiro e nunca o abandonaram, fosse qual fosse o perigo. Seria ingrato para com o chamado
Gabriel Mirsane, cirurgião de La Flèche, em Anjou, para cujo resgate Madame Duquesa de Aiguillon me
deu ordem, até a soma de 500 libras, se não lembrasse o cuidado e a diligência inexprimíveis, a
assiduidade com a qual cuidou dele. Sempre dormia em casa, para ficar mais prontamente disponível
para socorrê-lo.
Foi nessa ocasião que experimentei a fidelidade do chamado Renê Duchesne, pobre fidalgo de
Poitou6, que navega, há doze anos, nas galeras e mora em nossa casa, há um ano, servindo-nos como
escrivão, e de Jean Benoît que nos serve como cozinheiro esse mesmo tempo. O desafio para ambos era o
de quem testemunharia mais afeição. Foi igualmente socorrido por três outros cristãos chamados Jean
Petit, de Bolonha, Lépine, da Picardia, e Guilherme Mobavec, da diocese de Coutances. Eles nos
prestaram auxílio e continuam ainda nos servindo.

5
5. Chefe da Prisão.
6
6. Renê Duchesne, nascido em Saint-Juire-Champgillon (Vandée) em agosto de 1607. Entrou na Congregação da Missão em 16 de fevereiro
de 1654, como irmão coadjutor, e fez os votos em 1° de novembro de 1658.
114

Eis aproximadamente o desenrolar do que aconteceu em Argel, na pessoa do falecido Padre


Nouelly. Digo, aproximadamente, porque seria demais para mim se quisesse detalhar os serviços que
prestou aos pobres e doentes. Eram por demais generosos diante de Deus que não quis adiar-lhe a
recompensa.
Quanto a mim, rendo graças a Deus por me ter concedido ainda tempo para fazer penitência.
Seja tudo para a maior glória de Deus, como penso, e é tão verdade, que tenho a honra de me dizer,
senhor Padre, vosso muito humilde e muito obediente servo,

BARREAU.

975. – [. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO,


A SÃO VECENTE

Túnis, entre 1645 e maio de 16481].

Temos aqui um garoto de Marselha, com treze anos. Depois de preso e vendido pelos corsários,
recebeu mais de mil bordoadas pela fé em Jesus Cristo, que queriam que renegasse à força. Pelo mesmo
motivo, rasgaram-lhe a carne de um dos braços, como se faria como a carne de uma churrascada, para
pô-la sobre a grelha. Depois disso, foi condenado a quatrocentas bastonadas, isto é, a morrer ou a se
fazer turco. Imediatamente, fui ter com seu patrão; lancei-me três a quatro vezes, de joelhos, diante dele,
de mãos postas, pedindo-lhe me desse o garoto. Ele mo entregou por duzentas piastras. Não tendo o
dinheiro, pedi emprestado cem escudos a juros e um comerciante deu o restante.

976. – A ALAIN DE SOLMINIHAC, BISPO DE CAHORS

30 de julho de 1647.

Excelência Reverendíssima,

Eis vossos bons religiosos de Chancelade, que estão voltando com seu decreto. Operaram
maravilhas na solicitação deste negócio, e muito edificaram a todos com que tiveram de tratar. Há uma
cláusula no decreto que vos enseja obter a ereção de vossa Congregação. O Conselho manda que os
religiosos de Chancelade, Sablonceaux1 e Saint-Girard2 viverão sob a direção do superior ou Abade de
Chancelade, o que é, na verdade, a ereção de uma Congregação entre essas três Casas. Mas como o
magistrado temporal não tem competência para atribuir a jurisdição espiritual requerida em favor de um
superior de várias Casas, é forçoso solicitá-la ao Papa, em quem reside este direito. Os religiosos das
referidas Casas deverão, portanto, dirigir-se a Sua Santidade, a fim de solicitar-lhe, em favor do Abade de
Chancelade, a autoridade para dirigir espiritualmente as três Casas. O referido Abade de Chancelade,
Bispo de Cahors, fundou uma Casa na diocese de Cahors, para viver sob a direção do superior ou Abade
de Chancelade3. Mas há várias outras Casas da mesma Ordem que pedem para viver sob a direção do
superior de Chancelade. É a razão pela qual se suplica à Sua Santidade que erija em Congregação a união
.–[
Carta 975. – Abelly, op. cit., 1. II, sec VII, § 12, p.140.
1
1. Duração da permanência de Juliano Guérin em Túnis.
.
Carta 976. – Reg. I, f° 2, cópia tirada da minuta, que era da mão do Santo.
1
1. Pequena localidade da Charente-Inférieure. Alain de Solminihac enviara para lá dois dos seus religiosos, a pedido de Dom Sourdis,
Arcebispo de Bordeus, Abade comendatário da Abadia.
2
2. Em Limoges.
3
3. O Bispo de Cahors acabava de chamar para essa cidade, no mês anterior, doze cônegos regulares da reforma de Chancelade. Três dentre
eles, entre os quais seu superior, o Rvdo. Padre Garat, estavam hospedados no bispado; cinco ou seis ficaram numa casa de aluguel, no
subúrbio de Barre; os outros deviam partir em missão o ano inteiro, exceto no tempo das colheitas. Alguns anos depois, estabeleceram-se em
Cadurques, num edifício que o Bispo de Cahors mandara construir para eles.
115

das três Casas, determinada pelo Conselho do Rei, para que possam viver sob a direção do superior de
Chancelade. Pede-se também a Sua Santidade que atribua à dita Congregação os direitos e privilégios
atribuídos às demais congregações religiosas; e que possam receber na Congregação, assim erigida, as
Casas não reformadas – não de outra congregação – mas da Ordem dos Cônegos Regulares de Santo
Agostinho que solicitarem esta união, em conformidade com o que diz o santo Concílio de Trento.
Ordena, com efeito, este último, que as Casas religiosas que não pertencem a congregação alguma serão
obrigadas a se unirem num corpo congregacional.
Eis, Excelência, meus pequenos pensamentos a respeito deste assunto. A presença de uma pessoa
adequada impulsiona a solução de um negócio e o conduz mais depressa e com mais segurança ao êxito
desejado. Penso então que o caso merece que envieis alguém até lá, sem o traje do hábito religioso, de tal
sorte que o assunto seja resolvido antes que investigadores de lá sejam dele avisados.
Dizem que o senhor Bispo de Puy4 deve ir a Roma para a beatificação do bem-aventurado Bispo
de Genebra, neste outono ou na primavera. Se for verdade, pedir-lhe-ei que trabalhe em favor desse caso.
Eis, senhor Bispo, o que vos posso oferecer, junto com o meu pobre coração, nas dobras desta
carta, com a qual vo-lo envio, sendo, no amor de Nosso Senhor, senhor Bispo, vosso muito humilde e
obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

977. – A UM PADRE DA MISSÃO

[16471].

Nada temos de novo, a não ser a morte do Padre Aulent, superior de nossa Casa de Toul, onde
terminou seus dias, com marcas quase infalíveis de sua felicidade eterna. Realmente, viveu como
verdadeiro servo de Deus e tão santamente quanto é possível a um verdadeiro missionário. Não posso
descer aos detalhes, mas podeis vo-los representar, imaginando um homem no qual não conseguimos
enxergar defeitos e dado à pratica de todas as virtudes. É o que se pode, sem exagero, dizer dele, e vo-lo
digo com grande sentimento de pesar pela perda da Companhia, na pessoa dele. Deus nos dê a graça de
imitá-lo, e a mim, a de obter misericórdia pelas preces dele e as vossas!

978. – JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO,


A SÃO VICENTE

[Túnis, entre 1645 e maio de 16481].

Não posso impedir-me de vos levar ao conhecimento o que um muçulmano me disse, dias atrás,
para a confusão dos maus cristãos. Esforçava-me para reconciliar dois cristãos que se queriam mal. Ao
ver que tinha dificuldade em levá-los a se entenderem, disse-me diante deles, em sua língua: “Meu padre,
entre nós, muçulmanos, não nos é permitido permanecer três dias de mal com nosso próximo, ainda que
tenha matado algum dos nossos parentes mais próximos”. De fato, por várias vezes, observei essa
prática entre eles, vendo-os se abraçarem logo após se terem agredido. Não posso dizer se o interior
correspondia ao exterior. Não há, porém, dúvida de que esses infiéis condenarão, no dia do juízo, os
cristãos que não querem reconciliar-se, nem interior nem exteriormente. Retêm no interior do coração o
4
4. Henrique de Maupas du Tour (1641-1661)
.
Carta 977. – Ms. de Lyon.
1
1. Ano da morte do Padre Aulent.
.
Carta 978. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. VII, § 8, 1ª ed., p. 124.
1
1. Duração da permanência de Juliano Guérin em Túnis.
116

ódio contra o próximo e o manifestam ainda para fora, com escândalo, chegando ao ponto de se
vangloriarem pela vingança infligida, ou que desejam infligir aos inimigos. Entretanto, esses que
julgamos bárbaros têm como grande vergonha reter no coração algum ódio e recusar reconciliar-se com
os que lhes fizeram algum mal.

979. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Bicêtre, agosto de 16471].

Senhor Padre,

Desculpava-me ontem junto ao Padre Le Roy por não vos dar um recado de sua parte. Mas penso
entretanto ser dever meu relatar-vos tudo o que me disse e o que lhe respondi, embora seja-me muito
difícil fazê-lo. O mais importante é que ele afirma ser o diretor e administrador da Casa das Crianças
Expostas. Como tal, pretende ir lá quando bem lhe aprouver para ministrar as instruções, colocar
também lá um padre e responsabilizar-se por todo o cuidado espiritual. Gostaria que lhe arranjassem um
padre e lho apresentassem, para que lhe dê sua aprovação. Diz-se mais cioso disto do que de um bispado
ou cardinalato e que se lho negassem, iria queixar-se ao senhor Procurador Geral 2 e se demitiria do
cargo de administrador que lhe tinham conferido.
Mostrei-lhe meu espanto por não ter ele falado disso há mais tempo e o fiz ver que as Damas 3, até
o presente, sempre haviam cuidado, com o mesmo interesse, tanto do espiritual quanto do temporal,
como se pode ver pelos batizados, confissões por ocasião da Páscoa, catequese para a primeira
comunhão, as celebrações de missas, tanto para as crianças quanto para as amas de leite. Disse-lhe
ainda que acreditava que os senhores Cônegos do Cabido tinham declinado toda responsabilidade da
conduta desta obra em favor das Damas, exceto a das mil e duzentas libras das quais lhes deviam prestar
contas. Em mais de 50 anos em que os senhores Cônegos do Cabido haviam tido a seu cargo a obra, não
cuidaram de outra administração a não ser a da referida soma. Disse-lhe que falava de tudo isso,
entretanto, sem ter ouvido as Damas, com quem me encontrava muito poucas vezes; e o que lhe
expressava era apenas à luz do senso comum. Queixava-se de não ter sido avisado a respeito de Bicêtre.
Disse-lhe que pensava não ter ocorrido às Damas a ideia da obrigação de o fazer e que tudo acontecera
com muita pressa. Falou-me muitas coisas mais e eu também a ele, das quais agora não me lembro. Tão
pouco deixou de fazer alusão à resposta dada pela Irmã Genoveva 4 à pergunta que lhe fizeram os
Administradores. Expliquei-lhe o sentido que ela dera à sua resposta.
Se alguma boa alma pudesse conseguir da Rainha este lugar para um estabelecimento da Missão,
evitar-se-iam muitas contradições e far-se-ia um grande bem.
Esquecia-me de vos dizer que, em face da minha recusa de vos falar, o senhor Padre Le Roy
resolveu ir procurar as Damas e lhes falar com toda a energia.
Se aprouver a vossa caridade dar-se ao trabalho de ver a carta da senhora de Romilly, enviar-
lha-ei, se estiverdes de acordo.
Abençoai-nos, por bondade, e crede-me, senhor Padre, vossa muito obediente serva e mui grata
filha,

L. DE MARILLAC.
.

.
Carta 979. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Blaise Méliand (1641-1650).
3
3. As Damas da Caridade.
4
4. Genoveva Poisson.
117

Lembrando-me de repente das grandes carências, disse-lhe que temia que as Damas fossem
constrangidas a entregar toda a obra a quem pudesse levá-la em frente. Ficamos ambos bons amigos,
porque lhe falei com imparcialidade.
Parece-me necessário pensar no vinho, quanto antes.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

980. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Tolosa, 20 de agosto de 1647.

Senhor Padre,

Recebi a carta que vos destes ao trabalho de escrever-me a 4 do corrente mês. Nada tenho a vos
dizer sobre os comissários que nomeastes para a questão dos meus religiosos.
Desde que o senhor Abade de Estrades foi nomeado para a diocese de Périgueux, não deixei de
exortá-lo, pedir-lhe e urgir com ele, no sentido de que empregasse todas as diligências possíveis, a fim de
obter prontamente as bulas e partir para a sua diocese. Percebi, finalmente, por suas cartas, que ele se
deixava levar pelas iniciativas de seu irmão, em termos de as obter de graça e de não apressar-lhes a
expedição, enquanto esperasse consegui-las por esta via. Escrevi-lhe, então, nos seguintes termos, há
talvez dois meses, suplicando-lhe propor a seus irmãos esta verdade, da qual não devia duvidar: desde o
tempo em que persegue a gratuidade das bulas, há várias almas daquela diocese sendo condenadas e que
não o seriam se lá estivesse, e que, até consegui-las de graça, outras almas ainda se condenarão, que se
salvariam se ele estivesse em sua diocese; não acreditava que ele quisesse responder por isso diante de
Deus; e ainda que seu irmão chamasse para si tal responsabilidade, ficaria ele livre dela diante de
Deus? Dizia-lhe que escrevia tudo isso com sensível pesar, etc.
Cinco semanas, ou, aproximadamente, depois, escreveu-me que estava decidido a prover a
diocese de Périgueux de um modo ou de outro, e que tratava disso com o senhor Bispo de Condom 1, no
intuito de obter a demissão dele. Poucos dias depois, escreveu-me que o entendimento estava concluído.
Ele cedia sua abadia ao sobrinho do referido senhor Bispo de Condom e este lhe entregaria a demissão
de sua própria diocese, com a reserva de doze mil libras de pensão. Rogava-me que vos escrevesse a
respeito, suplicando-vos que trabalheis na aceitação da citada demissão. Eu o faço, já que ele o deseja,
embora não o julgue necessário, tendo total certeza da afeição com que desejais que a desolada diocese
de Périgueux seja prontamente provida de uma pessoa com as qualidades requeridas para regê-la. Há o
temor de que o sobrinho do senhor Bispo de Condom aspire a ela, e disto quiseram que vos avisasse, a
fim de que, se for o caso, a isso vos oponhais, o quanto vos for possível. Trata-se daquele que conversara
com o senhor Bispo de Agde2, manifestando interesse pela diocese de Bayonne, da qual o julgastes
indigno, em razão de certa ação que praticou, logo ao terminar de fazer os exercícios espirituais em
vossa Casa, algo indigno de sua profissão.
Relataram ao senhor Bispo de Valence3 que vos empenhastes em favor dele, no Conselho de
Consciência, pelo que se sente muito agradecido para convosco. Pede-vos, e eu com ele, continueis a
dispensar-lhe vossos bons préstimos no Conselho, junto a Sua Eminência4, a fim de que lhe propiciem os
meios de ir cumprir, com liberdade, seus deveres, em sua diocese. É bem fácil encontrar bons
governantes de cidades, mas muito difícil encontrar bons bispos, zelosos pela salvação das almas, como
ele o é. E já que o Governador não cessa de cometer violências contra ele e seus oficiais, é muito justo e
mais razoável se atribua algum outro emprego a esse governante, em vez de obrigar o senhor Bispo de
Valence a deixar sua diocese.
.
Carta 980. – Arquivo da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. Antônio de Cous, falecido em 15 de fevereiro de 1648.
2
2. Francisco Fouquet, transferido de Bayonne para Agde em 1643.
3
3. Charles-Jacques de Gelas de Leberon.
4
4. O Cardeal Mazarino.
118

Há dois meses que estou aqui trabalhando por conta dessa importante questão de que vos falei,
contra o senhor Conde de Rastignac, meu oficial 5, sem ter conseguido solução. Possivelmente, não a
obterei desse Parlamento, tão numerosas são as chicanas na justiça. Quer a obtenha ou não, retirar-me-
ei, dentro de poucos dias, à minha diocese. Enquanto o aguardo, sou, senhor Padre, etc.

ALAIN DE SOLMINIHAC,
Bispo de Cahors.

981. –LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Bicêtre, 22 de agosto de 16471].

Senhor Padre,

Penso, se vossa caridade estiver de acordo, que é conveniente que eu não retorne antes de deixar
aqui uma professora ensinando as meninas a ler e costurar, a não ser que algo urgente me obrigue a
voltar logo para casa. A propósito, senhor Padre, quero dirigir à vossa caridade, muito humildemente,
uma súplica. Peço-vos, por amor de Deus, ter a bondade de visitar nossas cinco Irmãs que deixei fazendo
o retiro espiritual, sem lhes ter prestado a devida assistência. Dei-lhes a esperança de que voltaria esta
tarde ou amanhã de manhã. Há uma de Saint-Germain-em-Laye, uma de Nanteuil 2, uma do povoado de
Issy e a que julgo devamos mandar de volta para St-Denis, por não ter o perfil adequado para nós, a meu
ver. As outras estão desejando muitíssimo retornar ao trabalho, e seria preciso que isto se desse, no mais
tardar, no próximo sábado. A quinta é a que reservo como uma das professoras de nossas crianças.
Estou pensando, senhor Padre, que seria muito necessário que vossa caridade nos providenciasse
com urgência um eclesiástico, por duas razões: uma, para ensinar aos meninos, e a outra, porque
suponho que o primeiro a tomar posse, permanecerá depois.
Hoje, pela manhã, faleceu-nos, uma criança. Tomei a liberdade de pedir ao padre que virá para o
enterro, se não for transtorno para ele, em vez de vir à tarde, tenha a bondade de vir amanhã,
aproveitando a oportunidade, assim, para celebrar a Santa Missa para nós.
Se julgardes necessário que as Irmãs vão a vossa Casa para conversar convosco, tende a
bondade de lhes dizer, para não deixar de falar com elas. Seria grande prazer para toda a comunidade
se o fizésseis lá em nossa Casa.
Se vossa caridade for de opinião que nossas Irmãs falem com o senhor Procurador Geral 3 para
lhe lembrar as necessidades que vossa caridade lhe apresentou, parece-me que a mais indicada para isso
seria a Irmã Genoveva4. As outras não saberiam fazê-lo tão bem. Será preciso mostrar-lhe a necessidade
de uma provisão completa de lenha.
As Damas não pensaram em disponibilizar um lugar para a escola. Vimos um bastante adequado.
Os meninos, que importa separar das meninas, ficariam no piso térreo. É só abrir uma porta e fechar as
janelas. As garotas terão as aulas no andar de cima.
Gostaria de ter quadros de alfabeto, para colocá-los nas paredes. É o método das Ursulinas de
alguns lugares. Não me refiro à escrita, porque não me parece conveniente que as meninas aprendam a
escrever.
Na verdade, meu muito honrado Pai, há motivo para se esperar muito bem desta obra, se
aprouver ao nosso bom Deus continuar dispensando-lhe suas santas bênçãos. Peço-vos, de todo o meu
coração, a vossa, pelo amor do Senhor, para que nisso se cumpra em mim sua santa vontade.
Sou, senhor Padre, vossa muito humilde obediente e muito grata filha e serva,
5
5. Jean-François Chapt, Marquês de Rastignac, Marechal dos campos e exércitos do Rei.
.
Carta 981. – C. aut. – Dossiê das Filha da Caridade, original.
1
1. O Irmão Ducournau acrescentou no dorso da carta: agosto de 1647. O postscriptum permite precisar o dia.
2
2. Nanteuil-le-Haudoin.
3
3. Blaise Méliand.
4
4. Genoveva Poisson.
119

LUÍSA DE MARILLAC.

Esqueci-me de vos pedir permissão para jejuar e abster-me de carne, amanhã, sexta-feira. Penso
estar em condição. Assim o farei, se vossa caridade não mo proibir.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

982. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VINCENTE

Senhor Padre,

Meu coração ainda pleno de alegria pelo entendimento que nosso bom Deus, ao que me parece, lhe
concedeu destas palavras Deus é meu Deus, e do sentimento que experimentei da glória que todos os
bem-aventurados lhe rendem por essa verdade, não pode deixar de ir falar convosco esta tarde. Suplico-
vos ajudar-me a fazer bom uso desses excessos de alegria e ensinar-me alguma prática espiritual para
amanhã, dia do santo de que tenho a honra de trazer o nome1, dia da renovação de meus votos2. Desejo,
por um e outro motivo, assistir à santa missa por vós celebrada, se aprouver a vossa caridade dizer-me a
hora, como muito humildemente vos suplico. Espero, meu honorabilíssimo Pai, que saibais que tudo o
que sou está em vossas mãos, para oferecerdes ao bom Deus, cujo amor, por sua grande misericórdia,
me tornou vossa muito humilde e grata filha e serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Tarde de São Bartolomeu3.

983. – A LUÍSA DE MARILLAC

[25 de agosto1].

Bendito seja Deus, senhora, pelas carícias com que Deus vos honra! É preciso recebê-las com
respeito e devoção e em vista de alguma cruz que ele vos vai preparando. Sua bondade costuma prevenir
assim as almas que ama, quando deseja crucificá-las. Oh! que felicidade acolher tão paternal providência
de Deus, e como deve isso aumentar-vos a fé, a confiança em Deus, e levar-vos a amá-lo mais do que
nunca! Procedei, portanto, deste modo, senhora. A ação que deveis fazer hoje vos há de inspirar muito a
esse respeito. Tomarei parte em vossa consolação, como me proponho fazê-lo em vossas cruzes, pelo
santo sacrifício que espero ofertar a Deus hoje, entre oito e nove horas.
Bom dia, senhora. V.s.,

V. D.

.
Carta 982. – C. aut. – Original no Seminário de São Sulpício, em Paris.
1
1. São Luís, Rei de França, cuja festa é dia 25 de agosto.
2
2. No dia 4 de maio, Luísa de Marillac fizera voto de permanecer no estado de viuvez, se viesse a sobreviver ao seu marido (Cf.
Pensamentos de Luísa de Marillac, p. 6). Este voto, ela o renovava todos os anos nesse mesmo dia (Cf. Gobillon op. cit., p. 27), no primeiro
sábado de cada mês (Cf. Pensamentos, p. 4) e nas principais datas aniversárias. Acrescentara, mais tarde, ao referido voto, o de se consagrar
ao serviço dos pobres.
3
3. 24 de agosto.
.
Carta 983. – C. aut. – Original no Seminário de São Sulpício, em Paris.
1
1. Esta carta responde à precedente, depois da qual foi escrita.
120

984. – A JOÃO FRANCISCO DE GONDI, ARCEBISPO DE PARIS

3 de setembro de 1647.

Senhor Arcebispo,

Apresento-vos a renovação do voto de minha obediência, com toda a humildade e afeição de que
sou capaz. Suplico-vos, muito humildemente, senhor Arcebispo, ter a bondade de aceitá-lo, como também
a muito humilde suplica que o reverendo Padre Ribier, portador da presente, vai fazer-vos, a respeito da
união de seu priorado de Bruyères-le-Châtel1. Há três razões, senhor Arcebispo, que parecem recomendar
o pedido a vossa bondade, além do fato de sermos vossas ínfimas criaturas. A primeira é o longo tempo já
passado, desde que o referido senhor prior manifestou esta vontade. Já são 6 ou 7 anos. Além do mais, seu
falecido pai lhe deu esse conselho ao morrer. A segunda razão é nossa necessidade, em vista da
sobrecarga de nossos trabalhos: o seminário de 40 padres externos que mantemos em nossa Casa dos
Bons-Enfants, os quais pagam apenas cerca de um terço do que gastam, sete soldos por dia; os
ordinandos, que vão dobrar em número pela recepção de todos de vossa diocese que receberão as ordens
menores, e que vós, senhor Arcebispo, estimais que os acolhamos; a terceira razão, senhor Arcebispo, é
que este benefício está afeto ao Abade de Saint-Florent-lez-Saumur 2, e não a vós, senhor Arcebispo; desta
sorte, não ficareis privado de coisa alguma dos direitos de vossa dignidade. Acresce a isso, senhor
Arcebispo, que com isto se disponibilizará um ponto de apoio para aqueles da Companhia que forem
pregar missão por aqueles lados. Vossa bondade, senhor Arcebispo, nos deu semelhante oportunidade,
estabelecendo-nos em São Lázaro; fazendo-nos a caridade de que se trata, nos dará condição de nos tornar
disponíveis e trabalhar mais para seu serviço.
Confesso, senhor Arcebispo, que sou indigno de qualquer atenção vossa com relação à minha
súplica nesse sentido. Mas a paternal bondade que Nosso Senhor vos concedeu em favor de vossa Missão
e pelo bem das almas de vossa diocese há de suprir a minha indignidade, sendo eu, no amor de Nosso
Senhor, senhor Arcebispo, vosso...

985. – A MATHURIN GENTIL

Paris, 17 de setembro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Acabo de dar resposta a duas de vossas cartas. Em minha última carta, falei-vos sobre muitas
coisas nelas contidas. Em particular, para alívio de vossa Casa, pedi-vos mandar de volta nossos Irmãos
Laisné1, Dupont2, Dênis3 e os dois seminaristas menores. Continuo a vo-lo pedir, caso ainda não tenham
viajado.
Estou, com certeza, admirado com a liberdade que tem nosso Irmão Laisné de retirar dinheiro.
Refletiremos um pouco sobre o que haveremos de fazer a seu respeito.
.
Carta 984. – Reg. I, f° 63 v°, cópia tirada do original da mão do Santo.
1
1. É a palavra que está na cópia. Tratar-se-ia de Bruyères-le-Châtel (Seine-et-Oise), ou antes de Brienne-le-Château (Aube), como julgou o
Padre Pémartin? O priorado de que fala aqui São Vicente tem o Padre Ribier como titular, está englobado na arquidiocese de Paris e o Abade
de Saint-Forente-le-Saumur era seu colator. O priorado de Brienne-le-Château realiza apenas a primeira condição; o de Bruyères-le-Châtel
realiza as três. Não poderia pois haver dúvida a respeito.
2
2. Saint-Florent se acha hoje englobado na cidade de Saumur. Mazarino era o Abade de Saint-Florent.
.
Carta 985. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Provavelmente Nicolau Laisné.
2
2. Luís Dupont, nascido em Nemours, entrou na Congregação da Missão a 23 de outubro de 1641, com a idade de vinte e dois anos. Fez os
votos em novembro de 1644. Foi superior em Toul (1652-1653), Fréguier (1654-1661), Annecy (1662-1663) e Saint-Charles (1664-1671).
3
3. Talvez Dênis Gigot, nascido em Donnemaire (Seine-et-Marne), entrou na Congregação da Missão a 22 de julho de 1647, com a idade de
vinte e dois anos. Fez os votos em Troyes a 9 de outubro de 1649.
121

Enviar-vos-emos como regente nosso Irmão Gurlet 4, depois do retiro espiritual que vai começar a
fazer.
Poderá levar consigo os filhos do senhor Prudhomme e algum outro com eles, caso venham a se
apresentar alguns5.
Comuniquei-vos que, ao vos informar onde fica o senhor Gautier, ou a quem deveis dirigir-vos
para o resgate de Valobron, trataremos de providenciar que vos deem tempo para o pagamento.
Se o senhor preboste de Couture 6 for de parecer que se faça o arrendamento em favor de Madame
Gremy por 29 anos, mediante algum aumento do preço, e que a casa seja entregue ao final em bom
estado, ficarei satisfeito e me remeterei ao que o referido senhor preboste determinar.
O senhor Aubert7 não tem razão para pedir duas pistolas pelo esterco que colocou nos jardins. O
Padre Gallais garante que já foram deduzidas em favor dele, desde o primeiro ano, e que recebeu o
pagamento delas em mãos, feito por ele mesmo. Quanto às quatro pistolas que dizeis ter-lhe prometido,
em razão de não ter desfrutado dos citados jardins, o senhor Padre Gallais se tinha dispensado de fazê-lo,
porque o senhor Aubert não tem direito de pretender nenhuma perda de usufruto, pelo contrato de
arrendamento. Quanto a mim, fico sem sabê-lo. Conversai sobre o caso, peço-vos, com o referido senhor
preboste.
Quanto à troca que vos propõem fazer com a pequena casa e a quarta parte da vinha do falecido
senhor de Saint-Jacques8...
Senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Mathurin Gentil, padre da Missão, em Le Mans.

986. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM ROMA

20 de setembro de 1647.

Suplico-vos, senhor Padre, partir de Saint-Sauveur1 e não empregar senão seis dias na visita a
Roma É tempo suficiente, tanto porque quanto mais abreviardes, menos dificuldades tereis por lá, quanto
2.

pela razão da necessidade que temos de vós aqui. Estou só a sustentar o fardo, tendo apenas o Padre
Cuissot em condição de me ajudar 3. Suplico-vos também contentar-vos com outros seis dias a mais, para
rever nossas regras com os Padres Dehorgny e Alméras, e retomar em seguida o caminho de volta para a
França. Passando por Gênova, caso estimeis necessária uma segunda visita ali, podeis fazê-la, por favor,
durante oito ou dez dias, somente. A de Marselha se fará igualmente em oito ou dez dias. Embora eu
saiba que várias considerações poderiam requerer um tempo mais prolongado, tendo, contudo, motivo
para desejar, em absoluto, e vos conjurar, senhor Padre, como faço, em nome de Nosso Senhor, a não
despender mais tempo em nenhum desses lugares indicados. Não é tanto pelas razões que expus, mas por
que maior bem resulta de uma visita feita sem delongas, enquanto os espíritos estão estimulados, do que
quando a visita se arrasta demais. O tempo para além do que lhe falei serve antes para cansar as pessoas

4
4. Cláudio Gurlet, nascido em Lyon, recebido na Congregação da Missão a 12 de junho de 1646, com a idade de vinte e quatro anos.
Faleceu a 2 de fevereiro de 1653.
5
5. Provavelmente ao Seminário dos Bons-Enfants.
6
6. Paróquia de Le Mans.
7
7. Pierre Aubert, comerciante em Le Mans (Arq. Nac. S 6707).
8
8. A frase se encontra tal e qual no original; por distração, o secretário deixou-a inacabada.
.
Carta 986. – Reg. 2, p. 104.
1
1. Abadia situada a quinze léguas de Roma, em Sabine; Antônio Portail refugiou-se ali contra os calores da capital, dos quais muito
padecera.
2.
2. A visita, iniciada a 23 de abril, só terminou em 16 de novembro. O calor foi a causa de várias interrupções (Ver o relatório de Antônio
Portail, pp. 55,59).
3
3. Lambert aux Couteaux estava em viagem de visitas (Cf. c.987).
122

visitadas e entibiar o fervor da obra, do que para produzir algum fruto. Temos disso algumas experiências,
e a prática de outras comunidades nos leva a esta convicção. Suplico-vos, novamente, proceder assim.
Terei com isso singular consolação4.

987. – A CHARLES TESTACY, SUPERIOR, EM CAHORS1

Paris, 21 de setembro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A presente carta é apenas para vos pedir notícia de três coisas: a primeira é a do estado de vossa
saúde e da ação dos remédios que tomastes; a segunda é do êxito das ordenações; e a terceira é sobre o
que foi feito do Padre Lambert e que caminho ele tomou2. Esperava receber cartas dele pelo último
correio, como também de vós, conforme o costume. Como não recebi nada, fico preocupado com tudo a
que me referi acima, especialmente sobre o que vos diz respeito. Suplico-vos dizer-me alguma coisa. Não
que eu não tenha esperança de que tudo esteja indo bem. Nós o pedimos a Deus pelas preces da
Companhia e pelas daquele que é, no amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

988. – ALAIN DE SOLMINIHAC, BISPO DE CAHORS, A SÃO VICENTE

Mercuès, 21 de setembro de 1647.

Senhor Padre,

Ontem, escrevi-vos uma palavra pelo senhor Padre Lambert, que fez a visita em nosso seminário
com muito fruto. Ele vos transmitirá o que houve de particular.
Acabo de receber a carta que vos destes ao trabalho de me escrever, com data do dia 7 do mês
corrente. Ficarei muito contente, se a eleição da prioresa du Pouget for aprovada. É uma distinta
religiosa que vai devolver e manter ali a reforma, se aprouver à Rainha conceder-lhe a patente
necessária, no caso. A religiosa em cujo favor andam levantando rumores é aquela da qual vos falou,
também favoravelmente, o senhor Bispo de Utique 1, em minha presença. Ela, porém, além dos defeitos
gerais e comuns a todas as religiosas dessa Casa, como o de não saber, nem na teoria e muito menos na
prática, o que é vida religiosa, tem outros defeitos particulares. Desta sorte, suplico-vos opor-vos a este
propósito, como também que lembreis a sua Majestade o que me garantiu com frequência, isto é, que
nomearia um homem apostólico para a diocese de Périgueux, totalmente abandonada à pilhagem. As
almas se condenam aos milhares e non est qui recogitet (e ninguém se incomoda). Oh! como a fé está
arrefecida neste século! Clama, ne cesses (Jo 58,1) (grita a plenos pulmões, não te contenhas)! Lembrai-
vos de que, quanto mais rude for o combate, tanto mais gloriosa será a vitória! E a recompensa será
ainda maior, embora saiba que nela não pensais.

4
4. As circunstâncias não foram favoráveis aos desejos do Santo. Só deveria rever Antônio Portail dois anos após.
.
Carta 987. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Pelo conteúdo da carta é que adivinhamos o nome do destinatário.
2
2. No dia 6 de agosto precedente, Lambert aux Couteaux fazia a visita da Casa de Saintes. A 20 de setembro, estava em Cahors.
.
Carta 988. – Arq. da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. Pierre Bertier, Bispo titular de Utique, coadjutor do Bispo de Montauban.
123

Estava prestes a subir ao altar, quando recebi vossa carta. Imediatamente, anunciei a nossos
ordinandos que, doravante, queria que os que fossem receber as quatro ordens dessas menores,
assistissem às ordenações: é mais do que justo que nosso Seminário esteja conforme a sua mãe.
Informarei ao senhor Bispo de Valence 2 dos cuidados que empreendestes para que recebesse
alguma satisfação. Está muito irritado por terem dado, por decreto do Conselho, ao presidial ou
senescal, o lugar que ele ocupava durante o sermão, em sua igreja. É de toda necessidade que ele
permaneça em seu bispado; mas creio também que se deve procurar dar-lhe alguma satisfação. Se
julgardes conveniente que o Rei lhe escreva sobre isto, parece-me que será bom que Sua Majestade lhe
comunique que tinha dado ordem expressa ao Governador de Valence para não perturbá-lo em seu
cargo e no que é de sua dignidade, etc.
Informaram-nos de Sarlat que a questão do senhor Padre Sevin para esta diocese tinha terminado
e que os documentos deveriam ser liberados em 20 do corrente. Fico muito alegre com isto. Parto,
amanhã de manhã, em visita à minha diocese, por aqueles lados, e por Chancelade, durante as vindimas.
Quando estiverdes com a Rainha, suplico-vos dizer a Sua Majestade que a diocese de Couserans 3,
atualmente vacante, se encontra em extrema desolação.
Sou, senhor Padre, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

989. s
– A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

27 de setembro de 1647.

Jamais penso em vós ou em algum dos vossos sem experimentar grande consolação. Desejais todos ser
totalmente para Deus, e Deus vos deseja também a todos totalmente para ele. Fotes os primeiros
chamados por ele para Gênova, a fim de prestar-lhe os serviços que ele quer da Companhia nesse lugar.
Ele há de conceder-vos graças especiais que servirão de fundamento para todas as outras que sempre
derramará sobre esta nova Casa. Oh! que motivo para louvar sua bondade! Que confiança não deveis ter
em sua proteção! Mas que humildade, que união e respeito uns para com os outros! Ó Deus, meu Senhor,
sede, por vossa graça, o elo dos corações de todos. Fazei desabrochar os efeitos de tantos santos afetos
que lhes dais a graça de conceber e dai crescimento aos frutos de seus trabalhos pela salvação das almas.
Regai com vossas bênçãos eternas este estabelecimento, como a uma nova árvore plantada por vossa mão.
Fortalecei estes pobres missionários em suas fadigas. Enfim, meu Deus, sede vós mesmo a recompensa
deles, e por suas preces estendei sobre mim vossa imensa misericórdia.
E agora volto-me para vós, senhor Padre, só para vos assegurar de que sou, em Nosso Senhor...

990.Ô – A JEAN BARREAU, CNSUL DA FRANÇA, EM ARGEL

[Fim de setembro ou início de outubro de 16471].

Recebi ontem à tarde a triste embora feliz notícia da morte do Padre Nouelly. Ela me fez derramar
muitas lágrimas, por diversas vezes, mas lágrimas de agradecimento para com a bondade de Deus sobre a

2
2. Charles-Jacques de Gelas de Leberon.
3
3. Pierre de Marca assumiu a sede espiscopal de Couserans em 1648.
. s
Carta 989. – Reg. 2, p. 198.

Carta 990. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. VII, § III, p. 102.
1
1. Esta carta responde à que escrevera Jean Barreau, em 27 de julho de 1647, e que chegara a Paris durante o retiro anual, ou bem poucos
dias antes (Cf. c. 991).
124

Companhia, por lhe ter dado um padre que amava tão perfeitamente a Nosso Senhor, e terminou seus dias
de maneira tão feliz.
Oh! como sois feliz por vos ter nosso bom Deus escolhido para obra tão santa, de preferência a
tantos outros inúteis pelo mundo afora!
Eis-vos, pois, quase prisioneiro pela caridade, ou, para dizer melhor, por Jesus Cristo. Que
felicidade sofrer por este grande monarca, e quantos coroas vos aguardam, se perseverardes até o fim!

991.[ – A UM PADRE DA MISSÃO

Fim de setembro ou início de outubro de 16471].

Embora esteja eu em retiro espiritual, não deixo de vos escrever para recomendar a vossa oração
uma pessoa da Companhia que veio a falecer. Trata-se do Padre Nouelly, falecido em Argel, para onde
fora enviado a fim de assistir os pobres escravos cristãos. Cumpriu tão dignamente sua missão que
preferiu expor-se ao perigo de um contágio maligno que grassava entre os pobres afligidos a deixar de
socorrê-los até ao último suspiro deles. E assim, tendo sido acometido pelo mesmo mal, veio a morrer em
consequência. Nosso Irmão Barreau, seu companheiro, me escreveu coisas profundamente tocantes a
respeito dele, motivo de grande edificação.

992. – A JACQUES DESCLAUX, BISPO DE DAX

2 de outubro de 1647.

Senhor Bispo,

Recebi com grande alegria, como sempre, a honra que vos dignastes fazer-me, trazendo ao meu
conhecimento o acordo com os senhores Cônegos de vosso cabido. Rogo a Nosso Senhor que consolide
esta união com aquela com que está e permanecerá eternamente unido a seu Pai 1. Peço a sua divina
bondade faça o mesmo com relação ao Senhor Payonne2.
O benefício de Orthez está em compasso de espera, embora eu tenha tratado dele no último
Conselho. Nosso Senhor disporá dele como e quando for de seu agrado. O Senhor de Vignoles, de Béarn,
e seus amigos se empenham em favor de um sobrinho dele. Um outro bearnês 3, secretário do príncipe

.[
Carta 991. – Manuscrito de Lyon.
1
1. Esta carta foi escrita no ano da morte do Padre Nouelly e durante os oito dias que São Vicente dedicava a seu retiro anual.
.
Carta 992. – Reg. 1, f° 26, cópia da minuta autógrafa.
1
1. O Bispo de Dax estava em processo com os seus cônegos a respeito do libelo dos títulos de nomeação para as prebendas do coro, da
côngrua a ser paga ao capelão-mor e das honras às quais pretendia ter direito, por parte deles, durante os ofícios pontificais. O Parlamento de
Bordeus, encarregado da questão, lhe dera razão, com o decreto de 4 de abril de 1647. Um apelo foi interposto diante do Conselho do Rei. Os
cônegos, porém, percebendo que, também nele, sua causa não teria bom êxito, mandaram propor a Jacques Desclaux um acordo, do qual os
Bispos de Aire e de Bazas seriam os árbitros. Os dois prelados emitiram sua sentença a 13 de julho de 1647, e o acordo foi selado pela
redação de novos estatutos (Cf. Degert, História dos Bispos de Dax, Paris, 1903, in-8°, p. 328; e nossa História das catedrais de Dax no
Boletim da Sociedade de Borda, ano 1908, p. 275).
2
2. Jean-Henri-Gabriel de Baylens, Marquês de Poyanne, comendador das ordens do Rei, Governador de Dax, Saint-Sever et Navarrenx,
lugar-tenente geral do Rei em Béarn e Navarre, falecido em Saint-Sever em 3 de fevereiro de 1667, deixando reputação de valente capitão.
3
3. Isaac Bartet. Tornou-se secretário do gabinete, conselheiro do Rei e residente da Polônia na França. A senhora de Montpensier lhe
vendeu, em 25 de novembro de 1669, o marquesado de Mézières-en-Brenne, que ele, por sua vez, vendeu, em 17 de março de 1692, a Luís
de Rochechouart, Duque de Montermart. Morreu em setembro de 1707.
125

Casimir, Cardeal da Polônia4, o solicita com muita instância; partilham do espírito daquele que tudo pode
no caso5.
O interesse que vós, senhor Bispo, me testemunhais ter, na maior parte de vossas cartas, pelo
estabelecimento de uma missão em vossa diocese, me fez pensar mais seriamente nisso, desde vossa
última carta. Eu a recebi em pleno retiro espiritual, no qual ainda me encontro. Ele me leva a propor-vos,
senhor Bispo, que vos informeis se um pequeno priorado simples que possuímos, a duas léguas de
Orléans, poderia servir para este estabelecimento, caso o senhor Pároco de Poy 6 ou algum outro daquela
região aceitasse uma permuta e pudesse contentar-se com ela. O priorado consta de uma granja, na qual
há dois granjeiros. Cada um dispõe de duas charruas para o trabalho em cerca de quatrocentas jeiras de
terra, bem no entorno, em área única. O serviço que daí poderíeis usufruir seriam as missões, a partir da
festa de todos os Santos até a Páscoa, nas paróquias da diocese para onde enviásseis os missionários, e o
atendimento aos ordinandos. E mais, senhor Bispo, se mandardes que ninguém seja admitido às ordens
sacras, sem antes passar pelo menos seis meses em vosso seminário, tereis, no espaço de quinze anos, a
consolação de ver que a fisionomia de vosso clero terá mudado, se aprouver a Nosso Senhor conceder
suas bênçãos sobre sua obra e tudo mais, e de não levar em conta a insignificância dos operários. O
senhor Bispo de Cahors7procedeu deste modo, e sem custo adicional algum para ele. Cada eclesiástico
paga sua pensão, de acordo com a taxa que o referido senhor Bispo determinou. Pagam apenas cem libras
ou 40 escudos por ano. E não há, com isso, província da França onde a vida é mais barata do que lá. Há
até dificuldade para consumir todos os víveres, tanto mais quanto não há transporte algum disponível. O
que poderia trazer algum custo, seriam as construções e os móveis, caso não os haja suficientes em
Burglosse8, ou no lugar onde os estabelecerdes, senhor Bispo. Quanto à manutenção dos missionários,
parece-me que não chegará a 1600 ou 1800 libras. Disseram-me que a Paróquia de Poy vale 1000 libras.
Talvez as missas celebradas em Burglosse possam suprir ao que faltar9.
Eis, senhor Bispo, meus pequenos pensamentos sobre o assunto. Eu vo-los proponho com
simplicidade, sem pretensão alguma, apenas porque me destes a honra de ordenar-me que refletisse na
questão.
Acabo de me lembrar que o Padre Sanguinet, pároco nas proximidades de Tartas 1010, me disse
que tem alguma intenção de vir a Paris para tratar a assunto. Parece-me que mo enviam de lá. Se a
paróquia equivale à de Poy e é de vossa diocese, talvez valha a pena tratar do caso. Digo-vos isso, assim,
despretensiosamente, senhor Bispo, e mais, que não tendes ninguém na terra a que Deus tenha dado por
vós maior estima e afeição do que a mim, que sou, em seu amor...

4
4. Poucos príncipes experimentaram, como o Cardeal Casimir, as vicissitudes da sorte. Nascido em 1609, veio para a França durante sua
juventude, foi lançado na prisão por Richelieu, entrou para os Jesuítas, recebeu o chapéu cardinalício, subiu ao trono da Polônia, depois da
morte de Wladyslaw IV, conseguiu dispensa dos seus votos, casou-se com sua cunhada Luísa Maria e governou com o nome de Casimiro V.
Seu reinado foi infeliz. A Polônia, atacada, seguidamente, pelos cossacos, a Suíça o Brandebourg, a Rússia, a Transilvânia, e minada por
discórdias internas, teve de ceder aos inimigos parte importante do seu território. Viúvo em 1667, Casimiro V, abdicou e se retirou para as
Flandres, e, posteriormente, na abadia de Saint-Germain-des-Prés e de Saint-Martin de Nevers. Morreu nesta cidade em 1672.
5
5. O Cardeal Mazarino.
6
6. Pierre de Larroque (1634-1655). Os párocos de Poy ou Pouy eram também diretores da capela de Buglose.
7
7. Alain de Solminihac.
8
8. Burglosse ou Buglose era, e ainda é, um bairro da antiga comuna de Pouy, hoje São Vicente de Paulo. No tempo da infância de São
Vicente, na afirmação de todos os historiadores locais, não havia em Buglose nem capela, nem perigrinação. Jean-Jacques du Sault, Bispo de
Dax, levado pelo rumor dos milagres operados nesse lugar, mandou fazer uma enquete e edificar, em honra da Santíssima Virgem, um
modesto santuário, que ele próprio benzeu solenemente, em 16 de maio de 1622 e que se tornou, desde então, o centro da devoção a Maria na
região. São Vicente, de passagem por sua vila natal, dois ou três meses depois dessa inesquecível manifestação, foi orar diante da Madona
das Landes e celebrar a missa em sua capela (Cf. Collet, op. cit., t. I, p. 109, nota 1). A história de Nossa Senhora de Buglose foi escrita em
1726 por Raymond Mourial, padre da Missão (História da santa capela e dos milagres de Nossa Senhora de Buglose, Bordéus, in-12),
depois, pelo Padre Danos (A peregrinação de São Vicente de Paulo e de Nossa Senhora de Buglose, acompanhada da arte de santificar a
perigrinação, Paris, 1844, in-16) e pelo Cônego Labarrère (História de Nossa Senhora de Buglose e Recordação do Berço de São Vicente de
Paulo, Paris, 1857, in-8°). Para se fazer uma idéia correta sobre a origem da peregrinação, é preferível consultar o Padre Gabarra (Pontonx-
sur-l’Adour e o priorado de S. Caprais, na Revue catholique d’Aire et de Dax, 1874), o Padre Degert (op. cit., p. 313 e seg.) e Jules
Bonhomme (L’origine de Buglose, na Revue de Gascogne, 1882, t. XXIII, pp. 173-383).
9
9. Os padres da Missão só se estabelecerão em Buglose em 1706.
10
10. Joseph Sanguinet, Pároco de Saint-Yaguen, perto de Tartas, nos arredores de Saint-Sever e da diocese de Dax.
126

993. – A ANTÔNIO PORTAIL, EM ROMA

4 de outubro de 1647.

Terminamos o retiro espiritual. Éramos dezoito em um grupo e trinta e dois em outro. Acabamos de fazer
a renovação de nossos votos. Como alguns disseram que são nulos e tinham dificuldade em renová-los (O
Padre... e um clérigo eram os principais) impedi este último de renová-los. Quanto ao referido padre...,
veio estar comigo para me dizer que todas as suas dificuldades se tinham desvanecido, após um certo
colóquio humilde que lhes dirigi a todos. Pediu-me esta manhã, com boa disposição, a permissão para
renová-los. Trouxe-me, efetivamente, uma quantidade de coisas que guardava em particular, para delas se
desfazer. Deixei-as contudo com ele e lhe dei a permissão de renovar seus votos com os outros.
A pequena exortação que fizera continha dois pontos: o primeiro tratava dos motivos que
tínhamos de fazer esta renovação, de tal modo que aprouvesse a Deus conceder-nos a graça que
acompanha os votos; o segundo tratava dos meios de consegui-la, quando então disse duas coisas: a
primeira é que eu rogava, aos que não sentiam em si mesmos o propósito de perseverar, que se retirassem;
a outra é que o sinal de estar possuído por esta graça era o da decisão de jamais falar contra este santo ato
e de defendê-lo, ocasionalmente, contra os que o desaprovassem, já que, sem dúvida, hão de fazer o
possível para impugnar esses votos, interna e externamente,
Deus abençoou, creio eu, essas palavras. Jamais percebi em todos maior sentimento de devoção,
exceto em mim, um miserável, o maior pecador do mundo. Se, portanto, houver impugnação, será pelo
motivo da reserva ao Papa quanto à dispensa. Os doutores daqui, entretanto, nos falam da legitimidade
dessa reserva, e que cada um pode renunciar ao seu direito de recorrer ao Ordinário e se reportar a Sua
Santidade quanto à dispensa. Pertence, primariamente, ao Papa, dispensar dos votos e, privadamente, com
respeito aos de castidade e de peregrinação a Roma.
Jamais compreendi, melhor do que hoje, a importância de nossos votos. Dom Ingoli 1 pode ajudar-
nos muito no sentido da aprovação deles, como fez para a nossa bula e pelo nosso estabelecimento em
Roma. Peço-vos que o Padre Dehorgny, o Padre Alméras e vós, senhor Padre, o façais ver com clareza
que tivemos dificuldade quanto à solidez de nosso Instituto, do qual está ele bem informado. Por um lado,
os senhores prelados não desejam que sejamos religiosos e, por outro, os religiosos nos aconselham o
contrário, fundados na leviandade da condição humana e nos imensos trabalhos próprios de nosso estado.
Compreenda que a providência de Deus inspirou enfim à Companhia esta santa invenção: colocou-nos na
condição de termos a felicidade do estado religioso, pelos votos simples, e de permanecer, contudo, no
clero e na obediência aos nossos senhores prelados, como os menores padres de suas dioceses, quanto aos
ministérios e trabalhos. Procurarei enviar-vos hoje ou sexta-feira o parecer dos doutores, o senhor
Penitenciário2, os senhores Padres Duval, Péreyret3, Cornet4 e Coqueret. Tenho a confiança de que, se
instruírem bem esse santo prelado, ele sozinho poderá informar Sua Santidade e a Congregação dos
Religiosos e resolver nossa questão. Efetivamente, quem poderá impugnar razoavelmente uma coisa que
não é contra os Concílios, nem os cânones, nem os decretos dos Papas, mas, pelo contrário, conforme ao
uso da Igreja antes dos votos solenes, quando então eram feitos como votos simples e, por conseguinte,
dispensáveis?
Se disserem que os de votos simples eram considerados religiosos, a resposta é fácil. É só dizer
que, embora tais votos constituíssem estado de vida religiosa naquele tempo, não o podem fazer agora,
porque a Igreja proíbe a instituição de novas ordens religiosas, a não ser que professem uma das quatro
regras aprovadas pela Igreja, que abrangem os votos solenes, ou que o Papa o autorize, como é o caso dos

.
Carta 993. – Reg 2, p. 6, cópia tirada do original autógrafo.
1
1. Secretário da “Propaganda” (Uma congregação romana: “De Propaganda Fidei” – N. do T.).
2
2. Jacques Charton, doutor em teologia, diretor do Seminário dos Trente-Trois e membro do Conselho de Consciência.
3
3. Jacques Péreyret, nascido em Billom (Puy-de-Dôme), em 1580, foi primeiramente teologal de Mende. Ensinou com brilho filosofia e
teologia no Colégio de Navarra e foi guindado à dignidade de grão-mestre. Enviado a Clermont como Vigário Geral, trabalhou ali ativamente
na reforma dos abusos até a sua morte, que se deu em 15 de julho de 1658. Escreveu em 1650, contra os Jansenistas, um tratado em latim
sobre a graça (Apparatus ad tractatum de gratia: Introdução ao tratado da graça).
4
4. Nicolau Cornet, nascido em Amiens a 12 de outubro de 1592, foi, também ele, grão-mestre da casa e sociedade de Navarra. Recusou o
arcebispado de Bourges e o título de confessor de Richelieu. Faleceu no Colégio de Boncourt a 18 de abril de 1663. Bossuet pronunciou sua
oração fúnebre.
127

Jesuítas5. Ora, nós não assumimos nenhuma dessas quatro regras próprias da vida religiosa, e o Santo
Padre não nos erigiu em estado religioso, mas antes como clérigos seculares. Por conseguinte, nós não
estamos em estado de vida religiosa, tanto mais quanto declaramos que, embora façamos esses votos
simples, não entendemos que somos religiosos, mas que permanecemos sempre no clero secular.
Se objetarem que os votos, por si sós, por sua natureza, constituem uma pessoa no estado
religioso, respondo que isso é verdade em se tratando dos votos solenes, mas não dos simples: uma pessoa
particular, até mesmo várias pessoas, pode fazer os três votos simples em particular, sem com isso se
tornarem religiosas. Se, portanto, pessoas particulares o podem fazer, porque não uma Companhia?
Em nome de Deus, senhor Padre, ponderai essa verdade, e fazei com que nela reflitam. Orai a
Deus por esta questão e não percais tempo. Se Dom Ingoli vier a apreciá-la e a levá-la em frente, tenho
perfeita confiança de que conseguirá seu intento.

994. – O CARDEAL MAZARINO A SÃO VICENTE

10 de outubro de 1647.

Vi a carta que escrevestes a de Lionne1, a respeito da promoção ao episcopado do senhor Abade de


Chailli2. A dificuldade que levantais consta de uma questão de fato. Procurei, cuidadosamente, informar-
me a respeito, e cheguei à conclusão de que aquilo que vos disseram jamais tinha acontecido.
Asseguram-me disto, todos os dias, pessoas dignas de fé. Peço-vos, de vossa parte, empreender as
diligências que julgardes necessárias para a paz do vosso espírito, esclarecendo-vos plenamente sobre a
questão. Escrevei-me sobre o que verificastes. Sua Majestade deseja, por várias e importantes
considerações que vos transmitirei, por um fim a essa questão, sem mais delongas3. n

Entretanto, permaeço...

995. – A GUILHERME DELVILLE

Paris, 11 de outubro de 1647.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Enviamo-vos seis ou sete padres, cinco da Companhia e os dois outros do Seminário dos Bons-
Enfants. Dos cinco, há dois de Montmirail, e dos três outros, um deles é o Padre Watebled 1, cuja bondade
5
5. A interdição de fundar qualquer Ordem religiosa sem a autorização da Santa Sé, feita pelos 12° e 14° Concílios ecumênicos, não vem
acompanhada de restrição alguma. Contudo, muitos canonistas pensam com Vermeersch (De religiosis institutis et personis, – Estudo sobre
os institutos e as pessoas religiosas – Bruges, 1902, 2 vol. in-8°, t I, p.45), que essa regra não se aplicava aos Institutos que abraçavam a regra
de São Basílio, de Santo Agostinho, de São Bento ou de São Francisco. Não é esta a opinião de Bouix ( Tractatus de jure regularium –
Tratado do direito dos regulares – Paris, 1857, 2 vol. in-8°, t. I, p. 205).
.
Carta 994. – Bibl. Mas., ms. 2216, f° 404, cópia.
1
1. Hugues de Lionne, confidente de Mazarino, que tinha conhecido em Roma. Depois de ter sido secretário das ordenanças da Rainha
regente, tornou-se grão-mestre de cerimônias e comendador das ordens do Rei. Foi enviado para a Itália (1654-1656) e para a Alemanha
(1658) na qualidade de embaixador extraordinário. Contribuiu para a eleição de Alexandre VII, negociou as preliminares da paz dos Pirineus,
foi nomeado ministro de Estado em 1658, posto que continuou a ocupar depois da morte de Mazarino. Morreu em Paris a 1° de setembro de
1671, com a idade de sessenta anos.
2
2. Charles-Louis de Lorraine, Abade de Chailli, célebre abadia da ordem dos cistercienses, na diocese de Senlis, falecido em Paris a 1° de
janeiro de 1668. Era apresentado para a diocese de Condom.
3. n
3. São Vicente permaneceu inabalável. A diocese de Condom foi confiada a Jean d’Estrades, Bispo de Périgueux, que cedeu sua
sede episcopal para Charles-Louis de Lorraine em 1658, em troca da abadia de Chailli. Nesse tempo (1658), o Santo não mais fazia parte do
Conselho de Consciência.
.
Carta 995. – Coleção do processo de beatificação.
1
1. Pierre Watebled, irmão do celebre Vatable, nascido em Tully (Somme). Entrou na Congregação da Missão em 19 de janeiro de 1641, com
a idade de dezenove anos. Fez os votos em 14 de junho de1643. Foi superior do Seminário de Saintes de 1650-1651. Faleceu vítima de sua
dedicação, em Villeneuve-Saint-Georges (Seine-et-Oise), em outubro de 1652.
128

conheceis. Este último poderá auxiliar na observância da regularidade, sob vossa direção, já que não vos
faltam outras ocupações. É importante que se observem bem as regras, porque vários dentre eles estão
destinados a outras Casas, para onde é preciso que levem o que se observa por aqui, nas missões. Será
bom, para esse fim, que mandeis logo ler à mesa, as regras que se devem ler no início das missões. O
senhor Padre teologal2 é capaz disso. Já esteve nelas outras vezes, mas é necessário, quanto a ele, pedir-
lhe que não se sinta sujeito ao tempo de deitar-se nem aos outros exercícios.
Comunicais-me, senhor Padre, que o teologal só falará três vezes na semana, e que precisais
sustentar o resto, às tardes, e na pregação matinal. Isso me parece difícil. Espero enviar-vos o Padre
Tholard, dentro de três ou quatro dias. Ele poderá aliviar-vos e ocupar-se da pregação matinal. Ele tem
graça de Deus para dispor os povos a receber as misericórdias que o Senhor derrama sobre as missões
bem feitas, o que é o mesmo que dizer sobre as missões onde se observa a regularidade. Ele não atenderá
confissões3; poderá auxiliar nas reconciliações. Se a constipação com que está lhe permitir, e Deus
abençoar uma sangria que lhe fizeram hoje, poderá ele partir dentro de três dias.
Dissestes-me que Madame de Longueville quer fazer as despesas. Ó meu Deus! senhor Padre,
começaríamos, no tempo do Padre Delville e no meu, e pelo Padre Delville, a dissipação e a ruína do
espírito da Missão! Ó Jesus! não permita Deus sejais o instrumento de tal desgraça! Não somos menos
obrigados a pregar de graça nossas missões do que os capuchinhos a viver de esmolas. Ah! meu bom
Deus! o que se diria de um capuchinho que cobrasse dinheiro, e que razão não teriam de censurar
missionários que permitissem o pagamento das despesas por alguém, pelos trabalhos nas missões! E isso,
com o Padre Delville, e estando eu ainda em vida. Ó Jesus! absit hoc a nobis! (Longe de nós tal coisa!).
Seguem vinte escudos que ordenei que vos entreguem, deduzidos os gastos da viagem. Adiantareis
o que for preciso. É para vos dar tempo para providenciar o que for necessário para toda a despesa. A
administração é vossa. Caso vos façam nisto alguma dificuldade, é melhor deixar, senhor Padre, depois de
solicitar a devida permissão ao senhor Bispo de Meaux 4. Mudai de Casa e passai a uma outra, na qual
tenhais a liberdade de fazer vossa despesa. Sabei, senhor Padre, que já me encontrei em semelhante
situação. Disse, então, com toda a franqueza, à senhora que procurou a missão que, se ela não permitisse
que morássemos juntos, voltaríamos naquele mesmo dia. E o teríamos feito, sem dúvida, se essa bondosa
senhora não tivesse dito que consentia que fizéssemos o que quiséssemos. Acabou ficando muito
edificada por isso. Asseguro-vos de que acontecerá o mesmo com Madame de Longueville. Digo-vos
mais: ela e todos os que souberem do caso ficarão edificados com vossa fidelidade na observância de
nossas regras. Pelo contrário, desedificaríeis a todos, se cedêsseis à tentação de vos deixar levar por sua
bondade.
Em nome de Deus, senhor Padre, procedei como vos digo, agora e sempre. E se não dispuserdes
do que for preciso para tal, comunicai-mo. Proveremos ao caso. Digo-vos isto com grande dor por ver
esta desgraça acontecendo na Companhia, e isto pelo senhor Delville, que eu prezo mais do que a mim
mesmo, um milhão de vezes, e de quem sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, muito humilde e
obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Delville, superior dos padres da Missão de Crécy, em


Coulommiers.

996. – A JEAN CHRÉTIEN, SUPERIOR, EM MARSELHA

[Entre setembro e novembro de 16471].


2
2. Antônio Caignet.
3
3. Pelo motivo aduzido na carta 424.
4
4. Dominique Séguier, Bispo de Meaux.
.
Carta 996. – Vida manuscrita de Jean Le Vacher, p. 3. Esta vida se encontra nos arquivos da Missão.
1
1. Ver nota 2.
129

Avisado por Jean Chrétien que Jean Le Vacher2, doente, não estava em condição de ir de Marselha
para Túnis, Vicente de Paulo responde que a viagem não deve ser adiada3.

997. – A JEAN LE VACHER, PADRE DA MISSÃO, EM MARSELHA

[Entre setembro e novembro de 16471].

Vicente de Paulo convida Jean Le Vacher a tomar as precauções que seu estado de saúde exigia e
a embarcar sem temor.

998. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

19 de outubro de [16471].

Senhor Padre,

Contrariou-me muito não ter sabido que iriam ver-vos, para assim poder informar-vos de que,
pela graça de Deus, não fiquei pior do que quando vossa caridade me deixou, e até continuo
melhorando, de tal modo que pude ir à Missa, no dia de São Lucas.
As senhoras de Herse, de Traversay, de Saint-Mandé2 e Viole se reuniram ainda ontem, aqui, sem
eu saber o motivo, e nem que deveriam reunir-se, senão cerca de uma hora antes. Penso que quiseram
comemorar a proteção que a Providência manifestou que quer ter sobre as pobres criancinhas.
Chegaram várias pequenas esmolas; o melhor socorro é o de cinco mil libras que deviam receber hoje;
creio mesmo que serão 8.000 e é ao tesoureiro do Hospital Geral que devem entregar o recibo.
Elas esperam pela conferência que vossa caridade prometeu fazer antes de partir.
O coração delas se reanimou novamente diante deste auxílio, e decidiram dar continuidade a sua
obra em Bicêtre. Em vista disto, Madame Traversay e a senhora Viole devem ir segunda-feira passar o
dia lá. Encarregaram-me de solicitar ao senhor Drouard 500 libras de uma vez e 200 de outra, tudo isso
por ordem da Madame Duquesa de Aiguillon.

2
2. Jean Le Vacher, nascido em Ecouen (Seine-et-Oise) a 15 de março de 1619, entrou na Congregação da Missão, como também seu irmão
Filipe, a 5 de outubro de 1643. Fez os votos em 1646 e foi ordenado padre em 1647. Juliano Guérin, missionário em Túnis, precisava de
ajuda. São Vicente lhe enviou Jean Le Vacher. A 23 de agosto de 1647, o Santo Fundador e seu jovem discípulo deixavam juntos a casa de
São Lázaro, quando se encontraram com o Núncio, Nicolau Bagni. “Senhor Núncio, disse o Santo, chegastes, na hora, para dar vossa bênção
a este bom padre que está partindo para a Missão de Túnis. – O quê?! Esta criança! exclamou o Núncio espantado. – Senhor Núncio,
prosseguiu o Santo, ele tem vocação para isso”. Jean Le Vacher chegou a Túnis a 22 de novembro de 1647. A morte de Juliano Guérin e, em
seguida, dois meses após, a de Martin de Lange, cônsul, fizeram cair sobre ele a dupla responsabilidade de coordenador da Missão e de
cônsul. Foi-lhe acrescentado, além desses títulos, o de Vigário Apostólico, em 1650. Como a Santa Sé não admitia que o consulado fosse
exercido por padres, São Vicente enviou para lá um leigo, Martin Husson, que chegou a Túnis em 1653 e retornou em 1657, expulso pelo
bei. Jean Le Vacher reassumiu durante dois anos as funções de cônsul. Voltou para a França em 1666 e foi enviado para Argel em 1668,
como Vigário Geral de Cartago e Vigário Apostólico de Argel e de Túnis. Sua vida em Argel foi a de um apóstolo e sua morte a de um
mártir. A 26 de julho de 1683, durante o bombardeio desta cidade por Duquesne, os turcos, depois de lançar mão de todos os recursos para
obter de Ke Vacher um ato de apostasia, prenderam-no à boca de um canhão que lhe projetou o corpo no mar (Cf. Raymond Gleizes, Jean Le
Vacher, Paris, 1914, in-16).
3
3. Conforme o primeiro biógrafo de Jean Le Vacher, São Vicente teria respondido, em síntese: “Se o Padre Le Vacher estiver muito fraco,
para caminhar até o navio, que o levem até lá! Se, durante o trajeto, não puder resistir ao clima do mar, que o lance nele!”. Este modo de falar
é tão estranho na pena do Santo, que somos levados a nos perguntar se o seu pensamento foi devidamente traduzido.
.
Carta 997. – Vida manuscrita de Jean Le Vacher, p. 3.
1
1. Esta carta é da mesma data que a da precedente.
.
Carta 998. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Maria de Fortia, esposa de Jerônimo de l’Arche, Senhor de Saint-Mandé, lugar-tenente geral, civil e criminal, no bailiado do palácio, em
Paris.
130

Espero que vosso retorno acabe de remediar as grandes necessidades da obra de Nosso Senhor,
em cujo amor sou, senhor Padre, vossa muito obediente filha e serva agradecida,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral dos padres da Congregação da Missão.

999. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Outubro de 16471].

Uma senhora da Caridade, influenciada pela Senhorita Lamoignon e guiada pela Providência
divina, enviou-nos cem escudos para essas pobres crianças. Tende a bondade de agradecer-lhe por nós,
senhor Padre. Permiti-me também trazer à vossa caridade a lembrança de nossa Irmã Jeanne Lepeintre.
Suplico-vos, se achardes conveniente, deixar convosco os três relatórios que vos enviamos
quando da Assembleia das Damas, por receio de que, em vossa ausência venham a se perder em meio a
outros papéis.
Minha indisposição continua e cheguei a pensar que nosso bom Deus se serve dessas tão
frequentes alternativas de melhoras e pioras, para tornar conhecida de vossa caridade a inconstância de
minhas paixões, das quais tanto dependo. Por mais resoluções que tome, não me deixam em liberdade
para sujeitá-las à razão, de tal forma que, em outros dias, fico um pouco tranquila, e, em seguida, perco
o controle de mim mesma.
Suplico-vos, muito humildemente, caso tenhais em algum de vossos livros uma estampa parecida
com as da Caridade2, fazer o obséquio de me dar uma. Ao mesmo tempo, peço-vos perdão por permitir
esta liberdade. É que não consigo encontrar uma como desejo, e espero que ela muito me ajudará, como
também me ajudarão as orações de vossa caridade, de quem sou, meu honorabilíssimo Pai, serva muito
obediente e muito indigna filha.
Fazei-me a caridade, por obséquio, de me dar a bênção de nosso bom Deus e também a vossa, na
santa missa.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1000. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Novembro de 16471].

Senhor Padre,

Parece-me que Deus colocou minha alma numa grande paz e simplicidade na oração, embora, de
minha parte, a tenha feito de modo imperfeito, a respeito do assunto da necessidade de que a Companhia
das Filhas da Caridade esteja sempre sucessivamente sob a direção que a divina Providência lhe deu,
tanto no espiritual quanto no temporal. Nessa oração, penso ter percebido que seria mais vantajoso para
a glória de Deus que a Companhia desaparecesse completamente, de preferência a permanecer sob outra
direção, porque isso pareceria contra a vontade de Deus. Os sinais disso são os seguintes: há motivo de
.
Carta 999. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Ver tomo II, p. 10, nota 6, no original francês. A Editora da tradução portuguesa alterou lamentavelmente a numeração das notas da carta
421. A nota 6 corresponde nesta última à nota 25!
.
Carta 1000. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no verso do original pelo Irmão Ducournau.
131

acreditar que Deus inspira e dá a conhecer a sua vontade em relação à perfeição das obras que sua
bondade quer realizar, no início delas, quando revela os seus desígnios. Sabeis, com efeito, senhor
Padre, que nos seus inícios foi proposto que os bens temporais da dita Companhia, se viessem a faltar
por malversação, retornariam à Missão, para serem empregados na instrução do povo do campo.
Espero que, se vossa caridade ouviu de Nosso Senhor o que me parece que ele vos tenha dito na
pessoa de São Pedro, é sobre ela que ele queria edificar esta Companhia. Vossa caridade há de
perseverar assim, no serviço que a Companhia lhe suplica, em favor da instrução dos pequenos e do
alívio dos doentes. Quanto ao que diz respeito ao parlatório, não cheguei, em meu espírito, a nenhuma
decisão; mas quanto à eleição das Damas, oh! vejo sempre como a mais apta e necessária aquela de que
falei a vossa caridade. Sou, senhor Padre, vossa muito obediente e grata filha e serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Suplico humildemente a vossa caridade fazer amanhã para nós a conferência, se for possível, e
ter a bondade de no-lo avisar com antecedência.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1001. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 4 de dezembro de 1647.

Senhor Padre,

De todo meu coração vos agradeço pelo empenho que tivestes em nos dar Dom Sevin como Bispo
de Sarlat. Foi uma iniciativa de grande e indizível mérito. Deus seja vossa recompensa! Coloquei em
vossa mala postal a resposta de uma carta que ele me escreveu e que está sem endereço; julguei que
estaríeis disposto a vos dar ao trabalho de lha entregar.
Monsenhor d’Estrades, nomeado para a diocese de Condom, me escreveu, há pouco, que havíeis
resistido com toda força, no conselho, contra a nomeação para Bispo de Périgueux do padre do qual vos
escrevera, a pedido dele1. Não posso conceber como é possível que se pense em entregar dioceses a
pessoas de tal espécie. Trata-se de um bispado de importância capital, o de Périgueux, no estado em que
se encontra e que bem se conhece. A isso me referi com frequência, como também o fiz a respeito da
necessidade de provê-lo com um homem apostólico. Conjuro-vos a empregar-vos nisso, infatigavelmente,
em se tratando de tão santa obra.
A Madre de La Roque, eleita priora do mosteiro du Pouget pelas religiosas dessa Casa,
desempenha bem o seu cargo. Disse a um seu cunhado, que ela mandara visitar-me de sua parte, que era
preciso obter a patente do Rei, conforme o que me escrevêreis. Eles enviarão ou darão ordem a alguém
de Paris que a requisitem. Quem for encarregado dessa missão vai dirigir-se a vós para saber que
providências deve tomar para consegui-la.
Sou para sempre, senhor Padre, etc.
ALAIN,
Bispo de Cahors.

1002. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR EM GÊNOVA

.
Carta 1001. – Arquivo da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. Ver carta 980.
.
Carta 1002. – Reg. 2, p. 218.
132

13 de dezembro de 1647.

Dou graças a Deus pelo progresso de vossa saúde, em meio a tantos trabalhos. Sois de saúde
delicada e frágil, e sem cessar vos encontrais ocupado nesses penosos trabalhos; contudo, a divina
bondade se compraz em vos manter em bom estado. Não é sem motivo, nem sem me fazer refletir, que
acontece convosco quase o mesmo que com a senhora Le Gras, a qual considero como morta, do ponto de
vista da natureza, há dez anos;com efeito, ao vê-la, dir-se-ia que está saindo do túmulo, de tal modo seu
corpo é frágil e seu rosto, pálido; Deus, contudo, sabe de que força de espírito ela é dotada. Não há muito
tempo, ela fez uma viagem de cem léguas 1; e não fossem as doenças frequentes e o respeito que ela tem
para com a obediência, iria frequentemente de um lado para outro visitar suas Filhas e trabalhar com elas,
embora ela só tenha de vida a que recebe da graça de Deus. É essa mesma graça, também, senhor Padre,
que vos fortalece para vos santificar, e que vos santifica para confortardes os outros nos caminhos da
salvação.
Aprovo plenamente o pequeno apoio mútuo que vos dais um ao outro, vós e o Padre Martin, nas
pregações e catecismos que vós e ele ministrais diariamente. Ó bondade divina, uni deste modo todos os
corações da pequena Companhia da Missão e, depois, ordenai o que vos aprouver; as dificuldades lhes
serão suaves e todo o trabalho, fácil; o forte aliviará o fraco e o fraco quererá bem ao forte e lhe obterá de
Deus o aumento das forças. Dessa maneira, Senhor, vossa obra se fará a vosso contento, para a edificação
de vossa Igreja, e vossos operários se multiplicarão, atraídos pelo odor de tal caridade.

1003. – ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR EM GÊNOVA, A SÃO VICENTE

16 de dezembro de 1647.

A missão de... teve êxito pleno; sete bandidos se converteram e um turco empregado no serviço de um
nobre pediu o batismo, que lhe foi conferido, depois de ter sido convenientemente preparado.

1004. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

20 de dezembro de 1647.

Que diremos da Casa de Marselha? Precisa muito de vosso auxílio; ide, portanto, para lá, o mais
depressa possível; encontrareis lá carência de operários e, como sabeis, de um bom superior 1,
principalmente agora, quando se projeta fundar lá um seminário que será, sem dúvida, muito útil para esse
lugar. Mas qual o remédio para tais carências? Enviaremos logo para lá duas ou três pessoas, depois da
ordenação. Nosso Irmão Get2, que ministra o colóquio da manhã aos ordinandos, com muita clareza e
muitos testemunhos de sua capacidade, pertence ao número dos que serão enviados; espero que possa
dirigir o referido seminário; mas nos é impossível enviar um superior capaz. Havíamos pensado no Padre
[Cuissot], muito atento às coisas externas, mas com pouca unção nas coisas internas, embora seja
totalmente entregue a Deus. Eis, porém, que o senhor Bispo de Cahors o levou, por não apreciar o Padre
[Testacy], que está atualmente em Saintes. O Padre du Chesne seria bem indicado, se estivesse aqui, pois

1
1. Para conduzir as Filhas da Caridade até o hospital de Nantes.
.
Carta 1003. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. IV, 1ª ed., p. 70.
.
Carta 1004. – Reg. 2, p. 102.
1
1. O superior era Jean Chrétien.
2
2. Firmino Get, nascido em Chépy (Somme) a 19 de janeiro de 1621. Ingressou na Congregação da Missão a 6 de janeiro de 1651, fez os
votos em janeiro de 1643. Foi colocado na casa de Marselha em 1648, assumiu-lhe a direção em 1654 e nela permaneceu até 1662, salvo um
curtíssimo tempo passado em Montpellier, para fundar um seminário que durou apenas alguns meses (1659-1660). Foi, depois, superior em
Sedan (1663-1668, 1673-1781), superior em Le Mans (1670-1673), e Visitador da Província de Poitou, posto que ocupou até 4 de abril de
1682.
133

a diversidade dos trabalhos dessa Casa daí requer um espírito ágil; há, porém, seis meses, não recebemos
cartas dele3, o que nos traz muita aflição. Por outro lado, a Providência nos subtrai os meios de deixar aí,
por algum tempo, o Padre Dehorgny, como tínhamos projetado; no final das contas, nos constrange a
deixar ainda por aí o Padre [Chrétien]4.
Sendo assim, suplico-vos orientá-lo, tendo em vista duas coisas: uma delas é que ele tem junto
dele uma pessoa que, por antipatia, apresenta as falhas dele como maiores do que na realidade o são; a
outra, que ele tem dificuldade quanto ao autodomínio e à exatidão em tudo, em meio à multiplicidade dos
negócios. Levareis isto em consideração, por favor, e o tratareis o mais cordialmente possível, para não
desanimá-lo. Se, contudo, julgardes que o Padre... possa ter mais êxito na direção da comunidade do que
o outro, podereis fazer uma experiência.
Será bom ter grande circunspecção, no que tange ao hospital, para com os senhores
Administradores e, sobretudo, e em todas as coisas, para com o senhor Bispo de Marselha 5. Nosso Senhor
vos há de inspirar o resto e vos fará participante do seu espírito. Eu o espero tanto mais quanto essa visita
é mais importante do que as precedentes, e essa Casa é também a mais difícil que temos, por causa da
diversidade extraordinária dos trabalhos: hospital, missões nas galeras, missões em terra firme,
capelanias, seminário, negócios da Barbária, cartas que é preciso enviar e receber, e algumas outras
circunstâncias.

1005. – A NICOLAU PAVILLON, BISPO DE ALET

Paris, 3 de janeiro1 de 1648.

Senhor Bispo,

Aceitai, por favor, que neste começo de ano vos renove a oferta de minha eterna obediência, e que,
prostrado em espírito a vossos pés, senhor Bispo, vos peça a bênção, a fim de que praza a Deus ter
misericórdia para com minha alma, agora que a sua separação está próxima deste miserável corpo. Faço
isso, senhor Bispo, com toda a humildade e a confiança possível a um pobre padre para com um dos mais
dignos prelados do mundo que ele conhece.
Tomo cada vez mais conhecimento, senhor Bispo, das bênçãos que Deus concede a vossos
procedimentos inteiramente apostólicos, que espalham por toda parte tantos odores suaves que meu
humilde coração não consegue conter a alegria que ele experimenta por isso. Peço a Nosso Senhor que
continue a tirar deles a sua glória.
Fizeram-me um pedido em favor do Diácono de Benjamin, filho do finado senhor de Benjamin,
que participava da Academia do Rei, no sentido de vos falar sobre ele e suplicar-vos, como faço, senhor
Bispo, para recebê-lo por algum tempo junto a vossa sagrada pessoa. É um eclesiástico, um diácono, com
a idade de 28 ou 30 anos, piedoso, sábio, de bom espírito e que busca unicamente aperfeiçoar-se em sua
profissão; disto dá testemunho, particularmente, pela escolha que fez de tão boa escola. Falo-vos disso,
senhor Bispo, sob a única condição de que o possais fazer sem incômodo para vós. Ele não vos será, de
modo algum, pesado com suas despesas, porque tem cinco ou seis mil libras de renda de seu patrimônio.
Tende a bondade, por favor, senhor Bispo, de me comunicar vossa intenção e honrar-me com vossas
ordens. Sabeis que me serão muito caras e que eu sou, na vida e na morte, no amor de Nosso Senhor e de
sua gloriosa Mãe, senhor Bispo, vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

3
3. Vicente de Paulo não tardou em receber notícias de Pierre du Chesne, que estava doente na Irlanda.
4
4. Continuou até 1653.
5
5. Estêvão du Puget (1644-1668).
.
Carta 1005. – Gossin, op. cit., p. 453, conforme o original comunicado pela Marquesa de Périer.
1
1. Texto de Gossin: 31. Esta data é evidentemente errônea, pois a resposta é de 29 de janeiro.
134

1006. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Entre 1644 e 16491].

Lembrar-se de advertir as Damas que elas cuidem, em suas instruções, de não falar muito aos que
estão extremamente doentes, embora não tenham feito a confissão geral; recomendem-nos apenas a se
confessarem dos pecados esquecidos ou ocultados outrora, se deles se lembrarem, com o desejo de se
confessarem de todos aqueles que tiverem cometido contra Deus e o próximo; sendo possível levá-los a
fazer atos de fé, esperança e caridade, necessários à salvação, e empregar bastante tempo em dispor os
que se curam a tomar resoluções de viver como bons cristãos; ensinar a elas como deverão proceder
nesses casos.
Eis, senhor Padre, o parecer da Madre dos Sacramentos 2 dado à senhora de Villenant. Acabo,
porém, de receber esta carta da senhora de Lamoignon, dizendo que a senhora de St-Mandé propõe que
nada se diga na Assembleia Geral.
Se aprouver a vossa caridade, senhor Padre, lembrar-se de fazê-las compreender o bem que
significa ajudar na continuidade de uma boa obra começada, tanto após a morte quanto o foi durante o
tempo em que nela se trabalhou durante a vida, quando é levada a cabo por amor a Deus, como a das
Crianças Expostas. Em vista disto, aqueles que, por seu testamento, promovem o bem, não têm o mesmo
mérito, quando é feito em perfeita caridade, do bem que fizeram em vida, com o desejo de fazê-lo, se
tivessem podido, supondo que tudo seja verdade? Espero que tudo isso possa ser de utilidade, ao
mostrar o perigo de que tudo paralise.
Se aprouver à vossa caridade, comunicar-me o endereço da Madame presidente du Sault, para
lhe enviar o bilhete, alertando-a sobre a assembleia de amanhã, de que não vos esquecereis, por
obséquio.
As Damas estão se relaxando muito quanto à presença à colação, mas algumas merecem louvor
por sua solícita presença.
Perdoai, senhor Padre, a vossa mais pequena filha e serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1007. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Quarta-feira, [15 de janeiro de 16481].

Senhor Padre,

Graças a Deus, chegamos a Bicêtre com saúde, mas para ficar pouco tempo. Peço humildemente
à vossa caridade nos envieis amanhã, sem falta, o Irmão padeiro, com quem conversei, para que nos
ensine a assar devidamente o pão e nos arranje uma pessoa entendida no ofício.

.
Carta 1006. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original. Por esta carta, Luísa de Marillac sugere a São Vicente os avisos que seria
conveniente dar às Damas da Caridade, na reunião do dia seguinte.
1
1. A impressão aplicada sobre a cera que serviu para lacrar esta carta não se encontra sobre nenhuma das cartas anteriores ao ano de 1644; a
expressão “Monsieur” (do francês) indica que é necessário colocá-la antes de 1650.
2
2. A religiosa augustiniana do Hospital Geral encarregada de advertir o capelão, quando um doente solicitava os sacramentos.
.
Carta 1007. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada ao verso do original pelo Irmão Ducournau.
135

Seria também muito necessário começar, já, a venda do vinho, em barris ou garrafões, pois agora
é tempo de grande consumo nesta região, por causa dos soldados2. Se se esperar mais, é de se temer que
a venda não seja tão boa. A Irmã Genoveva 3 disse que acha que as Damas preferem aguardar o vinho de
qualidade inferior, para misturá-lo. Não acho, porém, que isso seria uma economia, pois haveria
necessidade de pagar um rapaz para fazê-lo e se suprimiria assim todo o lucro, além do estorvo que
representaria para as Irmãs, obrigadas à vigilância para não haver prejuízo, coisa dificílima de evitar.
Solicito muito humildemente à vossa caridade lembrar-se de que nos prometestes uma
conferência4 para daqui a oito dias. Visitei, ontem, a irmã do senhor Vacherot, que está muito doente.
Pediu-me que a recomendasse às vossas orações e que, se não fosse muita ousadia, vos pediria o favor
de ir vê-la. Se piorar, peço-vos não o deixeis de fazer. Encarregarei a Irmã Juliana 5 de vos avisar, se vos
parecer conveniente.
Penso que seria muito bom para as nossas Irmãs se vos désseis ao trabalho de fazer uma visita às
Irmãs da Casa (Mãe), para dizer à Irmã Hellot quanto bem resultaria para a Companhia se as Irmãs se
acostumassem a se submeter umas às outras, e que as que parecem ter alguma autoridade dessem o
exemplo. O trabalho de nossas pobres Irmãs daqui é quase incrível, não tanto pelo muito pesado que é,
mas pelas repugnâncias naturalmente sentidas por essas ocupações. Por isso, é muito justo auxiliá-las a
se animarem e a se tornarem conscientes do que fazem e o que representa seu trabalho aos olhos de
Deus, como também ajudá-las com orações. Mais do que todas, tenho eu necessidade dessas orações,
sendo a mais fraca de corpo e de ânimo, ainda que tenha a felicidade de ser, senhor Padre, vossa muito
humilde serva e filha agradecida,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Missão.

1008. – A VÁRIOS PADRES1

Paris, 17 de janeiro de 1648.

Senhores Padres,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Soube dos trabalhos que assumistes na missão das galeras e da grande parte que tendes nas
bênçãos que Deus lhe concedeu; não pude, por isso, impedir meu coração de vos testemunhar o
reconhecimento que devo a vosso zelo. Que felicidade, senhores Padres, imitar de tão perto a Nosso
2
2. Os taberneiros de Paris não viram com bons olhos esta venda. Desabaram sua cólera contra as Irmãs e chegaram ao ponto de insultá-las e
maltratá-las. Os culpados, levados à justiça, só escaparam ao castigo por causa da intervenção de Vicente de Paulo (Deposição da Irmã
Genoveva Doinel, décima sétima testemunha no processo de beatificação de São Vicente).
3
3. Genoveva Poisson.
4
4. São Vicente de Paulo fez a conferência no dia 22 de janeiro.
5
5. Juliana Loret nascera em Paris. Ficando órfã bem cedo, foi acolhida pelos pais de Jacques de la Fosse, padre da Missão. “Uma grande
alma num pequeno corpo”, foi dito na conferência feita depois de sua morte ( Coleção das principais circulares dos Superiores Gerais da
Missão, Paris, 1877-1880, 3 vol., in-4, t. II, p. 524). Entrou na comunidade em 9 de junho de 1644 e fez os primeiros votos em 25 de
dezembro de 1649. Seus méritos e virtudes eram tão notáveis que, três anos apenas depois de sua admissão, em 30 de outubro de 1647, foi
encarregada da formação das Irmãs noviças. Luísa de Marillac a tomou ao mesmo tempo como sua assistente. “Era ela que conduzia toda a
comunidade, dirá mais tarde Mathurine Guérin, porque a senhora Le Gras não estava em estado de assistir a exercício algum” ( Coleção das
principais circulares, t. II, p. 530). Juliana Loret desempenhava ao mesmo tempo as funções de secretária. A esse título, era encarregada de
anotar os colóquios de São Vicente que ela escutava com a pena à mão. Em 1651, foi enviada a Chars (Seine-et-Oise) para pôr em ordem
uma situação particularmente delicada. Quando voltou a Paris em 1653, depois de dois anos de duras provações, foi para receber sua
nomeação como superiora em Fontenay-aux-Roses (Seine), onde se encontrava ainda em 1655. Chamada de volta para a Casa-Mãe, assumiu
de novo nela as funções de assistente, que ela conservou, depois da morte da fundadora, sob a direção da Superiora Geral Irmã Chétif, e que
retomou mais tarde sob a Irmã Geral Nicole Haran. Morreu em Fontainebleau em 9 de agosto de 1699. Sua vida manuscrita, obra de Antônio
Durand, padre da Missão, se encontra na Casa-Mãe das Filhas da Caridade.
.
Carta 1008. – C. as. ─ Original no hospital Saint-Eloi de Montpellier.
1
1. Talvez padres da Congregação fundada por Cristóvão d’Authier.
136

Senhor, que veio a este mundo para os mesmos fins pelos quais vos destes a ele, nos trabalhos que tendes,
tanto maiores quanto as necessidades são extremas, entre essas pobres almas! Com toda certeza, vossa
coroa será grande, e maior se a adquirirdes pela perseverança.
Rogo a Nosso Senhor vos anime cada vez mais com seu espírito, e que me enseje ocasiões de vos
prestar meus serviços, desejando, com todo meu coração, testemunhar-vos que sou, no amor de Nosso
Senhor, senhores Padres, vosso humílimo e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

1009. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

23 de janeiro de [16481].

Senhor Padre,

Eis a carta da senhora de Poulaillon que dá testemunho da integridade do homem que se oferece
para Bicêtre2. Além disso, afirma que ele sabe fazer pão muito bem, trabalhar na horta, lavrar e carrear.
Todos esses trabalhos são muito necessários aqui, e ficariam muito caros, se devêssemos pagá-los por
dia. Se achardes oportuno, a referida senhora falará da impossibilidade de abrir uma porta para vender
vinho, no lugar em que a Madame presidente Herse indicou, porque seria preciso construir uma escada
de pouco mais ou menos quatro metros.
Desde que estamos em Bicêtre, já morreram 52 crianças e ainda agora, temos umas 15 ou 16 que
estão bem mal. Quando tudo estiver organizado, segundo o desejo dessas bondosas Damas, espero que
não irão morrer tão depressa assim.
Talvez vos digam as Damas que falei da exigência de se ter aqui o Santíssimo Sacramento, não
somente por ser indispensável, mas para que Nosso Senhor tome posse desta Casa diante do pessoal que,
de alguma forma, se interessa pela obra. Isso me leva a tomar a liberdade de vos dizer o que me veio ao
pensamento, isto é, que não somente as Damas deveriam ser avisadas do dia, mas também que deveria
ser anunciado, com insistência, nos sermões das paróquias, para empenhar as pessoas a auxiliarem essa
obra. Ao verem este magnífico edifício, que acreditam ser para as crianças, e que todas as pessoas que
dirigem a obra são de posição elevada, a maioria pensa que possuímos grandes riquezas. No entanto
tenho de comprar fiado as provisões, além das outras necessidades que vós bem conheceis.
Lembre-se vossa caridade de arranjar-nos algumas jovens porque precisamos delas, com
urgência, pois o trabalho da Casa e de outros lugares aumenta a cada dia.
Fazei-me, senhor Padre, a honra de crer-me vossa muito humilde serva e gratíssima filha,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1010. – À DUQUESA DE AIGUILLON

24 de janeiro de 1648.

.
Carta 1009. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. A carta da senhora de Pollalion, depois da qual Luísa de Marillac escreveu a sua, traz a data de 22 de janeiro de 1648.
2
2. A carta da senhora de Pollalion foi publicada pela Irmã de Geoffre, no volume autografado das Cartas de Luísa de Marillac, p. 350.
.
Carta 1010. – Reg., I, fl. 67, cópia tirada da minuta autógrafa.
137

Madame,

Somente Nosso Senhor vos pode dar a conhecer a consolação que recebi, com a bênção que ele
concedeu às armas do Excelentíssimo Duque de Richelieu1, e a ternura com que lhe peço a proteção sobre
ele e a santificação, ao infinito, de vossa querida alma.
Envio-vos algumas cartas de Marselha. Tenho grande dificuldade em enviar para lá 2 o senhor
Padre Lambert, por muitas razões. O senhor Padre Codoing está perigosamente enfermo e talvez já diante
de Deus. Foi em Saint-Méen que ele caiu doente. Temos aqui um padre que tem algumas qualidades mais
adequadas para as coisas externas do que o Padre Delattre. Trata-se do superior de La Rose. É verdade
que o Padre Delattre tem mais vida interior e é mais regular. Veremos isso depois da visita do Padre
Portail, da qual deve enviar-me o resultado pelo primeiro correio.
Disse-lhe ontem, pela carta que escrevi à noite, que partisse para Annecy, tão logo tivesse
terminado a visita a Marselha; mas tendo relido a carta dele, que vos envio esta manhã, pensei ser
conveniente que ele permaneça lá até que os negócios da Casa e do seminário sejam esclarecidos 3.
Ordeno-lhe assim que prolongue sua permanência (em Marselha). A Madame Princesa 4 deve estar
presente, precisamente às três horas de hoje, na casa de Madame de Lamoignon, para a assembleia.
Estareis vós lá, Madame? Se assim o for, teremos a ventura de vos falar sobre todas essas coisas. Vereis
aqui uma carta do Irmão Barrreau.

1011. – NICOLAU PAVILLON A SÃO VICENTE

Alet, 29 de janeiro de 1648.

Mui querido e honorabilíssimo Padre,

Estimo e respeito tanto mais vossas cartas, que agora me chegam de vossa parte, quanto eu sei
que elas provêm da urgência de vossas santas e importantíssimas ocupações no serviço de Deus e da
Igreja, as quais, como estou sabendo, vão crescendo a cada dia. Por isto, quando me acontece essa
ventura, recebo-a como um presente de vossa caridade paterna para comigo, e me sinto obrigado, por
conseguinte, a fazer-vos um agradecimento muito particular, com toda a humildade, afeição e reverência
a mim possíveis.
Se a disposição de nossa humilde e pobre família e a condição de nossos diversos e pequenos
trabalhos permitissem que eu recebesse eclesiásticos conosco para nela servirem, além daqueles que nos
são necessários, para a administração da diocese e dos negócios dela dependentes, aceitaria de muito
bom coração uma tal ocasião que vos apraz propor-me, e que, a meu ver, só resultaria em êxito para a
edificação comum de todos os nossos domésticos e de nosso clero. Acontece, porém, que, anteriormente,
fui obrigado a me escusar de fazê-lo, por essas mesmas razões, em face de várias dentre as principais e
ilustres famílias dessa região, que se apresentaram para esse mesmo fim. Sendo assim, teria razão,
parece-me, de temer dar-lhes motivo de descontentamento, ao receber alguns outros de outras partes, e

1
1. Armando Jean du Plessis, Duque de Richelieu, nascido em 2 de outubro de 1631, sucedera a seu pai Francisco de Vignerod, irmão da
Duquesa de Aiguillon, no cargo de General das Galeras. Na batalha de que fala aqui São Vicente, o Duque tinha sob suas ordens uns trinta
navios franceses, três navios portugueses e quatro brulotes. Ele abriu fogo contra cinco navios espanhóis que tinham ancorado em
Castellamare; mas como o grosso da frota inimiga se aproximava, ele disparou os canhões, repeliu-a para Baia e para o castelo de Oeuf e
afundou três ou quatro navios. Esta vitória não teve comemoração imediata, por causa da falta de víveres que obrigou a frota a voltar para o
litoral da França. O Duque de Richelieu morreu a 10 de maio de 1715.
2
2. Para Marselha, como superior.
3
3. O seminário de Marselha foi aberto no decorrer do ano de 1648. Foi um dos motivos que reteve por tão longo tempo Antônio Portail
nessa cidade, onde teve que se ocupar ainda em procurar um alojamento conveniente para os missionários, que estavam em desconforto em
uma casa alugada na vizinhança do arsenal. Comprou para eles um vasto terreno situado hoje no centro da cidade, entre a rua Tapis-Vert, a
rua Thubaneau, a avenida Dugommier e a rua Longue-des-Capucines, e mandou começar as construções que deveriam durar uma dezena de
anos (Cf. Simard, op. cit., p. 95).
4
4. Carlota de Montmorency, Princesa viúva de Condé.
.
Carta 1011. – C. aut. ─ Dossiê da Missão, original.
138

de levantar a suspeita de preconceito no futuro, em semelhantes ocasiões. Vede, senhor Padre, vós
mesmo, por favor, o fundamento desta dificuldade.
Entretanto, meu queridíssimo e honorabilíssimo Padre, não vos posso dissimular que um dos
maiores desejos que me restariam nesta vida seria de ter a honra de vos rever ainda e de gozar, ao
menos por algum tempo, de vossa santa e amiga conversação, o que seria, sem dúvida, uma singular
consolação e enorme utilidade espiritual para mim. Mas, se a divina Providência dispuser de outra
maneira, como parece possível, supliquei-lhe, ao menos, muito humildemente, para não levar em
consideração a minha extrema indignidade, privando-me desta graça na eternidade. Vós, meu caríssimo
Padre, podeis, por vossas santas orações e sacrifícios, obter-me essa misericórdia, e disso vos conjuro
instantemente, como também de me crer, mais do que nunca, no amor de nosso caro Salvador e de sua
Santa Mãe, meu caríssimo e honorabilíssimo Padre, vosso muito humilde, muito obediente e gratíssimo
servidor e filho,

NICOLAU,
indigno Bispo de Alet.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Congregação dos padres da Missão,
em São Lázaro, Paris.

1012. – UM PADRE DA MISSÃO A SÃO VICENTE

1648.

Os habitantes de Saché1, comuna de 600 pessoas, seguiram com edificação os exercícios da missão: 1200
fiéis se apresentaram para a comunhão geral; numerosas foram as reconciliações, restituições e conversões. O
pároco, seu vigário e cinco outros eclesiásticos fizeram sua confissão geral. Um dos homens mais ricos do lugar,
cujo coração permanecera até então fechado à compaixão, mandou anunciar no púlpito que ele forneceria pão, três
vezes na semana, aos pobres que se apresentassem à sua porta.

1013. – BALTHAZAR GRANGIER, BISPO DE TRÉGUIER, A SÃO VICENTE

Guingamp, 1648.

Vossa carta nos encontrou a todos ocupados em nossa missão, na qual deposito muita esperança.
Um de vossos padres prega, à noite, admiravelmente e com muita devoção; um outro, dá o catecismo
principal, às treze horas, onde é admirado e amado pelos pequenos e pelos grandes; um outro, dá o
pequeno catecismo, e o meu teologal prega pela manhã, no dialeto bretão; enfim, todos trabalham e não
quiseram deixar nem mesmo a mim na ociosidade, pois prego dois dias na semana. Começaremos todos
amanhã a atender as confissões, com a graça de Deus. As pessoas deste país estão admiradíssimas, pois
não são acostumadas às missões; cada um expressa o seu parecer diversamente, mas com respeito.
Espero que, com a graça de Deus, tudo irá bem.

1014. – A UM PADRE DA MISSÃO

.
Carta 1012. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. II, § 8, 1ª ed., p. 53.

1
1. Comuna do entorno de Chinon.
.
Carta 1013. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. II, § 6, 1ª ed., p. 44.
.
Carta 1014. – Manuscrito de Lyon.
139

[16411].

Eis que vamos enterrar o corpo de nosso coirmão Padre du Chastel, que morreu ontem, às treze
horas, depois de ter-nos edificado, por longo tempo, com a sua paciência, numa doença tão dolorosa
como foi a dele. Peço-vos prestar-lhe a assistência das santas missas e das orações de vossa comunidade.

1015. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM MARSELHA

Paris, 7 de fevereiro de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Meu Deus! senhor Padre, como fiquei consolado com a conferência que fizestes sobre as falhas
das missões das galeras! Os frutos resultantes dessa conferência são um sinal de que Deus abençoou esta
ação. Agradeço a ele de todo meu coração, e a vós, senhor Padre, por terdes assistido à assembleia dos
senhores Administradores1. Não pude ainda terminar a leitura dos artigos que vos propuseram; vou
examiná-los, se Deus quiser, assim como a fundação da Madame Duquesa 2. À luz das determinações
dessa última, poderei exprimir-vos meus pensamentos antes de redigirdes qualquer regulamento relativo
ao hospital. Peço-vos enviar-nos uma cópia da patente da fundação dele, a qual nos será de grande
utilidade; falo-vos da fundação ou declaração do Rei a respeito do hospital 3. Será bom informar aos
referidos senhores Administradores que a Companhia não tem Visitador Geral, mas apenas um em cada
província. Estou bastante pesaroso, porque o senhor Tyrry não vai para Argel e gostaria de saber se o
Padre Lesage foi para lá e de que tempo dispôs.
Dentro de cinco ou seis dias, com a graça de Deus, enviar-vos-emos um bom número de coirmãos,
a maior parte para Roma e o restante para Marselha. Peço-vos aguardá-los e recomendar-me a Nosso
Senhor, em cujo amor, sou, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

O senhor Bispo de Marselha4 está de volta? Entregastes-lhe minha carta e fizestes-lhe a proposta
do seminário? Nesse caso, que acolhida e que disposição observastes (da parte dele)?

Embaixo da primeira página: Padre Portail.

1016. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 14 de fevereiro de [16481].


1
1. Ano da morte de Pierre Duchastel.
.
Carta 1015. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
1
1. Os Administradores do hospital dos galés.
2
2. A Duquesa de Aiguillon.
3
3. Esta última frase é da mão do Santo.
4
4. Estêvão de Puget.
.
Carta 1016. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
1
1. A carta é de 1648, embora o secretário a tenha, por distração, datado de 1647. Três razões, mais particularmente, nos levam a fazer esta
modificação no texto: 1º, os missionários da Hibérnia não teriam podido escrever ao Santo em setembro de 1646, visto que só deixaram a
140

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não duvido de que os senhores Administradores 2 tenham intenção de predominar em tudo.
Quando tornarem a falar-vos sobre as regras do hospital, dizei-lhes, por favor, como partindo de vós
mesmo, que uma boa máxima para aqueles que Deus emprega no estabelecimento de obras santas e novas
é de protelar, o quanto puderem, a redação do regulamento, pois a experiência mostra que o que é viável
no começo é, por vezes, prejudicial com o decorrer do tempo, ou sujeito a deploráveis inconvenientes. É
por isso que algumas comunidades só fizeram suas constituições cem anos depois, como os Cartuxos.
Santo Inácio fez apenas um pequeno projeto de regras; sua Companhia as colocou no estado atual,
conforme as luzes que o tempo lhes foi apontando. O Bispo de Genebra, por ter-se apressado demais em
fazer o regulamento das Filhas de Santa Maria, foi obrigado a redigir um diretório3.
Se, depois desta razão geral, os referidos senhores Administradores urgirem convosco, descei ao
particular e dizei-lhes, por favor, que não podemos obrigar-nos a manter dois padres da Companhia 4 no
hospital: 1º porque a fundação da Madame Duquesa5 não o exige; 2º porque a renda não é suficiente para
isso e para os outros encargos; 3º porque nosso Instituto tem apenas dois fins principais, a saber, a
instrução do pobre povo do campo e os seminários; nisso reside nosso dever, e não na direção de
hospitais, que é algo acessório. Só assumimos, no entanto, a que está em jogo, com a intenção de nela
empregar padres de fora, quando os nossos não bastassem, como fazemos nas missões. Envio-vos uma
súmula daquilo a que a fundação nos obriga. Com certeza, a manutenção de dois padres no hospital seria
para nós uma carga pesada, já que, se um deles ficasse doente, como acontece com frequência, seria
necessário um terceiro. Deus vos há de inspirar o resto.
Nosso pessoal vai partir, se Deus quiser, na primeira viagem do coche de Lyon. Padre Gallais
estará entre eles, como espero. O Padre Get é muito bom e prudente, podendo servir como assistente.
Não era minha intenção que se desse pensão por tão longo tempo ao padre armênio; mas, como se
trata de uma caridade, in nomine Domini!
Dois ou três seminaristas do colégio6 estavam inteiramente dispostos a partir para as galeras; mas
como o Padre Chrétien nos comunicou que não era preciso enviá-los e que ele encontraria na região os
padres necessários para isso, nós os desestimulamos e os levamos a desistirem dessa resolução; creio,
assim, que, no momento, não haverá alguém que queira ir para lá. Roguei, contudo, ao Padre Berthe 7 que
fizesse uma sondagem junto a alguns deles.
Recebi os papéis do senhor Bispo de Trébizonde8 e a indulgência pedida para o falecido Padre
Callon9.
Nada temos de novo; apenas velhas notícias da Hibérnia, chegadas, há dois dias, e datadas dos
meses de setembro e de novembro.
O Padre du Chesne está com o incômodo de uma hemorragia desde um mês antes de sua última
carta, e nosso Irmão Le Vacher1010, desde que chegou à Hibérnia. Os outros estão bem dispostos, graças a
Deus. As misérias de toda espécie no país são grandes, e os inimigos cercam o lugar onde nosso pessoal
reside, de tal sorte que, quando partem para as missões, entram em perigo 1111. Recomendo-os às vossas
orações, assim como, em particular, a minha alma.

França dois meses depois, em novembro (Cf. carta 902); 2º, Firmino Get não era padre a 20 de dezembro de 1647 (Cf. carta 1004); 3º, Luís
Callon ainda estava vivo em 14 de fevereiro de 1647. Importa, pois, abandonar o ano de 1647 pelo ano de 1648, o único que convém.
2
2. Os Administradores do hospital dos galés.
3
3. O diretório da Visitação foi preparado numa assembleia geral, reunida em Annecy, em maio de1623, sob a presidência de Santa Chantal.
A venerável Fundadora se inspirou, sobretudo, nas notas deixadas por São Francisco de Sales, falecido em 28 de dezembro de 1622. Esse
diretório foi editado em 1850 com o título de Costumário e diretório para as irmãs religiosas da Visitação Santa Maria.
4
4. As palavras “da Companhia” estão em entrelinha e são da mão do Santo.
5
5. A Duquesa de Aiguillon.
6
6. O colégio dos Bons-Enfants.
7
7. Superior do colégio dos Bons-Enfants.
8
8. O bispo in partibus de Trébizonde.
9
9. Morrera em Aumale, em 26 de agosto de 1647.
10
10. Filipe Le Vacher.
11
11. As tropas confederadas tinham entrado, em setembro de 1647, em Tipperary e em Caher; depois, avançando sobre Cashel, tinham
tomado a cidade e massacrado uma parte de seus habitantes. Em treze de novembro, infligiram uma sangrenta derrota ao exército irlandês,
concentrado em Kanturk. Os católicos irlandeses que escaparam aos massacres não puderam escapar da miséria. Os padres estavam mais
expostos; tinham de se esconder para praticar sua religião, sob pena de prisão e de morte.
141

Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Marselha.

1017. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

14 de fevereiro de 1648.

As graças que Deus derrama sobre vossos trabalhos são frutos de sua pura misericórdia e não de
nossas insignificantes preces; somos pobres pessoas, mais capazes de desviar suas bênçãos do que de
atraí-las. Agradeço a sua divina bondade pelo zelo e fidelidade que concede a vosso coração e àqueles
que estão convosco. Com certeza, senhor Padre, fico sensibilizado com o uso que fazeis dessas virtudes e
de muitas outras; quando se apresenta a ocasião de estimular a comunidade de São Lázaro no sentido de
sua própria perfeição, falo dos exemplos que a vossa nos dá; relato-lhe vossos trabalhos, apesar das
enfermidades de alguns, vossa paciência nas dificuldades, a caridade e o suporte que tendes uns para com
os outros, a graciosa acolhida, a iniciativa de honrosa atenção e os serviços que os externos recebem de
cada um de vós. Por aí vedes, senhor Padre, que o mel de vossa colmeia se derrama até nesta casa e serve
para alimento de seus filhos. Ó Deus! que motivo de consolação para toda a Companhia, mas também,
que motivo para a nossa pequena comunidade se humilhar diante de Deus e agir sempre cada vez melhor,
pois ele se apraz em estender e multiplicar assim os bens que produz, até nos lugares onde não está!
Os presentes que vos levarem em Gênova, podeis recebê-los, embora procedam dos lugares onde
pregastes a missão; mas aqueles que por ventura vos oferecessem durante a pregação das referidas
missões, recusai-os com toda a honestidade.

1018. – À MARQUESA DE MAIGNELAY

São Lázaro, manhã de sábado [1647 ou 16481].

Madame,

É com toda a humildade e respeito, a mim possíveis, que vos suplico, prostrado em espírito a
vossos pés, perdoar-me se não posso ir hoje à casa do senhor du Fresne, conforme vossa determinação. O
motivo é que não posso fazer, de imediato, o que ele propôs, por razões de consciência, de que vos falei,
Madame. Ficaria, deste modo, muito pesaroso em manifestar uma recusa, a respeito da questão de que se
trata, na presença da pessoa do mundo à qual tenho toda a gratidão e todo o empenho em obedecer.
Protesto-vos, Madame, que preferiria morrer a vos desobedecer, se não se tratasse de algo menos do que
da minha própria salvação. Longe de ser isto falta de afeição por essas bondosas filhas 2, pelo contrário, se

.
Carta 1017. – Reg. 2, p. 199.

.
Carta 1018. – C. aut. ─ Original no British Museum, Egleton, ms. 1609, fl. 35. Desta carta foi tirado um grande número de exemplares, em
fac-símile.
1
1. Ver nota 2.
2
2. As filhas da Visitação, que São Vicente deixou de visitar durante 18 meses, depois de uma resolução tomada durante seu retiro de 1646.
Sabemos, pela conferência de 13 de novembro de 1654 aos missionários, que essas religiosas recorreram à Marquesa de Maignelay, para
dobrar o Santo, e que esse expediente teve êxito.
142

me deixasse levar pelos movimentos de minha natureza, iria estar com elas no exato momento em que vos
falo.
Quanto ao que concerne à senhora d’Anse3, não deixarei, Madame, de receber vossas ordens
amanhã ou depois, se Deus quiser, em cujo amor sou, Madame, vosso muito humilde e muito obediente
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: À madame Marquesa de Maignelay.

1019. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Há mais de um mês fomos avisadas de que o senhor Padre de Vaux deverá vir a esta cidade, no
começo do mês de maio, e que deverá tomar providência sobre um diretor para as nossas Irmãs. Ele não
o fará antes de eu vos ter apresentado suas propostas, antes de ele partir e antes que a mudança das
Irmãs seja feita.
Minha pouca experiência e capacidade impedem-me de poder dar motivo a vossa caridade para
obviar aos perigos em que vejo, com frequência, toda a Companhia, de perecer pouco a pouco, em vez de
se firmar. Isso desperta em mim, com frequência, os pensamentos de Agar sobre o temor da morte de seu
filho, por não querer vê-lo morrer; porém, com mais razão do que ela, pois são meus pecados a causa de
todas as desordens.
Peço-vos muito humildemente perdão da sobrecarga de trabalho que vos dou. Se não pensasse
que se trata da vontade de Deus, tentaria enfrentar em paz todos esses perigos. Suplico à bondade de
Deus o remédio para tudo isso, e à vossa caridade, acreditar, sempre, que sou, senhor Padre, vossa
muito humilde filha e gratíssima serva,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1020. – A CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, EM RICHELIEU1

Paris, 22 de março de 16482.


3
3. Maria Lambert, donzela d’Anse, dama de honra da Rainha Ana d’Áustria e dama da Caridade. Caiu em desgraça e foi despachada da
corte na época da Fronda, por ter deixado transparecer os seus sentimentos em relação a Mazarino. Soube tão bem reconquistar o favor da
Rainha que esta lhe doou em testamento dez mil libras. Luísa de Marillac e São Vicente recorreram mais de uma vez a seus bons serviços.
.
Carta 1019. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.

.
Carta 1020. – Dossiê de Madagascar, cópia antiga.
1
1. Charles Nacquart, nascido em Treslon (Marne), entrara na Congregação da Missão em 6 de abril de 1640, com a idade de 23 anos.
Chegando a Madagascar, em 4 de dezembro de 1648, estudou tão bem a língua do país, com a qual já entrara em contato no navio, que em
pouco tempo foi capaz de redigir um breve resumo da doutrina cristã. Converteu vários protestantes, batizou setenta e sete malgaxes e
regularizou a situação de franceses que viviam em concubinato com mulheres indígenas. Evangelizou não somente Fort-Dauphin, mas ainda
toda a região do entorno, num raio de mais de dez léguas. Tão numerosos trabalhos o esgotaram. Morreu em 29 de maio 1650. As Mémoires
de la Congrégacion de la Mission (Paris, 1863-1899, 11 vol. in-8º) publicaram (t. IX) suas cartas, seu diário e seu testamento, a partir de
antigas cópias conservadas nos arquivos da Missão.
2
2. Abelly, que reproduz esta carta por inteiro (op. cit., t. II, cap. I, sec. IX, § 1º, p. 156), não sem retocá-la em vários pontos; data-a de abril
de 1648.
143

Senhor Padre,

Nosso Senhor, há muito tempo, colocou em vosso coração, senhor Padre, o desejo de lhe prestar
algum importante serviço; quando fizeram, em Richelieu, a proposta das missões entre os pagãos e
idólatras3, parece-me que Nosso Senhor deu a entender a vossa alma que vos chamava para lá, como
então me escrevestes, juntamente com um outro da comunidade de Richelieu. Chegou o tempo de esta
semente da vocação divina sobre vós produzir seu efeito. Eis que o senhor Núncio, com a autoridade da
Sagrada Congregação da Propagação da Fé, da qual nosso santo Padre o Papa é o chefe, escolheu a
Companhia para ir servir a Deus na ilha São Lourenço, chamada, de outra forma, de Madagascar 4. A
Companhia lançou os olhos sobre vós, como a melhor hóstia que ela tem, para com ela homenagear o
nosso soberano Criador, prestando-lhe esse serviço, juntamente com outro padre da Companhia.
Ó meu mais do que queridíssimo Padre, o que diz vosso coração, face a esta notícia? Sentiria ele a
vergonha e a confusão convenientes para receber tal graça do céu? Uma vocação tão grande e tão
adorável como a dos maiores apóstolos e a dos maiores santos da Igreja de Deus; desígnios eternos
realizados no tempo sobre vós! Só a humildade, senhor Padre, é capaz de acolher esta graça; ela deve ser
acompanhada do perfeito abandono de tudo que sois e podeis ser, na exuberante confiança em vosso
soberano Criador. Generosidade e magnânima coragem vos são necessárias. Precisais também de uma fé
tão grande como a de Abraão; tereis grande necessidade da caridade de São Paulo; o zelo, a paciência, a
deferência, a pobreza, a solicitude, a discrição, a integridade de costumes e o grande desejo de vos
consumir inteiramente por Deus vos serão tão convenientes quanto ao grande São Francisco Xavier.
Esta ilha se situa sob o trópico de Capricórnio. Tem 400 léguas de comprimento e cerca de 160 de
largura5. Existem lá pessoas que ignoram a existência de um Deus, que são, contudo, gente muito simples,
bons espíritos e muito retos. Para chegar lá, atravessa-se a linha do equador. Quem dirige esta ilha são os
comerciantes de Paris, que são como os reis do país6.
A primeira coisa que devereis fazer será pautar-vos pela viagem que fez o grande São Francisco
Xavier, servindo e edificando as pessoas dos navios que vos conduzirão; neles estabelecer orações
públicas, se for possível; ter grande cuidado com os que passam mal e se incomodar sempre para
acomodar os outros; contribuir tanto com a felicidade da navegação, que dura quatro a cinco meses 7, por
vossas orações e pela prática de todas as virtudes, quanto os marinheiros o farão por seus trabalhos e
habilidades; com relação àqueles senhores8, manter sempre para com eles um grande respeito; ser,
contudo, fiel a Deus, sem jamais faltar aos seus interesses e nunca trair a própria consciência, por
consideração alguma, mas ter cuidadosa atenção em não estragar os negócios do bom Deus, ao querer
precipitá-los em demasia; estar atento à ocasião propicia, com todo cuidado, e saber esperá-la.
Ao chegar a essa ilha, tereis, em primeiro lugar, de vos organizar segundo o que vos for possível.
Ser-vos-á talvez necessário multiplicar-vos para servir em diversas habitações; devereis estar presente
numa e noutra com a maior frequência possível, para vos consolar e vos fortalecer. Cumprireis todas as
funções paroquiais para com os franceses e os idólatras convertidos. Seguireis, em tudo, o uso do
Concílio de Trento e vos servireis do ritual romano. Não permitireis que se introduza uso algum diferente;
e se isto já tiver acontecido, procurareis com mansidão reconduzir as coisas ao seu lugar. Para isso, será
bom que leveis ao menos dois rituais de Roma. Vosso principal empenho, depois de ter-vos esforçado por

3
3. O sentido é: quando foi anunciado à casa de Richelieu que se iria começar a Missão de Madagascar.
4
4. A partida dos missionários foi tão precipitada que São Vicente, não tendo tempo de recorrer a Roma, se contentou com pedir os poderes a
Nicolau Bagni, Núncio na França. O Núncio ignorava que a Propaganda reservava a Missão de Madagascar aos Carmelitas descalços e que
já lhes tinha concedido todas as faculdades necessárias. Por decreto de 20 de julho de 1648, a Propaganda suspendeu os poderes dados pelo
Núncio a Chales Nacquart e a Nicolau Gondrée. Contudo, para não condená-los a uma ociosidade forçada, permitiu-lhes exercer todas as
funções paroquiais para os católicos da ilha, somente, até que os Carmelitas tivessem renunciado a seus direitos. A situação foi regularizada
pelo desinteresse desses religiosos e por um novo decreto da Propaganda.
5
5. A ilha mede exatamente 1515 quilômetros de norte a sul e 470 de largura média.
6
6. Uma sociedade de capitalistas, a Société de l’Orient, composta de 24 membros, tinha obtido de Richelieu, em 22 de janeiro de 1642, o
direito exclusivo de fazer comércio em Madagascar e nas ilhas adjacentes, durante dez anos. Tinham enviado colonos para a ilha, sob a
autoridade do senhor de Pronis que, devido a contínuos abusos, obrigara a Companhia a procurar-lhe um sucessor. Foi escolhido o senhor de
Flacourt. Ele foi tomar posse do seu posto pelo navio que conduziu os padres Nacquart e Gondrée (Cf. Mémoires sur la Compagnie des Indes
Orientales, 1642-1720, Bibl. nat. f.f. 6231).
7
7. Ela durou mais de seis meses.
8
8. Os senhores de Flacourt, de Bloye, Galiot, Ruffin e outros companheiros de viagem.
144

conviver entre aqueles com que deveis familiarizar-vos, em odor de suavidade e de bom exemplo, será de
levar esse pobre povo, nascido nas trevas da ignorância de seu Criador, a conceber as verdades de nossa
fé, não pelas razões subtis da teologia, mas com raciocínios tirados da natureza. Com efeito, importa
começar por aí, tratando de fazê-los conhecer que procurais apenas desenvolver neles os sinais que neles
deixou Deus impressos de si mesmo, que a corrupção da natureza, desde longo tempo habituada ao
pecado, lhes tenha apagado. Para isso, senhor Padre, importa dirigir-vos frequentemente ao Pai das luzes
e repetir-lhe o que lhe dizeis todos os dias: Da mihi intellectum ut sciam testimonia tua9 (Dá-me
inteligência para conhecer a tua lei). Poreis em ordem na meditação as luzes que Deus vos conceder,
para apresentar a verdade do primeiro e soberano Ser e o sentido do mistério da Trindade, a necessidade
do mistério da Encarnação, que nos traz o nascimento de um homem novo e perfeito, depois da corrupção
do primeiro, para nos reformar e nos modelar por ele. Gostaria de fazê-los ver as enfermidades da
natureza humana, a partir das desordens que eles mesmos condenam; com efeito, eles têm leis, reis e
castigos.
Embora haja livros que tratam dessas matérias, como o catecismo de Granada 1010, ou outro, que
trataremos de vos enviar, não posso deixar de vos repetir, senhor Padre, que o melhor será a oração:
Accedite ad eum et illuminamini1111 (Aproximai-vos dele e ficareis iluminados). Abandonar-se ao
Espírito de Deus que fala nessas ocasiões. Se aprouver à sua divina bondade conceder-vos a graça de
cultivar a semente nos cristãos que já estão lá, e que lá vivem com esse bom povo na caridade cristã, não
duvido de modo algum, senhor Padre, que Nosso Senhor não se sirva de vós, naquelas terras, para
preparar para a Companhia uma grande messe. Ide, portanto, senhor Padre, e, tendo missão de Deus por
parte daqueles que para vós o representam sobre a terra, lançai as redes com ousadia.
Eu sei o quanto vosso coração ama a pureza. Ser-vos-á necessário grande prática dessa virtude
naquelas regiões, [uma vez que esse povo], viciado em muitas coisas, o são, de modo particular, nesse
campo, a ponto de se dizer que os maridos levam suas próprias mulheres para os europeus, a fim de terem
filhos deles. A graça infalível de vossa vocação vos protegerá de todos esses perigos.
Teremos todos os anos notícias vossas e vos enviaremos as nossas.
Embora não seja necessário dinheiro, nessas regiões, para viver, contudo, senhor Padre, a
Companhia mandou que vos enviássemos cem escudos de ouro para as necessidades que podem sobrevir.
Enviar-vos-emos também uma maleta completa1212, dois rituais romanos, duas pequenas Bíblias, dois
exemplares do Concílio de Trento1313, dois Binsfeld1414, estampas de todos os nossos mistérios, que
servem maravilhosamente para levar essa boa gente a compreender o que se lhe quer ensinar, e que eles
gostarão de olhar.
Temos aqui um jovem daquele país, com cerca de 20 anos, que o senhor Núncio deve batizar hoje.
Sirvo-me de imagens para instruí-lo, e parece-me que serve muito para prender-lhe a atenção. Não sei se
não será necessário levar os instrumentos para fazer pães para a celebração da santa missa, alfinetes,
estojos de bolso, três ou quatro de cada coisa, santos óleos para o batismo e a unção dos enfermos, um
Busée1515, alguns exemplares da Introdução à vida devota1616, resumos de vidas dos santos.
Tendes de nossa parte uma carta de obediência 1717, o pleno poder do senhor Núncio, que tem em
grande estima esta obra.
Com isso, entrego-me absolutamente a vós, se não para vos acompanhar de fato, tanto mais quanto
disto sou indigno, ao menos para orar a Deus por vós, todos os dias que aprouver a Deus deixar-me sobre
a terra e, se for do agrado de Deus fazer-me misericórdia, para vos rever na eternidade, e lá vos prestar
honra como a uma pessoa que será colocada, pela dignidade de sua vocação, entre o número das pessoas
apostólicas.
9
9. Sl 119, 34.
10
10. Catéchisme ou instruction du symbole de la foy, tradução pelo cônego Nicole Colin, Paris, Chaudières, 1587, in-fl..
11
11. Sl 34, 6.
12
12. Maleta com objetos e alfaias para as celebrações (N. do T.).
13
13. As primeiras edições dos cânones e decretos do Concílio de Trento tinham aparecido em Roma em 1564. As mais recentes eram as de
Anvers (1640) e de Colônia (1644).
14
14. Autor de um Enchiridion theologiae pastoralis, Trèves, 1591, in-8º, reeditado em Paris em 1646.
15
15. Manuel des Méditations devotes sur tous les évangiles des dimanches et fêtes de l’année. Esta obra, composta em latim pelo P. Busée,
tinha sido traduzida e aumentada por Antônio Portail, em 1644.
16
16. Uma bela edição da Introdução à vida devota acabava de aparecer em Paris, em 1641.
17
17. A carta de obediência foi enviada em 28 de março aos Padres Nacquart e Gondrée. Ela foi publicada nos Mémoires, t. IX, p. 42, nota 1.
145

Termino, prostrado em espírito aos vossos pés, pedindo que vos apraza oferecer-me também a
nosso comum Senhor, a fim de que eu lhe seja fiel e que termine, em seu amor, o caminho para a
eternidade, eu que sou, no tempo, e serei, para sempre, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Quem vos destinamos como companheiro é o Padre Gondrée, que vós talvez tenhais visto em
Saintes, onde ele ficou, quando ainda era clérigo; é um dos melhores membros da Companhia, que
conserva sempre a devoção que tinha ao entrar nela; é humilde, caridoso, cordial e zeloso; em resumo, ele
é uma pessoa da qual não consigo expressar todo o bem que dela penso.
Alguns comerciantes partirão daqui quarta ou quinta-feira rumo a La Rochelle, onde deverá ser o
embarque. Se quiserem passar por Richelieu, o Padre Gondrée poderá ir com eles, para lá se juntar a vós,
e eles irão até mais adiante, para preparar o navio e vos esperar por volta do dia quinze ou do dia vinte do
próximo mês, quando então deverão fazer vela1818. Suplico-vos, senhor Padre, ficar de prontidão.
Acrescentaremos, aos livros de que já falamos, a vida e as cartas do Apóstolo das Índias1919.
Não divulgueis isto, por favor, como não o fizemos ainda por aqui.
Um dos senhores, a quem esta ilha foi confiada pelo Rei, vai partir de viagem 2020. Fará vossa
despesa no percurso sobre o mar e naquele território. Vereis, naquele país, se, com o tempo, poderíeis
adquirir algum bem, para suportar vossas próprias despesas particulares. É tão fácil viver lá que, cinco
soldos de arroz, substitutivo do pão, bastam para alimentar cem homens por dia.
Que vos direi mais, senhor Padre, a não ser que rogo a Nosso Senhor, que vos fez participante de
sua caridade, vos torne igualmente participante de sua paciência, e vos digo que não há condição que eu
mais desejaria, sobre a terra, se me fosse permitido, do que a de ir servir-vos de companheiro, no lugar do
Padre Gondrée.

1021. – A DÊNIS GAUTIER, SUPERIOR, EM RICHELIEU

Paris, 29 de março de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estou escrevendo ao Padre Nacquart. O Padre Gondrée, de partida, hoje, para Richelieu, num coche,
levará a carta. Deverão seguir os dois para La Rochelle, juntamente com os senhores que devem levá-los
para as Índias, lá pelo dia 20 do próximo mês. O senhor Arcebispo de Reims 1 se encontra em vossa
vizinhança; escreveu-me que não o visitastes. Suplico-vos, senhor Padre, ir estar com ele e, prostrando-
vos a seus pés, pedir-lhe perdão por não lhe ter prestado mais cedo vossos deveres. Dizei-lhe que lhe
ofereceis vossa obediência e a de vossa comunidade, como àquele que vos estabeleceu em Richelieu 2 e a
quem, por essa razão, deveis toda sorte de respeito e submissão. Far-lhe-eis também, de minha parte, por
favor, a renovação da oferta de minha perpétua obediência.

18
18. O navio só levantou âncora em 21 de maio, dia da Ascensão.
19
19. Entre as vidas, em francês, de São Francisco Xavier, São Vicente podia conhecer as de Martin Christophe (1608), Michel Coissard
(1612), Estêvão Binet (1622), do P. de Balinghem, e uma vida anônima publicada em Mons em 1619. A primeira edição francesa de suas
cartas aparecera em Paris em 1628.
20
20. O senhor de Flacourt. A Société de l’Orient prometera providenciar, para os missionários, o alojamento, víveres e vestuários. O novo
Governador não cumpriu essas promessas.
.
Carta 1021. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Léonord d’Estampes de Valençay.
2
2. Ver t. I, pp. 430 e 447.
146

Recomendei-vos o senhor Padre du Coudray e vo-lo recomendo ainda. Não posso fazê-lo com
toda a extensão do afeto que Deus me deu por ele 3. Peço-vos manifestar-lhe esse meu testemunho e
informar-me em que estado ele se encontra. Oramos a Nosso Senhor por sua conservação e saúde.
Não sei se o Padre Chiroye 4 recobrou a própria saúde; pedi-lhe notícias há oito dias. Suplico-vos
escrever-me a respeito, caso ele não o faça, e saudar de minha parte a toda a comunidade, da qual, e de
vós em particular, sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

O Padre Gondrée partiu sem a carta do Padre Nacquart; eu vo-la envio 5. Vede a carta do Irmão
Cruoly e entregai-lha, se o julgardes conveniente.
6

Embaixo da primeira página: Padre Gautier.

1022. – CHARLES NACQUART A SÃO VICENTE

1° de abril de 1648.

Senhor Padre,

Vossa santa bênção, por obséquio!


Parece-me, ao ler e reler vossa carta, que seus termos não são de um homem, mas palavras do
Espírito de Deus, que me comunicam, em verdade, que é seu beneplácito servir-se de mim para tão nobre
e relevante vocação, da qual, por certo, me reconheço muito indigno. Não experimentei repugnância a
respeito do assunto, a não ser que teria desejado e gostaria muito, de preferência, ficar sob a conduta de
alguém, sem a responsabilidade da direção, da qual me vejo totalmente incapaz, por falta de virtude, de
prudência e de ciência. Essa convicção me traz grande temor de estragar a obra de Deus e estorvar
consideravelmente a sua glória. Um outro coirmão trabalharia por ela com muito mais vantagem, e eu
ficaria em grande paz por só ter que obedecer. Meu Deus, pesa-me muito persuadir-me de que seja a
mim, pobre Charles Nacquart, que se dirija esta sinalização do desígnio de Deus. Tudo bem, contudo; já
que ocupais para mim o lugar de pai na terra, depois daquele que tenho no céu, não duvido do plano de
Deus. O Padre Gondrée pode vir quando lhe aprouver; irei com ele como uma criança perdida, às cegas,
para descobrir se essa terra é terra de promissão. Embora veja minha mão como coberta de lepra, confio
que Deus nos dará sua vara poderosa para operar o que for do seu agrado. Entretanto, se não enviardes
um superior, acrescentai, por favor, um terceiro companheiro, para que este tríplice cordão seja mais
forte e irrompível. Não tendes, talvez, algum outro para nos enviar, dir-nos-íeis. Bastaria mandar para
aqui uma carta ao Padre Maillard1. Ele, se estais lembrado, vo-lo pediu, há dois anos, com tão grande
instância como nenhum outro. No momento, quando eu estava com a pena à mão, ele suspeitou de
alguma coisa, por conjectura feita a partir de algo que deduziu do Padre Gautier, e me suplicou
instantemente dizer-vos que mantém o coração, mais do que nunca, à disposição, se for do vosso agrado.
Na verdade, também eu acredito que ele traria muitas graças, em razão de suas virtudes, da sua
3
3. Sabe-se que Francisco du Coudray tinha ideias singulares sobre alguns pontos dogmáticos.
4
4. Superior em Luçon.
5
5. Ver carta 1020.
6
6. Donato Cruoly, nascido em Cork (Irlanda), em 24 de julho de 1623, entrou na Congregação da Missão em 9 de maio de 1643. Fez os
votos em novembro de 1645 e foi ordenado padre em 1650. Foi do número dos missionários enviados para a Picardia em 1651, para levar
socorro às populações reduzidas à miséria. São Vicente o nomeou em seguida diretor dos estudantes e professor de teologia em São Lázaro
(1653-1654). Depois o enviou para Le Mans, como superior. De lá voltou para São Lázaro em 1657, para ensinar teologia moral. Donato
Cruoly esteve à frente da casa de Sainte-Brieuc de 1667 a 1670.
.
Carta 1022. – Arquivos da Missão, dossiê de Madagascar, cópia.
1
1. Antônio Maillard, nascido em Veney (Meurthe). Entrou na Congregação da Missão em 21 de maio de 1644, com a idade de 26 anos e fez
os votos em 1646. Foi por muito tempo ecônomo da casa de São Lázaro, ecônomo geral de 1679 a 1686.
147

mansidão e outras qualidades, pelas quais seríamos um só coração. Se disserdes que ele é por demais
necessário como ecônomo em Richelieu, ele colocou tudo em tão perfeita ordem que algum outro não
teria dificuldade em suceder a ele;o Irmão Vageot, cujo estômago se encontra afetado pelo estudo 2,
poderá talvez substituí-lo bem. Concedei-no-lo3, e como superior; ele não será capaz de se deixar levar
pela vaidade. Há homens que se embriagam com um copo de vinho e que se afogam em quatro dedos de
água. A menor sombra de alguma honra é capaz de me atordoar. Posso dizer: qui datus est mihi stimulus
carnis4, isto é, do outro sexo; o que me faz apreender venha a permanecer, por vezes, sozinho. Como
dizeis, três não custarão mais do que dois; mas fiat voluntas Domini! (faça-se a vontade do Senhor!).
Vão aqui, porém, as minhas solicitações, caso confirmeis em mim vossa primeira proposta.
Será preciso escolher um local para nossa residência, a partir do qual, como de um centro,
fôssemos para a periferia da ilha pregar missões, como fazemos aqui, e para lá retornarmos? Existem lá
cidades, paróquias, igrejas, outros padres não dos nossos 5, outra religião dada a controvérsias? Há
outros senhores, que não os franceses, dos quais nos seria necessário depender? Como importa
desempenhar as funções paroquiais? Da mesma maneira como aqui? Seria preciso observar
inteiramente as nossas mesmas cerimônias e haveria lá livros de canto gregoriano? Celebraremos a
missa todos os dias no navio? Teremos em todo lugar matéria para a consagração? Se tivermos apenas
uma maleta, o que fazer quando nos dividirmos? Não haveria obstáculos contra nossa religião, quanto a
todas as nossas funções, aos nossos trajes de padres? Seria necessário ter barretes (de clérigo) e
sobrepelizes? Poderemos fundar confrarias da caridade, receber retirantes? Como organizar nosso
tempo sem relógio de parede ou de bolso? Poderíeis enviar-nos o regulamento da Missão com as últimas
modificações feitas? Poderemos admitir companheiros daquelas regiões, quer para serem padres, quer
para serem instruídos? Lá existem bispos?Teremos alguns irmãos coadjutores daqui ou de lá? O Irmão
J. Bance6 se oferecera, como sabeis. Seria necessário aceitar alguma fundação para a nossa subsistência
em particular, e mandar construir alguma casa sem antes vos ter escrito? Isso levaria muito tempo.
Haveria talvez alguma outra coisa para vos propor, que vós suprireis dando-nos novos avisos, se
já não o fizestes pelo Padre Gondrée. Tereis ainda bastante tempo, por favor, para dar vossa resposta à
presente carta, antes de partirmos, enviando-a pelo primeiro correio; ficaremos aguardando. Teremos
turíbulo, incenso, ostensório para honrar Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento do Altar? Tê-lo-emos
sempre consagrado no navio? Trataremos de levar a todos do barco a fazer sua confissão geral?
Faremos a leitura à mesa durante a viagem e estando lá? Teremos a caminho ou no país a liberdade
para observar a ordem do dia de um missionário, fazer as conferências entre nós e fazê-las com esses
senhores do navio, se estiverem dispostos, e também na ilha às crianças e aos homens 7? Se tivéssemos
muitas indulgências para distribuir, missas privilegiadas, orações das quarenta horas, etc., contribuiria
isso para a devoção.
Aguardarei vossa carta para vos dizer adeus e fazer meu testamento 8. Recomendai-nos de novo às
orações da Companhia, sem as quais teria bem menos confiança em um tal empreendimento, em relação
ao qual esses comerciantes, que vão para lá com o sentido nas coisas temporais, me servirão de forte
estímulo, ou de humilhação, se eu não fizer, pela glória de Deus e pela salvação das almas, tanto quanto
eles, pelos seus comércios. Tenho um extremo temor de me perder, ciente das minhas fragilidades e
incapacidade para dirigir almas. Queira Nosso Senhor estender-me a mão e conceder-me o que já me
desejastes e o que lhe pedireis por mim juntamente com tantas outras boas almas, das quais eu mendigo
o socorro por vosso intermédio.
Sou, no amor dele, inviolavelmente e de todo meu coração, e no amor de sua Santa Mãe e de São
José, senhor Padre e honorabilíssimo Pai, vosso muito humilde, muito obediente e muito afeiçoado filho,

2
2. Filipe Vageot, clérigo, nasceu em Bellegarde (Ain). Entrou na Congregação da Missão em 3 de maio de 1645, com a idade de 21 anos.
Pronunciou os votos em 12 de outubro de 1647. Ordenado padre em setembro de 1648, foi colocado na casa de Saintes, pouco após a sua
ordenação. Foi superior desse estabelecimento de 1651 a 1655, ano de sua saída da Companhia.
3
3. Antônio Maillad.
4
4. 2 Co 12, 7 : “Foi-me dado um espinho da carne”.
5
5. Não havia em Madagascar, na região onde iam morar os missionários, senão um único padre, o Padre de Bellebarbe.
6
6. Jean Bance, nascido em Ménonval (Seine-Inférieure) em 1611, recebido na Congregação da Missão, como Irmão coadjutor, em 9 de
novembro de 1637.
7
7. A resposta de São Vicente foi afirmativa, e Charles Nacquart teve a alegria de ver marinheiros e passageiros corresponder a seu apelo.
8
8. O único testamento que temos de Charles Nacquart é de 24 de junho de 1649. Foi publicado nos Mémoires, t. IX, p. 137.
148

CHARLES NACQUART,
indigníssimo padre da Missão.

Haveria algum inconveniente em escrever uma palavrinha a meu pai para lhe pedir a bênção e
que mande rogar a Deus por mim?

1023. – NICOLAU GONDRÉE, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Tours, 2 de abril de 1648.

Senhor Padre,

Vossa bênção! Cheguei felizmente a Tours, em companhia do senhor de Bloye, que nos conduziu
por ordem do senhor de Flacourt1. Não poderia ele ter-nos dado pessoa de melhor conduta, não somente
quanto ao temporal, mas também quanto ao espiritual. Posso assegurar-vos que recebi dele tamanha
edificação como jamais recebi de pessoas de sua condição. Cantava e excitava os outros, à noite, pela
manhã e em todas as horas, à devoção. Espero que Deus queira servir-se dele em Madagascar. Com
efeito, ele deixou-me transparecer todo ardor que eu poderia esperar, e tão grande desejo de dilatar a
glória de Deus nesses povos, não somente por meio dos outros, defendendo-os com sua autoridade, mas
também com as instruções familiares que tem intenção de fazer-lhes. Começa desde agora a sua missão,
na preparação para a comunhão, ensinando o Pai-Nosso e o Creio em Deus Pai; numa palavra, é um sol
no meio de várias estrelas; e eu sou apenas trevas, por causa de minhas imperfeições no meio dessas
luzes. Ele gostaria que vários eclesiásticos quisessem dar-se a Deus pela conversão da ilha, conforme me
manifestou. Com efeito, tendo encontrado um honrado padre que estava à procura de alguma condição,
ficou arrebatado ao conhecer a boa vontade que ele tinha de servir a Deus nesse país. Depois de lhe ter
sondado o interior, que é excelente, uma vez que nos protesta não ser o seu interesse próprio que o leva a
partir para aquele país, mas pela pura glória de Deus, com desejo de sofrer, de obedecer, de trabalhar e
de padecer o martírio, se for necessário. Bendito seja Deus por lhe ter comunicado este espírito! Está
esperando vossas notícias o mais cedo que puderdes, pois poderá comprar alguns alimentos frescos para
isso, conquanto mandeis encontrar o senhor Núncio2, de quem, como de vós, senhor Padre, sou o
humilde servo,

N. GONDRÉE,
indigno padre da Missão.

Os senhores de Bloye, Galiot, Rufin e os outros de nosso grupo se recomendam às vossas santas
orações e às de toda a Companhia. Pensais que fôssemos somente dois missionários, mas nos garantem
que não estaríamos sós; em tudo que nos puderem assistir, fá-lo-ão com todo o coração e, para coroar
seu trabalho, irão saudar-vos como me prometeram alguns, a fim de agradecer a Deus por sua viagem,
fazendo um bom retiro, como já fizeram alguns. Praza a Deus possam eles realizar esses intentos!
O senhor de Bloye vos pede dar-vos ao trabalho de encaminhar os vossos padres para o senhor Henry,
em La Rochelle, para onde conduziu aquele padre, o qual me apresentou todas as suas cartas em boa
forma. Ele me mandou dizer-vos que aguarda com impaciência vossas respostas; estamos nós no mesmo
desejo de saber o êxito desse negócio. O nome desse padre é Abraão Louvel, da diocese de Le Mans.
Senhor Padre, só vos envio a presente carta para dar satisfação à vontade do senhor de Bloye,
que assim o desejou, para saber o que pensais a respeito desse padre, que foi vigário em muitas cidades,
.
Carta 1023. –Arquivos da Missão, cópia do século XVII.
1
1. Estêvão de Flacourt, nascido em Orléans em 1607, governou a colônia de Madagascar, em nome da Companhia das Índias, de 1648 a
1655, em meio a mil dificuldades, suscitadas sobretudo pelos colonos, que atentaram mais de uma vez contra sua vida. Depois do seu retorno
para a França, foi empregado na administração da Companhia. Deixou uma Histoire de la grande isle de Madagascar (Paris, 1654, in-4) e
um Dictionnaire de la langue de Madagascar (Paris, 1658, in-8), que dedicou a São Vicente.
2
2. Nicolau Bagni.
149

parece astuto demais, um pouco ignorante e foi recusado em Orléans; em resumo, não creio que
possamos nos ajustar com ele. Esperamos vossa resposta.

1024. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Entre 1645 e 16491].

Senhora,

Estou de acordo e vos prometo fazer tudo o que me dizeis.


Vou falar a esta jovem que penso ser bom que ela permaneça aqui; e isso está de acordo com o
Evangelho.
Já que a dessa paróquia2 está querendo ir embora, tudo bem, colocai a Irmã Jeanne de la Croix 3 em
seu lugar e falai com ela do modo como dissestes.
Estou cuidando de minha saúde e o farei ainda mais, prometo-vos. Sou, no amor do Nosso Senhor,
v. s.,

V. D.

Destinatário: À senhora Le Gras.

1025. – JEAN-JACQUES OLIER A SÃO VICENTE

[Abril de 16481].

Quem tem Deus tem tudo.

Senhor Padre,

Aviso-vos que o reverendo Padre Maurício2 foi visitado pelo Padre du Bosquet3 e que o senhor
Abade de Cérisy4 mantém com ele grande entendimento, por meio de Madame Seguin, fiel penitente do
referido Padre Maurício. Ela só aceitará forçada que o reverendo padre lhe seja tirado, e influenciará o
mais que puder sobre o espírito do senhor Chanceler 5, por meio desses senhores padres e por ela mesma,
no sentido de conservá-lo. Esta senhora é afeiçoada ao partido novo, na medida em que isso é possível, e
como nesses últimos dias eu advertia, por um de nossos padres, a Madame chanceler que avisasse ao
senhor seu marido de que queriam trazer para esta cidade o reverendo Padre Séguenot 6, o que seria uma
.
Carta 1024. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Ver nota 3.
2
2. A paróquia Saint-Laurent.
3
3. Irmã Jeanne de la Croix, nascida em Le Mans. Ingressou nas Filhas da Caridade em 1645 ou 1646. Foi colocada em Serqueux, no mais
tardar, em 1649. Tornou-se assistente de Luísa de Marillac em 1641. Dirigiu depois o estabelecimento de Châteaudun e foi ainda uma vez
nomeada assistente.
.
Carta 1025. – C. aut. – Arquivo do seminário de São Sulpício, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original.
2
2. Carmelita descalço da casa de Paris, na paróquia São Sulpício.
3
3. O futuro Bispo de Lodève.
4
4. Germano Habert, Abade de Cérisy (Manche), membro da academia francesa, autor de uma vida do Cardeal de Bérulle, falecido em 1655.
5
5. Pierre Séguier.
6
6. Cláudio Séguenot, nascido em Avallon em 6 de maio de 1596, abandonou a advocacia para entrar no Oratório em 1624. Ligou-se logo de
amizade com o abade Saint-Cyran. Sua tradução francesa do livro de Santo Agostinho sobre a virgindade lhe valeu quatro anos de prisão na
Bastilha (1638-1643) e a censura da Sorbona. Foi superior em Nancy, Dijon, Rouen, Saumur, Tours. Foi nomeado assistente do Geral em
150

coisa perigosa, Madame Seguin declarou que suportava com dificuldade que se opusessem a esse
partido e aos seus partidários. Talvez, senhor Padre, fosse importante que fôsseis estar com o senhor
Chanceler para preveni-lo a respeito disso, conforme os caminhos que a divina sabedoria vos pudesse
abrir para isso.
Sinto-me livre para vos informar sobre essas coisas, como intrigas necessárias para desvendar a
obra de Deus, que tanto amais e que ele vos encarrega de manter.

OLIER.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Missão.

1026. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Abril de 1648.

Senhor Padre,

Escrevo a Madame Marquesa de Senecey 1 e suplico-lhe que apresente à Rainha o estado


deplorável da diocese de Rodez, quase tanto arruinada quanto a de Périgueux, com exceção de que as
igrejas nela não estão em ruínas e que nela há mais eclesiásticos. Os costumes dessas dioceses são tão
depravados que, logo após a morte do senhor Bispo de Rodez 2, abandonaram o hábito clerical. Alguns
penduravam a batina nas janelas dos cabarés, outros faziam brindes, e os que tinham abandonado as
concubinas, voltaram para elas. A primeira ação que fizeram os vigários gerais foi de caçar todos os
decretos que o prelado tinha feito pela reforma de sua diocese; o escândalo para toda a Província foi tão
grande que não consigo exprimi-lo; é uma das maiores dioceses do reino e a de mais difícil direção que
se possa ver, por causa do espírito das pessoas dessa região que são muito impertinentes. É totalmente
necessário que Sua Majestade nomeie para ela um homem apostólico. Eu lhe suplico dizê-lo a Sua
Majestade, quer como algo vindo dela mesma ou como um pedido de minha parte. Quis trazer-vos aqui o
que lhe escrevi, para a utilização vossa, na devida ocasião. Suplico-vos em nome de Deus empregar todo
o cuidado que vos for possível, a fim de que esta diocese seja provida de um pastor tal como o requer o
estado a que está reduzida. É necessário não somente que seja uma pessoa apostólica, mas também que
seja dotada de grande fortaleza de espírito e de grande coração. Seria possível que a Rainha, em vista de
alguma consideração de Estado, quisesse colocar lá uma pessoa que não tivesse as qualidades
requeridas para reformar a diocese? Não o posso crer desta piedosa Princesa e sentiria grande dor se
isto acontecesse. Se quiserdes dizer-lhe o que vos escrevi, podeis dar total garantia a Sua Majestade de
que se trata de plena verdade. Não há quase ninguém que saiba melhor do que eu o estado dessa diocese.
Limita com a minha em mais de vinte léguas francesas e causa males que não seria capaz de vos
exprimir. Por mais diligência que eu empregue em colocar nas fronteiras bons vigários forâneos, em
fazer-lhes frequentes visitas e enviar para lá, com frequência, nossos missionários, não chega isso a
impedir que a minha diocese sofra com isso grandes prejuízos, de tal modo os costumes dos eclesiásticos
dessa região são escandalosos e depravados.

1661, 1666 e 1669, e governou o Oratório de Paris de 1667 a 1673. Morreu nessa cidade em 7 de março de 1676. Várias de suas obras
permaneceram manuscritas.
.
Carta 1026. – Arquivo da diocese de Cahors, cópia tirada do original.
1
1. Maria Catarina de la Rochefoucauld, Condessa, posteriormente Duquesa de Rendan, primeira dama de honra da Rainha Ana d’Áustria,
governanta de Luís XIV, durante sua minoridade, casada com Henrique de Bauffremont, Barão de Senecey, do qual ficou viúva em 1622.
Morreu em 10 de abril de 1677, com a idade de 89 anos.
2
2. Charles de Noailles, falecido em 27 de março de 1648. Deram-lhe por sucessor, em 10 de junho de 1648, Hardouin de Péréfixe, futuro
Arcebispo de Paris.
151

O senhor Padre Ferrier3 retirou-se de lá. No pouco tempo que lá esteve, trabalhou muito pela
reforma daquele clero, e granjeara grande reputação e credibilidade em toda aquela região, etc.
Deixaremos ainda a pobre diocese de Périgueux na miséria? Fui impulsionado a escrever à
Madame Marquesa de Senecey; e se quiserdes, dizei à Rainha que fui eu que vo-la encaminhei e que não
há nada de que Deus tanto lhe vá pedir contas do que do fato de não prover as dioceses de pastores que
tenham as qualidades necessárias e de não o ter feito mais a tempo. Deus inspire a Sua Majestade a
escolha de pessoas que sejam segundo o coração dele!
Sou, entrementes, senhor Padre, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1027. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM MARSELHA

24 de abril de 1648.

Peço-vos ultimar todas as coisas com os senhores Administradores do hospital, antes de voltar.
Pelo que vejo, não haverá grandes dificuldades. Já aprovam que a direção espiritual permaneça
inteiramente conosco; nisso se conformam com os do Hospital Geral de Paris, que só cuidam do
temporal, deixando o resto aos cuidados dos senhores padres de Notre-Dame 1, e estes não prestam por si
mesmos seus serviços ao Hospital Geral, mas os delegam a outros; contentam-se em responsabilizar um
dentre eles para supervisionar se tudo vai bem. Faremos a mesma coisa com muito agrado, e asseguro ao
senhor de la Coste que jamais ouvi falar de outro modo de proceder, pois o serviço dos hospitais não se
ajusta às nossas funções. Colocaremos no dos forçados padres de fora, que escolheremos nos seminários,
e um dos nossos velará sobre eles e trabalhará com eles.

1028. – A DÊNIS GAUTHIER, SUPERIOR, EM RICHELIEU

Paris, 26 de abril de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Sim, senhor Padre, ide agradecer, por favor, ao senhor Arcebispo de Tours; sua caridade e cortesia
exercida para com os nossos merecem com justiça essa viagem. Ao lhe testemunhar vosso
reconhecimento, dai-lhe a conhecer o meu, e suplicai-lhe que aceite a renovação da oferta de minha
obediência, que lhe faço por vosso intermédio, com toda a humildade a mim possível.
Rendo graças a Deus pela nova dignidade dos senhores Padres Constantino 1 e Manceau2; saudai-
os de minha parte e dizeis-lhes, por favor, que pedi e pedirei ainda a Nosso Senhor lhes dê sempre nova
disposição para o Sacrifício (a Santa Eucaristia), e a graça de jamais oferecê-lo por rotina; suplico-lhes se
3
3. Discípulo do reverendo Padre de Condren e colaborador de Jean-Jacques Olier, um dos fundadores do seminário de São Sulpício.
Chegando a Rodez, a pedido do bispo, Charles de Noailles, que lhe conferiu os títulos de vigário geral e de oficial, ele fez que reconhececem
como seminário diocesano o seminário de VilleFranche, fundado por Raymond Bonal.
.
Carta 1027. – Reg. 2, p. 103.
1
1. Os cônegos de Notre-Dame de Paris.
.
Carta 1028. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Francisco Constantino, nascido em Limoges. Entrou na Congregação da Missão em 19 de dezembro de 1643, com a idade de 20 anos, fez
os votos em 25 de dezembro de 1645, foi ordenado padre em 31 de março de 1648.
2
2. Simão Manceau, nascido em Kalembourg, pequeno povoado da comuna de Laumesfeld (Moselle). Foi recebido na Congregação da
Missão em 27 de janeiro de 1645, com a idade de 24 anos e ordenado padre em 31 de março de 1648. Estava ainda em Richelieu em 1651.
152

lembrarem de mim, quando pronunciarem Nobis quoque peccatoribus (E a todos nós pecadores), como o
maior pecador existente na terra. É com este intuito, senhor Padre, que me recomendo igualmente às
vossas orações e às de vossa comunidade, à qual, e a vós em particular, faço o dom do meu coração e de
tudo que sou, embora sendo quem sou, como acabo de dizer.
Estou muito contente porque o Padre Coudray está melhor, e pela liberdade que lhe dais de
permanecer em Bois-Bouchard3. Conjuro-vos, senhor Padre, suportá-lo nisso, e em outras coisas 4, tanto
quanto puderdes, e a mim particularmente, que sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito
humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

O Padre Lambert não vos deu resposta, porque ao sair do retiro, em que honrava o retiro de Nosso
Senhor no seio de sua incomparável Mãe, quis ainda honrar sua infância, permanecendo no Seminário,
para onde voltou, há quatro ou cinco dias, Deus sabe com que humildade e com que edificação da
Companhia.

Embaixo da primeira página: Padre Gautier.

1029. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Dia de Santa Mônica [4 de maio de 16481].

Creio que a senhora Viole vai propor um padeiro para assar o pão em Bicêtre. Se estiverdes de
acordo, dizei-lhe que já existe um que trabalha muito bem, e estamos contentes com sua conduta. Eu
recearia bastante se introduzissem um outro que não fosse tão conveniente ao bem das crianças, como ao
de nossas Irmãs.
O senhor Pároco de São Lourenço2 queixa-se sempre de que não recebe o que lhe é devido pelos
batizados. As damas querem que ele mova um processo contra o Pároco de São Cristóvão 3, o que não lhe
é possível, por não possuir nenhuma cópia do contrato de fundação. Por outro lado, o próprio senhor
Pároco de São Cristóvão se queixa, por sua vez, de que não retira nada disso. Parece-me, senhor Padre,
que seria necessário que as damas fizessem o favor de averiguar a causa da situação, pois lhes é fácil
mandar entregar os papéis necessários ao senhor Pároco de São Lourenço.
Veio-me ao pensamento desde ontem propor à vossa caridade se ela não acharia bom, para não
chocar tanto ao Pároco de Chars4, enviar para lá a Irmã Jeanne Cristina em lugar da Irmã Turgis.
Reservaríamos a Irmã Jacquette para Chantilly 5, pois prevejo que precisaremos ainda retirar de Chars a
que lá ficou, para não desatendermos à advertência da pessoa desconhecida. Tanto uma como a outra,
há muito tempo, solicitaram fazer os votos. Parece-me que adiá-los seria afligi-las demais. É de se
esperar que os farão com proveito, porque as duas têm espírito bastante maduro e idade já avançada.
Por favor, respondei-nos o mais depressa possível, a esse respeito, por que o tempo urge quanto a
Chars. Quanto a mim, a urgência de me dizer, senhor Padre, vossa muito obediente serva e indigna filha,

3
3. O feudo de Bois-Bouchard, situado na vizinhança de Marie-de-l’Etoile, pertencia aos missionários de Richelieu, que ali tinham
estabelecido sua casa de campo.
4
4. Ver p. 286, nota 3.
.
Carta 1029. – C. aut. ─ Original com as Irmãs da Misericórdia de Montpellier.
1
1. Data acrescentada no dorso da carta pelo Irmão Ducournau.
2
2. Guilherme de Lestocq.
3
3. Paróquia de Paris. Ela compreendia em seu território, perto do Hospital Geral, a casa para onde eram levadas as crianças recentemente
abandonadas. Há uma outra casa de crianças abandonadas na paróquia Saint-Laurent.
4
4. Comuna do entorno de Pontoise. As Filhas da Caridade, estabelecidas na localidade desde 1647, sofriam muito com as tendências
jansenistas do Padre Pouvot, pároco.
5
5. As Filhas da Caridade tinham lá um estabelecimento desde o ano precedente (Cf. Chantilly, pelo cônego Eugênio Muler, Senlis, 1913, in-
8º).
153

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1030. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM MARSELHA

8 de maio de 1648.

Está bem claro, senhor Padre, que não é preciso que o superior da Casa de Marselha peça o
parecer dos senhores Administradores, quando se tratar da questão de colocar ou de mudar padres de fora,
no hospital: entendo que não é preciso seja isso uma obrigação. O superior terá direito de estabelecê-los e
destituí-los por si mesmo, como um pároco a seu vigário. Acomodareis, portanto, todas as coisas em
conformidade com o relatório que vos enviei e fareis um acordo por escrito sobre a questão, se esses
senhores o desejarem. Isto se impõe de modo particular no caso em que as patentes da fundação ou os
regulamentos que tenham feito nos obrigassem ou a outras coisas, ou a proceder de modo diferente do
que consta no referido relatório, que podereis inserir depois do regulamento deles, se julgardes
conveniente. Podereis também entrar em acordo a respeito de outras circunstâncias, como sobre o tempo e
as ocupações, sem nos obrigar, contudo, a fazer serviço religioso solene algum, na capela. Podemos,
contudo, nela pregar uma vez por mês e dar catecismo vez por outra. Nossa Casa é pobre demais para
manter os padres que seriam necessários, se fosse preciso cantar e realizar tudo que esses senhores estão
pedindo. Dizei-lhes que faremos o melhor possível e com a maior atenção ao que desejam. Feito isto, não
nos preocupemos em perscrutar-lhes as intenções quanto ao futuro. Ao perceber-lhes, com efeito, tanta
circunspecção nesses inícios, não devemos imaginar que tenham a intenção de intrometer-se na esfera
espiritual, mas apenas a de fazer bem as coisas, conforme as luzes presentes deles.

1031. ─ JULIANO GUÉRIN, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Túnis, maio de 1648.

É-me impossível exprimir-vos quão grandes foram os gemidos e as lágrimas dos pobres escravos,
de todos os comerciantes e do senhor cônsul 1, e quanta consolação recebemos de sua parte. Os próprios
turcos nos vêm visitar em nossa aflição, e as pessoas mais importantes da cidade de Túnis mandaram
oferecer-me, de sua parte, ajuda e serviço. Enfim, senhor Padre, vejo com evidência que vale a pena
servir a Deus com fidelidade, pois, na tribulação, suscita os próprios inimigos para socorrer e dar
assistência aos seus pobres servidores. Somos afligidos pela guerra, pela peste e pela fome, até ao
excesso, e com isso estamos sem dinheiro; quanto à nossa coragem, porém, está bem firme, graças a
Deus; não tememos tão pouco a peste; é tal como se não existisse. A alegria que temos, nosso irmão e eu,
pela saúde de nosso querido Padre Le Vacher, nos tornou fortes como os leões de nossas montanhas.

1032. ─ LUÍSA DE MARILLAC AO SENHOR PADRE VICENTE


.
Carta 1030. – Reg. 2, p. 104

.
Carta 1031. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. VII, § 1, 1ª ed., p. 94.
1
1. Martin de Lange. Esses gemidos tinham por causa o temor de perder Jean Le Vacher, que a peste quase levou.
.
Carta 1032. – Asilo de Dourdan, cópia.
154

13 de maio de 1648.

Senhor Padre,

Urge-nos enviar duas Irmãs, uma para Crespières1 e outra para Maule, e são daquelas que, há
tempo, pediram à vossa caridade para se entregarem a Deus pelos votos. Há seis ou sete anos que estão
na Companhia. Nunca manifestaram nenhum desgosto, mas, pelo contrário, sempre deram muito bom
exemplo. Se vossa caridade lhes permitir, amanhã de manhã, antes de partir, ouvirão a santa missa e
pronunciarão os santos votos. Não vão partir antes do meio dia. Tende a bondade de avisar-nos se o
aprovais e se teremos a felicidade de assistir à vossa santa missa, por este motivo.
Tenho grande necessidade de que Deus me conceda a graça de vos falar pessoalmente e de que
vossa caridade me tenha sempre, senhor Padre, como vossa muito obediente filha e humilde serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Uma das duas Irmãs chama-se Andreia e é de perto de Tours, e a outra é Catarina de Gesse, a
que servia os pobres em São Gervásio.

1033. ─ A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

Paris, 15 de maio de 1648.

Não posso cessar, senhor Padre, de vos recomendar vossa saúde; ela é tão cara para mim e tão útil
para as almas, que vos suplico de novo fazer o possível para recuperá-la. Suspendei toda espécie de
trabalho e segui exatamente o parecer dos médicos. Lembrai-vos, senhor Padre, de que Santo Agostinho
disse que quem não obedece aos médicos faz o que está ao seu alcance para provocar a própria morte;
vamos ler isto por esses dias, na recitação do ofício divino. Espero, portanto, que sereis fiel às suas
prescrições e que dareis esta consolação à Companhia, após tantas outras que recebeu de vós, de quem
sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

O primeiro presidente da corte de Aides falou-me muito bem de vosso irmão.

Embaixo da página: Padre Martin.

1034. ─ DÊNIS GAUTIER, SUPERIOR EM RICHELIEU, A SÃO VICENTE

1648.

Em duas missões pregadas em Bas-Poitou, três missionários tiveram a felicidade de converter doze ilustres
hereges.

1
1. Comuna do entorno de Versailles. As Irmãs acabavam de fundar ali um estabelecimento.
.
Carta 1033. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
.
Carta 1034. – Abelly, op. cit., 1. II, cap., I, sec., II, § 8, 1ª ed., p. 53.

155

1035. ─ JEAN BARREAU, CÔNSUL EM ARGEL, A SÃO VICENTE

[Argel, maio de 16481].

Eis uma história que não vos parecerá menos bela do que a do ano passado, por cujo desfecho
podereis reconhecer o socorro que recebi da mão onipotente do nosso bom Deus, que ainda dessa vez me
curou do mal contagioso, que aumenta cada dia. Não posso penetrar nas deliberações de seus desígnios,
mas temo, com justa razão, que ele lance a palha no fogo, depois de colhido o trigo.
Parecia que os grandes e importantes serviços que o falecido Padre Lesage, meu muito caro e
bem-amado pai e mestre prestava a nosso bom Deus, nesta cidade de Argel, lhe deviam propiciar um
século de vida e que as pusilanimidades deveriam logo ter seu fim, ao chegar o meu. Vejo exatamente o
contrário, para minha humilhação.
Ele surgiu nesta cidade apenas como um lampejo de luz, mas que deixou marcas muito sensíveis
dos seus efeitos e que lhe fizeram jus a tanto maior consideração quanto mais consideráveis são eles. Sua
missão não foi tão longa quanto a do falecido Padre Nouelly, mas seu trabalho foi igualmente grande,
por causa das inúmeras ocasiões que Nosso Senhor lhe deu para tanto, desde a última quarta-feira de
cinzas, quando entrou nesta cidade, até aos doze dias do presente mês, quando partiu para a glória. Todo
esse tempo foi uma série contínua de cuidados e de solicitudes no socorro, tanto espiritual quanto
temporal, dos pobres doentes, tanto da peste quanto de outras enfermidades.
Seu primeiro cuidado, depois de sua chegada, foi o de se informar exatamente sobre o modo como
o referido Padre Nouelly se comportava em relação aos pobres escravos cristãos, e seu método para
socorrê-los e para levá-los, depois, a fazer dignos frutos de penitência, com as salutares exortações que
fazia nas caldas de Cheleby e de Collorgli, que são duas pessoas poderosas na cidade, tanto no fim da
missa quanto no das vésperas. Ao terminar essas celebrações, mandava que fizessem, algumas vezes, as
orações da noite, assim como fizera, no começo da missa, as da manhã; coisa inédita até então nesta
cidade. Para urgir com cada um que abraçasse esse santo costume, mandara traduzir as orações em
língua espanhola, a mais comum nesta cidade. Nisso trabalhamos até durante o tempo em que a
violência do seu mal o obrigava a ficar de cama.
Ao final de suas exortações, suplicava a todos os assistentes que o avisassem quando algum deles,
ou do conhecimento deles, caísse doente, quer da peste ou de outro mal, e ele lhes daria assistência,
mesmo com o perigo de sua vida. Esta súplica era feita com tão grande sentimento de amor que
arrancava lágrimas dos olhos de todos. Tal fato ainda não era nada em comparação ao zelo com o qual
executava o que lhes tinha prometido; e isso lhe mereceu tal credibilidade entre os pobres cristãos, que a
ele acorriam de todos os lados, para serem socorridos, espiritual ou corporalmente, segundo suas
necessidades. Temendo ainda que suas palavras não obtivessem bastante eficácia nos espíritos deles,
prometia-lhes recompensar com certa soma de dinheiro os que lhe fizessem aquele favor, do qual estava
tão sedento que tinha sempre cristãos a seu serviço, os quais não faziam outra coisa senão passar pela
cidade, perguntando onde havia doentes. Fazia assim, por intermédio dos outros, o que sua fraqueza não
lhe permitia fazer por si mesmo; quanto ao que dependia do seu ministério, ele o executava com zelo sem
medida, tanto na administração dos sacramentos, quanto nos outros socorros.
Fazia questão de acompanhar o seu zelo com tal discrição e prudência que enviava,
antecipadamente, o senhor Cláudio Didier, farmacêutico, que trouxera com ele da França, para
investigar alguns meios de falar com os doentes. Com efeito, se houvesse dificuldade para entrar, levava
o patrão a compreender que não podia dar remédio a seu escravo, se o médico não o tivesse visitado, e
que, para esse fim, ele traria um. Dessa maneira, conseguiu entrar onde havia perigo de vida.
Acobertados por esse expediente, entraram os dois na casa de um turco, o qual, de início, os
repeliu rudemente; mas, ao lhe dizer que um era médico e o outro cirurgião, que vinham visitar o cristão
doente em sua casa, ele lhes permitiu e quis entrar com eles. O senhor Didier, vendo que sua presença
poderia estorvá-los, pôs-se a conversar com ele e, insensivelmente, fê-lo sair da toca onde jazia esse
pobre doente, enquanto nosso médico cumpria seu piedoso ministério. O turco acreditava singelamente
.
Carta 1035. – Ms. de Lyon, fl. 203 e seg.
1
1. Jean Barreau escreveu esta carta depois do dia 12 de maio de 1648, dia da morte de Jacques Lesage, no decorrer deste mesmo mês.
156

em tudo que lhe diziam a respeito da pessoa que estava com seu escravo. Entretanto, as mulheres que
haviam chegado reconheceram que era um papá; era assim que denominavam os padres. Nosso bom
Deus, contudo, que olhava com bons olhos esse estratagema, inspirou-lhes bastante reserva para não
revelá-lo, pois, sem isto, haveria grande perigo para um e outro. Assim, sua inventiva teve êxito, com
vantagem para o pobre cristão e para a maior glória de Deus.
De outra feita, serviu-se do mesmo artifício para entrar na casa de um poderoso turco, onde
havia um pobre cristão e um renegado espanhol, ambos feridos pela peste. Apesar dos dois perigos
evidentes, um, o da peste, e o outro, o de ser reconhecido e lançado ao fogo, resolveu entrar nela, fosse
qual fosse o preço. Com efeito, obteve tal êxito que o renegado, deitado ao lado do cristão, ouvindo as
exortações que ele lhe dirigia e o pesar de que deu então testemunho, sentiu-se tocado por muito sensível
desgosto de ter abandonado nossa santa fé, e pediu insistentemente o sacramento da penitência, que
nosso médico julgou conveniente adiar até de tarde, para buscar um pequeno parecer e conselho sobre
como proceder em tal ocorrência. Ajudou-o, entretanto, a fazer alguns atos de contrição, esperando
voltar à tarde; e não faltou ao seu intento, embora eu o tivesse advertido de que se tratava nada menos
do que de fogo e que, se o renegado, ao morrer, recusasse pronunciar certas palavras que eles
empregam entre eles, iriam atribuí-lo a sua visita; mesmo se viesse a convalescer, haveria sempre
perigo. Mas, ó Senhor! como os juízos de Deus são justos! Constatou que Nosso Senhor o tinha levado,
estava morto.
Quanto ao cristão, o perigo não era menor, porque o patrão tinha a intenção de torná-lo turco. O
referido senhor Didier voltou lá por várias vezes, sem que jamais lhe permitissem revê-lo. Nosso bom
médico quis tentar ainda uma vez, a fim de exortar esse pobre cristão a permanecer firme em sua fé.
Mas, no próprio dia em que devia realizar o seu intento, ele caiu doente; desde então, não mais ouvimos
falar dele. O que nos traz grande motivo de apreensão é que certas mulheres davam-lhe grande
assistência durante a doença, e que, se sentindo fortes diante da fraqueza dele, não o pervertessem.
Parece-me, senhor Padre, que isso é o bastante para um martírio “em desejo”. Não foi a única
ocasião em que se ofereceu à morte. Houve uma quantidade de outras, que sua humildade nos ocultou.
Pouco tempo antes de cair doente, seu zelo o levou a entrar numa casa onde se encontravam pessoas
feridas de peste, para ir socorrer um pobre cristão moribundo. Esse mesmo zelo o fez entrar em outra
casa da qual todo mundo tinha fugido. Encontrando em rigidez cadavérica aquele a quem procurava,
colocou-se, sem o mínimo de terror, de joelhos a seus pés, e tendo rezado um De profundis2 por sua
alma, saiu a procurar outra aventura em outras partes. Ó senhor Padre, como a considero feliz!
Se suas forças tivessem sido iguais à sua coragem, ter-nos-ia dado muita matéria de que nos
entreter, embora elas não me faltem, pela graça de Deus. Se eu quisesse especificar em detalhe todas
estas ações heroicas, já que houve poucos dias nos quais não lhe tenha acontecido alguma coisa digna
de nota, se eu pudesse ressuscitar os cristãos que morreram de peste no hospital de Cheleby ou nas
caldas de Douane, eles nos revelariam muitas coisas que ele nos ocultou. Enfim, penso falar tudo,
dizendo que não houve cristão algum, de qualquer nação que fosse, que tivesse implorado seu socorro na
doença, fosse qual fosse, que não tenha sido assistido por ele com incrível caridade.
Em meio às suas altas ocupações, lembrava-se sempre das caldas, nas quais pregava com tanta
bênção que chegamos a ver escravos, que não se tinham confessado, há dez, doze e quatorze anos, virem
lançar-se a seus pés na Páscoa e cumprir seus deveres com generosas resoluções de se corrigirem de
seus maus hábitos.
Chegando a Semana Santa, redobrou as exortações que ele fazia depois do ofício das trevas, que
cantávamos nos três dias de costume. Quinta-Feira Santa, celebrou a cerimônia do lava-pés com tal
devoção que arrancou lágrimas dos olhos de todos. Como eu estava presente, derramei também um
pouco dessas lágrimas.
No dia seguinte, pregou a Paixão, tendo à mão o crucifixo e, ao final, pediu justiça, diante
daqueles que negligenciavam seu dever. Ao depois, ordenou a todos os ouvintes que fizessem o protesto
geral de se colocarem na condição de bons cristãos. A maior parte respondeu com fidelidade ao
compromisso. Para facilitar os meios de cumpri-lo, como eram apenas dois padres, decidiu passar a
noite nas caldas, para ouvir as confissões dos que se apresentassem. No dia seguinte celebrou o ofício
com todas as cerimônias e com toda a devoção que o tempo e o lugar lhe permitiam.

2
2. De profundis: “Das profundezas”, Sl 129, que se costuma rezar pelos defuntos (N. do T.).
157

Depois de ter falado, do melhor modo que me foi possível, mas não como a importância do
assunto o merece, da maneira com que tratava os estrangeiros, parece-me que não será fora de propósito
dizer três palavras sobre sua mansidão em regrar as coisas domésticas, por meio da qual soube dobrar-
me pouco a pouco ao que lhe parecia bom, como também a todos os da casa.
Dei-me a honra de vos escrever anteriormente as disposições que me animavam, ao recebê-lo, e a
grande tranquilidade que ela me tinha causado. Por esta razão, não falarei disso aqui. Jamais o ouviram
contradizer qualquer coisa que fosse. Aprovava com carinho tudo que era feito; e a simpatia existente
entre nós era tão grande que, quando ele estava fora, eu sentia pesar, e quando ele não me via, ficava
inquieto. Nossos afetos eram tão uníssonos como se não tivéssemos, ambos, senão um só coração, com a
diferença, contudo, de que o meu estava bem longe da perfeição do dele. Mas, senhor meu Deus! essa
felicidade não durou muito! Parece-me que foi um sonho.
Por tudo que se disse acima, é fácil concluir que o seu mal resultou unicamente da sua
assiduidade em socorrer os pobres doentes da peste e de outras doenças, o que o constrangeu, na sexta-
feira, dia cinco do presente mês, a cair de cama. Na noite precedente sentira alguma dor na virilha
direita, que o obrigara a chamar o referido senhor Didier para visitá-lo, o qual o aconselhou a ir deitar-
se; mas como preferia a salvação das almas à do seu corpo, ele não teve força bastante sobre o seu
espírito, no sentido de o impedir de ir celebrar a missa nas caldas de Douane, e que tornasse a passar,
na volta, nas caldas de Cheleby, onde o R. P. prefeito dos Capuchinhos tinha ido para cantar uma missa
solene de São Roque, às instâncias dos mordomos das referidas caldas, nas quais iria desempenhar o
ofício de diácono. Terminada a santa missa, com grande fadiga para ele, voltamos para casa, onde me
revelou sua enfermidade. Depois de ter trabalhado com ele por muito tempo na tradução das orações às
quais me referi acima, foi constrangido a ir para cama, por volta das duas horas da tarde, com certo
júbilo e alegria, ao se ver detido por tão belo motivo. Isto me fez derramar lágrimas de suave
consolação, ao pensar que o Padre Nouelly caíra doente igualmente numa sexta-feira.
Depois disto, nós o visitamos e vimos que a peste já tinha progredido muito. Cerca de uma hora
depois, apareceu o carbúnculo...; o que nos deu de início boa impressão.
O senhor Didier lhe aplicou logo os remédios, para ajudar a natureza que parecia querer reagir
por si mesma. Fizemo-lo tomar, entretanto, porções estimulantes com caldos; mas a fraqueza do seu
estômago o fez vomitá-las; o senhor Didier foi então obrigado a aplicar-lhe um medicamento caseiro
sobre o estômago etc. Tinha pouca febre, não estava com náuseas nem dor de cabeça, o que nos dava
esperança de que não seria nada, ou, no máximo, que ele se sairia bem da doença. Não deixamos de
induzi-lo a confessar-se à noite e, no dia seguinte, de lhe conferir o sagrado viático. Contudo, como
dormia pouco e com grande agitação, julgamos que a doença lhe tinha atingido o coração. Sendo assim,
julgou-se conveniente ministrar-lhe, na manhã do domingo, a unção dos enfermos, enquanto conservava
ainda a lucidez. Depois da unção, ele me solicitou a fórmula dos votos que os da Companhia fazem em
vossas mãos. Rogou-me que a lesse palavra por palavra e ele as repetia com grande fervor, e que vos
assegurasse que ele morria com todos os sentimentos que a Companhia pede dos seus membros. Se por
ventura prouvesse a nosso bom Deus devolver-lhe a saúde, prometia empregá-la na salvação das almas
até o último suspiro de sua vida. Afirmo-vos que isto me arrancou lágrimas dos olhos. Depois de lhe ter
pedido, de joelhos, a bênção e de tê-la recebido, repeti-lhe, palavra por palavra, a mesma fórmula dos
votos e roguei-lhe que, ao chegar diante de Deus no céu, desse, diante de sua divina Majestade,
testemunho semelhante ao que me pedia dar diante dos homens. Abracei-o no mesmo instante, com toda
a cordialidade que me foi possível, protestando preferir morrer a seus pés a abandoná-lo. Lembrando-se
de uma certa cruz de prata que trazia ao pescoço, na qual havia relíquias, ele mesmo a retirou, dizendo
que tinha escrúpulo de morrer com esse tesouro, e entregou-a em minhas mãos para dela dispor
conforme vos aprouvesse. Perguntei-lhe se ele a trazia com a devida permissão; ele me disse que na
verdade vós lha tínheis dado, mas que não pensáveis que fosse de tal valor. Eis, senhor Padre, até onde
chegou seu desapego.
Entretanto, a fraqueza do seu estômago o fez rejeitar até os tônicos que lhe tínhamos preparado,
vendo que não podia suportar os caldos. Enfim, na terça-feira, dia doze do mês corrente, sobreveio-lhe
uma pequena sudorese, que durou cerca de um quarto de hora, e que pensávamos tratar-se de uma crise.
Depois desta sudorese, resfriaram-lhe as extremidades. Perguntamos-lhe, em seguida, como estava se
sentindo, e ele nos disse que lhe parecia estar em repouso. Quando pensávamos que assim estava, entrou
em agonia, um quarto de hora depois. Peguei logo o seu crucifixo e o mandei beijá-lo, enquanto eu
158

pronunciava um ato de contrição, que ele repetiu palavra por palavra. Em seguida, fi-lo recitar Maria
mater gratiae (Maria mãe das graças) e, dez ou doze vezes, o sagrado nome de Jesus e de Maria. Depois
disso, o R. P. Sebastião3 , religioso de Nossa Senhora das Mercês, deu-lhe a indulgência
plenária,conforme o privilégio de sua Ordem, com a absolvição geral; um instante depois, veio a falecer,
de mãos postas, sem contorções violentas algumas, nem perda da lucidez.
Eis, senhor Padre, uma morte tão desejável quanto a vida foi exemplar e digna de imitação, e que
nos leva a reconhecer que in brevi explevit tempora multa (em pouco tempo, atingiu a plenitude de uma
vida longa); morreu com a idade de trinta e seis anos, segundo me dissera pouco tempo antes.
Se o falecido Padre Nouelly foi chorado, ele não o foi menos; as lágrimas dos pobres cristãos
foram disso as verdadeiras testemunhas e disseram altamente ter perdido um pai.
No dia seguinte, nós o levamos até Bab-Azoun, para junto do falecido Padre Nouelly, em
companhia de quatrocentos ou quinhentos cristãos, que choravam, por se verem abandonados diante do
risco que corriam; tanto mais quanto os outros padres não se empenhavam em se expor a tal ponto;
dificilmente seriam socorridos com a falta de corações semelhantes aos desses dois padres.
Neste mesmo dia, foi celebrada, em presença de seu corpo, a primeira missa, servindo-nos de
nossa maleta de celebração (capela4), que eu mandara colocar em outro lugar, porque era pequena
demais. A missa foi celebrada por um religioso beneditino, o único padre de que dispúnhamos dos três
que diziam ser observantes, presos recentemente. Nosso defunto teve uma vantagem sobre os outros,
porque imediatamente após a morte de um cristão ele é levado para ser enterrado.
Nessa manhã, se cantou um serviço religioso solene nas termas do Rei, ao qual estava presentes
bom número de cristãos, na medida em que a folga lhos pôde permitir. O R. P. capuchinho descreveu em
três palavras algumas de suas ações mais importantes; mas como havia pouco tempo que ele estava
nessa cidade, não podia ter conhecimento de tudo que tinha acontecido ao falecido. Eis,
aproximadamente, o que pude reter de seu discurso: quanto mais perfeitas são as coisas, mais devem ser
choradas, quando as perdemos. Provou-lhe a perfeição pela sua mortificação, pois estava morto para si
mesmo, já que, sem atenção aos interesses de sua saúde, ele se expôs pela salvação de seus irmãos;
alegou a passagem do Apocalipse Beati mortui (Bem-aventurados os mortos), com a explicação de Santo
Ambrósio. Provou-lhe também a perfeição pela sua simplicidade e mansidão e, comparando-o àquele
jovem do Evangelho, ao qual Nosso Senhor relatava os mandamentos de Deus, ele o fez responder: hac
hora, etc. (imediatamente); quando chegar a hora do julgamento, acrescentou, o nosso defunto poderá
dizer a mesma coisa. Provou-a igualmente pela sua caridade, por se ter exposto tão generosamente ao
vir até esta cidade, sabendo muito bem que a doença estava muito disseminada; Majorem caritatem
(Maior amor), etc. Enfim, concluiu que havia o suficiente para fazer dele um mártir. Mas que teria ele
dito se soubesse o que expus acima!
O R. P. Sebastião prestou-lhe todo socorro que lhe foi possível. Posso dizer que é grande sua
caridade, já que tão logo soube da doença dele, veio espontaneamente oferecer-se a ele e não o
abandonou senão após o seu sepultamento. O senhor Didier, que tinha especial apreço por suas virtudes,
fez tudo que humanamente lhe era possível, em favor de sua saúde. Sempre dormiu em seu quarto, para
socorrê-lo com mais prontidão, sem se importar com o perigo que corria. Os pobres Renê Duchesne e
Jean Benôit, que esperam apenas de vosso auxílio a liberdade, se dedicaram nesse caso com toda sua
afeição.
Enfim, senhor Padre, todos cumpriram seu dever. Só eu cumpri mal minha obrigação; do que vos
peço humildemente perdão. São esses os sentimentos com os quais sou obrigado a finalizar esta carta,
assegurando-vos que me estimaria feliz se, depois de tão bela vida, pudesse eu ter tão bela morte. Peço-
vos obtê-la para mim de nosso bom Deus, em cujo amor sou, de todo meu coração, senhor Padre, vosso
muito humilde e muito obediente servo,

BARREAU.

Peço-vos perdão pela precipitação com que terminei a presente. Pensávamos que a galera
devesse partir amanhã. Acaba de chegar uma ordem para partir imediatamente. O R. P. capuchinho está

3
3. Sebastião Brugière.
4
4. Maleta com as alfaias e materiais para as celebrações (N. do T.).
159

muito doente; não sabemos o que é. O outro padre está na galera, para onde foram Renê Duchesne e
Jean Benôit. No momento, estou só.

1036. ─ LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Antes de 16501].

Senhor Padre,

É verdade que tenho um carinho todo especial pela festa de Pentecostes e que este tempo de
preparação para ela me é muito querido. Lembro-me de ter tido, há algum tempo, grande consolação ao
ouvir um pregador dizer que, em semelhante dia, Deus entregara a Moisés sua lei escrita e que, no tempo
da lei da graça, dera, neste mesmo dia, à sua Igreja, a lei de seu amor, que encerra em si o poder de
cumpri-la. Como, neste mesmo dia, aprouve a Deus colocar em meu coração uma lei que jamais saiu
dele, apesar de todas as minhas maldades 2, muito desejaria, se me fosse permitido, que neste mesmo dia,
sua bondade me fizesse compreender os meios de observar a referida lei, segundo sua santíssima
vontade.
Não sei se foi por esse motivo que me veio o pensamento de pedir-vos a permissão de nos
preparar para esta festa por meio da privação da Sagrada Comunhão, durante esses onze dias em que a
Santíssima Virgem, os apóstolos e as santas mulheres estiveram separadas de seu querido Mestre. Esta
oportunidade nos serviria também para refletir sobre o mau uso que fizemos, durante todo o ano, de
nossas comunhões, a fim de despertar em nós novo desejo de comungar com maior fervor e proveito,
para a glória de Deus e também a fim de participar, com os apóstolos, do batismo de amor e de fervor
que receberam, para o serviço do próximo.
Suplico-vos, muito humildemente, senhor Padre, que as fraquezas de meu espírito, que vos
revelei, não induzam vossa caridade à condescendência, fazendo-vos pensar que desejo que concordeis
com meus pensamentos. Isso está totalmente longe de minha vontade, pois, não experimento maior prazer
do que quando me vejo razoavelmente contrariada. Deus me concede, quase sempre, a graça de apreciar
as opiniões diferentes das minhas, particularmente quando se trata de uma prova de caridade. Tenho a
certeza de perceber, com evidência, esta verdade, embora se trate de assuntos que me sejam ocultos
durante algum tempo.

1037. ─ A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

Paris, 22 de maio de 1648.

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta, escrita na ausência do Padre Blatiron; ela me trouxe uma alegria particular,
informando-me sobre vossa melhor disposição. Continuo, porém, contristado, ao vos ver decidido a voltar
já ao trabalho, temendo que possais recair num pior estado. Suplico-vos ter paciência e vos fortalecer,
quanto vos for possível, com o repouso e os remédios. Não me poderíeis dar maior consolação, nem
prestar maior serviço ao próximo, do que vos colocando em estado de poder servi-lo por longo tempo.
Estes senhores a quem pensais escandalizar ficarão, pelo contrário, edificados, ao saber de vossa
obediência nesse ponto, como o sois nas grandes e difíceis ocasiões.
.
Carta 1036. – C. aut. ─ Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Depois de 1649, Luísa de Marillac emprega sempre no cabeçalho de suas cartas a expressão: “Meu muito honrado Padre”.
2
2. Ver carta 753, nota 1.
.
Carta 1037. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.

160

Escrevo ao Padre Blatiron que retenha por enquanto o Padre Brunet, embora precisemos muito
dele em outras partes.
Suplico-vos recomendar minha alma a Nosso Senhor. Sou, em seu amor, senhor Padre, vosso
muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Martin.

1038. ─ A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

Paris, 12 de junho de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Agradeço-vos pelo cuidado que tendes em me escrever, na ausência do Padre Blatiron.
Estou procurando encontrar um meio de fazer chegar até vós nossas cartas, sem que isso nada vos
custe. Não é razoável que o porte seja pago duas vezes.
Escrevo ao Padre Alméras que vos ceda, se ele puder, um de seus Irmãos, em troca de um outro
que lhe enviareis.
Sabeis que a comunidade de Gênova me é muito cara e que fico muito consolado quando os
coirmãos dela estão contentes e que tudo nela está indo bem. Recomendo-a, com muita frequência, a
Nosso Senhor neste sentido e, em particular, vossa querida alma, senhor Padre, à qual a minha está muito
estreitamente ligada.
Penso seriamente em vos enviar uma pessoa de idade, como vós e o Padre Blatiron me escreveram
ser necessário, para que nele tenham confiança os que vierem à Casa.
Não me dizeis nada sobre vossa saúde. Praza a Deus que ele a aprimore, cada vez mais, para a sua
glória e para minha consolação. Sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Martin.

1039. ─ A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

Paris, 14 de junho de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Já que o Padre Lucas1 foi pregar missão, suplico-vos enviar, por um portador, ao senhor Cônego
de Saint-Aignan, a carta anexa, o qual lha entregará em mãos. Fareis chegar também ao senhor
Charpentier a que lhe escrevo; talvez poderá ser ele o portador da primeira.
.
Carta 1038. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
.
Carta 1039. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
1
1. Antônio Lucas, superior da casa.
161

Não temos ninguém disponível para tocar órgão, e que vos possamos enviar, já que nosso Irmão
Dufresne2 é necessário aqui.
Sendo de costume fornecer o almoço ao senhor lugar-tenente geral, aos oficiais e outros presentes
juntamente com ele no dia do Santíssimo Sacramento, este costume adquire aí a condição de um direito e,
portanto, é preciso respeitá-lo; seria difícil esquivar-se.
Escrevo-vos apressadamente, mas não sem a consolação de vos assegurar que vosso coração me é
caro e que sou, com todo o meu, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Gentil.

1040. ─ THOMAS TURCHI, SUPERIOR GERAL DOS DOMINICANOS, A SÃO VICENTE

Reverendissime Pater et Domine,

Tot vestrae in me meumque Ordinem pietatis titulis Vestrae Reverendissimae Paternitatis debitor
factus, saepius cogor mea gratitudine vestras curas publicas sanctioresque interpellare vestramque
gravare modestiam dum beneficia vestra gratus recolo. Inter haec urgent me maxime ad referendas vobis
gratias quae non ita pridem effecistis pro fundatione cathedrae theologicae in studio generali Casseliensi
Ordinis nostri, in Hibernia, ad usum publicum tam regularium quam saecularium, idque ad instantiam
Reverendi Patris Fratris Fabiani Ryan, Hiberni, Ordinis nostri, pro illo negotio a provinciali suo
deputati. Et vestrum in Ordinem beneficium eo magis sensi quo publicum quoque ad Dei cognitionem et
gloriam multorumque eruditionem et salutem tam profucuum quam Ordini nostro utile erit et
honorificum... est quod orem et sperem ut tam pio operi ab ea manu imponatur... a qua meruit fundari,
totisque profusae charitatis incentivis caeptum... urgentibus flammis consummetur. In utriusque gratiae
factae et speratae vicem, mea meique Ordinis hic et ubique, maxime vero in Hibernia, offero et spondeo
vota pro Vestrae Reverendissimae Paternitatis totiusque vestrae sacrae societatis conservatione et
prosperitate, ut habeat ubique gratum quem sibi ubique fecit esse debitorem, dum majora possim et plura
quam vota, quibus vobis efficaciter probem quod vere et sincere sim Vestrae Reverendissimae
Paternitatis humillimus et devotissimus servus in Domino.
Romae, in conventu Sactae-Mariae super Minervam, 15ª junii 1648.

TRADUÇÃO

Reverendíssimo senhor Padre,

O piedoso devotamento de vossa reverendíssima paternidade para com a minha pessoa e a minha
Ordem vos dá tanto direito a minha gratidão, que me sinto, com frequência, pressionado, quando
rememoro vossos benefícios, a vos distrair, com meus agradecimentos, de vossas santas e públicas
ocupações e ferir vossa modéstia.
O que está urgindo comigo a vos testemunhar o meu reconhecimento é a fundação de uma
cátedra de teologia, para uso público tanto dos religiosos quanto das pessoas seculares, na universidade
que nossa Ordem dirige em Cashel, na Irlanda, e isso às instâncias do R. P. Frei Fabiano Ryan, irlandês,
de nossa Ordem, delegado pelo provincial para este fim. Senti tanto mais intensamente esse benefício
para com nossa Ordem quanto mais, sendo público por sua natureza, ele é proveitoso também ao
2
2. Talvez Dênis Dufresne, coadjutor, nascido em Argenteuil (Seine-et-Oise). Entrou na Congregação da Missão em 1° de novembro de
1642, com a idade de 41 anos.
.
Carta 1040. – Arquivo da Missão, cópia tirada da casa generalícia dos Padres dominicanos, Espistolae R. P. Turchi, IV, p. 91.
162

conhecimento e à glória de Deus, à erudição e à salvação de muitos, como é útil e honroso para o nosso
Instituto. Peço, e nisso está minha esperança, que esta piedosa obra seja sustentada pela mão que a
erigiu e que, uma vez iniciada sob a inspiração de abundante caridade, seja consumada pelas chamas
ardentes da mesma virtude.
Em reconhecimento pelos serviços prestados e por aquele que espero, ofereço a Vossa
Paternidade Reverendíssima os votos que formulo, assim como os de minha Ordem, aqui e por toda
parte, sobretudo na Irlanda, pela conservação de vossa pessoa e de vossa piedosa Companhia. Ela
gozará por toda parte do reconhecimento daquele que ela torna muito grato em todos os lugares,
aguardando que eu possa vos apresentar mais do que votos e provar-vos eficazmente que sou, verdadeira
e sinceramente, de Vossa Paternidade Reverendíssima, o servo humilíssimo e devotadíssimo, em Nosso
Senhor.

Roma, Convento Santa Maria da Minerva, 15 de junho de 1648.

1041. ─ LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Junho de 16481].

Senhor Padre,

O senhor Padre Lambert vos falará sobre o gravíssimo estado de nossa querida Irmã Luísa, de
Saint-Jacques2. Peço humildemente a vossa caridade lhe expliqueis em que consiste a bênção que o Santo
Padre nos concedeu e a maneira de aplicá-la, a fim de que nossa pobre Irmã participe de tão grande
benefício.
Suplico-vos, muito humildemente, permitir-me ir vê-la amanhã, se me for possível, assim como a
madame de Marillac3. Aproveitaria para fazer as três estações da rua Saint-Denis, todas elas próximas
uma da outra. E mais, se vossa caridade quisesse fazer o favor de atender-me no sábado, muito me
alegraria, para que eu possa, no domingo, comungar na intenção do jubileu.
Suplico-vos, muito humildemente, tenhais a bondade de informar-me se é necessário que eu
escreva à Irmã Bárbara4, a respeito da pequena que nos enviou, tendo em vista o que ela me mandou
dizer a seu respeito5. E ainda, o que devo dizer-lhe sobre a mulher e as duas moças de quem nos fala em
sua carta recebida ontem, e que vos estou enviando.
Se o senhor Padre Lambert me fizer a caridade de vos relatar as queixas que recebeu contra mim,
veríeis a necessidade que tenho de que me atendais o pedido, para sábado.
O senhor Capelão da Senhorita6 acaba de dizer-me, verbalmente, que viria até aqui para
comunicar-vos a carta da Irmã Bárbara, a qual ele também me mostraria. Nada lhe falara eu de vossa
parte.

.
Carta 1041. – Ms. Saint-Paul, p. 24.
1
1. A presença em Paris do Padre Lambert aux Couteaux e de Luís Thibault e a menção do jubileu não deixam dúvida alguma sobre o ano da
carta. Por outro lado, a carta precede de muito pouco o dia 24 de junho, data da carta que traz o número 181 na correspondência de Luísa de
Marillac.
2
2. Saint-Jacques de la Boucherie (Cf. Cartas de Luísa de Marillac, 1. 181 bis).
3
3. Jeanne Potier, esposa de Miguel de Marillac, neto do ministro da justiça do mesmo nome.
4
4. Bárbara Angiboust, então em Fontainebleau.
5
5. Essa “pequenina”, como a denomina a Fundadora (Cartas de Luísa de Marillac, 1. 181 bis), veio a Paris. A senhora Le Gras, julgando-a
muito jovem, devolveu-a a Bárbara Angiboust. “Creio que fareis... bem, lhe escrevia em 24 de junho de 1648, em colocá-la em algum
trabalho, conquanto seja junto a pessoas de bem, como, por exemplo, na casa de um lavrador, mesmo que, no início, fosse apenas para tomar
conta das vacas; depois, à medida que for crescendo, poderão mandá-la fazer alguma coisa a mais; depois de ter trabalhado durante três ou
quatro anos, se Deus lhe conceder o desejo de servi-lo entre nós, poderemos recebê-la; será bem melhor que ela própria o deseje, quando
atingir a idade competente, em vez de vir agora, quando ainda não sabe bem o que quer”.
6
6. A Duquesa de Montpensier, filha de Gastão de Orléans, irmão de Luís XIII.
163

1042. ─ A LUÍSA DE MARILLAC

Junho de 1648.

O Padre Lambert foi ver ontem nossa Irmã de Saint-Jacques. Ele a encontrou em grande perigo de
vida, mas igualmente disposta à vontade de Deus.
Não sei ainda o que se deve fazer para ganhar esta espécie de indulgência que nosso Santo Padre
vos concedeu; procurarei me informar a respeito. Essa Irmã lucrou sem dúvida o jubileu, durante o qual
cessam todas as outras indulgências. Se vossa saúde o permitir e dispuserdes de um coche, poderíeis ir vê-
la e fazer vossas estações em dois ou três lugares, no máximo.
Será bom mandar dizer à Irmã Bárbara que vos envie as duas moças, se o Padre Thibault julgá-las
idôneas, e nada lhe falar da jovem que acompanhou a irmã.

1043. ─ A JEAN DEHORGNY

Paris, 25 de junho de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Vossa última carta diz duas coisas: a primeira, que nós confiamos empregos muito consideráveis a
nossos irmãos coadjutores, e a outra que fizemos mal em nos declarar contra as opiniões do tempo.
Dir-vos-ei quanto à primeira, senhor Padre, que agradeço muito humildemente a Nosso Senhor
por vos tornar atento à conduta da Companhia, e vos rogo que continueis a fazê-lo, embora me pareça que
tenhamos razão ao agir como fizemos, a respeito dos dois pontos acima.
Na Companhia, apenas o Irmão Alexandre1 tem em mãos a receita e os lançamentos, o que lhe
confiamos quando enviamos o Padre Gentil a Le Mans; isso, na falta de um padre que pudéssemos aplicar
a tal coisa. Ele desempenhou esta função de tal maneira que há motivo de louvar a Deus pelo que fez. O
Irmão Nicolau2, da Casa de Crécy, de que falais na carta, não tinha o dinheiro em suas mãos, como vos
disseram. O dinheiro é guardado lá em um cofre com duas fechaduras, das quais o Padre Tournisson 3
tinha uma e o Irmão, seu assistente, a outra; e assim se procede em todas as Casas, especialmente
naquelas em que o Padre Portail fez a visita. Isso não impede que coloquemos essa função nas mãos de
um padre, dentro de algum tempo e que prestemos atenção ao que me dizeis.
Penso que o que traz perturbação às Ordens, quando se trata dos Irmãos, resulta do fato de que são
colocados em nível muito inferior. São Francisco manda que os Irmãos leigos tenham voz na eleição dos
guardiães; mas os Capuchinhos e os Franciscanos suprimiram isso, e é o que causa desespero nesses
pobres Irmãos e que os obrigou a se queixarem ao Papa. O Filho de Deus tratava os apóstolos como
amigos, embora ainda não fossem padres; e nós queremos tratar os nossos de servos, embora seja verdade
se dissermos que a maior parte deles tem mais virtude do que a maior parte dos nossos, ao menos mais do
que eu4!
Quanto ao segundo ponto, que concerne à falta que cometemos quando nos declaramos contra as
opiniões do tempo, eis, senhor Padre, as razões que a isso me levaram.

.
Carta 1042. – Ms. Saint-Paul, p. 24. Esta carta responde à precedente, depois da qual São Vicente a escreveu.
.
Carta 1043. – Arquivo de Vaucluse, D. 296, cópia antiga tirada do original.
Pierre Coste acrescenta que vai assinalar em nota as variantes do texto publicado em Mémoires de Trévoux em abril de 1726 (p. 742 e ss.).
Julgamos dispensáveis as referências, em nota, a essas variantes (N. do T.).
1
1. Alexandre Véronne.
2
2. Vários irmãos coadjutores tinham este nome.
3
3. Este nome não se encontra no catálogo do pessoal.
4
4. Todo este período falta nas Mémoires de Trévoux.
164

A primeira é a da minha função no Conselho dos assuntos eclesiásticos, no qual todos se


declararam contra: a Rainha, o senhor Cardeal 5, o senhor Chanceler6 e o senhor Penitenciário 7. Julgai por
aí se eu poderia permanecer neutro. O bom êxito mostrou que era conveniente agir desse modo.
A segunda razão é a do conhecimento que tenho da intenção do autor dessas opiniões novas 8 de
aniquilar o presente estado da Igreja e colocá-la sob seu poder. Disse-me um dia que o desígnio de Deus
era a de arruinar a presente Igreja e que aqueles que se empenhavam em sustentá-la estavam agindo
contra o seu desígnio; ao dizer-lhe que esse era o pretexto assumido de ordinário pelos heresiarcas, como
Calvino, respondeu-me que Calvino não fizera mal em tudo que empreendera, mas que se defendera mal9.
A terceira é que vi que três ou quatro papas1010 tinham condenado as opiniões de Baïus1111, que
Jansênio sustenta, como fizera também a Sorbona, no ano de 1560. A parte mais santa da mesma
faculdade, os mais antigos, se declaram contra essas novas opiniões1212 e nosso Santo Padre condenou a
dos dois cabeças, que estavam querendo defender com má intenção1313.
A quarta razão, que coloco aqui como a última, embora haja muitas outras, é o que diz o Papa
Celestino (Epistola 2 ad Episcopos Galliae: Carta 2 aos Bispos da França), contra alguns padres que
avançavam alguns erros contra a teologia da graça e que esses bispos tinham condenado. O papa, depois
de os ter louvado por se terem oposto à doutrina desses padres, diz textualmente: “Temo não seja
conivência calá-lo; temo que não falem mais alto os que lhes permitem falar de tal maneira; em tais
causas não deixa de haver suspeita no silêncio, porque a verdade se adiantaria se a falsidade causasse
desagrado; com toda razão, com efeito, a causa nos diz respeito se, com o silêncio, favorecemos o
erro1414”. Se me disserem que isso é verdade no que diz respeito aos bispos e não a uma pessoa
particular, respondo que, na verdade, não é apenas um assunto para os bispos, mas também, para aqueles
que veem o mal e que, no que deles depende, não o impedem.
Vejamos agora do que se trata. Dizeis-me que se trata do livro Sobre a comunhão frequente de
Jansênio1515; vós o lestes duas ou três vezes e dizeis que talvez o mau uso feito desse divino sacramento
deu margem à questão.
É verdade, senhor Padre, que há muita gente que abusa deste divino sacramento, como eu,
miserável, mais do que todos os homens do mundo, e vos peço ajudar-me a pedir perdão a Deus por isso;
mas a leitura do livro, em vez de estimular a estima das pessoas à comunhão frequente, na verdade dela as
afasta. Não se vê mais a procura ardente dos sacramentos que antes se via, nem mesmo na Páscoa. Vários
párocos de Paris se queixam de que muito menos pessoas comungam do que nos anos passados. São
Sulpício contabiliza três mil a menos; o senhor Pároco de Saint-Nicolas-du-Chadonnet, tendo visitado as
famílias da paróquia depois das festas de Páscoa, pessoalmente ou por outros, nos disse ultimamente que
encontrou 1500, entre os seus paroquianos, que não comungaram; assim também alguns outros. Quase
não se veem mais pessoas que se aproximem da comunhão nos primeiros domingos do mês e nas festas,
ou muito poucas, e isso mais ainda nas comunidades religiosas, embora menos entre os Jesuítas. E essa
5
5. Cardeal Mazarino.
6
6. Pierre Séguier.
7
7. Jacques Charton.
8
8. Jean du Verger de Hauranne, Abade de Saint-Cyran.
9
9. Abelly nos conservou o relato dessa conversa.
10
10. Pio V, Gregório XIII e Urbano VIII.
11
11. Michel Baïus nascera em Melin (Bélgica) em 1513. Nomeado professor de Escritura Sagrada para a Universidade de Louvaina, depois
Chanceler desta Instituição, soube tão bem fazer-se apreciado por seus colegas, que esses o delegaram para o Concílio de Trento. Foi ainda
sobre ele que lançaram os olhos para cumprir as funções de inquisidor geral. Suas opiniões estranhas sobre o estado da natureza redimida, a
justificação, a eficácia dos sacramentos e o mérito das boas obras, opiniões que ele espalhava em seus ensinamentos e escritos, inquietaram
vários doutores de Louvaina e suscitaram ataques contra ele. Dezoito de suas proposições foram condenadas pela faculdade de Paris (27 de
junho de 1560), setenta e seis por Pio V (1° de outubro de 1567, 13 de maio de 1569). Gregório XIII teve de intervir de novo, em 29 de
janeiro de 1579. Baïus morreu em 19 de setembro de 1589, depois de ter retratado os seus erros de viva voz e por escrito. Suas Oeuvres
(Obras), impressas em Colônia, em 1696, pelos jansenistas Quesnel e Gerberon, foram colocadas no Index em 8 de maio de 1697.
12
12. O jansenismo tinha adeptos na Sorbona, sobretudo entre os jovens doutores (ver Rapin, Mémoires, t. I, p. 43-46).
13
13. A condenação de Inocêncio X é de 24 de janeiro de 1647. (Trata-se da doutrina dos dois cabeças da Igreja, Pedro e Paulo – N. do T.).
14
14. Patrologiae Cursus completus, ed. Migne, Paris, 1857-1864, 221 vol. in-4º, t. IV, col. 529. Migne preferiu a variante foveamus
errorem.
15
15. Raramente um livro causou tanto tumulto e teve maior êxito do que o livro Sobre a comunhão frequente, composto por Antônio
Arnauld, segundo o espírito de Jansênio, publicado em Paris em 1643 e já atingindo a sua 6ª edição, em 1648. O Padre Dehorgny o tinha
recebido das mãos de seu amigo, o jansenista Bourgeois, doutor em teologia, que viera a Roma para impedir a condenação do livro. Ele o
tinha lido, ficara entusiasmado por ele e lhe considerava os princípios como excelentes (Hermant, Mémoires... sur l’histoire ecclésiastique du
XVII siècle, 1630-1663, ed. Gazier, Paris, 1905-1908, 6 vol. in-8º, t. I, p. 389).
165

foi a pretensão que levou o falecido Padre de Saint-Cyran a desacreditar os Jesuítas. O senhor de
Chavigny dizia, dias antes a um íntimo amigo, que esse padre lhe tinha dito que ele e Jansênio tinham
tramado sua intenção de desacreditar essa santa Ordem a respeito da doutrina e da administração dos
sacramentos. Eu mesmo ouvi dele quase todos os dias uma quantidade de discursos nesse sentido.
Desde que o Padre Arnauld1616, que deu seu nome a esse livro, viu a oposição que ele encontrou
de diversas partes sobre o assunto da penitência pública e sobre a que ele queria introduzir antes da
comunhão, explicou-se sobre isso falando de absolvição simplesmente declaratória; mas, seja como for,
nele permanecem ainda erros, pelo que nos disse ultimamente o senhor Padre Grão-Mestre de
Navarra1717, que é um dos homens mais sábios do século, como também o senhor Padre
Penitenciário1818, os senhores Padres Cornet e Coqueret, que estiveram reunidos aqui para tratar dessas
questões. Todos disseram que a declaração é capciosa e contém uma quantidade de coisas que não têm
maior valor do que aquilo que ele diz no primeiro livro. O que ele diz: que a Igreja, tendo, no início,
praticado a penitência pública, antes da absolvição, tinha sempre a tendência para restabelecer este uso.
Não fosse assim, não seria a coluna da verdade, sempre igual a si mesma, mas uma sinagoga de erros.
Não estaria isto fora de rumo, senhor Padre? A Igreja, que nunca muda nos assuntos de fé, não está
impedida de o fazer nas questões disciplinares. O próprio Deus, que é imutável em si mesmo, não mudou
seus procedimentos em relação aos homens? Nosso Senhor, seu Filho, não mudou algumas vezes os seus
e os apóstolos os deles? Com que intenção esse homem diz, portanto, que a Igreja incorreria em erro, se
ela não mantivesse a tendência de restabelecer estas espécies de penitência que praticava no passado?
Seria isso ortodoxo?
Quanto a Jansênio, importa considerá-lo ou como alguém que sustenta as opiniões de Baïus, tantas
vezes condenadas pelos Papas e pela Sorbona, como eu o disse, ou como alguém que sustenta outras
doutrinas de que ele trata a esse respeito. No primeiro caso, não é obrigação nossa ater-nos à censura que
os Papas e essa douta instituição fizeram a respeito daquelas opiniões e de nos declarar contra elas?
Quanto ao resto do livro, o Papa lhe proíbe a leitura. Não seria dever do Conselho para os assuntos
eclesiásticos aconselhar a Rainha a se empenhar no sentido de que fosse executado o que o Papa Urbano
VIII ordenou e professar-se abertamente contrário às opiniões censuradas de Baïus e às tais novas
opiniões desse doutor, que sustenta ousadamente aquelas que a Igreja ainda não definiu com relação à
teologia da graça?
Dizeis-me em vossa carta que Jansênio leu dez vezes todas as obras de Santo Agostinho e trinta
vezes os tratados da graça, e que não parece conveniente que os missionários se imiscuam em emitir juízo
sobre as opiniões desse grande homem.
Respondo a isso, senhor Padre, que, de ordinário, os que pretendem estabelecer doutrinas novas
são homens muito sábios e estudam com grande assiduidade e aplicação os autores dos quais tencionam
servir-se. É preciso confessar que esse prelado era muito sábio e que, com a intenção, de que falei, de
desacreditar os Jesuítas, pôde ler Santo Agostinho o número de vezes de que falais. Não impede isto,
porém, que ele tenha incidido em erro e nós não estaríamos escusados por adotar as suas opiniões,
contrárias às censuras feitas à sua doutrina. Os padres têm obrigação de não aderir e de se colocarem
contra a doutrina de Calvino e de outros heresiarcas, embora jamais tenham lido os autores sobre os quais
eles se basearam e mesmo sem lhes ter lido os livros.
Dizeis-me, além disso, que as opiniões que chamamos de antigas são modernas, que há apenas
cerca de setenta anos que Molina1919 inventou as opiniões que chamam de antigas, relativas à disputa em

16
16. Antônio Arnauld, nascido em Paris em 6 de fevereiro de 1612, ordenado padre em 1641, admitido na sociedade da Sorbona em 1643,
tornou-se, com a morte de Saint-Cyran, o chefe do partido jansenista, do qual já era o apóstolo e o teólogo. Sua primeira obra de controvérsia
levantou muita conversa em torno dele; era o livro Sobre a comunhão frequente. Escreveu, depois, a Grammaire générale, la Logique ou
l’Art de penser e tão grande número de outros tratados que, juntos às suas cartas, formam uma coleção de quarenta e cinco volumes in-4º.
Morreu no exílio, em Bruxelas, em 8 de agosto de 1694. Seus irmãos e irmãs, todos eles foram ardorosos jansenistas; alguns mesmo, como
Arnauld d’Andilly, Henri Arnauld, Bispo de Angers, Catherine Arnauld, mãe de Le Maistre de Sacy, a Madre Angélica e a Madre Agnès
desempenharam uma função importante no partido (Cf. Pierre Varin, La vérité sur les Arnauld, Paris, 1847, 2 vol. in-8º).
17
17. Jacques Péreyret.
18
18. Jacques Charton.
19
19. Luís Molina, célebre jesuíta espanhol, nascido em 1533, falecido em Madri em 1600, conhecido sobretudo por seu livro De concordia
gratiae et liberi arbitrii (Concordância entre a graça e o livre arbítrio), que desenvolve sua teoria da “ciência média”. Esta obra, atacada
desde a sua aparição, deu azo a violentas polêmicas entre jesuítas e dominicanos. A questão foi levada ao tribunal de Clemente VIII, que
instituiu, para julgá-la, a Congregação de Auxiliis. Depois de numerosas discussões, sem resultado, Paulo V deixou livre o ensino das
doutrinas contestadas e proibiu as duas escolas, sob ameaça de penas graves, de se censurarem mutuamente.
166

tela. Declaro-vos, senhor Padre, que Molina é autor da ciência chamada média 2020, que não é, falando
com precisão, senão o meio pelo qual se procura entender como acontece e de onde vem o fato de que
duas pessoas, dotadas de igual espírito, com as mesmas disposições e com semelhante grau de graça para
cumprir as obras de sua salvação, e que, no entanto, uma o faz e a outra não o faz, uma se salva e a outra
se perde. Mas qual! senhor Padre, não se trata disso, que não é artigo de fé. A doutrina que ele combate, a
saber, que Jesus Cristo morreu por todo o mundo é nova? Não é a doutrina de São Paulo e de São João? A
opinião contrária não foi condenada no Concílio de Mayence e em vários outros, contra
Godeschalcus2121? Não diz São Leão nas leituras do Natal, que Nosso Senhor nasceu pro liberandis
hominibus (pela salvação dos homens)? E a maior parte dos Santos Padres não mantém esta linguagem?
O Concílio de Trento, na 6ª sessão, De Justificatione (Tratado da Justificação), capítulo 2º, não aduz as
palavras de São João sobre a matéria: Hunc proposuit Deus propitiationem per fidem in sanguine ipsius
pro peccatis nostris, non solum autem pro nostris, sed etiam pro totius mundi? 2222 (Deus o propôs como
propiciação pelos nossos pecados, mediante a fé em seu próprio sangue, e não somente pelos nossos
pecados, mas pelos de todo o mundo?). E no 3º capítulo: Verum est ille pro omnibus mortuus est (É
verdade que ele morreu por todos); e diz, em seguida, que embora seja assim, non omnes tamen mortis
ejus beneficium recipiunt, sed ii dumtaxat quibus meritum passionis ejus communicatur (nem todos,
contudo, recebem o benefício de sua morte, mas somente aqueles aos quais é comunicado o mérito de sua
Paixão). Depois de tudo isso, senhor Padre, diríamos que é nova esta doutrina? Diremos ainda que é nova
a que ele combate, a saber, a possibilidade da observância dos mandamentos de Deus, em contradição
com o cânon 18 do mesmo Concílio e da mesma sessão, que diz que, si quis dixerit Dei praecepta homini
etiam justificato et sub gratia constituto esse ad observandum impossibilia, anathema sit (se alguém
disser que os preceitos de Deus são impossíveis de observar, mesmo por um homem justificado e
beneficiado pela graça, seja anátema).
A afirmação que fazeis, senhor Padre, de que nos importa pouco saber se há graças suficientes ou
se são todas eficazes, seria nova? Não estaria ela contida no segundo Concílio de Orange, capítulo 25?
Eis, senhor Padre, as palavras desse Concílio, no qual vereis, se não exatamente, as palavras graça
suficiente, ao menos o equivalente quanto ao sentido: Hoc etiam secundum fidem catholicam credimus
quod, accepta per baptismum gratia, omnes baptizati, Christo auxiliante et cooperante, quae ad salutem
pertinent, possint et debeant, si fideliter laborare voluerint, adimplere (Cremos também em nossa fé
católica que, pela graça recebida no batismo, todos os batizados, com o auxílio e a cooperação de Cristo,
podem e devem cumprir o que é necessário para a salvação, se quiserem agir com fidelidade).
Quanto ao que dizeis que pouco importa saber isso, suplico-vos, senhor Padre, permitir que vos
diga que me parece de grande importância que todos os cristãos saibam e creiam que Deus é tão bom, que
todos podem, com a graça de Jesus Cristo, operar a própria salvação, que ele lhes concede os meios, por
Jesus Cristo, e que isso manifesta e engrandece muito a infinita bondade de Deus.
Não se pode também dizer que é nova a opinião da Igreja que acredita que nem todas as graças são
eficazes, já que a pessoa humana as pode recusar, capítulo 4, De Justificatione.
Dizeis que Clemente VIII e Paulo V proibiram que se discutam assuntos relativos à graça 2323.
Responder-vos-ei, senhor Padre, que isso se entende em relação às questões não definidas, como são as
que acabo de dizer. E por que então em relação a outros assuntos não determinados pela Igreja, Jansênio a
ataca? E nesse caso, não é direito natural defender a Igreja e apoiar-lhe as censuras fulminadas contra tais
ataques?
Dizeis que são questões de escola. De algumas, é verdade; e embora de outras o sejam, importaria
por isso calar-se e deixar que se altere o fundo das verdades com tais subtilezas? O pobre povo não é
obrigado a crer e, por conseguinte, a ser instruído sobre as questões da Trindade e do Santíssimo
Sacramento, que são tão subtis?
20
20. A ciência média, assim chamada porque mantém de algum modo o meio termo entre a ciência divina do possível e dos fatos que
devem, com absoluta certeza, acontecer, é o conhecimento pelo qual Deus sabe, de modo infalível, antes de qualquer decreto absoluto de sua
vontade, o que o homem fará, qualquer que seja a condição e o socorro da graça.
21
21. Godescalc, Gotescalc ou Fulgêncio, sábio beneditino, nascido na Alemanha em 806, ensinou doutrinas heterodoxas sobre a
predestinação. Condenado por vários Concílios ele foi degradado, chicoteado publicamente e encerrado na abadia de Hautervilliers. Morreu
na prisão em 868 sem ter renunciado a suas idéias.
22
22. 1 Jo 2, 2.
23
23. Para pôr fim às discussões que perturbavam duas célebres Ordens da Igreja, depois da aparição do livro de Molina, Clemente VIII
avocou a si a questão e proibiu às duas partes a discussão dos assuntos controvertidos, até que desse a conhecer a sua decisão.
167

Eis, senhor Padre, o que me vem ao espírito no sentido de vos fazer ver os motivos que tivemos
para as nossas declarações, nessas circunstâncias, contra essas novas opiniões. Contra as referidas
declarações, eu veria apenas duas reservas. A primeira seria o temor de que, pensando deter a torrente das
novas opiniões, acabaríamos inflamando mais os espíritos. A isto respondo que, se assim fosse, seria
necessário abster-nos de nos opor às heresias, àqueles que nos quiserem tirar a vida ou os bens, e que o
pastor faria mal ao gritar contra o lobo, ao vê-lo prestes a entrar no redil. A segunda reserva seria a da
prudência. Não seria esta puramente humana, fundada apenas em: o que vão dizer? Estaríamos fazendo
inimigos! Ó Jesus! senhor Padre, jamais aconteça que os missionários deixem de defender os interesses
de Deus e da Igreja por esses mesquinhos e miseráveis motivos, que arruínam os interesses de Deus e de
sua Igreja e enchem os infernos de almas.
Sim, mas, dir-me-eis, seria necessário que os missionários fiquem pregando contra as opiniões do
tempo e do mundo, que se entretenham com isso, que entrem em disputas, ataquem, e que defendam aos
gritos as antigas opiniões? Ó Jesus, não se trata disso! Eis como procedemos: jamais discutimos sobre tais
matérias, jamais pregamos sobre elas, jamais delas falamos nas comunidades, se não nos tocam no
assunto. Mas, se isso acontece, procuramos abordar a questão com a máxima circunspecção possível, com
exceção do Padre Gilles, que se deixa levar um pouco por seu ardor, ao que tratarei de remediar, com a
graça de Deus2424.
Pois então! Dir-me-eis, estais proibindo que discutamos sobre essas matérias? Respondo que sim e
que aqui não discutimos de modo algum sobre elas.
Mas como! desejais que não se fale disso na Missão de Roma, nem alhures? É exatamente a esse
respeito que suplico aos oficiais se mantenham firmes e apliquem uma penitência aos que o fizerem, a
não ser no caso de que falei.
E quanto ao que me dizeis, senhor Padre, que é preciso deixar cada um da Companhia crer, a
respeito dessas matérias, o que lhe aprouver, ó Jesus! senhor Padre, não convém que se sustentem
opiniões conflitantes no interior da Companhia. Importa sejamos sempre unius labii (de um só discurso).
De outra forma, nós nos dilaceraríamos uns aos outros na mesma Companhia.
Como, porém, será possível submeter-nos à opinião de um superior? Respondo que não se trata de
submeter-se ao superior, mas a Deus e ao parecer dos Papas, dos Concílios, dos Santos. E se alguém não
estivesse disposto a obedecer, seria melhor que se retirasse ou que a Companhia o solicitasse a fazê-lo.
Muitas Companhias da Igreja de Deus nos dão o exemplo. Os Carmelitas descalços, no capítulo que
realizaram no ano passado, ordenaram que seus professores de teologia ensinassem as opiniões antigas da
Igreja e se posicionassem contra as novas. Todos sabem que os reverendos Padres Jesuítas agem do
mesmo modo. A Congregação de Santa Genoveva ordena a seus doutores que sustentem as opiniões de
Santo Agostinho. Nós também pretendemos fazê-lo, explicando, porém, Santo Agostinho pelo Concílio
de Trento, e não o Concílio por Santo Agostinho, porque o primeiro é infalível e o segundo não é. Se
disserem que alguns Papas mandaram que se seguisse Santo Agostinho nas questões da graça, isto se
entende, no máximo, a respeito das matérias disputadas e resolvidas naquela ocasião 2525; mas, como
acontecem novidades de tempos em tempos, importa ater-se, quanto a estas, à determinação de um
Concílio2626, que explicou tudo segundo o verdadeiro sentido de Santo Agostinho, do qual tinha melhor
conhecimento do que Jansênio e seus sectários2727.
Eis, senhor Padre, a resposta a vossa carta, que não mostrei a quem quer que seja, nem a mostrarei
jamais a alguém. Digo-vos mais, que dela não falei a ninguém e não pedi ajuda de ninguém neste mundo,
no que diz respeito ao que vos digo. Vós o vereis com clareza pelo meu estilo humilde e por minha
ignorância, mais do que evidente. Se há alguma coisa que pareça acima de minhas pobres medidas,

24
24. O Padre Gilles ensinava teologia em São Lázaro e ministrava palestras aos ordinandos. Depois de várias advertências, São Vicente,
vendo que não estava conseguindo corrigi-lo de seu zelo imoderado contra as novas opiniões, o afastou de São Lázaro.
25
25. Em uma carta a São Cesário, Bispo de Arles, o Papa Bonifácio II, coloca Santo Agostinho no número dos Padres que expuseram a
verdadeira doutrina da graça: “Cum de hac re multi Patres, et prae caeteris beatae recordationis Augustinus, episcopus, sed et majores
nostri apostolicae sedis antistites, ita ratione probentur disseruisse latíssima, ut nulli ulterius deberet esse ambiguum, fidem quoque nobis
ipsam venire de gratia, supersedendum duximus responsione multiplici” (Migne, Patrologiae cursus completus, t. LXV, col. 31).
26
26. O Concílio de Trento.
27
27. Entre as proposições condenadas pelo Santo Ofício, em 7 de dezembro de 1690, encontramos esta (prop. 30): Ubi quis invenerit
doctrinam in Augustino clare fundatam, illam absolute potest tenere et docere, nom respiciendo ad ullam Pontificis bullam. (Quando alguém
encontrar uma doutrina claramente baseada em Agostinho, pode, em absoluto, adotá-la e ensiná-la, independentemente de qualquer bula de
algum do Papa.
168

senhor Padre, confesso que fiz alguns pequenos estudos relativos a essas questões e que isto é assunto
ordinário de minhas pobres orações2828.
Suplico-vos, senhor Padre, comunicar esta carta ao senhor Padre Alméras 2929 e a quem julgardes
conveniente, entre os membros da comunidade, a fim de que vejam as razões que tive para entrar nos
sentimentos antigos da Igreja e me declarar contra as novidades. Que todos nós peçamos a Deus e
façamos tudo que de nós depende para sermos cor unum et anima una3030, nesta questão como em tudo
mais. Viverei nesta esperança e sentirei uma aflição que não vos poderia exprimir, se alguém, deixando as
fontes vivas das verdades da Igreja, cavasse para si cisternas de opiniões novas. Sobre o perigo destas
últimas, não há quase ninguém que tenha sido melhor informado pelo autor do que eu, que sou, senhor
Padre, no amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Ouso dizer-vos, senhor Padre, que Monsenhor Féret, sentindo-se embaraçado nas malhas dessas
novas opiniões, disse ao senhor Pároco de Saint-Josse3131 que o que delas o tinha afastado fora a firmeza
que tinha visto nesse miserável pecador contra elas, em duas ou três conferências que fizemos sobre o
assunto. Julgaram, de início, que o Pároco de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, logo que voltou de Alet, era
partidário dessas opiniões. De tal modo, porém, estava ele longe desses sentimentos que propôs ao senhor
Pároco de Saint-Josse ser necessário criar uma espécie de grupo secreto para defender as verdades
antigas. Suplico-vos guardar segredo sobre isso.
Não tive tempo para reler minha carta, e não ousei mandar transcrevê-la. Tereis dificuldade para
lê-la. Perdoai-me.

Destinatário: Ao senhor Padre Dehorgny, padre da Missão em Roma.

1044. ─ CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Cabo Verde1, ilha São Vicente, [25 de junho de 16482].

Senhor Padre,

Vossa santa bênção, por favor!


Eis-nos em terra firme, por quatro ou cinco dias, para abastecimento de água. Nossa partida de
La Rochelle aconteceu no dia da Ascensão, no qual se levantou âncora. Estamos com boa saúde, graças
a Deus, depois de um pouco de enjoo ou vômito, no início. Tivemos a consolação de constatar a piedade
do pessoal de nosso navio, que cumpriu seu dever para lucrar o jubileu; soubera que ele tinha sido
concedido por Sua Santidade e fizemos a abertura desde Pentecostes até a festa do Corpo de Deus.
Chegamos a esta ilha na véspera do dia de São João. Nela celebramos a missa todos os dias, como o
fizemos também no navio, na medida em que o tempo no-lo permitiu.
Encontramos aqui portugueses, muito bons cristãos, embora escravos, enviados para aqui, para
caçarem cabritos. Esperamos atendê-los em confissão com o auxílio de um intérprete e distribuir-lhes
amanhã a santa comunhão, para poderem participar do jubileu; assim o fizemos ontem e hoje para com

28
28. São Vicente escreveu sobre a graça um trabalho muito substancial, que publicaremos em seu devido lugar.
29
29. Conforme o que veremos mais adiante (C. 1068), é bastante provável que Jean Dehorgny preferiu não comunicar esta carta a seu
superior.
30
30. At 4, 32 (um só coração e uma só alma).
31
31. Luís Abelly, o biógrafo de São Vicente.
.
Carta 1044. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII.
1
1. Ilha da parte ocidental do arquipélago português do Cabo Verde.
2
2. A carta foi certamente escrita entre o dia 23 e o dia 29 de junho de 1648. A data de 25 parece resultar da comparação do que se disse aqui
com o conteúdo da carta 1179.
169

cerca de doze deles, de um navio procedente de Dieppe, aportado na mesma ilha em busca de água. O
que nos admirou nesses portugueses é que são bons músicos e que cantaram os salmos com muita
afinação.
Já estamos prestes a voltar de novo ao mar para ainda cerca de quatro meses. Rogai a Nosso
Senhor nos faça chegar ao fim a que nos destinou sua sabedoria. Esperamos obter muitos frutos naquele
país, com a graça de Deus, vendo especialmente como o senhor nosso Comendador3 (que vos manda aqui
suas muito humildes recomendações) nos testemunha um grande desejo de contribuir para isso.
Escrever-vos-emos daquele país; e se quiserdes escrever e enviar alguma coisa para esses senhores,
quando da partida de algum navio...
Celebramos a santa missa, ordinariamente, em particular, em vossa intenção, na intenção da
Companhia em geral e na intenção do Padre Lambert e outros de nosso conhecimento, sem esquecer o
Seminário, para que o aumente em número e em virtude e promova o crescimento de plantas que venham
povoar a ilha São Lourenço4 e outros lugares; eles têm tão grande necessidade de operários.
Peço-vos entrar em contato, entre outros, se for possível, com um tal senhor Rozée, comerciante
de Rouen, morador na rua dos Ursos, que tem a direção dos franceses das ilhas de Senegal. Dizem que
há lá inúmeras almas a conquistar para Jesus Cristo. Acontece o mesmo, também, nas ilhas Cabo Verde
e Gâmbia, onde não há padre, a não ser talvez um capelão do navio que estão enviando para lá. Tudo
isso depende do senhor Rozée, que dizem tratar-se de pessoa virtuosa e bom cristão. O capitão de nosso
navio diz que há lá tanta garantia e liberdade para pregar o Evangelho como em Paris. Todo esse pobre
povo é maometano; todos são boa gente e dóceis. Queira Deus prover a essas carências!
Adeus, senhor Padre. Estamos aprendendo a língua de Madagascar. Recomendai-nos de novo às
preces de toda a Companhia e especialmente ao Padre Lambert e ao Padre Gautier, aos quais eu
gostaria de escrever, se tiver oportunidade.
O portador da presente é um capitão de Dieppe.
Sou, de todo meu coração, no sagrado amor de Nosso Senhor e de sua Santa Mãe, senhor Padre e
honorabilíssimo Pai, vosso muito humilde e muito obediente filho,

C. NACQUART,
indigno padre da Missão da ilha São Lourenço.

1045. ─ A JEAN MARTIN, PADRE DA MISSÃO, EM GÊNOVA

Paris, 26 de junho de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta do dia primeiro deste mês, juntamente com as do Padre Blatiron.
Recomendamos hoje com muita insistência às preces da Companhia o senhor Cardeal 1. Praza a Deus
trazer a paz para a sua diocese e, para o bem da mesma diocese, conservá-la por longo tempo. Sabe Deus
que não vos esquecemos, nem a vós nem aos nossos caros coirmãos, e que continuaremos com toda
fidelidade a suplicar-lhe a abundância de suas bênçãos sobre cada um de vós em particular.
Creio, como vós, senhor Padre, que será útil voltar aos lugares onde foi pregada a missão, fazer
ali, de tempos a tempos, uma pregação, e restabelecer a Confraria da Caridade, caso esteja em
decadência; mas é preciso combinar isso com antecedência e não abandonar alguma coisa de melhor.
Rendo graças a Deus por ter devolvido a saúde ao signor Baliano2; alegrei-me muito com isso e
peço a Nosso Senhor o conserve, para sua glória e para nossa consolação. A minha consolação será
3
3. O senhor de Flacourt.
4
4. Antigo nome da ilha de Madagascar.
.
Carta 1045. – C. as. ─ Dossiê de Turim, original.
1
1. O Cardeal Durazzo, Arcebispo de Gênova.
170

sempre a de vos testemunhar que sou, no amor do mesmo senhor, senhor Padre, vosso muito humilde
servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Martin.

1046. ─ À PROPAGANDA

[16481].

Eminentíssimos e reverendíssimos senhores,

As três partes da Arábia conhecidas pelo nome de Arábia Feliz, Arábia Pétrea e Arábia deserta, não tendo
sido ainda confiadas a nenhuma Ordem religiosa e a nenhum padre secular, para serem evangelizadas e
reconduzidas à fé cristã, Vicente de Paulo, superior da Congregação da Missão, se oferece no sentido de enviar
para lá vários de seus padres. Para este fim, suplica vossas eminências se dignem conceder-lhe essa Missão, que ele
deverá dirigir em seu próprio nome e que ele vai prover, de tempos a tempos, das coisas necessárias. Suplica lhe
concedam as faculdades habituais e também o poder de estabelecer um vice-prefeito, que teria sua residência na
entrada de um porto, nos confins da Arábia Feliz, onde os missionários poderiam desembarcar, levados por navios
holandeses ou ingleses. Seriam seis para começar. A lista deles, redigida pelo suplicante, seria entregue ao Núncio
da França, que daria testemunho da aptidão dos candidatos propostos e a apresentaria à sagrada Congregação, a fim
de que ela pudesse dar aos missionários os poderes necessários e escolhesse, entre eles, o mais idôneo 2 para exercer
as funções de vice-prefeito.

1047. ─ A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

Julho de 1648.

Nossa pobre natureza não é miserável? Todo mundo em Gênova está contente com o nosso Irmão
[Sebastião1]. Só ele mesmo não se suporta a si próprio; está querendo sair para se satisfazer, embora veja
muito bem que não poderá fazê-lo sem desagradar e incomodar aqueles para os quais poderia exercer
contínua caridade, como fez até o presente. Pode ser, contudo, que Deus tire sua glória de tal falta; é o
que lhe peço de todo meu coração, etc.
A verdade, senhor Padre, é que só poderão fazer o bem para os pobres e os cativos nos países
estrangeiros os que fazem com prazer aqui as mesmas coisas, junto aos doentes e aos afligidos. Louvo a
Deus por submeterdes o Irmão Sebastião à prova, na ânsia que experimenta de ir para a Barbária.

2
2. Pedro Paulo Baliano, nascido em Gênova em 3 de fevereiro de 1628. Entrou na Congregação da Missão, em Gênova, em 1° de novembro
de 1649 e foi admitido aos votos em 8 de setembro de 1652. Talvez se trate aqui de seu pai ou de um parente.
.
Carta 1046. – Súplica não assinada. ─ Arquivo da Propaganda, original (O original está em italiano. Fizemos a tradução a partir da tradução
francesa de Pierre Coste, suprimindo o original em italiano ─ N. do T.).
1
1. Ver carta 1068, p. 380.
2
2. O projeto não teve êxito.
.
Carta 1047. – Reg. 2, p. 199.
1
1. O Irmão Sebastião Nodo.
171

1048. – JEAN LE VACHER, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Túnis, 1648.

Entre os escravos capturados pelos corsários e levados para Túnis se encontravam dois rapazes, com cerca
de quinze anos. Um era francês e o outro, inglês. Como as casas dos seus patrões ficavam muito próximas, eles
tinham facilidade de se encontrarem frequentemente. Amavam-se como dois irmãos. O inglês, convertido do
luteranismo pelo francês, fora instruído por Jean Le Vacher. Apegou-se tão fortemente a sua nova fé que declarava
aos comerciantes ingleses hereges vindos para resgatar os escravos do seu país e da sua religião que preferia a
escravidão à apostasia.
Os dois amigos continuaram a se frequentar e a se estimular mutuamente em suas boas disposições.
Aconteceu mais de uma vez que seus patrões, depois de tentarem inutilmente arrastá-los para o maometismo, os
brutalizaram a ponto de os fazer cair por terra desfalecidos.
O inglês veio um dia à casa do francês no momento em que este jazia desacordado. Chamou por ele. “Sou
cristão para a vida toda”, respondeu o francês, ao recuperar os sentidos. O jovem visitante se inclinou para beijar os
pés ensanguentados do seu amigo. Entrementes, alguns turcos entraram. Frente às suas indagações, ele respondeu:
“Honro os membros que acabam de sofrer por Jesus Cristo meu Salvador e meu Deus”. Os infiéis, furiosos, o
expulsaram com injúrias.
Algum tempo depois, o francês encontrou, por sua vez, o inglês estendido sobre uma esteira de junco, com
o corpo ferido pelos golpes que lhe acabava de infligir o patrão. Ao lado, estavam conversando alguns turcos e o
próprio patrão. O francês se aproximou: “A quem tens maior amor, a Jesus Cristo ou a Maomé?”. O inglês
respondeu: “Jesus Cristo. Sou cristão e quero morrer cristão”. A estas palavras, os turcos se tomaram de violenta
cólera. Um deles, que trazia duas facas ao seu lado fez menção de querer cortar as orelhas do francês. O rapazinho
pegou ele próprio uma das facas e, sem hesitar, cortou uma de suas orelhas. Para impedi-lo de ir mais longe,
apressaram-se em desarmá-lo.
Desde esse dia, os turcos cessaram suas importunações; viram que era uma tentativa votada ao fracasso.
Os dois jovens mártires morreram no ano seguinte, levados por uma doença contagiosa.

1049.─ A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM SAINT-MÉEN

11 de julho de 1648.

Senhor Padre, a graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Vai aqui num bilhete a resposta da senhora Le Gras e a minha com relação às jovens de
Moncontour1 e às de Saint-Méen, que querem dar-se a Deus na Companhia das Filhas da Caridade.
É indizível os exemplos edificantes que as três falecidas deram durante o pouco tempo em que
elas viveram, desde a sua chegada; fizemos algumas conferências a respeito, e houve relatos admiráveis
sobre essas caras Irmãs.
A vida e a morte delas nos deixaram marcas e sentimentos de admiração de sua santificação.

1050. ─ AOS ALMOTACÉIS DA CIDADE DE PARIS


(A ser transferida para o Tomo XIII dos documentos ou traduzida posteriormente)
[Cerca de 14 de julho de 1648].

1051. ─ A UM CLÉRIGO DA MISSÃO

.
Carta 1048. – Abelly, op. cit., 1. II, cap, 1, sec VII, § XII, 1ª ed., p. 135.
.
Carta 1049. – Coleção de cartas seletas, exemplar da Casa Mãe das Filhas da Caridade.
1
1. Hoje, centro administrativo de cantão nas Côtes-du-Nord. Mathurine Guérin era do número dessas Irmãs; só ela perseverou.
.
Carta 1051. – Reg. 2, p. 296.
172

15 de julho de 1648.

Quero suspender meu juízo sobre vossa carta, enquanto o senhor Padre... não me disser uma
palavra a respeito dela. Tenho dificuldade em crer que o seu procedimento seja tal como descreveis, ou
que a palavra que vos foi tão sensível tenha saído dele, sem motivo muito sério. Tenho conhecimento de
que o modo de agir dele é bastante suave, graças a Deus. Ninguém ainda se queixou dele comigo; e julgo
vossa queixa tanto mais estranha quanto a mansidão dele foi considerável em vosso caso, não somente
por suportar vossas faltas, mas por ocultá-las aos outros, como quis fazer para comigo mesmo, quando me
escrevestes uma carta menos ponderada do que era preciso; com efeito, ele me escreveu então uma outra
para vos desculpar.
Suponhamos, porém, que ele se tenha excedido, como vos parece. Seria preciso alarmar-se por tão
pouca coisa? De quem suportaríeis as imperfeições e que injúrias seríeis capaz de sofrer, se uma palavra
impensada de vosso próprio superior vos é insuportável? Talvez ele a tenha dito para vos experimentar; e
o teste, no caso, não lhe saiu mal, já que vossa indisposição apareceu logo, de várias maneiras: 1º quereis
relevar vossa falta comparando-a com a de vosso irmão; 2º queixais-vos de que a aula para os meninos é
sobrecarga pesada para vós; 3º estais pedindo para mudar de casa; 4º mostrais-vos tomado de amor
próprio, e presumis que toda comunidade dará testemunho de que jamais observou em vós algo que
mereça a correção que vos foi feita. Todas essas coisas estão bem longe dos sentimentos do pobre
publicano e dos que deve ter um bom missionário; entretanto, estais me escrevendo, dizeis, para
conservar vossa vocação. Deus queira, meu caro irmão, que tenhais esta intenção! Mas não é bem este o
caminho. A prática da paciência, da humildade e da exatidão em obedecer ao regulamento é a marca
autêntica de nossa perseverança. Veremos se, doravante, trabalhareis na aquisição dessas virtudes e se
dareis a vosso superior maior contentamento do que no passado. Asseguro-vos, meu caro Irmão, que será
isto para mim uma das consolações mais sensíveis. Pedirei a Deus que vos dê essa graça, pois vossa alma
é, para mim, mais cara do que vos posso exprimir.

1052. ─ ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 15 de julho de 1648.

Senhor Padre, pela presente carta, manifesto-vos muito humildes agradecimentos, em razão da
afeição com que nos prestais vossa assistência, na questão que nossos religiosos de Chancelade, e nós,
temos contra os de Santa Genoveva, à qual vos suplico dar continuidade. Aceitai, agora, vos diga que,
longe de ter tido jamais o pensamento de não querer que recebais em vossa Congregação eclesiásticos
de minha diocese, pelo contrário, sempre julguei que era justo e necessário que os recebêsseis: justo,
porque vossa Congregação lhe presta muitos favores; necessário, porque os vossos missionários, que
dirigem nosso seminário, não poderão pregar as missões de modo proveitoso se não houver algum de
minha diocese em companhia deles, por causa da língua da região, de que precisam utilizar-se para
serem úteis e que eles não conhecem. Podeis lembrar-vos de que entre as razões que vos disse, pelas
quais deveríeis contar com nosso seminário, estava a de que poderíeis tirar dele, como é verdade, muitos
efetivos para a pregação das missões em toda a nossa região e na do Languedoc, cuja língua é quase
igual. É verdade que julgava ser necessário fosse isso feito dentro de certas condições: uma delas, em
razão da fundação de oitocentas libras que meu clero fornece anualmente para a manutenção de seis
seminaristas, destinados aos serviços de nossa diocese, sob nossa dependência. Estimei que era
necessário fosse esse número preenchido, antes que pensásseis em servir-vos de outros; e concordastes
comigo, quanto a isto, assim como também o Padre Lambert, quando esteve aqui. A outra, uma
advertência mais do que uma condição, é que leveis em consideração a necessidade que esta diocese tem
de padres; realmente não podeis imaginar quanto era grande quando aqui cheguei. No presente, está

.
Carta 1052. – Arquivo da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
173

quase provida dos que lhe são necessários, ou o será dentro de pouco tempo; ela os teria de sobra, se as
outras dioceses não os levassem.
Ficaríeis admirado ao ver meu clero, e bendiríeis a Deus, mil vezes, se soubésseis o bem que os
vossos padres fizeram em nosso seminário, e que se espalhou por toda a província. Rogo-vos, pois,
considerar que esta condição ainda é válida, e não subtrair algum dos nossos, antes de se completar o
número seis; há apenas dois, e são, além disso, estrangeiros, convertidos à nossa religião e desejosos de
abraçar o estado eclesiástico. Não quis que os vossos padres se preocupassem, até o presente, com
procurar que esse número seja completado, muito pelo contrário, ao menos no tempo do governo do
Padre Delattre e do Padre Testacy.
Ao terminar, tenho apenas duas coisas a vos dizer: uma é que a afeição que tenho por vossa
Congregação, que não será jamais menor do que a de nenhum dos vossos, me leva a suplicar-vos que
considereis, muito maduramente, se não deveríeis estabelecer alguma condição no poder que concedeis
aos vossos de receber eclesiásticos das dioceses nas quais estais instalados; com efeito, sempre acreditei,
e o que os vossos têm feito aqui me faz crer ainda mais, que isto é absolutamente necessário, a fim de
viverem em boa harmonia com os bispos que vos chamarem para suas dioceses. Importa não medir os
outros por vós mesmo: enganar-vos-íeis, com toda certeza. Prouvesse a Deus pudesse eu dispor de uma
parte do meu sangue; eu a doaria com muito prazer em favor de vossa Companhia, a fim de que todos
tivessem o vosso espírito! Queira Deus, por sua graça, tenham eles uma parte dele, se não plenamente.
Parece-me que o Padre Lambert se empenha em adquiri-lo; gostaria que os outros fizessem o mesmo.
A outra coisa que tenho a vos dizer é que, em relação a vós, não haverá condição alguma. Tereis
sempre pleno poder sobre tudo que depender de mim. Mas, suplico-vos, seja isto dito entre vós e mim
somente, e me creiais, senhor Padre, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1053. ─ ALAIN DE SOLIMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 22 de julho de 1648.

Senhor Padre,

Rendo-vos mil graças pelas contínuas diligências que vos apraz tomar em favor de nossos
religiosos e em meu favor, na questão que temos com os de Santa Genoveva.
Já que não pudestes obter a confirmação perpétua da Madre de Laroque 1, trataremos de fazer com que
ela continue, por intermédio dos superiores da Ordem.
Escrevi-vos longamente a respeito da recepção dos eclesiásticos da minha diocese em vossa
Congregação. Vereis que não foi minha intenção que não os recebêsseis de modo algum, nem passou isto
por minha cabeça. Entretanto, permiti-me vos diga que me parece que não saneareis bem aos eventuais
inconvenientes, se não acrescentardes alguma condição ao regulamento que estimais justo, como, por
exemplo, a condição de que não se admitirão candidatos dentre os que estão no seminário, enquanto nele
estiverem. Foi o que fez comigo o Padre Delattre, que se empenhara neste sentido enquanto trabalhava
nele, e que chegou a mandá-los para serem admitidos até ao ponto de saírem do seminário. Remediai, eu
vos peço, esse inconveniente. Com efeito, quanto aos que fazem os estudos convosco ou alhures, ou que
estão fora do seminário e nele não permaneceram, jamais levantei alguma dificuldade. Disse apenas, à
maneira de advertência, que deve haver discrição quanto à sua admissão, até que a diocese esteja
provida dos que lhe são necessários. São estes os meus pequenos sentimentos, que submeto aos vossos.
Entretanto rendo-vos milhões de graças, pelo enorme zelo com que vos empenhastes para nos dar
o Padre Brandon para Périgueux, que Deus afinal abençoou. Espero que ele seja glorificado e vós,
recompensado. E já que minha diocese participa deste bem, por causa da vizinhança, suplico-vos quando
.
Carta 1053. – Arquivos da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. Como priora do mosteiro du Pouget.
174

estiverdes com a Rainha, se julgardes conveniente, dizer a Sua Majestade que lhe tributo por isso
humilíssimas graças. Peço a Deus conceder-lhe a graça de prover sempre de bons pastores as dioceses
deste reino.
Sou, para sempre, senhor Padre,etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1054. – A CLÁUDIO DUFOUR, PADRE DA MISSÃO, EM SAINTES

24 de julho de 1648

Recebi vossa carta com alegria, vendo a fidelidade que tivestes em me revelar os pensamentos que
vos atormentam o coração. Não é de se admirar que sejais tentado; pelo contrario, seria algo novo se não
o fôsseis, pois a vida dos homens outra coisa não é senão tentação, e ninguém dela está isento,
particularmente aqueles que se entregaram a Deus. Seu próprio Filho passou por essa prova. Mas se, por
um lado, é uma necessidade para todos, por outro, é também motivo de merecimento para as pessoas a
quem Deus concede a graça de transformar tudo em bem, como fazeis. Sabeis muito bem, senhor Padre,
que sem as desordens não haveria regulamentos. Nossas inclinações, contudo, tendem para o mal de
tantas maneiras que aprouve à prudência divina e humana opor-lhes remédios específicos. É por isso que
o Antigo e o Novo Testamento estão cheios de mandamentos, de conselhos e de regras de salvação, que a
Igreja fez tantas prescrições e decretos, e que os jurisconsultos estabeleceram leis para os assuntos civis.
As regras que tendes são máximas evangélicas e meios para observá-las. São aproximadamente as
mesmas que praticamos aqui, onde ninguém, graças a Deus, até agora, delas se queixou. Se o número
delas vos parece excessivo, suplico-vos considerar quão grande é o dos preceitos divinos, dos cânones,
decretos, leis, admonições de que acabo de falar; vários alentados volumes não dariam para contê-los.
Pode acontecer, contudo, que tenhais dificuldade com a diversidade das coisas que vos são recomendadas
e talvez porque vos pressionam demais para observá-las. Estou contente por me terdes escrito a respeito,
pois pedirei aos Visitadores prestem atenção, daqui para a frente, a que nada ordenem a não ser o que for
bastante conveniente. Peço também ao vosso superior1 fazer com que vos tratem com mansidão, caso no
passado tenha havido alguma falta nesse sentido, ou mesmo de vos mandar mudar de lugar, se o desejais.
A Companhia se mostrou sempre satisfeita com vossa exatidão. Aqueles que vos viram aqui
ficaram muito edificados, e, pelo que sei, os que moram atualmente convosco não o ficam menos. Isto me
leva a pensar que a pequena repugnância que sentis é um produto do espírito mau, que vos quer enfadar
em tão belo caminho. Peço-vos, senhor Padre, não lhe deis ouvido. Com efeito, se duas ou três regras vos
desagradam por serem supérfluas a vosso respeito, um outro as aprecia porque lhes convêm. Os filhos de
Nosso Senhor andam singelamente por seus caminhos; têm confiança nele; por isso quando caem, ele os
levanta; e se, em lugar de se deterem em praguejar contra a pedra em que tropeçaram, eles se humilham
em sua queda, ele os faz avançar a grandes passadas em direção ao seu amor. É o que espero de vós,
senhor Padre, que sois inteiramente dado a ele, por sua misericórdia, e que não respirais senão sua santa
vontade.
Há grande diferença entre a vida apostólica e a solidão dos cartuxos. Esta última, na verdade, é
muito santa, mas não é oportuna àqueles que Deus chamou para a primeira, que em si é mais excelente.
De outra forma, São João Batista e o próprio Jesus Cristo não a teriam preferido à outra, como fizeram,
deixando o deserto para pregar aos povos. Além do mais, a vida apostólica não exclui a contemplação,
mas a abraça e dela se prevalece para melhor conhecer as verdades eternas que deve anunciar. Por outro
lado, ela é mais útil ao próximo, que temos obrigação de amar como a nós mesmos, e, por conseguinte, de
ajudá-lo de modo diferente do que fazem os que vivem no estado de solidão. E embora vos pareça que
cumpriríeis mais facilmente os deveres dessa santa comunidade religiosa do que os de nosso pequeno
Instituto, estaríeis sem dúvida enganado, como muitos outros que deixaram sua verdadeira vocação para
.
Carta 1054. – Reg. 2, p. 31.
1
1. Louis Rivet.
175

entrar num modo de vida diferente, no qual acabaram encontrando menos satisfação. Por quê? Porque as
dificuldades que pensavam evitar não residiam naquilo que abandonaram, mas em sua própria
imaginação: a qualidade do espírito permanece a mesma em toda a parte, se não a corrigimos com uma
contínua mortificação. De resto, senhor Padre, sabeis que não somos religiosos e não temos a intenção de
o ser. Deus não nos julgou aptos para esse estado. Roguemos-lhe que nos torne dignos do estado em que
nos colocou.

1055. – A UM PADRE DA MISSÃO, EM ROMA

24 de julho de 1648

Vossos incômodos me afligem, com conhecimento de causa. Penso que a mudança de ar vos será
saudável. Mas antes de voltar ao clima da França, peço-vos experimentar os ares dos campos de Roma,
por meio das missões que lá se farão nesse inverno. Se esse remédio não surtir efeito, asseguro-vos,
senhor Padre, que nós vos pediremos que regresseis para aqui, e desde agora o faria, não fosse o temor de
ir contra os planos de Deus sobre vós, chamando-vos antes de ter tentado por aí os meios possíveis para a
recuperação de vossa saúde.
Quanto ao segundo motivo a que aludis para retornar para a França, crede, senhor Padre, que os
calores do clima não contribuem para os movimentos desonestos; a carne carrega por toda a parte suas
fragilidades. Estando aqui, sentiríeis as mesmas misérias que na Itália. É uma provação que Deus vos
manda, como permitiu em São Paulo, e talvez para o mesmo fim, ou, ao menos, para vos propiciar
ocasião de merecimento.

1056. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 28 de julho de 1648.

Senhor Padre,

O cuidado que tomei no sentido de que não se falasse dessas novas opiniões na cidade de Cahors,
nem em parte alguma de minha diocese, foi a causa de termos vivido em grande tranquilidade até o
presente. Mas, como o inimigo comum da paz jamais cessa de trabalhar na semeadura de perturbações,
aconteceu há pouco tempo que um dos professores de teologia de nossa universidade  ensinou a doutrina
e as opiniões de Jansênio. Tendo sabido disto no recesso dos meus exercícios espirituais, ordenei ao
arcediago-mor de minha Igreja catedral, dotado de grandes qualidades e grande inimigo de todas essas
novidades, que lhe fosse dizer de minha parte, que me admirava muito de que ensinasse essa doutrina, e
dar-lhe a ordem de cessar de o fazer; cumpriu prontamente o que lhe pedi. Mas esse doutor, em vez de
obedecer-lhe, respondeu-lhe com arrogância que já entregara esse tratado, e lhe disse muitas coisas a
respeito, sustentando essas opiniões.
O arcediago-mor relatou-me tudo. Imediatamente mandei ao meu promotor que ordenasse em
meu nome a todos os estudantes me trouxessem seus escritos e lhes proibisse, sob pena de desobediência,
buscar outros escritos desse professor, religioso da Ordem de São Domingos. Obedeceram prontamente
e o professor teve de parar de ensinar, por falta de alunos.
O teologal de minha Igreja, que não o estima, sabendo disso pregou contra essas opiniões; o que
arrasou com ele. Sabendo disso, encarreguei meu promotor de proibir ao referido teologal que pregasse
.
Carta 1055. – Reg. 2, p. 297.
.
Carta 1056. – Arquivo da diocese da Cahors, caderno, cópia tirada do original.

. O reverendo Padre Luís Mesplède, dominicano. Encontra-se nos arquivos da diocese de Cahors a ata redigida sobre as opiniões deste
religioso.

. Cláudio Antônio Hébrard de São Sulpício.
176

dessa maneira. Minha intenção era de suavizar a questão, o que é melhor, e de ir dizer a esse professor
que eu não aprovava o que o teologal fizera, e que se ele, de sua parte, não falasse mais disso e
reconhecesse o erro, eu trataria de abrandar tudo e salvaguardar-lhe a honra. Agradeceu-me muito, por
intermédio de meu promotor. Ao mesmo tempo, porém, sabendo que a universidade se tinha reunido, sai
do seu convento e se dirige à sala onde se encontravam. Disse-lhes que eu mandara recolher seus
escritos e proibir a seus alunos que fossem escutá-lo. Acrescentou que embora lhe tivesse enviado minhas
escusas através de meu promotor, contudo não se sentia satisfeito e lhes pedia que se juntassem a ele
para me processar, prometendo todo o dinheiro necessário.
A universidade pediu-lhe que se afastasse para poderem opinar sobre a questão. Resolveu-se, de
comum acordo, não permitir jamais que tal doutrina fosse ensinada na universidade. Aliaram-se todos a
mim e mandaram que entrasse de novo; e foi tratado com muita severidade. Mandei comunicar o que
aconteceu a todos os conventos. Todos se uniram também a mim. Igualmente, todas as pessoas de
condição que tiveram conhecimento do procedimento dele, censuraram-no muito, de tal sorte que ficou
isolado. Houve apenas alguns espíritos que procuraram informações mais detalhadas do que se passara.
Não parou, entretanto, por aí, mas gritou em alta voz que mandaria imprimir essas opiniões para
defendê-las.
Nessa ocasião, os senhores Bispos de Bazas e de Condom me deram a honra de vir estar
comigo. Pedi ao arcediago-mor e ao chanceler que viessem aqui; ao chegar, relataram diante deles as
opiniões dos outros professores. Vendo que se tratava das mesmas opiniões de Jansênio, resolvemos que
eu lhe desse a ordem de vir me encontrar. Caso ele viesse, eu lhe faria uma boa chamada de atenção por
ter ensinado esta doutrina, e lhe faria recomendações expressas e proibição no sentido de nunca mais
ensiná-la.
Ao saber desta resolução, voltou a si e ontem veio até aqui com o Chanceler e me testemunhou o
pesar que tinha por ter ensinado esta doutrina e me ter desagradado. Dei-lhe uma boa reprimenda e o fiz
reconhecer sua falta, de tal modo que, pela graça de Deus, esse fogaréu que ia incendiar nossa diocese
se apagou. Espero que dentro de poucos dias não se falará mais disso.
Essa questão me trouxe grande sofrimento no início; mas, graças a Deus, foi abafada em seu
nascedouro. Quis tornar-vos ciente dela, porque me agradaria muito que tivésseis conhecimento dos
negócios dessa natureza que se passaram em minha diocese. Deste modo vos lembraríeis do que vos
disse com tanta frequência, a saber, que minha presença era tão necessária em minha diocese, que dela
jamais deveria ausentar-me, a não ser em se tratando de assuntos urgentes e de suma importância. A
minha intenção também é dizer-vos que os senhores Bispos de Bazas e de Condom pressionaram-me, de
maneira fora do comum, para ir até a corte a fim de defendê-los contra as violências que padecem do
Duque de Epernon, particularmente o Bispo de Bazas e vários outros da província. Os prelados nelas
residentes lhes escrevem que é preciso que todos aqueles que são da província vão até lá em conjunto, e
me indicam para isso, de modo particular. Respondi-lhes que estarei sempre com eles, inseparavelmente,
na defesa de sua dignidade e de suas pessoas. Quanto, porém, a ir a Paris, acreditava que não me seria
possível, em razão da necessidade que minha diocese tem da minha presença. Estava com quatro grandes
questões a resolver nela, a menor das quais requeria minha presença. Não sabia como me decidir,
embora talvez seja constrangido a fazê-lo. Ponderei com eles muitas coisas sobre o assunto e lhes disse
que vos escreveria a respeito disto. Disseram-me que recomendasse a questão a Nosso Senhor e
confiavam-na a mim. Dir-vos-ei que jamais cheguei à conclusão de que fosse vontade de Deus que eu
chegasse até aí por esse motivo. Pelo contrário, parece-me que seria contra a sua vontade. Com efeito,
não me lembro de ter visto exemplo na história eclesiástica de que todos os bispos de uma província a
tenham deixado para levar suas queixas aos príncipes a respeito das perseguições dos governantes, nem
mesmo das perseguições de tiranos. Delegavam de preferência algum para fazê-lo. Quanto aos outros,
permaneciam em suas dioceses, ou, se nela não pudessem permanecer em segurança, retiravam-se junto
aos vizinhos, e de lá davam assistência ao seus povos. Não vejo também que tivesse isso aprovação da
corte, particularmente no tempo em que estamos, quando seríamos obrigados, se lá estivéssemos, a partir
de volta para nossas dioceses. Eu, particularmente, não quereria, pelo meu sangue, ter ficado ausente da

. Samuel Martineau.

. Jean d’Estrades.

. Pierre Parriel, chanceler da universidade de Cahors.

. O Duque d’Epernon, Governador da Guiana.
177

minha, enquanto esse doutor nela ensinava essa má doutrina, que talvez jamais tivesse podido extirpar,
tanto mais quanto vemos Tolosa toda incendiada por ela.
Suplico-vos manifestar-me vossa opinião a respeito disto. Entretanto, dir-vos-ei que Sua
Excelência, o senhor Bispo de Bazas, vendo que as violências de d’Epernon aumentam dia-a-dia e que
ele se prevalece do correr do tempo, resolveu retirar-se para Paris por algum tempo, mas com a intenção
de não fazer queixas durante essas perturbações. É um grande prelado que merece muito ser assistido e
que a Rainha o apoie. Por esta razão, suplico-vos dispor o espírito de Sua Majestade neste sentido, a fim
de que, a seu tempo, ela assuma a causa. Em nome de Deus, empregai todo poder e crédito de que
dispondes para impedir que o senhor de Laverdin seja Bispo de Le Mans , pelas razões que o senhor
Bispo de Bazas vos dirá.
Entrementes, crede-me, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1057. – A DÊNIS GAUTIER, SUPERIOR, EM RICHELIEU

[Julho de 1648].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Envio-lhe uma notícia muito triste, acompanhada, porém, de grande consolação. Deus dispôs do
Padre Guérin, em Túnis, e talvez do Padre Lesage, em Argel . Ambos foram acometidos pela peste, que
grassa com muita violência naqueles lugares. O Padre Le Vacher e nosso irmão Francisco  lhe
experimentaram também o veneno; mas aprouve a sua divina bondade conservá-los quase por milagre.
Esperávamos a notícia da morte do referido Padre Le Vacher, quando ele próprio nos comunicou a
morte do Padre Guérin, acontecida no mês de maio passado . Seus últimos dias, como sua vida, deram
verdadeiros testemunhos de seu zelo e de sua caridade, o que nos dá uma certeza moralmente infalível da
acolhida de sua alma na bem-aventurada eternidade. Peço-vos, contudo, prestar-lhe o socorro de costume.
O que sabemos do Padre Lesage é que nosso Irmão Barreau, seu companheiro, nos comunicou,
por cartas datadas do dia quatro de maio, que ele caíra doente, por contágio, dois dias antes. O Padre Le
Vacher, em uma carta do dia vinte de junho, fala dele nos seguintes termos: “Julgo, diz ele, que já
recebestes cartas de Argel sobre a morte do Padre Lesage”. Embora tenhamos recebido apenas as cartas
sobre sua doença, tememos, portanto, que aconteceu o desfecho final, de que o Padre Le Vacher teve
conhecimento, e que a notícia que dele nos dá, em tão poucas palavras, seja mais do que verdadeira. Pode,
contudo, tratar-se de falso rebate, porque ele está a cem léguas de distância de Argel.
Enquanto esperamos, senhor Padre, a derradeira notícia, o Padre Le Vacher se encontra, portanto,
em boa disposição, graças a Deus. Chegou, contudo, a tal extremo que o deram por morto, de tal sorte que
o Padre Guérin, que ainda não estava doente, já tinha providenciado a sua sepultura, e todos se tinham
retirado de seu quarto, com exceção do nosso irmão Francisco. Este último, que olhava de quando em vez

. Felisberto Emanuel de Beaumanoir de Lavardin tinha muito má reputação. Foi, contudo, nomeado Bispo de Le Mans em 20 de fevereiro de
1649, apesar das resistências de São Vicente.
.
Carta 1057. – C. as. – Dossiê de Turim, original. Esta carta foi enviada às diferentes casas da Congregação da Missão.

. Não há dúvida alguma quanto ao ano, pois Juliano Guérin morreu em 25 de maio de 1648. Não temos a mesma certeza quanto ao mês. Se
demos a preferência ao mês de julho, foi porque o Santo não podia ter recebido antes de julho a carta escrita em 20 de junho pelo Padre Jean
Le Vacher, e recebeu, com certeza, antes do mês de agosto, a que o Irmão Barreau lhe endereçou em 12 de maio ou nos 8 dias seguintes.

. Morrera, com efeito, no dia 12 de maio precedente, vítima de sua dedicação aos pestilentos, que visitava e consolava, sem se preocupar
com sua própria saúde.

. Francisco Francillon nascera em Céaux (Vienne), em janeiro de 1621. Foi recebido na Congregação da Missão, como Irmão Coadjutor, em
abril de 1645. Acompanhou Juliano Guérin para Túnis. De lá voltou para a França, foi enviado para Argel e ali trabalhou com toda dedicação
até 6 de julho de 1648, dia em que os turcos o colocaram à boca de um canhão.

. Em 25 de maio, data fornecida pelo próprio Jean Le Vacher, em uma carta que enviou de Túnis para Renê Alméras, em 22 de junho de
1648.
178

para ele, percebeu nele, duas horas depois, alguns sinais de vida. Imediatamente, saiu para fora a fim de
informar disso os que o tinham abandonado como morto. Acorreram todos para se assegurarem da
verdade, e tendo-a reconhecido, ficaram igualmente espantados e consolados.
Poucos dias depois, o Irmão foi atacado duas vezes pela peste e por febre contínua. Em seguida, o
Padre Guérin caiu doente e assim os três ficaram de cama; e isto foi relatado ao Irmão Francisco. A
caridade dele o pressionou tão fortemente que, no mesmo instante, se levantou para dar assistência aos
outros. Como lhe quisessem impedir de o fazer, porque estava muito mal, respondeu: “Deus fará de mim
o que lhe aprouver; mas, dado o estado em que se encontram, preciso prestar-lhes os serviços que puder”.
Com efeito, ele os socorreu até a morte de um e a recuperação do outro. Ministrava-lhes caldos e
remédios, indo ora até a cidade, ora até outras partes, fazendo tudo para aliviá-los, como se não estivesse
com mal algum.
Alguns dias depois como recompensa de sua caridade, Deus permitiu que ficasse curado de uma
dessas pestes. Voltou-lhe o apetite e, pouco a pouco, a outra peste também se dissipou, sem que tivesse
tomado remédio algum a não ser depois que o Padre Le Vacher ficou melhor e mandou que lhe fizessem
uma sangria e lhe dessem um purgante. O Padre Le Vacher fala desse irmão como de uma maravilha, e o
Padre Guérin sempre me falava dele com louvores.
Eis, senhor Padre, grandes motivos para louvar a Deus, tanto pela saúde de uns como pelo
falecimento dos outros: pela saúde, porque propicia a esses dois bons servos de Deus o meio de
continuarem com os seus serviços em favor dos escravos doentes e abandonados, o que é o mais elevado
grau de caridade que se possa exercer neste mundo; pelo falecimento, porque uma tal morte é preciosa ao
céu e à terra e será, se Deus quiser, a semente de outros missionários, como o sangue dos mártires foi a
semente dos cristãos. Na verdade, é um martírio de amor morrer pela assistência corporal e espiritual dos
membros vivos de Jesus Cristo.
Sexta-feira passada, à noite, tivemos um colóquio sobre as virtudes do falecido Padre Guérin, e
continuaremos na próxima conferência. Reuniremos tudo que for dito para partilhar com todas as nossas
Casas. O assunto bem o merece; era uma das almas mais puras, mais desapegadas e mais entregues a
Deus e ao próximo que jamais conheci. Ó senhor Padre, que perda para os pobres, mas também que perda
para nós, por não termos mais esse exemplo de zelo e de caridade! Frequentemente, dele me servi como o
mais eficaz, para animar a Companhia à pratica dessas virtudes. Não o temos mais conosco. Deus no-lo
tirou, talvez para nos punir do mau uso que fizemos do seu exemplo. Como porém, na verdade, a maior
parte dos coirmãos tirou dele bom proveito, Deus quer nos estimular a uma maior emulação no sentido de
ir estabelecer por toda a parte o império de seu Filho, Nosso Senhor, como fez nosso querido Padre
Guérin, que goza agora da recompensa devida aos seus trabalhos. Ele há de nos obter a graça de imitá-lo,
se de fato começarmos desde agora, nas ocasiões cotidianas que tivermos de o fazer. Esse bom servo de
Deus não esperou ir para a Barbária, para amar e consolar os pobres. Fez isto na França e na Lorena,
quanto lhe foi possível. E foi o que lhe mereceu a felicidade de ir morrer no serviço dos pobres escravos,
como vários observaram em nossa conferência.
Rogo a Nosso Senhor seja a vida de nossos corações e me torne digno da graça que tive de sua
divina misericórdia, de ser nela como sou, de vós e de vossa pequena comunidade, que abraço ternamente
em espírito, senhor Padre, muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Gautier.

1058. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

15 de agosto de 1648.

.
Carta 1058. – Reg. 2, p. 85.
179

Louvo a Deus por vossa solicitude e boa conduta em procurar que estes senhores eclesiásticos de
Gênova, que são chamados de missionários, não sejam denominados desta maneira, para impedir a
confusão de nomes iguais e prevenir os inconvenientes que acontecem com a multiplicidade dos que os
trazem. Fareis bem em insistir também que apraza ao senhor Cardeal mudar o nome dos exercícios que
eles fazem, temendo que ao chamá-los de missões, não venham ainda, com o tempo, a chamar os que os
fazem, de missionários. Com efeito, frequentemente, os obreiros tiram seu nome do nome de suas obras e
passam facilmente de uma coisa à outra. Além do mais, é uso da Igreja assinalar a todas as Companhias e
às suas funções nomes diferentes, para distingui-las umas das outras.

1059. – EDMUNDO DWYER, BISPO DE LIMERICK, A SÃO VICENTE

[Por volta de agosto de 1648].

É justo, senhor Padre, que vos renda ações de graças, de todo o meu coração, pelo benefício que
recebi de vós, com os vossos padres, e que vos expresse a enorme necessidade que temos deles em nosso
país. Posso assegurar-vos confidencialmente que seus trabalhos produziram aqui maiores frutos e
converteram mais almas do que todo o resto dos eclesiásticos. Ademais, devo agradecer-vos porque, por
seu exemplo e por sua boa conduta, a maior parte da nobreza de um e outro sexo se tornou modelo de
virtude e de devoção, o que não aparecia entre nós antes da chegada de vossos missionários a estes
rincões. É verdade que as perturbações e os exércitos deste reino têm sido grande empecilho para o
ministério deles. Contudo a lembrança das coisas que dizem respeito a Deus e à salvação está de tal
maneira gravada, por causa dos seus trabalhos missionários, nos espíritos dos habitantes da cidade e do
povo do campo, que bendizem a Deus, igualmente, tanto em suas adversidades quanto em sua
prosperidade. Espero que eu mesmo possa me salvar com a assistência deles.

1060. – THOMAS WALSCH, ARCEBISPO DE CASHEL, A SÃO VICENTE

16 de agosto de [1648].

A partida de vossos missionários me enseja a ocasião de vos testemunhar meu humilde


reconhecimento, acompanhado de ações de graças, pelo fato de que, por vossa grande caridade, vos
dignastes socorrer, por meio de vossos padres missionários, o pequeno rebanho que Deus me confiou.
Isto foi feito não somente num tempo muito adequado às nossas necessidades, mas também numa ocasião
inteiramente propícia. E é verdade, também, com razão, que, por seus trabalhos e serviços, os povos
foram incitados à devoção, que aumenta de dia em dia. Esses queridos padres sofreram muitos
incômodos, desde sua chegada a este país. Não deixaram, contudo, por isso, de se aplicarem
continuamente aos trabalhos de sua Missão, como operários infatigáveis que, ajudados pela graça,
dilataram gloriosamente e aumentaram o culto e a glória de Deus.
Espero que o mesmo Deus, que é bom e todo poderoso, será, ele próprio, vossa ampla recompensa
assim como a deles. De minha parte, rogar-lhe-ei que vos conserve por muito tempo, pois vos escolheu
para o bem e a utilidade de sua Igreja.

.
Carta 1059. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. VIII, 1ª ed., p 149.

. Abelly diz que está carta é do mesmo tempo que a carta 1060.
.
Carta 1060. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. VIII, 1ª ed., p. 148. Este escritor nota que a carta foi escrita em latim.

. Nascido na diocese de Waterford em 1580, nomeado para o arcebispado de Cashel em 1626, foi preso por causa da fé no fim do ano de
1652 e, depois de nove meses de cativeiro, exilado para a Espanha, onde morreu em 5 de maio de 1654.

. Texto de Abelly: 1658. A retificação se impõe.
180

1061. – JEAN LE VACHER, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

[Túnis, 1648].

Com algum dinheiro que dei aos patrões ou aos guardas desses pobres escravos, consegui reuni-
los em muitos lugares, e neles os instruí, consolei, confessei e confirmei na fé, com a graça de Deus.
Preparei, do modo mais decente possível, esses lugares, e neles celebrei a santa missa em que todos
comungaram. Ficamos uns e outros cheios da alegria que aprouve a Deus conceder a esses pobres
escravos, em meio às misérias do cativeiro, tão tormentosas e pesadas que as pessoas livres não o podem
imaginar. Por conseguinte, as alegrias e consolações que experimentaram em meio aos sofrimentos só
podem ser frutos da graça de Deus. Abracei-os a todos e lhes dei alguns presentes, na medida em que
nossa pobreza o permitiu, para levantar-lhes um pouco o ânimo em suas fadigas. Além disso, dei a cada
um dos mais pobres um quarto de piastra.

1062. – À IRMÃ MADALENA ELISABETH DE MAUPEOU


RELIGIOSA DA VISITAÇÃO

Minha querida Irmã,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Desejam-vos aqui; pedem-vos de lá, e permaneceis indiferente, como deve ser uma boa serva de
Deus e uma boa filha de Santa Maria. Vosso mosteiro daqui vos solicita para a fundação de Compiègne ;
vossas caras filhas de Bayonne pensam que lhes sois necessária e insistem para que fiqueis com elas.
Fareis o que julgardes melhor diante de Deus; podeis vir ou ficar aí.
A convicção que tenho de que procurais unicamente a Deus e sua santa vontade me leva a julgar
que também eu a estou cumprindo, ao confiar a vós o discernimento dessa mesma vontade. Se vierdes, o
que é de se desejar, peço-vos avisar-me, uma vez recebida a presente; e que venhais quanto antes, se algo
de importante não vos detiver, a fim de que possamos tomar as providências relativas à fundação, de
acordo com a decisão tomada. Oh! minha cara Irmã, como sereis cordialmente recebida, se vierdes! Caso
não venhais, não vos sendo isto possível, remeter-nos-emos ao beneplácito de Deus, que nos será
conhecido pela escolha que fizerdes. Deus vos cumule sempre mais do seu espírito, minha caríssima
Irmã!
Sou, em seu amor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO.
Paris, 3 de setembro de 1648.

1063. – A LUÍSA DE MARILLAC

.
Carta 1061. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. VIII, § 9, Iª ed., p. 131.

. Jean Le Vacher escreveu esta carta de volta de sua primeira viagem às devastações do campo, isto é, sem dúvida alguma, no ano de sua
chegada a Túnis.
.
Carta 1062. – Année sainte, t. VII, p. 253.

. Madalena Elisabeth de Maupeou, filha de Gilles de Maupeou, intendente e controlador geral das finanças, no tempo de Henrrique IV,
deixou o mundo em janeiro de 1648, com a idade de 32 anos para entrar no primeiro mosteiro da Visitação em Paris. As religiosas do
convento de Caen a elegeram como sua superiora em 24 de maio de 1635 e a reelegeram em 20 de maio de 1638. Em 1641, foi fundar um
mosteiro de sua Ordem em Bayonne, para onde a chamava seu sobrinho, Francisco Fouquet, bispo daquela cidade. Seu segundo triênio
terminara, há um ano, quando São Vicente lhe escrevia esta carta. Acabou permanecendo em Bayonne, e as Irmãs a nomearam novamente
como superiora em 2 de junho de 1650. De volta a Paris, dirigiu o primeiro mosteiro, de 1655 a 1658, e aí terminou seus dias com a idade de
setenta e oito anos, em 3 de julho de 1674 (Cf. Année sainte, t. VII, pp. 249-254).

. O mosteiro de Compiègne se abrira em 3 de junho de 1648.
.
Carta 1063. – C. aut. – Original no Berceau de São Vicente de Paulo.
181

Paris, 5 de setembro de 1648.

Bendito seja Deus, senhora, pela solicitude que Nosso Senhor vos concede para com vossas
queridas filhas e para comigo, em meio a esses levantes populares ! Aqui nos encontramos todos, pela
graça de Deus; e Nosso Senhor não nos tornou dignos de sofrer alguma coisa por ele, nesses tumultos. De
resto, podeis ter a certeza de que nada há que eu tenha pensado ser dever meu dizer e que não o tenha
dito, pela graça de Deus; e isto, a respeito de tudo mais. O mal é que Deus não abençoou minhas palavras
embora considere falsas as que disseram da pessoa de que quereis falar-me . É verdade que procuro dizê-
las da maneira como fazem os bons anjos, que apenas propõem, sem se perturbarem, quando não fazem
bom uso de suas luzes.
É a lição que me ensinou o bem-aventurado Cardeal de Bérulle, e a experiência que tenho, de que
não disponho da graça, muito pelo contrário, tudo estrago, quando procedo de outro modo.
Se quiserdes passar na casa de Madame Saint-Simon, por que não?
As coisas aqui vão indo. Vossos doentes, em toda a parte, começam a melhorar.
Tratarei de dizer uma palavra ao senhor Conde de Maure . Temo, porém, estragar a coisa, por
causa de minha miséria. Contudo, não descerei ao particular. Nosso Senhor há de suprir ao que me faltar,
se for de sua vontade.
Sou em seu amor, senhora, vosso muito humilde e muito obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Paris...

1064. – A JEAN DEHORGNY

Orsigny, 10 de setembro de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso senhor esteja sempre convosco!


Recebi vossa carta do dia 17 de agosto, em resposta às minhas cartas relativas às diversidades de
opiniões; esta última trata do livro A comunhão; em resposta a ela vos direi, senhor Padre, que talvez,

. São Vicente faz aqui alusão aos dias 26, 27 e 28 de agosto. A notícia da prisão de Broussel, conselheiro na Câmara Parlamentar, amotinara
o povo contra a corte. Nas ruas, levantaram-se barricadas. A milícia burguesa, convocada às armas para restabelecer a ordem, simpatizava
com os insurgentes. Foi preciso que a Rainha cedesse e trouxesse Broussel de volta, quando já estava a caminho de Sedan.

. Seria difícil dizer, exatamente, a que São Vicente faz aqui alusão.Tratar-se-ia das relações de Mazarino com Ana d’Áustria? Correu o
boato, espalhado pelo pessoal da Fronda, de que a Rainha e seu ministro se tinham ligado por um casamento de consciência; e alguns
acrescentavam que o próprio São Vicente abençoara-lhes a união. Comentou-se isto em São Lázaro e o Irmão Robineau não hesitou em
interrogar ao Santo, o qual lhe respondeu: “Isso é falso como o diabo” (Caderno manuscrito do Irmão Robineau, p.10. arq. da Missão). A
questão desse casamento secreto foi estudada por Jules Loiseleur (Problemas históricos. Mazarino desposou Ana d’Áustria? Gabriela
d’Estrées foi morta envenenada? 1867, in-12) e por Victor Molinier (Notícia sobre esta questão histórica: Ana d’Áustria e Mazarino
tinham-se casado secretamente? Paris, 1887, in-8°). Parece certo que Mazarino não tinha recebido ordens sacras (Cf. Chéruel t.I p. XVI, nota
2).

. Luísa de Crussol, casada em segundas núpcias com o Marquês de Saint-Simon, que se tornou lugar-tenente geral dos exércitos do Rei,
Governador e juiz de Senlis e capitão do castelo de Chantilly.

. Parente, por aliança de casamento, de Luísa de Marillac. Tomou parte ativa nos tumultos da Fronda. Queria São Vicente dar-lhe conselhos
de sabedoria política?
.
Carta 1064. – Arquivo departamental de Vaucluse, D 296, cópia do século XVII ou XVIII. Encontrar-se-ão em nota as variantes do texto
publicado em março de 1726 pelo Mémoires de Trévoux (p. 448). Nem o manuscrito dos artigos departamentais, nem o Mémoires de Trévoux
traz o postscriptum, que tiramos do suplemento das Lettres et conférences de S. Vincent de Paul (p.70). O editor desse suplemento teve em
mãos o original da carta, que a senhora d’Haussonville lhe tinha comunicado e que foi possível encontrar (o tradutor julgou dispensáveis as
referências às variantes: N. do T.)

. A obra tinha como título: Tratado da comunhão frequente, no qual os sentimentos dos Padres, dos Papas e dos Concílios relativos ao uso
dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia são fielmente expostos, para servirem de orientação às pessoas que pensam seriamente em se
converter a Deus e aos pastores e confessores zelosos pelo bem das almas, pelo Padre Antônio Arnaldo, doutor em teologia, da universidade
182

como vós dizeis, algumas pessoas tiraram proveito desse livro, na França e na Itália. Entretanto por uma
centena que talvez tenha tirado proveito dele em Paris, tornando-se mais respeitosas no uso desse
sacramento, há pelo menos outras dez mil às quais causou prejuízo, afastando-as totalmente dele. Louvo a
Deus por procederdes como faço, isto é, não falando dessas coisas na comunidade e porque em Roma ela
se porta como aqui.
É verdade o que dizeis, a saber, que São Carlos Borromeu, em seu tempo, suscitou o espírito de
penitência em sua diocese, assim como a observância de seus cânones, o que sublevou as pessoas contra
ele, até mesmo bons religiosos, por causa da novidade. Entretanto ele não determinou como penitência
ou, seja como for, como satisfação, o afastar-se da santa confissão e da adorável comunhão, a não ser nos
casos estabelecidos pelos cânones, que procuramos observar, como os casos de ocasiões próximas, de
inimizades, de pecados públicos. Estava longe, contudo, do que dizem, que ordenava penitências públicas
para pecados secretos e a cumprir satisfações antes da absolvição, como o livro de que se trata pretende
fazer.
Vamos aos detalhes. Não há dúvida, senhor Padre, seja o que me disserdes do livro Da comunhão
frequente, de que ele foi redigido principalmente para renovar a antiga penitência como necessária para
entrar na graça de Deus. Com efeito, embora o autor dê mostras algumas vezes de propor esta prática
antiga apenas como mais útil, é certo, contudo, que ele a deseja como necessária, já que em todo seu livro
ele a apresenta como uma das grandes verdades de nossa religião. Diz que era a prática dos apóstolos e a
prática de toda a Igreja durante doze séculos. Apresenta-a como uma tradição imutável, como uma
instituição de Jesus Cristo. Não cessa de dar a entender que há obrigação de observá-la e de levantar
continuamente invectivas contra aqueles que se opuserem ao restabelecimento dessa penitência. Ademais,
ensina claramente que, antigamente, não havia, para nenhuma espécie de pecado mortal, outra penitência
a não ser a pública, como se pode ver no terceiro capítulo da segunda parte. Nele assume como verdade a
opinião que diz que não se encontra nos antigos Padres, e principalmente em Tertuliano, a não ser a
penitência pública, pela qual a Igreja exercia o poder das chaves. Segue-se daí, portanto, como claríssima
consequência, que o Padre Arnauld tem intenção de impor a penitência pública para todas as espécies de
pecados mortais e que não é calúnia acusá-lo disso, mas uma verdade que se deduz facilmente do seu
livro, quando é lido sem preconceito algum no espírito.
Vós, senhor Padre, me dizeis, porém, que isso é falso. Poderíamos escusá-lo, porque não sabíeis o
núcleo profundo das máximas do autor e de todas essas doutrinas que tendem a diminuir a Igreja nos seus
primeiros usos, dizendo que a Igreja deixou de existir desde aqueles tempos. Dois corifeus  dessas
opiniões disseram à Madre de Santa Maria de Paris , que lhe deram a esperança de poderem atrair para as
suas opiniões, que, desde há quinhentos anos, não existe mais Igreja. Foi ela quem mo disse e me
escreveu a mesma coisa.
Dizeis-me, em segundo lugar, que é falso que o Padre Arnauld tenha querido introduzir o uso de
impor a penitência, antes da absolvição, aos grandes pecadores. Entretanto ele faz disso uma lei geral para
todos os culpados de pecado mortal, o que se pode ver por estas palavras extraídas da segunda parte,
capítulo 8: “Quem não vê quanto esse Papa julga necessário que o pecador faça penitência de seus
pecados, não somente antes de comungar, mas também antes de receber a absolvição?” E um pouco mais
abaixo, acrescenta: “Estas palavras nos mostram claramente que, de acordo com as santas regras que esse
grande Papa deu para toda a Igreja, depois de tê-las deduzido da tradição perpétua da mesma Igreja, a
ordem que os padres devem observar na execução do poder que o Salvador lhes deu de ligar e desligar as
almas é de não absolver os pecadores, senão depois de tê-los mantido em gemidos e lágrimas, e de lhes
ter imposto o cumprimento de uma penitência proporcionada à qualidade dos seus pecados”. É preciso ser
cego para não perceber nestas palavras e em muitas outras que se seguem, que o Padre Arnauld crê que é
necessário adiar a absolvição para todos os pecados mortais, até o cumprimento da penitência. Com
efeito, não cheguei a testemunhar que o Padre Saint-Cyran impunha essa prática e ainda o faz com
aqueles que se entregam inteiramente a sua direção? Entretanto esta opinião é clara heresia.
Quanto à absolvição declaratória, dizeis-me que ele precisa apenas de seu primeiro livro para
demonstrar o contrário, e me citais três ou quatro autoridades para isso. Respondo que não é de se
maravilhar que o Padre Arnauld fale algumas vezes como os outros católicos. Nisto não faz nada mais do
de Sorbona. – Sancta Sanctis (As coisas santas para os santos). – Paris, Antônio Vitré, 1643.

. O Padre de Saint-Cyran não seria um desses corifeus.

. Helena Angélica Lhuillier.
183

que imitar Calvino, que nega trinta vezes que faça Deus autor do pecado, embora, em outras partes,
envide todos os seus esforços para estabelecer esta detestável máxima, que todos os católicos lhe
atribuem.
Todos os inovadores fazem a mesma coisa. Semeiam contradições em seus livros, afim de que, se
lhes censurassem algum ponto, pudessem esgueirar-se, mostrando o contrário em outras partes. Ouvi o
falecido Padre Saint-Cyran dizer que apresentava verdades, em locais reservados, a pessoas delas capazes
e, passando a outros lugares, onde encontrasse outras que não o fossem, dir-lhes-ia o contrário. Segundo
ele, Nosso Senhor agia assim e recomendava que o fizéssemos do mesmo modo.
Como é possível que o Padre Arnauld possa sustentar com seriedade que a absolvição apaga
verdadeiramente os pecados, já que ensina como acabo de mostrar, que o padre não deve dar a absolvição
ao pecador a não ser depois do cumprimento da penitência? E não acrescenta ainda que a razão principal
pela qual faz questão de que se observe esta ordem é a de dar tempo ao pecador para espiar seus crimes
por meio de uma satisfação salutar, como ele prova amplamente no capítulo 2° da segunda parte? Uma
pessoa judiciosa que quer que se expiem pecados por uma satisfação salutar, antes da recepção da
absolvição, pode crer com seriedade que os pecados sejam perdoados pela absolvição?
Dizeis-me que o Padre Arnauld afirma que a Igreja guarda no coração o desejo de que os
pecadores façam penitência segundo as regras antigas; e, ainda, que o Padre Arnauld diz que ambas as
práticas da Igreja, a antiga e a nova, são igualmente boas, mas que a antiga é melhor. Ela, sendo boa mãe,
não deseja senão o bem dos seus filhos e quer sempre o melhor para eles, ao menos em seu coração.
Respondo que é preciso não confundir a disciplina eclesiástica com eventuais desordens. Todo
mundo censura tais desordens. Os casuístas não cessam de se queixar delas e de colocá-las em evidência
para que sejam conhecidas. Mas é abuso dizer que não praticar a penitência do Padre Arnauld seja um
relaxamento que a Igreja tolera com pesar. Não temos grande garantia da prática do Oriente de que falais.
Sabemos, porém, que por toda a Igreja se praticam os sacramentos da maneira que o Padre Arnauld
condena. O Papa e todos os bispos aprovam o costume de dar absolvição depois da confissão e de não
impor penitências públicas, a não ser no caso de pecados públicos. Não é insuportável cegueira preferir,
em assunto de tais consequências, os pensamentos de um jovem senhor, que não tinha, quando redigiu
seus escritos, experiência alguma na conduta das almas, à prática universal de toda a cristandade?
Se a prática da penitência pública durou na Alemanha até o tempo de Lutero, como dizeis, foi
apenas nos casos de pecados públicos. Neste caso, ninguém acha mal que esta penitência seja
restabelecida por toda a parte, já que o Concílio de Trento o ordena expressamente . Não há relação
alguma entre a determinação de Santo Inácio, que também me alegais, com a conduta dos que afastam
todo mundo da comunhão, não por oito ou dez dias, mas por cinco ou seis meses; não somente os grandes
pecadores, mas santas religiosas que vivem em grande pureza. Nós o soubemos pela carta do senhor
Bispo de Langres ao senhor Bispo de Saint-Malo. Não é deter-se em questiúnculas salientar desordens
tão notáveis e que só tendem à total ruína da santa comunhão. Longe de as pessoas de bem terem de pôr
em prática estas máximas perniciosas, pelo contrario, têm justo motivo para desprezá-las e conceber má
opinião dos que as autorizam.
São Carlos não tinha a intenção de aprová-las, pois que nada recomenda tanto, em seus Concílios
e determinações, quanto a comunhão frequente. Decreta, por várias vezes, graves penas contra todos os
pregadores que afastam os fiéis, direta ou indiretamente, da comunhão frequente. Ninguém encontrará
nele imposição de penitência pública ou de afastamento da comunhão, no caso de alguma espécie de
pecado mortal. Nem poderá dizer que quis se interpusessem três ou quatro meses entre a confissão e
absolvição, como é prática muito frequente, até no caso de pecados ordinários, por esses novos
reformadores. Sendo assim, embora possa haver excesso ao se dar facilmente a absolvição a qualquer


. Raoul Allier (La cabale des dévots, Paris, 1902, in-16, p. 165) sente dificuldade em crer que Saint-Cyran tenha podido adotar tal propósito.
Prefere admitir que São Vicente o compreendeu mal. “Saint-Cyran percebia tão bem, escreve ele, que seu pensamento se chocava contra as
doutrinas correntes que, para evitar as condenações sumárias e os escândalos inúteis, só se abria a amigos certos e em condição de
compreendê-lo”. Eis a que se reduziria o que o abade Saint-Cyran teria dito a São Vicente. São Vicente estava lá no lugar, presente diante do
abade, quando este último falava; tal como nós o conhecemos, sabemos que ele era antes inclinado a escusar do que a acusar, a atenuar a
gravidade dos atos ou de palavras censuráveis, do que a exagerar. Sua autoridade é, parece-nos, de maior peso do que a de Raoul Allier.

. Sessão XXIV, cap. VIII.

. O relatório enviado por Sebastião Zamet, Bispo de Langres, a Aquiles de Harlay de Sancy, Bispo de Saint-Malo, era, acredita o abade
Prunel (Sébastien Zamet, p.264, nota 2), a resposta a um questionário preparado por Dom Harlay, sobre o decreto de Richelieu, a respeito de
Saint-Cyran. Encontramo-lo todo inteiro nesta obra, pp. 265-268.
184

espécie de pecado, o que São Carlos deplora, não se pode concluir daí que este grande santo aprovasse os
extremos aos quais o Padre Arnauld se lançou, já que são totalmente opostos a numerosos decretos que
ele emitiu.
Quanto ao que se atribui ao livro A comunhão frequente, a saber, que ele afasta as pessoas da
intimidade com a comunhão frequente, respondo-vos ser verdade que esse livro desvia todo mundo,
forçosamente, da familiaridade com a santa comunhão e a santa confissão, embora dê a entender, para
melhor acobertar sua jogada, que está muito longe desta intenção. Com efeito, na página 36 do seu
prefácio, não tece altos louvores à piedade daqueles que gostariam de adiar a comunhão até o fim de sua
vida, estimando-se indignos de se aproximarem do corpo de Jesus Cristo, e não afirma que se agrada mais
a Deus com esta humildade do que com todas as espécies de boas obras? Não diz, pelo contrário, no
capítulo 2° da 3ª parte, que é falar indignamente do Rei do céu dizer que seja honrado por nossas
comunhões? Não diz que Jesus Cristo só pode receber desonra e ultraje com nossas comunhões
frequentes, feitas de acordo com as máximas do Padre Molina, cartuxo , que ele combate em todo o seu
livro, como sendo um escrito inventado? Ademais, pretende provar, apelando para São Dionísio, no
capítulo 4° da primeira parte, que os que comungam devem estar inteiramente purificados das imagens de
sua vida passada, que lhes povoam o espírito, por um amor divino puro e sem mescla alguma. Afirma que
devem estar perfeitamente unidos unicamente a Deus, ser totalmente perfeitos e inteiramente
irrepreensíveis. Longe de ter suavizado de modo algum as palavras tão elevadas e tão distantes de nossa
fragilidade, ele as apresenta cruamente e sustenta sempre, em seu livro A comunhão frequente, que elas
contêm as disposições necessárias para comungar dignamente. Sendo assim, como seria possível a um
homem que considera essas máximas e esse procedimento do Padre Arnauld, imaginar que ele deseja
verdadeiramente que todos os fiéis comunguem com bastante frequência? Muito pelo contrário, é certo
que não seria possível ter como verdadeiras essas máximas, sem, ao mesmo tempo, se afastar muito da
comunhão frequente. Quanto a mim, confesso, com toda franqueza, que, se desse tanta importância ao
livro do Padre Arnauld como estais fazendo, não somente renunciaria para sempre à santa missa e à
comunhão, por espírito de humildade, mas, até mesmo, teria horror do sacramento. Com razão, é
totalmente verdade que ele o apresenta, em relação aos que comungam com as disposições ordinárias,
aprovadas pela igreja, como uma armadilha de Satanás e como um veneno que contamina as almas. Trata
os que dele se aproximam, nesse estado, como nada menos que cães, porcos e anticristos.
Se fechássemos os olhos a qualquer outra consideração, para não levar em conta a não ser o que
diz, em várias ocasiões, a respeito das disposições admiráveis sem as quais não deseja que alguém
comungue, poder-se-ia, ainda assim, encontrar na terra uma pessoa que tivesse tanta estima de sua própria
virtude a ponto de se acreditar em estado de poder comungar dignamente? Só o Padre Arnauld seria capaz
disto, já que depois de ter alçado essas disposições a tão elevado ponto que um São Paulo temeria
comungar, não deixa de se vangloriar, por várias vezes, em sua apologia, que celebra missa todos os dias.
Nisso, sua humildade é tão admirável como deveria ser a sua caridade e a boa reputação que tem de tantos
sábios diretores, quer seculares quer regulares, e de tantos virtuosos penitentes, que praticam a devoção,
dos quais uns e outros servem de motivo para suas invectivas ordinárias.
De resto, julgo que é uma heresia dizer que seja grande ato de virtude querer adiar a comunhão até
a morte, já que a Igreja nos manda comungar todos os anos. É também uma heresia preferir esta pretensa
humildade a toda espécie de boas obras, sendo evidente que ao menos o martírio é muito mais excelente;
como também o é dizer, absolutamente, que Deus não é honrado por nossas comunhões e que delas só
recebe desonra e ultraje.
Como esse autor afasta todo mundo da comunhão, acabaria contribuindo para que todas as igrejas
ficassem sem a celebração da missa. Com razão, apesar de tomar conhecimento do que diz o venerável
Beda que os que deixam de celebrar este santo sacrifício, sem algum legítimo impedimento, privam a
Santíssima Trindade de louvor e de glória, os anjos, de alegria, os pecadores, de perdão, os justos, de
socorros e graças, as almas do purgatório, de refrigério, a Igreja, dos favores espirituais de Jesus Cristo, e
a eles próprios, de medicina e de remédio, ele não tem escrúpulos de aplicar todos estes efeitos
admiráveis aos méritos de um padre que se retira do altar por espírito de penitência, como se pode ver no
capítulo 40 da primeira parte; chega mesmo ao ponto de falar mais vantajosamente dessa penitência do
que do sacrifício da missa. Ora, quem não vê que este discurso tem um grande poder de persuasão sobre
os padres, no sentido de levá-los a negligenciar a celebração da missa, já que se ganha tanto ao deixar de

. Antônio Molina, autor de um tratado sobre a Instrução dos padres, que foi traduzido em várias línguas, morreu em 1612.
185

celebrá-la quanto ao celebrá-la e que se pode mesmo dizer, segundo as máximas do Padre Arnauld, que o
mérito, no primeiro caso, seria maior? Como ele realça o afastamento da comunhão como muito acima da
comunhão, é forçoso também que estime muito mais excelente o afastamento da missa do que a própria
missa.
A moral de tudo isto é que este novo reformador não afasta os padres e os leigos do altar senão
sobre o belo pretexto de fazer penitência; mas, para saber em que coloca esta grande penitência, que ele
julga vantajosa para as almas, nós vemos, em palavras expressas, no prefácio, página 18, que, de todos os
rigores da antiga disciplina ele quase não mantém nada a não ser o distanciamento do corpo do Filho de
Deus, a parte mais importante segundo os Padres, porque representa a privação da beatitude, e a mais
fácil, segundo os homens, porque todo mundo dela é capaz.
Poderia o Padre Arnauld mostrar de maneira mais clara que seu livro foi composto com a intenção
expressa de levar à ruína a missa e a comunhão? Efetivamente, serve-se de toda a antiguidade para nos
pregar a penitência (da qual jamais vi o autor desta doutrina fazer um único ato, nem aqueles que o
ajudam a propagá-la), e depois de todas essas fanfarras, se contenta com a abstenção da comunhão. Com
certeza os que leem seu livro, e nele não percebem esta intenção, são do número daqueles dos quais fala o
profeta: Oculos habent et non videbunt (têm olhos e não veem); não compreendo como vós, senhor Padre,
podeis acusar os adversários do Padre Arnauld de arruinar a penitência. Com efeito, a queixa, pelo
contrário, e com razão, contra este autor é que ele envidou esforços extraordinários para provar que é
necessário fazer longas e rigorosas penitências, antes de comungar e de receber absolvição, e que, ao
mesmo tempo, declarou com palavras expressas (para que ninguém pudesse alegar ignorância, no caso),
que não reserva da antiga penitência nada mais do que o afastamento do altar.
Eis, senhor Padre, a resposta que dou à vossa carta, com tanta pressa que não tenho tempo de relê-
la.
Estou indo, neste momento, celebrar a santa missa, a fim de que praza a Deus vos dar a conhecer
as verdades que vos exponho, pelas quais estou pronto para dar a minha vida.
Teria muitas outras coisas para vos dizer sobre este assunto, se tivesse tempo disponível. Rogo a
Nosso Senhor que ele mesmo vo-las diga. Peço-vos não me envieis resposta sobre este assunto, se
perseverardes em tais opiniões. Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Não sereis mais diretor e administrador do Saint-Esprit de Toul, se esse Parlamento não acolher a
evocação8 para o Conselho do Rei de vosso processo contra os senhores Thierry e..., dos quais o último
obteve permissão de tomar posse9. Ora, ainda que ele admita vossa evocação, aquele que exerce o cargo
de primeiro presidente comunica que o Parlamento não o quer fazer, tendo recusado pela segunda vez e
rasgado a referida evocação; o advogado geral, pelo menos, fez isso; sendo assim, se não renunciarem ao
último decreto feito, vou tomar providência no sentido de que se salve o que for possível dos móveis.
Aproveitaram o tempo da revolta quase geral de nossos Parlamentos. Enfim, se não formos condenados
antes da chegada da minha carta, isto não tardaá mais de oito dias para acontecer. In nomine Domini!

Destinatário: Ao senhor Padre Dehorgny, padre da Missão, em Roma.

1065. – A ESTÊVÃO BLATIRON

Paris, 25 de setembro de 1648.


8
8. Conferir nota 2 da carta 1110.
9
9. O benefício do Saint-Esprit escapou, com efeito, das mãos do Padre Dehorgny. São Vicente mandou solicitá-lo mais tarde em Roma em
favor do Padre Jolly, que tinha a intenção de resignar a ele o benefício da Congregação da Missão (Cf. carta de 10 de outubro de 1653). O
negócio se arrastou. São Vicente escrevia ao Padre des Jardins a 29 de dezembro de 1657: “Não conseguimos ainda as cartas em favor da
união, mas estamos sempre correndo atrás e na esperança de obtê-las”.
.
Carta 1065. – C. as. – Dossiê de Turim, original. O final, a partir das palavras: Sou, no amor de Nosso Senhor, com aquele coração, é da
mão do Santo.
186

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Perdoar-me-eis se vos escrevo por outra mão que não a minha; estou muito apressado.
Louvo a Deus pelos sentimentos do senhor Cardeal . Tenho imenso respeito e reverência para com
ele, e teria muito prazer se ele pudesse ver de onde procedem meus sentimentos. Saberia, então, que
jamais pessoa alguma os teve, em tão elevado grau, para com outrem. Igualmente, bendigo a Deus pela
caridade desses nossos cofundadores e rogo-lhe abençoe a capela da casa. Estou muito contente com a
boa ordem que sua Eminência resolveu colocar no seminário, mandando que se fizessem nele os
exercícios espirituais. Peço a Nosso Senhor santifique a todos, por sua santa misericórdia.
Tendes razão em levantar alguma dificuldade para receber esse bom religioso. Peço-vos
acompanhar essa questão e deixar a providência divina agir. Entretanto, se perceberdes que isso pode
chegar a bom êxito e ele vier a insistir muito, podereis fazer a experiência, por favor.
Enviar-vos-emos o Irmão Cláudio, o mais cedo possível. Ele deu uma ida às águas, em Moulins.
Se estivesse aqui, o teríamos enviado. Está querendo aprender a fazer pão e aplicar a sangria. Precisará de
cerca de 15 dias para aprendê-lo. Entretanto, enviar-vos-emos dois coirmãos, para não ficardes em falta.
Se vosso pessoal já é suficiente, podereis enviá-los para Roma.
Sou, no amor de Nosso Senhor, com aquele coração que conheceis, mais terno para convosco do
que posso expressar. Saúdo vossa comunidade, prostrado em espírito a seus pés e aos vossos, e sou,
senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Esquecia-me de vos dizer que fiquei muito penalizado a respeito do que me dissestes sobre o
acidente acontecido em Gênova2. Comuniquei-o à comunidade, e os padres celebraram todos em ação de
graças a Deus por não ter chegado o mal às proporções que, de início, nos levaram a temer e para que
apraza à bondade de Deus preservar essa cidade do perigo. Nossos Irmãos vão comungar na mesma
intenção, se Deus quiser.
Sou, no amor de Nosso Senhor.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, superior da Missão de Gênova, em Gênova.

1066. – A LUÍSA DE MARILLAC

São Lázaro [outubro de 1648].

Seu servo Vicente de Paulo agradece humildemente à senhora Le Gras pelo remédio que ela lhe
enviou, e se propõe fazer uso dele, com a graça de Deus.
Trabalharemos no negócio de Monstrel e da feira.
Não me lembro do assunto da carta do senhor Pároco de Serqueux ; se o souberdes, dar-lhe-ei
resposta ainda hoje.


. O Cardeal Durazzo.
2
2. Lê-se à margem: turbilhão de vento acontecido no dia da festa de Santo Agostinho.
.
Carta 1066. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.

. Data da resposta a esta carta.

. Talvez Montreuil. No século XIII dizia-se Monsteriolum ou Monsterolum, de Monasteriolum, pequeno mosteiro; daí a palavra Monsterel
ou Monstrel, usado ainda no século XVII.

. A celebre feira de Saint-Laurent dependia da casa de São Lázaro.

. No Saine-Inférieure. Duas Filhas da Caridade foram instaladas lá pelo senhor Bispo de Saint-Luc, dono do castelo de Taillefontaine, por
contrato de 13 de novembro de 1645.
187

Penso que novos ares me serão proveitosos; assim que fui ultimamente a Saint-Germain , já na
viagem me senti melhor. Se eu não for amanhã a Saint-Germain, poderei partir para ir ver nossas queridas
Irmãs de Fréneville. É um fato que esses novos ares sempre me foram proveitosos, em minhas pequenas
enfermidades.
Não faríeis bem, senhora, em tomar ares em algum desses lugares: Liancourt, Saint-Denis ou em
outros? Peço-vos pensar nisso, e mandar dizer-me qual é a raiz que me enviastes, e como usá-la.

1067. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Outubro de 1648].

Senhor Padre,

Não me lembro bem do assunto da carta que o senhor Pároco de Serqueux  vos escreveu. Ficou-
me, porém, na memória, que se tratava das religiosas de perto de Forges , acusadas de alguma falta
grave, razão pela qual, creio eu, estão querendo tomar a abadia daquela que a possui e que ele
considera totalmente inocente da acusação que lhe fazem.
O que lhe mandei é alcaçuz, de que se faz tisana. Eu vo-lo enviei em pedacinhos para facilitar-vos
o uso. Importa, porém, que seja fresco e cortado só na medida do necessário para o uso; do contrário vai
enegrecendo. Não ousaria gabar-me de que o temos em nossa horta, porque não lhe vimos ainda senão a
flor e as folhas. Esquecia-me de vos dizer que a priora de Montmartre, irmã da senhora Channelain, está
à morte, por doença dos pulmões. Recomenda-se a vossas santas orações e vos suplica fazer-lhe a
caridade de recomendá-la à caridade dos padres e irmãos de vossa Companhia, para que Deus se digne
fazer-lhe misericórdia.
Eu vos devolvo esta carta, receando que penseis que foi levada por aquele a quem é endereçada.
Peço a Deus não seja longa vossa viagem e regresseis em perfeita saúde.
Nossas Irmãs estão nos pedindo um xarope de que não temos mais provisão; vou mandar
perguntar ao Irmão Alexandre se nos pode dar um pouco.
Uma vez que vossa caridade mo permite, irei a Saint-Denis e talvez a Bicêtre, pois, neste ano,
nada mais tenho a fazer em Liancourt; creio, também, que o Senhor e Madame de Liancourt vão passar
um mês em Roche-Guyon. Se partirdes amanhã, não terei a honra de vos ver antes. Que será de minha
pobre consciência durante esse tempo? O estado a que ficou reduzida a minha alma, por meus
relaxamentos, preguiça e infidelidades, é tal que assustaria Santa Catarina se ainda estivesse na terra, já
que lhe pareceria sem amor, sem este amor que eu deveria possuir em tão alto grau e pelo qual a graça
divina me fez existir, ó senhor Padre, a mim, vossa muito obediente serva e muito humilde filha,

LUÍSA DE MARILLAC.
Sexta-feira.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1068. – A RENÊ ALMÉRAS



. Saint-Germain-en-Laye, onde estava a corte.

. As Filhas da Caridade se tinham estabelecido em Fréneville em 1647.
.
Carta 1067. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade de Châteaudun.

. Data marcada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.

. Francisco du Marche.
,
. Hoje, centro administrativo de cantão nos arredores de Neuf-Châtel-en-Bray (S.I.).

. Alexandre Véronne.
.
Carta 1068. – Pémartin, op. cit., t. II, p. 121, I. 6I2
188

23 de outubro de 1648.

Senhor Padre,

Recebi duas cartas vossas ao mesmo tempo: uma, concernente à saída do Padre Fondimare , à
resposta do Irmão Doutrelet, à opinião do Padre Restal sobre nossas regras e especialmente ao parecer
que se emite sobre nossos votos; a outra, relativa à dispensa do cargo que tendes.
Começo a responder-vos que é preciso submeter-se à disposição da Providência, a respeito das
entradas e saídas da Companhia, e imitar a submissão de Nosso Senhor ao beneplácito de seu Pai, na
desolação de sua divina companhia. Em vista desse santo beneplácito, ele faz e provê a todas as coisas,
sempre para sua glória e para o bem das pessoas a quem isto diz respeito. Nessa perspectiva, devemos
considerar a saída dessas pessoas como um bem para a Companhia e talvez para seu próprio bem.
Quanto a Doutrelet, sabei dele a razão pela qual não quer renovar seus votos. Se permanecer firme
nesta decisão, mandá-lo-eis embora o quanto antes, suposto que Sua Santidade o aprove. De resto,
importa submeter-se ao bel-prazer de Deus que quis servir-se deste meio para a subsistência da
Companhia. Penso que isto, e todos os diferentes pareceres emitidos de lá sobre o assunto, deve levar-vos
a ir em frente com esta questão, o mais possível.
O Papa, dizem, não gosta do estado religioso. Tudo bem; pode, porém, acontecer que ao ver que
nossos votos não nos tornam religiosos, ele os aprove, sobretudo porque o assunto depende dele (digo, de
sua decisão). Será, portanto, bom, fazê-lo entender que será difícil a subsistência da Companhia, tendo em
vista os diversos, importantes, pesados e distantes trabalhos que mantém. A diversidade aparece no fato
de que ela se entrega ao serviço do pobre povo e ao dos eclesiásticos. Este último ela o exerce pelos
retiros espirituais promovidos em favor dos que estão em condição de receber as ordens sacras. Há outros
trabalhos com meninos que aspiram ao estado eclesiástico, como é o caso do pequeno São Lázaro, o
seminário de Saint-Méen e de Le Mans, e os dois, maior e menor, que vamos começar em Agen , e,
enfim, o trabalho com os ordinandos. Quanto às missões dos campos, conheceis a diversidade, a dureza e
a importância de todas elas. A maneira de conservar pessoas livres no meio de tantos e tão rudes e
importantes empregos! Acrescentai a isto os trabalhos na Barbária, na Pérsia e na Arábia Feliz, para onde
a Propaganda nos envia, e ainda o de Madagascar. Vede, senhor Padre, que é difícil conseguir-lhe a
subsistência, com segurança, nestes ofícios tão difíceis. Se acontecer que Sua Santidade, ou a
Congregação à qual ele confiar o exame dessa questão, desaprovar os votos simples, que eles façam a
caridade de nos apontar um meio para enfrentar tudo isso. A Companhia está submetida a Sua Santidade;
pertence a ela apontar-lhe os meios para a sua subsistência, se não concordar com o que propomos. Se,
depois de tudo, Sua Santidade não o aprovar, devemos aceitar permanecermos como simples
congregação, com suas próprias leis. Submeter-nos-emos a qualquer decisão, esperando que, talvez, a
experiência lhes dará a conhecer a necessidade que ela tem dos votos. Se Sua Santidade prover à questão
e aprovar o que apresentamos, cessarão todas as pequenas susceptibilidades e pretextos para abandonar a
vocação.
Esquecia-me de dizer-vos, com respeito a Doutrelet, que não me lembro se lhe demos o título da
casa, porque, se o fizemos, seria necessário pensar no meio a tomar para tirá-lo dele. O Padre [Carcireux] 
nos citou em juízo no sentido de nossa obrigação de lhe pagar o seu título, com os atrasados... , sobre o
pretexto da obrigação que lhe garantimos de torná-lo quite (isto é conservar-lhe a posse dele). Considerai
esta negra ingratidão e o que se poderia fazer a respeito do referido Doutrelet.
Quanto ao mais, penso que exagerastes no que destes ao senhor Padre Fondimare. Por que razão
dispensar tais prodigalidades aos que desertam da Companhia? Basta fazê-lo com os que mandamos


. Pierre Fondimare, nascido no Havre, recebido na Congregação da Missão em 18 de outubro de 1644, com a idade de 23 anos.

. Michel Doutrelet, nascido em Rouen, recebido na Congregação da Missão em 14 de maio de 1644, com a idade de 18 anos, admitido aos
votos em 14 de maio de 1646.

. Inocêncio X.

. O Seminário de Agen foi aberto, com efeito, alguns dias depois, sob a direção de Guilherme Delattre; mas foi fundado apenas em 1650.

. O Padre Pémartin leu: Curtivaux; mas esse nome não pertenceu a missionário algum.

. Estes pontos substituem uma passagem que o Padre Pémartin não soube ler, ou antes, que leu mal. Eis o seu texto: “... os atrasados, desde
que nós tínhamos feito, ou seja o que for. O Padre Chomel tem nosso priorado e sob o pretexto da obrigação...”
189

embora; mesmo assim, não bastaria dar-lhes oito ou dez escudos no máximo? Seria bom fazer com que a
comunidade o entenda, afim de que disto tome conhecimento, e não se conte com nada mais. Os padres
jesuítas não dão nada aos que saem, nem tampouco os padres do Oratório, nem Ordem alguma, que eu
saiba.
Quanto às nossas regras, penso, senhor Padre, que é necessário começar a trabalhar na sua
aprovação, ou, ao menos na aprovação dos votos e na vitaliciedade do generalato, em relação aos que
vierem no futuro. No caso de haver dificuldade para receberem todas as regras, seria necessário reduzi-las
aos resumos que me enviastes, acrescentando os dois pontos acima. Em nome de Deus, senhor Padre, não
percais tempo nesse empenho.
Tratemos agora de vossa pequena carta. Dou-vos a certeza de que ela me fez pensar no que vos
tenha podido levar a pedir exoneração do vosso cargo. Algumas vezes o coração me disse que estáveis
querendo imitar os Padres Dehorgny e Codoing, que pediram, como vós, serem dispensados do
superiorato. Outras vezes, julguei que pensáveis fosse vossa conduta a causa da saída daquelas pessoas, e,
ainda, em outras, que não se tratava de nada disto, mas que a causa verdadeira era a correspondência
particular que mantenho com o Padre Dehorgny, da qual não vos dou conhecimento. Os pacotes de cartas
que escrevi ao referido Padre Dehorgny vos fazem pensar que trato alguma coisa com ele, da qual nem
ele nem eu vos informamos, por falta de confiança em vós. Dir-vos-ei, quanto ao primeiro ponto que, se o
motivo for apenas esse que vos alego, não preciso me preocupar, mas louvar a Deus, porque não conheço
superior algum que não peça exoneração do superiorato. Quanto à segunda hipótese, digo-vos que jamais
tal pensamento se apresentou ao meu espírito; muito pelo contrário, rendo graças a Deus por vossa
conduta e lhe peço que o ajude a perseverar nela. Quanto à terceira, digo-vos que o assunto das cartas que
lhe escrevia é de tal natureza, que não há ninguém na terra com quem eu possa tratar da questão, nem
mesmo com o Padre Lambert, meu assistente, no qual tenho perfeita confiança, como tenho, com razão,
naqueles com quem me comunico. Ora eu não falei do que trato com ele a quem quer que seja da
Companhia, e lhe pedi, a ele mesmo, nada dizer a pessoa alguma. Está em jogo a salvação e a reputação
de uma pessoa que não quer que fale disso com ninguém, a não ser com ela. É assim, senhor Padre, a
natureza do assunto que trato com ele. Em nome de Deus, senhor Padre, ficai certo de que não há pessoa
no mundo em relação à qual Deus me deu mais confiança do que em vós, nem por quem eu tenho maior
estima. Sendo assim, suplico-vos situar esse pensamento entre aqueles que o espírito maligno quis incutir-
vos, quando de vossa enfermidade. Asseguro-vos que os dois procedem da mesma fonte e tendem para o
mesmo fim. Disto vos asseguro na presença de Nosso Senhor, em cujo amor sou...
O Padre Brisacier sente aversão aos votos; ele me falou outrora nestes termos. Ficou, contudo,
satisfeito quando lhe disse que não pretendemos entrar no estado religioso. Disse-me que poderia ser
aplicado aos negócios do Rei, aí onde está; se isso acontecer será necessário proceder com ele com
precaução. Podereis dizer algo a ele, a respeito disto, como pensamento próprio; todo esforço deve
concentrar-se no trato com os da Congregação. Basta direcionar vossas principais forças neste sentido e
que acioneis a intermediação do senhor Embaixador, no trato com Sua Santidade. Já existe algum fato
novo, vindo de outro lado, a nosso respeito. Se, por acaso, o senhor Embaixador não for do apreço de Sua
Santidade, bastará que fale com ele do assunto uma vez, para início. Fazei depois vossas solicitações
particulares, não tanto por razões quanto por recomendações, junto aos senhores Bispos, quanto possível,
junto a bispos franceses . Mitte sapientiam et nihil deerit (Usai de sabedoria e nada faltará).

1069. – A ANTÔNIO PORTAIL, PADRE DA MISSÃO, EM MARSELHA

30 de outubro de 1648.

A prática de trazer o terço na cintura se observa sempre nesta Casa; peço-vos que se observe isto
por aí. Nossas outras Casas são fiéis a isso; é um uso santo e edificante.


. As cartas de 25 de junho e de 10 de setembro e talvez outras que não temos mais.

. O Marquês de Fontenay-Mareuil.
.
Carta 1069. – Reg. 2. p. 104.
190

1070. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

30 de outubro de 1648.

Rogo a Deus vos inspire a maneira de agir, com proveito, com o Padre...; parece-me que a melhor
será a que for mais acompanhada de mansidão e suporte, como mais conforme ao espírito de Nosso
Senhor e mais adequada para conquistar os corações. Se ganhardes o dele, ele vos manifestará total
contentamento. O estado em que se encontra é apenas uma tentação que passa, pela qual é preciso rezar a
Deus por ele.
Peço-vos suspender os retiros de um dia por mês, que desejais que vossa comunidade faça.
Estamos procurando examinar se é conveniente ou não continuar a fazê-los aqui, por causa de alguns
inconvenientes ocorridos.

1071. – A UM BISPO RECENTEMENTE ELEITO1

(A carta foi escrita em Latim, III, 384. Optamos por traduzir apenas a versão francesa)

Foi grande o meu pesar, em razão de minha doença e da multiplicidade dos negócios, por não
poder responder mais cedo, por carta, à honra com que Vossa Excelência se dignou prevenir-me.
Reconheço-me incapaz de vos agradecer condignamente, tanto por esse favor, quanto pelos benefícios
com que até o presente cumulastes nossos coirmãos de Roma. Deus, porém pagará por mim esta dívida de
gratidão. Nosso Senhor, que se fez fiador dos pobres, já responde superabundantemente aos meus votos,
escolhendo para o episcopado um prelado que deseja tornar-se útil, sabe governar, é notável por sua
prudência e integridade de costumes e promete ser digno sucessor dos santos. Qual não é minha felicidade
e minha alegria, ao ver que Deus dirigiu tão bem o curso dos acontecimentos que, depois de vos ter feito
crescer de virtude em virtude, vos acrescenta honra sobre honra! Confiando no Senhor, esperamos que
depois de vos ter encaminhado para altos destinos, pelo bem da Igreja, vos elevará mais ainda. Com
nossas ações de graça, ofertar-lhe-emos também nossas afetuosas preces. Possa Aquele que vos escolheu
para comunicar a ciência a seu povo, manter vossas ovelhas no bem e conservar vossa Igreja sem mácula
nem ruga, sob vossa conduta pastoral! Esperamo-lo tanto mais quando Deus apaziguou as perturbações
que se levantavam aqui como ondas tumultuosas e fez cessar a guerra que começava. Gozamos agora de
paz, cuja manutenção lhe pedimos com instância.
Quanto aos conselhos e à benevolência com que vos dignais favorecer nossos coirmãos, agradeço-
vos por tudo, não na medida do meu dever, mas na medida de minhas forças. A isso responderei com
meus votos e minhas preces. O que a impotência da minha pequenez não vos pode oferecer, recebê-lo-eis
da liberalidade transbordante daquele que torna todos os homens participantes do tesouro de suas graças.
Entretanto se Vossa Excelência quiser honrar-me com suas ordens, encontrar-me-á sempre
disposto à mais pronta obediência.
De Vossa Excelência reverendíssima muito humilde e muito devotado servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno superior geral da Congregação da Missão.

Paris, 5 de novembro de 1648.


.
Carta 1070. – Reg. 2. P. 200.
.
Carta 1071. – C. as. – Biblioteca do Vaticano, espaço Barberini, Latinorum 2172, original. Pela ortografia de certas palavras, adivinha-se
que a carta foi escrita por um secretário italiano.
1
1. Provavelmente, João Batista Spinola, eleito Bispo de Matera em 14 de maio de 1648, transferido para Gênova em 1664, depois,
promovido ao cardilanato. Faleceu em 4 de Janeiro de 1704 .
191

1072. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

6 de novembro de [1648].

Senhor Padre,

Uma pessoa de Fontainebleau me comunicou, há alguns dias, que nossa Irmã Bárbara Angiboust
estava com febre desde a festa de Nossa Senhora, de setembro, e ontem nos mandaram dizer de Saint-
Germain-de-l’Auxerrois que seu confessor tinha dito a uma dama da paróquia que ela estava à morte e
que iam dar-lhe a Unção dos Enfermos2. Concordais, senhor Padre, que, face a estas notícias, enviemos
hoje para lá uma Irmã? Com efeito, escrevemos, e uma de nossas irmãs partiu, há oito dias, para lhe
servir de companhia, e não temos notícia alguma dela.
Poderia vossa caridade ter a bondade de nos responder prontamente? Peço-vos, também, pelo
amor de Deus, vossa bênção e sou, senhor Padre, vossa muita obediente e muito grata filha e serva,

L. DE M.
Tende a bondade de lembrar-vos da resposta ao senhor Bispo de Beauvais3.

1073. – A LUÍSA DE MARILLAC

[6 ou 7 de novembro de 1648].

PRIMEIRA REDAÇÃO
Senhora,

Seria caridade e encorajamento para as outras irmãs se enviásseis uma irmã  para visitar nossa
pobre doente, pelo coche, se houver, ou então, por via fluvial  até Melun e, de lá, a pé, por três léguas, até
Fontainebleau, com alguém que a acompanhe.

SEGUNDA REDAÇÃO

Estou muito sensibilizado com a gravíssima doença de nossa pobre Irmã Bárbara. Enviar-lhe uma
Irmã é virtude de piedade e motivo de encorajamento para as outras. Podereis, portanto, enviá-la, se vos
apraz, senhora, pelo coche, se houver algum ou por via fluvial até Melun, de onde parte uma embarcação
segunda ou terça-feira até o porto de Saint-Paul . De lá ela deve ir a pé, através dos bosques até
Fontainebleau, onde não há perigo, no momento, pois a corte não está lá. O coche se encontra na rua la
Cossonnerie.

.
Carta 1072. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade da casa central de Ans, perto de Liège.

. Ver Cartas de Luísa de Marillac,c. 223.
2
2. No original francês: “l’extrême-onction”, denominação antiga do sacramento da Unção dos Enfermos (N. do T.).
3
3 Agostinho Potier.
.
Carta 1073. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade de Ans, perto de Liège.

. Esta carta responde à precedente. São Vicente havia primeiramente escrito sua resposta em torno do próprio texto da carta de Luísa de
Marillac; entretanto, seja porque não estivesse bastante legível, seja porque não houvesse expressado bastante bem o seu pensamento,
recomeçou sobre a folha deixada em branco.

. Luísa de Marillac optou por Ana Hardemont.

. Pelo Rio Sena.

. Sobre o cais dos Celestinos, em frente à rua Saint-Paul. É lá que desembarcavam os vinhos, os ferros, o carvão e as mercadorias de
mercearia.

. Esta rua existe ainda com o mesmo nome; ela dá de um lado para a Avenida Sébastopol e do outro para os Halles centrais.
192

1074. – A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

Paris, 7 de novembro de 1648.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Respondo à vossa muito querida carta de 26 do mês passado, premido pela urgência de sair para ir
a Saint-Denis, onde farei a visita na Casa das Filhas da Visitação.
Nada recebemos, da parte devida ao falecido Padre Bourgais , a não ser as 100 libras que lhe
foram enviadas, como sabeis. Há pouco motivo para esperar o resto, uma vez que não temos o título da
dívida e que é justo que isso seja atribuído aos pais do falecido. Seu pai está vivo, ao que me parece.
Fareis bem em evitar a questão com o senhor Voseillan, relativa ao resgate dos viveiros. Se ele
não quiser abaixar até 125 libras, será preciso dar-lhe alguma coisa a mais, em vez de entrar em litígio.
É verdade que nossos negócios prosseguem como feitos com o senhor Padre Rivière e que deveis
agir, no que diz respeito a suas capelas, da mesma maneira como fazeis com as demais coisas. Deveis,
porém, aparecer como agindo em nome do procurador do referido Padre Rivière, aguardando que
tenhamos concluído e resolvido tudo com ele.
Estamos fazendo o possível para vos enviar padres e irmãos.
Nossa intenção não é que cada um de vossa Casa ofereça o sacrifício em favor de nossos
falecidos, com prejuízo das obrigações que tendes, às quais é preciso, antes do mais, satisfazer. Em lugar
de missas, poderão ser feitas orações pelos nossos defuntos.
O Padre Bajoue envia ao Padre Cornaire  três livros e ao Padre Roujon um regulamento da
Caridade. Vai tudo empacotado e coberto de papel. O endereço foi dado pelo mensageiro. Mandai-o
retirar, por favor, e continuai a rezar por mim que sou, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Embaixo da primeira página: Padre Gentil.

1075. – A LUÍS RIVET, SUPERIOR, EM SAINTES

15 de novembro de 1648.

É preciso evitar dar qualquer motivo de descontentamento aos senhores Vigários Gerais; são
nossos patrões; devemos nos ajustar à vontade deles, quanto nos for possível. Quando, portanto, vos
enviarem eclesiásticos, a comunidade deve recebê-los, de bom grado, e ficar com eles durante o tempo
que mandarem. Acolhei, até mesmo, os padres que vos forem enviados por eles, para receberem
correção, sem deixar, se for o caso, de mostrar-lhes humildemente que estais sobrecarregados, ou outros
inconvenientes que possam ocorrer. É muito conveniente que a comunidade siga suas intenções com
relação às missões, e que nada empreenda sem seu consentimento e sem lhes perguntar onde pregá-las.
Devemos ter por máxima jamais nos espantar, com as dificuldades presentes, mais do que com uma
.
Carta 1074. – C. as. – Dossiê de Turim, original.

. Jacques Le Bourgais, nasceu em Coutances, foi recebido, já padre, na Congregação da Missão em 17 de setembro de 1645, com a idade de
38 anos.

. Guilherme Cornaire, nascido a 4 de junho de 1614, em Tincey (Haute-Saône), ordenado padre na quaresma do ano de 1639, entrou na
Congregação da Missão em 2 de dezembro de 1647. Fez os votos em Le Mans, em 23 de novembro de 1653. Foi colocado em Fontainebleau
em novembro de 1661. O Irmão Chollier redigiu notícias sobre ele, as quais não nos foram conservadas.
.
Carta 1075. – Reg. 2, p. 107.
193

ventania passageira. Elas se dissiparão, como veremos, com um pouco de paciência. O tempo muda tudo.
Li na história dos jesuítas que o Papa que sucedeu ao que instituiu a Companhia deles como Ordem
religiosa, os obrigou a usar a murça. Era duro para eles. Contudo, tiveram de passar por isso durante a
vida dele. Logo após, porém, sua morte, abandonaram logo a murça . Do mesmo modo, se estão agora
exigindo de vós alguma coisa que não vos convém, ide levando com calma alguns poucos dias; a
vicissitude das coisas vos livrará logo desta sujeição. Deus nos exalta e nos rebaixa, nos consola e nos
aflige, na medida em que nos vê dispostos a tirar proveito desses estados.

1076. – HENRIQUE DE MAUPAS DU TOUR, BISPO DE PUY,


A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Duas questões muito importantes para a glória de Deus me obrigam a vos traçar estas linhas.
As desordens da abadia de Monestier, Ordem de São Bento, nesta diocese, a quatro léguas de
Puy. Ela depende dos religiosos de Sansterre. Os reverendos Padres da reforma de Saint-Maur, que
moram na abadia de Saint-Germain-des-Prés, vos darão todas as notícias a respeito. Voltei de lá ontem,
onde intimei o prior a castigar um religioso...
As violências e sacrilégios que os soldados do regimento de Languedoc, comandados pelo senhor de
Valon, cometeram numa Igreja de minha diocese de três dias para cá. Suplico-vos muito humildemente
informar a Rainha sobre elas, quanto antes. Escrevi, mais longamente, a respeito desta questão, ao
tesoureiro da casa real. Creio que ele vos mostrará a minha carta. Está em jogo a glória de Deus. Os
altares foram profanados, o santo cibório, roubado, assim como o cálice no qual se fazia a consagração
todos os dias. Temo que Deus venha manifestar sua ira contra os que têm a autoridade em mãos, se não
tomarem providência. Enviarei expressamente uma pessoa, dentro de oito dias, à corte, para transmitir
as informações e as queixas.
Vosso, senhor Padre, muito humilde servo,

HENRIQUE,
Bispo de Puy.
Puy, 18 de novembro de 1648.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral da Missão.

1077. – THOMAS TURCHI, SUPERIOR GERAL DOS DOMINICANOS, A SÃO VICENTE

26 de novembro de [1648].

(A carta foi escrita em latim. Damos a tradução da versão francesa)

Thomas Turchi previne São Vicente de Paulo de que, depois de ter ouvido os Padres Labat, Biarrotte e o Irmão
Bernardo, os aconselhou a retornarem para a sua província, ou melhor os mandou de volta para lá, empenhando-os a entrarem
em entendimento, com vistas à reconciliação. Espera o resultado das negociações para decretar a união e a paz, se as condições
propostas lhe agradarem, medida que será muito apreciada pelo Rei, pela Rainha e pelo senhor Cardeal.

. Hábito de coro. Paulo IV tinha 83 anos, quando tomou essa medida. Morreu no ano seguinte.
.
Carta 1076. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.

. Hoje, Le Monastier, centro administrativo de cantão do Haute-Loire.

. Esse mau religioso praticou tal escândalo que, por respeito para com o leitor, somos obrigados a interromper aqui a frase do Bispo
de Puy.
.
Carta 1077. – Arquivos da Missão, cópia tirada da casa generalícia dos reverendos Padres dominicanos, Epistolae R. P. Turchi, IV, 88, p.
20.

. Data imposta pelo lugar do documento no registro.
194

1078. – A JEAN BARREAU, CÔNSUL DA FRANÇA, EM ARGEL

4 de dezembro de 1648.

Não podemos assegurar melhor nossa felicidade eterna do que vivendo e morrendo no serviço dos
pobres, entre os braços da Providencia e em total renúncia a nós mesmos, para seguir a Jesus Cristo.

1079. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Dezembro de 1648].

Senhor Padre,

Estamos com muita dificuldade para encontrar uma pessoa para ir à assembleia que se realizará
na residência da senhora Duquesa de Aiguillon. Não podemos dar-lhe outras instruções, mas apenas
colocar-lhe nas mãos nossos papéis. E, como creio que o interesse de todos é semelhante ao nosso,
pensei que, talvez, meu filho pudesse ir e fazer como os outros. Se vossa caridade, porém, julgar
conveniente, entregaremos nossos papéis a quem for representar a vossa Casa. Aguardaremos a ordem
que vos aprouver dar-nos, enquanto rogamos a Deus vos conceda saúde, para sua maior glória. Sou,
senhor Padre, vossa muito obediente e agradecida filha e serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1080. – ESTÊVÃO BLATIRON A SÃO VICENTE

Gênova, 10 de dezembro de 1648.

Durante uma missão pregada em Lavagna, vários bandidos se converteram.

1081. – A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

11 de dezembro de 1648.

Deus seja bendito, senhor Padre, porque vossa família, no presente, está caminhando bem!
Algumas vezes apraz a Deus que as comunidades caiam em tal desolação, que tudo parece perdido; mas
depois ele as soergue a um estado melhor do que aquele em que se encontravam antes. Os toques vindos

.
Carta 1078. – Reg. 2, p. 34.
.
Carta 1079. – C. aut. – Original comunicado pela superiora das Filhas da Caridade da rua Oudinot, 3, Paris.

. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
.
Carta 1080. – Abelly, op. cit.,1. II, cap. I, séc IV, 1ª ed., p. 71.

. Pequena cidade da província de Gênova, onde nasceu Inocêncio IV.
.
Carta 1081. – Reg. 2, p. 229.
195

do alto são sempre salutares. Peço-vos rogar a Deus por mim, como farei por vós, a fim de que jamais
nosso espírito se espante ao detectar decadência em nossas Casas. Ele rebaixa e soergue como bem lhe
parecer. E o rebaixamento que permite em uma pessoa da qual pretende servir-se, é presságio de sua
futura elevação. A desconfiança que tendes de vossa conduta é boa; mas não é preciso confiar-se a Nosso
Senhor e abandonar-se à sua ação? Com efeito, é ele quem tudo dirige e não nós.

1082. – THOMAS TURCHI A SÃO VICENTE

Roma, 21 de dezembro de 1648.

Reverendíssimo senhor Padre Vicente,

Sinto-me muito reconhecido pelo vosso zelo em favor dos negócios de minha Ordem e pelo
empenho que tivestes em recolocar os antigos Padres da província de Tolosa nos caminhos de seus
deveres, dos quais a vaidade e a libertinagem os tinham desviado e os tinham levado a inventar danos em
que teriam eles próprios colocado seus bens e sua tranquilidade. Não fiz, senhor Padre, a união de que
se queixavam, a não ser à instância e com o consentimento deles, para chegarem a um acordo em suas
rixas e desavenças particulares. Há dois anos, se encontravam nessa lamentável situação, sem
provincial, em meio à confusão, às facções e parcialidades em que as pretensões de alguns, entre outros
as dos Padres Biarrotte e Marrin, os tinham lançado. Ao fazer-lhes minha visita, encontrei os conventos
dessa província em lastimável estado, tanto no campo material quanto espiritual. Casas caíam em ruínas,
em Marciac, La Réole, em Port Sainte-Marie , etc., pela má administração econômica e o pouco zelo
dos superiores pelo bem comum e pela observância das regras religiosas. Escândalos aconteciam por
toda a parte, como em Bergerac, Agen, Marciac, La Réole, Port Sainte-Marie, etc. Ouvi queixas
generalizadas de pessoas de fora que não eram por eles servidos e deles não recebiam edificação
alguma. Acrescem a isto, enfim, as súplicas comuns de todos, e deles próprios, por se verem sem noviços,
sem condição de fazer seus estudos e sem os meios nem a esperança de consegui-los, em razão da
pequenez e pobreza dos seus conventos. Tantas calamidades presentes, e prováveis para o futuro, me
obrigaram a aplicar esse remédio eficaz e único da referida união dessa província tão miserável, e do
que restava da segunda Ordem, à Congregação de Saint-Louis, de aquém Loire, cujos conventos exalam
bom odor, tanto no campo espiritual, quanto no temporal. Eles dispõem dos meios para formar, na
observância e na ciência, numerosos noviços e seminaristas, a fim de reparar as brechas dessa
província, irreparáveis de outro modo, e insinuar-lhes, imperceptível e amorosamente, os princípios e as
práticas da vida regular, fundamento e suporte únicos das Casas religiosas. Estas considerações, senhor
Padre, que tinham cimentado a união, os teriam levado a fomentá-la e estimá-la, se a ambição e a
vaidade de alguns senhores ou doutores não os tivessem extraviado. Ficaram privados do cargo de
provincial, tanto por não terem nada que pudesse levar à observância regular, único caminho para o
bem e a conservação da observância religiosa nos conventos onde esta última estava presente, quanto
por nada terem para obrigar os outros a acolhê-la e abraçá-la, conformando-se com as ordens e
vontades dos cristianíssimos reis, de feliz memória, Henrique IV e Luís XIII. Sempre, com efeito,
insistiram estes últimos, nos capítulos gerais e com os Superiores Gerais da Ordem, que os provinciais
da França abraçassem a observância religiosa, e os noviços fossem formados nas Casas de estrita
observância. E aqui está um dos seus outros agravos, pelos quais foram bem ousados por aqui, graças
aos artifícios do Padre Labat, então procurador deles nesta corte. Extorquiram, sob falsos relatórios e
sub-repticiamente, bulas contra o breve do Papa Urbano VIII, de feliz memória, contra as ordens dos
capítulos gerais e o decreto da Congregação dos Regulares, bem recente, que os condena a me obedecer,
ciente e tendo considerado todos os seus referidos agravos. Essa questão, senhor Padre, foi considerada
.
Carta 1082. – Arquivos da Missão, cópia tirada da casa generalícia dos reverendos Padres dominicanos, Epistolae R. P. Turchi IV, 88, p.
118.

. Talvez Martin.

. Centro administrativo de cantão, nos arredores de Mirande (Gers).

. Centro administrativo de cantão, nos arredores de Agen (Lot-et-Garonne).
196

como total violência e ousadia contra a honra desta corte, que ficou muito indignada por ter sido pega de
surpresa. Feriu, também, a autoridade da Congregação dos Cardeais, as ordens do Rei, que se dignara,
por suas cartas patentes, confirmar o citado decreto de união e a disposição dos Parlamentos de Tolosa
e de Bordéus, que a homologaram. Finalmente, afrontou as boas intenções do senhor Cardeal, sob cujo
parecer e ciência tratei todo o negócio. Não posso, portanto, ser leniente em coisa alguma, antes de eles
obedecerem e repararem, por sua obediência e submissão, as más sementes de rebelião e irreverência
que suas violências e incursões lançaram nos espíritos dos religiosos, de perigosíssimas sequelas. Além
do mais, haveria mau exemplo, se eu cedesse o mínimo que fosse, ainda que meu dever e minha
consciência mo permitissem. Portanto, senhor Padre, peço-vos concordar que me obedeçam. Depois,
dar-lhes-ia a conhecer que sou pai para eles e sempre pronto a perdoá-los, quando estiverem em
condição de receber essa graça, isto é, quando cumprirem seu dever.
Não posso, portanto, no momento, fazer outra coisa, preso aos interesses da corte e da minha
Ordem, e muito grato a vós por terdes querido reconduzi-los ao seu dever. Queira Deus que acreditem
em vós! Por estas dificuldades estais vendo, senhor Padre, como é difícil e trabalhoso contentar todo
mundo. Vede, também, como, ao insistirem na reforma dos conventos, a quantas aflições e dificuldades
se sujeitam os senhores bispos. É muito mais fácil desejar esse bem do que executá-lo. Se não respondo...
ao seus bons desejos tão logo quanto o desejam, é antes por falta de meio do que de boa vontade, já que
é uma das maiores consolações para mim ver minha Ordem na observância religiosa e na fidelidade a
sua vocação.
Peço a Deus continue dispensando-vos suas graças e abençoando vossas santas intenções, pelas
quais, se é que aqui posso alguma coisa, peço-vos servir-vos de mim, com tanta liberdade quanto confio
em vossa piedade. Já me ofereci, em tudo que puder, a vossos bons padres e filhos aqui presentes.
Rogo-vos acreditar-me...

1083. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

Paris, dia de [Natal de 1648].

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


[Já que] aprouve [a Deus abençoar os trabalhos] que fizestes [e lhes conceder bom êxito], rogo-lhe
seja ele [mesmo vossa recompensa] e que todas as suas criaturas o g[lorifiquem] por isto. Ele vê o meu
reconhecimento por tudo, e isso me consola, na impotência em que estou de exprimi-lo por palavras.
Praza a sua divina bondade que as almas por vós socorridas façam um santo uso das luzes que receberam,
e que as que ireis socorrer sintam os efeitos de sua misericórdia!
Não lamento o terdes passado de uma missão para outra sem retornar à Casa, mas o fato de vos
terdes privado de um pouco de repouso, receando muito que o excesso de trabalho vos prejudique. Em
nome de Nosso Senhor, senhor Padre, poupai-vos.
Terça-feira passada partiram daqui nosso Irmão Ennery , nosso Irmão Cláudio e um outro irmão
coadjutor, todos eles muito contentes, porque vão prestar-vos seus serviços e submissão. Pegaram o coche
de Lyon juntamente com um padre e um clérigo de [nossa Companhia] que estão indo para a Barbária.
[O primeiro, que se chama Padre] Dieppe [vai para A]rgel, no lugar [do Padre Lesage,] e o o[utro
para] Túnis, a fim de [desempenhar a função de] côns[ul da na]ção francesa; [nesta qualidade, fica
.
Carta 1083. – C. as. – Dossiê da missão, original. O documento está em péssimo estado.

. A data se encontrava na parte do original arruinada pela umidade; foi reproduzida no dorso da carta.

. Jean Ennery, nascido em dezembro de 1616, em Castle Mak Ennery (diocese de Limerick, Irlanda). Entrou na Congregação da Missão em
23 de setembro de 1642 e fez os votos em 11 de outubro de 1645. Era, no dizer de São Vicente (Abelly, op. cit., 1.III, p. 48), um “homem
sábio, piedoso e exemplar”. Ensinou teologia em São Lázaro (1652), socorreu os infelizes habitantes da Champanha atormentados pela
guerra (1653) e assistiu seus compatriotas que se tinham refugiado em Troyes (1654). Enviado para Gênova, ali morreu de peste em 1657.

. Jean Dieppe, nascido em Cancale (Ille-et-Vilaine), recebido na Congregação da Missão em 5 de agosto de 1647, com a idade de 30 anos.
Morreu de peste, em Argel, em 2 de maio de 1649. Deixara Paris em 22 de dezembro.
197

encarre]gado de [fa]cilitar [o regaste dos esc]ravos. [Seu nome] é Huguier , tem conhecimento dos
negócios do mundo e é temente a Deus.
Aprouve a Deus dispor do Irmão Fargis, que estava conosco há um ano e nos trazia muito
consolo, porque era muito piedoso e dava muito bom exemplo. Faremos uma conferência sobre ele nos
próximos dias. Peço-vos rogar e mandar que se rogue a Deus por sua alma, sem esquecer a minha, que
estima ternamente a vossa e vossa pequena comunidade, que saúdo em espírito de humildade e afeição.
Se nosso Irmão Robert quiser tornar-se religioso, tudo bem, liberai-o, já que desde muito tempo
não foi possível tirar-lhe o desejo fantasioso de estudar. Nosso Senhor nos ajude a participar da sua
humildade, da sua paciência e da sua caridade, em cujo amor sou, senhor Padre, vosso muito humilde
servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Blatiron, superior dos padres da Missão, em Gênova.

1084. – A UM PADRE DA MISSÃO

[Dezembro de 1648 ou janeiro de 1649].

Senhor Padre,

Aprouve a Deus levar-nos o bondoso Irmão Fargis, um ano após sua bondade no-lo ter dado. Era
Conde de Rochepot e senhor de Fargis. Desposara a irmã da Madame General das Galeras, nossa primeira
fundadora e fora embaixador do Rei na Espanha. Morreu no dia 20 do mês de dezembro. Em sua morte,
como em sua vida, mostrou-se muito desapegado e totalmente pleno de Deus. Na verdade, senhor Padre,
foi para nós um grande exemplo, enquanto tivemos a felicidade de tê-lo conosco, de tal maneira que
jamais o vi cometer um único pecado venial. Recomendo-lhe a alma a vossas preces e rogo a Nosso
Senhor santifique a vossa cada vez mais. Não duvido de vossa coragem para imitá-lo.

1085. – AO MARQUÊS DESPORTES

Último dia do ano de 1648.



. Benjamin José Huguier, nascido em Sézanne (Marne) em 10 de março de 1613, procurador no Châtelet de Paris antes de sua admissão na
Congregação da Missão, na qual entrou em 15 de setembro de 1647. Fez os votos em 1651, depois de seu retorno à França e foi ordenado
padre em fevereiro de 1655. Depois de sua ordenação, tornou-se capelão das galeras de Toulon. A Barbária, contudo, o atraía. Foi enviado
para Argel em 19 de setembro de 1662, com o título de vigário apostólico. Grassava por lá a peste, causando terríveis devastações. Contraiu a
doença à cabeceira dos moribundos que ia assistir e sucumbiu ele próprio em abril de 1633 (Mémoires de la Congrégation de la Mission, t.
II, pp. 221-231).

. A família de Charles d’Angennes, senhor de Fargis, tinha feito nome na carreira militar e na diplomacia. Pelo casamento com Madeleine
de Silly, irmã de Madame de Gondi (cerca de 1610), tornou-se Conde de Rochepot. É provável que São Vicente o tenha visto mais de uma
vez na residência do General das Galeras, quando lá estava como capelão. O senhor de Fargis foi embaixador na Espanha de 1620 a 1626.
Em 1° de janeiro de 1626, assinou o tratado de Monçon, que foi desaprovado por Richelieu e concluído, em novas bases, em 6 de março.
Sabe-se que a Rainha-Mãe, descontente com a política e a influência de Richelieu, agrupara em torno dela um certo número de personagens
dispostos a derrubar o poderoso ministro. Madame de Fargis, sua dama de honra, que era da oposição, tomou parte nas intrigas. Condenada à
morte em 1631, ela fugiu para o estrangeiro e morreu em Louvain em 1639. Seu marido foi posto na prisão, pelo mesmo motivo, na Bastilha,
em 14 de fevereiro de 1633. Poucos anos depois, teve a desventura de perder seu filho, morto no cerco de Arras, em 2 de junho de 1640, com
a idade de 27 anos. Restava-lhe uma filha, Henriette, então em Port-Royal. Apesar das insistentes diligências de seu pai, recusou casar-se,
preferindo passar sua vida nessa abadia, onde morreu em 3 de junho de 1691, depois de ter sido abadessa, por longo tempo. O senhor de
Fargis abandonou o mundo e entrou na Congregação da Missão em 31 de dezembro de 1647. Teve, durante o seminário, uma conduta tão
exemplar que São Vicente declara “não tê-lo visto jamais cometer um único pecado venial”. Morreu em 20 de dezembro de 1648 ( Notices, t,
pp. 425-430).
.
Carta 1084. – Manuscrito de Lyon.
.
Carta 1085. – Reg. 1, f° 30. O copista nota que a carta foi escrita pelo secretário e assinada pelo Santo.
198

Prezado Senhor,

A carta que me destes a honra de escrever-me é digna de uma alma verdadeiramente cristã, como
a vossa. Não posso exprimir-vos, prezado senhor, quanto fico edificado com vossos sentimentos em favor
da prelatura e de vossas disposições no tocante à pensão, pela qual vos renderei todos os serviços que me
forem possíveis. O bom uso que dela quereis fazer a isto me obriga duplamente. Contudo, estou prevendo
nisto duas dificuldades: a primeira é que não se concedem pensões eclesiásticas a não ser àqueles que são
eclesiásticos, que lhe trazem o hábito e que vivem realmente em conformidade com essa condição. Sei,
prezado senhor, que tendes o espírito eclesiástico e que esta dificuldade não existe a vosso respeito. Mas
há uma segunda muito a se temer; é que a Rainha e o senhor Cardeal  se encontram de tal modo
assoberbados com requerentes de toda a sorte, que não têm tempo disponível algum para examinar os que
mais o merecem. Andam arrancando-lhes as pensões e os benefícios e os impedindo de dispor livremente
de uns e de outros. Não deixarei, prezado senhor, de lhes falar a vosso respeito, nas ocasiões e da maneira
que Deus sabe. É verdade que vosso nome é por demais ilustre e vosso mérito por demais conhecido para
terem necessidade de ser recomendados. A estima que Sua Majestade e Sua Eminência têm deles os
obrigará a vos dar satisfação, mais cedo do que ouso esperar. Rogo a Nosso Senhor que assim seja.
Aprouve a sua divina bondade levar nosso bondoso Irmão de Fargis, um ano depois de no-lo ter
dado; morreu em 19 deste mês. Em sua morte como em sua vida, mostrou-se sempre desapegado de
tudo, e totalmente pleno de Deus. Na verdade, prezado senhor, foi para nós um grande exemplo todo o
tempo que tivemos a bondade de tê-lo entre nós, de tal maneira que jamais o vi cometer um simples
pecado venial. Recomendo sua alma a vossas orações e peço a Nosso Senhor que santifique a vossa cada
vez mais. Não duvido, prezado senhor, de vossa coragem para imitá-lo em sua retirada do mundo, se vos
fosse possível. Creio, porém, que viveis, na intimidade de vossa vida, tão piedosa e religiosamente como
faríeis num claustro. Ó Deus! prezado senhor, como é bom se preparar assim para a eternidade feliz, em
cujo amor sou, prezado senhor, vosso...

VICENTE DE PAULO.

1086. – A LAMBERT AUX COUTEAUX, PADRE DA MISSÃO, EM SÃO LÁZARO

Fréneville, 18 de janeiro1 d1 e 1649.

Vicente de Paulo escreve que não é conveniente colocar à venda o trigo conservado nos celeiros de São
Lázaro. É melhor emprestá-lo, a juros, a Deus, doando-o como esmola aos pobres. Se a esmola de um sesteiro 2 de
trigo por dia não basta, que se doem dois.

1087. – A ANTÔNIO PORTAIL

Villepreux, 22 de janeiro de 1649.

Senhor Padre,

. O Cardeal Mazarino.

. Lemos na carta precedente que o senhor de Fargis morreu no dia 20. A contradição seria devida a um erro do copista ou a um
esquecimento do Santo?
.
Carta 1086. – Carta a que faz alusão o Irmão Pierre Chollier na sua deposição no processo de beatificação de São Vicente.
1d
1. No dia 18 de janeiro, São Vicente ainda estava em Villepreux; consequentemente, há aqui um erro, ou a respeito da localidade ou a
respeito da data. A carta poderia muito bem ser do dia 28.
2
2. Medida de capacidade para cereais (N. do T.).
.
Carta 1087.– C. as. – Dossiê de Turim, original.
199

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Não sei se me escrevestes pelo correio que chegou na semana passada; não recebi carta vossa,
mas, sim, do Padre Chrétien e de Túnis.
Não vos escrevi a semana passada; sabeis a causa, creio eu. Parti de Paris, a 14 deste mês, para ir a
Saint-Germain, com a intenção de prestar ali algum pequeno serviço a Deus; mas meus pecados me
tornaram indigno disso; depois de dois ou quatro dias de permanência, dirigi-me para o lugar onde estou,
donde partirei depois de amanhã, para ir visitar nossas Casas . Apraz a Deus seja eu, no momento, inútil
para qualquer outra coisa. Irei diretamente para Le Mans; depois, para a Bretanha. Disse-vos que o Padre
du Chesne iria para Marselha; na verdade, porém, ele é por demais necessário em São Lázaro. Rogo-vos,
senhor Padre, ter paciência e agir como puderdes, tanto quanto às pessoas, quanto à subsistência; estamos
na impossibilidade de vos fornecer algo, nem às outras Casas que tiram sua renda dos coches, os quais
não estão mais trafegando; ao que parece, não obteremos deles coisa alguma durante muito tempo, nem
mesmo daquilo que os granjeiros nos devem. Quanto aos impostos, não no-los pagarão também, enquanto
durarem essas perturbações. Nada disto vos exprime ainda, suficientemente, a carência extrema em que se
encontra o pobre São Lázaro. Deus seja louvado! Com que meios, dir-me-eis, se sustentará, portanto, a
Casa de Marselha? Importa primeiramente, sem hesitar, despedir todos os vossos seminaristas que não
pagam pensão suficiente; em segundo lugar, dizer ao senhor Bispo de Marselha  o que se passa, a fim de
estimulá-lo a vos subsidiar com alguma coisa; em terceiro lugar, tentar encontrar espórtulas de missas.
Lamento dizer-vos isto; mas a necessidade prevalece sobre qualquer outra consideração. Enfim, fazei
vosso possível para não vos enredar em dívidas.
Nossos coirmãos da Barbária devem ser advertidos do que se passa, a fim de pouparem suas
despesas. Escrevi sobre isto ao Padre Le Vacher. Como ele me comunica que o Irmão que vai para lá
como procônsul precisa fazer vários agrados, ao assumir o cargo, e nós não podemos enviar-lhe nada
para esse fim, julgo que ele fará bem em adiar sua passagem, e vos rogo retê-lo, por enquanto.
Estou pesaroso pela falta cometida pelo Padre Le Vacher, permitindo tributos sobre os barcos da
França, para pagar as dívidas de um particular. Os comerciantes de Marselha têm razão de se queixarem.
Peço-vos ir ter com eles de minha parte e, depois de lhes ter pedido perdão, saber deles qual meio para
remediar esta falta. Nisso me aplicarei de bom grado. Desde já, vou escrever à corte, no sentido de obter
uma carta do Rei para o dei, a fim de que não permita nenhuma arrecadação de impostos nos navios
franceses, deixando o comércio livre. Rogarei também à Madame Duquesa de Aiguillon que pressione as
expedições tanto para a sobrevivência quanto para a comissão do consulado de Túnis.


. Sentindo-se com pouca segurança em Paris, a Rainha se retirara para Saint-Germain-en-Laye, acompanhada da maior parte da corte. O
Parlamento, os grandes e o povo estavam prontos para tudo, a fim de obter a destituição de Mazarino. Paris inteira se encontrava sob ação
militar. São Vicente, comovido com as desgraças que se anunciavam e com as que já desolavam a capital, decidiu-se por uma diligência
junto a Ana de Áustria, que de bom grado o escutava. Partiu no dia 14, antes do amanhecer, acompanhado do seu fiel secretário, o Irmão
Ducournau, que deixou desta viagem um relato utilizado por Collet. Em Clichy, pessoas armadas de lanças e fuzis se precipitaram sobre os
dois viajantes. O Santo não teria talvez escapado ao perigo, se um dos assaltantes não tivesse reconhecido nele seu antigo pároco e acalmado
os companheiros. Em Neuilly, o rio Sena tinha transbordado; Vicente de Paulo o atravessou, corajosamente, a cavalo. Chegou a Saint-
Germain entre nove e dez horas, esteve com a Rainha e lhe disse claramente que era seu dever demitir seu ministro. Introduzido na presença
de Mazarino, falou-lhe com a mesma franqueza. Mazarino, por um momento espantado, respondeu-lhe que se sacrificaria, de boa vontade, se
tal fosse o parecer de Le Tellier. O parecer de Le Tellier, como era previsível, foi negativo. Três dias depois, o Santo, munido de um
passaporte e protegido por uma escolta, tomava o caminho de Villepreux. Não podia voltar para Paris onde a notícia de sua visita à corte
corria o risco de sublevar contra ele a cólera do povo, já açulado pelo boato do casamento secreto da Rainha com Mazarino, abençoado,
dizia-se, pelo próprio Vicente (Cf. Collet, op. cit., t. I, p.468). A iniciativa do Santo supunha muita coragem, porque a Rainha se irritava
contra todos aqueles que lhe falavam para ser mais flexível (Cf. A França nos meados do século XVII, conforme a correspondência de Guy
Patin, Paris, 1901, in-16, p.11).

. Quando escrevia estas linhas, São Vicente ignorava ainda que seiscentos soldados, alojados em São Lázaro, tinham pilhado e saqueado a
casa, arrancado as portas, vendido uma parte do trigo e colocado fogo nas provisões de lenha (Cf. Abelly, op. cit., l.1, cap. XXXIX, p. 182;
Collet, op. cit., t. I, p. 471). Com esta notícia, a cidade ordenara ao coronel de Lamoignon que enviasse, diariamente, soldados, até nova
ordem, à casa de São Lázaro, para a sua “segurança e conservação”(Cf. Registres de l’hôtel de ville de Paris pendant la Fronde, ed. por MM.
Le Roux de Lincy et Douet d’Arcq, Paris, 1847, 3 vol. in-8°, t. I, p. 204).

. Etienne de Puget (1644-1668).

. Jean Le Vacher.

. Benjamin Huguier, clérigo da Missão.

. Martin de Lange, cônsul em Túnis, tinha morrido no fim de julho de 1648. A Duquesa de Aiguillon, que já tinha comprado o consulado de
Argel, fez, pelos mesmos motivos, a aquisição do consulado de Túnis, que ela ofereceu, com a permissão do Rei, à Congregação da Missão.
200

A dúvida sobre se os correios irão partir e se a presente vos será entregue me obriga a terminar,
para vos assegurar que sou, em Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Marselha.

1088. – A LUÍSA DE MARILLAC

Fréneville, 4 de fevereiro de 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Eis-me ainda em Fréneville, onde este tempo tão frio me surpreendeu, por ocasião da festa que
quis passar aqui, para dispor esta boa gente a se doar a Deus, a fim de que lhe faça a graça de fazer bom
uso das aflições que a esperam.
Nossas queridas Irmãs parecem-me cada vez mais unidas. Amam sua vocação e desempenham
bem suas obrigações, graças a Deus. Elas nos dão do seu pão de rolão, no qual o granjeiro mistura cevada.
É caridade delas. Dar-lhes-emos trigo em recompensa. Enviaram-nos também maçãs que o pessoal lhes
deu. Confessam-se com o Padre Le Gros  desde o tempo em que o fizeram com algum dos nossos, e
vieram confessar-se comigo, desde o tempo em que o fizeram com o Padre Le Gros. Esta prática parece-
me boa. Estimo-vos bastante corajosa, mantendo-vos firme em vossa Casa. Falou-se do louco  de outrora,
e é o que me levou a vos escrever o que vos escrevi. Não se chegará a esse excesso, assim o creio. Nosso
Senhor vos dá saúde em meio a tudo isso. Agradeço-lhe de todo coração e, na santa missa, onde vos vejo,
diante de Deus, todos os dias, rogo-lhe que vos conserve.
Logo que fizer bom tempo, espero partir e ir direto para Angers, se Deus quiser. Sabe ele com que
coração verei lá vossas filhas. O Padre Escart falou-me de uma, que está em Bicêtre, que incomoda
bastante as outras. Será bom verdes o que terá de ser feito ali. Eis, senhora, o que vos poderia dizer no
momento. No mais, recomendo-me às vossas orações e às de nossas queridas Irmãs. Sou, senhora, no
amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO.

Destinatário: À senhora Le Gras.

1089. – A JACQUES NORAIS

.
Carta 1088. – Esta carta foi publicada como está no original, em Notice sur la conservation et la translation des reliques de saint Vincent de
Paul, p. 9.

. Forçado a permanecer em Fréneville, por causa do frio e da neve, São Vicente não ficou ali desocupado. Depois de um sermão sobre os
meios de abrandar a cólera de Deus e sobre a atitude a manter em meio às ruínas que a guerra civil ameaçava causar, os habitantes de
Valpuiseaux fizeram quase todos sua confissão (Cf. Collet, op. cit., t. I, p. 472-473).

. A Irmã Toussainte e a Irmã Jeanne Fouré, de Loudun.

. João Batista Le Gros, nascido em 1614 na diocese de Coutances, entrou, já padre, em São Lázaro, a 24 de junho de 1644. Fez os votos em
29 de junho de 1646. Foi ecônomo da Casa-Mãe, de 1648 a 1651, superior do Seminário São Carlos em 1651, em Richelieu de 1651 a 1655.
Morreu em 5 de novembro de 1655, em Montech (T.-et-G.) (Cf. Notices, t. III, pp. 146-148; ms. de Lyon, f° 226-230).

. É a palavra que está no texto. A leitura é sem dúvida equivocada.
.
Carta 1089. – Reg. I, f° 15, cópia tirada da minuta autógrafa.

. Co-senhor de Orsigny, secretário honorário do Rei
201

[Fréneville] 5 de fevereiro de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Meu Deus! senhor Padre, como sinto, no momento em que vos falo, e como senti a dor da perda
que tivestes, por ocasião da pilhagem realizada em vossa Casa de Orsigny! Confesso-vos, senhor, que o
prejuízo por nós sofrido, e o que ainda poderemos sofrer, não é nada em comparação com o vosso.
Nossos pecados nos tornaram culpados de todas essas perdas. Mas vós, senhor, que fizestes, e o que fez
nossa bondosa senhora, que Nosso Senhor provou com tão pesada cruz, como a de sua longa e dolorosa
enfermidade! Visitou-vos aos dois em vossas próprias entranhas, por uma longa e incômoda doença, e em
vossos bens: que nome daríamos a essa conduta de Deus sobre vós? Com certeza, senhor, não vejo outra
mais semelhante, de algum modo, do que a que ele teve em relação a Jó, a quem afligiu dessas três
maneiras. Ó senhor, que felicidade ser tratado nesse mundo como esse grande santo, que Deus apontava
como modelo dos justos, que não disse nem fez jamais alguma coisa que desagradasse a sua divina
majestade! Acrescentai a isso, senhor, que foi Deus quem o fez, sem cuja ordem nada se faz. Sua divina
bondade, que vos estima mais ternamente do que jamais algum pai amou seu filho, o fez para se glorificar
em vós dois, para santificar cada vez mais vossas queridas almas e para mostrar ao céu e à terra o amor
que tem por vós, e a estima que tem por vossa virtude, já que a submete a tal provação. Um pagão nos
ensina que nessas ocasiões importa submeter-se à Providência; e o Filho de Deus, que sabia disto melhor
do que ele, nos diz que é ser muito feliz sofrer em tais circunstâncias e que sua glória é a recompensa dos
que tudo acolhem com paciência, por amor a ele. É preciso dizê-lo claramente: um espírito menos
versado na escola de Jesus Cristo do que o senhor e a senhora Norais o aceitaria, pois que se trata de uma
necessidade e não há outro remédio; mas estou certo de que vossa piedade, bem ciente de que a caridade
converte a necessidade em virtude, pela submissão ao beneplácito de Deus, em todas as aflições que
necessariamente sofremos, saberá muito bem entrar nesse estado de bem-aventurança e conquistar o
mérito da glória que dele decorre. Sendo assim, senhor, é verdade dizer que aquilo que parece uma perda
para vós, segundo a carne, é uma grande vantagem segundo o espírito e um grande motivo para render
graças a Deus.

1090. – ÀS DAMAS DA CARIDADE

[Fréneville], 11 de fevereiro de 1649.

Prezadas Damas,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A providência de Deus me distanciou de vós. Mas não deixo de vos ver com frequência no santo
altar, e de vos oferecer, a vós e vossas famílias, a Nosso Senhor, na confiança que tenho de que vossa
caridade suplica a Deus misericórdia para mim. Peço-vos, muito humildemente, prezadas Damas, que me
perdoeis e fiqueis certas de que, se aprouver a Deus atender as preces que lhe ofereço e continuarei a
oferecer-lhe incessantemente por vós, ficareis consoladas e protegidas por seu especial desvelo, nas
aflições comuns com que apraz à sua divina Majestade provar-nos.
Tivestes certamente ocasião de saber, prezadas Damas, como Deus me ensejou a ocasião de ir
visitar as Casas de nossa pequena Companhia. Faço-o com a intenção de voltar, tão logo o estado das
coisas o permitir. Entretanto, prezadas Damas, que faremos das obras que o bom Deus vos confiou,
particularmente da Caridade do Hospital Geral e das pobres crianças expostas? Na verdade, pode parecer
que nossas misérias particulares nos dispensem dos cuidados das misérias públicas; teríamos um bom
pretexto diante dos homens, para nos eximir desse cuidado. Contudo, prezadas Damas, não sei com
certeza como seria diante de Deus. Ele nos poderia dizer o que dizia São Paulo aos coríntios, que se

. Elisabeth Merault, esposa de Jacques Norais.
.
Carta 1090. – Reg. I, f° 27 v°.
202

encontravam em semelhantes circunstâncias: “Já resististes por acaso até o sangue?”, ou ao menos, já
vendestes uma parte das jóias que tendes? Que digo, prezadas Damas? Sei que há muitas dentre vós, e
creio o mesmo de todas, que fizestes caridades que seriam consideradas enormes, não somente em
pessoas de vossa condição, mas até mesmo em rainhas: as pedras o diriam, se eu me calasse. É
exatamente pela excelência de vossos corações, incomparavelmente caridosos, que falo desta maneira.
Guardar-me-ia bem de falar desse modo com outras pessoas menos animadas do espírito de Deus do que
vós.
Mas, então, o que faremos? Parece que é conveniente colocar em questão, prezadas Damas, se é
viável realizar a grande assembleia que fora proposta. Quando, onde e como? Há razões pró e contra.
Primeiramente, parece que se deveria fazê-la, porque é costume realizá-la nessa ocasião. Em
segundo lugar, como as necessidades são extraordinárias, parece que os meios para remediá-las devem
também ser extraordinários, como são os de uma assembleia geral.
Contra isso, parece que ela não é oportuna no presente, por causa das perturbações em que nos
encontramos, que inquietam os espíritos e arrefecem a caridade. Muitas Damas talvez tenham receio de se
fazerem presentes, e as que forem, se não tiverem uma caridade acima do comum, resfriarão o ânimo
umas das outras. Além disso, Madame Princesa  não estaria presente, nem as Madames de Aiguillon e de
Brienne. Sendo assim, parece que haveria algo a desejar, sobretudo se se pensasse em fazer alguma
mudança na substância da obra.
Eis, prezadas Damas, o pró e o contra que me vêm ao espírito, no momento. Resolvereis isso, por
favor, mediante a pluralidade dos votos. Madame Duquesa de Aiguillon me disse, quando parti de Saint-
Germain, ou me escreveu depois, que a Rainha lhe tinha dito que ela enviaria alguma coisa para as pobres
crianças expostas. Não sei se o fez. Pedi ao Padre Lambet lhes enviasse um pouco de trigo, e escrevi a
Madame presidente de Lamoignon, que tivesse a bondade de se empenhar, junto aos Administradores da
cidade, no sentido de providenciarem uma escolta para o trigo, dentro e fora da cidade. Não sei, também,
o que foi feito. Se nada foi feito, peço a uns e outros, pela presente carta, façam o que for preciso para
este fim.
Como, porém, não basta isto, vede, prezadas Damas, se é conveniente tomar emprestado, como
dirigentes da Caridade, a importância de duas ou três mil libras, para socorrer às necessidades mais
urgentes. Escrevo ao Padre Lambet se sinta, também, empenhado no caso, em nosso nome. Mas se houver
dificuldade em assumir este engajamento, é conveniente que cada um de nós se esforce neste sentido;
neste ultimo caso, rogo ao Padre Lambet faça o que for preciso de nossa parte. Confesso, prezadas
Damas, que é um pouco pesado o que digo; mas seria isto mais verdadeiro, se o dissesse a pessoas menos
caridosas do que vós. Enfim, rogo a Nosso Senhor, que preside as assembleias feitas em seu nome, como
é a vossa, vos dê a conhecer o que deseja de vós nessa ocasião e vos conceda a graça de cumpri-lo.
Este grande frio me reteve aqui e continuará a reter-me até que o tempo se abrande; espero, então,
partir para Le Mans ou para Angers, ou para as duas cidades; espero receber lá o resultado de vossa
assembleia, se o Padre Lambet não mo enviar para aqui por meio de um portador expresso.
Peço a Deus, entretanto, que abençoe e santifique, cada vez mais, vossa mesma assembleia e
vossas queridas pessoas.
Sou no amor de Nosso Senhor, prezadas Damas, vosso...

VICENTE DE PAULO.

1091. – A DÊNIS GAUTIER


. Hb 12,4.

. Carlota de Montmorency, Princesa de Condé.

. Luísa de Béon, mulher de Henrique Augusto de Loménie, Conde de Brienne, senhor de Bassy, secretário de Estado para os negócios
estrangeiros. Madame de Brienne tomou parte ativa, como dama da Caridade, nas boas obras de São Vicente e de Luísa de Marillac. A obra
das Filhas da Providência muito também lhe deve muito. Morreu em 2 de setembro de 1665.

. Fréneville.
.
Carta 1091. – Coleção do processo de beatificação.
203

Orléans, 25 de fevereiro de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


A providência de Deus vos entregou o refúgio da pobre Missão de Paris. O Padre Escart e nossos
Irmãos Jean Geneset e Ambroise vão gozar da caridade que estais fazendo no seminário. Todos
conhecem o espírito de piedade e de rigorosa regularidade do referido Padre Escart e ficareis edificado,
como espero, com os nossos Irmãos.
O Padre Lambet me escreveu que tendes a intenção de explorar pessoalmente a lenha do Bosque
de Bouchard e que lhe pedistes anteriormente Irmãos para isso. Um destes dois Irmãos administrava o
picadeiro de Orsigny, de onde conseguistes os cavalos que o Padre Testacy vos traz; o outro é vinhateiro e
poderá trabalhar vossas vinhas.
Quanto a mim, espero partir amanhã e começar a visita por Le Mans. A misericórdia de Deus me
deu tempo para isso. Parti de Paris, há mais de seis semanas, para Saint-Germain-en-Laye, onde passei
três ou quatro dias. Tendo viajado para Le Mans, informaram-me que estavam esperando a pilhagem de
Orsigny, a fim de que eu comunicasse aos nossos Irmãos o que eles fariam. Obrigou-me isso a tomar o
caminho de Fréneville, onde o rigor do inverno me surpreendeu e fui constrangido a passar ali um mês.
Há três dias que de lá parti, com um rebanho de duzentos e quarenta carneiros, que vos enviava; mas o
mau tempo nos constrangeu a deixá-los no caminho aos cuidados de uma senhora conhecida. É o rebanho
que conseguimos salvar do saque de Orsigny.
Eis-me, portanto, prestes a ir começar minha visita em Le Mans. De lá, espero passar em Angers,
para tratar de receber o que nos é devido pelo arrendatário dos impostos e vos enviar o que vos foi
destinado. Em seguida, poderei dar uma esticada até Saint-Méen e Tréguier e voltar à vossa Casa ou a
Luçon, procurando dar continuidade, se Deus quiser, à visita por Tours, se minhas forças me permitirem.
Ó senhor Padre, como estou pesaroso com a morte do Padre Du Coudray! Tinha pensado em
tomá-lo comigo, em minha viagem, e eis que Nosso Senhor dispôs de outro modo. Rogo-vos, senhor
Padre, escrever-me em Angers detalhadamente como Deus dele dispôs, e enviar vossa carta às Filhas de
Santa Maria, se tiverdes ocasião. Rogar-vos-ia que fôsseis até lá, se estivesse certo do tempo em que lá
poderia eu estar.
Não vos mando notícias de São Lázaro nem de nossos seminários menores de Paris 4; o Padre
Escart vo-las poderá transmitir; saiu de lá depois de mim. O que aconteceu depois de sua partida é que
aliviamos a Casa de todo pessoal possível, a fim de ter os recursos para continuar as esmolas por mais
longo tempo, em favor de dois mil e tantos pobres. Graças a Deus, nós as temos feito todos os dias. Por
conseguinte, precisamos, diariamente, ao menos de quatro sesteiros de trigo, na medida de Paris. Crécy,
Troyes e Montmirail socorrem seus pobres, movidos nessa ocasião pelo exemplo que lhes destes. Praza a
Nosso Senhor Jesus Cristo conservar esses recursos na Companhia, enquanto ela durar, e dar-lhe a graça
de continuar a subsistir!
Abraço vossa comunidade, prostrado em espírito aos seus pés e aos vossos. Peço-vos, a vós e
também à vossa comunidade, oferecer-me à sua divina bondade, pedindo-lhe me conceda a misericórdia e
a graça de servi-lo, melhor do que fiz no passado. Sou, em seu amor e no de sua Santa Mãe, senhor Padre,
vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.


. Jean Geneset, irmão coadjutor, nascido em Saint-Mihiel, recebido na Congregação da Missão por cerca de 1643, com a idade em torno de
20 anos, falecido em setembro de 1652.

. Ambrósio Tumy, irmão coadjutor, nascido em Argenteuil (Seine-et-Oise). Entrou na Congregação da Missão em 10 de agosto de 1644,
com a idade de 20 anos, admitido aos votos em dezembro de 1652.

. A granja de Orsigny era a principal fonte de recursos da casa de São Lázaro. Soldados do exército real a tinham saqueado. “O gado, o
trigo, os móveis de alguns Irmãos que nela trabalhavam, até mesmo os de um rico particular, que ali estavam depositados, tudo foi levado”
(Collet, op. cit., t. I, p. 471).
4
4. O seminário dos Bons-Enfants e Saint-Charles.
204

Destinatário: Ao senhor Padre Gautier, superior dos padres da Missão, em Richelieu.

1092. – A DUQUESA DE AIGUILLON A SÃO VICENTE

Saint-Germain, 2 de março de 1649.

Estava extremamente angustiada por não ter notícias vossas e por não poder enviar-vos as
nossas. O Irmão Mateus2, porém, acaba de chegar para obter trigo para as pobres crianças expostas. Foi
ele quem me avisou e eu vo-lo transmito, que parece que Deus nos dá algum motivo para esperar que ele
quer, por sua misericórdia, nos proporcionar o acordo. As coisas parecem caminhar para isso. As
Excelências do Parlamento enviaram deputados à Rainha que teve a bondade de concordar que lhes
seria dado trigo durante todos os dias que durasse a conferência, se quisessem enviar pessoas a quem
concedessem poder absoluto para terminar os negócios, sem tornar a deliberar mais nem voltar ao
Parlamento depois da volta e da relação desta proposta. Concederam afinal o poder, como se desejava,
aos excelentíssimos senhores, o primeiro presidente 3, ao senhor de Mesmes4, ao senhor de Nesmond5 e ao
senhor Coigneux6, ao presidente Viole7, a Longueil, a Menardeau9, a Le Cocq1010, a Bitault1111, a
Lefebvre1212. Essa conferência deve reunir-se quinta-feita em Rueil, onde o Excelentíssimo Senhor1313, o
senhor Príncipe14l14, o senhor Cardea1515, o senhor Chanceler16 16 e o senhor de la Rivière 1717 devem
estar presentes. É preciso rogar para que Deus presida a ela a fim de que nela se estabeleça a paz 1818.
Cantaram aqui, hoje, o te-déum pela paz da Alemanha, cuja ratificação aconteceu.
Penso que será bom que aguardeis em Orléans ou em Le Mans o resultado dessa conferência, a
fim de que, se tiver êxito, como desejamos, não vades para mais longe. Terei o cuidado de vos avisar do
que acontecer.
Envio-vos uma carta do guardião dos capuchinhos de Chinon, na qual vereis como ele se queixa
do capelão de Champigny1919. O senhor du Rivau2020 me comunicou a mesma coisa. Mandai-me dizer
por favor o que devo fazer, porque temem que ele leve o dinheiro dos pobres.
Rezai, por obséquio, por mim e crede-me sempre vossa muito humilde serva.

1093. – ANTÔNIO PORTAIL

.
Carta 1092. – C. aut. – Dossiê de Turim, original.

. Saint-Germain-en-Laye.
2
2. Mateus Régnard.
3
3. Mateus Molé.
4
4. Henrique de Mesmes, Conde de Avaux, presidente de capelo no Parlamento, falecido em 1650.
5
5. Francisco Teodoro de Nesmond, presidente de capelo no Parlamento.
6
6. Jacques le Coigneux, presidente de capelo no Parlamento, falecido em 21 de agosto de 1651.
7
7. Presidente do quarto tribunal de inquérito no Parlamento.

. Renê de Longueil, Marquês de Maisons, segundo presidente no Parlamento, mais tarde superintendente das finanças, ministro de Estado e
chanceler da Rainha mãe, falecido a 1° de setembro de 1677.
9
9. Cláudio Menardeau, conselheiro no Parlamento.
10
10. Jean Le Cocq, senhor de Coubeville, conselheiro no Parlamento.
11
11. Conselheiro no Parlamento.
12
12. Luís Lefebvre de Caumartin, conselheiro no Parlamento.
13
13. Gaston, Duque de Orléans.
14l
14. O príncipe de Condé.
15
15. O Cardeal Mazarino.
16
16. Pierre Séguier.
17
17. Luís Barbier, Abade de la Rivière, nascido em 1593, regente no colégio du Plessi, posteriormente favorito do Duque de Orléans,
ministro de Estado em 1646, Bispo de Langres em 1645, falecido em 1670.
18
18. O acordo entre a corte e os delegados do Parlamento foi concluído em 11 de março; foi selado apenas em primeiro de abril, depois de
ter sido modificado pelo Parlamento.
19
19. Champigny-sur-Veude, perto de Richelieu. O hospital tinha como capelão o Padre Romillon.
20
20. O cavaleiro Jacques de Beauvat, senhor de Rivau.
205

Le Mans, 4 de março de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Sei que sois por demais apegado ao beneplácito de Deus para vos admirar de não ter recebido
cartas minhas, desde um ou dois meses; tudo muito a contragosto meu, pois não teria jamais deixado de
vos escrever, se os correios não tivessem deixado de circular.
Soubestes de minha partida de Paris e de uma de suas causas. A primeira não teve êxito em razão
dos meus pecados. Cuido de pôr em prática a segunda, a da visita às nossas Casas. Comecei por esta,
depois de um mês de permanência em Fréneville, onde o muito rigoroso frio e a neve me retiveram. Não
tinha intenção de ficar lá senão por dois ou três dias, para colocar lá um rebanho de carneiros e dois
cavalos, salvos do saque de Orsigny. Creio, porém, que a Providência lá me reteve por tanto tempo para
me mostrar que ali não ficariam em segurança. Com efeito, o pessoal de guerra veio até um quarto de
légua para levar os cavalos de uma granja. Fui, assim, obrigado a partir de lá, sob um tempo muito
rigoroso, e mandar levar os carneiros para uma aldeia cercada, do lado de cá de Etampes, a quatro ou
cinco léguas. Quanto aos cavalos, trouxe-os para aqui, onde cheguei no dia dois deste mês, com boa
saúde, graças a Deus, não obstante as dificuldades do tempo e dos caminhos. No dia seguinte, à tarde, fiz
a abertura da visita. As que recebi da cidade me impediram de continuá-la sem interrupção. Não sei ainda
como vão as coisas, mas, pelo que vejo, tudo me parece bem. Espero partir daqui, dentro de dez ou doze
dias, para a Bretanha, e de lá para Richelieu e, em seguida, para as outras Casas. Se aprouver a Deus
continuar dando-me saúde, espero ter a felicidade de vos ver em Marselha. Teria com isso grande
consolação depois dos trabalhos1 de tão longa viagem e dos motivos de aflição que estamos vendo.
Sabeis, como creio, das perdas que sofremos, não somente do trigo que tínhamos em Orsigny e em
São Lázaro, mas com a privação de todas as nossas rendas, o que nos obrigou a aliviar São Lázaro e os
Bons-Enfants, onde não estão mais do que 7 ou 8 padres, 18 ou 19 seminaristas e alguns Irmãos. O
restante foi enviado para Richelieu, para aqui e para outras partes. Mesmo os que lá ficaram serão
obrigados a sair, quando não houver mais provisão alguma. Do tão pouco trigo que há, distribuímos todos
os dias 3 ou 4 sesteiros a dois ou três mil pobres, o que nos causa muito grande alegria e grande
felicidade, na penúria extrema em que nos encontramos. Isto nos dá esperança de que Deus não nos
abandonará, sobre tudo a Casa de Marselha, embora estejamos sem condição de socorrê-la. Sim, senhor
Padre, com grande pesar meu, já vo-lo comuniquei e o estais vendo. Comunicai-o ao Senhor Bispo, a fim
de que ele vos auxilie quanto ao seminário. Ser-vos-á necessário desincumbir-vos deles, se não dos que
pagarem a pensão suficiente. A situação fala por si mesma, e não sei se não será preciso que alguns da
Companhia vão exercer os ofícios de capelães nas galeras, para desfrutar dos salários e, por esse meio,
dar condição de subsistência a essa Casa. Enfim, senhor Padre, rogo a Nosso Senhor vos mostre os
caminhos para consegui-lo e que vos torne participante cada vez mais de sua paciência e de sua conduta,
para continuar a assistir essa pobre comunidade, nesta incômoda ocorrência. No momento, não parece
conveniente que nosso Irmão Huguier vá para Túnis, nem o Padre Dieppe para Argel, a não ser que o
cônsul de Argel tenha com que suportar as despesas3, já que nada lhes podemos enviar daqui. Retende-os,
portanto, convosco, se julgardes oportuno.
Aprouve ao bom Deus dispor do Padre du Coudray, em Richelieu, e do nosso Irmão Dumesnil 4,
em São Lázaro. Sinto grande pesar pelo primeiro, por não ter podido estar com ele antes de sua morte.
Sabeis do reconhecimento que lhe deve a Companhia. Recomendo-o de modo especial às vossas orações
e às da comunidade. Prestai para com um e outro os deveres de costume. O último morreu como viveu.
Não estou a par do que se passou na morte do Padre du Coudray.

1
Carta 1093. – C. as. – Dossiê de Turim, original. O postscriptum e as palavras: “o cônsul de Argel tenha com que suportar as despesas e
não estou a par do que se passou na morte do Padre du Coudray, são da mão do Santo.
1. Redação primitiva: “tracas” (que poderia significar atropelo, desordem, confusão, labuta, canseira etc. etc. N. do T.).

. Palavras riscadas nesse lugar: que nos teriam durado quase o ano inteiro.
3
3. Redação Primitiva: a não ser que os que lá estão os possam sustentar, a eles e a si mesmos, com as rendas do consulado.
4
4. Jacques Dumesnil, clérigo, nascido em Nibas (Somme), recebido na Congregação da Missão em 6 de janeiro de 1641, com a idade de 19
anos.
206

Sinto-me pressionado a pôr o ponto final, recomendado-me a mim mesmo aos vossos santos
sacrifícios. Abraço ternamente o Padre Chrétien e toda sua comunidade, da qual, como de vós, sou,
particularmente, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Estou pensando, caso as coisas entrem em paz, em reunir uma assembleia de todos ou de parte dos
superiores. Dizei-me vosso parecer a respeito, por favor, e endereçai vossas cartas a Madame Duquesa de
Aiguillon, na corte. Ponderai se é conveniente que importuneis Sua Excelência com vossas necessidades,
e se é conveniente que empregueis alguns nas galeras, aguardando os acontecimentos, ou que envieis
alguns para Gênova, se Sua Eminência concordar.

Destinnatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Marselha.

1094. – A LUÍSA DE MARILAC

Le Mans, 14 de março de 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Venho dar-vos minhas notícias e pedir as vossas. Graças a Deus, as minhas são que estou bem e
dentro de três ou quatro dias espero partir para Angers, onde verei vossas filhas.
O Padre Gautier veio de Richelieu e me disse que aprouve a Deus levar a pobre Irmã Elisabeth 1,
pelo que fiquei muito penalizado. Julga conveniente chamar a outra e enviar para lá duas de Paris. Acho,
porém, que é muito difícil fazê-lo durante esta má estação, da qual, não duvido, estais recebendo muito
incômodo e vossa comunidade está sofrendo convosco. Rogo a Nosso Senhor Jesus Cristo seja ele mesmo
vossa força e consolação e que tire sua glória das aflições públicas e particulares. Tenho sempre confiança
nas preces de vossa comunidade e especialmente nas vossas.
Sou, no amor de Nosso Senhor, senhora, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

O Padre Gautier me disse que esteve com vossas irmãs, passando por Angers, e que tudo vai muito
bem. A Irmã Cecília2 está sempre fazendo maravilhas. Há duas outras que fazem o resto dos trabalhos 3,
das quais uma anda assoberbada por escrúpulos. Espero vê-las dentro de quatro ou cinco dias, se Deus
quiser.

1095. – EDMUNDO DWYER, BISPO DE LIMERICK,


A SÃO VICENTE

.
Carta 1094. – C.as – O original pertencia em 1881 ao senhor Conde Yvert, de Saint-Germain-en-Laye. O postscriptum é da mão do Santo.
1
1. Elisabeth Martin, falecida em Richelieu.
2
2. Cecília Angiboust, superiora das Irmãs do hospital de Angers (1647-1657).
3
3. Irmã Jeanne, de Loudun, e Irmã Bárbara, de Troyes.
.
Carta 1095. – Abelly, op. cit., 1. II, cap. I, sec. XIII, 1ª ed., p. 151. A carta foi escrita em latim; damos aqui a tradução de Abelly.
207

[1649 ou 16501].

Várias vezes, escrevi a vossa reverendíssima sobre o estado de vossos missionários neste reino.
Ele é tal (dizendo a verdade tal como é diante de Deus) que jamais, na lembrança de quem quer seja,
ouvimos dizer que tenha sido operado tão grande avanço e progresso na fé católica, como o que
observamos ter sido feito nos últimos anos, por suas iniciativas, sua piedade e assiduidade. No começo
do presente ano, em que abrimos a missão nesta cidade, não houve menos de vinte mil comunhões. Tão
grandes foram os frutos e os aplausos de todos os habitantes, que não duvido de que, pela graça de Deus
a maior parte não tenha sido libertada das garras de Satã, pelo remédio aplicado a tantas confissões
inválidas, bebedeiras, juramentos, adultérios e outras desordens, que foram totalmente abolidas. Deste
modo toda cidade mudou de fisionomia, sendo obrigada a recorrer à penitência, por causa da peste, da
fome, da guerra e dos perigos que nos oprimem de todos os lados e que receberemos como sinais
manifestos da ira de Deus. Sua bondade, contudo, quis fazer-nos este favor, embora sejamos servos
inúteis, de nos aplicar a esta obra que, na verdade foi tão difícil nos inícios. Alguns chegaram até a
pensar que não chegaríamos ao fim. Mas Deus se serviu dos fracos para confundir os fortes deste mundo.
Os primeiros desta cidade se entregam tão assiduamente às pregações, aos catecismos e a todos os
outros exercícios da missão, que a Igreja Catedral tem grande dificuldade para comportá-los. Não
poderíamos aplacar melhor a ira de Deus do que extirpando os pecados que são o fundamento e a causa
de todos os males. Com certeza, seria nosso fim, se Deus não nos estendesse a mão. Pertence a ele fazer
misericórdia e perdoar.
Meu reverendo Padre, confesso que sou devedor a vossos filhos da salvação de minha alma.
Escrevei-lhes algumas palavras de consolo. Não conheço sob o céu Missão mais útil do que a da Irlanda.
Com efeito, mesmo que houvesse cem missões, a Missão seria sempre grande para tão poucos operários.
Nossos pecados são muito graves. Quem sabe não queira Deus arrancar-nos deste reino e dar o pão dos
anjos aos cães, para nossa censura e confusão!

1096. – A LUÍSA DE MARILLAC

Angers, 23 de março de 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi uma de vossas cartas, do dia 3 de março, endereçada à Madre de Santa Maria 1. Essa carta
me consolou muito, vendo a saúde que Nosso Senhor vos concede, a bênção que dá a vossos trabalhos,
aos de Madame e da senhora de Lamoignon, e, geralmente, aos de todas as Damas das Caridades das
paróquias de Paris.
Podeis crer, senhora, que rendo graças de coração a Deus por tudo isso, e que lhe peço continue a
abençoá-las. Fiquei, porém, muito aflito ao tomar conhecimento de que vossas pobres filhas e vossas
pobres crianças de Bicêtre se encontram ainda cercadas de todos os lados por uma grande guarnição do
exército2. Consolo-me com a esperança de que Nosso Senhor, que as acolheu com sua especial proteção,
não tenha permitido que algo de mal lhes tenha acontecido.

1
1. Em seu relato, Abelly deixa claramente a entender que Missão de Limerick, da qual fala esta carta, foi pregada no começo de algum ano,
entre 16 de agosto de 1648 e abril de 1650.
.
Carta 1096. C. aut. – O original pertence às Filhas da Caridade da rua Mage, 20, em Tolosa.
1
1. A Madre Maria Augustina Bouvard, superiora da Visitação de Angers. Ela fora professa no segundo mosteiro de Paris.
2
2. Os soldados de Condé, em número de doze a quinze mil, se encontravam dispersados em torno da capital. Alguns deles estavam em
Saint-Denis, bem próximo da Casa-Mãe, e em Bourg-la-Reine, perto de Bicêtre. Muitos deles tentaram penetrar por diversas vezes na casa
das Crianças Expostas onde as Irmãs viviam em contínuos alarmes. Luísa da Marillac recomendou a Genoveva Poisson e a suas
companheiras tomar as precauções mais rigorosas contra os excessos da soldadesca. “Tende o cuidado de manter nossas Irmãs sempre juntas,
dizia ela em uma de suas cartas (c. 234), e prestai muita atenção às meninas maiores, que deveis manter sempre diante de vossos olhos ou
dentro da escola”.
208

Há três ou quatro dias, trabalho aqui na visita a nossas queridas irmãs do Hospital Geral. Ontem, à
tarde, concluí a visita e mandei redigir os avisos que lhes deixo. No mais, posso dizer-vos que tudo vai
bem, pela graça de Deus. Vê-lo-eis bem ao vos dizer que realizam com exatidão suas tarefas diárias e que
cometeram apenas uma falta, a de não observarem o silêncio depois das oito horas da noite até as preces.
Enfim as coisas caminham tão bem que meu coração se sente, em razão disso, cheio de consolação. Há,
contudo, entre elas uma ou duas que penso devam ser transferidas; vê-lo-emos. Não vos relato os detalhes
do procedimento de Nosso Senhor com relação a elas, na dúvida com que fico de que esse bilhete não
venha a chegar até vós.
Espero partir amanhã para Saint-Méen e passar por Nantes, para estar com nossas caras Irmãs.
Praza a Deus que as encontre também, conforme desejo, em tão bom estado como as daqui.
Saúdo, entretanto, nossas Damas da Caridade e me recomendo às preces de nossas caras Irmãs,
sendo, no amor de Nosso Senhor, senhora, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: À senhora Le Gras, superiora das Filhas da Caridade, em Paris.

1097. – A LUÍSA DE MARILLAC

Saint-Méen, segunda-feira de Páscoa1, 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Os trabalhos da visita que estou fazendo aqui me impedem de vos escrever de próprio punho.
Louvo a Deus pela conservação de nossas Irmãs de Bicêtre e de Saint-Denis 2 e do bom estado em
que se encontram as outras. Agradeço, de modo especial, à sua divina bondade por vossa boa disposição e
a vós, pelas orações que fazeis pela minha saúde3.
Estou extremamente impressionado com a caridade e a perseverança do Padre Alain, como
também pelas devastações de Bicêtre e pela pobreza das crianças. Do primeiro, seja Deus a recompensa.
Sua santa vontade proveja ao demais! Já que esse lugar é inabitável, seria de se desejar que aprouvesse ao
Parlamento ou à cidade doar um outro; provavelmente não o farão. Contudo é preciso não deixar de o
pedir, se tal for o parecer das damas, a ser solicitado nessa ocasião; vós o solicitareis por obséquio, por
intermédio da Madame de Lamoignon, que lhes falará sobre o caso. Se a Madame Princesa 4, a Madame
Duquesa de Aiguillon e a Madame de Brienne puderem ser consultadas a respeito, seria bom saber da
opinião delas. O meu ponto de vista é que elas se reportem ao que as outras damas resolverem.
Recebi apenas uma de vossas cartas em Argers e a ela respondi do mesmo lugar; se me lembrasse
dos diversos itens, repetir-vos-ia aqui o que vos escrevi.
Quanto ao desejo que tendes de vos aliviar das Irmãs inúteis, não entendo bem de qual inutilidade
vos queixais. Se se trata daquelas que não são capazes ou não sabem agir, depois de serem
experimentadas durante algum tempo, e que, de fato, não têm qualidade alguma que motive a esperança
de melhora, fareis bem em dispensá-las. Mas, em se tratando daquelas que ainda não foram
.
Carta 1097. C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. 5 de abril.
2
2. A fundação de Saint-Denis era devida à senhora de Lamoignon e à Madame de Nesmond. Madame Turgis, Francisca Noret de Liancourt
e Margarida Le Joint, de Arras, Filhas da Caridade, tinham tomado posse do hospital a 22 de agosto de 1645.
3
3. Estão riscadas neste local as cinco linhas seguintes “a qual foi acometida de um pouco de febre, durante a noite, em consequência de uma
queda n’água que sofri; o cavalo se deitou na água e de lá não conseguiria sair, se não tivesse sido reconhecido. Estou agora passando
bastante bem, graças a Deus”. Aconteceu isto a meia légua de Durtal, diz Collet ( op. cit., t. I, p. 474), ou antes o Irmão Ducournau, do qual
ele segue o relato. O Santo foi salvo por um de seus padres, que o acompanhava. Tornou a montar todo molhado e foi se secar em uma
pequena cabana.
4
4. Carlota de Montmorency.
209

suficientemente treinadas nos trabalhos da Caridade e não conseguem, em razão disto, se aplicar a eles
adequadamente, ou que disto são impedidas em razão de alguma enfermidade da qual possam curar-se,
creio, senhora, que importa ter paciência com elas, tanto quanto possível.
A revisão5 se fará durante o retiro, na festa de Pentecostes, com a ajuda de Deus.
Fiquei muito satisfeito com a vossa estada em Paris; tenho plena certeza de que não foi sem
motivo.
Entre nossas Irmãs de Argers apenas duas passam por alguns sofrimentos em seu espírito, mas não
é nada grave, e espero que tudo passe. As outras estão contentes, e todas muito fiéis às suas pequenas
obrigações. A Irmã Cecilia6 está acima de qualquer estima, assim como a consolação que elas me
propiciaram; já vos comuniquei isto. Se for preciso afastar a Irmã Jeanne, não deve ser despedida de
imediato para a sua terra7, mas fazer ainda uma experiência com ela em Richelieu, onde estará próxima da
sua região natal.
Quando eu estiver em Nantes, verei o que há com a Irmã Maria, de Tours, e vos escreverei.
Se julgardes conveniente mandar de volta para aqui aquela de que me falais, fazei-o. Quanto à
Irmã Mathurine8, peço-lhe não alimentar qualquer preocupação com seus pais. O Padre Thibault deve ir
vê-los9, a fim de tirar deles a que podem ter por ela.
Tenho grande confiança em vossas orações e nas de todas as nossas irmãs; peço que continuem a
rezar por mim, e vós também, de modo particular, de quem sou no amor de Nosso Senhor, senhora, muito
humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: À senhora Le Gras.

1098. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

6 de abril de 1649.

Meu honorabilíssimo Pai,

Estamos muito preocupadas, sem saber o lugar e o estado em que estais. Suplico a bondade de
Deus que vossa saúde e os negócios de vossa comunidade vos permitam regressar, dentro em breve. Sois
muito desejado em Paris, pelas obras de caridade. De modo especial a senhora Presidente de Lamoignon
vos pede que retorneis o quanto antes.
Deixo aos outros o encargo de vos dar notícias sobre a paz, nada sabendo a respeito, a não ser o
que nos leva a louvar a Deus com o povo.
O senhor Padre Alain faleceu, e nossas Irmãs se dispõem a voltar, num desses dias, para Bicêtre,
a fim de que o lugar fique ocupado e possam semear a terra. Queira Deus que ali possam permanecer,
durante o tempo que a divina Providência o ordenar!
Madame Presidente du Sault vos saúda muito humildemente; deseja ardentemente vossa presença
aqui, antes de sua partida de volta para a sua casa.
Suplico-vos muito humildemente, meu honorabilíssimo Pai, não esquecer nossas pobres Irmãs, se
passardes por perto de Nantes; vede se é possível livrar nossas Irmãs de tantos pedidos de mudança.
Como vos havia dito, ao menos em duas cartas anteriores, se vossa caridade achar que a Irmã Maria, de
5
5. A confissão do ano ou ao menos dos meses decorridos depois do retiro precedente.
6
6. Cecilia Inês Angiboust.
7
7. Ela era de Loudun.
8
8. Mathurine Guérin, que foi secretária de Luísa de Marillac e quatro vezes Superiora Geral. Entrara nas Filhas da Caridade a 4 de setembro
de 1648, apesar da resistência tenaz de seus pais. Notícias sobre elas foram publicadas nas Circulares dos Superiores Gerais e das Irmãs
Superioras às Filhas da Caridade e nas notas ou notícias sobre as Irmãs falecidas da Comunidade, Paris, 1845, in-4°, pp. 556-568.
9
9. O Padre Thibault era superior do estabelecimento de Saint-Méen.
.
Carta 1098. – C. as. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
210

Tours, deva ser transferida, melhor seria que fosse devolvida para lá, em vez de mandá-la de volta para
Paris. Já fizemos experiência com ela em vários lugares e, ao enviá-la para Nantes, disse-lhe que era a
última tentativa. Ordenareis as coisas da maneira como vossa caridade julgar conveniente e segundo
Nosso Senhor vos inspirar. Em nome de Deus, meu querido Pai, rezai por nós. Eu vos escrevi falando de
nossas necessidades e das minhas em particular. Temo, porém, que minhas cartas não vos tenham sido
entregues. Praza a Deus ter misericórdia de nós e restituir-nos o que, por sua justiça, nos retirou!
Sou, em seu santíssimo amor, meu honorabilíssimo Pai, vossa muito obediente e mui grata filha e
serva,

LUÍSA DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral dos padres da Missão.

1099. – A LUÍSA DE MARILLAC

Saint-Méen, 9 de abril de 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Espero partir, dentro de três ou quatro dias, para Nantes e de lá vos escrever sobre o estado em que
encontrarei nossas queridas Irmãs. O padre des Jonchères1 escreveu ao senhor Bispo de Saint-Malo2 que
ele me ofereceria hospedagem em sua casa e me pede lhe avise sobre o dia em que penso chegar lá. Sua
Excelência pensa que é por causa da agitação popular. Nosso Senhor será nosso guia, se for do seu
agrado. Soube aqui, com muito pesar, da morte do Padre Alain. Ó senhora, como fiquei sentido! Importa
orarmos a Deus para que envie algum outro como ele.
Escreveram-me sobre o modo como foram retiradas as pobres crianças de Bicêtre 3. Estou
preocupado em saber para onde as levaram. Meu Deus! Quanto trabalho esta mudança vos terá causado!
Não posso deixar de vos tornar a dizer, nesta carta, a consolação que recebi, na visita a nossas
queridas Irmãs de Angers. Ó Senhora, que grande motivo para louvar a Deus por sua adorável conduta
sobre nossas queridas filhas! Nossa Irmã Jeanne, de Loudun, e nossa Irmã Bárbara, que está em Troyes,
estavam, ao que me parece, um pouco restabelecidas; a última, quase inteiramente. É preciso esperar os
acontecimentos.
Continuo a passar bem, graças a Deus. Aproveitei a ocasião para tomar um purgante e receber
uma sangria. Não tenho dúvida de que recomendais a Nosso Senhor nossas queridas Irmãs, e a mim.
Penso em vós [todas], diante de Deus, no santo sacrifício da missa.
Se estiverdes com Madame de Lamoignon e com nossas Damas da Caridade, assegurai-as, por
favor, de que não as esqueço diante de Deus, em cujo amor sou vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,

1100. – A LUÍSA DE MARILLAC

Saint-Méen, 15 de abril de 1649.

.
Carta 1099. – Etudes religieuses, t.VIII, p. 1875, pl. 284, conforme o original.
1
1. Capelão do hospital de Nantes e diretor das Irmãs.
2
2. Ferdinand de Neufville (1646-1657)
3
3. As crianças expostas foram transferidas provisoriamente para a Casa-Mãe das Filhas da Caridade, por causa do cerco de Paris.
.
Carta 1100. – C. as. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
211

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Esta carta é para vos dar, mais uma vez, minhas notícias e pedir as vossas. Continuo a passar bem,
graças a Deus. Estou preso neste lugar por causa do mau tempo e das enchentes. Não fosse isto, já teria
ido para Nantes terça-feira passada. De lá partirei, tão logo abaixe esse pequeno dilúvio, para visitar
nossas Irmãs, como o fiz com as de Angers, que me proporcionaram uma consolação como não recebera
igual, há muito tempo. Já vo-lo tinha dito e não cesso de vo-lo dizer. Elas precisam de uma Irmã capaz de
ensinar os mistérios (da fé) aos pobres, assim que eles chegarem, como o fazem as Damas do Hospital
Geral. Falaremos disso novamente, se Deus quiser.
Continuarei, entretanto, a suplicar a Deus a conservação de vossa saúde e suas bênçãos sobre vós e
vossas filhas, que eu saúdo, sendo, no amor de Nosso Senhor, senhora, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: À senhora Le Gras, superiora das Filhas da Caridade, em Paris.

1101. – A LUÍSA DE MARILLAC

Nantes, 28 de abril de 1649.

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Faz dez dias que cheguei a esta cidade. Dela espero partir amanhã, com a graça de Deus, para
Luçon. Encontrei nossas pobres Filhas da Caridade saindo de uma grande perseguição que lhes fizeram.
Acusam-nas de uma infinidade de coisas. A principal é de que elas se apoderam dos bens dos pobres. Os
três Padres que estão na casa com o Senhor Valton de Lafosse (marido da mulher a quem a Irmã Jeanne
Saint-Albin1 dissera algo que a ofendera), que era pai dos pobres 2 o ano passado, lhes levantaram essa
perseguição por meio deste último. Deixando o cargo e indo agradecer aos magistrados municipais, disse-
lhes que tudo iria bem no hospital, sem as Filhas da Caridade, que cumpriam muito mal o seu dever e, o
que é pior, causavam a ruína do hospital e roubavam o que não lhes pertencia. Ofereceu-se para dar
dinheiro a fim de que fossem mandadas embora. A prefeitura do município convocou os senhores
Cônegos do Cabido e o chefe do tribunal para uma assembleia. Essas três organizações mandariam
representantes para verificarem a acusação e decidir sobre a dispensa ou a manutenção das Irmãs. E isso
foi feito. Contudo, pela graça de Deus, os senhores Administradores atuais fizeram ver claramente que a
acusação era falsa, e delegaram o senhor Cônego decano para dizê-lo às Irmãs e confortá-las.
Tudo isso, porém, não desencorajou os acusadores: foram falar com o senhor Bispo de Nantes 3,
dois dias depois de sua volta e lhe disseram maravilhas contra essas pobres Irmãs. Ora, contaram-me hoje
que o referido senhor Bispo de Nantes, que nunca olhara com bons olhos essa fundação, quer, outra vez,
tomar conhecimento de todas as queixas feitas contra elas. Dei-me a honra de ir estar com ele, antes da
última queixa e disse-lhe que havia visitado as Irmãs do hospital, que havia encontrado nelas muita coisa
a desejar, mas que, pela graça de Deus, eram inocentes das coisas de que eram acusadas. Ele me
respondeu, muito à vontade, que elas eram boas pessoas. Estou agora em dúvida se devo voltar a procurá-
lo para conversar mais longamente sobre o assunto. Contudo, vejo, de um lado, que ele não desistirá de
sua decisão de tomar conhecimento dessas acusações, diga-lhe eu o que disser, e que não conseguirei

.
Carta 1101. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
1
1. A Irmã Jeanne Saint-Albin foi chamada para Paris em dezembro de 1650. Faltou pouco para ela sair da Comunidade em outubro de 1655
(Cf. Cartas de Luísa de Marillac, c. 457). Encontramos ainda seu nome na lista das Filhas da Caridade, depois de 1660.
2
2. Adminitrador do hospital (ver C. 846, nota 3).
3
3. Gabriel Beauvau de Rivarennes.
212

livrá-lo da aversão que ele tem por essa obra. Outras razões particulares, além dessas, vos direi depois.
Por tudo isso, penso eu não ser conveniente que volte a falar com ele. Contudo, poderei fazê-lo, se os
Senhores des Jonchères4 forem desse parecer. É tudo o que tinha a dizer quanto à perseguição dessas
pobres Irmãs.
Em minha visita, estive com elas todos os dias, com exceção de um ou dois. Importa reconhecer
que elas não estão naquele estado que seria de se desejar: 1° esqueceram-se da observância da
regularidade; 2° não têm sido exatas à oração, à leitura, aos exames 5, nem ao silêncio; havia pouca ou
nenhuma caridade entre elas, estavam faltando à obediência, ao suporte mútuo, e até mesmo, na verdade,
à devida aplicação à assistência aos doentes6.
Jeanne, a Irmã coordenadora7, é muito boa Irmã, sensata e serena; algumas dentre elas estimam
que não é muito previdente.
Henriqueta8 é uma irmã cheia de ardor e de caridade, mas pouco respeitosa, pouco ou nada
submissa à coordenadora. Desagrada o médico e a uma quantidade de pessoas. É pouco regular e,
conforme penso, é a causa da maior parte das desordens das Irmãs. Não posso continuar a falar-vos do
estado de cada uma das outras; fá-lo-ei, de viva-voz, se Deus quiser. Estou com pressa. Pela graça de
Deus, as Irmãs estão, agora, se portando melhor, e resolvidas a agirem corretamente.
É absolutamente necessário chamar de volta Henriqueta e enviar uma outra em seu lugar, que
entenda de farmácia. É preciso mandar Maria9 para Richelieu; quando eu chegar aí, pensaremos na
maneira de mandá-la de volta para sua casa; não há condições para fazê-lo daqui, e nem mesmo de
mandá-la embora, a não ser quando tiver chegado a que destinais para o seu lugar. Há necessidade de
mais uma Irmã, a oitava. Se for possível, peço-vos enviar duas, como o exige a situação. Quanto ao resto,
combinaremos em Paris.
Falaram-me de um outro estabelecimento na diocese de Vannes; disse ao senhor Padre des
Jonchères que não há como pensar nisso, ao menos para tão cedo.
Espero partir amanhã para Luçon e voltar depois para Richelieu, se Deus quiser. De lá voltarei
para Paris, se alguma coisa urgente não exigir que passe em outro lugar; em todo caso, será uma viagem
de um mês, para ir e voltar a Richelieu. Quando estivermos em Paris, falaremos sobre todas as coisas que
são necessárias para aqui.
Peço-vos, entretanto, senhora, ter cuidado com vossa saúde, pelo amor de Nosso Senhor, no qual
sou, senhora, vosso humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: À senhora Le Gras, em Paris.

1102. – A ANTÔNIO PORTAIL

Richelieu, 11 de maio de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Encontrei nesta Casa duas cartas vossas. Não me lembro se me fizestes alguma proposta no sentido de
que tenhais de pedir conselho a outrem, se não tiverdes o meu, como dissestes, no dia 20 deste mês, que

4
4. O senhor Padre des Jonchères, diretor das Filhas da Caridade de Nantes, tinha um irmão que era presidente no tribunal desta cidade.
5
5. Trata-se dos exames de consciência prescritos nas regras das Irmãs. (N. do T.).
6
6. Temos ainda a minuta autógrafa dos avisos que o santo deixou para as Irmãs de Nantes, no fim desta visita.
7
7. Jeanne Lepeintre, superiora no hospital de Nantes.
8
8. Ela estava em Nantes desde 1646, encarregada da farmácia.
9
9. Maria, de Tours.
.
Carta 1102. – C. as. – Dossiê de Turim, original. O postscriptum é da mão do Santo.
213

estais obrigado a fazê-lo. Acabo de ler os pontos de quatro ou cinco cartas vossas que precederam as
anteriores, nas quais nada encontrei sobre isto. Se o assunto é de tal natureza que não possa ser colocado
por escrito ou que seja tão urgente que não poderíeis informar-me a tempo, e esperar a minha resposta
antes de resolvê-lo, solicitai a opinião dos conselheiros da Casa e a do senhor Padre de la Coste. Quanto a
mim, rogarei a Deus vos conceda a graça de seguir em tudo os seus eternos desígnios.
Deus sabe do meu desejo de visitar as Casas distantes, e o pesar que sinto por não poder fazê-lo
me toca sensivelmente: a Rainha mandou dizer-me, por diversas vezes, para voltar a Paris. Ora, não vejo
como poderia fazer a vontade de Deus, deixando de obedecer, eu que sempre acreditei e ensinei que se
deve obedecer aos príncipes, mesmo aos que são maus, como diz a Escritura. Tudo que posso fazer é
mandar solicitar a Sua Majestade, como faço, que me permita continuar a viagem; não até Marselha, mas
somente até Cahors. Aguardo aqui sua resposta.
Quando estiver em Paris, trataremos de vos enviar o Padre du Chesne ou algum outro,
acompanhado de um Irmão. Não sei se poderá ser o Irmão Jean Parre1.
Por falar em Irmão, comunicam-me de Gênova que retivestes o Irmão Cláudio, que deveria voltar
para lá. Admiro-me, pois que conheceis a necessidade que têm dele; pedem-no a mim com grande
insistência. Peço-lhe que lho envieis. Todas as outras cartas vossas, umas 6 ou 7, não requerem de mim
outra coisa a não ser que renda mil louvores a Deus por tudo que me dizeis, particularmente, pelo êxito
da ordenação, da Missão de Fréjus, das Conferências com os eclesiásticos externos, pelo zelo do Padre
Brunet, pela satisfação do Padre de la Coste, por sua caridade para com a comunidade e, enfim, pelas
bênçãos que Deus derrama sobre esta última. Rogo, portanto, a sua infinita misericórdia, que seja ela
mesma sua própria ação de graças e que santifique cada vez mais vossas almas, em especial a vossa, da
qual sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Já que nos adveio a paz2, pela graça de Deus, parece-me que não há nada que nos impeça de
realizar a reunião dos superiores da Companhia, em Paris.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em Marselha.

1103. – A LUÍSA DE MARILLAC

Richelieu, primeiro dia depois da Ascensão [16491].

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


O Padre Lambert ter-vos-á falado de minha chegada aqui. Fui assediado de visitas, no dia
seguinte, pela manhã; o correio partiu sem que vos escrevesse. Continuei a receber visitas e estive de tal
modo ocupado com elas e com os encargos da minha visita 2 que não pude ainda conversar com nossa
estimada Irmã3; fá-lo-ei, se Deus quiser, na primeira ocasião.

1
1. Nascido em Châtillon-en-Dunois (Eure-et-Loir), entrou na Congregação da Missão em 16 de abril de 1638, com a idade de 27 anos. Fez
os votos em 1643. Faleceu depois de 1660. Foi, entre os irmãos coadjutores, juntamente com o Irmão Mateus Régnard, um dos mais
inteligentes e dos mais ativos instrumentos que a divina Providência colocou à disposição de São Vicente. Percorreu a Picardia e a
Champanha, em todas as direções, tomando conhecimento das carências e levando a todas o devido remédio.
2
2. A paz de Rueil, concluída, nos primeiros dias de março, entre a corte e o Parlamento.
.
Carta 1103. – C. aut. – O original está exposto na sala das Conferências de São Vicente de Paulo, em Metz.
1
1. O conteúdo da carta e o local donde é escrita não permitem dúvida alguma sobre a data.
2
2. Trata-se da visita interna e oficial às casas da Companhia, feita, geralmente, por um Visitador enviado ad hoc ou pelo próprio Santo (N.
do T.).
3
3. As duas Filhas da Caridade de Richelieu eram a Irmã Francisca Carcireux, de Beauvais, e a Irmã Carlota Royer de Liancourt.
214

Escrevo ao Padre Lambert e também uma palavra à Madame Duquesa, para agradecer a ela pelos
cavalos4 e expor-lhes as razões que tenho para querer chegar até Notre-Dame de la Rose e a três ou
quatro Casas que temos por lá. Submeto-me, contudo, ao parecer deles, que veem, como vós, as
necessidades que eles têm por lá. O motivo para temerem a minha viagem a cavalo e exposto ao sol fica
afastado pelo uso da carruagem que me enviaram.
O que mais está me pressionando é a urgência de providenciar uma casa para as crianças expostas.
Expus à Madame as razões, que aqui não torno a repetir-vos. Ela vo-las poderá comunicar; ou então o
Padre Lambert. É coisa de apenas um mês ou próximo disto. Numa palavra, faço-lhe a proposta de uma
assembleia geral das Damas para decidir se recorrerão à Rainha, se optarão por uma coleta geral ou se
farão uma requisição ao Parlamento, em nome das oficiais, no sentido de que proveja às necessidades.
Isso dará mais peso à suplica do que se fosse feita em vosso nome, isoladamente. Lembrei que o Padre
Lambert poderá ajudar nisso, se houver inconveniente em me esperar, e que, ao final de tudo, farei o que
me mandarem.
Escrevi-vos sobre a situação de nossas Irmãs de Nantes. O senhor Padre de Vaux me escreve que
as de Argers vão trabalhando bem, pelo que dou graças a Deus.
O Padre Gautier me disse que há aqui uma porção de jovens que pedem para serem recebidas na
Caridade. Praza a Nosso Senhor nos receba em seu amor e vos conserve com boa saúde!
Sou, em seu amor, senhora, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
ind. p. d. M.

Em nome de Deus, senhora, não vos preocupeis com o senhor bailio 5. Não vistes a extraordinária
providência de Nosso Senhor sobre ele, quase independentemente de vós? Deixai sua divina Majestade
agir. Ela saberá mostrar à mãe, que cuida de tantos filhos, a satisfação que tem por isto, com o cuidado
que exercerá sobre o seu próprio filho; e ela não poderá prevenir nem superar a Sua bondade. Lembrai-
vos do que vos disse outrora sobre a bem-aventurada Madame de Chantal a respeito do seu falecido filho.

Destinatário: À senhora Le Gras, em Paris.

1104. – CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

[Fort Dauphin, 27 de maio de 16491]. ê

Senhor Padre e honorabilíssimo Pai,

Vossa bnção, por favor!


Devendo a memória do justo ser eterna, o menor dever que sou obrigado a prestar à memória do
meu caro coirmão e companheiro, o falecido Padre Gondrée, é, sem dúvida, o de vos enviar notícias dos
últimos dias de sua vida e das virtudes que praticou durante a sua enfermidade. Ela o arrebatou do meu
convívio na plenitude da primavera de sua vida, e quando alimentava a esperança de ver o trabalho
desse bom operário.

4
4. A Duquesa de Aiguillon tivera a delicada atenção de enviar ao Santo, para o seu retorno, dois cavalos atrelados à carruagem que ela lhe
tinha dado anteriormente. Quando Vicente de Paulo quis devolver os cavalos, a Duquesa de Aiguillon pediu-lhe que ficasse com eles. O
Santo não pôde recusá-lo e se viu na obrigação de servir-se deles, por ordem da Rainha (Cf. Abelly, op. cit., l. I, cap, XXXIX, p. 186).
5
5. Para dar uma boa situação ao filho de Luísa de Marillac, São Vicente o tinha nomeado bailio de São Lázaro. Michel Le Gras estava
encarregado, por este título, de exercer a justiça nas dependências desse feudo. Conservou este ofício até 1656. Sua mãe, preocupada antes
de tudo com a salvação da alma dele, pensava em arranjar-lhe um casamento, mas não o conseguia, com bastante rapidez, segundo a medida
dos seus desejos.
.
Carta 1104. – C. aut. – Dossiê da Missão, original.
1]. ê
1. Data acrescentada no dorso do original. Fort-Dauphin (dizia-se então o forte Dauphin) está situado no sul de
Madagascar, na costa oriental.
215

Vai, portanto, aqui, uma amostra a ser acrescentada à conferência que se fará a respeito dele,
para que não vos falte a lembrança de suas últimas ações, coroamento de todas aquelas que as
precederam.
Não repetirei aqui as virtudes que praticou durante a viagem, quando estava em La Rochelle, e
durante nossa navegação de seis meses e meio em pleno mar. Com efeito, praticou, nesse tempo, as
virtudes de um bom missionário: a humildade, a mortificação, a caridade, a mansidão, a simplicidade e o
zelo, em todas as ocasiões. De tudo que se passou nos seis meses em que aqui viveu, conforme vistes no
diário que fiz, a melhor parte se deveu a ele.
Deixo de lado a piedade, a modéstia, a conversação amena, a correção e a solicitude, tanto com
os franceses quanto com os negros, em todas as ocasiões que teve de servi-los e instruí-los. Abordo a
primeira viagem que fez a Fanshère, em companhia do Senhor de Flacourt, ao encontro de Andian
Ramach, Rei dessa região onde está nossa moradia. Foi numa sexta-feira antes das Rogações. Deixei que
ele fosse, porque já tinha estado lá por duas vezes. Encontrando-se lá, não tendo podido celebrar a missa
no domingo, fez a oração pública com os franceses que tinham acompanhado o Senhor de Flacourt.
Estavam diante da casa do Rei, que assistiu a tudo com vários negros, em perfeito silêncio, e reiterou a
promessa que me fizera de voltar aos deveres de um bom cristão, quando houvesse padres com ele e uma
igreja edificada naquele local. Como a viagem se fez durante o tempo de abstinência de carne, e não
houvesse peixe e legumes, como se desejaria, nesta região, assim como na França, ele dispensou os
franceses dessa observância. Quis, porém, ele mesmo, observar a abstinência. Comeu apenas um pouco
de arroz cozido em água; isso, e mais o calor do caminho, causou-lhe a doença da qual não se
restabeleceu.
Vejamos como Nosso Senhor purificou esse ouro no crisol, e como fez-lhe aparecer a paciência
na enfermidade.
Na quarta-feira, véspera da Ascensão de Nosso Senhor, embora estivesse muito indisposto, quis
celebrar a missa, que teve dificuldade para terminar. Assim mesmo, não deixou de ir ainda confessar um
francês moribundo que lhe solicitara este favor. Voltou com grandes calafrios e foi deitar-se, dizendo-me
que fora perturbado por delírios durante a noite. Entre outros o de que se imaginara estar fazendo uma
quantidade de cruzes. Disse, a respeito, que era um presságio de que bem cedo precisaria de uma.
Perguntei-lhe a causa de sua doença. Disse-me que, em parte, era aquela viagem na qual
contraíra uma constipação e que voltando a nossa casa, sentira o cheiro fétido de um doente que
tínhamos retirado dela, por não ter outro lugar para recebê-lo. Nessa ocasião, sentira grandes náuseas.
Ei-lo, portanto, acometido de febre tão violenta que, à tarde, perdeu o juízo e caiu num delírio
que o fez levantar-se, querendo sair, todo assustado e sem fala. Corri até ele, abracei-o, recoloquei-o no
leito, onde permaneceu ainda, durante um quarto de hora, sem poder falar, apesar do esforço que fazia
para consegui-lo. De sua boca, saiu uma espécie de escuma vermelha, sinal de que estava tuberculoso.
Com efeito, tinha o fôlego curto e dificuldade para cantar na Igreja.
Recuperando a fala, não se lembrava do que acabara de fazer. A primeira coisa que pediu foi a
de ser atendido em confissão.
Na sexta-feira, a febre não foi tão violenta. Tratou-se, porém, apenas, de um momento para
recobrar novas forças para outra recaída, pois a febre redobrou de intensidade, mais tarde. Foi atacado,
depois de certa prisão de ventre, de grande surto de diarreia, que o enfraqueceu a tal ponto que já não
podia ficar de pé. Sentia dores tão agudas nas articulações que dizia ser impossível suportar outras mais
fortes. Entretanto, seus mais altos gritos eram os de “que Deus seja bendito! Seja Deus glorificado! Se é
prazer vosso ver-me sofrer tanto, é também o meu; se aumentais a dor, aumentai também a paciência”.
Dizia-lhe eu: “Coragem, meu querido irmão! nosso bom Deus está vendo como combateis. Ele vos prova
no fogo desta febre. Não é melhor, como se diz em uma oração da quaresma 2, sejamos temporalmente
macerados no corpo do que sermos condenados aos suplícios eternos?” – “tendes razão; ah! como Deus é
bom! dizia ele, e como ele me ama! Não sou digno do seu amor”.
As dores que sofria obrigaram-me a lhes procurar algum remédio. Por felicidade, encontrei um
óleo de fruto de dragoeira que os negros fazem e que estava bem quente. Ungíamos o local da dor e ele
se sentia aliviado. Depois disso, não cessou de agradecer ao Criador. O alivio, contudo, não durava
muito tempo. A dor recomeçava e o impedia de tomar qualquer repouso. Disse-lhe então que ele podia

2
2. Sexta-feira depois do domingo da Paixão.
216

exclamar: Deus meus, ad te de luce vigilo 3 (Ó meu Deus, por ti madrugo). Ele me disse: “posso também
dizer: De nocte vigilo” (Passo a noite em vigília).
No dia seguinte à Ascensão, disse-lhe que precisava colocar-se “nas mãos de Deus” e receber os
sacramentos. Eles são os remédios divinos quando falham os humanos. “Com todo amor, disse ele. Deixo
isso a vosso inteiro dispor”. Era uma prova do seu apreço à obediência.
Preferindo prevenir do que adiar para tarde demais, trouxe-lhe Nosso Senhor. Em presença da
maior parte dos franceses, que tiveram a devoção de acompanhar o Santíssimo Sacramento, disse-lhe
com o coração comovido e palavras entrecortadas de ternura: “Muito bem! meu caro irmão, eis o
grande remédio da alma e do corpo, que vos vem visitar. É agora que é preciso praticar o que ensinastes
tão frequentemente aos doentes, a saber, atos de fé, de humildade, de contrição, de caridade”. – “Eu o
quero assim”, disse ele. Ao dizer-lhe que, na incerteza do êxito da sua doença, eu lho trazia como viático
e que ele se entregasse totalmente àquele que se dava inteiramente a ele, “não existo para mim, disse ele
generosamente; faça de mim tudo que for do seu agrado; existo totalmente para ele”. Desse modo, ele o
recebeu com grande devoção.
De então em diante, à medida que suas forças diminuíam, seu espírito não se enfraquecia e se
ocupava em Deus com aspirações que seria muito longo descrever. Não poupávamos nada que pudesse
contribuir para sua saúde. Ele, por sua vez, nada recusava de tudo o que lhe pediam que tomasse, pelo
amor de nosso bom Deus.
Chegada a festa de Pentecostes, expus o Santíssimo Sacramento para as preces das quarenta
horas e supliquei a cada um, em razão do interesse que tinham em sua saúde, solicitar ao coração de
Nosso Senhor que lha obtivesse, se lhe fosse necessária. De minha parte, fazia a oração dos Apóstolos:
“Não nos deixes órfãos4”, com dupla intenção, tanto para não ser privado das graças do Espírito Santo,
quanto para não ficar órfão de meu Pai espiritual. Não dissestes, Senhor, que era uma desgraça
permanecer sozinho, sem companheiro para aquecê-lo em sua frieza ou levantá-lo em sua queda? Mas
depois de dar vazão aos gemidos do meu coração e de pedir a conservação de um obreiro tão necessário
num país onde as carências eram tantas, ao voltar ao quarto, só deparava com respostas de morte, vendo
que a doença aumentava e a debilidade chegava a tal ponto que restavam apenas delírios, embora
fossem todos piedosos, como o de celebrar a missa, instruir alguma pessoa. Aproveitava então a ocasião
para ajudá-lo a elevar o coração para Deus pela recitação de algum versículo dos salmos ou de outras
palavras. Em mim mesmo refletia que era bem verdade que o moinho devolve como farinha o trigo nele
colocado, e que o espírito se coloca nele naturalmente com as coisas e pensamentos que sempre o
habitavam. Mas não era devaneio o que me dizia e àqueles que vinham estar com ele: “Oh! como é bom
servir a Deus quando estamos com saúde. Realmente, temos muita dificuldade na doença, que abate o
pobre espírito”. Em outras vezes, dizia com sentimento: “parece que somos miseráveis quando o corpo
sofre; contudo, porém, é uma felicidade, e grande, padecer a doença por amor de Deus. Compramos uma
eternidade de glória com um momento de tribulação”. Dava muito bem a entender que estava nesta
prática de sofrer com prazer. Com efeito, apesar de suas dores articulares, de que falei acima, o terem
levado no início a dizer que era impossível sofrer mais, apesar, digo eu, de essas dores aumentarem, ele
dizia: “Não sofro tanto, pois sinto uma força dentro de mim e uma graça que faz com que todo este mal
pareça um nada”. – Muito bem! Podemos assim verificar o que foi dito: Juxta est Dominus iis qui
tribulato sunt corde5; cum ipso sum in tribulatione6 (O Senhor está perto daqueles que têm o coração
atribulado; estou com ele na tribulação), lhe dizia eu. E ele, com suavidade, respondia quase sempre a
todos esses versículos: “Ah! tendes toda razão, meu caro, senhor Padre, tudo é verdade”.
Depois de ter entrado em delírio, falava baixinho e dizia: “Como poderíamos converter esses
huguenotes?” Eu lhe respondia: “Com uma conversa amena”. O que é digno de nota é que, com efeito,
pouco tempo depois de sua morte, dos dez que havia aqui, cinco se converteram e voltaram, um após
outro, depois de uma conversa amena e humilde com eles. É possível que eu não estivesse certo ao crer
que falara delirando da conversão desses huguenotes, porque talvez fosse uma prece que fazia
expressamente para isso, e que foi logo atendida em seus desejos, embora efetivada posteriormente.

3
3. Sl 62, 2.
4
4. Jo 14, 18.
5
5. Sl 33, 19.
6
6. Sl 90, 15.
217

Recebera a comunhão havia dez dias. Perguntei-lhe se não queria receber de novo a comunhão,
acolhendo aquele que tinha enviado o Espírito Santo sobre os Apóstolos. “Oh, com muita satisfação!”,
disse ele. Entretanto só no dia seguinte trouxe-lhe Nosso Senhor, que ele recebeu com igual devoção,
como na primeira vez; isto porque estava eu muito ocupado, no dia de Pentecostes, com o canto das
matinas, a celebração solene da missa e a reconciliação dos que tinham cumprido suas devoções. Além
disso, na parte da tarde, depois das vésperas, houve a exortação aos franceses e a instrução dos negros.
Como quase todos os franceses estavam presentes, recomendou-lhes com unção interior a devoção para
com a Santíssima Virgem, embora só falasse com dificuldade, e pediu-me que lhes fizesse a mesma
recomendação.
Não posso deixar de dizer aqui o que acredito que se salientará na conferência sobre sua vida,
isto é, que esta sua devoção para com a Santíssima Virgem era tão fervorosa que deixou aqui por escrito
uma quantidade de práticas sobre ela e que acredito que ele tenha realizado no retiro. Parece-me que se
tinha associado a três ou quatro seminaristas de São Lázaro para se estimularem mutuamente neste
sentido e conversar sobre elas nas recreações e nos colóquios espirituais.
Depois de ter comungado, encontrei-o tão extenuado que lhe sugeri receber a Unção dos
Enfermos, esperando que recobrasse a saúde mais pela virtude dos sacramentos do que pelos remédios.
Administrei-lha, imediatamente, e ele a recebeu com tal devoção, apresentando os membros a serem
ungidos e respondendo às palavras, que fiquei emocionado, com lágrimas nos olhos, assim como toda a
comunidade. Tendo terminado, fui celebrar a santa missa, no fim da qual batizei uma jovem adulta para
ser dada em casamento a um negro batizado na França, em Nantes, companheiro daquele que fora
batizado em Paris, e que também se casou pouco depois com uma negra daqui, por mim batizada.
Voltando da igreja e não tendo nada com que consolar este pobre amigo debilitado ao extremo,
cuja enfermidade caminhava para a morte, disse-lhe o que acabara de fazer na igreja: “Muito bem! meu
caro amigo, acabamos de começar a obra de Nosso Senhor, batizando uma adulta. Batizaremos em breve
uma outra, tão logo tenha acabado de instruí-la. Não estais contente com isto?”Ele reforçou sua voz: “Ó
meu Deus, quem não ficaria alegre? Não foi para isso que fomos enviados para aqui?O meu maior pesar
no momento é se eu tiver de deixar esta pobre gente, na qual se encontram tão boas disposições. Ó bom
Deus, é uma grande honra! Ah! não me concedereis a graça de vos servir nisso!”
Estes sentimentos e o zelo pela salvação dos habitantes do país se podem mais imaginar do que
exprimir. Disto é que ele se entretinha comigo, com frequência, quando com saúde. Só me falava de
nossa missão neste país em termos de gratidão para com Deus, pela grande honra que nos concedera. A
lembrança da unção com que falava é suficiente para me tirar, no momento em que escrevo, lágrimas dos
olhos. Sinto-me humilhado por desempenhar mal esta missão.
Volto a nosso doente o qual, depois de ter dito tão belas palavras num pequeno intervalo,
forçando muito a voz, recaiu logo num estado de torpor, durante o qual se verificava ainda mais sua
afeição pela conversão desses pobres infiéis. Como se tinha aplicado a aprender a língua do país, dizia,
variando: “Sim, é uma boa palavra, Aka alino”, que significa: não esqueçais. Com estas únicas
palavras, não dava ele a conhecer o empenho que tivera na catequese, para inculcar a doutrina cristã? E
acrescentava, incontinente, em sobressalto: “Sim, sem dúvida, meus senhores, eu vos convoco como
testemunhas de que tudo deixei na França e viajei seis mil léguas pelo mar, antes de chegar aqui, com
tanto incômodo, unicamente pela conversão deste pobre povo!” Dizia-lhe que tínhamos começado a
cultivar a terra, e que, após a semeadura, os frutos viriam quando aprouvesse a Nosso Senhor. “Sim,
mas demora muito”, dizia ele. “Qual! dizia eu, pensais que os que se dispõem segundo suas
possibilidades e que preparam também as coisas para o futuro, como procuramos fazer, façam menos do
que aqueles que avançarão mais, porque encontrarão o caminho trilhado?”
Na última festa, vi claramente que ele não poderia resistir mais à violência de uma febre tão
maligna, que o consumia havia quatorze dias. O calor, a dor excessiva de cabeça e de todos os membros
de seu pobre corpo o tinham extenuado. Tendo voltado do serviço da igreja, perguntei-lhe: “Caso seja
do agrado de Nosso Senhor retirar-vos deste exílio, que desejaríeis dizer ao nosso bom Pai, o senhor
Padre Vicente?” – “Dizei-lhe que lhe agradeço muito humildemente por me ter admitido e suportado no
número dos missionários, e particularmente por me ter escolhido para me enviar a este país, de
preferência a tantos outros que teriam feito melhor do que eu” – “Que quereis dizer ao senhor Padre
Lambert e a todo o Seminário?” – “Dizei-lhes que agradeçam a Deus pelo mesmo motivo”. – “E a
madame vossa mãe e aos vossos parentes?” – “ Peço-lhes mandem celebrar um bom número de missas
218

para mim na mesma intenção”. – “E se me deixardes aqui sozinho, que testamento me deixaríeis?”. Ele
me perguntou se eu não celebraria muitas missas para ele. “Com certeza pode ficar tranquilo; rogareis
por mim lá em cima, e eu por vós aqui embaixo; e quando a morte separar nossos corpos, não dividirá
nossos corações, tão unidos pelo mesmo desígnio de servir a Deus e fazer com que seja servido. Mas só
tendes isso para me dizer?” Depois de ter pensado um pouco, disse-me na presença de dois ou três
franceses: “Digo-vos como verdadeiro testamento e vos advirto que vos será necessário sofrer muito
aqui (e repetiu: sim, sofrer muito), não um pouco, digo-vos ainda uma vez, mas muito”.
Não lhe perguntei a razão e me contentei com conservar em meu coração este caro testamento,
suplicando a Nosso Senhor que sua vontade se fizesse em mim, a partir de mim e por mim, e que tudo
fosse para a glória do mesmo Deus.
Não digo palavra alguma sobre se este testamento se verificou na realidade. Com efeito, quanto
aos sofrimentos do corpo que é preciso suportar aqui, em razão do calor e da carência de muitas coisas
que existem em abundância na França, isso é sempre muito pouca coisa. Mas bendigo a Deus pela graça
que me concedeu de ter superado muitos tormentos do espírito, por me ver sozinho in terra aliena (em
terra alheia) e por estar privado da boa companhia do falecido e da esperança de ter outros por ainda
muito tempo, para receber os sacramentos, e de não poder avançar muito (estando só e ocupado com os
franceses) numa obra que demanda operários, sem demora.
Enfim à tarde, depois do ofício vespertino a que todos estavam presentes num derradeiro esforço
para urgir com Nosso Senhor no sentido de curar a enfermidade daquele que ele amava e que todos nós
amávamos, voltei para lhe dizer o que se passara. Como parecia perder a consciência, perguntei-lhe se
estava me reconhecendo. “Sim, sem dúvida, você se chama Nacquart”. E ao tentar estimulá-lo à alegria,
perguntava-lhe se ele sabia bem o nome dele. Sorrindo um pouco, deu-me uma resposta que revela o
hábito que tinha de praticar a humildade: “Quanto a mim, disse ele, sou uma pessoa que não vale
grande coisa” – “Deus seja bendito, ele que vos inspira esses sentimentos, dizia eu; não sereis pouca
coisa diante dele”. Enquanto seu espírito divagava no que toca às coisas temporais, ocupava-se sem
trégua, com maior empenho, das coisas espirituais. Das profundezas de sua humildade, elevava-se até a
confiança na misericórdia divina e, estreitando nas mãos o crucifixo, dizia balbuciando: “Sim, Deus me
perdoará, pois sem isso estaria perdido”. Apenas lhe toquei o crucifixo, ele o estreitou mais ainda, como
se dissesse, interiormente: inveni quem diligit anima mea; teneo et non dimittam 7 (encontrei o amado da
minha alma; agarrei-o e não o soltarei). Prevendo que ele não iria longe e que eu não teria por muito
tempo ocasião de me reconciliar com Nosso Senhor, pedi-lhe se poderia administrar-me o sacramento da
penitência e se estaria em condição de prestar atenção e escutar-me, para pronunciar a absolvição.
“Sim, perfeitamente, perfeitamente” Imediatamente ele se descobriu e pude receber dele o sacramento,
sem nenhuma hesitação de sua parte; exortou-me também ao arrependimento dos meus pecados e recebi
sua última bênção.
Permaneci junto dele para encorajá-lo neste momento extremo. Ele mesmo, interiormente, se
ocupava muito; pois voltava ao seu crucifixo e depois de olhar para ele tirava sua boina com dificuldade,
tal era sua fraqueza; com as mãos trêmulas, segurava a imagem de seu Mestre para recitar a ladainha
do santo nome de Jesus. Falhando-lhe a memória, pronunciava eu as invocações e ele respondia com
devoção. Entretanto tratei de moderá-lo e de fazê-lo tomar um pouco de repouso, pois ficara um pouco
atormentado. Às dez horas da noite, levantei-lhe um pouco a esperança, embora, por outro lado, eu
temesse por aquela noite, o que me levou a colocar dois guardas para velá-lo. Sentia-me um pouco
abatido, tanto por ter ficado de pé quase toda noite e também durante o dia, na igreja, durante as festas,
como pela tristeza que me impedira tomar o alimento ordinário. Disseram-me então que fosse descansar
e que me conservasse, em benefício do público. Aceitei o conselho, pedindo aos guardas tivessem com ele
todo cuidado e me avisassem diante da menor suspeita de um desenlace. Deitei-me depois de dar boa
noite ao doente e pedir-lhe que fizesse o possível para repousar.
Entrementes, sobreveio um grande vendaval que causava muito barulho, soprando as folhas com
que a casa era coberta, como são todas as casas deste país. Os franceses que o velavam retiraram-se por
um momento. Escutavam-no com frequência repetir essas palavras que tinha colocado em seu espírito
desde o início de sua doença: Deus, Deus meus, ad te de luce vigilo 8 (Meu Deus, meu Deus, sou
madrugador diante de ti). Seu crucifixo ficou preso à esteira ao lado dele; ele lhe estendeu a mão com o
7
7. Ct 3, 4.
8
8. Sl 62, 2.
219

auxílio de uma corda suspensa diante dele, para ajudá-lo a se movimentar, e dizia muitas palavras que
não era possível discernir.
Oh! como sou preguiçoso por me ter frouxamente deixado persuadir de ir descansar, enquanto
meu irmão reiterava tão frequentemente que ele velava com Nosso Senhor durante dia e noite! Quem
duvida de que esta mão fragilizada que ele dirigia com artifício em direção à imagem do crucifixo, não
procurasse o que o apóstolo santo Tomé quis tocar e que não dissesse consigo: Deus meus et Deus meus,
e que o coração que havia tão ternamente amado e tão fielmente servido ao Senhor e tão corajosamente
combatido, vendo-se no fim de sua carreira, quando esperava começá-la nesse país, não exclamasse:
Cupio dissolvi et esse cum Christo9 (Meu desejo é partir e estar com Cristo)!
Mas é melhor deixar que cada um imagine o que ele pôde dizer e pensar nestes últimos momentos,
mais próximo do ápice de sua enfermidade, quando os movimentos eram mais violentos. A esta altura,
repentinamente, os guardas lhe perguntaram se desejava alguma coisa e não receberam resposta
alguma. Acordaram-me, então, próximo de uma hora depois da meia-noite, mas não encontrei mais
senão o corpo daquele cuja alma fora receber a recompensa não somente dos serviços que prestara mas
também das virtudes que praticara em relação a Deus, em relação ao próximo e a si mesmo. Deixo-vos
imaginar em que estado ficou meu pobre coração, que estremece ainda no instante em que escrevo. Que
acúmulo de aflição foi para mim sepultar esse bendito corpo. Ele servira não somente para confessar
Nosso Senhor diante dos homens, mas também sofrera o martírio por tantas mortificações que
voluntariamente abraçara e que tinha também suportado com admirável paciência, especialmente nesta
derradeira prova com que fora refinado e finalmente purificado como o ouro no crisol.
Sei muito bem, contudo, que não sou capaz de exprimir o sofrimento que experimentei, em termos
de ternura e pesar, quando fazia os funerais; tanto ao cantar o ofício dos mortos, quanto ao celebrar a
missa. Maior ainda foi a dor quando foi preciso entregar à terra aquele que eu teria querido resgatar
com minha vida. Oh! quantos soluços interromperam o canto do ofício e me obrigaram no final a pedir
aos assistentes, que não conseguiam conter as lágrimas, que me escusassem em minha fragilidade, sendo
que o próprio Nosso Senhor fora escusado, quando lhe disseram, por ocasião da ressurreição do seu
amigo Lázaro: Vede como ele o amava1010!
Não eram apenas os franceses que tinham o rosto marcado pela tristeza, mas também os negros,
que apenas tinham começado a conhecê-lo e que se achavam presentes em grande número, sem poderem
impedir-se de chorar a morte daquele durante cuja vida diziam que não tinham visto homens
semelhantes, que jamais se iravam e se aborreciam, e que lhes falavam com afeto dos assuntos
concernentes à sua salvação, como procurávamos fazer ao instruí-los.
Estou consciente de que a minha morte, que vai acontecer quando aprouver a Deus, não me
tocará de maneira tão sensível quanto a sua, e de que as causas de tristeza penetraram tão fundo em
minha alma que me teriam submergido se não tivesse pensado que ele não estava morto, mas que dormia,
e que era necessário calar-me. Realmente fora Deus que assim o fizera para o melhor. Eu teria pensado
fosse um castigo rigoroso a mim infligido, por não ter tirado bom proveito de seu bom exemplo, durante
sua vida. Pouco a pouco, porém, absorvi minha tristeza na conformidade com o beneplácito de Deus e no
abandono à sua santa providência. Pedi para mim a porção das graças que preparara para servo tão
fiel, do qual mais não falo se não para acabar de consolar-me a mim e a toda a Companhia, com as
palavras que servirão de canonização do falecido: “Feliz aquele servo cujo senhor, ao voltar, encontrar
vigilante1111”, etc.
Acredito que cada um dos que o conheceram em Paris e em outros lugares darão testemunho de
que ele sempre esteve velando, “em primeira vigília”, no seminário; “em segunda vigília”, quando estava
em Saintes; “em terceira vigília”, quando voltou depois ainda a Paris, onde recebeu o sacerdócio; e
vereis que, durante o tempo em que tive a felicidade de estar em sua companhia, notei o cuidado que teve
de manter seu corpo e sua alma em incomparável e angélica pureza e seu corpo na prática de todas as
virtudes de um bom missionário. Enfim depois de ter feito tanto bem, – jamais vi nele algum mal – depois
de ter orientado diretamente para Deus as suas ações e para ele ter conduzido tantas outras, terminando
seus dias com pesar por não sofrer no empenho pela conversão desse novo reino capaz de ser facilmente
conquistado para Nosso Senhor; depois de ter sofrido o que um corpo pode sofrer na doença, e com a
9
9. Fl 1, 23.
10
10. Jo 11, 36.
11
11. Lc 12, 37.
220

alegria de que dava testemunho – e nisto era tanto mais digno de louvor quanto é verdade que era de
natureza impetuosa, que ele tinha domado perfeitamente e reduzido a cordial mansidão – enfim, depois
de ter velado noite e dia, como repetia frequentemente durante a doença até o término de seus dias, quem
poderia duvidar que ele fosse encontrado vigilante pelo seu Senhor que, ao canto do galo, quando
morreu, depois da meia noite, o fez, sem dúvida, imediatamente, entrar na luz de sua glória e na posse
dos seus bens? E se eu não posso afirmar que ele é santo, em face do que se disse acima, posso assegurar
que é Bem-aventurado, segundo a Escritura.
Não posso esquecer uma observação. Logo após sua morte, o astro que preside à noite se
eclipsou totalmente, durante o espaço de três horas. Isto me levou a pensar que o céu, tanto quanto nós,
contribuía para o luto daquele que era tão necessário para ajudar a dissipar a noite e as trevas da
ignorância desta terra. Daí acabei concluindo que, se não há astro algum tão belo que não se eclipse,
não há ninguém tão justo que não seja pecador e não tenha necessidade, depois da morte, das orações e
dos sufrágios da Igreja. Estou certo de que esse refrigério não lhe será retardado em toda a Companhia
e em cada uma de nossas casas, no sentido de lhe prestarem os deveres de ofício e fazerem por ele as
preces ordinárias, imediatamente depois de terem conhecimento do acontecido. Creio que tomareis logo
as providências para isso, por meio de uma carta circular. Desejo que nela apareça o começo e o
progresso nele notado, anexando a isso o que envio para esse fim, desejando que este bendito testamento
de sofrimentos, que me foi deixado, seja executado em mim, como sinal e garantia da escolha feita de
minha pessoa para trazer a este país ou a qualquer outro lugar o nome daquele em cujo amor desejo
terminar a minha vida, como fez o falecido, e permanecer para sempre, senhor Padre e muito honrado
Pai, vosso muito humilde e obediente servo,

NACQUART,
indigno padre da Missão.

1105. í
– A LUÍSA DE MARILLAC

Richelieu, 29 de maio de 1649.

Senhora,

Recebi vossa carta, que me afligiu e me consolou ao mesmo tempo, ao saber, no mesmo momento, de
vossa indisposição e de vossa cura. Dou graças a Deus e lhe peço vos fortifique cada vez mais.
Minha febrezinha me deixou, graças a Deus. Termino minha visita e espero partir dentro de quatro ou
cinco dias, se Deus quiser. Ainda não sa daqui para fazer minhas visitas e ainda não estive com nossa
irmã; fá-lo-ei amanhã ou depois, com ajuda de Deus.
Louvo a Deus pela caridade que vos dispensou Madame chanceler1.
Sinto grande dor pela perda de nossa querida Irmã que voltara doente de Saint-Denis, e bendigo a
Deus pela partida das que ele não chamou para si.
O negócio de Saint-Germain não está fechado, dele falaremos quando voltar, com a graça de
Deus.
Parece-me antes de tudo que é melhor que o senhor Magistrado vá devagar, em vez de empregar
tudo que tem nesse ofício2. Talvez o vendam por melhor preço.
Verei com mais cuidado as jovens daqui que estão se apresentando. Recomendo-me, entretanto, a
vossas orações. Sou, no amor de Nosso Senhor...

. í
Carta 1105. – Pémartin, op. cit., t. II, p.162, c. 648.
1
1. Madame Séguier.
2
2. Diligências foram feitas em 1649 para arranjar para Michel Le Gras, magistrado de São Lázaro, um ofício na Casa das Moedas. Mas este
ainda não tinha o dinheiro suficiente para esta compra.
221

1106. – UM PADRE DA MISSÃO DA BARBÁRIA A SÃO VICENTE

[Entre 16451 e 1660.]

Nosso Senhor nos concedeu a graça de reencontrar duas de nossas pedras preciosas que se
tinham perdido. São de grande valor e seu brilho é todo celeste. Foi para mim motivo de grande
consolação.

1107. – B. – BENJAMIN HUGUIER, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Túnis, 5 de junho de 1649.

Senhor Padre,

Vossa bênção!
O senhor Padre Le Vacher1 leu hoje para mim uma carta que acabara de receber do Irmão
Barreau. Nela, este lhe comunica a morte do querido Padre Dieppe, acontecida a 2 de maio passado.
Pensei que, tendo tido a felicidade de conviver por longo tempo com ele no Seminário e de ter sido
enviado com ele, no mesmo dia, para a Barbária, era meu dever escrever-vos sobre as virtudes que
praticou, das quais tive conhecimento e que sua humildade não conseguiu ocultar.
Em primeiro lugar, o seu zelo em buscar a santidade por causa de Deus e pelo alívio dos pobres
cristãos ficou evidente para mim, dois dias antes de partirmos de Paris. Testemunhou-me a alegria de ter
sido escolhido, prevendo, o que Deus permitiu, que, em seus trabalhos com os escravos doentes e com a
dificuldade em exercer seu ministério entre os turcos, seria, dentro de pouco tempo, consumido como um
holocausto.
Isso o levou a suportar generosamente a fadiga da viagem até Marselha, quando esteve a maior
parte do tempo incomodado em sua saúde, sem contudo deixar de celebrar a santa missa e rezar o ofício
divino, embora, em razão de sua indisposição na carruagem, fosse obrigado a empregar nisso o tempo
que dedicávamos ao descanso. Empregava o tempo em que parecia estar melhor em entreter-nos com
cantos espirituais e em aprender a língua espanhola, trabalhando continuamente e descansando dessa
maneira.
O Padre Portail lhe pediu instruísse um pobre herege que dizia querer converter-se e que o
senhor Bispo de Marselha2 lhe tinha enviado. Não era possível ver mansidão e caridade maiores do que
a que todos os de casa o viram então praticar. Igualmente quando se apresentou a feliz ocasião de poder
ser aplicado, no final de uma missão que se pregava em uma galera, em ouvir as confissões gerais,
assumiu nessa ocasião tudo o que há de cansativo nesse trabalho, como grande motivo de alegria.
Tinha grande devoção à Santíssima Virgem, de tal maneira que, recebendo a ordem de se
preparar para a viagem, fez apenas uma única visita a Nossa Senhora das Virtudes 3, onde celebrou a
santa missa. Nela lhe fui dado como companheiro. Deu testemunho, por uma certa alegria exterior, que
procedia, como creio, da interior, que, em todas as tempestades futuras, a Virgem Mãe lhe apontaria, em
seu Filho, um porto de salvação.
O Irmão Barreau o chama de homem de paz, sem dolo, verdadeiro israelita. Foi o que eu vi no
Seminário, em toda a viagem e depois.
Com toda a justiça, o nomeastes nosso superior na viagem. Ele, contudo, pareceu jamais usar
desta condição, embora observasse e nos fizesse observar o que nos tínhamos proposto. Tudo, entretanto,
era feito com tanta suavidade e condescendência que chegava a esquecer-se de si mesmo e de suas
.
Carta 1106. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec VII, §10, 1ª ed. p. 135.
1
1. Início da Missão da Barbária (Norte da África).
.–B
Carta 1107. – Ms. de Lyon, f° 212 e seguintes.
1
1. Jean Le Vacher.
2
2. Estêvão de Puget (1644 – 11 de janeiro de 1668).
3
3. Em Aubervilliers, perto de Paris.
222

comodidades, quando verificava que seguíamos vossas ordens. Tornava-nos então felizes com aquela
mansidão, mesclada do sal que pede Nosso Senhor, como pudemos notar em Lyon. Nessa oportunidade,
ao cear, numa ocasião imprevista, com três ou quatro externos, após observar o que era possível de
honradez e civilidade, abandonou a mesa antes do fim da refeição, porque um capitão alemão huguenote,
até então desconhecido, se pôs a tecer um relato depreciativo a respeito de um religioso. Não duvidamos
em nos solidarizar com o Padre Dieppe, para a vergonha do herege, que poderá se mostrar mais discreto
numa outra ocasião.
Sabia ele que a cobiça é a Rainha dos vícios e abraçava a virtude contrária, praticando a pobreza
no que podia. Sem falar do que pude observar nele no Seminário, já que meus coirmãos também o viram,
quero apenas dizer que o vi sair dele com apenas seu velho chapéu, sua batina e os sapatos ordinários, o
que foi motivo de confusão para mim, bem provido de tudo e com tudo novo. Um de nossos padres me
alertou para isso, dando-me a entender que eu deveria cuidar dele. Tudo o que levou, além de três
livrinhos que tinhamos no Seminário, foi um velho breviário e uma disciplina 4 da qual me apercebi no
caminho. Perseverou nessas disposições de espírito durante a viagem. Não quis servir-se de sua
condição de superior para comprar o que se encontra em algumas cidades onde passávamos. Ao
contrário, dela se serviu para caminhar descalço de Avinhão até Marselha. Não que nos faltasse
dinheiro, mas para imitar, em algumas dessas coisas, as viagens de Nosso Senhor.
Louvei a Deus e lhe dei graças, no serviço religioso solene que celebramos, imediatamente, por
assim ter o Senhor querido, numa carreira que se iniciava, chamar para ele o bondoso Padre Dieppe.
Esta morte tem para mim o valor de um eloquente sermão. Deus queira que eu tire dela proveito
para mim e que, não contente de morrer na Barbária, morra como verdadeiro missionário, servo de Deus
e imitador de N. S. J. C.!
É o que suplico a Deus por vossas santas orações, sendo, senhor Padre, em N. S. J. C., vosso
obediente,

HUGUIER,
indigno filho da Missão.

1108. – A MICHEL THÉPAULT DE RUMELIN1

Paris, 7 de junho de 16492.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Mando-vos uma palavrinha de agradecimento pelos numerosos benefícios que nossos missionários
de Treguier3 recebem continuamente de vós, senhor Padre, tais como o alojamento, as esmolas, os
conselhos e a proteção que lhes dais. Um agradecimento brotado de um coração cheio de reconhecimento
e de respeito pelo vosso, imagem viva da caridade de Deus. O Padre Tholard 4, não podendo conter os
sentimentos que experimenta por tudo isso, os difundiu até nós, a fim de que nossas ações de graças se
juntassem às dele, e nossas preces, às que ele faz por vossa maior santificação. Rogaremos, pois, a Deus,
senhor Padre, seja ele próprio vosso agradecimento e recompensa e que nos torne dignos de vos prestar

4
4 Instrumento de penitência corporal, usado antigamente.
.
Carta 1108. – C. as. – Dossiê da Missão, decalque do original.
1
1. Monsenhor Michel Thépault, senhor de Rumelin, licenciado em direito civil e canônico. Foi primeiramente reitor de Plemeur-Bodou e de
Plougasnou, posteriormente, cônego da catedral de Tréguier e penitenciário da diocese. Grande benfeitor dos misssionários e fundador do
Seminário de Tréguier. Morreu em 30 de agosto de 1677 (Ver o discurso do Cônego Daniel nos Annales de la Congrégation de la Mission,
t. LXIII, 1908, p. 191-201).
2
2. São Vicente chegou de volta a Paris apenas em 13 de junho (Cf. Carta 1110). Ou a carta está mal datada ou não foi escrita em Paris. A
primeira hipótese parece-nos mais provável.
3
3. Embora ainda não houvesse fundação de casa em Tréguier, os missionários lá estavam estabelecidos, de fato, para responder ao apelo do
Bispo, Grangier de Liverdi.
4
4. Superior da casa de Tréguier.
223

serviços. Sua divina bondade sabe com que afeição o faremos. Quanto a mim, em particular, senhor
Padre, ofereço-vos minha obediência, com toda a humildade a mim possível, suplicando-vos muito
humildemente, dela useis quando tiverdes ocasião. E que continueis vossa paternal proteção para com o
Padre Tholard e seu coirmão, para que possam corresponder às santas instruções do senhor Bispo e não
sejam inúteis às almas. O zelo do senhor Bispo vos leva a contribuir tanto para a salvação delas.
Nosso Senhor me faça partícipe de vossas virtudes e preces, e me torne digno da honra que tenho
de ser, em seu amor, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Rumelin, cônego da Igreja catedral de Tréguier, em Tréguier.

1109. A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

18 de junho de 1649.

Tomei conhecimento, por duas de vossas cartas, do estado das coisas por aí. É preciso não nos
aborrecer de modo algum em face da pouca aparência de obter êxito em vossas diligências. É uma nuvem
que passa. Dia virá em que a Companhia terá mais crédito e mais apoio, e os que puderem fazer-lhe
algum bem terão mais caridade para com ela do que agora. Os jesuítas foram muito contrariados nos seus
inícios, durante o pontificado de [Paulo IV]1, que os obrigou a usar o capuz. Eles o trouxeram com efeito
durante a sua vida. Mas, depois da morte dele, o novo Papa lhes foi mais favorável e eles o deixaram.
Submetamo-nos à Providencia, ela fará nossos negócios a seu tempo e ao modo dela.

1110. – A GABRIEL DELESPINEY. – A GABRIEL DELESPINE1

Paris, 19 de junho de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Eis-me de volta, desde domingo, com boa saúde, graças a Deus. Acabo de receber vossas cartas
com consolação e grande reconhecimento para com a bondade divina, pelo carisma de direção que vos
concede e pelo cuidado e diligência com que agis. Rogo a Nosso Senhor retire daí a sua glória e, para vós,
a santificação de vossa querida alma.
O senhor Governador de Toul ainda não chegou. Na ocasião, far-lhe-ei os agradecimentos que lhe
devemos. Examinarei quais os seus sentimentos com relação à transferência de tribunal 2. Aguardo a
última resolução que devem tomar sobre esse assunto os senhores Trélon e Midot. Dou-me a honra de
escrever ao primeiro, em resposta à sua carta. Será preciso seguir o parecer deles. Como faríamos então?
Disseram-me que Plenevaux está aqui. Encarreguei alguém de velar para que ele não nos surpreenda no
conselho, com alguma investida judicial. Julgo desnecessário escrever ao Monsenhor Midot; sua caridade
o impele a nos beneficiar e ele sabe que o reconhecimento que temos por isso será eterno. Prestai-lhe
todos os testemunhos possíveis de minha gratidão e da minha obediente disponibilidade. Dizei à vossa

.
Carta 1109. – Reg. 2, p. 230.
1
1. Nome omitido na cópia.
. – A GABRIEL DELESPINEY
Carta 1110. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Nascido em Grandchamp (Calvados), ingressou na Congregação da Misão em 5 de agosto de 1645. Foi superior em Toul de 1648 a 1652,
e em Marselha, de 1659 a 1660.
2
2. “Transferência de tribunal” traduz o original francês “évocation” (N. do T.).
224

querida comunidade que, prostrado em espírito aos seus pés, abraço-a com toda a ternura do meu coração
e que rogo instantemente a Nosso Senhor a cumule sempre mais de suas consolações e suas luzes.
Recomendo-me igualmente às suas preces e às vossas.
Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO
i. p. d. M issão.

Apesar do que disse acima, estou escrevendo ao Mons. Midot.

Destinatário: Ao senhor Padre Delespiney, superior da Missão de Toul, em Toul.

1111. – AO IRMÃO JACQUES RIVET1

19 de junho de 1649.

Sabe Deus que a consolação que recebi com vossa carta supera o que dela vos posso dizer. Não
duvidais de que todas as que me chegam de vossa parte me sejam muito caras, já que conheceis a singular
afeição que Deus me deu por vós. Essa afeição teria recebido notável acréscimo, se já não fosse completa,
como é, ao ver em vossa carta a sinceridade do vosso coração e sua fidelidade a Deus, pelo que agradeço
à sua divina bondade.
Oh! estou absolutamente certo, meu caro irmão, de que preferiríeis morrer a deixar a Deus por
causa dos homens; pois os homens passam e Deus permanece. Trata-se de uma provação a que Nosso
Senhor submete vossa firmeza, para vos conceder maior participação em seu amor. A informação que me
deram de que sois necessário em La Rose me leva a pedir-vos que volteis para lá, recebida a presente.
Uma vez lá, mandai-me dizê-lo.
Soubestes, julgo eu, da viagem que fiz à Bretanha e a Poitou. Esperava ir estar convosco; mas a
Providência dispôs de outro modo e me reconduziu a Paris, desde alguns dias, em boa disposição, por sua
divina bondade. Nossas Casas por onde passei me ensejaram a oportunidade de louvar a Deus pela
regularidade que nela se observa e pela união que nelas transparece.
As de Paris continuam indo bem, graças a Deus, e, de modo geral, toda a Companhia, pelo que me
informam, não que não haja alguém, aqui e ali, no qual não vejamos algo a censurar; o que não nos deve
surpreender, pois que até entre os discípulos de Nosso Senhor se encontravam defeitos.
A ternura do meu coração me levou a falar assim ao vosso, embora não tivesse intenção de chegar
a tanto.
Tenho sempre confiança em vossas orações. Adeus, meu caro irmão; permaneçamos bem firmes
em Deus.

1112. – A UM PADRE DA MISSÃO

[Por volta de junho de 16491].

Exultei de alegria com a lembrança do Padre Dieppe, falecido em Argel 2. Jamais penso nele sem
me sentir impregnado com o aroma de suas virtudes. O Irmão Barreau me fala dele, em sua última carta,

.
Carta 1111. – Reg. 2, p. 207.
1
1. São Vicente o tinha cedido ao “Bispo de Condom para lhe servir de mordomo durante a ausência” do que exercia ordinariamente este
ofício. Esse prelado estava tão satisfeito com ele “que queria retê-lo para sempre. Chegaram até a pressioná-lo para que se casasse”.
.
Carta 1112. – Manuscrito de Lyon.
1
1. Ver nota 2.
2
2. 2 de maio de 1649.
225

com novos sentimentos de estima e saudade, de tal modo estava convicto de que era cheio de boas
intenções, e da aptidão de que era dotado para o ofício que assumira. Praza a Deus trazer para a
Companhia pessoas tão inflamadas de nossa querida vocação!
Peço a Nosso Senhor seja a vossa força para perseverar no cumprimento do seu eterno desígnio
sobre vós.

1113. – AO IRMÃO JACQUES RIVET

27 de junho de 1649.

Glória a Deus, meu caro Irmão, e mil bênçãos do céu sobre vós, pela vossa firmeza na vocação na
qual a bondade infinita do mesmo Deus quer, sem dúvida, santificar vossa querida alma! Meu Deus!
como vossa alegria será grande, na hora da morte, por ter assim superado as dificuldades! Rogo a Nosso
Senhor vos fortaleça sempre mais com seu espírito, de modo a lhe ser sempre fiel.
Já vos pedi que volteis para La Rose, e talvez a presente vos encontrará lá. Neste caso, louvo a
Deus de antemão. Mas se estais ainda em Condom, despedi-vos com reverência do senhor Bispo 1, e
quanto antes, diga-vos ele o que vos disser. Ele continuará a estimar-vos, vendo-vos decidido a seguir a
vontade de Deus, que vos chama para La Rose.
Garanto-vos, meu caro Irmão2, que vosso irmão padre está em Saintes e que lá vive feliz, como
excelente missionário. Com ele está vosso irmãozinho3, que para lá enviamos a fim de mudar de clima,
pois não estava passando bem aqui.
Até mais, meu caro irmão. Orai a Deus por mim, por favor.

1114. – PARA A MADRE JEANNE MARGARIDA CHAHU1

[Por volta de junho de 16492].

Pensava, minha cara Irmã, ter a consolação tão desejada de estar com vossa estimada pessoa, em
vez de receber apenas as cartas que me enviastes. Confesso-vos ao coração que elas me entristeceram
muito, ao ver a pessoa do mundo, que eu julgava das mais submissas à vontade de Deus, questionar se
deve consentir na escolha que Nosso Senhor fez dela para a direção de suas caras esposas e vossas filhas
de Meaux. Com efeito, minha querida Irmã, esta eleição tem toda a aparência de uma verdadeira vocação
de Deus: 1° foi feita canonicamente, pois nela se acham todas as condições necessárias para tal. Foi
realizada na presença do superior, com o mútuo consentimento da comunidade, do de vosso superior, do
da superiora de vossa querida Casa daqui, à qual foram dirigidos vários e insistentes pedidos para vos
obter, antes mesmo de ela ter dado seu consentimento; estais livre e não sois necessária no lugar onde
estais, conforme me dissestes por várias vezes. E tudo está de acordo com vosso santo costumário, com o

.
Carta 1113. – Reg. 2, p. 298.
1
1. Jean d’Estrades.
2
2. Luís Rivet, padre da Missão.
3
3. Francisco Rivet, nascido em Houdan (Seine-et-Oise) em 28 de julho de 1628. Entrou na Congregação da Missão em 12 de outubro de
1647. Fez os votos em 6 de novembro de 1650 e foi ordenado padre em 1° de abril de 1656.
.
Carta 1114. – Reg, f° 6, cópia tirada da minuta autógrafa.
1
1. O nome do destinatário se deixa adivinhar pelo conteúdo. A carta foi escrita, depois da morte de Santa Chantal, a uma religiosa da
Visitação, professa de um dos mosteiros de Paris. Ora, das quatro Irmãs colocadas à frente da Visitação de Meaux de 1641 a 1660, e é entre
elas que temos de escolher, todas tendo sido eleitas nas datas regulares, a Madre Jeanne Margarida Chahu é a única que Paris cedeu a Meaux.
Recebida no primeiro mosteiro da Visitação em 1621, deixara-o para ir fundar em Dol, na Bretanha, um estabelecimento, que foi transferido
para Caen em 1631. Os sufrágios das Irmãs de Riom subtraíram-na do mosteiro de Caen um ano após o fim do seu segundo triênio. Foi
superiora em Rion de 1636 a 1642, em Dijon, de 1642 a 1648, em Meaux, de 1649 a 1652, em Caen, de 1653 a 1659. Morreu em 27 de
janeiro de 1660 com a idade de sessenta e três anos. Depois de sua partida de Dijon, passou seis meses no convento da Conceição, rua Saint-
Honoré, em Paris, com a missão de nele estabelecer a reforma (Année Sainte, pp. 785-802).
2
2. A Madre Chahu foi eleita superiora do mosteiro de Meaux em 20 de maio de 1649.
226

santo Concílio de Trento, com os pareceres de nossa bem-aventurada Madre Chantal e com o uso vigente.
E jamais ouvi dizer que alguma de vossa Ordem tenha recusado a obedecer a Deus em iguais
circunstâncias, embora haja algumas que tenham feito dificuldade inicialmente; e foi o que deu motivo à
nossa bem-aventurada Madre para dizer, em suas respostas às que levantaram iguais dificuldades, o que
ela diz sobre a constituição 47, Eleições das superioras, folha 647, bem embaixo. E com toda certeza,
minha querida Irmã, não é tanto nossa bem-aventurada Madre que o diz, mas o Espírito Santo, que diz na
sessão 9, canon 7, que, se não houver no mesmo mosteiro filhas que tenham as qualidades por ele
determinadas como necessárias para uma eleição canônica, pode-se eleger outra Irmã da mesma Ordem.
Em nome de Deus, minha cara [Madre3], permiti vos pergunte o que respondereis a Deus, na hora
da morte, quando lhe prestardes conta, se vos perguntar porque não obedecestes ao vosso santo
costumário, às advertências de nossa bem-aventurada Madre, ao uso invariável da ordem e, o que é mais
grave, ao próprio Espírito Santo, que vos fala pelas palavras do santo Concílio. Como dizeis que não vos
consultaram antes de vos colocarem na lista, atribuis a culpa a mim, que não adverti a isso, pois jamais
tive conhecimento do costume de pedir tal autorização às Irmãs de que se trata. Entretanto, minha
descortesia, se a houve, minha cara Irmã, não vos escusará diante de Deus. Se me disserdes que vosso
querido mosteiro precisa de vós, responder-vos-ei, minha cara Irmã, ser verdade que nossa bem-
aventurada Madre quer, em suas respostas, que as superioras das filhas levem isto em consideração.
Contudo, pelas cartas que me escrevestes no ano passado, percebi que vossas caras Irmãs poderiam passar
sem vós; e outras que me escrevestes, não há muito tempo, dizem a mesma coisa.
Essas razões todas, minha querida Madre, me levam a pedir-vos que façais vossos exercícios
espirituais sobre esse assunto, para impetrar de sua divina Majestade a força para lhe obedecer nessa
conjuntura. Fazei, pelo menos, vos rogo, uma hora de oração mental sobre esta questão, meditando nos
pontos seguintes: 1° as razões que tendes de proceder nesta ocasião, como gostaríeis de proceder na hora
da morte; 2° examinar se há motivo para duvidar de que a vontade de Deus está expressa no que vos é
ordenado pelo vosso santo costumário, aconselhado por nossa bem-aventurada Madre, confirmado pelo
uso de vossa santa Ordem e pelo Santo Concílio de Trento; 3° considerar, no íntimo de vossa alma e
diante de Deus, se não tendes alguma outra secreta intenção, como a de [obedecer 4] antes a vossos
sentimentos do que a Deus; se for esse o caso, eu vos conjuro, minha cara Irmã, passar por cima de vossos
sentimentos e dar a Deus a glória que lhe deve tributar uma verdadeira filha de Santa Maria nesta ocasião.
Tenho toda a esperança de que o fareis, e terei a constante resolução de ser, por toda a minha vida, no
amor de Nosso Senhor...
Dizeis-me, porém, minha cara Irmã, em vossa última carta, que estais pronta para partir, mas os
componeses daí vos estão impedindo. Em nome de Deus, minha cara Madre, envidai todos os vossos
esforços e não deixeis para vossa Santa Ordem tal pretexto de desobediência. O senhor Bispo é bom
demais e vos há de desimpedir, e o senhor Padre Duvergier, bastante razoável para não consentir nesse
empecilho. Por fim, ainda quando vos fechassem todas as portas da cidade, o senhor Governador e a
Madame Governadora terão bastante discrição para vo-las mandar abrir. Nossa bem-aventurada Madre
censurava esses pretextos e dizia, por exemplo, que, ainda que os superiores das Casas de onde a
quisessem enviar para outra a encerrassem numa torre, ela encontraria, com a ajuda de Deus, algum meio
de fugir para obedecer a ordem superior.

1115. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM RICHELIEU

30 de junho de 1649.

Estando em Richelieu, esqueci-me de vos deixar por escrito os assuntos de que deveis tratar em vossas
recreações. Acabo de me lembrar deles e vai aqui a lista. O meio de fazer bom uso dela é que o superior
ou quem o representa em sua ausência, como o assistente ou o mais antigo, proponha uma dificuldade e
cada um exponha singela e simplesmente sua opinião sobre o assunto, sem replicar ao que os outros
3
3. Palavra esquecida pelo copista.
4
4. Palavra esquecida pelo copista.
.
Carta 1115. – Reg. 2, p. 263.
227

tiverem dito. Em seguida, o que apresentou a questão diga o seu parecer e proclame a conclusão pela
maioria dos votos. É o que praticamos outrora aqui com grande proveito e aceitação de todos.
Não sei se vos pedi que destinasse alguém para companhia ao Padre..., quando vai às Casas das
religiosas. Caso não o tenhais feito, rogo-vos fazê-lo e não permitir que ninguém, seja quem for, saia de
casa sem um companheiro da Congregação, não tanto em razão de algum perigo, mas em vista do bom
exemplo.

1116. – A LUÍS THIBAULT, SUPERIOR, EM SAINT-MÉEN

Paris, 3 de julho de 1649.

Senhor Padre,

Retornei a Paris, há quase quinze ou vinte dias; mal, porém, estou em condição de me recompor e
achar tempo para vos escrever. Faço-o, contudo, para responder à carta que escrevestes ao Padre Lambert.
Vamos disponibilizar um padre e um clérigo, se não tais como desejais, ao menos, dos mais aptos
que temos. Partirão dentro de oito ou quinze dias. Quando tiverem chegado à vossa Casa, mandar-nos-eis
de volta, por favor, os Padres Bureau 1 e Le Blanc2 e, com eles, o Irmão José, caso possais prescindir dele.
Quanto ao Irmão Pascal3, desejo muito vos dê contentamento, ou que o suporteis por algum tempo,
tentando enquadrá-lo em seu dever; com efeito, se ele for incorrigível, ser-nos-á preciso enfim dispensá-
lo da Companhia.
Falei com a senhora Le Gras sobre a dificuldade em que estais, no tocante à jovem que ela
mandou embora. Para o futuro, levará em conta vossa advertência e escreverá aos pais das que não lhe
forem aptas, antes da saída delas. Se não o fez no caso desta, espera que lhe sanareis a falta e que pouco a
pouco acalmareis o seu irmão. É uma boa jovem, na verdade, mas lhe falta bom senso em certas coisas, o
que é uma grande deficiência nas filhas que tratam com o próximo. Foi a razão pela qual a senhora se viu
obrigada a mandá-la de volta. Isso não vai impedir, senhor Padre, que outras postulantes sejam recebidas,
no tempo que julgardes conveniente e com o testemunho vosso a respeito de suas boas qualidades.
Exulto de reconhecimento para com a bondade de Deus, pela força que vos concede após tantos
trabalhos, pelas graças que dispensa à vossa comunidade e pelas bênçãos que derramou sobre vossas
missões. Agradeço a ele por tudo, de todo o meu coração, suplicando-lhe continue com esses favores para
vós e vos santifique a todos, cada vez mais.
Saúdo e abraço muito afetuosamente os Padres Serre 4 4 de Beaumont, Le Blanc, Turbot5 e outros,
particularmente e mais ternamente a vós, senhor Padre, de quem sou, no amor de Nosso Senhor...
Ser-nos-á difícil enviar-vos um padre, pelo que andei pensando. Nesse caso, enviar-vos-emos dois
Irmãos. Ficarei contente por saber de quantas pessoas vossos dois seminários são compostos.

1117. – A HUGUES PERRAUD, PADRE DA MISSÃO, EM RICHELIEU

4 de julho de 1649.
.
Carta 1116. – Pémartin, op. cit., t. II, p. 167, 1.654.
1
1. Jean Bureau, nascido no mês de agosto de 1609, em Englesqueville (Calvados). Entrou na Congregação da Missão em 7 de outubro de
1639.
2
2. Georges Le Blanc.
3
3. Jean-Pascal Goret.
4
4. Luís Serre, nascido em Epinal, ordenado padre em setembro de 1643. Entrou na Congregação da Missão em 23 de março de 1644, com a
idade de vinte e seis anos. Fez os votos em julho de 1646. Seu primeiro posto foi Crecy, onde foi superior de 1646 a 1648. Enviado de lá para
Saint-Méen, passou quase toda a sua vida de misssionário nesse lugar. Dirigiu esta casa de 1655 a 1665, de 1671 a 1675 e de 1676 a 1681.
5
5. Jean Turbot, nascido em Beaumesnil (Eure), entrou na Congregação da Missão, em 8 de março de 1644, com a idade de vinte e três anos.
Fez os votos em julho de 1646 e foi ordenado padre em março de 1648.
.–
Carta 1117. – Reg. 2, p. 298.
228

Folgo em saber que vos dispondes para a viagem para as termas. Praza a Deus vos sejam salutares
e que ele mesmo seja vossa força para ir, para vir e para usar bem das dificuldades que sua providência
vos fará encontrar! Ide, portanto, senhor Padre, ide, agora sim, não à procura da saúde, mas para cumprir
o beneplácito de Deus. Voltai tão contente por estar sempre com vossos incômodos, como se estivésseis
curado, na esperança de que Nosso Senhor não ficará por isso menos glorificado.
Não sei por que temeis que o superior não vos dê o que for razoavelmente necessário. Ele não
haveria de querer mandar-vos pedir esmola, embora não queira também recusar-vos a oportunidade de
honrar a pobreza de Nosso Senhor em vossos gastos. Sejamos totalmente para Deus, senhor Padre; ele
será tudo para nós e com ele teremos todas as coisas.

1118. – A UM PADRE DA MISSÃO, DA CASA DE GÊNOVA1

Sois muito feliz, senhor Padre, por estar tão intensamente ocupado em vosso ofício e, por
conseguinte, em fazer a vontade de Deus, que não tendes tempo para pensar em vós. Ele mesmo pensa, e
muito, em vós, e faz os negócios de vossa alma, enquanto fazeis os de vossa vocação, na qual lhe peço
vos abençoe sempre mais.

1119. – A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

9 de julho de 1649.

Peço-vos, senhor Padre, tenhamos por nada as dificuldades presentes de vosso estabelecimento. O
que não se faz em tal tempo, far-se-á em outro, particularmente em Roma. Podeis relaxar vossas
diligências, mas não desistais delas.
Estou vendo claro que não dá para contar com a casa em que pensáveis. Vede-o então em outro
lugar, mas sem perder alguma outra oportunidade que se apresentar a respeito da primeira; contudo, não
corrais atrás com demasiada pressa. O que mais me admira, senhor Padre, é que esses bons Reverendos 1,
que outrora desejaram incorporar-se a nós, tenham atravessado vossos planos. Custa-me crê-lo. Mas ainda
que fosse verdade, nada devemos subtrair ao respeito e aos serviços que devemos aos grandes servos de
Deus, como eles o são. E tanto quanto vos for possível, testemunhai-lhes estima e afeição. É o que vos
peço fazer.

1120. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

9 de julho de 1649.

Não há como fugir, senhor Padre; eis-vos, pois, doente e em Gênova, longe de algum socorro,
num lugar onde as doenças são numerosas e perigosas, por causa do mau clima, como vós mesmo me
escrevestes. Deus seja bendito! Ocultais, contudo, de mim vossa enfermidade. Se o Padre Martin não me
tivesse informado a respeito, ficaria apenas no temor de saber-vos exposto ao perigo. Deus, porém, não

.
Carta 1118. – Reg. 2, p. 350.
1
1. A data de 5 de fevereiro de 1649 que traz a Coleção das exortações e cartas de São Vicente, segunda parte, p. 132, não oferece garantia
alguma. Parece mesmo totalmente improvável.
.
Carta 1119. – Reg. 2, p. 350.
1
1. Os padres da Congregação fundada por d’Authier de Sisgau.
.
Carta 1120. – Reg. 2, p. 219.
229

quis poupar-me da aflição, durante o tempo em que vos mantém no sofrimento; aliás, a santa união de
nossos corações não o permitiria.
O que faço depois dessa notícia é apresentar a Deus vossas dores e as minhas, e pedir-lhe, para vós
e para mim, a aceitação de sua santa vontade e, enfim, vossa saúde, se for para a sua maior glória, ou,
então, um perfeito uso de sua visita. Por tudo isso, recomendei-vos também às preces da Companhia, com
toda a ternura de que fui capaz. Creio que todos fizeram seu dever diante de Nosso Senhor, que sabe
quanto nos sois caro a todos e quanto ficaremos felizes, se for do seu agrado devolver-vos a saúde.

1121.A – LAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 9 de julho de 1649.

Senhor Padre,

Soube pelo Padre Cuissot que estáveis em Paris e não quis tardar em vos escrever, como já o
teria feito, há tempos, se me tivessem sido dadas oportunidades para tal. Mas os tumultos que assolaram
o país, desde algum tempo, delas me privaram. Ouso mesmo dizer-vos que, se não tive a felicidade de me
comunicar convosco por carta, não deixei de fazê-lo em espírito. Na verdade, ao saber que tínheis saído
para os campos, em visita às nossas Casas, cheguei a temer que a pouca saúde que tendes não fosse
acometida neste inverno. Deus seja bendito por vos ter conservado para o seu serviço!
Nossos dois deputados de Chancelade1 me tinham cumulado de alegria e consolação, ao
chegarem àquele lugar, informando-me de que lhes tínheis dito em Richelieu que nos faríeis o favor de
visitar vossa Casa de Cahors. Não seria capaz de exprimir-vos a alegria e a consolação que me causou
esta notícia. Propunha-me manter-vos algum tempo nesse lugar, um dos melhores climas do reino, para
nele recobrardes perfeita saúde e conversar convosco sobre muitas coisas. Bendito seja nosso bom
Mestre, que nos privou dessa satisfação! Acreditava ainda que teríeis recebido consolação ao ver nosso
seminário, onde teríeis encontrado trinta e cinco seminaristas, que vos teriam proporcionado
contentamento. Os vossos que o viram dizem que é o mais belo do reino. Disseram-me, recentemente, que
a ordem nele é mais bem observada até mesmo do que a no de Paris. O Padre Cuissot desempenha bem
seu ofício. É importante mantê-lo aqui.
Creio que vos tenha comunicado que o arcediago-mor de minha Igreja doou por testamento uma
chácara sua para o nosso seminário, a uma légua de Cahors, um dos mais belos lugares da vizinhança e
onde há um corpo central de um edifício, bem próprio para alojamento e provido de tudo que é
necessário2. Este bem vale magníficas oito mil libras, em cujo gozo já entraram, presentemente. É
verdade que ficam obrigados a manter um jovem com vocação para o serviço da Igreja, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1122. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM RICHELIEU

25 de julho de 1649.

Persevero no que vos disse a respeito dos que saem e voltam para a casa: é bom ater-se à prática
de Nosso Senhor, que enviava seus discípulos dois a dois. Ser-vos-á fácil, enquanto tiverdes o Seminário
.A
Carta 1121. – Arquivos da diocese de Cahors, caderno; cópia tirada do original.
1
1. Os reverendos Padres Vitet e Parrot.
2
2. Por testamento datado de 1° de fevereiro de 1649, Cláudio Antônio Hebrard de São Sulpício, arcediago-mor de Cahors, doara para o
seminário sua chácara de Cayran, perto de Cieurac.
.
Carta 1122. – Reg. 2, p. 177.
230

Interno, dar um companheiro aos que saem para ir à cidade ou aos arredores; será uma distração para os
seminaristas, que algumas vezes dela precisam. E mesmo que não tivésseis o Seminário, a coisa merece,
com certeza, que vos disponibilizassem uma pessoa, expressamente, para servir de companheiro aos que
saem de casa, o máximo possível, ou para fazer em casa o que um outro faria, enquanto estivesse este
último acompanhando os outros, nas saídas e vindas. Falo dos que saem a pé. Pois, no tocante aos que vão
a cavalo para mais longe, bastará que um empregado os acompanhe.
Importa não estranhar de modo algum as pequenas desinteligências que acontecem; os anjos e os
apóstolos caíram em desacordos. Nosso Senhor o permite no interior e fora das comunidades, em vista de
um bem maior. Compete, porém, a nós, evitar-lhes as consequências funestas e nos recompor quanto
antes e o mais intimamente possível.
O que aconteceria, senhor Padre, se todo o mundo aprovasse nosso procedimento em todas as
coisas e se jamais encontrássemos algo a censurar nos maus comportamentos dos outros ? Só se Deus
mudasse a natureza humana. Sei que esses dois têm boa intenção e que a união se conservará
integralmente entre eles, se quiserem conceder, do que não duvido, algo à mansidão e ao suporte tão
recomendados por Nosso Senhor.

1123. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 28 de julho de 1649.

Escrevi-vos pelo último portador uma longa carta. Esta agora é apenas para vos dizer que não
pude encontrar nesta região daqui um eclesiástico com as qualidades requeridas para dirigir o mosteiro
das Ursulinas de Cahors. Sabendo que não vos cansais nunca de trabalhar pela glória de Deus, dirijo-
me a vós para vos suplicar, como faço pela presente, me procureis alguém que tenha tudo que é
necessário para a direção desse mosteiro. Tenho tanta confiança em vós que estou certo de que não me
enviareis uma pessoa que não tenha a devida aptidão. Peço-vos empenhar-vos por isto, quanto antes vos
for possível e, depois de encontrá-la, me informeis sobre as qualidades que observardes nela... Desejaria
muito que já tivesse a idade de, pelo menos, 40 anos, que tivesse experiência em direção de religiosas e
fosse homem de oração.

ALAIN,
Bispo de Cahors,

1124. – AO IRMÃO FRANCISCO FOURNIER, CLÉRIGO DA MISSÃO, EM AGEN1

1° de agosto de 1649.

Meu caro Irmão,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Alegro-me por saber que fostes visitar o Seminário de Cahors e que, edificado pela boa ordem
nele observada, decidistes implantá-la no Seminário de Agen, do qual sois o dirigente. Em favor disso e

.
Carta 1123. – Arqiuvos da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do orignal.
.
Carta 1124. – Notícia manuscrita em italiano de Francisco Fournier (Arquivo do principal estabelecimento dos Padres da Missão em
Roma). O texto que apresentamos aqui é tradução do italiano.
1
1. Francisco Fournier, nasceu em Laval em 2 de fevereiro de 1625. Entrou na Congregação da Missão em 12 de agosto de 1644 e fez os
votos em 24 de setembro de 1646. Foi ordenado padre em 25 de setembro de 1650. Lecionou teologia no Seminário de Agen de 1649 a 1658
e posteriormente no de Cahors, de 1658 a 1663. Foi secretário geral da Congregação de 1663 a 1667, assistente geral de 1667 a 4 de abril de
1677, dia de sua morte. Fizeram dele, sem razão, o autor da vida de São Vicente, comumente, e com justiça, atribuída a Abelly. Que tenha
tido certa participação, como secretário, na preparação do material, é muito possível e até provável. Mas seu papel se reduziu a isso. E,
mesmo assim, há motivos para se crer que, sobre este ponto, o Irmão Ducournau fez muito mais do que ele (Notices, t. I, p. 247-267).
231

da santificação de todas as vossas ações, suplico a Nosso Senhor vos anime com seu espírito. Vendo
vosso coração tão solícito e tão pleno de boas intenções, concebi no meu uma estima por vossa pessoa,
bem acima da que eu já tinha. Continuai, pois, meu caro irmão, a vos entregar inteiramente a Deus, a
buscar sua glória e a salvação do próximo, trabalhando pelo povo pobre, na formação de bons
eclesiásticos que sejam a luz do mundo e os dispensadores dos tesouros do céu e da terra. Considerai, por
favor, as obrigações que tendes para com Deus que vos alçou a tão sublime ofício. Lembrai-vos de que os
meios para vos comportar utilmente em vosso ministério são a desconfiança de vós mesmo e a confiança
no Senhor que, se tivesse necessidade da ajuda dos homens para o êxito dos seus desígnios, teria colocado
em vosso lugar um doutor e um santo.

1125. – A ANTÔNIO PORTAIL

Paris, 6 de agosto de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estou vos escrevendo sob uma aflição tão sensível como não tinha, há longo tempo. Acabo de
saber da perda que tivemos do Padre Brunet1, esse bom operário do Senhor, grande amigo dos pobres e
luz para a Companhia. Tubo bem! Já que foi Deus que no-lo tirou, é preciso adorar-lhe a conduta e ficar
em paz. O que aumenta a minha dor é o temor de que a comunidade de lá esteja em perigo de contrair a
doença ou já acometida do próprio mal, o que Deus não permita 2! O socorro que vos podemos levar,
senhor Padre, nesta deplorável conjuntura, é rogar à sua divina bondade, como faço e como faremos
todos, que seja ela vossa luz e vossa força. Com efeito, dar-vos conselhos não o podemos, pois não
sabemos das condições presentes em que vos encontrais, nem do avanço do mal iniciado. Além do mais,
antes mesmo de terdes recebido a presente, espero que tenhais posto tudo em ordem, não somente quanto
à conservação da Companhia, mas ainda no hospital e nas suas demais funções. Se as galeras saíram do
porto de Marselha, como nos disseram, é fácil prover e satisfazer quanto ao resto, com a graça de Deus, a
quem vos recomendo de novo, a fim de que seja ele próprio vossa consolação e a de toda a família.
A Madame Duquesa de Aiguillon deve enviar-nos 500 libras, a saber, 400 libras por missas
celebradas ou a celebrar, conforme a ordem que já recebestes, e cem libras para outras missas que vos
pede pela alma do falecido senhor de la Coste 3. Se precisais de mais dinheiro, mandai dizer-me, nós o
enviaremos imediatamente e, se for necessário, venderemos nossas cruzes e nosso cálices para vos
socorrer.
Estimo que já partistes para Annecy, e convosco o Padre Chrétien, conforme vos pedi, e que
tenhais deixado a direção da Casa com o Padre Le Soudier 4, se alguma razão particular não vos tenha
levado a adotar medida diferente. Caso, porém, estejais ainda em Marselha e possais vos desembaraçar
dos empecilhos, peço-vos fazê-lo e cumprir o que vos disse acima. Escrevo-vos para Annecy pelo mesmo
portador, a fim de que, seja qual for o lugar onde estiverdes, tenhais notícias minhas. Deus nos traga
quanto antes as vossas, tão boas quanto as desejo!
Ia terminar sem aludir ao pensamento que me ocorre a respeito do bom senhor de la Coste, do qual
Deus dispôs. Dele só posso falar com sentimentos de estima e reverência inexprimíveis, em razão de sua
.
Carta 1125. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Sobre os detalhes dessa morte, ver a carta seguinte.
2
2. A peste de 1649, transmitida para Marselha pelos navios vindos de Argel e do Levante, causou mais de 8.000 vítimas, uma apenas entre
os padres da Missão. Durou até os primeiros dias do ano de 1650.
3
3. Falecido em 24 de julho. Desde os primeiros sintomas do mal, o senhor de La Coste colocara em ordem sua consciência e seus negócios.
Teve forças para ditar seu testamento, no qual lemos estas palavras: “Doo à casa dos padres da Missão da França... a soma de dezesseis mil
libras..., cuja renda será empregada anual e perpetuamente pelos ditos padres da Missão da França na manutenção do seminário que desejam
fundar para a instrução dos eclesiásticos em tudo que diz respeito ao aperfeiçoamento do seu estado... Se o referido seminário não estiver
ainda plenamente estabelecido no tempo de minha morte, empregarão... a renda das citadas 16.000 libras, em parte, nas pregação das
missões, para remediar as mais urgentes necessidades que nelas encontrarem, em parte, para o sustento dos eclesiásticos que serão
promovidos às ordens, em cada ordenação” (Vie de M. le chevalier de la Coste, pp. 198-199).
4
4. Jacques Le Soudier.
232

piedade, do seu zelo e de tantas graças celestes de que estava cheio. Oh! Ele é um bem-aventurado e
tenho motivo de me admirar por ver a perda desses dois grandes servos de Deus (Padre Brunet e o senhor
de la Coste) e que eu ainda esteja neste mundo, inútil como sou! Tenho até mesmo motivo para temer que
meus pecados não sejam a causa dessa provação. Peço-vos, senhor Padre, suplicar misericórdia para mim,
que sou, no amor de Nosso Senhor, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Peça ao Padre Le Soudier nos envie uma procuração passada em cartório, de acordo com o
relatório que vos envio.
O Irmão Alexandre5 vos pede enviar-lhe uma ou duas libras de óleo de escorpião, e o Irmão Jean
Besson vos pede outra coisa. Se pudesse fazer uma e outra, fazei-o, por favor, vós ou aquele que receber a
presente em vossa ausência.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail ou, em sua ausência, ao superior da Missão de Marselha,
em Marselha.

1126. A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA1

[Cerca de 6 de agosto de 16492].

Encontramo-nos numa aflição muito sensível, em razão de uma perda notável que a Companhia
acaba de sofrer, na pessoa do Padre Brunet, do qual me escrevestes tanto bem e a respeito de quem não é
possível dizer o suficiente. Deus dispôs dele em 24 de julho e, com ele, de um grande servo de Deus, que
detinha a primeira responsabilidade do hospital dos galés de Marselha, do qual era como o autor e o
protetor. Trata-se do senhor cavaleiro de la Coste. Veja como aconteceu:
Tendo chegado de Argel um barco que trazia gente acometida de peste, submeteram-no a uma
quarentena no ancoradouro. Durante esse tempo, todos os marinheiros morreram e as roupas de uso e
cordoalhas foram lançadas ao mar. Alguns pescadores encontram um colchão sobrenadando e o pegaram.
Puseram-no para secar, serviram-se dele e morreram da peste. Com isso, pegaram também a doença os
vizinhos. O padre Brunet foi confessá-los. Morreram na presença dele, logo que lhes deu a absolvição.
Quanto a ele, tendo ido ao hospital, almoçou com o senhor de la Coste, contando-lhe o que acabara de
fazer. Imediatamente, a doença atacou os dois. Era dia de Santa Madalena. Ambos morreram, dois ou três
dias após, quase à mesma hora3. Ó senhor Padre, que perda para nós, para o hospital e para toda a cidade!
Mas foi Deus, sem dúvida, que os chamou; seja bendito seu santo nome!

1127.[ – A UM PADRE DA MISSÃO

5
5. Alexrandre Véronne.
.
Carta 1126. – Manuscrito de Lyon.
1
1. O manuscrito de Lyon não traz o nome do destinatário. As palavras “padre Brunet, de quem me escrevestes tanto bem” indicam
claramente Estêvão Blatiron, que Jean Brunet acabava de deixar para ir para Marselha.
2
2. Esta carta, se não é do mesmo dia da carta 1125, seguiu-se a ela de muito perto.
3
3. Há algumas divergências de detalhes entre este relato e o de Ruffi, na Vie de M. le chevalier de la Coste (pp. 185-186). Ruffi escreve que
em 19 de julho, mandaram “pedir ao padre Brunet,... que permanecia no hospital... fosse até as ilhas para confessar algumas pessoas que
faziam a quarentena”. “Foi até lá,... e na volta... confessou também uma pobre mulher, que morreu logo após ter recebido a absolvição. Mal
tinha desempenhado este ministério quando se viu acometido de febre tão violenta que teve dificuldade para chegar ao hospital. O próprio
senhor de la Coste o conduziu ao seu quarto”. Acrescenta Ruffi que, sem dar atenção ao perigo que o ameaçava, o senhor de la Coste cuidou
de Jean Brunet e contraiu a moléstia à sua cabeceira.
.[
Carta 1127. – Manuscrito de Lyon.
233

Por volta de 6 de agosto de 16491].

Antes de responder a vossas cartas, permiti-me que vos comunique ao coração a amargura do meu.
Acabamos de perder em Marselha o bom Padre Brunet que, depois de ter assistido ao trespasse de alguns
pestilentos no dia de Santa Madalena, foi atingido pela mesma doença e morreu dois dias depois. Essa
notícia triste foi transmitida à Madame Duquesa de Aiguillon por um portador expresso. O que aumenta
nossa dor é a incerteza do estado dessa pobre comunidade, que sofre com a aflição comum e está mais
exposta ao perigo que o resto do povo, o qual foge e se esconde o melhor que pode.

1128. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Sábado [agosto de 16491].

Senhor Padre,

A proposta que Madame Duquesa fez de alimentar as crianças com leite de cabra me levou a
pensar em outra solução que, se desse certo, poderia proporcionar-lhes alimento por um escudo. Seria
necessário, porém, fazer uma experiência, antes de propô-la, e apresentá-la quando vossa caridade
julgasse conveniente. Dirvos-ei, verbalmente, como fazer isso, pois seria muito longo explicar tudo por
escrito.
Rogo-vos humildemente, meu muito honrado Pai, que vos lembreis do pedido que ontem vos fiz.
Tende a bondade de dizer-me se vossa caridade concedeu a nossa Irmã Francisca, a jardineira, o que
ontem vos solicitou. Também vos suplico oferecer no santo altar a renovação de algumas outras e dar-
nos vossa santa bênção, meu honorabilíssimo Pai. Sou vossa muito obediente e grata filha e serva,

L. DE M.

1129. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Agosto de 16291].

Senhor Padre,

Depois de ter escrito esta carta2, pensei que seria melhor enviá-la à vossa caridade, dada a
urgência da solução desse assunto. Por isso, envio-vos também a Irmã Juliana 3, que vos colocará a par
dos acontecimentos. O senhor Padre Lambert sabe do que se trata; todo o mal outra causa não tem a não
ser o apego aos confessores. Importa pensar muito no que se poderá fazer para evitar essas ocorrências
aborrecidas. Sinto muito causar-vos tanto desgosto com minha má coordenação. Sem dúvida, vossa
caridade se lembrará do que lhe falei a respeito dessa pobre jovem Irmã 4, e vós mesmo propusestes
despedi-la. Ela, porém, está decidida a não ir embora e o conselho que Renata lhe deu foi de se deixar
introduzir na carruagem e dela descer pouco depois, tão logo estivesse sozinha. São espíritos ousados,
capazes de fazer grande mal, por isso se deve ter compaixão deles. Meu pensamento é de que essa

1
1. A mesma observação da carta 1126, nota 2.
.
Carta 1128. – C. aut. – Original no hospital de Evreux.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
.
Carta 1129. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Uma carta a Juliana Loret.
3
3. Juliana Loret.
4
4. A Irmã Ana Maria. A carta de Luísa de Marillac a Juliana Loret (Cartas de Luísa de Marillac, c. 256) explicita o que lhe era censurado.
234

desgraça lhes aconteça pela ousadia de receberem os sacramentos com todas essas más disposições.
Conceda-nos Deus a sua misericórdia e a mim a graça de ser sempre, meu honorabilíssimo Pai, vossa
muito obediente serva e mui grata filha,

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1130. LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

30 de agosto de [16491].

Tinha eu razão para suspeitar ser necessário que viesse até aqui; disso só vos prestarei contas
quando tiver a honra de me encontrar convosco. O senhor Padre Delahodde, capelão de Chantilly 2, veio
estar comigo para me dar alguns avisos. Parece-me que a comunidade inteira está sendo atacada de
todos os lados. Não sei o que nosso bom Deus nos quer dizer por este meio. Suplico muito humildemente
vossa caridade dar-se ao trabalho de me dizer se devo ir a Chantilly por este motivo. Julgo que seria
necessário.
Soube que Madame de Romilly foi informada de que a família do senhor Portier, que reside
diante de Saint Paul, é perfeitamente tal como desejaríamos 3. Ela deve falar convosco da parte deles.
Suplico-vos muito humildemente, meu caríssimo Pai, não lhe faleis de bens, se ela não tocar no assunto.
Com efeito, os que conversaram com meu filho sobre esse assunto lhe afirmaram que os pais estavam
satisfeitos com o dote. Em todas essas ocasiões, aliás, o costume é não dizer claramente o que cada um
tem, por causa do prejuízo que poderia resultar se o projeto não viesse a ser realizado. As esperanças
para o futuro são grandes, tanto a respeito de bens como de emprego. Não é que eu tenha intenção ou
vontade de enganar ninguém, Deus me livre! Parece-me, porém, que os gastos que foram feitos no
passado e serviram para capacitar um homem a desempenhar uma profissão foram consideráveis, como
também é agora grande sua disposição de não dissipar o que possui, mas de trabalhar para aumentar
seus bens. É o que eu espero que fará com mais decisão, quando se tiver casado. Suplico humildemente
vossa caridade que recomende este assunto ao nosso bom Deus, assim como todas as necessidades da
nossa Companhia, para atrair sobre ela suas graças e bênçãos. E dai-me a vossa bênção por seu amor,
no qual sou, meu honorabilíssimo Pai, vossa muito obediente serva e mui grata filha,

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1131. – A N. – A N***

31 de agosto de 1649.

.
Carta 1130. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data indicada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. As Filhas da Caridade estavam ali estabelecidas desde dois ou três anos.
3
3. Trata-se de um projeto de casamento. As negociações não chegaram a bom termo.
.–AN
Carta 1131. – Collet, op. cit., t. I, p. 479.
235

Vicente de Paulo fala nesta carta de reparações a fazer, por ocasião das profanações, cheias de ódio, de
hóstias consagradas pelas tropas das cercanias de Paris 1.

1132. – A LUÍSA DE MARILLAC

Paris, 2 de setembro de [16491].

Senhora,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Sois um pouco sensível demais com a saída de vossas filhas. Em nome de Deus, senhora, trabalhai
para adquirir a graça da aceitação de semelhantes e sofridos acontecimentos. É misericórdia de Nosso
Senhor para com a Companhia limpá-la dessa maneira e será isso uma das primeiras coisas que Nosso
Senhor vos fará ver no céu. Ficai segura, entretanto, de que nenhuma das que Nosso Senhor chamou para
a Companhia abandonará a sua vocação; que teríeis de fazer com as outras? É verdade que Renata e
Maturina saíram e que Ana Maria, com o tempo, fará o mesmo, como tudo indica; deixemos que ela
parta; não vos faltarão jovens candidatas. O Padre Thibault me escreve que tem três ou quatro disponíveis
e se queremos que no-las envie. Disse-lhe que resolveríamos isso quando voltardes, ocasião em que
poderíeis passar por Chantilly; fazei-o, pois, por favor.
Fizemos ontem a grande Assembleia. Jamais vi as Damas tão animadas com essa boa obra.
Madame de Romilly me falou da questão de que tendes conhecimento. Diz que vão dar quinze mil
libras a essa jovem e que pode esperar ainda outro tanto, depois da morte dos seus pais. Falei-lhe
detalhadamente sobre os bens do senhor bailio2, na presença de Madame de Aiguillon, a qual foi, como
vós, do parecer de que não se digam as coisas a não ser grosso modo. Esta distinta Dama tinha o encargo,
pelo lado da jovem, de se informar sobre a pessoa e sobre os bens. Em seguida, estive com o Padre
Delahaie e lhe confiei o assunto; deve informar-me, por sua vez, sobre o caso.
Eis, senhora, a meu ver, o que vos posso dizer no momento, a não ser que vos peço ainda, de
novo, agradecer a Deus por depurar a Companhia; peço a Deus que a abençoe, e sou, em seu amor,
senhora, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: À senhora Le Gras, em Liancourt.

1133. – AO SENHOR DES VERGNES

Paris, 4 de setembro de 1649.

Prezado senhor,
A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!

1
1. Os sacrilégios e profanações se tinham multiplicado nos arredores da capital, durante o bloqueio de Paris. Soldados indisciplinados
entraram nas Igrejas, roubaram os paramentos e ornamentações, quebraram tabernáculos, levaram vasos sagrados com hóstias consagradas.
Limeil, Croissy, Férolles, Villabé, Antony foram particularmente provadas. A Companhia do Santíssimo Sacramento se comoveu. Ordenou
uma enquete e convidou seus membros e até mesmo o povo para uma reparação pública a Nosso Senhor. Missionários foram enviados, por
seus cuidados, para os locais que mais sofreram da soldadesca (Cf. d’Argenson, op. cit., p. 106 e seguintes.).
.
Carta 1132. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade de Tolosa, rua Mage, 20.
1
1. São Vicente responde às cartas 1129 e 1130.
2
2. Michel Le Gras, bailio de São Lázaro.
.
Carta 1133. – C. as. – Original no Asilo São Vicente em Monpellier.
236

Recebi vosso pacote1 com o respeito e a alegria de que sou devedor à vossa pessoa e aos motivos
de consolação que ele contém. Podeis imaginar, Senhor, com que coração rendi graças a Deus pelas que
ele concede ao senhor Bispo de Perigueux 2 e pelos assinalados serviços que ele presta reciprocamente à
sua divina Majestade. Fizestes-me um grande favor, Senhor, enviando-me as disposições sinodais do
senhor Bispo. Achei-as dignas do seu autor e um grande prenúncio de bênçãos sobre sua diocese. Sua
piedade e seu zelo incomparáveis sempre suscitaram esperança de ações semelhantes. Deus o conserve
para a Igreja por um século inteiro!
Nada respondo, Senhor, à congratulação que na ocasião me dispensastes, a não ser que não a
mereço de modo algum. Parece bem claro que sua vocação é puramente de Deus e não obra dos homens.
Não demorei muito para enviar ao noticiarista vosso bilhete sobre a conversão do senhor que conheceis.
Praza a Deus abençoar cada vez mais os trabalhos desse grande prelado, a fim de que produzam tais
frutos!
Sabeis, Senhor, que somos todos dedicados ao serviço dos nossos senhores bispos. Se o senhor
Bispo de Périgueux nos intimar a tomar conta do seu seminário, enviar-lhe-emos alguns dos melhores
membros que tivermos, e isso quando lhe aprouver. Se julgardes que é conveniente assegurá-lo disto,
peço-vos fazê-lo; quero dizer, caso ele o deseje; do contrário, não. É de se desejar que tais negócios se
realizem unicamente pela iniciativa de Deus, antes que pela persuasão de alguém.
Rogo a Nosso Senhor nos torne dignos da honra de vossa obediência, e a mim, da honra que tenho
de ser, no amor de Nosso Senhor, prezado Senhor, vosso muito indigno e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Caso o senhor Bispo haja por bem servir-se de nós, far-nos-ia um favor se no-lo desse a conhecer
dois meses antes da fundação, a fim de que disponibilizemos tantos operários quantos desejar.

Destinatário: Ao senhor de Vergnes, oficial de Cahors, atualmente em Périgueux, na residência do


senhor Bispo, em Périgueux.

1134. – AO IRMÃO JACQUES RIVET

5 de setembro de 1649.

Recebi vossa carta com consolação; de um lado, por ser carta vossa, por outro, com tristeza, por
haver motivo para se temer que possais sucumbir aos atrativos que vos convidam a abandonar vossa
vocação. Vendo-vos em perigo, é obrigação minha estender-vos a mão para vos livrar dele, como faço
com minhas orações e minhas cartas. Já vos escrevi duas vezes 1; esta é a terceira, pedindo-vos voltar para
La Rose ou Agen. Pedi ao senhor Bispo de Condon 2 o haja por bem, e ele concordou, mas para depois
que seu mordomo tiver voltado. Ora, tenho conhecimento de que ele já está em casa, e vós, fora de vossa.
Do que está dependendo? Não vos lembrais das luzes que Deus vos deu tantas vezes em vossas
orações, que vos levaram a decidir diante de sua divina Majestade e testemunhar publicamente diante de
toda Companhia que estaríeis disposto antes a morrer do que a dela sair? E agora, diante da menor
ocasião, quando não se trata de morte, nem de sangue, nem de ameaças, estais vos entregando sem a
resistência que merece a promessa feita a Deus, que é um Deus firme, cioso de sua honra e quer ser
servido segundo seu beneplácito. Ele vos chamou para a Companhia; disso não tendes dúvida. Nela vos
manteve mesmo contra os esforços de vosso próprio pai, que quer conservar-vos junto dele. Preferistes
seguir o Evangelho a contentá-lo.
1
1. Primeira redação: carta.
2
2. Felisberto de Brandon (1648-1652).
.
Carta 1134. – Reg. 2, p. 298.
1
1. Cartas 1111 e 1113.
2
2. Jean d’Estrades (1647-1660).
237

Vivestes entre nós com edificação de todos, de tal sorte que Nosso Senhor foi sempre honrado em
vossa pessoa. Quereis agora desdizer-vos, abusar de suas graças, gracejar de sua bondade e cair no
remorso em que outros caíram com uma vida desordenada? Jamais vi alguém sair de comunidade alguma,
depois de receber as graças que recebestes de sua bondade, sem que um mês depois não tenha
experimentado as censuras de Deus e mil desgostos na vida.
Mas eu tenho intenção de agradar sempre a Deus, me direis! Meu Deus! Nunca faltam bons
pretextos. Se vos examinardes bem, vereis que não é para vos tornar melhor, mais submisso, mais
desapegado do mundo e de vossas comodidades, mais humilde, mais mortificado e mais unido ao
próximo pela caridade, como deveria ser para se tornar mais agradável a Deus. Pensais, entretanto, meu
caro Irmão, prestar-lhe serviço e operar vossa salvação, afastando-vos do caminho da perfeição; é engano.
Se ainda não tivésseis entrado na trilha dos perfeitos, tudo bem. São Paulo diz, porém, que, aqueles que
foram uma vez iluminados e saborearam a palavra de Deus, se vierem a cair, só com muita dificuldade
conseguirão renovar-se pela penitência3. Como vos persuadis de poder conservar-vos, retornando ao
mundo, já que longe dele tendes tanta dificuldade para vos vencer? Não chamo de mundo a residência do
senhor Bispo de Condom; mas dele não estaríeis longe, e talvez não ficareis nela por muito tempo.
Deus nos deixa ir de mal a pior, quando saímos do estado em que nos colocou. A falecida Rainha
mãe4 mandou um dia uma ordem ao senhor Cardeal de Bérulle para que lhe mandasse de volta um pajem
que se retirara ao Oratório. Esse santo personagem lhe respondeu que não podia subtrair a Deus um
jovem que se entregara a ele, e que não queria tornar-se responsável pela sua salvação. Servi-me deste
exemplo para com o senhor Bispo de Condom, a fim de que me escusasse por não poder consentir em
vosso afastamento. Não, meu caro Irmão, não posso consentir nisso, pela razão de que não é a vontade de
Deus e haveria risco para vossa querida alma. Se credes o contrário, não saiais, ao menos, senão pela
porta por onde entrastes na Companhia. Esta porta são os exercícios espirituais (retiro espiritual), que vos
peço fazer antes de qualquer decisão em relação a um desligamento de tal importância. Se a Casa de La
Rose não vos convém, nem também a de Agen, ide para Richelieu. Sereis bem recebido em qualquer de
nossas Casas. A bondade de vosso coração ganhou toda a afeição do meu, e esta afeição outro alvo não
tem senão a glória de Deus e vossa santificação. Estais certo disto, bem o sei, e sabeis também que sou
em Nosso Senhor...

1135. – À SUPERIORA DO SEGUNDO MOSTEIRO DA VISITAÇÃO DE PARIS

São Lázaro, dia da Natividade da Santíssima Virgem.

Rogo à nossa cara Madre, superiora da Visitação Santa Maria do subúrbio Saint-Jacques, permita
a entrada em seu mosteiro, por uma vez, às Reverendas Madres de Saint-Jean e de Saint-Joseph, da
abadia de Montmartre.

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

1136. – A RENÊ ALMÉRAS

Paris, 11de setembro de 1649.

Senhor Padre,

3
3. Hb 6, 4-6.
4
4. Maria de Médicis, mãe de Luís XIII.
.
Carta 1135. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade da rua Bourdonnais, em Versailles.
.
Carta 1136. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
238

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Tendes com justiça motivo para levantar a voz, como fazeis, por ver os serviços de Dom
Ferentilli1 tão pouco reconhecidos pela França. Há, contudo, também, de que escusar o senhor Cardeal 2,
seja em razão dos empecilhos que as perturbações lhe têm causado, como dos que lhe restam pelos
motivos que vos escrevi. Com certeza, não é falta de boa vontade que sempre encontrei nele, e muita, por
esse bom prelado. É por impossibilidade que não lha testemunha.
A dispensa do senhor La Haye-Aubert, concernente ao vicariato de Aumale, será selada em breve,
como espero. Informar-vos-ei por quanto ficará.
Aguardamos com paciência a bendita resposta do Papa e cremos firmemente que a vontade de
Deus por ela nos será conhecida, e, portanto, a ela nos submeteremos sem réplica, mediante sua santa
graça. Fico muito feliz por ser o vosso sentimento contrário ao de oferecer dinheiro para obter êxito nesta
questão3, e queirais obtê-la unicamente da Providência. Meu Deus! senhor Padre, como desejo que a
Companhia fique solidamente firmada nesta máxima, que tem a fé por fundamento! Só vos escrevi sobre
esta proposta tortuosa para vos dizer que me foi sugerida pelo senhor Cardeal Grimaldi, e vos asseguro
novamente que estou muito edificado, porque a rejeitais.
Estou igualmente muito edificado com as estações que fizestes nas sete Igrejas, em desagravo da
desonra feita aqui ao Santíssimo Sacramento; pelo que vos agradeço4.
O Padre Duiguin, que estava na Irlanda, encontra-se aqui desde alguns dias. Deixou em Saint-
Méen o Irmão Patriarche, ainda não curado da alteração do seu espírito, em razão da qual o Padre Brin
no-los mandou de volta, embora esteja notavelmente melhor. Comunicam-me que esse bom Irmão, tal
como é, causa grande edificação à comunidade, a tal ponto é cordial, gracioso, ativo e todo entregue a
Deus. Acabamos de perder um quase semelhante a ele. Morreu aqui, há apenas 3 ou 4 dias, e ao fim de 18
ou 20 meses depois de admitido. A comunidade toda lhe chora a perda, e eu ainda me sinto cheio de
pesar, embora nisto, como em tudo, adoro de todo o meu coração a conduta de Deus. Esse bom filho se
chamava Simão, e veio de Le Mans 5. Peço-vos orar e pedir que orem por sua alma e pela minha também.
Sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Ao senhor Padre Alméras, superior dos padres da Missão de Roma, em Roma.

1137. – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE ROMA

[16491].

A Congregação está crescendo em número e virtude, pela misericórdia de Deus, como me pareceu
nas visitas e todos reconhecem. Somente eu, miserável, vou sempre me carregando de novas iniquidades
e abominações. Ó senhor Padre, como Deus é misericordioso ao me suportar com tanta paciência e
longanimidade, e como sou mesquinho e miserável por abusar tanto de sua misericórdia! Suplico-vos,
senhor Padre, oferecer-me frequentemente a sua divina Majestade.

1
1. Prelado romano muito dedicado a São Vicente e a sua Congregação.
2
2. O Cardeal Mazarino.
3
3. Provavelmente a questão dos votos. Os votos de pobreza, castidade, obediência e estabilidade eram facultativos entre os membros da
Congregação da Missão. São Vicente trabalhava para torná-los obrigatórios para todos os que entrassem, depois, na Companhia. Seis anos
decorreriam antes de conseguir plenamente seu intento.
4
4. Ver carta 1131, nota 1.
5
5. Esse Irmão Simão só pode ser, se consultarmos o catálogo do pessoal, “Simão Busson, nascido na cidade e diocese de Le Mans, com
cerca de 22 anos de idade..., recebido em Paris por volta da quaresma de 1648”. Não havia outro Irmão Simão. A notícia sobre o Irmão
Busson (Notices, t. II, pp. 431-438) está errada em dois pontos: ele não morreu em 12 de setembro e não permaneceu três anos na
Congregação da Missão.
.
Carta 1137. – Abelly, op. cit., 2ª edição, 2ª parte p.146.
1
1 Data exigida pela palavra do Santo sobre as visitas que acaba de fazer.
239

1138. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

17 de setembro de 1649.

Se não estais morando mais de aluguel, há grande motivo para crer que foi pela poderosa mão de
Deus e por sua especial bondade; com efeito quem seria capaz de superar sem ele tantas e tão grandes
dificuldades? E quem poderia, sem uma graça particular do céu, perseverar constantemente neste
empreendimento, como fazem vossos incomparáveis fundadores? Se, contudo, o projeto não tiver êxito
depois de tantos esforços e orações, será um sinal evidente de que Deus não o quer. Portanto, senhor
Padre, aguardemos o resultado com grande indiferença.
Confesso que é difícil que nossos Irmãos suportem a sobrecarga do trabalho. Temos alguns em
outros lugares que fazem pouco e se queixam muito, e exercem a paciência dos seus superiores. Louvo a
Deus pela que praticastes para com os vossos, em particular para com o Irmão..., quando deixastes passar
a exaltação de sua bile. Estou certo de que terá reconhecido sua falta. Realmente o suporte consegue isso,
mais do que as repreensões, que, no entanto, devem ser feitas a seu tempo e com a prudência que Deus
vos deu. Meu Deus! senhor Padre, como o suporte nos é necessário, em geral, para com todos e em tudo,
e com o maior prazer rendo graças a Deus pelo que vos concedeu! Suplicai-lho para mim, por favor.
Preciso muito dele para merecer o suporte que o faço exercer desde os 69 anos que me tolera na terra.

1139. A CLÁUDIO DUFOUR, PADRE DA MISSÃO EM SAINTES

18 de setembro de 1649.

As cartas que recebo de vós me trazem imensa consolação, Deus o sabe, por causa da disposição
que vos concede em favor dos escravos e dos galés. É uma graça tão preciosa que é difícil ver alguma
maior sobre a terra. E o que me faz agradecer por isto a Deus com duplo sentimento de gratidão é a
fidelidade de vosso coração, que se curva e se torna inflexível, conforme o beneplácito divino. Ora, o
serviço dessa pobre gente é uma vocação extraordinária e, portanto, é necessário examinar bem e rogar a
Deus vos dê a conhecer se sois chamado para ele. É o que vos peço fazer de vossa parte e me proponho
fazer, por minha vez. Não que duvide de modo algum de vossa decisão, mas para maior garantia de que é
vontade de Deus. Além do mais, não é o tempo de ir para lá: a peste de Marselha fez as galeras fugirem e
o hospital ficar sem doentes. E a peste que grassa na Barbária nos leva a adiar o envio de alguém para lá.
Eis, pois, um motivo para exercer um pouco a paciência com esta espera e uma ocasião para melhor
merecer a felicidade de tão santo trabalho, pelo bom uso dos trabalhos mais humildes em que estais
aplicado, que são, entretanto, de grande valor, pois que, na casa de Deus, tudo é de suprema e régia
importância.

1140. AO R. P. FRANCISCO BLANCHART1

.
Carta 1138. – Reg. 2, p. 200.
.
Carta 1139. – Reg. 2, p. 300.
.
Carta 1140. – C. aut. – Original com as Filhas da Caridade de Mill-Hill, Londres.
1
1. Franciso Blanchard era de Amiens, onde nasceu em 1606. Depois de uma breve permanência no Convento de Saint-Acheul (1624),
depois, na Abadia Saint-Vincent de Senlis, foi para a abadia de Santa Genoveva. Deixou-a para introduzir a reforma e desempenhar o ofício
de superior no Convento de Santa Catarina de Paris e, posteriormente, no de Saint-Denis de Reims. Seus méritos fizeram com que fosse
escolhido para os mais altos cargos. Tornou-se assistente, Visitador, coadjutor geral (18 de dezembro de 1644) e, enfim, Abade de Santa
Genoveva e superior de toda Ordem (fevereiro de 1645). A Congregação dos Cônegos Regulares de Santa Genoveva o teve à sua frente de
1645 a 1650, de 1653 a 1665 e de 1667 a 1675.
240

São Lázaro, dia de São Jerônimo2, 1649.

Meu Reverendo Padre,

O senhor Padre de Saint-Paul, religioso de vossa santa Ordem e irmão do senhor de La Bourlerie,
Vice-Governador do Rei, deseja passar um mês convosco, para ver vossas santas observâncias e praticar
as que forem conformes com o desígnio que tem: quer viver com uma pequena comunidade na
observância das regras de Santo Agostinho, sem a pretensão de alcançar a exatidão de vossa santa
Congregação, mas do melhor modo possível. Passei-lhe a confiança de que vossa bondade lhe concederá
esta graça. Suplico-vos, muito humildemente, meu Reverendo Padre, o haja por bem. Fazendo isso,
contribuireis para a santificação de sua alma, para a salvação das que lhe forem confiadas; é um favor a
uma pessoa que o merece e ao referido senhor de La Bourlerie, seu irmão; dele ficarão cativos. Asseguro-
vos, meu Reverendo Padre, que me sentirei tão reconhecido como se tivésseis concedido a mim mesmo
esta graça. Sou, meu Reverendo Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno superior da Congregação da Missão.

Destinatário: A meu Reverendo Padre, Abade da Congregação de Santa Genoveva.

1141. A FELISBERTO DE BEAUMANOIR DE LAVARDIN, BISPO DO MANS1

Outubro de 1649.

Senhor Bispo,

Permito-me a confiança de vos escrever a presente para, com toda humildade e respeito a mim
possível, fazer-vos a oferta de minha perpétua obediência. Suplico-vos com toda humildade, senhor
Bispo, ter a bondade de aceitá-la. Levai igualmente a bem vos informe de que há aqui numerosos
eclesiásticos, até mesmo de alguma condição, que solicitam os benefícios que vagaram e que concedestes
desde vossa sagração, entre outros o arcediagado e o canonicato que conferistes, em razão, senhor Bispo,
de terdes deixado de mandar registrar no Tribunal de Contas vosso juramento de fidelidade. Por falta
disto, senhor Bispo, pretendem que vós não tínheis o poder de dispor desses benefícios. O último que
urgiu comigo a respeito foi o capelão do Rei, que o solicita em favor de um irmão seu. Trouxe-me um
doutor da Sorbona muito versado nesse assunto de benefício, para me persuadir que é atribuição do Rei
conceder tais benefícios; pela graça de Deus, porém, mantive-me firme e, como penso, com razão.
Entretanto, como as pessoas que os reclamam são numerosas e poderiam obter esses benefícios por
alguma outra via, pensei, senhor Bispo, que, como faço particular profissão de prestar serviços, em se
tratando de nossos senhores bispos, e particularmente, para com aqueles que nos concedem a graça de nos
suportar em suas dioceses, como fazeis com toda bondade na vossa, senhor Bispo, pensei, repito, que vos
devia informar sobre essa questão. A finalidade disto, senhor Bispo, é que vos apraza mandar registrar
vosso juramento de fidelidade, para afastar o pretexto do pessoal daqui e de outros que poderiam se
remexer por isso.

2
2. 30 de setembro.
.
Carta 1141. – Reg. 1, f° 10, cópia do original autógrafo.
1
1. Esse prelado guardava ainda no coração a atitude de São Vicente, que julgou não dever recomendá-lo para o episcopado. Viera se
estabelecer em Le Mans, antes mesmo de receber as bulas. Com isto, foi grande o espanto de Vicente de Paulo quando, ao chegar nessa
cidade em 2 de março de 1649, soube que o Bispo estava lá. Mandou pedir-lhe, por dois de seus padres, a permissão de ficar sete ou oito dias
no seminário. Felisberto de Lavardin, lisonjeado com tal procedimento, consentiu, com todo gosto, e acrescentou mesmo que ficaria muito
feliz com receber São Vicente em sua casa. Este último se dispunha a ir agradecer ao prelado, quando soube que havia partido. Felisberto de
Lavardin não foi um bispo modelo. Deste modo, tendo, depois de sua morte, corrido o boato de que, conforme ele próprio confessara, jamais
tivera intenção de ordenar quem quer que fosse, muitos se deixaram convencer disto, e receberam de novo a ordenação. O boato era falso
(Cf. Collet, op. cit., t. I, p. 473).
241

Tive dificuldade em me permitir a ousadia de vos escrever, senhor Bispo, na dúvida sobre se o
teríeis por bem. A importância, contudo, do caso, e o temor de faltar ao que vos devo, levaram-me a
preferir antes cair na temeridade do que na falta de fidelidade ao serviço que vos devo, senhor Bispo. Sou,
no amor de Nosso Senhor, senhor Bispo, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i . p. d. M.

1142. o
– A JACQUES CHIROYE

Paris, 3 de setembro de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estou muito contente por terdes recebido o pagamento da letra de câmbio que vos enviei, de 1500 libras,
e que, com isto, reembolsastes as somas que antes tínheis tmado de empréstimo, pensando que as
pagaríamos aqui.
Estou, entretanto, com certeza, mais admirado ao saber que o senhor Bispo1 não se cansa de vos
socorrer. Senhor Deus, que caridade! Tive a felicidade de conversar com o senhor Bispo de Genebra 2 por
várias vezes durante sua vida. Era tão grande sua bondade que a de Deus transparecia sensivelmente
através da sua. Mas nem antes, nem depois dele, jamais vi alguém em quem essa mesma bondade divina
se tenha mostrado melhor do que no senhor Bispo de Luçon. Escrevo-lhe uma palavra de agradecimento
pelas suas derradeiras liberalidades, mais para evitar a ingratidão do que para testemunhar-lhe meu
reconhecimento, pois esse é tão profundo que não sou capaz de exprimi-lo. Deus nos conceda a graça de
prestar à diocese de Luçon os serviços que esse insigne prelado espera de nós e de que lhe somos
devedores, por tantas e tantas razões! Fico contente com saber que vos esmerais em render-lhe toda a
reverência, submissão e obediência possíveis; aliás, seríeis inescusável, se faltásseis a tão justo dever.
Escrevo a Richelieu para que vos enviem de carruagem um padre para a missão do Padre
Thouvant3; espero que ele chegue a vossa Casa dois ou três dias depois que a presente vos for entregue.
Antes do fim dessa missão, pensaremos na proposta que nos fizestes a respeito do M.L., e vos escreverei
sobre ela. Queira Deus abençoar vossos trabalhos e vossa conduta e me tornar participante nos
merecimentos de vossas orações e santos sacrifícios! Saúdo cordialmente vossa pequena comunidade, da
qual, e de vós em particular, sou, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Chiroye, superior dos padres da Missão, em Luçon.

1143. í
– A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

8 de outubro de 1649.

. o
Carta 1142. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Pierre Novelle, Bispo de Luçon.
2
2. São Francisco de Sales.
3
3. Cláudio Thouvant, cônego e arcediago de Aizenay (Ver carta 907, nota 6.).
. í
Carta 1143. – Reg. 2, p. 230.
242

Dom Férentilli vos falou como Romano e certamente como amigo, quando os aconselhou a ter homens
apresentáveis. Mas como! que fariam em Roma M.... e outros deste porte? Não vos é permitido pregar a,
nem confessar em casa, nem ensinar os ordinandos em público; cui ergo fini? (para que fim, então?)
Apenas para dispor de pessoas de boa aparência no altar e no refeitório, e subtraí-los dos ministérios que
exercem aqui! Não há dúvida, senhor Padre, de que esta vitrine de homens custaria caro à Companhia, e
não sei se não haveria algo a desejar diante de Deus. Dizer que aparecerão na paróquia, se talvez tiverdes
uma, cui fini (para que fim) também isso? Além do mais, se não me engano, celebram poucos ofícios
religiosos e fazem poucas pregações nas paróquias da cidade. Mas se for verdade que a Providência nos
reserva algum trabalho em Roma, tereis logo convosco não coirmãos mais antigos, mas pessoas, dentre os
nossos, mais aptas para o bem da Mãe das Igrejas. Ó Jesus! senhor Padre, seria necessário socorrer-vos, e
bem.

1144. A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO EM LE MANS

Paris, 12 de outubro de 1649.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Já dispúnhamos da palavra de sua Excelência o Chanceler 1 e um decreto assinado do relator, para
suspender as demandas de Hossard até a comprovação de nosso estabelecimento no Parlamento 2. Tendo,
porém, conversado sobre o caso com o senhor primeiro Presidente 3, ele me disse que o mesmo
Parlamento anularia tudo que pudesse vir do Conselho, que dentro de 15 dias mandaria solicitar ao senhor
Procurador Geral4 que viesse estar com ele e trataria de convencê-lo a emitir suas conclusões, que nos
recusa há 2 ou 3 anos. Vede, senhor Padre, que isso requer sair fora do senhor Hossard.
Como poderia eu mandar pagar ao senhor Aubert as 20 libras que o granjeiro detém, caso lhas
deva, já que nós mesmos não conseguimos receber nada do que o próprio granjeiro é obrigado a nos
repassar? Que ele nos escuse, por favor.
Estou muito pesaroso por terem suprimido a ordenação, e peço a Deus vos conceda a graça de
reparar essa falta, na próxima ocasião. Escreverei a respeito, a fim de que se vejam os meios de realizá-la,
e parece-me que já o fez, como também para que contribuam com o que puderem 5 para o florescimento
do seminário maior e menor. Não lhe escrevo agora, pois julgo que não voltou de sua viagem.
Saúdo e abraço cordialmente vossa querida pessoa e toda a comunidade, da qual sou, e de vós em
particular, no amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Acabo de saber de vossa indisposição. Sinto por isso grande tristeza e seria maior ainda se não
esperasse que, no momento, estejais melhor. É o que peço a Nosso Senhor com todo afeto; e a vós, senhor
Padre, vos conjuro a procurar com todo empenho vossa cura, nada poupando que possa contribuir para
isso. Aguardo notícias mais recentes de vossa saúde.

.
Carta 1144. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Pierre Séguier.
2
2. O Parlamento registrou, em 15 de janeiro de 1650, as cartas patentes pelas quais o Rei unira à Congregação da Missão, no mês de agosto
de 1645, a propriedade e a prepositura da igreja colegial e real de Notre-Dame de Coëffort, em Le Mans, e os benefícios decorrentes.
3
3. Mateus Molé.
4
4. Blaise Méliand.
5
5. Primeira redação: “Deus perdoe a M. L., se ele suprimiu a ordenação, e lhe dê a graça de reparar esta falta na próxima ocasião! Escrever-
lhe-ei no sentido de que a isso se disponha, e parece-me que já o fez, como também que contribua no que puder”. A correção é da mão do
Santo.
243

Teríeis espaço e arranjaríeis cem leitos de empréstimo para uma parte dos ordinandos? Peço-vos
escrever-me sobre isso; eles são obrigados a pagar suas despesas6.

Embaixo da primeira página: M. Gentil.

1145. MAZARINO A SÃO VICENTE

13 de outubro de 1649.

Senhor Padre,

Sou-vos muito grato por vossos bons avisos e tudo que me escrevestes em vossa carta do dia
quatro deste mês. Recebi-os com a confiança e estima que merecem. Na verdade é impossível ver
argumentos mais judiciosos, nem mais impregnados de afeição por mim. Rendo-vos mil graças, pedindo-
vos que continueis oportunamente a prestar-me o frutuoso serviço de um zelo tão obsequioso, enquanto,
em paga, buscarei as ocasiões de vos testemunhar, melhor do que por estas linhas, que sou....

1146. – ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR EM GÊNOVA, A SÃO VICENTE

19 de outubro de 1649.

Senhor Padre,

Há algum tempo, vos escrevi alguma coisa com relação às virtudes que notara no Padre Brunet,
durante sua vida. Gostaria agora de poder voltar ao assunto e relembrar uma multidão [de atos de
virtude] que o vi praticar e que teria eu guardado e procurado imitar, se tivesse sido mais zeloso pelo
meu bem. Fizemos uma conferência sobre o assunto, e minha intenção era enviar-vos um relatório
passado a limpo. Contudo, as contínuas ocupações que temos não nos permitem fazer coisa alguma com
folga, mas tudo às pressas, como faço no presente, suplicando-vos leveis em consideração mais a minha
boa vontade do que o meu trabalho. Tudo o que poderia dizer desse bom servo de Deus, na realidade, é
apenas uma sombra da verdade. Pedira ao Padre Alméras fizesse uma compilação dos principais atos de
suas virtudes; ele, porém, respondeu-me que era uma demanda difícil demais e que seus atos de virtude
eram tão numerosos e tão excelentes que seria impossível lançá-los num maço de papel; suas virtudes se
podem mais admirar do que escrever, porque eram sólidas e ocultas, e sua vida não era ostensiva e
pomposa, mas sólida e interior.
Entre outras coisas, disse ele, admirava sua grande humildade, sua admirável mansidão, sua
resignação e muito perfeita conformidade com a vontade de Deus. Mas o que foi mais considerável foi
sua contínua e inalterável perseverança nessas virtudes, de tal modo que, já ancião e idoso, de nada
fazia alarde, não bancava o soldado emérito, e parecia uma criança e um seminarista, na prática da
humildade, da obediência e em tudo o mais. Até aqui, palavras do Padre Alméras.
Eis agora alguma coisa do que os coirmãos de Gênova observaram nesse bom servo de Deus:
1° Uma profundíssima humildade, estimando-se sempre o menor de todos. Sentia singular prazer
em ser colocado nos mais irrelevantes ofícios e se empenhava em buscar todas as oportunidades para
pô-los em prática. Quando era preciso pegar da vassoura, era ordinariamente o primeiro a fazê-lo;
frequentemente, deixava a recreação para ir à cozinha lavar a louça. Ficava feliz quando não se
encontrava ninguém para servir nas missas, a fim de fazê-lo ele próprio; e se, por vezes, cometesse
alguma pequena falta ao servi-las, humilhava-se quanto antes e se lançava aos pés do padre para lhe
6
6. Estas últimas palavras, desde “tereis espaço”, são da mão do Santo.
.
Carta 1145. – Arquivos dos Negócios Estrangeiros, Relatórios, Documentos, França, ms. 264 f° 487, cópia.
.
Carta 1146. – Ms. de Lyon, f° 223 e ss.
244

pedir perdão. Se notasse que alguém estava com os pés enlameados, aproveitava um tempo em que
ninguém o percebesse e limpava-lhe os sapatos, às ocultas. Recebia com grande humildade a roupa que
lhe traziam, e levava ele próprio as que tinha usado, sem querer dar aos irmãos o trabalho de vir buscá-
las. Jamais se queixava de que a batina era comprida, curta ou mal feita. Saindo fora para passear com
alguém da Companhia, ainda que fosse mais jovem, tratava de ceder sempre a frente ao companheiro, e
se não conseguisse ocupar o último lugar, ficava confuso e corava o rosto, dando a entender claramente,
com isto, que procedia deste modo não por cortesia, mas por verdadeiro sentimento de humildade. Esta
mesma virtude fazia com que jamais o vissem discutir com pessoa alguma. Se, por acaso,na conversação,
encontrava alguém de opinião contrária à sua, mostrava-se logo condescendente, com um gracioso
sorriso, submetendo o próprio juízo ao de outrem. Viajando a pé, certo dia, de Alet a Marselha,
machucou uma perna perto de Narbona. Lá permaneceu oito dias com seu companheiro, à espera de um
barco, mas foram constrangidos a continuar a viagem por terra. Como não tinham condição de irem os
dois a cavalo, por falta de dinheiro, e como o Padre Brunet, por outro lado, não conseguia mais andar a
pé, compraram um jumento sem sela e estribo para levá-lo com seus pertences. Viajou assim vinte e seis
léguas. Ora, jamais vos poderia exprimir a alegria do seu coração, que testemunhava exteriormente, por
se ver montado nesse animal, embora com frequência fosse seguido por crianças que zombavam dele,
apontavam-no com o dedo, e gritavam atrás dele. Nas Missões, apesar do incômodo em uma das pernas,
não aceitava andar a cavalo se os outros não o fizessem. Ademais, em tal caso, escolhia o pior cavalo, o
mais mal aparelhado e tinha até prazer em andar em cavalo sem sela e sem rédea, por lugares onde era
ele o mais conhecido, não sem admiração e espanto dos que o viam e o conheciam.
Podia-se reconhecer sua grande obediência por sua perfeita resignação em permanecer em
qualquer lugar que lhe fosse indicado e cumprir qualquer ofício ou exercício que quisessem. Foi enviado
de Notre-Dame de la Rose para Alet, onde gozava de indizível alegria nas conversações com o senhor
Bispo de Alet1 e pelos grandes frutos que podia colher em favor das almas. Esteve lá somente três meses,
mas não se perturbou ao receber ordem de partir. Foi depois enviado de Roma para Gênova, e, mal
chegou lá, falaram em chamá-lo de volta para Roma. Mostrou-se sempre indiferente e pronto para ir
aonde a obediência o chamasse. Foi um dia designado como companheiro de um padre que ia sair.
Sentiu-se logo no dever de acompanhá-lo, apesar de estar com uma diarreia que o incomodava há três
dias. O companheiro o percebeu e perguntou-lhe porque não lhe tinha avisado do seu incômodo.
Respondeu-lhe que não julgara dever escusar-se, quando a obediência o chamava, mostrando, assim,
quão grande era seu espírito de obediência e sua mortificação. Era mortificado em tudo. E o que era
mais admirável é que ele se esmerava de tal forma em ocultar suas virtudes que delas conhecíamos
apenas a menor parte.
Sua mortificação o tornava tão pontual e obediente a todas as ordens da Casa que parecia não
ter outro sentimento, a não ser o de obedecer, de tal sorte que esse texto da Escritura parecia não se
verificar nele: proni sunt sensus hominis ad malum ab adolescentia (os sentimentos do homem são
inclinados para o mal desde a adolescência). A mortificação da língua era tão grande nele que jamais o
viam falar fora do tempo, e seguia fielmente o conselho do sábio: os sapientis in corde suo (a boca do
sábio está em seu coração). Se a necessidade o obrigava a falar, fazia-o em voz baixa e em poucas
palavras. Era muito sóbrio na alimentação. Quando se serviam frutos novos ou alguma iguaria um pouco
melhor do que de ordinário, não tocava nela, de tal modo que os Irmãos diziam entre si: a porção do
Padre Brunet ficará íntegra; e viram acontecer várias vezes o que pensavam. Trazia uma pequena
corrente de ferro sobre o corpo e dizia que era escravo de Jesus Cristo. Usava uma cruz de alguns
centímetros no pescoço, sem imagem,com três pregos pontudos, bem compridos, que frequentemente
apertava sobre a carne nua, para experimentar e honrar os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo,
mortificationem Jesu Christi in corpore circumferens, (?), segundo o Conselho de São Paulo2. Jamais se
queixava, nem do frio, nem do calor, nem do cansaço, nem da comida, nem da bebida, nem da cama ou
de incômodo no quarto, apesar de morar num pequeno cômodo, debaixo de uma escada onde só havia
uma janelinha e nem uma cadeira para se assentar; e ninguém se dava conta desta falta, pois ele não
dizia uma palavra a respeito, e não queria pegar alguma por si mesmo, até que alguém da Casa o
encontrou escrevendo de joelhos e lhe trouxe uma cadeira.

1
1. Nicolau Pavillon.
2
2. 2 Co 4,10.
245

Se o paraíso é a recompensa dos pobres em espírito, o Padre Brunet estará lá em bom lugar, pois
não tinha afeição alguma às coisas da terra, o que se notava com frequência. Quando lhe davam
medalha, folheto ou terço e coisa semelhante para seu uso, não os aceitava a não ser com a condição de
os poder dar aos outros, quando a caridade o requeresse. E com efeito, dava tudo o que tinha ao
primeiro que lho pedisse. Ao lhe perguntarem porque dava tão facilmente essas coisas, respondeu que
um ato de caridade vale mais do que todos os bens do mundo. Se, por acaso, esquecia ou perdia alguma
coisa, não se afligia de modo algum, mas dizia que, se alguém a encontrasse, faria dela melhor uso do
que ele. Quanto ao vestuário, mantinha-se na prática de nada pedir nem recusar, e demonstrava alegria
maior quando lhe davam roupas mais velhas.
Era extremamente pontual e exato na observância das regras, e embora ocupando um dos quartos
mais afastados, era sempre dos primeiros a chegar para o ofício divino e outras atividades da
comunidade. Não deixava nunca passar o mês, tanto nos campos como em casa, sem se apresentar ao
superior para a comunicação interior, embora com frequência não soubesse o que dizer, de tal modo
tinha a vida e a alma bem regradas. Tão logo escutava o sino tocar, colocava-se de joelhos, deixava o
que tinha começado, e corria aonde a obediência o chamava.
Sua simplicidade era extraordinária, nada fingida ou dissimulada; de qual sorte que quem o via
ou escutava lhe penetrava até o fundo do coração. Não sabia o que era ambiguidade, e fugia do exagero
sobre tudo que via e ouvia.
Quem poderia descrever-lhe a mansidão, a benignidade e a cordialidade? Se alguém,
encolerizado, olhasse para esse bom servo de Deus, era impelido a se apaziguar. Nele se verificavam as
palavras de Jesus Cristo: Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra 3, isto é, segundo Santo
Agostinho,possuirão ou subjugarão o coração dos homens. Amava a solidão, o que fazia com que a
oração e a meditação lhe fossem muito familiares. Jamais o viam correr de uma parte para outra na
casa. Quem precisasse dele, não tinha grande dificuldade para encontrá-lo, pois estava de ordinário no
quarto, e quase sempre de joelhos ou em pé, lendo e orando, na solidão de um retiro. Adquirira grande
união com Deus, com o qual se entretinha tão frequente e amorosamente que se lhe viam os olhos
totalmente banhados de lágrimas e a face inteiramente iluminada, excitando à devoção. Jamais o viam
triste ou melancólico, embora se apresentassem, com frequência, ocasiões para tal, segundo a ordem da
natureza corrompida. Pelo contrário, com a graça de Deus, vivia na prática contínua das virtudes. Não
se deixava dominar pela perturbação, mas mantinha sempre a alegria, conformando-se em tudo com a
vontade de Deus e recebendo de suas mãos as coisas contrárias como as favoráveis.
Termino aqui, pois me subtraem a pena da mão, e estou certo de que o que eu disse é muito pouca
coisa em comparação com o que poderia dizer. Rogo a esse bom servo de Deus queira rezar por nós no
céu, onde creio que está fruindo da glória que jamais acabará, em cujo amor sou, senhor Padre, vosso
muito humilde e obediente servo,

ESTÊVÃO BLATIRON,
indigno padre da Missão.

1147. – A GUILHERME DELATTRE, SUPERIOR, EM AGEN

23 de outubro de 1649.

Não creio que em La Rose o mal seja tão grande como dão a entender. É verdade que passou
alguma coisa pelo espírito do senhor M...; mas disso já se libertou. A propósito, vos direi, não tanto em
razão deste caso, mas tendo em vista todas as outras desavenças, que temo que algum espírito mau, para
insinuar desunião em nossas Casas e entre os coirmãos, vos transmita notícias pouco caridosas. Se for
assim, senhor Padre, dai-vos a Deus para não escutá-lo. Sentireis igual consolação à que tive por ter
proibido a um empregado meu, antes do nascimento da Companhia, de me trazer qualquer relato
prejudicial a alguém, porque reconhecera nele essa tendência, e por que já tinha querido causar-me má
3
3. Mt 5,4.
.
Carta 1147. – Reg. 2, p.300.
246

impressão contra um senhor correto com quem eu vivia. Não ousou, desde então, trazer-me mais tais
notícias. Todas as vezes que eu pensava nisso, sentia o coração enternecido de gratidão para com Deus,
por aquela graça. As maledicências prejudicam, com frequência, tanto aos que as escutam quanto aos que
as inventam, quando não fosse senão pelo fato de inquietar o espírito, como acontece, e dar asas à
tentação de comentá-las e escrever aos outros sobre elas.
Penso que as economias vos possibilitaram subsistir. Estou ciente de que tendes pouca renda, que
as pensões vos ajudam muito pouco e que, com os preços muito elevados deste ano, vos será difícil sair
das dificuldades. Contudo, sei também que se conhecêsseis nossa impossibilidade de vos socorrer, teríeis
compaixão de nós e em nada menos pensaríeis do que em nos pedir ajuda. As guerras passadas e a
carestia presente de quase todo o reino impedem que nos paguem e façamos nossa pequena provisão.
Ficaria mais assustado do que nunca, se Deus não me tivesse concedido um pouco de confiança e
submissão a sua providência, vendo, de uma parte, vossa p\obreza e, de outra, a grande despesa que temos
de enfrentar. Deveis ajustar a vossa às vossas forças e nada empreender a não ser na medida do que
estiver ao vosso alcance. Digo isso a respeito dos pobres padres que passam por aí e que gostaríeis de
socorrer. Na verdade, seria ótimo se o pudésseis fazer. Mas precisais antes satisfazer ao que é necessário.
Quanto a pedir ao senhor Bispo a permissão para exercer essa hospitalidade, não convém; ele aprovará de
muito boa vontade as propostas que lhe fizerdes para o bem do seu Seminário. Seu temperamento não é o
de ajudar a outros que não lhe dizem respeito; se contudo, julgardes que seja preciso escrever-lhe sobre
vossa necessidade, remeto-me a vossa prudência.

1148. A DOM DÊNIS MASSARI1

Paris, 5 de novembro de 1649.

Excelência,

Não saberia exprimir-vos com que alegria e respeito, ao mesmo tempo, recebi a carta que vos
aprouve dar-me a honra de escrever-me, vinda de uma pessoa tão cara a mim e que tanto venero. Se antes
já nutria estima por Vossa Excelência, pelos relatos que me faziam sobre suas virtudes, sinto-me agora
obrigado a ter para com ela amor e reconhecimento, ao que acrescento, aqui, a renovação das ofertas de
minha perpétua obediência, que vos suplico muito humildemente, Excelência, a tenhais por bem, com a
da nossa Congregação, que é toda vossa. Roguei a Deus, de todo meu coração, conforme vosso desejo,
abençoe o ministério tão importante em que sua providência vos colocou. E como soube dos nossos daí
que Vossa Excelência, entrando no Colégio da Congregação da Propagação da Fé, tivera a devoção de
pedir a toda a comunidade comungasse nesta intenção, pedi o mesmo aqui, para fazer a nossa parte.
Todos os padres da Casa celebraram igualmente em vossa intenção. E, se Deus quiser, renovaremos de
tempos a tempos as mesmas orações, impossíveis de serem aplicadas, a meu ver, para melhor finalidade.
Permiti-me, por favor, Excelência, que vos peça a assistência de vossas preces em meu favor e vos
assegure que sou e serei sempre, Excelência, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno superior da Congregação da Missão.

1149. – A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

9 de novembro de 1649.

.
Carta 1148. – C. as. – Arquivos da Propaganda, II África, 1° 248, f° 120, original.
1
1. Acaba de suceder a Dom Ingoli como secretário da Propaganda (Congregação para a Propagação da Fé).
.
Carta 1149. – Reg. 2, p. 131.
247

Recebi notícias de uma de nossas Casas1 de que a má alimentação nela servida causa maus efeitos
nos corpos e nos espíritos. Sendo assim, se a pessoa responsável pelas despesas, pensando em poupar, se
deixar levar a tal excesso de economia, e não servir uma comida melhor, mesmo após a advertência que
lhe faço e a carta que lhe escrevo, serei constrangido a colocar outro em seu lugar, para fornecer o
razoável para o sustento da comunidade, como se faz em São Lázaro e outras partes. Com efeito, muitos
se indispuseram, em consequência desta falha. Digo-vos isto, senhor Padre, porque detendes igual ofício,
a fim de velar, por favor, para que se evitem tais inconvenientes, tratando de fornecer bom pão, boa carne,
e não vender o melhor vinho para servir o pior, nem expor a comunidade às queixas de avareza no trato.
Fiquei tão sentido com as que me fizeram da Casa de que falo, que receio muitíssimo me deem outras o
mesmo motivo de aflição. Espero não venha isto de vós e vos peço prestar atenção a esta recomendação.

1150. – ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR EM GÊNOVA, A SÃO VICENTE

Gênova, novembro de 1649.

O Eminentíssimo Cardeal1ficou oito dias conosco e fez o retiro espiritual com os missionários,
em número de dez. Oh! é um grande servo de Deus! É difícil crer com que exatidão e pontualidade
observou a ordem dos exercícios, embora seja de compleição muito frágil, com a idade de 56 anos,
parecendo bem mais idoso, pelos contínuos trabalhos, tanto espirituais quanto corporais. Fazia a oração
de manhã em comum com os outros, e de joelhos, sem se mover, desde o início até o fim, embora alguns
se levantassem. Quanto às outras meditações que cada qual fazia no quarto, ele as fazia de joelhos, ou,
se por vezes ficava um pouco cansado, perguntava-me se poderia levantar-se. Já lhe dissera que podia e
até mesmo que era conveniente se assentasse durante um pouco de tempo, para evitar incômodo
demasiado; mas não deixava de mo pedir, cada vez, para ter o mérito da obediência. Quando partilhava
os pensamentos e os bons sentimentos de suas orações, fazia-o com tanta simplicidade, humildade e
unção como nenhum de nós. Tão logo escutava o sino bater para o ofício litúrgico, ou para os outros
exercícios da comunidade, deixava tudo e era dos primeiros a chegar à capela. À mesa, queria ser
tratado como os outros; suplicava-o permitisse que o tratássemos de modo diferente, ao que afinal
condescendeu. Mostrava dificuldade em aceitar que lhe dessem, à parte, com que se lavar, desejando
conformar-se aos outros.
No final dos exercícios, rogava-lhe nos desse a todos sua bênção, para impetrar de Deus a
perseverança. Não o queria fazer; pelo contrário, queria absolutamente que eu mesmo a desse. Contudo,
depois de muitas importunações, no-la concedeu. Oh! meu caro Pai, que exemplo de virtude temos diante
dos olhos!

1151. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Entre 1647 e 16491].

Meu honorabilíssimo Pai.

1
1. É muito provável que se trate do Seminário de Le Mans, do qual Mathurin era ecônomo (N. do T.: A nota é de Pierre Coste. Achamos
muito difícil, se não impossível, que a simplicidade do Santo, “seu evangelho”, usasse de semelhante artifício para fazer advertência a um
filho e coirmão seu. Fá-lo-ia diretamente).
.
Carta 1150. – Abelly, op. cit., l. II, cap. IV, 1ª ed., p. 291.
1
1. O Cardeal Durazzo.
.
Carta 1151. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Antes de 1647, Luísa de Marillac escreve sempre “Senhor Padre” no cabeçalho de suas cartas a São Vicente. Depois de 1649. Ela só o
chama de “Senhor Padre e honorabilíssimo Pai”, ou “meu honorabilíssimo Pai”, ou “meu Reverendíssimo Pai”. Temos aqui “Meu
honorabilíssimo Pai”, ao início; “Senhor Padre”, no fim; o que indica o período de 1647 a 1649.
248

Perdoai-me a violência da minha apreensão a respeito da coisa que sempre mais receei na pessoa
da qual vos falei. As reflexões que faço a esse respeito (que aumentam a minha dor) foram a causa de
que a consolação que Deus me concede por vossa caridade não ocorresse. Se credes que houve conduta
da divina Providência em minha vida, em nome de Deus, meu caríssimo Pai, não me abandoneis nesta
necessidade; se não, fazei-me a caridade de me dar a conhecer minha ilusão, para que eu não morra
impenitente.
Esqueci-me de vos suplicar muito humildemente, pelo amor de Deus, celebreis amanhã a santa
missa pelo meu filho e façais o que aprouver a Deus vos inspirar para ajudá-lo a sair da grande aflição
em que acredito que se encontra e que vos inspiraria grande compaixão, se a vísseis como eu:
Faço o possível para assimilar os pensamentos que me destes a honra de sugerir-me. Consegui
tomar a ceia melhor do que pensava e quero tentar dar a Deus o que me pede em vista desta conjuntura
daqui, que espero conhecer pelas advertências que vossa caridade me fará, das quais preciso muito,
como também de ser, o quanto for da vontade de Deus, senhor Padre, vossa gratíssima filha e serva
humilde,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1152. – AO IRMÃO JACQUES RIVET, IRMÃO COADJUTOR, EM LA ROSE

13 de novembro de 1649.

Recebi vossas cartas e com elas uma alegria inexprimível, ao saber de vosso retorno para La Rose,
para onde vos dirijo a presente, a fim de vos dizer que sejais bem vindo aí. Com certeza, em que pese ao
que me escreveram a vosso respeito, sempre acreditei que faríeis o que fizestes. Na verdade, o passo foi
perigoso, mas a graça de Deus foi mais forte, e vós fostes fiel a vossa vocação, pelo que bendigo milhares
e milhares de vezes a sua misericórdia. Teríeis feito o bem, ao lado desse bom prelado 1, mas o fareis
incomparavelmente mais, perseverando no primeiro estado em que Deus vos colocou. Embora esse
reverendíssimo seja muito virtuoso, ficaríeis obrigado a tratar com pessoas que não o são tanto quanto ele,
cujo exemplo e conversação vos iriam talvez prejudicar demais. Nosso objetivo é conquistar o céu. O
resto é pura diversão. Vamos para lá, portanto, pelos caminhos mais curtos e mais seguros, como são os
de uma vida retirada, os da aquisição das virtudes cristãs e evangélicas, e, enfim, os da observância de
nosso pequeno regulamento. Ora pois, meu caro Irmão, rogo a Nosso Senhor que vos livrou de um tal
perigo, realize em vós seus eternos desígnios. Não há dúvida de que ele quer vos levar até sua casa e vos
tornar todo seu, no tempo e na eternidade.

1153. – A MARCOS COGLÉE, SUPERIOR, EM SEDAN

15 de novembro de [16491].

Quanto à aliança eterna que desejais contrair com Nosso Senhor na Companhia, ó Jesus! senhor
Padre, eu o consinto e com todo o meu coração que estima com ternura o vosso, mais do que posso
exprimir.
.
Carta 1152. – Reg. 2, p.301.
1
1. Jean d’Estrade, Bispo de Condom.
.
Carta 1153. – Reg. 2, p. 18.
1
1. O manuscrito data a carta de 1645. É muito provável que o copista tomou o 9 por 5. Em 15 de novembro de 1645, com efeito, Marcos
Coglée estava em Marselha, não em Sedan. Ademais, ele só fez os votos em 13 de dezembro de 1649.
249

1154. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Novembro de 16491].

Meu honorabilíssimo Pai,

Sinto muito por vos ser importuna, porém a impossibilidade de continuar recebendo crianças
angustia-nos demasiadamente. No momento, para duas amas de leite, temos sete crianças, que não
aceitam a mamadeira e não possuímos sequer uma moeda de dois denários para pensar em mais uma
ama. Não temos provisão de lençóis, nem de fraldas, nem esperança de poder comprar fiado. Fazei-nos a
caridade, meu muito honrado Pai, de dizer-nos se podemos, em consciência, deixá-las morrer, pois que
as Damas não estão fazendo questão alguma de nos proporcionar ajuda. Estou convencida de que elas
julgam que estamos levando à frente nossos trabalhos às suas expensas, o que é totalmente contrário à
verdade, pois, do dinheiro que foi resolvido que receberíamos para a alimentação das amas, não ficamos
senão com cem libras. Só vejo um meio para alívio de todos os que estão sofrendo nesta obra, e é que
nós, em nome de nossa Companhia, apresentemos uma requisição ao senhor Primeiro Presidente 2,
pedindo-lhe nos tire o encargo de receber as crianças e encarregue disso a quem for do seu agrado. Mas
seria necessário que as Damas aprovassem esta decisão, para não ferir ninguém. Sem isso, parece-me
que estaríamos em contínuo pecado mortal.
Ontem, trouxeram-nos quatro crianças e, além das sete de peito, há três desmamadas, todas
recém-encontradas. Uma delas é só pele e osso. Se fosse possível, deveríamos colocá-las com amas de
leite. Se pudéssemos enfrentar essa carga sem vo-la comunicar, de bom grado o faria, mas nossa
impotência não no-lo permite. Essas bondosas Damas não estão fazendo o que podem. Nenhuma delas
nos enviou alguma coisa, nem recebemos coisa alguma da Confraria da Caridade, porque a maior parte
das associadas já deram sua quota anual.
Suplico a Deus tenha misericórdia de nós. Começo a recear que toda essa miséria se deva a mim,
que sou totalmente como sou, meu honorabilíssimo Pai, vossa muito obediente e mui grata filha,

L. DE MARILLAC.

Penso que seria necessário convocar uma Assembleia geral. A merenda do Hospital Geral vai
acabar também.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1155. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Novembro de 16491].

Meu honorabilíssimo Pai,

Peço, humildemente, a vossa caridade me conceda amanhã um quarto de hora, a fim de recuperar
o que me pareceu ter perdido ontem do tempo que a divina Providência me oferecia.
.
Carta 1154. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Mateus Molé.
.
Carta 1155. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
250

Mando-vos a resposta da Madame de Romilly. Rogo-vos o obséquio de dizer-me se devo enviar


vossa carta à presidente Madame de Lamoignon, embora a Madame Princesa não venha 2, e se será
conveniente convidar a Madame de Brienne, que está de volta a esta cidade.
Segue incluso um breve relato que preparei, dos pontos sobre os quais, se vos parecer oportuno,
podereis dar-vos ao trabalho de falar na assembleia. Peço-vos dizer-me em que local será realizada,
para eu comunicar à senhora de Lamoignon.
Tende a bondade de dizer-nos se devemos avisar nossas Irmãs de Serqueux que nos mandem a
moça de que nos falam. Remeto-vos também uma carta dos senhores Administradores de Gien. Que
devemos responder-lhes? Não é mais urgente fazê-lo à Madame Duquesa de Ventadour3?
Ontem também foi-se embora outra de nossas Irmãs, com seu hábito, sem dizer uma palavra; é a
de Saint-Cloud. Que significa isso ? Não seria necessário fazer-se uma reprimenda que fosse sentida por
algumas, a fim de coibir esse costume? Com efeito, a citada Irmã nos pedira uma vez para ir embora;
nós concordamos e ela permaneceu de livre vontade. Parece-me que Deus nos fala através desses
acontecimentos; não sei se para destruir a obra ou para consolidá-la. Tenha vossa bondade a caridade
de pensar nisso e dizer-me com toda a liberdade se sou eu o Jonas que deve ser lançado ao mar!
Entrego-me a Deus para tudo que lhe aprouver. De vós, senhor Padre, sou vossa muito obediente
serva e mui grata filha,

L. DE MARILLAC.

1156. [– LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Novembro de 16491].

Meu muito honrado Pai,

Sou por demais importuna, mas chegamos, definitivamente, a um ponto em que é preciso obter
recursos sem demora, ou então abandonar tudo. Ontem foi necessário empregar todo o dinheiro da
despesa daqui, cerca de 15 a 20 libras, para obter pão para as crianças de Bicêtre, e tomar ainda algum
emprestado para completarmos 4 sesteiros2. E não receberemos nada no mês, aqui. Estamos com 12 ou
13 crianças, e não há fraldas para muda. É imprescindível, suplico-vos, que a Assembleia das damas, de
amanhã, faça alguma coisa. Pode ser a decisão de pedir ajuda nas paróquias todos os domingos, nelas
colocar pequenas caixas de esmola em algum lugar bem visível, obter dos párocos e pregadores que as
recomendem e fazer na corte a coleta proposta.
Se fossem falar à Madame Princesa 3 a respeito dessas necessidades extremas, creio que ela
doaria alguma coisa,. É lamentável que as damas se sensibilizem tão pouco. Estariam pensando que
temos com que sustentar a obra, ou estariam querendo constranger-nos a abandonar tudo? Chego a
pensar que por esta razão se decidiram a não fazer absolutamente nada.

2
2. Carlota de Montmorency, Princesa de Condé.
3
3. A Duquesa de Vendadour, de nascimento Maria de la Guiche de Saint-Gérand, desposara, em 8 de fevereiro de 1645, Charles de Lévis,
Duque de Ventadour, viúvo de Suzana de Thémines de Montluc, que legara por testamento 40.000 libras a São Vicente para a fundação de
uma missão em Cauna (Landes). Depois da morte do marido (19 de maio de 1649), Maria de la Guiche buscou ânimo e consolo nas obras de
caridade. Foi uma das principais colaboradoras e melhores amigas de Luísa de Marillac. Na véspera do dia em que esta última ia entregar a
Deus sua alma, a Duquesa de Ventadour chegou. Cuidou da agonizante com toda a dedicação de uma Filha da Caridade. Passou uma parte da
noite junto dela e, depois, após um rápido repouso, voltou e permaneceu à cabeceira da venerável enferma até o último minuto. Quis, ela
mesma, segurar a vela benta (Cf. Gobillon, op. cit., pp. 178 e 181). A Duquesa de Ventadour foi eleita em 1683 presidente das Damas da
Caridade. Morreu em seu castelo de Saint-Marie-du-Mont, na Normandia, na noite de 22 para 23 de julho de 1701, com a idade de setenta e
oito anos. Graças às suas liberalidades, esta localidade teve, desde1655, seu estabelecimento de Filhas da Caridade.
.[
Carta 1156. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Ver carta 1086, nota 2.
3
3. Carlota de Montmorency, Princesa de Condé.
251

Praza a vossa caridade avisar-nos se devemos enviar algumas linhas à Assembleia ou se


concordaríeis que para lá enviássemos Madame de Schomberg4 e Madame de Verthamon?
Quanto ao mais que vos tinha a dizer, seria longo demais. De preferência fá-lo-ia amanhã, em
poucas palavras, se tiver a honra de estar convosco. Tenho grande necessidade de mui particular
assistência de Deus, vendo, em tudo que me toca, apenas miséria e aflição. Deus seja bendito. Basta dar-
vos a conhecer a necessidade que tenho, sem outra esperança de socorro e consolação a não ser de vossa
caridade, da qual a Providência quis que eu seja, meu honorabilíssimo Pai, muito obediente filha e
gratíssima serva,

L. DE MARILLAC.

Praza a vossa caridade dizer-me se o bilhete para a conferência é de fato o assunto que me
indicou, referente à queixa que vos fazia das Irmãs que pedem mudança.
Temo que vades para os campos.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

‘. – A JEAN GICQUEL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS1

5 de Dezembro de 1649.

A dificuldade que tendes em registrar o montante das despesas das missões me obriga a pedir-vos
que vos deis a Deus para aceitar qualquer espécie de ofício. Deveis tomar consciência, senhor Padre, de
que fazeis a vontade de Deus quando cumpris as ordens recebidas e persuadir-vos de que nos afastamos
dessa divina vontade, quando seguimos nossas próprias escolhas. Bastaria dizer-vos o mesmo a respeito
das cerimônias. Mas devemos acrescentar que elas são muito recomendadas nas Santas Escrituras, onde
aparecem quase emparelhadas com os mandamentos divinos, o que levou a se pensar que Deus é tanto
honrado pelas cerimônias, quando executadas em seu espírito, quanto o é pela observância de sua lei. Por
aí podeis julgar de quanta importância é o ensaio das cerimônias e se não é tentação procurar dele se
eximir. Em nome de Deus, senhor Padre, permaneçamos firmes na santa indiferença; apliquemo-nos com
igual afeição a tudo que a obediência nos determinar, quer seja agradável ou desagradável. Existimos para
Deus, por sua graça; que mais poderíamos desejar senão agradar-lhe? Se nos contradizem, não nos
devemos admirar por isto; que mérito haveria se não o formos? E quem poderia, com certeza, se isentar
das contradições? Deveríamos, então, por uma pequena contradição, desistir de fazer o bem, e um bem tal
como o de glorificar a Deus? A pessoa da qual me escreveis, que encontra algo a censurar em vossas
cerimônias, faz muito mal em agir como anda agindo; espero, porém, que não o fará mais assim. Escrevi-
lhe uma palavra a respeito, e talvez o faça reconhecer melhor sua falta, na primeira ocasião oportuna.
Enviar-vos-emos, em breve, alguém, com a graça de Deus, para sintonizar vossas cerimônias com
as mesmas que fazemos aqui, a fim de que nisso, como em tudo mais, tratemos de nos manter na
uniformidade.
Louvo a Deus pelo bem que me contam de vós, um exemplo para os daí. Meu coração se enche de
consolação por tudo.

4
4. Maria de Hautefort, mulher notável por sua grande beleza, que lhe havia granjeado na juventude as adulações da corte e os favores de
Luís XIII, casada com o Duque de Schomberg, par e Marechal da França, Conde de Nanteuil. Faleceu em 1° de agosto de 1691 ( Madame de
Hautefort por Victor Cousin, Paris, 1868, in-8°).
.
Carta 1157. – Reg. 2, p. 301.
1
1. Jean Gicquel, nascido em Miniac (Ille-et-Vilaine) em 24 de dezembro de 1617, ordenado padre na quaresma do ano 1642. Entrou na
Congregação da Missão em 5 de agosto de 1647 e fez os votos em 6 de maio de 1651. Foi superior no Seminário de Le Mans, de 1651 a
1657, diretor da Companhia das Filhas da Caridade de 1668 a 1672. Atribuem-lhe um diário muito interessante dos últimos dias de São
Vicente, diário conservado na Casa Mãe da Missão.
252

1158. – A LUÍS RIVET, SUPERIOR, EM SAINTES

8 de dezembro de 1649.

Se o Padre... me escrever, aproveitarei a oportunidade, em minha resposta, para fazê-lo perceber que ele
não nos está propiciando a satisfação que nos fez esperar, e procurarei insinuar-lhe um pouco mais de
submissão e de indiferença do que anda testemunhando. Como, porém, isto é mais ofício do Espírito
Santo do que dos homens, que podem falar mas não tocar o coração, vamos rezar a Deus por isso. E é o
que vos peço fazer, senhor Padre, para que ele o atraia com força à prática das virtudes, sobretudo da
humildade e da condescendência; vossos bons exemplos hão de contribuir também para esse fim. Sua
correção acontecerá talvez a longo prazo, em razão do ardor da mocidade e da vivacidade do seu espírito.
Paciência! esse mesmo motivo nos deve levar a suportá-lo com mansidão, na esperança de que uma idade
mais avançada lhe dissipe a fumaça da presunção e o vigor do apetite que, ordinariamente, se encontram
nas pessoas jovens.
Bem o sei, senhor Padre, quanto há a sofrer no ofício em que estais, e peço a Nosso Senhor vos
fortaleça nas dificuldades. É nestas ocasiões que adquirimos as virtudes; e onde não há sofrimento, há
pouco mérito. Gostaria que aprouvesse a Deus conceder-nos grande indiferença quanto aos ofícios. Ó
senhor Padre, como, então, estaríamos seguros de fazer sua santa vontade, nossa única pretensão, e quanta
paz e alegria experimentaríamos, a meu ver! Suplico-vos pedir-lhe instantemente esta graça para mim e
para toda a Companhia. Ofereço-lhe frequentemente vossa alma, que me é muito cara, pois é dotada de
muita bondade, e é mui preciosa a Nosso Senhor, em quem sou...

1159. – A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

10 de dezembro de 1649.

Não vos posso dar uma resposta adequada a respeito do Irmão [Doutrelet] 1, antes de saber a que
ele se decidiu e até onde podem ir suas boas intenções em relação à Companhia, se de fato ele resolveu
permanecer nela. Dir-vos-ei, entretanto, senhor Padre, que, se sua conversão for verdadeira e tão
abrangente que abrace o desígnio firme de morrer em sua vocação e nela viver segundo suas práticas, a
total submissão aos superiores, a indiferença quanto aos lugares e ofícios e, enfim, o desejo de trabalhar
incessantemente na aquisição das virtudes, se, digo, tudo isso se vos afigurar acompanhado da solidez
necessária, consinto em que o retenhais e façais com ele uma experiência durante um certo tempo. Se,
porém, ele resolve sair, nada tenho a dizer, a não ser in nomine Domini, e que importa, com sua saída,
deixar-lhe clara a questão da revogação do seu título. Contudo, se ele pretender ainda bordejar essas duas
extremidades, mercadejar com Deus e a Companhia, caminhar com uma só perna, querer fazer uma só
coisa e não a outra, em suma, criar-nos dificuldade, como tem feito ultimamente, creio que é preciso não
pensar duas vezes. Tratai, com mansidão, de levá-lo à decisão de se retirar e obter dele, se puderdes, uma
declaração, por escrito, de que, o título lhe tendo sido dado apenas para lhe possibilitar o meio de
trabalhar na Companhia, não intenta servir-se dele, nem invocá-lo para nada, em razão de seu afastamento
da Companhia. Caso não o queira fazer, não deixeis de despachá-lo, por obséquio. Na ocasião, notificai-o
da exoneração que lhe fizemos do citado título e comunicai a nossa decisão a todos aqueles aos quais
pudesse dirigir-se, solicitando a admissão às ordens, a fim de impedir que seja a elas admitido. É também
conveniente, ao mesmo tempo, redigir uma ata do seu mau procedimento, assinalando as ações mais
escandalosas por ele praticadas e o estado atual em que se encontra. Pedi assinatura de alguns dos vossos
padres que observaram seus desregramentos. Vereis como será preciso fazer esta ata. Informai-vos a
respeito. Se não puder fazê-lo hoje, enviar-vos-ei, na primeira oportunidade, a procuração da Companhia,
para fazerdes a referida revogação.
.
Carta 1158. – Reg. 2, p. 108.
.
Carta 1159. – Reg. 2, p. 268.
1
1. Ver a carta 1068.
253

1160.[ – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Dezembro de 16491].

Senhor Padre,

Junto segue uma carta da senhora de Villenant, pela qual tomareis conhecimento do que soube a
respeito do assunto2. O que me preocupa é a dificuldade que, após a morte do marido, as viúvas
encontram para se desfazer do ofício que era dele; o dinheiro que precisamos conseguir, a fim de obter a
transmissão e pagar as taxas dos benefícios eventuais, ou a dificuldade para conseguir-lhe a doação,
como me disseram que poderia ser feito; e mais ainda, a bondosa senhorita que negocia o assunto me
disse, hoje, que o que tornava urgente a decisão é que a pessoa que deveria tratar dele conosco foi à sua
terra natal, e seria ótimo se, a seu regresso, o caso estivesse em outras mãos. Isso me faz temer um
rompimento conosco e, se acontecer, não saberia mais o que falar.
Todas as dificuldades acima se devem à pouca experiência de meu filho, que precisa de incentivo
para trabalhar com conhecimento de causa e de certo encaminhamento no sentido de agir por si mesmo.
Possui, como eu, a mente preguiçosa. Para atuar, precisamos ser forçados, seja por negócios
necessários, seja por nossas inclinações que, por repentinos impulsos, nos obrigam a empreender coisas
bastante difíceis.
O senhor de Marillac3, lendo as cláusulas4, percebeu logo que deixavam algo a desejar.
Entretanto, não me aconselhou a desistir, ainda quando não me concedessem o que me aconselhou a
pedir, porque vê nesse negócio grandes vantagens para nós.
Se vossa caridade vier por esses lados sábado de manhã, lhe pediria, muito humildemente, que me
avisasse, porque nesse dia deverão chegar o tio5 e a jovem6, e penso que é preciso deixar tudo
combinado. Vosso apreciado e prudente conselho há de me ajudar muito a tudo resolver. Humildemente
vo-los suplico, da parte de Nosso Senhor, no qual sou, vossa humilde filha e serva agradecida,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1161. A SIMON LE GRAS, BISPO DE SOISSONS

Paris, 15 de dezembro de 1649.

Senhor Bispo,

.[
Carta 1160. C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Na véspera do dia em que devia realizar-se o casamento de Michel Le Gras, sua mãe procurava garantir-lhe uma situação honrosa. O
projeto de que ela fala nesta carta não vingou. Foi preciso arranjar outra coisa. René-Michel de la Rochemaillet, tio daquela que Michel devia
desposar, consentiu em ceder ao jovem o ofício de conselheiro na Casa da Moeda.
3
3. Michel de Marillac, conselheiro no Parlamento.
4
4. Os artigos do contrato de casamento.
5
5. René-Michel de la Rochemaillet.
6
6. Senhorita Gabrielle Le Clerc, filha do senhor de Chennevières e da falecida senhora Musset de la Rochemaillet.
.
Carta 1161. – Bibl. de Santa Genoveva, ms. 3251, f° 323, cópia. A ortografia da cópia mostra que o original era inteiramente da mão do
Santo.
254

Recebi vossa carta e vossas ordens como se me tivessem vindo de Nosso Senhor. Já entrara em
vossos sentimentos, senhor Bispo, no que diz respeito à Madame Abadessa de Biaches 1, antes de
conhecê-los, e me servi aproximadamente das mesmas razões que me destes a honra de escrever-me, para
com os que me falaram em favor dela e para com ela mesma. A finalidade era levá-la a desistir de Saint-
Jean-des-Bois2 e a resolver-se a aceitar Argensolles 3. Ela acabou concordando, senhor Bispo, com a
condição de que Madame d’Argensolles e suas religiosas dessem o seu consentimento. Disse-lhe que
trabalharia neste sentido e, efetivamente, apresentei logo após a proposta ao Senhor de Montmaur,
cunhado da referida Madame d’Argensolles4, o qual instruí pormenorizadamente sobre o mérito da
questão, a fim de que ele se entendesse com ela, como me deu esperança de fazê-lo, com toda boa
vontade. Ao depois, disse-me ter trocado ideia sobre o caso com uma religiosa da Ordem que conduz os
negócios da citada Madame, e que ele pediu fosse a Saint-Germain conversar com ele. Estamos
aguardando a resposta.
Entre as dificuldades que o Senhor de Montmaur previu que as religiosas de Argensolles nos
farão, a principal é o motivo que tem de temer que, entregando sua Casa a religiosas da mesma Ordem,
não queiram elas algum dia passar de inquilinas a proprietárias, e assim a sua propriedade lhes seja
contestada por aquelas que a ela não têm direito algum.
A isso respondi, senhor Bispo, que será realizado um tratado tão autêntico que jamais acontecerá
tal pretensão. Ele será homologado no Parlamento e em outros lugares onde houver necessidade. Nele
deverão declarar que entram nesse mosteiro, exclusivamente, por mera hospitalidade, e se obrigarão a sair
quando aprouver a Deus conceder-nos a paz.
Dar-me-ei a honra, senhor Bispo, de vos informar sobre o desdobramento dessa negociação, que é
para mim ocasião de bênção especial, pois me enseja a oportunidade de nos pedir a vossa, como faço,
senhor Bispo, muito humildemente prostrado em espírito aos vossos pés. Suplico-vos acreditar que não há
padre em vossa diocese que nos preste obediência com mais submissão e alegria do que como farei,
quando vos aprouver me proporcionar as ocasiões. E é o que espero, sendo, no amor de Nosso Senhor,
senhor Bispo, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

1162. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM RICHELIEU

15 de dezembro de 1649

Li a carta que escrevestes ao Padre Lambert. Ela me dá oportunidade de vos dizer que não nos
devemos imiscuir nos negócios do senhor Duque 1: 1° porque isso instiga ciúme aos seus oficiais daí; 2°
seria tornar-nos importunos para com a Madame 2, que ficaria muito edificada, se deixarmos tudo com ela;
3° vosso predecessor3 tendo dado motivo para pensarem que ele se valia por demais do favor da Madame,
atraiu sobre si e sobre a comunidade a malevolência do povo e a inveja dos maiorais da cidade; 4° nossa
profissão deve levar-nos a nos abster de intermediar negócio secular algum. Além disso, se não estou
enganado, o procurador de que falais veio estar comigo, quando me encontrava em Richelieu e desejou de
mim a mesma assistência. Soube, porém, que havia razões particulares para não aquiescer ao seu pedido.
Disso também não falais, senhor Padre, senão como simples proposta, e unicamente para não desagradar
a ele com uma recusa de escrever por ele. Quanto a mim, não vos digo tudo isso tanto por causa dele,
1
1. Blanche d’Estourmel. Governou o mosteiro de Biaches, na diocese de Noyon, de 1614 a 1664.
2
2. No Oise, perto de Copiègne. Saint-Jean-des-Bois e Argensolles eram da diocese de Soissons.
3
3. Argensolles está a uma légua de Espernay. O mosteiro tinha então á sua frente Claude de Buade (1630-1681). Ele era, como o de Biaches,
da Ordem dos Cistercienses.
4
4. Referendário.
.
Carta 1162. – Reg. 2, p. 178.
1
1. Armand-Jean du Plessis, duque de Richelieu, sobrinho da Duquesa de Aiguillon.
2
2. A Duquesa de Aiguillon.
3
3. Dênis Gautier.
255

quanto por causa de outras ocasiões que se poderão apresentar. Com a novidade de outra moradia e de
novo ofício, temos sempre necessidade de algumas advertências.
Dir-vos-ei ainda, senhor Padre, com relação à alimentação do pregador, que não é tempo de
queixar-se a respeito, e muito menos de rejeitá-la, jogando-a por conta dos habitantes. Deveríamos temer
que se confirmem na opinião que têm de que somos pessoas avarentas e nos censurem de que a casa tem
boa renda e que, recebendo outras pessoas para fazerem gratuitamente o retiro, podemos muito bem fazer
a caridade para com um pobre capuchinho. Veremos com o tempo se será possível providenciar algum
fundo no patrimônio, para isso e outras despesas semelhantes. Entrementes, peço-vos de novo deixar as
coisas como estão, sem nada mudar ou inovar, e isso não sem motivo.
Servirá isto como resposta ao pensamento que tivestes de fazer um documento relativo aos bens
senhoriais e à medição das terras, etc. Não é que não seja preciso chegar até lá, mas não em qualquer
tempo. Importa-nos, antes, obter a amortização do proprietário.

1163. D
– ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 15 de dezembro de 1649.

Senhor Padre,

ei-vos mil graças pela solicitude com que tivestes a bondade de falar ao senhor Chanceler e por lhe ter
tão bem exposto as razões que podem impeli-lo a me conceder a graça que lhe peço. Supliquei-vos
igualmente que continueis com o mesmo empenho junto à Rainha. Após tudo isso, considero minha
evocação tão garantida como se a tivesse entre minhas mãos, porque bastará para isto uma ordem de
Sua Majestade ao senhor Chanceler. Com efeito, jamais me recusou coisa alguma que lhe tenha pedido,
aliás sempre em favor dos outros. Como agora poderia eu duvidar que ela me recuse a graça que lhe
peço em favor de minha Esposa1, após ter feito e sofrido tudo, como o fiz, para o serviço do Rei e de Sua
Majestade. Posso, de fato com toda verdade dizer que, desde o início dessa perturbação até o presente,
não deixei passar nenhuma ocasião sem tê-la conduzido e empregado neste sentido. Nem mesmo esperei
que as oportunidades se apresentassem, mas as procurei com empenho e me opus firme e constantemente
a tudo de que tomei conhecimento como contrário ao serviço de Suas Majestades. Depois de tudo,
encontrando-me nessa situação extrema em que me vejo, não poderia crer que me recusassem sua
proteção.
Recebereis das mãos dos deputados uma cópia de nossa conferência, que ainda não enviei a
nenhum dos senhores Prelados que a ela estiveram presentes, a não ser o senhor Bispo de Perigueux,
pois não tive tempo de revê-la e examiná-la. Fá-lo-ei depois do retiro espiritual que estou fazendo
atualmente. Acrescentei, após vo-la ter enviado, ao início do artigo da visita, as palavras que vereis no
bilhete incluso nesta, que julguei conveniente inserir no texto, como conformes aos Concílios e aos santos
decretos. Vereis de que modo foi resolvido que se criassem seminários e que aqueles que não o pudessem
fazer enviassem os eclesiásticos de sua diocese ao seminário mais próximo. E quanto à direção deles,
sempre entendemos que fosse entregue aos vossos. Entramos igualmente em acordo sobre a necessidade
de se fundar um colégio ou uma casa para receber as pessoas que se dedicarão ao serviço de Deus, a fim
de serem formadas na piedade e no espírito da Igreja, durante seus estudos. E foi então que disse que era
preciso confiar-lhes a direção aos vossos, e que apresentei várias razões para isso. Desse modo, que
fosse a proposta aceita por toda a Companhia, etc.

ALAIN DE SOLMINIHAC,
Bispo de Cahors.

. D
Carta 1163. – Arquivo da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. A Igreja particular de Cahors.
256

1164. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Dezembro de 16491.

Creio que vossa


caridade se recordará de que lhe falei desta jovem de Saint-Cloud, para quem é dirigida a carta anexa
que vos rogo tenhais, por obséquio, a bondade de ler. A divina Providência não permitiu que encontrasse
oportunidade de vender suas heranças. Ela contudo as deixou arrendadas à sua irmã, pessoa confiável
que vai passar-lhe uma renda anual de 30 escudos. Nossas Irmãs a estimam e não veem inconveniente
em recebê-la, se vossa caridade estiver de acordo.
Gostaríamos de saber se os maridos das amas de leite poderão receber algum dinheiro nestas
festas, e se as crianças que nos trazem ainda mamando ao peito, por falta de pagamento, não poderiam
ser colocadas com outra ama, valendo-nos do dinheiro doado para os novos expostos. Faremos todo o
possível para que os levem de volta, se conseguirmos fazer-lhes algum pagamento. Algumas delas,
contudo, acabaram ficando conosco.
Precisamos muito da inspiração de Deus para o caso do meu filho 2. Creio que ele terá a honra de
falar-vos pessoalmente, pois tomou a liberdade de ir passar esta noite em vossa casa, com receio de
alguma ocorrência desagradável. Ele vos relatará os aborrecidos incidentes deste assunto que, segundo
me parece, sempre submeteu à vontade de Deus, na qual tenho a honra de ser, senhor Padre, vossa muito
obediente e muito grata filha e serva,

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente

1165. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

[Dezembro de 16491].

Suplico muito humildemente a vossa caridade recomendar a Deus nosso caso 2. Encontrei as
senhoras de Marillac3 bem dispostas a nos atender. Mas a religiosa acha conveniente que eu vá estar
com a senhora d’Atri4, para lembrar-lhe os serviços que o falecido Senhor Le Gras prestou à falecida
Madame sua mãe e, assim, tentar que ela empreenda alguma diligência em favor do meu filho, como está
fazendo o senhor Conde de Maure5. Para isso, peço-vos a permissão de ir a Port-Royal com a Madame
sua esposa, que se prontifique a levar-me até lá amanhã ou depois.
Receio bastante que Madame de Herse tenha afastado as damas de irem à Assembleia, por causa
da proposta que lhes fez de levarem dinheiro. Penso, senhor Padre, ser preciso que ela explique que sua
intenção não era de que esse dinheiro saísse da própria bolsa, nem de obrigar ninguém a fazê-lo.
Quanto mais penso nas nossas dívidas, mais temo que tudo acabará ficando em nossos braços. As
amas começam a nos ameaçar muito e a trazer de volta as crianças. As dívidas se multiplicarão a tal

.
Carta 1164. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Ver carta 1160, nota 2.
.
Carta 1165. – Dossiê da Missão, cópia tirada do documento em posse do senhor Juliano Durand, 263, Bulevar Saint-Germain, Paris.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducounau.
2
2. O emprego que Luísa de Marillac desejava para o filho.
3
3. Jeanne Potier, esposa de Michel de Marillac, e Maria de Creil, viúva de Renê de Marillac, então religiosa do Carmelo.
4
4. Maria Angélica d’Atri, filha de Genoveva d’Attichy. O marido de Luísa de Marillac fizera muito pelos d’Attichy, depois da morte dos
seus pais. “Gastara tudo, escreve a fundadora, seu tempo e sua vida, no cuidado dos negócios de” sua “casa, esquecendo inteiramente os seus
próprios negócios”.
5
5. Esposo de Ana d’Attichy, tia da senhora d’Atri.
257

ponto que não haverá esperança de poder pagá-las. E, afinal, o descrédito da Companhia correrá pelos
campos mais do que moeda falsa.
Estou pensando nessa pobre mulher grávida, Creio que poderia ser recebida agora. Se
concordardes que fale a respeito, de vossa parte, com a Reverenda Madre Priora 6 e com a Madame Le
Vacher, fá-lo-ei de muito bom grado.
Não tive tempo de estar com o senhor Desbordes7, como me propusera. O senhor de Marillac me
forneceu os esclarecimentos do que é mais urgente. Se esse problema não fosse dirigido pela
Providência Divina, temê-lo-ia muito.
Conheceis minha necessidade de obter de nosso bom Deus os meios de atrair a graça para o bom
êxito do negócio, e, também, que ele quer ainda, pelo que me parece, que eu remeta minha vontade e meu
pequeno poder de agir entre as mãos de vossa caridade, para tudo oferecer a ele. E eu o faço, muito
particularmente, neste assunto como em qualquer outro, pelo cumprimento dos seus santos desígnios
sobre aquela que é, por sua graça, senhor Padre, vossa muito obediente serva e mui grata filha,

LUÍSA DE MARILLAC.

1166. – A LUÍSA DE MARILLAC

São Lázaro, quinta-feira, onze horas [Dezembro de 16491].

Senhora,

Tendes razão em recear alguma coisa da natureza do dote em que consiste este ofício. O que me
leva a dizer-vos isto é o fato de ele estar vago, há muito tempo, talvez por não terem encontrado
negociante que o quisesse comprar. Provavelmente o deviam vender, pois pertence a muitos. Não sei se
não é daqueles recém-criados, que pouca gente se interessa em comprar. É conveniente procurar
informação a respeito. A senhora Lunis tem um sobrinho do seu falecido marido que é da Casa da Moeda
e cujo nome é senhor Cocquerel. Mediante a hábil intermediação da senhora Lunis, poderá ele dizer-vos
de que natureza são tais ofícios, o que valem em termos de preço, quantas garantias têm, se recebem
pagamento, se não há penhora por dívidas ou oposição ao selo.
A obra das crianças está nas mãos de Nosso Senhor. Veremos sexta-feira o efeito da proposta da
Madame de Herse2. Quanto às injúrias que a Companhia poderá vir a sofrer, como a razão é por estar
fazendo o bem, só poderá ficar muito feliz.
Ficarei muito feliz se falardes com as bondosas religiosas do Hospital Geral em favor dessa pobre
criatura, que ainda não se encontra na cidade, e nela não estará senão dentro de dez ou doze dias.
Fareis bem em ir estar com a senhora d’Atri.
Rogo a Nosso Senhor abençoe vossos trabalhos e vosso negócio. Sou vosso servo,
V. D.

Destinatário: A senhora Le Gras.

1167. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM RICHELIEU

6
6. A priora das Augustinas do Hospital Geral.
7
7. Visconde de Soudé e auditor de contas.
.
Carta 1166. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Esta carta responde à precedente.
2
2. Segundo Monsenhor Baunard (op. cit.p. 399) referir-se-ia ao discurso feito nessa Assembléia a comovedora peroração tão frequente e
justamente citada como modelo de eloquência “Eis pois, minhas senhoras, a compaixão e a caridade, etc”
.
Carta 1167. – Reg.2, pp. 302, 178. O segundo fragmento começa nas palavras: Não haveria meio, senhor Padre, de devolver ao Padre
Cuissot. No original, precederia ele ou viria ele depois do fragmento que colocamos aqui em primeiro lugar? Não saberíamos dizê-lo.
258

18 de dezembro de 1649.

Pensava que nosso Irmão Admirault 1 se ateria ao que escrevi ao Padre Benoït 2 para lhe dizer, a
saber, que temos como prática o conselho do Evangelho de não retornar à casa de nossos pais, depois de
as ter deixado para seguir Nosso Senhor. Sabeis o que Jesus disse a esse respeito e como dissuadia seus
discípulos de irem à sua terra. Julgava que havia certos inconvenientes para eles, e sempre os notamos
para os nossos, em tais ocasiões. Se me disserdes, senhor Padre, por que então vos enviamos à vossa casa,
responder-vos-ei que foi porque não no-lo pedíeis. Com efeito, fostes lá apenas por obediência. E depois,
há grande diferença entre vós e um jovem. Sois dos antigos, e, por assim dizer, confirmado na
Companhia. Ele, ao contrário, é um frágil iniciante. Rogo-vos, portanto, dissuadi-lo dessa visita e tirar dos
seus pais a esperança de obtê-la.
Não haveria meio, senhor Padre, de devolver ao Padre Cuissot3 o Irmão que ele vos emprestou? A
palavra emprestar não obriga a uma devolução? E se vós lho prometestes, não estaríeis duplamente
obrigado a cumpri-lo? Não vale como escusa dizer que deixastes com ele Robin4, pois que ele não cessa
de reclamar por Bernardo5. A confiança deve ser mantida entre nós. Por mais necessidade que a Casa de
Richelieu tenha deste Irmão, é sempre verdade que ele pertence à Casa de Cahors, que, aliás, tem muito
trabalho para ele. Sabeis que há cerca de 40 pessoas lá e que só têm três ou quatro Irmãos, ao passo que
tendes ao menos cinco. Se precisais de mais, contratai um empregado e devolvei este Irmão; e vos suplico
fazê-lo quanto antes. A boa ordem exige que aos Irmãos, tanto quanto aos padres, não seja permitido
deixar uma Casa para ir para a outra, nem permanecer nessa outra por escolha própria e nem por escolha
dos superiores particulares, se o Geral não o autorizou. É o que escrevi ultimamente com relação a
Cahors, a Agen e a La Rose, onde surgiram turbulências com a mudança dos Irmãos.

1168. – LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

20 de dezembro de [16491].

Senhor Padre,

Garantiram-me que o cargo público pertence a quem o exerce e ninguém poderia adquiri-lo sem
a sua exoneração.
Nossa questão continua. Encontrei, isenta de paixão, a pessoa de que vos falei ontem. Ela fez esta
manhã, e bem, o que devia fazer. Suplico muito humildemente a vossa caridade continue a recomendá-la
a Deus.
A senhora Villenant vos suplica, muito humildemente, falar convosco antes de quinta-feira; para
isto, senhor Padre, apraza-vos dizer-lhe o lugar em que se dará a honra de ir encontrar-vos. Tende a
bondade de me comunicá-lo, se for possível, pela Irmã portadora da presente. É assunto urgente e de
importância para a glória de Deus.
Fiquei muito pesarosa por não ter passado na casa do Padre Desbordes; o cocheiro se equivocou
e não soube o caminho.

1
1. Cláudio Admitault, nascido em Chinon, entrou na Congregação da Missão em 20 de setembro de 1648, com a idade de 16 anos. Fez os
votos em 1651 e foi ordenado padre em dezembro de 1656 e colocado no seminário de Agen. Foi superior de Montauban de 1665 a 1675 e
de 1686 a 1690, do seminário de Agen 1690 a 1694.
2
2. Benoît Bécu.
3
3. Superior do Seminário de Cahors.
4
4. Jacques Robin, nascido em Mortiers (Charente-Inférieure), entrou na Congregação da Missão em 8 de março de 1644. Fez os votos em 7
de setembro de 1648.
5
5. Bernardo Gazet, nascido em Sainte-Livrade (Lot-et-Garonne), foi recebido na Congregação da Missão em La Rose, em 26 de fevereiro na
Congregação da Missão em La Rose, em 26 de fevereiro de 1647, com a idade de vinte e dois anos.
.–
Carta 1168. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
259

Segue o esclarecimento da dúvida que tínhamos; vossa caridade terá a bondade de impedir que
ele se extravie, e me dará sempre a honra de me crer, senhor Padre, vossa muito obediente e mui grata
filha e serva,

L. DE MARILLAC.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente, Superior Geral dos veneráveis padres da Missão.

1169. – A ESTÊVÃO BLATIRON, SUPERIOR, EM GÊNOVA

Último dia do ano de 1649.

Tinha eu previsto que vossa viagem a Roma se faria a contra tempo, se a empreendêsseis na
presente conjuntura de vossos negócios. Cheguei a escrever-vos que a adiásseis, se julgásseis
conveniente. Vossa comunidade teve razão, também, ao desejá-lo. Mas ela procedeu mal quanto ao modo
de vos reter: 1° porque deve acatar a conduta do superior e as ordens do Geral, 2° ela não se dirigiu a mim
para me expor os inconvenientes de vosso afastamento; 3° porque, para impedi-lo, recorreu a meios
exteriores, tendo implorado ajuda dos que não são da Congregação; com efeito, embora devamos
obediência aos prelados quanto aos nossos ministérios para com o próximo, a direção interior pertence,
contudo, ao superior e aos oficiais da Companhia; 4° numa comunidade só se veem as razões particulares
que lhe dizem respeito; nós consideramos não somente essas, mas as razões gerais pelas quais se devem
pautar as coisas, e tais razões, uma vez desconhecidas pelos particulares, os impedem de colocar
empecilho ao que não é de sua alçada. Enfim, senhor Padre, a Companhia caiu, em seu nascedouro, na
desordem em que outras só vieram a se encontrar depois de vários séculos. E o caminho da divisão fica
aberto, quando os súbditos desaprovam o que fazem os superiores. Quero crer que os vossos não
refletiram nisso, e, portanto, os escuso. Não deixeis, contudo, de comunicar ao Visitador, que bem logo
chegará a vossa Casa, o que acabo de vos escrever, a fim de que ele converse com todos com tão bons
modos que não caiam mais em tal falta.
Dizeis-me que há um vigilante, entre vós, que observa e relata o que se passa. Peço-vos dizer-me
se é um francês e seu nome veladamente. Sei que levais todos uma vida em que não somente nada há a
censurar, mas que é repleta de edificação. Entretanto, confesso que é bastante aborrecido serem assim
censurados, porque os espíritos dados a isso não julgam jamais das coisas conforme elas são, mas
conforme eles próprios são.

1170. – . – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 5 de janeiro de 1650.

Senhor Padre,

Agradeço-vos muito humildemente pela oferta que me fazeis de vossa assistência, tanto na
questão de Chancelade1 quanto na de nossa evocação2. A confiança que tive de que faríeis para mim esse
favor, me fez servir-me dela, como faço, para convosco. E como não tenho menos afeição por vosso
serviço e vossa dedicada Congregação do que pelos meus próprios negócios, não faço dificuldade em
recorrer a vós, ao se apresentarem as oportunidades. Se o senhor Chanceler recusar-se a conceder-me o
que lhe peço, e a Rainha não mandá-lo atender-me, muitos espíritos desta região se esfriarão no serviço
.
Carta 1169. – Reg. 2, p. 264.
.–
Carta 1170. – Arquivos da diocese de Cahors, caderno, cópia tirada do original.
1
1. Conferir C. 977, nota 3.
2
2. Termo jurídico: transferência de uma causa judicial de um tribunal para outro.
260

ao Rei, quando vierem a sabê-lo. Com efeito, se depois de me ter exposto, como fiz, vierem a abandonar-
me, que pensarão os outros sobre o que virão a fazer com eles. Aguardaremos os acontecimentos.
A aprovação que dais à nossa Conferência me levará a maior apreço por ela. Nela se resolveram
muitas outras coisas que não foram relatadas por escrito. Entre outras, há uma que a vós concerne e que
talvez acrescentarei, se julgardes conveniente; trata-se de insistir com nosso Santo Padre, no sentido de
que não dê mais rescritos de promovendo a quocunque epíscopo (sobre a promoção às ordens por
qualquer bispo), sobre as virtudes do Ordinário, nem rescritos para ordenações extra tempora (fora dos
tempos litúrgicos adequados). O senhor Bispo de Périgueux encarregou-se de escrever a respeito, da
parte da Assembleia, ao senhor Cardeal Datário, ao qual eu já tinha escrito de antemão, comunicando-
lhe os grandes males que isso causa em nossas dioceses e que é a ruína de nossos seminários, uma vez
que são instituídos precisamente para provar a vocação dos eclesiásticos, o que é tão recomendado pelos
sagrados cânones. Todos os prelados do reino deveriam juntar-se a nós para esse fim.
Estão em batalha todos os dias em Bordéus3, e a desolação é tão grande naquela região que
chega a ser inacreditável.
Jamais me queixei do Revdo. Padre Faure, dominicano, por ter-se recusado pregar em nosso
púlpito. Nem teria tido como fazê-lo, pois jamais tinha falado com ele, nem tinha estado com ele, nem lhe
tinha escrito. Queixei-me do seu Provincial, ao qual prometera nosso púlpito e que me garantira que o
Revdo. Padre Faure viria pregar.
Não é o vigário de Puy-l’Evêque 4 que solicita entrar na vossa Companhia, mas um outro que
serve uma paróquia anexa, nativo do lugar, cujos espíritos são bem diferentes dos de Gourgon. O
candidato é brando e virtuoso, e estudou teologia. Tem o defeito de só enxergar com um olho, mas não
tem deformidade. Obteve, entretanto, um rescrito de Roma para conseguir a dispensa, pois se trata do
olho canônico. E eu lhe conferi as ordens. O senhor Padre Cuissot me disse que ele não se dirigira a ele
próprio para manifestar-lhe sua intenção, mas ao Padre Water. Vou falar com o Padre Cuissot ou
mandar-lhe um recado para que vá estar com o referido vigário, a fim de examinar-lhe a vocação e vos
comunicar o juízo que fez, para saber se quereis que vo-lo enviemos, o que faremos de todo coração,
desejando testemunhar-vos, nesta como em outras ocasiões que se apresentarem para vos servir, que sou,
etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors,

1171. – A MARCOS COGLÉE, SUPERIOR, EM SEDAN

7 de janeiro de 1650.

Sobre o embate havido com os Senhores da Secretaria de Sedan, que querem dispor da receita da
Confraria do Rosário, será bom que em semelhantes rivalidades públicas que disserem respeito à
Companhia, vós nos aviseis logo do caso. Entrementes, fareis bem em vos ajustar ao desejo desses
Senhores, com relação a essa receita, para acalmá-los e vos manter em bom entendimento com eles. Com
efeito, estais vendo que estão decididos a não permitir que essa administração permaneça, de modo tão
absoluto, com o senhor Pároco, que delas não venham a tomar conhecimento. Ademais, o que solicitam é
justo, considerando o regulamento. O próprio público, que contribui com essas esmolas, deve desejá-lo. O
religioso que erigiu a Confraria não pôde derrogar por suas determinações, nem pela prática dos outros
lugares em que está estabelecida, as regras da paróquia, a não ser que os tesoureiros, de então, da fabrica
da igreja, tenham dado seu consentimento,

3
3. Ver Bordeaux sous la Fronde (1650), d’après les Mémoires de Lenet, por Antônio Saintmarc, 1856, in-18.
4
4. Centro administrativo de cantão, nos arredores de Cahors.
.
Carta 1171. – Reg. 2, p. 144.
261

1172. – A JACQUES CHIROYE, SUPERIOR, EM LUÇON

9 de janeiro de 1650.

Disseram-me que la Motte está bem longe de valer cinquenta escudos de renda, como me
escrevestes. Mas ainda que valesse mais, seria isso motivo para fazerdes dupla economia, a da despesa
necessária com as compras e a com os arranjos que convém fazer ? Já vos escrevi meu pensamento.
Receio muito que o que o senhor Bispo1 faz, pelo que dizeis, o faça induzido por vós, aberta ou
tacitamente, antes que por iniciativa própria. Sendo assim, peço-vos desistir da execução desse projeto
que poderia ser mais oneroso que vantajoso. E em nome de Deus, senhor Padre, tenhamos mais empenho
em dilatar o império de Jesus Cristo que nosso patrimônio. Façamos seus negócios e ele fará os nossos.
Honremos-lhe a pobreza, ao menos com nossa moderação, se não o fazemos com inteira imitação.

1173. – A LUÍS SERRE, PADRE DA MISSÃO, EM SAINT-MÉEN

11 de janeiro de 1650.

Trouxestes-me grande alegria com as notícias do estado de vossa Casa. Mas o que me dizeis do
Padre Thibault me aflige: ele expõe demais a sua saúde. Não estava passando bem e assim mesmo foi
trabalhar; temo que acabe sucumbindo. Em nome de Deus, senhor Padre, zelai por ele, e fazei com que
descanse e se poupe melhor. Prestareis serviço à Companhia e a grande número de pessoas que dele o
receberão em ordem a sua salvação. Faço-vos o mesmo pedido em relação aos outros que precisam ter
moderação.

1174. – A UM BISPO1

[Entre 1643 e 16522].

Quem não reconhecerá que se trata de evidente bênção de Deus sobre a diocese de... ter-lhe o
Senhor dado um bispo que leva a paz para as almas em lugares onde, desde cem anos, não se ouvia falar
nem de bispos, nem de visitas pastorais. Depois disto, senhor Bispo, seria eu capaz de conceber maior
estima de vossa pessoa ou de vos tributar mais profunda veneração e respeito? Não devo eu dizer que sois
verdadeiramente um bispo dado por Deus, um prelado agraciado, um homem todo apostólico que, por
amor a Jesus Cristo, se deu a conhecer aos povos mais desolados? Que seu Santo nome seja bendito para
sempre e vos conserve por longos anos, para ser, enfim, recompensado por uma eternidade de glória e
reconhecido no céu entre numerosa multidão de almas bem-aventuradas, que terão entrado nesse lugar de
glória por vosso meio e que lá vos reconhecerão como seu segundo salvador, depois de Jesus Cristo!

1175. – A MADRE ANA MARIA BOLLAIN. – A MADRE ANA MARIA BOLLAIN1, SUPERIORA,
.–
Carta 1172. – Reg. 2, p. 160.
1
1. Pierre Nivelle, Bispo de Luçon.
.
Carta 1173. – Reg. 2, p. 173.
.
Carta 1174. – Abelly op. cit., l. II, cap XI, sec IV, p. 138.
1
1. Abelly diz que a carta é dirigida a um prelado de grande merecimento nomeado por influência de São Vicente, ao qual informa sobre os
primeiros frutos dos seus trabalhos.
2
2. Tempo durante o qual São Vicente foi membro do Conselho de Consciência.
. – A MADRE ANA MARIA BOLLAIN
Carta 1175. – Reg. 1, f° 62 v°, cópia tirada do original autógrafo.
1
1. Ana Maria Bollain nascera em 30 de setembro de 1599. Quando se apresentou a São Francisco de Sales, então em Paris, para que fosse
recebida no primeiro mosteiro da Visitação, este lhe perguntou o nome. “Bollain”, respondeu ela. “Minha filha, lhe disse o Santo, o “lin” (em
262

NO CONVENTO DA MADALENA

Minha cara Madre,

A graça de N. S. esteja sempre convosco!


O que me indagais a respeito desse eclesiástico como possível diretor da Casa 2 merece atenção a
duas dificuldades: uma é relativa à sua autoridade, que ele desejará mais ampla do que convém, ficando
como superior nato; talvez seus sucessores venham a pretender o mesmo direito; a segunda, que coloco
como última, é sua pessoa, um pouco frágil e enferma, que fará dificuldade em assumir primeiro vossa
Casa. É melhor observar como a coisa vai caminhar nesse início.
Disse ao nosso Irmão encarregado dos negócios que vos devolva hoje os papéis que me enviastes,
que são apenas cópias. Vós me sugeristes a intermediação de árbitros e que assumiríeis o senhor Deffita 3
como o vosso. Comuniquei-vos que de bom grado nos ateremos ao seu juízo. Dos que abordei, somente o
senhor Pepin estima que não podíamos ter feito o arrendamento de Verneuil. O senhor Blavet disse em
sua presença que o podíamos. E todos com os quais falei disto depois, e que são entendidos em matéria de
coches, julgam que não é justo que vossos coches de Dreux impeçam o estabelecimento dos de Verneuil,
nem de Lisieux, Bayeux, Coutances e Valognes, todos do outro lado, onde os proprietários dos coches de
Rouen, nos quais tendes parte, têm direito de colocar outros, até em toda Normandia. Julgai vós mesma,
minha cara Madre, que razão pode ter Dreux para excluir todas essas outras cidades, que não o possuem,
de adquiri-los para sua comodidade, quando quiserem. E depois, há numerosos exemplos disso: os coches
de Abbeville e de Calais não deixam de passar pela rota de Beauvais, onde já há alguns estabelecidos.
Sim, dirão, mas os proprietários os terão em menor número, de sua herdade. Mesmo que assim fosse,
vosso interesse particular deveria causar prejuízo às outras cidades do lado de lá, já que o estabelecimento
dos coches visa a comodidade pública? Há uma coisa que não é justa, e é que os outros coches peguem
pessoas em Dreux. Se isso acontecer, deve ser permitido ao coche de Dreux, deter os outros coches, se
assim o fizessem.
Eis, minha cara Madre, meus miúdos pensamentos, que vos transmito com toda simplicidade.
Tiram-me a pena da mão e me constrangem a terminar. Se, porventura, o senhor Deffita pensar de outro
modo, estarei pronto a me submeter ao seu juízo, eu, que sou, no amor de N.S. vosso muito humilde
servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M issão.

1176. – AOS SUPERIORES DAS CASAS DA COMPANHIA1

15 de janeiro de 1650.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!

francês “lain” e “lin” se pronunciam praticamente do mesmo modo – N. do T.) é um pequeno grão que se multiplica extremamente. Deveis
ser assim na terra da santa comunidade religiosa onde lhe prometo um lugar”. Seu espírito era tão maduro, desde o noviciado, que Santa
Chantal pautou de acordo com seus pareceres diversos artigos do costumário. Em 1629, foi, na qualidade de superiora, para o Convento de
Santa Madalena, que deixou em 1633, chamada para o primeiro mosteiro, pelos sufrágios das Irmãs, que a queriam à sua frente. Três anos
depois, retomou seu posto no Convento de Santa Madalena, do qual de novo se afastou, em 1664, para governar a comunidade de Chaillot,
durante seis anos. O primeiro mosteiro tornou a requisitá-la em 1673. Nele morreu em 15 de janeiro de 1683, depois de ter servido a Deus no
claustro durante sessenta e três anos. Santa Chantal dizia dela que era “uma alma muito fervorosa e virtuosa, que ia direto a Deus” ( Année
Sainte, t. I pp. 360-375).
2
2. O Convento da Madalena.
3
3. Advogado de Paris e amigo do Santo.
.
Carta 1176. – Reg. 2, p. 302. Existem outras cópias antigas e concordes, dos quais uma nos arquivos departamentais de Vaucluse, D 296.
1
1. Conforme Collet, op. cit., t. II, p. 295.
263

Sabeis que todas as coisas deste mundo estão sujeitas a alguma alteração, que o próprio homem
jamais permanece no mesmo estado, e que Deus permite muitas vezes a decadência nas Companhias mais
santas. Aconteceu assim em algumas das nossas Casas. Nós o percebemos, há algum tempo, nas visitas
feitas, sem nos dar conta logo da causa do ocorrido. Foi preciso, para detectá-la, um pouco de paciência e
de atenção de nossa parte. Deus, contudo, nos fez ver, enfim, que a liberdade de alguns em repousar, mais
do que o previsto na regra, produziu esses maus efeitos. De fato, ao ficarem ausentes à oração com os
outros, privavam-se dos benefícios que há em fazê-la em comum e, com frequência, rezavam pouco ou
não faziam oração alguma em particular. Daí provinha que tais pessoas, menos atentas a si mesmas,
cumpriam suas ações de modo negligente, e a comunidade ficava irregular em suas práticas.
Para remediar essa desordem, importa eliminar-lhe a causa e, para esse fim, recomendar a exatidão
no levantar-se e urgi-lo com firmeza, de tal sorte que aos poucos cada Casa mude de figura e se afeiçoe ao
regulamento. E cada um, em particular, seja mais cuidadoso com seu bem espiritual. Foi este o motivo
que nos levou a fazer nossa primeira conferência desse novo ano sobre esta primeira ação do dia.
Queremos confirmar-nos mais na resolução de nos levantar todos, indispensavelmente, às quatro horas da
manhã e, assim, progredir nas felizes consequências desta fidelidade. Isto, e mais os inconvenientes da
prática contrária, serviram de motivo para o nosso colóquio. Julguei, então, senhor Padre, que devia
partilhar convosco as objeções e respostas que se podem levantar a respeito do assunto, como também os
meios de que podemos servir-nos (para o fim visado). Nossa intenção é que leveis vossa comunidade ao
conhecimento de tudo, para mantê-la na prática comum ou nela introduzi-la, se estiver em falta, para que
venha a participar da mesma felicidade.
O primeiro fruto, resultante do levantar-se no momento em que se ouve o toque de despertar, é que
se cumpre a regra e, por conseguinte, a vontade de Deus.
2° A obediência prestada a esta hora, tanto mais agradável a Deus quanto mais pronta for, atrai
também bênção sobre as outras ações do dia, como se evidencia na prontidão de Samuel: levantou-se três
vezes numa noite e por isto foi louvado pelo céu e pela terra, e muito favorecido por Deus.
3° A primícia das boas obras é a mais honrosa. Ora, como toda honra é devida a Deus, é justo
tributá-la a ele; se lho recusamos, entregamos ao diabo a primeira parte e o preferimos a Deus. Daí vem
que esse leão ronda pela manhã em torno do leito, para apoderar-se desta ação, a fim de que, não lhe
sendo possível conseguir de nós outra coisa durante o dia, possa ao menos vangloriar-se de ter obtido a
primeira de nossas ações.
4° Contraímos o hábito de uma ação ao nos acostumarmos a realizá-la em determinada hora; ele
faz com que depois estejamos prontos ao toque de despertar e serve até de relógio nos lugares onde não os
há e acaba com a dificuldade de saltar da cama. Pelo contrário, a natureza tira proveito das concessões
que lhe fazemos. Se dormirmos mais num dia, pede, no dia seguinte, a mesma satisfação, e a pedirá
enquanto não lhe subtrairmos toda esperança.
5° Se Nosso Senhor deixou o paraíso por nós e se reduziu nesta vida a tal pobreza que não tinha
onde repousar a cabeça, quanto mais devemos nós deixar o leito por amor a ele.
6° Um sono bem regulado serve para a boa disposição do corpo e do espírito. Quem dorme muito,
se torna frágil e vulnerável. Por isto as tentações acontecem nesse tempo.
7° Se a vida do homem é curta demais para servir a Deus dignamente e para reparar o mau uso que
fez da noite, é coisa deplorável querer ainda diminuir de um pouco o tempo de que dispomos para isto.
Um comerciante madruga para se enriquecer; todos os instantes lhe são caros. Os ladrões fazem outro
tanto e gastam noites para surpreender os passantes. Permitir-nos-emos menor diligência para o bem do
que eles a têm para o mal? As pessoas do mundo fazem suas visitas desde bem cedo e ficam prontas para
o levantar de alguém muito importante, e com grande zelo. Meu Deus! que vergonha se a preguiça nos
fizer perder a hora marcada para nos entreter com o Senhor dos senhores, nosso apoio, nosso tudo!
8° Quando estamos presentes à oração e às partilhas de oração, participamos das bênçãos de
Nosso Senhor, que nelas se comunica com abundância, pois, como disse, permanece no meio dos que
estão reunidos em seu nome. A manhã é o tempo mais propício para esta ação e o mais tranquilo do dia.
Por isto, os antigos eremitas e os santos, a exemplo de Davi, o empregaram na oração e na meditação. O
israelita tinha de levantar-se cedo para colher o maná. E nós, desprovidos de graça e virtude, por que não
fazemos o mesmo para adquiri-las? Deus não dispensa, igualmente, em qualquer tempo, seus favores.
Com certeza, desde que nos concedeu a graça de levantarmo-nos todos juntos, vemos aqui maior
pontualidade, recolhimento e modéstia; o que nos leva a esperar que, na medida em que esta bela
264

harmonia durar, a virtude irá sempre aumentando e cada um se firmará mais em sua vocação. A
negligência levou muitos a saírem; não podendo afagar-se a si mesmos, a seu bel-prazer, não podiam
afeiçoar-se ao seu estado. Como ir alguém de bom grado para a oração, quando só se levanta de má
vontade; como meditar de modo frutuoso, quando está na igreja pela metade e unicamente por
conveniência! Pelo contrário, os que se afeiçoam ao levantar matinal, perseveram de ordinário, quase não
se relaxam e fazem felizes progressos. A graça da vocação está ligada à oração, e a graça da oração à do
levantar matinal. Se formos, portanto, fiéis a esta primeira ação, se nós nos encontrarmos juntos diante de
Nosso Senhor e nos apresentarmos a ele todos unidos, como faziam os primeiros cristãos, ele, por sua
vez, se dará a nós, nos iluminará com suas luzes e fará, ele próprio, em nós e por nós, os bens que temos
obrigação de fazer em sua Igreja; conceder-nos-á, enfim, a graça de atingir o grau de perfeição que deseja
de nós, para podermos um dia possuí-lo plenamente nos séculos eternos.
Eis, senhor Padre, quanto é importante que toda a Companhia se levante, exatamente, às quatro
horas da manhã, já que a oração retira seu valor desta primeira ação, e que as outras ações só valerão o
que a oração as fizer valer. Sabia-o bem quem dizia que por sua oração avaliava como seria o resto do seu
dia.
Visto, porém, como a debilidade de alguns não se entregará sem réplica, pois sempre dispõe de
pretextos, prevejo que me dirá que a regra do levantar matinal não deve obrigar, igualmente, as pessoas
de compleição frágil como as mais robustas, e que as primeiras precisam de um repouso mais longo do
que os outros. A isto oponho o parecer dos médicos, todos concordes em que sete horas bastam a toda
sorte de pessoas, e o exemplo de todas as Ordens religiosas da Igreja, cujo repouso se limita a sete horas.
Em nenhuma dessas Ordens se dorme por mais tempo. Há até algumas que não chegam a tanto, e a maior
parte delas têm esse tempo interrompido, pois se levantam uma ou duas vezes à noite, para ir orar no coro
da igreja. E o que condena nossa moleza é que as religiosas não têm maior privilégio, embora sejam mais
frágeis e tenham sido educadas com maior delicadeza. Mas não descansam algumas vezes mais do que o
ordinário? Não, jamais o ouvi dizer, e das Filhas de Santa Maria posso assegurá-lo; exceção feita para as
doentes da enfermaria.
Dirá um outro: qual! senhor Padre, teremos de nos levantar quando nos sentirmos incomodados?
Tenho muita dor de cabeça, dor de dente, acesso de febre, que me impediram de dormir quase a noite
inteira. – Sim, meu irmão, meu amigo, é preciso levantar-se, se não estiverdes na enfermaria, ou não
tiverdes permissão de permanecer de cama por mais tempo. Com efeito, se sete horas de repouso não vos
aliviaram, uma ou duas a mais, tomadas por própria conta, não vão curar-vos. Mas ainda quando isso vos
aliviasse, é conveniente que glorifiqueis a Deus, como os outros, com vossa presença na sala de oração; e
que lá apresenteis vossa necessidade ao superior. De outra forma, estaríamos sempre recomeçando,
porque frequentemente vários sentem algum incômodo e outros poderiam fingir tê-lo, para se afagarem e,
deste modo, estaríamos em contínua ocasião de desordem. Se não pudemos dormir bem uma noite, a
natureza saberá repará-lo numa outra noite.
Entendeis, também, senhor Padre, replicará alguém, suprimir toda espécie de repouso
extraordinário aos que chegam de viagem, ou que acabam de sair de um longo trabalho? – Sim, pela
manhã. Mas se o superior julgar que o cansaço seja tal que requeira mais de sete horas de repouso, fará
com que, à noite, se deitem mais cedo que os outros.
Mas eles chegam muito tarde e estafados. – Nesse caso, não haverá mal em mandá-los descansar
mais pela manhã, pois a necessidade serve de regra.
Como! levantar-se sempre às quatro horas, quando o costume é descansar até as seis uma vez por
semana, ou ao menos de 15 em 15 dias, para se refazer um pouco. É isto incômodo e pode levar-nos a nos
adoecer! – Essa é a linguagem do amor próprio e aqui vai minha resposta. Nosso regulamento e o próprio
costume querem que nos levantemos todos ao mesmo tempo. Se houve relaxamento, aconteceu há pouco
tempo e em algumas Casas apenas, por abuso de particulares e tolerância de superiores. Em outras Casas,
com efeito, a prática do levantar foi sempre fielmente observada, e por isto estão sendo abençoadas.
Pensar que se fica doente por não se dar intervalo a tal exatidão é imaginação; a experiência mostra o
contrário. Desde o tempo em que todos se levantam na hora, não tivemos aqui nenhum doente que já não
o fosse antes, e não temos conhecimento de algum em outros lugares. Sabemos, ao contrário, e os
médicos o dizem, que dormir demais prejudica os pituitosos e aos temperamentos dados ao humor.
Finalmente, se se objeta que pode acontecer algum negócio que impeça alguém de deitar-se às
nove e até mesmo às dez, e que é razoável que recupere pela manhã o repouso perdido à noite, respondo
265

que é preciso evitar, se for possível, esses empecilhos, para se recolher na hora. Mas caso não seja
possível, será coisa tão rara que a privação eventual de uma ou duas horas de sono não é algo
considerável, em comparação com o escândalo dado ao permanecer na cama, enquanto os outros fazem a
oração.
Não estaria eu desprovido de razão, senhor Padre, ao me estender tanto, a vosso respeito, para
mostrar a utilidade e a importância do levantar matinal, visto que vossa comunidade é, talvez, das mais
fervorosas e mais regulares da companhia? Se assim o for, minha intenção não é persuadi-la de outra
coisa, a não ser de um terno e humilde reconhecimento para com Deus, pela fidelidade que lhe concede.
Mas se caiu na falta que combatemos, tenho razão, penso eu, ao convidá-la a se levantar, e ao vos pedir
firmeza e atenção a respeito.
Eis, brevemente, os meios que vos ajudarão, a nós e a comunidade. Para a comunidade, os
seguintes:
1° Convencer-se de que a exatidão no levantar-se é uma das mais importantes práticas da
Companhia, e de que tal como for o início, tal será o resto do dia; 2° entregar-se todo a Deus, à noite, ao
deitar-se, pedindo-lhe a força para se vencer pela manhã e obedecer à sua voz, sem delonga alguma,
invocando para esse fim a proteção da Santíssima Virgem, com uma Ave-Maria, rezada de joelhos, e
recomendando-se ao anjo da guarda; muitos obtiveram grande êxito, agindo assim; 3° encarar o sino
como a voz de Deus, e saltar do leito ao ouvi-lo, fazendo o sinal da cruz e, prostrando-se por terra, beijar
o chão, unanimemente, com o resto da comunidade que, nesse mesmo instante, o adora; e se acontecer
venha a faltar a isto, impor-se alguma penitência. Alguns chegaram a usar a disciplina por tanto tempo
quanto perderam discutindo com o travesseiro. O derradeiro meio para cada um em participar é jamais
abandonar essa exatidão. Com efeito, quanto mais o adiamos, mais nos tornamos sem ânimo.
Os meios gerais que dependem de vossos cuidados, senhor Padre, e dos oficiais da Casa são: em
primeiro lugar, que haja sempre um encarregado do despertar que passe de quarto em quarto levando o
candeeiro, quando necessário e dizendo em voz alta: Bendigamos ao Senhor, e repetindo até obter a
resposta. Depois disso, faça um outro a visita aos quartos, até mesmo duas visitas, quando a comunidade é
grande; e os que forem nomeados para isso o façam com exatidão. Em segundo lugar, e enfim, os que têm
o ofício da direção sejam firmes e não permitam a ninguém repousar, jamais, depois das quatro da manhã,
seja qual for o pretexto, fora da enfermaria, se a houver, a não ser em caso de grande necessidade.
Por falar em direção, a exatidão ao levantar matinal foi reputada tão bela e tão útil que se julgou
que aqueles que não lhe fossem fiéis jamais deveriam assumir cargos de direção na Companhia, pois que
o seu exemplo logo seria seguido neste relaxamento e teriam contra si a incoerência de se permitirem o
que seriam obrigados a recusar aos outros. Praza a Deus, senhor Padre, perdoar-nos as falhas passadas e
nos conceder a graça de nos corrigir, de modo a sermos como os servos bem-aventurados que o senhor
encontrar vigilantes ao voltar! “Digo-vos, em verdade, diz Nosso Senhor2, que os fará sentar-se à mesa e,
passando, os servirá; e se vier numa segunda vigília e igualmente numa terceira, e os encontrar assim,
felizes serão aqueles servos; digo-vos com toda certeza que os constituirá sobre tudo o que possuir”.
Está aí o bastante para uma carta, senhor Padre. Oferecei-me, por favor, a Deus e às orações de
vossa pequena comunidade, da qual, e de vós em particular, sou, senhor Padre, muito humilde e afeiçoado
servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

1177. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Janeiro de 16501].

2
2. Lc 12, 37-38.
.–
Carta 1177. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Ver nota 3.
266

Não entendo também nada dessas espécies de coisas que me propondes, senhora, a não ser dos
artigos sobre os quais me esclarecestes. Caso julgueis necessário que o senhor Prior2 e eu sejamos citados
no contrato, é preciso citá-lo antes de mim. Peço a Nosso Senhor abençoe os casados3 e vos conceda as
disposições concedidas à Santíssima Virgem, quando assistiu com seu filho ao casamento de Caná.

1178. – A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

4 de fevereiro de 1650.

Enviei vossa carta ao senhor... O que lhe escreveis a respeito de Florência é muito oportuno. Deus
nos deu a graça de não buscar, até o momento, estabelecimento algum, nem direta nem indiretamente. E
se a Companhia crê em mim, conservar-se-á inviolavelmente nesta máxima. De fato, se formos bons, eles
não nos faltarão. Se não o formos, já os temos em demasia e com dificuldade conseguimos prover as
poucas Casas que temos. Disseram-me que o senhor Arcebispo de Tolosa 1 aguarda, há tempos, que lhe
manifeste algum desejo de que a Companhia trabalhe em sua diocese, com o fim de nela ele nos
estabelecer e nos confiar a direção do seu seminário. Guardo-me porém de demonstrar o menor sinal a
respeito. O senhor seu irmão esteve aqui, há poucos dias, e me abordou longo tempo sobre esse assunto.
Eu me impedi expressamente de dizer alguma coisa. É preciso que a Providência nos chame e que a
sigamos, para caminhar com segurança.

1179. – CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Meu honorabilíssimo Pai,

Vossa bênção!
Como uma grande distância marítima não me permite prestar-vos conta oralmente de minha
missão, recorro à presente carta. Ela transmitirá a vossa caridade e por seu intermédio, à Sagrada
Congregação da Propagação da Fé, o relato que aguarda de um explorador enviado para essas terras, a
fim de saber se é terra de promissão, e capaz de encorajar homens evangélicos a conquistá-la para
Nosso Senhor Jesus Cristo. Sei muito bem que a humildade deveria cobrir o rosto de vergonha e fechar a
boca a tão insignificante instrumento como sou eu, vendo-me aplicado a uma obra de tão grande
alcance, e da qual me reconheço tão indigno, quanto incapaz. Mas meu dever e a caridade, unidos à
expectativa da Sagrada Congregação, me constrangem a imitar a simplicidade daqueles que escreveram
o que Deus operou neles e por eles em semelhantes trabalhos. Assim o vejo no que fez o grande São
Francisco Xavier por suas admiráveis epístolas. Reconheço-me, aliás, indigno de lhe trilhar os passos
como meu predecessor, não de fato, mas de vontade. Realmente, alimentou ele extremo desejo de vir para
esta ilha, mas dela foi desviado e levado para outros rincões, por ventos adversos, ou antes, pelo Espírito
de Deus.
Relatar-vos-ei, com toda simplicidade, e sem ornatos de estilo, quais foram nossas ocupações
antes de nosso embarque, em terra firme e sobre o mar. Faremos igualmente, uma breve descrição do
2
2. Adriano Le Bon, antigo prior de São Lázaro.
3
3. Luísa de Marillac via enfim a realização de seus mais caros votos. No dia 13 de janeiro de 1650, escrevia a Jeanne Lepeintre, superiora
em Nantes: “Suplico-vos pedir a todas as Irmãs que recebam a santa comunhão na intenção do meu filho, o qual, creio eu, receberá o
sacramento do matrimônio num desses dias. Deus lhe escolheu, ao meu ver, uma jovem donzela muito virtuosa, que não é de Paris”. Com
efeito, no dia 18, Michel Le Gras desposava, na Igreja Saint-Sauveur, Gabrielle Le Clerc, filha do Senhor de Chennevières e da falecida
senhora Musset de la Rochemaillet. Renê Michel de la Rochemaillet, tio da mulher de Michel, cedia-lhe ao mesmo tempo o ofício de
conselheiro na Casa da Moeda. No ano seguinte, nascia uma filhinha, que chamaram de Renée-Louise em família, e entre as Filhas da
Caridade de a pequena irmã. Renée-Louise tornar-se-á mais tarde senhora d’Ormilly; vivia ainda em 1696, ano do falecimento do seu pai.
.
Carta 1178. – Reg. 2, p. 60.
1
1. Charles de Montchal.
.
Carta 1179. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII. São Vicente mandou tirar várias cópias desta carta, para enviá-las às casas da sua
Companhia e até mesmo a pessoas de fora.
267

país, dos habitantes e dos seus costumes, das cerimônias supersticiosas, e do que a bondade de Deus
realizou por nosso intermédio, nestas regiões. A Deus seja tributada a glória por tudo. Quanto a mim, o
perdão e a misericórdia pelo mal cometido, e pelo bem omitido.

1. O que se passou antes de nosso embarque.


O Padre Gondrée, meu companheiro, e eu partimos de Richelieu, de nossa Casa, a 18 de abril de
1648, em direção a La Rochelle. A caminho, conforme o costume de nossa Congregação, fizemos
exposição da doutrina cristã na frente das portas das hospedarias, e em outros lugares, quando se dava a
ocasião.
Chegamos a La Rochelle sexta-feira santa.Como não encontramos o navio pronto para a viagem,
ali permanecemos cerca de um mês. Não ficamos, contudo, inativos. Fomos apresentar-nos ao senhor
Bispo do lugar1 c1 e ele nos deu a permissão de nos ocupar, na cidade ou no campo, no que julgássemos
mais útil para a glória de Deus. Aceitamo-la agradecidos, a exemplo de São Francisco Xavier, que nos
destes como modelo em nossa viagem, e optamos pelos hospitais, nos quais, embora não ficássemos
hospedados neles, passávamos uma boa parte da manhã visitando e servindo aos doentes, com a liença
dos Administradores da Caridade. Tiveram a bondade de nos empregar nesse trabalho juntamente com
eles.
Os prisioneiros foram nossos paroquianos durante o tempo pascal. Depois de lhes
administrarmos os sacramentos, íamos a pé visitar, de sua parte, aqueles dos quais esperavam sua
libertação.

2. As coisas mais notáveis de nossa navegação.


A 21 de maio, dia da Ascensão de Nosso Senhor, levantaram ferro. Imediatamente, celebramos a
missa e exortei a todos a confiar nossa viagem à providência de Deus que tornaria o mar e os ventos
favoráveis ao nosso navio, na medida de nosso empenho em conservar nossos corações na pureza da
graça e na fidelidade ao seu serviço.
Com a aproximação da festa de Pentecostes, dispus o nosso rebanho, composto de cento e vinte
pessoas, a receber, pela penitência, o Espírito Santo, e fiz a abertura do Jubileu que Sua Santidade
concedera então aos fiéis, em favor da paz. Cada qual cumpriu seu dever com as confissões gerais. Nisto
nos ocupamos até a festa do Santíssimo Sacramento, preferindo nos prevenir, em razão dos perigos do
mar, do que esperar, na incerteza, que chegássemos aonde pretendíamos ir.
Uma pequena embarcação de Dieppe que se dirigia para São Cristóvão 2, ancorou em São
Vicente3, no Cabo Verde, na véspera de São João Batista, onde nos tínhamos detido para nos abastecer
de água. Boa parte dos passageiros lucraram o jubileu em terra firme, onde celebrávamos a missa.
No dia seguinte, festa de São João Batista, doze negros portugueses, bons cristãos, vieram assistir
à missa. Ao final, cantaram em música o te-déum 4 e pediram os sacramentos, que não lhes pudemos
administrar, por não lhes entender a língua. Escrevi-vos desta ilha, senhor Padre, e vos falamos da
necessidade de padres para o Senegal, próximo do Cabo Verde, onde os habitantes negros demonstram
muita disposição para acolher o Evangelho. Não há perigo algum, a não ser o clima pouco sadio,
durante uma estação. Para quem queira saber dos caminhos e meios para se estabelecer nesse país, seria
preciso dirigir-se ao senhor Rozée, que mora em Rouen, um dos diretores e donos da concessão do país e
que enviam navios para lá.
Depois de seis dias de refrigério, voltamos ao mar. O vento era contrário desde o início de julho
até 16 de agosto. Quase chegamos à necessidade de arribar, embora próximos da linha do Equador.
Recorremos, porém, Àquele que tira os ventos de seus tesouros e à Estrela do mar, a Santíssima Virgem,
em cuja honra fizemos, publicamente, voto a Deus de nos confessar e comungar na semana que precede
sua gloriosa Assunção, e de edificar em Madagascar uma igreja, sob a invocação desta Rainha do céu.
Acrescentou-se a isso uma esmola, ao arbítrio de cada um. Tão logo cada qual lançou o Jonas no mar da
penitência, a tempestade cessou, o vento se nos tornou favorável e nos encontramos, na véspera da festa
de Nossa Senhora, sob a linha do Equador.
1c
1. Jacques-Raoul de la Guibourgère (De 1646 a 15 de maio de 1661).
2
2. Ilha das pequenas Antilhas inglesas.
3
3. Ilha do arquipélago do Cabo Verde.
4
4. Hino de louvor do Breviário Romano (Nós te louvamos, ó Deus).
268

Experimentamos o mesmo auxílio do céu, próximos da festa de Nossa Senhora, de setembro: o


vento que nos era contrário tornou-se logo favorável, depois das preces públicas que fizemos em honra
da Santíssima Virgem, cuja assistência recebemos em diversas outras ocasiões.
À vista do Cabo da Boa Esperança, Deus nos preservou do perigo de sermos despedaçados
contra um rochedo, escondido a duas léguas da terra. Um marinheiro o descobriu, e dele se desviaram
prontamente. Próximos de ancorar, nosso navio encalhou num outro rochedo, onde permanecemos
durante seis ou sete horas, temendo cair numa terra estéril e desconhecida. Finalmente, porém, a maré o
alçou, sem avaria, e fomos lançar ferro no porto denominado Baía de Saldanha5.

3. A Baía de Saldanha e seus habitantes.


Muitos, em razão da viagem longa e do uso de carnes salgadas e de águas que se corrompem a
longo termo, tinham contraído uma moléstia, nos nervos e nas junturas articulares, chamada escorbuto.
A terra curou a doença. Nesse lugar, ao buscarmos provisão de água, vimos certos negros, habitantes do
país, vestidos com pele de animais, armados de arco e flechas, de que se servem para a caça. Estavam
tão magros e esfaimados que se precipitavam como cães sobre as carnes que se lhes lançavam. Fiquei
sensivelmente tomado de compaixão, vendo essa pobre gente na ignorância de seu Criador. Prostrado
em terra, roguei Àquele que quer que todos sejam esclarecidos e salvos, lhes providenciasse os meios
necessários à salvação. Notaram esta ação e disseram entre si: “Eis alguns saterons”, isto é, pontífices.
Esta palavra me levou a crer que existe entre eles pessoas destinadas a alguma espécie de culto
religioso, embora não tenha observado nenhum sinal a respeito, a não ser o fato de os homens serem
circuncisos e as mulheres cortarem a articulação de um dedo, quando nasce o primeiro e o segundo
filho. Creio, porém, que isto se observa mais por costume do que por motivo de religião. Notei entre eles
certo senso de ordem, pois, durante as refeições, os homens, as mulheres e as crianças se agruparam
separadamente, comendo cada um em seu grupo correspondente. O meio de ajudar esses pobres
bárbaros seria, me parece, procurar, ocasionalmente, conquistar a amizade de um ou dois garotos de
doze ou quinze anos e lhes ensinar nossa língua. Poderíamos, assim, pouco a pouco nos informar sobre
seus costumes e sobre os meios de instruí-los. Se alguns dos nossos passarem por lá, suplico-lhes tentar
este expediente ou outro melhor.
Depois de oito dias no Cabo da Boa Esperança, saímos e nos pusemos em alto mar. De repente,
porém, o vento contrário nos obrigou a fundear. Deus, talvez, nos tenha punido, pela negligência ou
frieza em agradecer-lhe pelas comodidades de que acabávamos de desfrutar em terra. Com efeito, tendo
celebrado a missa nesta intenção, sobreveio um vento tão favorável que, dentro de pouco tempo,
ultrapassamos o Cabo das Agulhas6, ordinariamente muito difícil de atravessar e muito perigoso.
Admirei muito a sabedoria de Deus durante nossa navegação, diante da multidão inumerável de
diversos peixes, muito semelhantes aos animais da terra. Entre eles, vimos alguns aos quais deu asas com
que escapam da perseguição de quase todos os outros peixes. Alguns chegaram a cair dentro do nosso
barco.
Enfim, depois de seis meses de navegação, avistamos a terra de Madagascar. Exortei então a
todos do navio a esquecerem reciprocamente todas as pequenas ofensas ocorridas durante tão longa e
penosa viagem. Cada um prometeu fazê-lo. E no dia 4 de dezembro, ancoramos no porto tão
ardentemente e por tão longo tempo desejado.
Chegando ao porto, fui dos primeiros a descer em terra e, ao primeiro passo, dobrei os joelhos no
chão para oferecer-me a Deus no sentido na execução dos seus desígnios e tomar posse espiritual desta
ilha e de todas as outras, em seu nome, pela autoridade de nosso Santo Padre o Papa, a fim de nelas
estabelecer o império de J.C., e destruir o do príncipe das trevas. Fui diretamente para a capela do
Forte, para nela celebrar a missa que, havia cinco meses, não tinha sido ali celebrada, por falta de
matéria para a consagração. No dia seguinte, 5 de dezembro, o senhor Flacourt, nosso comandante,
enviado como Governador do país, juntamente com o Padre Gondrée, meu companheiro, e todos os
passageiros do navio, vieram ao forte. Celebrei então a missa solene em ação de graças e cantamos o te-
déum, conforme o voto que fizéramos a Deus em alto-mar. Os franceses que encontramos receberam-nos
com grande alegria. Depois que todos se alojaram, ocupamos um pequeno cômodo que restava.

5
5. Baía da costa sudoeste da África, na colônia do Cabo. O copista escreveu: Baía da Sardenha.
6
6. Extremidade do sul da África.
269

4. Nossas ocupações no navio.


Não duvido, senhor Padre, de que queirais saber por quais exercícios religiosos, durante seis
meses e meio passados no mar, tratamos de procurar a glória de Deus. Por isto, vou relatá-los aqui
muito singelamente. Desde o nosso embarque até nossa chegada a Madagascar, quando o tempo não
trazia ameaça, celebrávamos a santa missa e fazíamos, pela manhã e à tarde, as orações públicas
segundo a maneira como nossa Congregação observa nas missões. Mandara imprimir pequenos folhetos
para este fim e os distribuía ao pessoal do navio.
Nós os dispusemos a lucrar o jubileu e procuramos que fizessem sua confissão geral nessa
intenção. Depois de nossa partida do Cabo Verde, acontecida alguns dias depois da festa de São João
Batista, considerando que em nossa companhia havia gente amontoada, tanto marinheiros quanto
passageiros, que tinham necessidade de instrução, nós fazíamos, três ou quatro vezes na semana,
exortações respectivas aos principais mistérios da fé e outras matérias mais necessárias, da maneira
como observamos em nossas missões da Europa. Interrogávamos, depois do exórdio, a juventude sobre
as coisas principais que tinham sido tratadas na introdução precedente. Terminávamos com uma
exposição ininterrupta sobre algum outro ponto importante para a salvação. Continuamos assim por um
espaço de seis semanas, com notável proveito e depois paramos, com receio de nos tornarmos
enfadonhos e para darmos ocasião para um descanso. Nossas atividades diárias eram pouco mais ou
menos regradas como em nossas Casas, salvo quando era preciso, algumas vezes, nos acomodar ao
tempo, ao lugar e às pessoas.
Depois da oração mental e do ofício divino, fazíamos a leitura de um capítulo da Sagrada
Escritura e nos comunicávamos as orientações morais que nos tinham ocorrido, para aplicá-las tanto ao
nosso proveito quanto ao do próximo. E como num navio somos muito estreitamente aglomerados, não
faltam doentes. Um de nós os visitava pela manhã, e o outro depois do almoço.
Às nove horas e meia, fazíamos juntos a leitura das cartas de São Francisco Xavier e
assinalávamos o que servia para nosso uso. Nossas conferências tinham como assunto nossas
necessidades e as daqueles do navio, com o sentido de lhes prestar remédio.
Para passar utilmente o tempo, que se torna tedioso na ociosidade, dispomos nosso pessoal a se
reunir em grupos de três ou quatro, entre os quais um fazia a leitura para os outros da Introdução à vida
devota do servo de Deus Dom Francisco de Sales, e da Imitação de Nosso Senhor . Tudo se fazia com
edificação. Empenhamo-nos para persuadir a uma boa parte da nossa gente de fazer conferências
espirituais, duas ou três vezes na semana, sobre diversos assuntos, particularmente no tocante às
ocasiões de ofender a Deus e aos meios particulares para resistir a elas. Nelas observávamos
sensivelmente, pelas respostas dos passageiros e marinheiros, que Nosso Senhor estava no meio de nós.
No fim, retomando as palavras que tinham sido ditas, ajuntávamos familiarmente as nossas e
concluíamos com uma história da Sagrada Escritura ou algum exemplo da vida dos santos.
Depois da ceia, no convés, um de nós se juntava a um grupo e o outro a um outro grupo, para
colaborar com as boas conversas e desfazer as más e inúteis. Para o mesmo fim, era acordo comum que,
quando alguém jurasse ou dissesse palavra menos honesta, que estendesse a mão para receber uma
palmada nos dedos, depois de prometer que se corrigiria. Tudo sem severidade e com o consentimento de
todos. Dado o tempo suficiente à conversação, nós nos retirávamos às nossas pequenas cabines, onde
cinco ou seis garotos nos vinham ver com frequência para colóquios espirituais de histórias que lhes
contávamos, aplicando-as em proveito deles. Recitávamos depois juntos, alternativamente, o terço.
Eis, senhor Padre, como empregamos o tempo durante nossa viagem. Podeis, porém, imaginar
que, se Deus nos concedeu a graça de cooperar assim com este pequeno ordenamento, durante nossa
navegação, o zelo do senhor Flacourt, nosso mui sábio Governador e comandante, contribuía muito para
isto. Com efeito, não correria tudo desta maneira se não fôssemos apoiados por sua autoridade.
Devemos, sem dúvida, à sua piedade, a melhor parte da felicidade de nossa viagem.

5. Breve descrição da Ilha de Madagascar e dos seus habitantes.


Antes de dizer o que fizemos neste país, creio ser necessário fazer uma pequena descrição da ilha,
dos seus habitantes, dos seus usos e vestuário, a fim de verdes em que estado encontramos as coisas da
religião.
270

A Ilha de Madagascar é também chamada de São Lourenço, porque foi descoberta nesse dia. Seu
comprimento é de seiscentas milhas italianas; a largura, em certos lugares, é de duzentas, em outros, de
quatrocentas; o contorno é de mil e quatrocentas milhas. O calor é muito grande, mas não intolerável.
Está dividida em várias regiões, delimitadas pelas montanhas mais altas. Os que mais visitaram o
país afirmam que tem mais de quatrocentas mil almas. Nossa residência fica numa ponta da ilha,
chamada de Tholanghare. Estamos a 25 graus de latitude do Trópico, sendo por isto nossas estações
opostas às da França.
Em cada região, há um soberano, reconhecido como senhor e pequeno Rei do lugar. Os vassalos
destes régulos contam três ou quatro mil homens. Suas riquezas consistem em três ou quatro mil bois,
que têm como próprios e no tributo que lhes pagam os súbditos, a saber, a quinta parte de suas provisões
de arroz e mandioca. O nome de Rei não lhes é bem apropriado, tanto porque não detêm poder absoluto,
quanto porque vivem tão pobremente que não há nenhum pequeno senhor da França que não viva com
mais honra do que o maior de Madagascar. A realeza não é hereditária em proveito dos filhos, se não
têm idade bem madura quando da morte do pai. Sob esses régulos, há outros grandes, quase tão
poderosos e ricos quanto eles. Todos esses grandes são marceneiros.
Há duas espécies de habitantes. Uns são negros de cabelos crespos, como aquele que foi batizado
em Paris, atualmente a serviço dos franceses aqui e que continua firme no cristianismo; são os
originários do país. Há outros que são brancos, cabelos lisos, como os franceses; vieram dos lados da
Pérsia, há cerca de quinhentos anos. Em algumas regiões, tornaram-se senhores dos negros, como aqui
onde estamos; em outras, estão subordinados aos negros, como nos Matatanes e outros lugares. Dizem
que sua genealogia procede de um tal Ramini, que fora gerado da espuma do mar, e que esse grande
personagem era amigo de Maomé.
Em toda ilha, a maior parte mora em aldeias, nos sopés das montanhas, das quais desce água em
tal quantidade que forma rios que vão desembocar no mar vizinho. Encontram-se homens errantes
chamados Ombilombo, um pouco selvagens. Moram no mato para roubar o que puderem. Fogem
imediatamente ao deparar com pessoa desconhecida. Não há cidades, nem fortalezas, nem hotelarias.
Todas as casas são de madeira, cobertas com folhas e muito baixas. Há dificuldade em entrar e sair
pelas portas, tão pequenas são elas. Fogo e cozinha se fazem em casa, desprovida de chaminé. Não têm
outros leitos, nem cadeiras, além da prancha de madeira em que dormem. Bebem e comem sobre uma
toalha de junco.
As provisões do país são o arroz, os bois, os carneiros, os cabritos em muito pequena quantidade.
Na região onde estamos, há tudo em abundância. Em locais mais distantes, onde vão fazer negócios, há
comumente aves. Não há trigo nem vinho, mas uma espécie de bebida que fazem do mel. Raízes, favas,
melancias, limões e laranjas existem em quantidade. Não há animais para caça, a não ser alguns javalis
e bois selvagens e muito poucas aves aquáticas.
Os rios são piscosos; mas por toda a parte é perigosa a pesca, por causa dos crocodilos, muito
frequentes e perigosos.
Os habitantes andam descalços e de cabeça descoberta. Não usam roupas como nós. Seus trajes
são diferentes dos nossos. Cobrem-se com tangas, uma veste longa de aproximadamente uma alna e meia
de comprimento e três quartas partes de largura. As mulheres igualmente se vestem de tangas com
costura, que vão dos ombros aos calcanhares. Embora a forma das vestes seja semelhante, contudo, a
qualidade é diversa. Com efeito, cada um se traja segundo sua condição: os grandes se vestem de seda,
os outros de algodão. As crianças andam nuas até a idade de sete ou oito anos. Todos têm as orelhas
perfuradas, com um buraco muito grande, que transpassam com um pedaço de madeira, cortado
expressamente para esse fim e que enriquecem segundo a própria qualidade, alguns com uma placa de
ouro, outros com uma concha oriental. Enfeitam-se também com um material de que fazem braceletes.
Vivem muitos anos. Vê-se uma quantidade de anciãos que dizem ter tantos anos que é impossível
contá-los.

6. Qual a seita ou religião do país e suas observâncias supersticiosas?


Embora não haja entre eles nenhuma religião estável, os brancos ou, propriamente falando, os
cafres vieram das costas da Pérsia seduzir os originários do país. Com efeito, vendo que eram simples
por natureza, e sem religião, atraíram-nos facilmente para as superstições maometanas, das quais uns e
271

outros observam apenas algumas, como a de não comer porco, sacrificar os bois, de preferência a comê-
los, e outras, das quais falarei adiante. Há ainda uma certa espécie de idolatria.
Dizem, primeiramente, que Zanahary, isto é, Deus, é senhor do mundo inteiro. Mas o encerram no
céu, onde é, dizem eles, como um Rei em seu reino. Contudo, em vários lugares, como não conhecem,
senão de nome, nem Deus e nem o diabo, dão a preferência ao diabo nos sacrifícios, atribuindo-lhe a
primeira parte. “Eis, dizem eles, isto é para Andian Rabilo, quer dizer, para o Monsenhor Diabo. Esta
outra parte é para Zanahary, isto é, Deus”. Não sei a razão. Sei apenas que temem mais a um do que ao
outro, porque há entre eles possessos, ou, pelo menos, atormentados, dizem eles, por Zachare, e Drimi,
nomes de diabos, neste país.
Os grandes se deixam intitular de deuses. Quando querem louvar os franceses, chamam-nos de
Zanahary; mas não o permitimos. Os mais inteligentes entres os brancos têm algum conhecimento
imperfeito das coisas que dizem respeito à criação do mundo, ao pecado de nossos primeiros pais e
outras coisas semelhantes. Dizem que os maus, falando de modo geral, irão para as chamas, sem saber
onde, nem por quanto tempo.
Há entre eles Ombiasses, palavra que significa escritores. São assim chamados porque sabem ler
e escrever em Árabe. São respeitados como nós, padres. São os mestres das cerimônias, dos costumes e
das superstições do país. O povão os teme, por causa dos seus escritos e livros, nos quais não existe
muita lógica, nem razão, nem doutrina, mas apenas, aqui e acolá, se diz que Deus é grande; como
também há alguma coisa do Alcorão, que chamam de Ala Koran. O resto do conteúdo desses livros são
apenas certas figuras mal desenhadas, que esses escritores incutem no povo, que são próprias para curar
as doenças, adivinhar as coisas futuras e achar as perdidas.
O costume de circuncidar os meninos é geral por toda a ilha, não por princípio religioso, mas por
motivo puramente humano; não a realizam no oitavo dia, mas em alguns lugares esperam um ano, em
outros, dois, três, quatro, cinco, seis e sete anos depois do nascimento.
A cerimônia da circuncisão se faz pelos Ombiasses, em assembleias. Os pais e as mães levam os
filhos com provisões de boca, para dá-las a esses escritores, como bois, capões. Logo após a
circuncisão..., colocam sangue de boi e capões degolados na ferida do circunciso. A circuncisão solene e
geral se faz no ano da sexta-feira, pois distinguem os anos como fazemos com os dias da semana, e
estamos presentemente no ano da sexta-feira.
Os brancos observam uma espécie de jejum em dois meses diferentes. Consiste em não comer
entre dois sóis. Mas, durante toda a noite, comem para o dia inteiro. Abstêm-se de comer carne de boi e
beber vinho. Mas os capões e a cachaça não são proibidos. Se houver alguém que não queira jejuar, fica
desobrigado para levar a um outro a jejuar em seu lugar. Não relatam origem alguma, nem razão dessa
superstição, a não ser a de que é costume ancestral e que consta nos seus livros que os que faltarem a
isso irão para o fogo.
Observam uma superstição que chamam de Missanath, isto é, assembleia de banquetes. Acontece
quando um grande manda edificar uma casa nova, ou restaurar uma velha. É uma de suas festas
principais, da qual farei aqui o relato, para maior compreensão das coisas seguintes. Eis como decorre
esta cerimônia. Chegado o tempo da entrada nessa casa nova ou restaurada, os súbditos desse grande se
reúnem e se apresentam diante dele com presentes. Alguns trazem bois, outros vinho de mel, potes de
barro e outros utensílios caseiros, à moda do país. O grande recebe os donativos por um de seus fiéis que
lhe aponta com o dedo peça por peça o que este e aquele trouxeram. Depois, de sua porta, dirige-lhes ele
um discurso de votos de felicidade temporal, desejando que possam prosperar e viver por longo tempo.
Em seguida, os encoraja a viver e continuar com os seus serviços e presentes.
Os outros Roandries, ou grandes, que estão abaixo do Rei, ou os primeiros grandes da região,
vêm também a esse encontro, com uma parte dos seus súbditos, para oferecer os seus presentes. Na
chegada, executam algumas manobras com as armas do país, alabardas e dardos de ferro. O chefe da
casa adianta-se, então, e apontando-lhes um dardo para o coração, abraça-os com gritos recíprocos de
alegria.
Passados dois ou três dias, recebendo o povo e os presentes, chega o dia destinado à entrada na
casa. Trazem, então, quinze ou dezesseis bois, pegos na marra, seja qual for a fúria em que estejam;
abatem-nos por terra, atam-lhes as patas e, afundando-lhes os chifres no chão, mantêm-nos prontos para
a degola, afagando-lhes o pescoço com as mãos. Entrementes, os Ombiasses, em número de três ou
quatro, revestidos de belos trajes, com um rico cinturão, cujas extremidades lançam sobre os ombros,
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caminham solenemente, com um grande cutelo nas mãos, em direção ao local onde os bois são mantidos.
Executam, então, em torno deles três voltas. Na primeira, lançam sobre eles areia do mar; na segunda,
ervas colhidas das bordas do mar; na terceira, água do mar. Em seguida, degolam-nos com muita
presteza e ordenam colher o sangue em gamelas de madeira que vão apresentar aos grandes. Esses
últimos assinalam a fronte e o peito com o sangue, pedindo que isso lhes traga felicidade e vida longa.
Feito isso, o dono da casa avança na frente, com grande cutelo à mão, seguido dos mais importantes, em
forma de procissão. Dão três voltas, passando sobre o sangue dos animais, e entram todos na casa, onde
dão outras três voltas, em meio a gritos de alegria, batendo o pé sobre a prancha, com grande barulho
para mostrar que a casa é sólida e bem feita e que nela se pode morar com segurança.
Depois disso, vêm os Ombiasses, tendo à sua frente portadores de archotes chamejantes, à moda
de tochas de vela de cera e trazendo com solenidade seus solatra, isto é, seus livros, dos quais já falei.
Em sua passagem, assustam o povo e vão abrindo caminho com ameaças de algum sinistro acidente
contra os que não abrirem ala rapidamente. Estava eu presente a tal loucura, da qual me sorria.
Quiseram afastar-me como aos outros. “Não, lhes digo, não temo vossos livros. Eles são apenas tinta e
papel e a ninguém podem fazer mal algum, não mais que a poeira de vossos pés”. Ficaram admirados
com minhas palavras e o desprezo por suas cerimônias, sem, contudo, nada me explicar, como aconteceu
em várias outras ocasiões em que lhes censurei os embustes com que se apoderam dos bens do povo. Os
assistentes diziam que o Ombiasse dos Vazaha, isto é, o padre dos franceses, supera em ciência e
doutrina seus escritores, tanto quanto o comum dos franceses supera os negros em capacidade. Esses
portadores de livros, chegando a casa, dão três giros no seu entorno e a aspergem com sangue, para que
durem por muito mais tempo e que nada faça mal aos que nela habitarem. Em seguida o Roandrie vem
apresentar-se à porta e, assentado sobre a prancha, dirige uma arenga ao povo, para encorajá-lo a
servi-lo e vai distribuir-lhes cerca de quatrocentos ou quinhentos bois para dar de comer a quatro ou
cinco mil pessoas. O couro do animal se come com a carne assim como a pele do porco na Europa.
Assim se passa a manhã, e cada qual vai cozinhar ou assar sua porção.
As mulheres dos Roandries preparam nesse ínterim o festim para a casa do grande e mandam os
escravos levar trezentas ou quatrocentas porções de arroz e de carne sobre folhas que sustentam nas
mãos; outros serviços maiores são levados por homens em grandes folhas de diversas formas; são folhas
feitas de casca vermelha.
Finalmente, pelas duas horas da tarde, o pessoal se reúne de novo diante da porta do grande,
onde, ao som de um tambor feito do tronco de uma árvore oca, coberto de uma pele, que eles batem de
um lado com um bastão e do outro com a mão. Executam danças, com posturas grotescas, cantando o
que se passou no país. Trazem então grande quantidade de vinho de mel e o distribuem ao povo. E nessa
balbúrdia e bebedeira termina o dia e a cerimônia. No dia seguinte, todo mundo volta para casa.
Indaguei de um Ombiasse as razões de cada particularidade e não obtive outra resposta senão a
de que era o costume dos seus ancestrais. Há entre eles algumas outras festas ou assembleias, durante as
quais realizam banquetes, como antes e depois da colheita do arroz.
Acrescento à cerimônia precedente a forma de que se utilizam para libertar os energúmenos. Fui,
há algum tempo, até 30 ou 32 milhas daqui para ministrar instruções no campo. Vieram avisar-me que
havia duas mulheres possessas. Não vi nelas sinal algum de possessão, mas apenas um rosto
melancólico. Diziam também que não podiam falar nada. Tive vontade de ver de que modo se comportam
em tais circunstâncias. Foram correndo a um Ombiasse. Ele mandou a cada um dos presentes e a essas
duas mulheres segurar um dardo na mão. Depois, esse exorcista se pôs a dar início a uma dança
movimentada, executada com uma tal postura que parecia que eles queriam expulsar dos pés e das mãos
alguma coisa de que tinham horror. Uma vez bastante aquecidos pela dança, o velho Ombiasse
trapaceiro fez menção de lançar sua alabarda num vaso cheio d’água, da qual deu de beber às duas
mulheres e lhes deu uma joelhada para expulsar o diabo que elas não tinham. Com efeito, a meu ver,
tratava-se apenas de humor melancólico, que esse folgazão desfez com o calor de sua dança.
Dessa maneira é que fazem seus milagres para granjear respeito, não se esquecendo de pedir boa
paga, notadamente quando há doentes ricos. Eis como eles os curam. Primeiramente se põem em estado
de meditação e se recolhem em silêncio. Em seguida tomam de um tábua, nela espalham areia, sobre a
qual fazem uma quantidade de pontuações numeradas, que chamam de Sakilo. Repetem-no com
frequência para saber a origem da doença. Vendem uma parte dessa areia num pedaço de cera, que
mandam trazer ao pescoço para obter a saúde. Mandam, depois trazer bom número de bois e capões e
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dizem que é preciso retirar este, de preferência àquele. O importante é que escolhem sempre os melhores,
na ânsia de comer sua parte. Depois disso, fazem escritos sobre folhas, entrelaçam as letras e dão de
beber da água ao doente. Se o doente acaba ficando bom naturalmente, atribuem a cura a tais tolices.
Quem não teria compaixão da simplicidade desses povos, que se deixam enganar desse modo, às suas
custas, e quem poderia conter uma justa indignação contra esses velhacos? Eles sabem muito bem que
essas coisas são frívolas e impertinentes.
O que vai mais diretamente contra a honra de Deus, e que nos dará muito trabalho para eliminar,
é uma espécie de culto, igualmente ridículo e condenável, que os grandes do país e seus súbditos prestam
a certos ídolos que chamam de olis, como quem dissesse unguentos. Os Ombiasses os fazem e vendem. A
matéria desses pequenos ídolos é um pedaço de pau ou uma raiz oca, que amarram a um cinturão. Neles
colocam pó e óleo. Em alguns imprimem a figura de anõezinhos imaginando que estão vivos e são
capazes de lhes dar tudo que possam desejar, como o bom tempo e a chuva, a preservação contra as
doenças e os inimigos. Não deixam de dar-lhes de comer, ora mel, ora o coração de tal ave, de
preferência ao de outra. Como, com frequência, os fiz ver que esses olis eram coisas sem vida, que não
são capazes de comer, e não têm mais virtude e força do que um seixo apanhado pelo acaso, eles se
aborrecem. Não conseguindo, porém, que eu deixe de lhes mostrar os seus abusos, enforcam-se por
desconversar.Ao serem pressionados, confessam, em particular, que é verdade, mas que, se essas coisas
são mortas, a alma está com Deus. Cada um em particular tem algum oli em sua casa e os leva consigo
para os campos. Recorrem a eles em suas necessidades, como fazemos para com Deus. Em suas dúvidas,
nada fazem sem o seu conselho. Depois de consultá-los, o primeiro pensamento que lhes advém
acreditam que foi sugerido por seus olis. Quando semeiam o arroz e outros legumes, levam os olis para
os campos, sacrificam-lhes um animal, aspergem a terra com o sangue dessa vítima e rogam ao olis lhes
dê muito arroz de qualidade.
Quando querem atravessar os rios, recorrem primeiro aos seus olis, pedindo-lhes proteção contra
os crocodilos. Depois, dirigem-se aos próprios crocodilos, fazem-lhes uma arenga, em voz alta: “Escuta,
bem sabes que eu, jamais, nem os meus fizeram algum mal a teus pais, nem a ti mesmo. Suplico-te não
fazê-lo contra mim”. Em seguida, acusam-se do mal que fizeram: “É verdade que roubei isto e aquilo;
mas vou repará-lo”. Lançam logo água e areia em quatro direções e atravessam o rio com segurança. Se
acontecer que algum dentre eles seja capturado, dizem que seu olis não era bom. Digo-lhes que
abandonem essa abominável superstição e que basta recorrer a Deus em suas necessidades, que ele é
todo poderoso e que atribuam à sua bondade o que atribuem a esse ídolo.
A maior parte do povo pelos arredores daqui, graças a Deus, é mais descrente nesse ponto. O
próprio Deus, que sempre se mostrou cioso de sua honra, não deixa impunes tais abominações. Com
efeito, envia-lhes, como outrora no Egito, tão prodigiosa quantidade de gafanhotos, que chegam a encher
e obscurecer ao mesmo tempo o ar, como os flocos da neve mais espessa que se veem no inverno dos
países setentrionais. No momento em que escrevo, a terra está coberta por eles e comem os frutos de
suas terras e toda erva7; a terra fica depois como se fosse queimada pelo fogo. Os Ombiasses e alguns dos
grandes, longe de reconhecerem que se trata de um castigo de Deus, como punição de sua idolatria,
incutem no povo que eles têm o poder de atrair e dissipar esses gafanhotos. E quando o povo não lhes dá
o que pedem, como arroz e outras coisas, ameaçam-no de trazê-los; e se chegarem, dizem ao povinho
simples: “Não vos tínhamos dito?”. E ainda, depois de terem devorado tudo e irem para outras partes, se
gabam de tê-los expulsado. Há motivo para esperar da bondade de Deus que livre essa pobre gente desse
flagelo, se se submeterem ao jugo da fé e à observância dos seus mandamentos.

7. Sobre os costumes civis do país.


Fazem guerra entre si, para se apoderarem dos bois uns dos outros.
Os grandes tratam os escravos como cães; vendem homens pelo mesmo preço que bois, e crianças
como bezerros.
Os brancos, em toda parte onde detêm o poder, se reservam o direito de fazer a degola dos
animais que vão comer, não sendo permitido aos negros degolar os próprios animais. Esses degoladores
são de ordinário Ombiasses que ficam com uma porção do animal sacrificado e não é a menor. Nos
lugares onde os negros ficaram sendo os senhores, os brancos não se atrevem mais a degolar os animais.
Esse costume é uma inventiva para impedir o furto e fazer com que os grandes adquiram mais gado,
7
7. Sl 14, 35.
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depois da morte dos seus súbditos; pois ficam com tudo, sem nada deixar aos filhos daquele que
trabalhou toda a vida para ajuntar alguma coisa.
O artifício de que se servem os grandes para manter os pequenos sempre submissos é que se
apoderam das melhores terras, nas quais semeiam seu arroz, os legumes e outros víveres e lhes tomam
cada vez mais as posses que lhes restam, a fim de empobrecê-los e levá-los a recorrer aos armazéns
deles, sempre muito bem providos.
Os ladrões são punidos de diversos modos. Se se trata de grandes ou de donos de aldeia, há o
resgate em troca de bois. Se se trata de um pobre, matam-no; ou, se lhe concedem graça, ele, a mulher e
os filhos se tornam escravos do prejudicado.
O vício comum do país é a luxúria. Nem todas as espécies desse vício estão sujeitas à desonra.
Mas quando surpreendem um homem em adultério, matam-no, como fazem com o ladrão. Na realidade,
se for grande ou rico ele paga o resgate; se for pobre, matam-no ou o reduzem à escravidão.
Quem matou, fica livre para fazer seu resgate. Mas se for pobre e sem amigos, matam-no ou o
tornam escravo. Mas se o filho de um grande matar o próprio pai, não o condenariam à pena de morte.
O casamento é contraído entre parentes, exceto em primeiro grau. Não é estável. É permitido a
ambos se separarem e partirem para outra união, como acontece com frequência. A poligamia é
permitida, embora não seja geral, mas apenas numa boa parte entre os grandes, que têm condição de
nutrir várias mulheres.
Entre os negros não há grande cerimônia para o casamento, a não ser que a escolha depende das
partes e não dos pais. O marido ordinariamente compra sua mulher, dando por ela alguns bois ou outra
coisa aos pais. Entre os grandes, porém, realiza-se uma assembleia de pais, amigos e súbditos, de um e
de outro lado; e, muito frequentemente, o acordo e promessa de casamento se fazem pelos pais, desde o
nascimento do menino e da menina. Casam-se muito jovens. Matam bois no dia do casamento, como nos
seus Missanats. E na presença dos pais os Ombiasses lhes auguram uma quantidade de comodidades
temporais. Ligam-se-lhes os cabelos, e, de mãos dadas, o marido coloca o joelho no da esposa. Vem
depois o banquete, e a dança finaliza a cerimônia.
Os antigos franceses me afirmaram que as mães jogam fora os filhos nascidos aos sábados,
depois do ocaso do sol até ao canto do galo. As pobres crianças expostas acabam morrendo, se, por
acaso, alguém não as encontrar, como acontece aqui algumas vezes. Essas mães desnaturadas dão como
razão para esse ato desumano que essa hora é de mau agouro; se tais crianças vivessem, matariam seus
pais e mães. Contudo, os deixam por vezes viver, mas os obrigam a servir aos seus irmãos.
Dizem ainda que na Ilha de Santa Maria, situada na extremidade desta, as mães jogam também
fora os filhos que nascem nos dias que reputam maus, três dias da semana. Mas isso ainda não chegou
ao meu conhecimento. Com efeito, isso se faz às ocultas, como fazem as mães perversas da Europa, para
acobertar a própria honra. É o que dizem também ser comum neste país, quando a mãe é da estirpe dos
grandes e concebeu de um escravo.
Não colocam nome nas criancinhas até a idade de sete ou oito anos. Chamam de amboa, as
criancinhas meninas e de lambo aos meninos, isto é, cãozinho, porquinho, pois nesta idade, têm mais de
animal do que de homem. Quando grandinhos, um Ombiasse observa o planeta sob cuja égide a criança
nasceu e dá aos garotos o nome de Radama, que significa Adão; Raby, Ramose, Elias, Moisés; portanto,
nomes de profetas. Às meninas dão os nomes de Rahona, que significa Eva; Ramary, Maria; e outros
nomes, que significam que elas são bonitas, muito ricas, e que viverão muito tempo.
Os funerais dependem da qualidade das pessoas. Se se trata de um grande Roandrie,
amortalham-no sob belo traje, com o rosto descoberto e enfeitado, ao estilo do país, de colares de coral e
de pepitas de ouro e prata. Os parentes e amigos do defunto se reúnem e vêm para os rituais. A certa
altura, depõem de repente as armas e os escudos e se dirigem para o cadáver. Inclinam sobre ele a
cabeça, choram, bem cientes do que fazem, com cânticos lúgubres. Queimam perfumes e madeiras
odoríferas. Em seguida, conduzem o morto ao local destinado à sepultura, onde, ao chegarem, redobram
os gritos e gemidos, e o enterram. Depois disso, matam bois, e se entregam à alegria, superior à tristeza
anterior. Imediatamente, os marceneiros, os grandes do país, começam a trabalhar na construção de
uma espécie de casa, em cima da cova. Os escravos, em grande número, trazem uma grande pedra em
forma de pirâmide, que erguem diante da sepultura, e em cujo topo colocam um chifre de boi.
Essa mesma cerimônia se observa quando da morte de qualquer espécie de gente; mas a pompa
dos funerais aumenta ou diminui de acordo com a qualidade do defunto. Tanto os pobres quanto os ricos
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levam os primeiros frutos por eles colhidos para a cova do pai e deixam arvores frutíferas em torno das
sepulturas, e ninguém ousa colher frutos delas. Quando têm sonhos maus, mandam matar um animal na
intenção do falecido pai.
Nesse país aqui, ignoram até o presente o que é feito da alma após a morte e se ela se separa do
corpo para sempre. Agora que lhes dizemos o que a fé nos ensina, ficam totalmente admirados,
particularmente ao ouvir falar de uma eternidade bem-aventurada ou desgraçada.
É isto o que podemos observar dos seus costumes e superstições, tanto a partir de nossas
perguntas quanto porque presenciamos a maior parte de tudo isso. Há muitas outras regiões, na
extremidade da Ilha, que nós não conhecemos. Dizem que há portugueses num lugar e holandeses no
outro. Quando tivermos passado por toda a terra da Ilha e a tivermos contornado com um barco,
daremos a conhecer todas as suas particularidades. Mas, ainda quando não houvesse região ou outras
pessoas além das que conhecemos, esse grande número de ovelhas sem pastor, expostas à fúria e
crueldade dos lobos, bastaria para enternecer e estimular todos à compaixão cristã. Isto, principalmente,
se considerarmos a grande abertura e disposições existentes, e que as redes de um pobre pescador e
pecador como eu não são capazes de conter tão grande multidão de peixes, se operários zelosos e hábeis
não vierem ajudar-me, como se poderá ver pelo que direi em seguida.

8. Em que estado encontramos as coisas da religião cristã.


Depois de ter falado do país, dos habitantes, de seus costumes e superstições, é importante expor-
vos em que estado encontramos as coisas que dizem respeito à nossa santa religião, para cuja
propagação, viemos para aqui. Os Senhores da Companhia das Índias tiveram conhecimento desta ilha
por meio de uma pessoa herege que tinha as condições adequadas para se estabelecer aqui. Foram então
obrigados pela primeira vez a lhe confiar a direção e o comando dos que enviam para o país, todos
católicos, com exceção de nove ou dez hereges que o tal comandante tinha trazido. Esses Senhores da
Companhia sempre mantiveram um padre para o serviço espiritual dos franceses. Nós mesmos
encontramos um, chamado Padre Bellebarbe. Trabalhou no lugar de acordo com o seu talento, mas com
pouco progresso, porque não tinha apoio do comandante. Este último deixava a missa para os católicos e
mandava pregar a Palavra em sua casa. Esta situação, acrescida de algumas desordens domésticas,
fazia com que os infiéis não fossem nem às orações dos católicos, nem às do comandante, estranhando
por ver duas espécies de religião em pessoas do mesmo país. Os Senhores da Companhia me removeram
esse tropeço para o progresso da glória de Deus, chamando de volta o referido comandante e proibindo
que herege algum fosse admitido ao navio para viajar. O senhor Flacourt, um dos Senhores da
Companhia, ao receber essa ordem, assumiu a viagem tanto no interesse da glória de Deus, quanto para
servir a própria Companhia. Devemos esperar que Deus o abençoe em ambas as finalidades. Deus,
também, em sua grande misericórdia, nos escolheu como operários para cuidar das almas dos franceses
presentes nesse país, e trabalhar na conversão dos infiéis.
Só encontramos nessa terra cinco crianças batizadas, a saber, uma pequena abandonada no
mato, o filho natural de um francês e três pequenas escravas reconduzidas da guerra e retiradas do
massacre, que foram batizadas por um diácono já falecido.

9. Nossas ocupações nesse país.


Tratamos primeiro de edificar e conquistar cada um com uma doce e amigável conversação.
Aprouve à bondade de Deus servir-se principalmente desse meio para a conversão de cinco hereges.
Nosso primeiro trabalho foi de dispor os franceses que aqui encontramos a lucrar o jubileu em favor da
paz. Em seguida, aplicamo-nos na compreensão da língua do país. Tivemos nisso muita dificuldade, pois
o dicionário que nos emprestaram no navio, além de conter muito poucas palavras, não estava em boa
ordem e nem era seguro. Há grande diferença entre a pronúncia e a escrita e é outra coisa saber o
significado isolado da palavra e conhecer sua força na construção da frase, assim como distingui-la e
entendê-la no discurso dos naturais do país. Eis porque nos foi preciso, com muita dificuldade, reunir os
intérpretes, os quais ficavam atrapalhados para encontrar palavras que explicassem nossa fé, em um
país onde não se fala de religião. Procuramos treinar dois nesse exercício, Claúdio Hastier e Francisco
Grand-Champ. Este último desempenha bem melhor essa função.
Tão logo nos foi possível balbuciar algumas palavras, começamos a instruir os infiéis. Os negros
são muito mais dóceis que os brancos. Estes últimos se consideram personagens de espírito elevado e
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não procuram escutar ao lhes falarmos de assuntos de fé; se o fazem, é só por curiosidade e com
indiferença. Com os Roandries acontece o mesmo, verificando-se neles a palavra de Nosso Senhor: Ai de
vós ricos8; e estas outras: Escondestes estas coisas dos sábios e entendidos e as revelastes aos
pequeninos9. Os negros, depois de atenta escuta, dizem entre si: é preciso não mais jurar, nem trabalhar
aos domingos, nem roubar.
Os grandes dizem que seus escravos são incapazes de aprender a servir a Deus e gostariam de
nos impedir de instruí-los, de mantê-los na ignorância, temendo que venhamos a descobrir-lhes as
maldades.
Mas já que desejaríeis talvez, senhor Padre, que vos citasse aqui alguns casos particulares, pelos
quais pudésseis conhecer mais claramente a maneira que utilizamos para instruir esses pobres bárbaros
e como correspondem, de sua parte, à graça de Deus, relatarei aqui alguns.

10. Algumas particularidades no tocante à instrução dos insulares, desde 15 de dezembro de 1648
até após a Páscoa de 1649.
Seis dias depois de nossa chegada, ouvi dizer que o grande desta região chamado Andian
Ramach, estivera três anos em Goa, donde os portugueses o reconduziram para aqui, com a idade de
dezessete anos, e está agora com cinquenta. Fui estar com ele em Fanshere, onde mora, há um dia e meio
de caminhada daqui, acompanhado de alguns franceses da parte do senhor Flacourt. Acolheu-nos bem,
fez três sinais da cruz sobre a fronte, a boca e o coração, e disse: Per signum sanctae crucis de inimicis
nostris libera nos etc. (Pelo sinal da santa cruz, livrai-nos dos nossos inimigos); recitou também o Pater,
o Ave, e o Credo (o Pai Nosso, a Ave-Maria, e o Creio em Deus Pai) em português. Perguntei-lhe por um
intérprete, porque só havia ele no país que sabia orar a Deus e por que motivo não se empenhava em
mandar instruir os seus súbditos. Respondeu-me que eram incapazes e que não havia padres para
ensiná-los. Disse-lhe que viera encontrá-lo para servi-lo e a todos os seus súbditos também, e que eles se
tornariam capazes depois de terem sidos ensinados, como aconteceu com ele. Disse-me que ficava
contente com isso e que estaria presente às orações, quando as fizesse em sua aldeia. O mesmo me
disseram outros grandes do lugar e me rogaram que viesse instruir suas crianças. Esse reizinho disse que
foi batizado em Goa, num colégio onde havia vários padres; disse que estava doente e o batismo
devolveu-lhe a saúde; depois disso, se confessou e comungou uma única vez. Foi depois trazido para
aqui por um comerciante português, com o qual vieram dois padres que ficaram numa ilhota a duas
léguas daqui, onde se pode ver os muros de uma casa edificada pelos portugueses, há mais de cem anos,
como consta por uma inscrição de uma cruz de mármore. Um desses padres morreu e o outro voltou com
o comerciante, depois de ter batizado apenas um homem, com o qual conversei e que traz três cruzes
sobre a pele do estomago. Andian Ramach, oito anos após, voltou às suas superstições.
Depois de algumas falas de lado a lado, afaguei a juventude, estendendo-lhes a mão, à moda do
país, balbuciando algumas palavras da sua língua. Dei-lhes depois pequenos presentes de braceletes de
vidros com que ficaram maravilhados. Chamavam-me de meu Pai e eu os chamava de meus filhos. Todos
eles me fitavam com atenção; e quando me afastava para rezar o ofício divino, vinham ver-me rezar a
Deus e permaneciam ao meu redor.
Essa primeira viagem encheu-me de alegria e esperança. De volta, consolei meu estimado
companheiro com todas essas boas notícias. Passamos as festas do Natal lucrando nosso Jubileu,
administrando sacramentos e pregando aos franceses, como costumamos fazer. Chegando o dia de Reis,
para corresponder ao mistério da vocação dos gentios, começamos a batizar as crianças, antes da idade
adulta. O senhor Flacourt pôs no primeiro o nome de Pedro. Era a primeira pedra de nossa Igreja
espiritual.
Por esse tempo, partiu um navio com doze franceses, enviados para ficar em Santa Maria, uma
pequena ilha a duzentas léguas daqui. Lá se encontra um Roandrie, proprietário dela e mais quatorze
aldeias, com cerca de seiscentas ou setecentas pessoas muito sociáveis. Têm quase a mesma língua
daqui. O país é insalubre, a terra, embora boa para o cultivo, é difícil de desbravar por causa da
espessura do mato. O Padre Bellebarbe foi mandado para lá, com a função de cuidar deles. Pedi-lhe
tivesse todo o empenho possível em favor do cristianismo. Não ficou porém lá muito tempo, e já está
retornando para a França.
8
8. Lc 6, 24.
9
9. Mt 11, 25.
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Algum tempo depois, com um pouco mais de compreensão da língua, falávamos aos negros que
aprendessem a orar a Deus. Tinham muita vergonha, e se escusavam por sua incapacidade.
Tomando-lhes, porém, as mãos, fazíamos com eles o sinal da cruz, pronunciando as palavras
correspondentes. Ficaram maravilhados de ter feito e pronunciado o que antes acreditavam ser
impossível. Fazíamos o mesmo com a juventude. No domingo, nós os mandávamos dizer, por um
intérprete, uma palavra da doutrina cristã. Em pouco tempo, se libertaram da opinião que tinham de que
eram incapazes de aprender.
Vários Roandries dos arredores vieram visitar o senhor Comandante e lhe deram pequenos
presentes, na esperança de receber bem mais, conforme o costume do país. Aproveitávamos a ocasião da
curiosidade desses grandes para atraí-los, com seus escravos e vassalos que os acompanhavam, a visitar
nossa capela, onde, por um intérprete, lhes falávamos de nossa fé. Diziam que essas coisas eram belas e
que desejavam aprendê-las. Alguns, presentes à missa solene, perguntavam o que era aquilo e porque
depois do canto do padre todos os franceses respondiam do mesmo modo. Respondíamos a eles que
estávamos todos concordes em suplicar a Deus por nossas necessidades e unidos no canto em seu louvor.
Alguém nos disse que outrora, nesta terra, seus ancestrais tinham tido grandes casas, onde se reuniam
como nós em nossas igrejas, e que na sexta-feira, depois de terem cantado como nós, matavam bois,
carneiros e cabritos, para um banquete público; as guerras, porém, acabaram com tudo, desde há cem
anos.
Aproveitei-me da ocasião para dizer-lhes que lhes ensinaríamos uma maneira de orar a Deus,
mais excelente que a dos seus ancestrais, que era apenas material; o modo de servi-lo, como nos ordena,
não exige banquetes.
O mais sábio dos Ombiasses deste país, de cinquenta anos de idade, esteve aqui com outros.
Perguntamos-lhe por um intérprete, como ele servia a Deus. Ele nos disse que Ramofamade, isto é,
Maomé, era o profeta deles, e Moisés o nosso; que fazíamos bem em seguir a lei de Moisés, e eles, a de
Maomé. Contou-nos a história de nosso primeiro pai Adão, mais ou menos como está no Gênesis, com
exceção de uma circunstância impertinente. Dizia, com efeito, que havia um rio de leite, um outro de mel
e o terceiro de vinho; o motivo pelo qual Deus se aborreceu foi por causa do mau cheiro proveniente do
fato de Adão e Eva terem exonerado o intestino no jardim. Dizia mais que, entre os filhos de Adão,
alguns eram brancos e grandes senhores, dos quais descendiam os franceses e os brancos do país;
outros, eram negros e escravos, dos quais os negros eram originários. Falamos-lhe de Jesus Cristo,
Filho de Deus encarnado. Respondeu que seus livros faziam menção de um profeta chamado Raissa, que
viera imediatamente de Deus para a terra, sem ter nascido entre os homens e que era maior que Maomé,
o qual o tinha acatado. Ao dizer-lhe que era Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que nós
adoramos, respondeu que Deus não tinha filho, existia só. Enfim, eles esperavam, tanto quanto nós, ir
para o céu, observando as cerimônias dele. Não havia, porém, nenhum, entre os intérpretes, capaz de
explicar o mistério da Trindade, como espero seja possível com o tempo, acomodando-nos às
comparações e ao modo de falar deste país. A conclusão de nossa visita foi a de que ele ficara contente
com saber de nossa crença e de nos deixar seu filho de quinze anos, para depois aprender com ele.
Aceitei de bom grado sua oferta; mas o pequeno libertino não quis ficar. Disse-me que seu pai não lhe
permitia beber vinho até que tivesse aprendido as superstições deles.
Foi isso o que aprendi do mais sábio do país, o qual, contudo, não fala palavra alguma sobre
Deus aos negros, contentando-se com engodá-los com os seus olis e salis. Se alguém fosse capaz de
conquistar um Ombiasse como este, desinteressá-lo dos pequenos proveitos que usufrui de seus embustes,
os outros todos seriam logo ganhos. Mas é necessário bons intérpretes que saibam entender e expressar
as razões de uma e outra parte. Isso só seria possível a longo termo, pois a língua ainda não está
normatizada e não faz ainda muito tempo que os franceses habitam por aqui. Espero que, com o tempo,
Deus nos dê a graça de vencer essas dificuldades.
As primeiras visitas que fiz aos campos foram durante a quaresma, quando da doença de alguns
franceses, a três ou quatro léguas daqui. Passando pelas aldeias, os negros se reuniam, por curiosidade,
para verem um pequeno relógio de bolso que eu pedira emprestado. Admiravam-no e acreditavam que
era um ser animado, e diziam que éramos deuses, o que nos obrigava a dizer-lhes, como Paulo e
Barnabé, que éramos simples homens como eles. Aproveitava a ocasião para falar-lhes de Deus,
conforme nos era possível. Essa pobre gente dizia também que eram incapazes de aprender alguma
278

coisa, e quando queria ensiná-los a fazer o sinal da cruz, eles fugiam. Um mais ousado, que era o chefe
da aldeia, o fez e pronunciou as palavras; os outros, depois pediam para fazê-lo.

11. Sobre as visitas feitas no campo, a partir das festas da Páscoa de 1649 até o mês de junho.
Passadas as festas da Páscoa, soube que Andian Ramach fazia um Nissanath de sua casa, que
fora reparada. Julguei que minha presença seria oportuna, tanto para ver o que se passaria nessa
cerimônia, quanto para aproveitar a ocasião de falar sobre nossa fé em tão boa companhia, na presença
do Rei e de outros grandes que deverão também estar presentes. Levei comigo um intérprete, para falar-
lhes com mais facilidade. Pedi ao Rei que lhes falasse ele próprio sobre o que aprendera a respeito dela,
já que acreditariam mais nele. Ele mo prometeu por várias e diversas vezes, mas não o fez e foi o motivo
de termos perdido tal ocasião, ao contarmos com ele, por causa da grande confusão do banquete deles.
Falei, porém, do assunto, com os grandes do país e com os Ombiasses que se encontravam em sua casa.
Acresce ainda como vantagem da visita o fato de o povo, ao me ver sempre junto do seu Rei, ter
acreditado que eu dispunha de crédito junto a ele e isto foi, depois, de grande utilidade para mim,
chegando até mesmo a dizer-lhes, como era verdade, que o seu Rei me pedira que os instruísse. Ele
próprio insistiu que fosse morar com ele, que lhe desse o ofício das horas em português, e que rezaria a
Deus como outrora. Na ocasião da minha volta, solicitou-me que escrevesse a Luís de Bourbon para que
ele lhe mandasse um belo presente. Disse-lhe que ele não deixaria de fazê-lo, se retornasse à condição de
bom cristão, contribuísse conosco na salvação dos seus súbditos. E mais, disse-lhe que, quando fôssemos
morar com ele, não lhe seríamos pesados. Com efeito, essa gente daqui é tão mesquinha que é mais
oportuno dar-lhes alguma coisa do que receber deles.
Retornando de lá, um dono de aldeia, chamado Ramanore, um dos mais ricos e notáveis do país,
depois dos brancos, que assistira as nossas instruções em casa, depois de ter experimentado todas as
superstições dos Ombiasses, sem resultado algum, mandou pedir-me que entrasse em sua casa e
obtivesse de Deus sua saúde. Observei-lhe que Deus permite frequentemente as doenças de nosso corpo,
para a salvação de suas almas, mas que ele era todo-poderoso para curá-lo, se abandonasse a
superstição do país e quisesse seguir a Deus, como nós. Pediu, então, imediatamente, que fosse instruído
a respeito. Mandei reunir todos da aldeia para virem escutar. Falei-lhes, por intermédio de um intérprete
que trouxera comigo, das coisas mais importantes da fé e mais necessárias à salvação. O doente, após
ter escutado tudo, disse que o coração lhe estava aliviado e que acreditava em tudo que acabava de
escutar e que sentia grande compaixão para com o Filho de Deus, morto por nós; agradecer-lhe-ia por
isto e não o esqueceria. Perguntou se Jesus Cristo era bastante poderoso para restituir-lhe a saúde.
“Sim, disse-lhe, se acreditardes de todo coração e que vossa alma seja purificada de todos os vossos
pecados pelo santo batismo”. Mandou então trazer água e urgiu que o batizasse. Temendo, porém, o que
depois veio acontecer, que procurasse mais a saúde corporal do que a espiritual, adiei o batismo,
dizendo-lhe que era preciso testar se o seu desejo de servir a Deus era verdadeiro e ele só seria
confirmado se, depois de obter a saúde, como esperava que Nosso Senhor lho concederia, ele
completasse totalmente sua instrução, ele e toda a sua família.
A mulher dele, ao ouvir a explicação dos mandamentos de Deus, disse que já recorriam a Deus,
há muito tempo, e que em todas as ocasiões, sobretudo na semeadura e na colheita do arroz, elevavam os
olhos ao céu e diziam a Deus: “És tu que podes trazer o que colho; se disso tivesses necessidade, eu to
daria, e o daria aos que precisassem, como aos franceses que passarem por minha casa, e aos pobres
escravos”. Pensava então em Cornélio, mas não tivera uma visão para poder batizá-lo.
Os assistentes todos estavam extasiados com as coisas que lhes foram ditas, e diziam que tais
coisas valiam mais que o ouro e a prata que se poderia receber dos devedores; com efeito, quem no-las
poderia arrebatar? Nós as encontraremos sempre no coração, após o sono. Reconheci, por esses
discursos, que embora o Espírito Santo não tivesse descido visivelmente sobre eles, ele se manifestava,
contudo, de modo sensível, pelas luzes que lhes derramava sobre as almas. Despedi-me, deixando ao
enfermo a esperança da cura, e a todos, a de que seriam instruídos. Pouco tempo depois, tive notícia da
saúde desse bom senhor. Ele não insistiu comigo no sentido de que fosse instruído, como me prometera,
embora ateste que permanece sempre nesse desejo. Acredito que o respeito humano e o temor de ficar
mal com os grandes a quem serve, o faz diferir. Vive bem, moralmente, e batizei mais tarde dois dos seus
filhos. Alguns me diziam, depois, que deveria batizá-lo e que sua saúde teria dado crédito ao batismo.
279

Mas julguei que ele contribuiria mais pela credibilidade do batismo se o procurasse com seriedade em
plena saúde.

12. Sobre algumas visitas que fizemos nos meses de junho e julho, e sobre a morte do Padre
Gondrée.
Por ocasião das Rogações, o senhor Flacourt, indo a Fanshere, desejou a companhia de um de
nós. O Padre Gondrée foi até lá e sofreu muito. De fato, o calor, a viagem a pé e a abstinência – já que
comeu apenas um pouco de arroz cozido com água – a abstinência o enfraqueceu, e voltou com febre e
dores intoleráveis em todas as articulações. No auge dos seus males demonstrou grande constância e
sentimentos verdadeiramente cristãos.
Durante as festas de Pentecostes, embora extremamente afligido pela doença desse bom servo de
Deus, Nosso Senhor me deu forças para satisfazer à devoção dos franceses e de nossos catecúmenos.
Confessei, preguei e cantei a missa em latim; depois do almoço cantei as vésperas e dei instrução aos da
ilha.
Administrei o batismo a duas jovens adultas que se casaram com dois negros, batizados, um em
Paris pelo senhor Núncio, o outro em Nantes. Isto trouxe consolo ao nosso doente, que recebeu a unção
dos enfermos com grande piedade. Disse ele que todo o seu pesar era o de abandonar esses pobres
infiéis. Recomendou, depois, com grande fervor, aos franceses, o temor de Deus e a devoção à Santíssima
Virgem, da qual era devotíssimo. Rogou-me vos escrevesse, senhor Padre, e vos agradecesse, muito
humildemente, em seu nome, a graça que lhe concedestes de o admitir e o suportar entre vossos filhos.
De modo especial, agradecer-vos a graça de tê-lo escolhido, entre tantos outros mais capazes, para
enviá-lo para aqui. Rogava aos de nossa Congregação que agradecessem por isso a Deus em favor dele.
Disse-me em seguida: “Deixo-vos por testamento este aviso: sofrereis muito neste país, não pouco, mas
muito”. Tendo passado parte da noite em contínuas aspirações a Deus, entregou, sorrindo, sua alma, no
dia décimo quarto de sua enfermidade.
Foi enterrado no dia seguinte em meio às lágrimas de todos os franceses e dos infiéis. Estes
últimos diziam que, até nossa chegada, não tinham visto homens isentos de cólera e aborrecimento, e que
lhes ensinassem as coisas do céu com tanta afeição e mansidão como procedemos com eles.
Suplico-vos fazer aqui uma pausa para vos representar os sentimentos do meu pobre coração,
pela perda daquele que eu amava como a mim mesmo, no qual tudo era amável, e que era, nesta terra,
depois de Deus, toda a minha consolação.
Pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo a porção das graças do falecido, a fim de fazer sozinho o
trabalho de dois. Após a sua morte, experimentei o efeito de suas preces e uma redobrada força, no
corpo e no espírito, para trabalhar para a glória de Deus. Com temor de morrer antes de pôr em
andamento a obra de Deus, senti a urgência de trabalhar no que é mais necessário, como compor nesta
língua instruções sobre o que importa crer e fazer. Tornar-se-ão, assim, mais familiares para mim, e
ficarão para aqueles que virão, caso Deus venha a dispor de mim. Após muitas dificuldades para
exprimir as coisas da religião num país sem religião, cheguei ao fim do que é mais necessário. Enviei
uma cópia ao senhor Padre Bellebarbe, em Santa Maria, a fim de que se servisse dela; não o conseguiu,
porém, por falta de intérprete.
Depois de ter redigido em ordem as instruções, reuni os infiéis de nossa comunidade nos
domingos e festas. Ficavam admirados por me ver, em tão pouco espaço de tempo, falar na língua deles,
embora nada fizesse mais do que balbuciar o que aprendera de mais necessário. Os filhos de um grande,
chamado Andian Panole, distantes duzentas léguas daqui, e que vieram no interesse dos seus negócios,
vinham estar conosco e assistiam às instruções. De volta, disseram que desejavam também ser instruídos
e relatariam a seu pai o que tinham ouvido sobre a nossa religião. Dei-lhes a esperança de que, com o
tempo, iríamos até eles. Seria de grande proveito, pois essa região é melhor e mais bem povoada do que
esta em que estamos, e os seus habitantes são muito curiosos por assistir às preces dos franceses que vão
lá a negócio.
Não perco ocasião alguma de anunciar Jesus Cristo, pessoalmente ou por outrem, seja aos
negros distantes aonde vão os franceses. A estes, depois de exortá-los a se confessarem e comungar antes
da partida, recomendei a todos o temor de Deus e pedi-lhes que dessem bom exemplo aos infiéis.
Encarreguei os mais inteligentes de não deixar passar ocasião alguma de falar de nossa fé. Dei-lhes por
escrito, as instruções necessárias para esse fim.
280

No mês de junho, fui aos campos para ver se a semente celeste que lançara nas aldeias começava
a germinar. Soube que estavam fazendo assembleia solene em Fanshere para a entrada na casa de
Andian Sero, que afirmam dever suceder a Andian Ramach. Tendo ouvido dizer que aquele senhor de
aldeia chamado Ramanore, do qual falei anteriormente, ficara curado logo após a visita que lhe fiz,
insistiu ele comigo para ir à sua casa e orar a Deus pela saúde de seu neto. “Que queres, digo-lhe eu,
que eu faça? Pensas tu que Deus possa curá-lo sem os olis deste pais?” (Efetivamente, ele é um dos mais
supersticiosos). “Faz e diz o que quiseres, conquanto meu filho fique curado”. Elevei meu coração a
Deus com confiança, fui procurar Andian Romach e lhe disse: “Sabes bem o que é o batismo e de que
modo recebeste nele a saúde da alma e do corpo. Teu neto está aí, doente. Se quiseres que o batize,
manda vir à tua casa teu genro, tua filha, e a criança. Vou explicar-lhes o que é o batismo, e dá a ele o
nome que quiseres”. Ele o fez e lhe deu o nome de Jerônimo. Disse-me que pronunciasse as palavras, as
quais ele também pronunciou. Fiz com que lhe dissessem por um intérprete que a criança deveria viver
como bom cristão; o pai me disse: “Eu to dou e quero que sejas seu pai e sua mãe, quando ele crescer”.
Batizei-o em seguida, dando a entender aos Roandries presentes que, embora se batizem as crianças sem
as disposições por parte delas, era, contudo, necessário que os adultos recebessem anteriormente as
instruções. A criança recobrou pouco depois a saúde e, pela graça de Deus, não houve aqui morte de
criança após o batismo, como acontece no Canadá. Eis porque os pagãos não alimentam repugnância ao
batismo de seus filhos. Acreditam que isso lhes conserva a saúde, depois do que aconteceu a um negro,
ao qual disse que seu filho morreria, se o mandasse circuncidar; o que aconteceu. Veio ele depois com
sua mulher dizer-me em prantos: “Bem que tu mo tinhas dito”. Essa pobre gente chorava a perda do
corpo do seu filho, e eu a de sua alma. Andian Ramach, antes de minha partida, falou sobre os
mandamentos de Deus ao povo; e eu confirmei sua fala, oferecendo-me para instruí-los. Os Roandries
que tinham vindo para a festa disseram que queriam ser batizados, antes de irem embora. Entrei na nova
casa, que encontrei cheia de mulheres e Roandries. Falei-lhes de nossa fé. Elas me replicaram que os
Ombiasses do país eximiam as mulheres de aprender algo, como incapazes. Ao lhes dizer, porém, que na
França as mulheres eram tão versadas em servir a Deus quanto os homens, disseram-me que gostariam
muito que houvesse aqui algumas delas para instruí-las.

13. Sobre outras visitas feitas nos meses de agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro.
Desde a morte do meu caro companheiro, com quem me aliviava e a quem confiava o cuidado de
nossa moradia e dos arredores, não posso mais ir tão longe quanto antes. Realmente, nos domingos e
festas, preciso ficar em casa, para celebrar a santa missa e o ofício divino e fazer as exortações aos
franceses e as instruções aos infiéis do entorno. É a razão pela qual minhas viagens são de apenas seis
dias.
No mês de agosto, fui até as montanhas mais próximas de nós. Instruía, durante o dia, os que
estavam nas aldeias, e à noite, ao clarão do luar, tanto esses quanto os que retornavam do trabalho.
Fiquei extremamente consolado ao notar que eles criam de todo o coração, e dizia-me, com lágrimas nos
olhos: “O que lhes impede de serem batizados 1010?”. Temendo, porém, que abusassem do batismo, não
tendo padres para entretê-los na piedade cristã, entreguei tudo à adorável providência de Deus. Teria eu
batizado algumas crianças, mas temia que não pudéssemos distingui-las mais das outras, sobretudo
porque os pagãos mudam frequentemente de moradia. Acredito mesmo que será conveniente
providenciar-lhes uma marca para distingui-las.
As que batizei nas aldeias vizinhas eram reconhecidas. Chamavam-nas na região pelo nome de
batismo: Nicolau, Francisco, Jean, etc.
Seria muito longo e enfadonho se quisesse precisar os nomes, as viagens, as aldeias, os povos aos
quais anunciei Nosso Senhor Jesus Cristo e as particularidades acontecidas. Posso dizer-vos que não se
pode desejar maior disposição para receber o Evangelho. Todos se queixam de que os franceses, desde o
tempo em que se encontram no país, não lhes falaram sobre nossa fé, e têm uma santa inveja dos vizinhos
de nossa habitação.
Relatarei somente o que se passou em algumas ocasiões particulares. No fim do mês de
novembro, fui visitar as aldeias para além de Fanshere. Levara uma grande representação do juízo final,
do paraíso e do inferno. Em cada aldeia, dizia-lhes que viera para que seus olhos vissem e seus ouvidos
escutassem as coisas relativas à sua salvação. Depois de lhes ter explicado o que era preciso crer e os
10
10. At 8, 36.
281

mandamentos de Deus, mostrei-lhes as moradas da eternidade e os concitei a escolher entre as alturas e


o fundo dos abismos, o inferno ou paraíso. Eles gritavam: Tsiary aminy Rabilo; aminy Zanahary tiako
andeha (não quero escolher ir para o diabo; é com Deus que quero ficar).
Diziam consigo mesmos que seus Ombiasses não lhes falavam de Deus e os visitavam apenas por
interesse e para enganá-los; e que eu os instruía de graça. Admiravam como fora possível imprimir
figuras em papel. Ouvindo falar do pecado de nossos primeiros pais, alguns os maldiziam e falavam:
“Oh! Como teria sido belo permanecer como Deus nos havia criado, sem precisar de trabalhar, nem
estar sujeitos aos males desta vida, nem à morte!” Outros clamavam contra o diabo, e diziam que, se o
pudessem agarrar, o queimariam. Quando alguém chegava tarde e as figuras já estavam dobradas,
diziam-lhes: “Ah! não viste a riqueza”. E era preciso desdobrá-las e explicá-las de novo.
De volta, passei por Fanshere e mostrei meus cartazes ao Rei que os conhecia e os explicava.
Pedi-lhe depois a permissão de batizar as crianças de sua aldeia e que proibisse a circuncisão. Disse-me
que não impediria o batismo, mas que eu deixasse que se fizesse a circuncisão. Importa ter um pouco de
paciência para convencê-los com o tempo. Se pudermos devolver esse reizinho à sua anterior condição
de cristão, os outros grandes o acompanharão e teremos com que cansar nossos braços, administrando o
batismo. Como os menos dispostos a acolher o Evangelho são os brancos e, entre eles, os grandes e os
Ombiasses, tratei de não perder ocasião alguma de falar-lhes da nossa fé. Com efeito, se esses forem
conquistados para Deus, será fácil quanto aos demais.
É essa a razão pela qual, tendo ido até à extremidade da ilha, a dois dias de viagem daqui, onde
experimentei suprema consolação, por ver tamanha disposição no povo, fui estar com Andian
Madamboro, irmão mais velho do Rei, suplantado por seu irmão mais novo. Esse grande é um Ombiasse
e muito supersticioso, a quem atribuem o poder de atrair e expulsar os gafanhotos. Pediu-me primeiro
que lhe desse algum remédio para gota, de que estava acometido. Disse-lhe que só Deus poderia curá-lo
ou dar-lhe paciência em sua enfermidade. Em seguida apresentei-lhe a boa-nova de Jesus Cristo.
Dizendo que era preciso crer naquele do qual segurava a figura, tomou-a, beijou-a, colocou-a sobre a
cabeça e o coração e rogou-me permanecer com ele para instruí-lo. Pude apenas dar-lhe esperança. Tive
desejo de ver seus livros, que estavam enegrecidos de fumo. Os presentes todos, segurando-me pela
batina, me gritavam: “Que vais fazer? Tu nos atrairás desgraça. Lava, portanto, tuas mãos e tua boca”.
Zombando dos seus temores, peguei os livros, onde vi apenas figuras mal traçadas. Ao lhe
perguntar o significado dos escritos, disse-me que ali estavam os nomes dos planetas. Disse-lhe que era
preciso abandonar todas essas superstições e ilusões com que enganava o povo. Respondeu que não
tinha conhecimento de mal algum e não tinha intenção de servir ao diabo, mas de observar os costumes
dos seus ancestrais. Disse-me que o esclarecesse mais e abandonaria tudo aquilo; que viesse com
frequência estar com ele, conquanto não fosse na sexta-feira, dia em que não falava com ninguém,
porque observara que todos os que tinham falado com ele nesse dia se tinham dado mal, em
consequência de algum acidente sinistro. Quanto a mim, disse-lhe que procuraria vir nesse dia, no qual
Nosso Senhor Jesus Cristo nos resgatara com sua morte. Mandando que fizesse o sinal da cruz, deixei-o
nestas boas disposições.
Fui em seguida visitar Andian Machiore, genro do Rei, em outra aldeia (atribuem a este o poder
de chamar a chuva, de sorte que, à primeira queda d’água, traziam-lhe bois como agradecimento).
Discorrendo com ele na presença de vários habitantes do lugar, perguntou-me se choveria logo, pois o
arroz deles estava todo queimado, por falta d’água. Vi a lua pálida e o céu se carregando. Disse-lhe que,
a meu ver, bem cedo cairia água, mas que nada sabia ao certo, porque isto pertence unicamente a Deus,
que envia e retém a chuva conforme lhe apraz. “Mas tu, disse-lhe eu, se tens poder de fazer a chuva cair,
porque permites que o arroz do país e o teu sequem e se percam?” Atribuiu tudo aos seus olis que tinham
todos seus próprios nomes. Lembro-me de um que ele chama de Andiam Valotomboko, isto é,
Monsenhor, que tinha oito pés. Sentia-me um pouco em ardores de justa indignação contra essas
falcatruas e disse que era a diabos que eles prestavam honra, sob tais figuras ridículas, e que eram
invenções de mágicos, para transferir aos demônios a honra que pertence unicamente a Deus. Falarei de
teus testemunhos diante dos reis, sem ficar envergonhado1111. Não há perigo em dizer-lhes a verdade,
tanto mais quanto não ousariam fazer mal a francês algum, muito menos a mim, que converso com eles
com mansidão, sem contudo lisonjeá-los, quando se trata da glória de Deus.

11
11. Sl 118, 46.
282

A maior dificuldade será a de converter esses soberbos, incapazes de raciocinar. Realmente, neste
país não há ciência de espécie alguma. O costume e o interesse temporal sobrepõem-se à razão. Disso,
porém, não nos devemos espantar, em pessoas que ainda não têm senão uma centelha de conhecimento.
Na Europa, encontramos pessoas perfeitamente esclarecidas, que experimentam as mesmas dificuldades
para se afastarem dos vícios.
Estive, há algum tempo, para além das montanhas, numa região chamada vale do Amboule, onde
existe apenas um grande. Ele e todos os seus súbditos, cerca de quatro mil, são negros. Não há
Ombiasses, mas eles vão até lá vender seus olis. Estando na casa do Rei, mostrei-lhe o quadro do juízo
universal, dizendo que Deus mandaria queimar assim os polígamos, a ele e as suas mulheres (ele tem
cinco mulheres). Mudou de fisionomia, rogou-me que viesse instruí-lo e que obrigaria seus vassalos a
receber o Evangelho.
Visitei, nas festas de Natal, a região de Anossi, onde há cerca de dez mil homens. Restam-me
apenas duas visitas a fazer, para terminar de restaurar os caminhos em toda parte por onde o próprio
Senhor há de vir. Fá-lo-ei, quanto antes, a fim de que os que vierem encontrem ao menos a terra
desbravada. Foi tudo feito com grandes fadigas. Mas aquele que fez cair sobre os Evangelistas a neve
como lã1212 faz que o calor aqui pareça um doce orvalho sobre os que estão na fornalha da caridade.

Conclusão

Eis que o navio vai levantar ferro, depois de me ter dado tempo para redigir este relatório. Como
conclusão, dir-vos-ei, senhor Padre, que todo esse povo desfalecido só aguarda o aquae motum1313 (o
movimento da água) e a mão de alguns bons operários para mergulhá-los na piscina do batismo. Por
quantas vezes, evangelizando os campos, escutei, não sem derramar lágrimas, essa pobre gente gritar:
“Onde, então, está essa água que lava as almas, que tu nos prometeste? Manda que venha e faz sobre ela
as orações”. Mas vou adiando, temendo que a peçam ainda apenas como recurso material, como aquela
que, para se livrar de ir ao poço, pedia a Nosso Senhor a água que mata a sede, sem conhecer ainda
aquela que extingue o fogo da concupiscência e brota para a vida eterna.
Disse no início que encontramos cinco crianças batizadas. Aprouve a Nosso Senhor acrescentar
mais cinquenta e duas. Embora haja muitos adultos suficientemente dispostos, vou adiando até que seja
possível fazer-lhes o casamento logo após o batismo, para remediar os vícios do país, como já fizemos
com os que foram batizados na França. Cuidarei, entretanto, que nenhum dos que estão suficientemente
dispostos venha a morrer sem o batismo. Batizei, há algum tempo, uma pobre velha gravemente enferma,
na qual Deus manifestou os efeitos de sua graça, mediante os elevados sentimentos sobre sua bondade,
que lhe inspirou repentinamente. Partiu, como a primeira do país, para a bem-aventurada eternidade.
Seu corpo foi o primeiro enterrado no cemitério dos franceses.
No dia da Purificação, benzemos e lançamos a primeira pedra fundamental da Igreja, que vamos
construir como nossa morada, depois de ter agradecido a Deus o ter-nos escolhido para edificar um
templo à sua divina Majestade, num reino tão grande, onde não há vestígio algum de igreja, apesar das
quatrocentas mil almas existentes. Podemos talhá-las para serem pedras vivas do edifício espiritual que
esperamos erigir para a sua glória.
Aguardarei socorro e as ordens da Sagrada Congregação da Propagação da Fé e as vossas.
Entrementes, se não for possível avançar muito, tratarei de não deixar perder o que se iniciou. Onde
estão tantos doutores, como outrora dizia São Francisco Xavier, que perdem tempo em Academias,
enquanto tantos pobres infiéis pedem pão sem que haja quem lhos parta1414? Queira o dono da casa
prover a isto! Com efeito, se não houver ao menos uma certa quantidade de padres para a evangelização
e a manutenção dos seus frutos, não é possível avançar. Com efeito, ainda que o povo seja crédulo e fácil
de ser atraído para o seio da Igreja, o apego que tem às coisas temporais sufoca, como os espinhos, a
semente lançada em seus corações. E embora a recebam com alegria, seca depressa por falta de
umidade1515. Não duvido, senhor Padre, que todos os membros de nossa Congregação não exultem de
alegria com notícias tão desejáveis ao seu zelo e não queiram cooperar com Deus para a conquista desse
12
12. Sl 147, 16.
13
13. Jo 5, 3.
14
14. Lm 4, 4.
15
15. Lc 8, 6.
283

novo reino para Jesus Cristo. Pela compaixão de me ver sozinho, num país distante, administrando os
sacramentos aos outros, sem poder receber a não ser a Santa Eucaristia, hão de suplicar a bondade de
Deus que me fortaleça com sua graça.
O que mais poderá consolar-me, depois de Deus, será ter notícia do que se passou de mais
importante em nossa Congregação, para o bem da Igreja e a glória de Deus, ao qual continuo a rogar
por vós, senhor Padre. Praza ao Senhor, antes de vos chamar para junto dele, vos dê a graça de ver
vossos filhos multiplicados como as estrelas do firmamento, e que todos possam se tornar pais de várias
gerações para o céu, onde espero ver-vos, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, o auxílio de
vossas preces e as de todos os nossos coirmãos. Sou, senhor Padre, vosso muito humilde e muito
obediente servo,

CHARLES NACQUART
Padre da Congregação da Missão e missionário apostólico nesta ilha.

Madagascar, Fort-Dauphin, Tholanghare, residência dos franceses, 5 de fevereiro de 1650.

1180. – A GUILHERME DELATTRE, SUPERIOR, EM AGEN

6 de fevereiro de 1650.

Estou convencido de que o que vos imputaram a respeito dos Padres Jesuítas é apenas uma
calúnia. Não quereríeis chocar uma Companhia tão santa e tão útil à Igreja de Deus como é esta. Louvo a
Deus, também, por terem reconhecido a verdade. Espero que o que aconteceu só servirá para vos
aproximar mais intimamente desses Reverendos Padres, aos quais desejo que testemunheis grande estima,
afeição e deferência, como me empenho em fazer por aqui. E o faço com grande consolação.

1181. – A UM PADRE DA MISSÃO1

...Sendo assim, como me suportaram até agora na função que desempenho, a mim que sou o mais
rústico, o mais ridículo e o mais tolo dos homens, em meio a essas pessoas de condição, com as quais não
saberia dizer seis palavras consequentes, sem que se veja que não tenho inteligência nem bom senso! Mas
o que é pior, não tenho virtude alguma que se aproxime das da pessoa de que se trata.

1182. – A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

9 de fevereiro de 1650.

Não me fizeram queixa alguma, como pensais, a respeito do quarto que mandastes pavimentar.
Nada sei sobre isso, a não ser o que vós mesmo me escrevestes. Mas é o bastante para imaginar que o
superior1 não esteja contente com esse reparo, como também não dos outros feitos durante a sua ausência.
Isto me enseja a ocasião de vos rogar que nada façais de alguma importância a não ser em concordância
.
Carta 1180. – Reg. 2, p. 125.
.
Carta 1181. – Manuscrito do Irmão Robineau, pp. 22 e 61.
1
1.Esse missionário se queixara do seu novo superior, dizendo que ele não era bastante civilizado. Depois de ter feito deste último um
merecido elogio, São Vicente acrescenta as palavras acima. Se, como é muito provável, o superior em questão outro não era senão o Padre
Watebled, a carta é de 1650.
.
Carta 1182. – Reg. 2, pp. 307, 132. O segundo fragmento, talvez o primeiro no original, começa com as palavras “folgo muito por” (Em
francês: Je suis bien aise que - N. do T.).
1
1. Antônio Lucas.
284

com ele. E se, por acaso, ele não estiver de acordo e a coisa vos parecer necessária ou muito útil,
informai-me sobre as vossas razões e as dele. Veremos se será necessário fazê-la ou adiá-la.
Raramente recebo carta do Padre..., e jamais fez menção de vós comigo, pelo menos no sentido
em que estais pensando. Além do mais, não permitirei que tais pessoas tomem a iniciativa de me avisar
do que se passa na comunidade, onde não devem se imiscuir. E depois, sois bastante sábio e prudente para
que se encontre muita coisa a censurar em vossas ações. Mas ainda que alguém viesse a censurá-las, sem
motivo, não ficaríeis feliz por sofrer pela justiça, já que Nosso Senhor clamou bem-aventurados os que
são assim perseguidos? Peço-vos, senhor Padre, manter vosso coração em paz. Pertenceis a Deus, por sua
graça, e estais decidido a viver e morrer para a sua maior glória. Não haveria nisso grande motivo de
felicidade e de se alegrar incessantemente, fossem quais fossem as provações por que pudésseis passar?
Folgo muito por terdes pressentido a disposição do senhor Bispo de Le Mans 2, a respeito da taxa
de vossas capelas. Vejo com clareza que algum dia ele poderá decidir-se por um processo. Por ora, vejo
nisso algum inconveniente a se temer; rogo-vos, por isto, que pagueis essa taxa, sem prejuízo de vossos
direitos. Pagamos durante vários anos a que nos foi exigida no início de São Lázaro, aguardando o tempo
oportuno para dela nos isentar, como fizemos depois. Contentávamos primeiro com uma simples queixa,
ora ao senhor Bispo de Paris, ora aos comissários do clero e ora a outras pessoas, procurando, deste
modo, dispô-las para, com o tempo, nos eximir dessa imposição indébita. Bastará, talvez, a pregação de
uma boa missão, com a qual o senhor Bispo ficará bem contente, para conciliar-vos sua benevolência, e,
com seu favor, vos aliviar dessa taxa excessiva, uma vez fundado em justiça, como estais.

1183. – CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Senhor Padre,

Vossa santa bênção, por favor!


Temendo que lessem as cartas e as desviassem, deixei a presente fora do pacote, e a confiei a um
amigo, para entregá-la unicamente a vós, pelas razões que nela vereis e que julguei conveniente não
misturar com o que se encontra em meu relatório. Trata-se de uma espécie de comunicação interior,
para vos solicitar conselhos a respeito de algumas ocasiões que me sobrevieram. Desejo saber como se
comportar nelas, e quem vos mostrará como se deve proceder para morar nessa residência. Lembro-me
que desejastes para mim a participação na paciência de Nosso Senhor, e vos direi aqui as pequenas
dificuldades para exercê-la, que ocorreram ao meu espírito.
Dissestes-nos que esses senhores nos dariam as coisas necessárias, não somente ad victum (para
o sustento), mas também ad vestitum (para o vestir). No entanto, o senhor Flacourt, pelo que me disse em
La Rochele e aqui, não tem intenção de fornecer roupas. Sendo assim, para não contristá-lo, empreguei
em La Rochelle, quer em tecidos, quer em roupas e outras necessidades menores, cerca de dois terços do
que nos tínheis enviado em dinheiro. Sem isto, não traria mais a marca externa de padre, como também
não o Padre de Bellebarbe, atualmente com traje cinza. Empreguei aqui o restante, ficando apenas com a
sobra de dez escudos, para obter as coisas necessárias e suprir ao demasiado pouco que me deram para
ir visitar os doentes no campo. Informai-vos sobre isso, se enviardes alguém para aqui, e especificai
tudo, para evitar desentendimento. Preferi gastar tudo a dizer a menor palavra a respeito, e fiz o
empréstimo de cem francos junto ao capitão do nosso navio, como vos comunicarei na letra de crédito
exarada expressamente em favor dele.
Não foi pouca a dificuldade que tive para pôr em prática o que me tínheis escrito sobre a
conversação suave e respeitosa, mas fiel, em manter o interesse de Deus e não trair minha consciência.
Com efeito, sabeis que os discursos dos homens do século versam com frequência sobre coisas que não
deveriam ser ouvidas por um padre. É quando a impureza, ou a maledicência, ordinariamente contra os
eclesiásticos ou outras pessoas, se infiltram nas conversas. Trato de desviar-lhes o rumo da melhor
maneira e o mais suavemente possível. Desejando ser fiel a Deus e à minha consciência, acabo me
tornando molesto. Entre as duas alternativas, porém, escolhi, antes, a de agradar a Deus do que aos
2
2. Feliberto de Beaumanoir de Lavardin.
.
Carta 1183. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII.
285

homens, receando perder a qualidade de servidor de Jesus Cristo. Só o senhor Flacourt não tem gostado.
Os outros aprovam e levam a bem. “Que a integridade e a retidão me preservem, pois em ti espero,
Senhor1”.
Quando aqui trabalham nos domingos e festas, sem permissão e antes da missa, advirto sobre a
necessidade de seguir o costume da Igreja, isto é, não fazê-lo sem necessidade, sem a dispensa e, sendo o
caso, depois da missa. Em razão disto, fui acusado de querer ditar a lei e me intrometer na esfera
temporal, por ambição.
Quando, para remediar as queixas e murmurações de muitos, avisei aquele que tinha poder para
estabelecer a ordem, passei por autor de tudo isso.
Quando, por compaixão, querendo escutar os doentes que se queixavam de estar morrendo por
falta de alimentação e de remédio, me dirigi com respeito, em nome deles, ao pai de família, fui
despachado, sabe Deus de que modo, como se fosse eu que os tivesse induzido a se queixarem. Dói ao ver
tão pouca ordem nisso, que se torna necessário, aos que na França prometeram medicamentos em suas
doenças, vender suas camisas para obter galinhas, que não chegam a custar um soldo em moeda deste
país, e curar verminoses trazidas da França. Às vezes têm de rasgar a roupa para pensar feridas. Que
fazer diante disto? Vereis numa carta inclusa, dirigida aos proprietários da Companhia de Paris, que vos
peço ler e não lhes mostrar2, a não ser no caso de eu ser caluniado, como tenho motivo para crer que
seja esta a paga dos pequenos serviços que prestei a esses senhores, depois de ter exposto minha vida em
mar e terra. Mas nada há de perdido para Deus.
Como proceder em relação a essas miseráveis guerras de que falo a esses senhores? Dizem por
aqui que se encontrarão muitos pretextos, no passado e para o futuro. Sei, no entanto, que não há senão
falsos pretextos, capazes de destruir a obra de Deus e de pôr a perder a salvação dos que com elas
continuarem. O motivo é poupar um pouco de mercadoria. Não há muita coisa a fazer pela religião nesse
país, com um Governador piedoso apenas nas aparências, e que na verdade só pensa nas coisas
temporais. Não bastam apenas palavras, mas pessoa que contribua de fato com o exemplo e autoridade
para os desígnios de Deus, que são de tão grande consequência, como podeis estimá-lo.
São Francisco Xavier muito fez com sua virtude e zelo. Mas a autoridade dos que o apoiavam e
lhe forneciam liberalmente as coisas necessárias, contribuiu muito para o êxito. Aqui, não há punição
para os franceses escandalosos, nem para os vilões e vilãs do país a serviço da residência. Os franceses
se liberam dizendo: “Não vou confessar-me”. Dos outros, diz-se que são cães. Não haverá para esses
senhores um meio de estabelecerem a justiça?
Não tenho motivo para me queixar da minha alimentação, que reconheço ser boa, até demais.
Mas quando se trata de atrair algum negro ou crianças com presentes, dizem que isto é total desperdício.
E por causa deste pretexto de avareza, não consigo atrativo para pescar homens. Se os gastos não fossem
muito pequenos para fornecer com liberalidade as coisas necessárias, como sabereis melhor daqueles
que moravam aqui, não seria eu capaz de vo-lo especificar por escrito.
Por causa de um pedaço de cristal que recebi de um negro, fico suspeito de empreender tráfico
nesse país. No entanto, eu o destinava à confecção de uma pequena cruz para colocá-la na igreja! E o
trabalho me custaria mais do que o valor do material. E a cruz não teria quatro dedos de comprimento,
para dois de largura. Mesmo assim eu o entreguei, depois que mo pediram, importando-me tão pouco
com pedrarias quanto com palha.
Se o tal senhor não tivesse ainda feito a barba no domingo, tínhamos que atrasar a missa. E ainda
apresentou-me suas queixas, por ter eu feito pouco caso dele, ao não chamá-lo para se acomodar
melhor, dizendo-me que algum dia haveria outros padres aqui. Fi-lo ver que encarregara seu empregado
de ficar atento, caso ele não estivesse pronto, e que ele me avisou antes do último toque. Quando todos já
estão reunidos e o padre paramentado, não há mais tempo para algum aviso.
Disse tantas vezes que houve religiosos se oferecendo para pagar as próprias passagens e fazer
as suas despesas aqui; e que diria à Companhia que não haveria perigo em deixar vir quem quer que
fosse e de todos os feitios! Não sei se foi por censura ou com outra intenção. Respondi-lhe que desejava
apenas que Deus enviasse quem lhe pudesse prestar melhor serviço. Experimentarão os outros os
mesmos empecilhos que nós, e a multidão e diversidade resultaria apenas em confusão. Tudo isto,
1”
1. Sl 24, 21.
2
2. Esta carta foi publicada nos Mémoires de la Congrégation de la Mission, t IX, p. 94 e ss, conforme uma cópia conservada nos arquivos da
Missão.
286

acrescido à dificuldade que encontro na direção dos franceses, faz com que vos proponha examinar se é
conveniente encarregar-nos, para o futuro, dos franceses. Eles ficarão, dora em diante, em várias
residências mal regradas e em regiões insalubres, muito distantes umas das outras. Qual o meio de
atender a eles e aos negros? Não seria melhor que esses senhores tivessem bons padres seculares
assalariados a serviço de suas residências? Nós outros, em número bastante suficiente para constituir
uma comunidade, moraríamos em lugares onde houvesse mais esperança de conquistar almas,
ocupando-nos apenas com os negros. Com efeito, é difícil falar de regras da Missão e de recolhimento
com apenas um padre; e ainda que fôssemos dois, seria o mesmo com franceses de uma residência, em
meio à balbúrdia das bebedeiras, das cantorias, dos seus afazeres, das desordens que sobrevêm por
ocasião do cuidado que é preciso ter quando se vive e se frequentam pessoas seculares.
Fareis, sem dúvida, o que vos aprouver. Quanto a mim, porém, em particular, estou muito
cansado. E não creio que seja possível conseguir grande resultado com os negros, se não nos
desincumbirmos totalmente desse senhores para nos ocupar somente com as missões.
Além disso, é contra nossa regra assumirmos paróquias e não é possível fazer bem uma coisa e
outra. Conheceis que desarmonia causa isso em Richelieu, embora haja uma comunidade tão numerosa
para se ocupar dos dois ministérios. Ademais, como creio, os franceses no futuro se casarão com
mulheres do país e escolherão lugares afastados e longínquos. Como atender a tudo?
Andian Ramach me disse várias vezes que fôssemos morar em Fanshere, junto dele. É um lugar
adequado a uma residência de seis padres, para trabalharem nas missões desta região, que poderiam ser
realizadas, pouco a pouco, nas aldeias, com o auxílio de um intérprete. Poderíamos manter lá um
seminário de meninos, e os há em quantidade, cujo sustento não custaria muito. Estão com a idade em
que seriam capazes de receber instrução. Não há necessidade de roupa ou trajes, como na França.
Andam totalmente nus. Bastaria uma faixa de tecido com que cobririam a cintura. Estão acostumados a
dormir no chão, e a viver de arroz e raízes do país.
Não sei o que vos dizer das meninas, para cuja direção se necessitaria de algumas viúvas
virtuosas, ou de jovens da França que delas cuidassem. Assim mesmo, seria embaraçoso para nós, pois
sabeis da importunidade desse sexo. Filhas da Caridade de virtudes sólidas seriam muito próprias. Mas
não poderiam morar conosco, ne crederentur uxores sacerdotum (para não pensarem que fossem esposas
dos padres), por parte deste povo suspeitoso e mesmo pelos franceses. Mas é coisa muito necessária
instruir e contribuir para reprimir a libertinagem da luxúria, inspirando o pudor nas meninas,
assediadas por toda parte, desde a sua juventude, tanto ou mais do que os garotos. Dessa juventude
sairiam casamentos honestos, cujos filhos seriam ainda melhores cristãos que os seus pais. Realmente,
importa fazer aqui como se faz para reformar uma comunidade; tiraremos dos velhos o que de melhor for
possível. Mas os filhos é que instruirão os seus pais e que reformarão o país. Outra coisa não me dizem
por toda parte: “Somos numerosos demais; vem instruir nossas crianças”. E os filhos o pedem
igualmente, embora sejam muito travessos. Efetivamente, o amor exagerado dos pais, que tudo lhes
permitem, sem castigo, os estraga com mimos.
Seriam necessários quatro irmãos coadjutores, dos quais um seria farmacêutico e cirurgião, com
um pouco de conhecimento sobre o tratamento de doentes, capaz de prover os medicamentos necessários,
já que não existem neste país. Um outro, alfaiate, trazendo roupas e tecidos para nós e droguete para os
garotos, assim como batinas pretas, caso venhamos a erigir um seminário. Um terceiro, capaz de
assumir a instrução da juventude, com a ajuda de um intérprete, ensinando-lhes a ler e escrever com as
letras do alfabeto francês, para introduzir este costume aqui, já que têm o hábito de ler e escrever a
língua em caracteres árabes, que são difíceis demais. Sendo assim, poder-se-ia mandar imprimir somente
uma centena de cópias do catecismo que envio nesta língua, aguardando um melhor, ou que seja possível
escrever livros de orações bem encadernados, em letras grandes. O quarto seria o ecônomo com todos os
móveis necessários a nossas comunidades, pois nada se encontra aqui fora do que se traz, exceto boi,
arroz e raízes. Assim mesmo, a gente precisa ter com que comprar tudo, até o tempo em que se possa
plantar, adquirindo, com a permissão de sua Majestade e dos tais senhores, espaço de terra suficiente; e
isto é possível fazer, sem prejuízo nem aos senhores franceses, nem a ninguém, porque há terra de sobra.
O arroz cozido em água, como se come no país, não é alimentação tão agradável; não é fácil
acostumar-se com ela. O vinho de mel não é sadio, e é bem raro. Poderiam trazer farinhas da França, de
trigo puro, que podem ser conservados por três ou quatro anos. Servirão tanto como matéria de
consagração (na missa), quanto para fazer pão em viagem pelo mar e aqui em terra, num pequeno forno.
287

O vinho especial não é menos necessário, para celebrar a missa e para a conservação da saúde neste
país, onde estamos muito sujeitos a maiores enfermidades e à morte, se não tivermos bons alimentos e
medicamentos, além de outros refrigérios. De tudo podeis tomar conhecimento com os que viajaram por
mar e dos que viveram neste país. Com efeito, confiar, como fizemos, em belas promessas, nos levará ao
incômodo de comprar dos franceses pelo preço quatro vezes maior do que custariam na França. E ainda,
às vezes, não se encontra por preço algum o que se poderia facilmente trazer da França a bom preço; e
é, contudo, coisa necessária, como me aconteceu, para a conservação de minha saúde, sem exagero ou
esmero. E se tivéssemos com que aliviar os doentes franceses ou negros, seria melhor ainda. Dá muita
pena não poder socorrer os que são duplamente afligidos, pela doença e pela pobreza, quando lhes
poderíamos, com pouca coisa, salvar a vida. Deveria haver aqui enfermaria bem organizada, com a
iniciativa desses senhores fulanos, capaz de salvar, para seu próprio proveito, a vida de muitos.
Seria preciso, além do que se trouxesse da França no navio, ter, em quantidade suficiente,
mercadorias deste país, das quais só podereis ser informado por alguém com experiência da região.
Esperava encaminhar-vos uma pessoa que soubesse a língua do país, para vos relatar tudo. Foi-lhe
porém negada a passagem, embora seja dos mais antigos habitantes. Não sei o motivo, como não sei se
duvidaram de alguma coisa. É o melhor intérprete. Entregou-se de coração a Deus para ficar comigo,
quando puder ficar livre; isso há de acontecer na chegada do primeiro navio, depois da partida do atual.
Creio que seria bom termos a permissão de receber aqui conosco algum francês, terminado seu
tempo de serviço, se for chamado ao serviço de Deus. Há aqui dois ou três que mo pediram. São
comportados e conhecem um pouco da língua e o modo de vida do país. Não haverá gente demais, onde
há tanto que fazer. E morre muita gente. Uns 57 já morreram, no espaço de doze ou treze meses. Com
efeito, embora alguns se apresentem com sinais de que são verdadeiramente chamados, dirão que os
seduzimos, se não tivermos essa permissão. É o que creem que fiz, em relação a esse intérprete que se
ofereceu espontaneamente, e persistiu com devoção, apesar das garantias que lhe ofereceram. Preferiu
juntar-se a mim, que não poderia fazer nada, se não ficasse ele inteiramente à minha disposição.
Realmente, não é possível servir a dois senhores e é preciso escolher o melhor, o nosso Deus.
Precisaríamos ainda de bons carpinteiros e um marceneiro, para edificarem igrejas e casas de
madeira. Deverão trazer da França fechaduras, cadeados, pregos e todos os apetrechos. Tudo o que é
necessário para construir casas e mobilhá-las neste país, onde nada se encontra, tanto quanto num
deserto. Seria ainda bom trazer de tudo que se pode plantar e semear na França, como trigo, uva, grãos,
pevides e caroços, legumes etc. Tudo, porém, bem acondicionado, por causa da maresia que causa muito
estrago. Sem esquecer de colocá-los algumas vezes para fora, para serem arejados, quando de tempo
bom.
No campo, sempre tive um francês, intérprete ou não, portando um fuzil, sem outra intenção a não
ser a de se defender, no caso de ataque por ladrões ou borrachões. Acredito que não será mal, se houver
seculares conosco em alguma residência, ter com que se defender em caso de necessidade. De fato, o
medo de nossas armas os contém a todos, e não ousariam aproximar-se, por mais numerosos que fossem,
ao verem uma arma de fogo. Tem havido massacre de franceses, por falta de precaução.
Aí está o mais necessário para fazer uma residência, e não há outro meio de subsistir, ao que me
parece. Fico com vergonha de ter especificado tantas coisas das quais podemos nos passar e nos
sacrificar na França. Como, todavia, temos corpos como instrumentos a serem utilizados no serviço de
Deus neste país, tão carente de operários, é necessário ter com que se proteger, pois é difícil e penoso vir
para aqui.
Mas a verdadeira residência mais urgente para fazer avançar mais os negócios de nossa religião
é a de Matatanes, no centro da ilha, onde ficaram os franceses, lugar onde é muito bom viver, onde estão
os melhores espíritos, de onde vêm os Ombiasses e de onde é possível ir com facilidade por todo o
território da ilha. No momento, não há francês com permissão de Sua Majestade de lá se estabelecer. Na
esfera espiritual, é onde fica a melhor seara de todo o país e os mais capacitados para receberem
instrução. Serão necessários lá uns doze padres, com o intérprete de que vos falei e que lá ficou.
Realmente, há algumas diferenças na língua, de acordo com as regiões, como acontece na França com o
picardo e o normando etc. E se houvesse algum dos nossos que soubesse o árabe, ao menos lê-lo e
escrevê-lo bem, seria isto de grande alcance para aqui. Vou tratar de aprender a ler e a escrever com um
Ombiasse, que vai me ensiná-lo, a fim de tomar conhecimento do que existe no livro deles e escrever
para eles algo de instrutivo. Mas não sei se o conseguirei.
288

Os meios para subsistir em Matatanes são os mesmos de que falei acima. A dificuldade é que não
podem vir mais de três ou quatro de uma vez num navio, e leva muito tempo a substituição de um morto,
como acontece comigo, sempre na espera, desde que fiquei sozinho.
Se perguntardes sobre a qualidade dos operários para este país, sabereis avaliá-la melhor do que
eu, indigno que sou de pertencer ao número deles. Na minha opinião, direi somente que seriam
necessárias as qualidades requeridas por São Francisco Xavier, pessoas mais excelentes em virtude do
que em ciência. A ciência necessária é a que Deus concede aos santos. Se não houver grande pregador,
tudo bem. A não ser no caso de ser preciso cuidar dos franceses. Precisar-se-ia então de alguém
poderoso na ação e na palavra, para reprimir pessoas aglomeradas, libertinas, enviadas, na maior parte,
para este país por seus pais, que não sabem o que fazer delas, ou que vêm, espontaneamente, sôfregos
por devassidão, ou por curiosidade. Vendo-se frustrados em sua esperança de encontrar um país
segundo seus desejos, só ficam maldizendo a hora em que vieram. Mesmo depois de terminado o tempo
deles, precisam permanecer outro tanto por aqui, por falta de navio que, segundo se lhes tinha
prometido, deveria logo vir buscá-los. Deixo-vos imaginar a vida que levam nesse desespero, num país
onde é tão grande a facilidade de se deixar levar à corrupção da natureza. Seria um prazer para nós não
termos de cuidar dessa gente, com os quais só perdemos nosso tempo e ainda temos como paga a
ingratidão e a calúnia. São como frenéticos revoltados contra o médico que deseja curá-los, que se
irritam contra ele, em vez de tomar seus medicamentos. Se só tivéssemos que instruir os negros,
bastariam apenas alguns catequistas, ainda quando algum deles de feliz memória não quisesse ser padre,
mas tivesse versatilidade em línguas, para ser capaz de aprender a lingua daqui em pouco tempo, como
seria fácil a uma pessoa que tivesse apenas isto para fazer. A pronúncia, com efeito, não é difícil. Basta
somente memória para gravar as palavras. Elas não têm nem declinação nem conjugação. E poderiam
resumir-se num dicionário e algumas normas gramaticais, com o tempo. Assim o espero, quanto tivermos
um intérprete conosco, e morarmos longe deste lugar de desavenças, onde ficamos sempre cativos
daqueles que vivem com suspeitas. Em vez de darem alguma contribuição, antes, levantam obstáculos. E
ainda mais, se julgariam prejudicados se nos dessem um intérprete, do qual se utilizam quase só para
futilidades. Quero dizer que um leigo, orientado e habilitado por um padre, tornar-se-á capaz de
ministrar as instruções, esperando que os padres, mais ocupados em seu ministério e outras coisas,
pudessem se tornar aptos para ensinar por eles mesmos, sem o auxílio de intérpretes. Jamais serei capaz
de aprender perfeitamente a língua, a menos que more entre os negros. Sei um pouco os assuntos da
catequese, que eu estudei. Mas não entendo completamente seus raciocínios, sem intérprete. Precisamos
de prática prolongada, nestes inícios, para captar o significado próprio das palavras.
Fortaleza e saúde corporal são imprescindíveis aos que serão destinados ao trabalho aqui, tanto
em razão das fadigas de uma longa viagem, quanto pelos incômodos existentes nos campos. Tem-se
observado que os jovens e os mais robustos morrem mais cedo do que os de força mediana com boa
saúde. As pessoas de 35, 40 e 50 anos são mais sadios do que os mais jovens, por causa do calor do país.
Não há tão grande perigo para a castidade, quanto se julgava. É preciso não viajar sozinho,
manter uma postura séria e estar sempre alerta, embora em muitas ocasiões, quando se apresentam
incitações para a sua ruína, seja requerido longo hábito na prática da castidade.
Os espíritos impacientes como o meu não são muito adequados. Muito menos os que pedissem
para vir por impulso repentino e que procedessem do mesmo modo. Sejam bem pacientes ao anunciarem
(o Evangelho), principalmente aqui, onde o povo está sozinho na procura por compreender esses
assuntos novos.
Quanto a viver sozinho, como eu, sem companheiro, não é muito aconselhável. Com efeito,
lembro-me de que São Francisco Xavier requeria, para tal, pessoas de virtude extraordinária, que sabeis
bem não existir em mim.
Não há perseguições nem perigos a temer, quando se tem algum francês conosco, portando
armas. Sozinho, porém, não é muito seguro, particularmente se formos a algum lugar onde pilharam e
incendiaram esse pobre povo. As pessoas ficarão sempre desconfiadas e será difícil abordá-las. Com
efeito, eles fogem diante de um único francês, como um rebanho diante de um só cachorro.
Quando fizeram guerra no centro do país, mataram alguns grandes, assim como algumas
mulheres e crianças. Dizem que não é possível obter bois para a subsistência da residência, sem fazer
guerra no futuro, e que, para se tornarem donos da região, é preciso assaltar os maiorais. Dizem mesmo
que é o meio para melhor estabelecer a religião, como fizeram os portugueses. Quod si aequum est,
289

judica (Julgai vós mesmo se isto é justo)! Qual o remédio para isto, se permanecermos ainda aqui?
Sempre contradisse a isto, pelo exemplo de Nosso Senhor, que não deu ordem aos apóstolos de levar
armas para implantar o cristianismo. Pelo contrário, que fossem como cordeiros entre lobos. E embora
os brancos tenham dominado, quer pela inteligência, quer pela força, basta permanecer aqui e manter os
negros no gozo dos seus bens e posses, para destruir todo poder dos grandes. Estes últimos, na verdade
são ricos às custas dos filhos, privados dos bens do pai; por cima, fazem adiantamentos de animais aos
administradores das aldeias, dos quais tiram proveito depois da morte deles, apoderando-se de tudo que
encontram do defunto.
Dou toda a garantia de que, para manter nosso seminário, se for erigido, tanto em Matatanes
quanto aqui, não haverá necessidade de guerras. Realmente, podemos negociar, com coisas próprias do
país, tudo que for necessário no que diz respeito a animais e outros mantimentos que não se pode trazer
da França e que podem ser cultivados aqui. Comprei com facilidade seis vacas, que custam para mim
cerca de um escudo por cabeça. Comprei igualmente algumas galinhas para ter ovos às sextas e aos
sábados, além de um pouco de leite, para não ser obrigado a comer carne, que aqui se come quase
sempre, também na quaresma. E isso, não só na mesa do Governador, mas de todos os franceses. Vivem
assim como huguenotes, por falta de empenho por obter peixe e outras coisas que pessoas piedosas
conseguiriam com facilidade. Mas a maior parte não tem disto o menor escrúpulo, muito embora eu lhes
tenha dado a entender, com frequência, que só daria dispensa aos que estivessem doentes, ou aos que
não tivessem conseguido peixe, depois de terem feito o possível neste sentido, ou, enfim, aos que tivessem
legítima escusa em consciência, diante de Deus. Fico constrangido a deixar passar tudo, quando não
posso remediar as coisas. Com efeito, as pessoas particulares me remetem todas ao chefe. Quanto a ele,
ao lhe falar disso, fui questionado. Disse-me que se houvesse mercadoria, não seria para esse fim. No
entanto, não seria necessário muita coisa, se não para todos, ao menos para a mesa dele. É falta apenas
de dar ordem, o que é fácil. Até o presente, não rompi a abstinência, a não ser quando, por não quererem
se dar ao trabalho de fazer manteiga, como tratarei eu de fazer quando puder, dei-me a dispensa, no
sentido de me servir de gordura de boi, ou de peixe, que eu mesmo fui pescar sobre os rochedos. Pensava
então na pesca espiritual, e nos apóstolos que por vezes iam pescar para viver. E o bom Deus me tem
provido do necessário para viver.
Como fazer no que toca ao jejum e abstinência dos franceses e também dos negros que recebemos
no cristianismo? Uma palavra sobre vosso parecer a este respeito, por favor. Fico, de fato, com peso de
consciência nesses casos. Bastaria apenas mandar pescar com rede, no mar. Pois sei muito bem que,
quem o pode e não quer fazê-lo, é indigno da absolvição. Há quem, na verdade, está escusado. Mas os
que podem fazê-lo acalentam sua sensualidade, impiedade e negligência com falsos pretextos de que não
podem, ou por causa da Companhia, ou por temor de ficarem doentes e morrer. Que dizer a isto?
Em vez de impedir os negros de trabalharem nos domingos e festas, recebem as mercadorias
naqueles dias e dizem que é melhor que eles trabalhem, até mesmo aos que dentre eles são cristãos. E
precisam dos franceses para orientá-los. Na maior parte das vezes, não são coisas necessárias. Se os
franceses pedem autorização para passearem, remetem-nos aos domingos e festas. Eles partem de
véspera, e perdem a missa por bagatelas. E dizem que, se lhes fossem concedidos outros dias, não
empregariam aqueles. Que fazer diante disso?
Julgareis por isto a desordem existente e a dor que meu pobre coração tem recebido por tudo isso
junto. Isso me levou a dizer muitas vezes que, se não estivesse aqui por obediência, usquedum dicatur
mihi (até outra ordem), teria sacudido esse jugo, insuportável para um pigmeu, para descarregá-lo sobre
alguém mais forte, sobretudo para enfrentar o tratamento do senhor Flacourt. Começa este último,
todavia, a reconhecer a verdade, e a minha inocência sobre o que me tinha atribuído. Não lhe digais
palavra sobre isto, se não for ele o primeiro a tocar no assunto (como receio, apesar de me ter dito: paz,
paz). Se não de sua parte, asseguro-vos inteiramente da minha: bebi a amargura desse cálice pelo de
Nosso Senhor e dos apóstolos, fazendo nisto a experiência da predição que meu caro companheiro me
fez, por testamento, pouco antes de sua morte. Quando lhe perguntei o que me deixava, antes de morrer,
disse-me que eram sofrimentos: “Oh! como tereis que sofrer! E não será por pouco tempo, mas por
muito, garanto-vos” Oh! fico feliz. E é pouca coisa diante do preço a pagar, no futuro, para imitar os
vasos de eleição, escolhidos para levar o nome de Nosso Senhor aos gentios.
Se o senhor Flacourt se queixar de mim, sei que está sozinho. Com efeito, todos os demais
estariam prontos para me dar seus corações e seus olhos, até os mais libertinos. Pedi-lhe perdão por
290

mim, pelo mal que vos dirá que eu fiz. Desse mal receberei vossa correção, embora minha consciência
não me repreenda a não ser de relaxamento no serviço de Deus, no meu particular, pois tratei de não
faltar ao próximo. Contudo, não me reputo justo, pois sei que sou homem, e o mais enfermo e faltoso de
todos que poderíeis enviar. E Deus sabe que não minto. O que sempre mais temi me aconteceu na
escolha que fizeram de mim. Não foi por me terem enviado para aqui. Realmente, não tive dificuldade
para superar as objeções da carne e do sangue e submeter-me à obediência, ao conhecer a vontade de
Deus. Foi porque colocastes a carga sobre os ombros mais frágeis. Deste modo, acreditei sempre, e creio
ainda, que fui enviado apenas como explorador, e que enviareis aquele quem missurus es (estais para
enviar), ao qual não serei digno de obedecer, se enviardes padres pelo primeiro navio. Sei muito bem que
é inútil me prevenir a respeito do que não vai acontecer, a saber, que eu fique com a direção de alguma
coisa. Ficarei, sim, para servir de pés e de braços sempre prontos para me submeter e executar tudo o
que me mandarem os que me dareis por superiores. Sei, com efeito, de vosso bom senso para me dar o
último lugar e não para conduzir o leme. No caso de estabelecerdes aqui uma comunidade, guardar-vos-
eis de colocar um membro inferior fora do seu lugar, levando-o a prorromper em gemidos até ser
reconduzido a ele. Não haveis de querer ser responsável pelas faltas que viesse a cometer numa obra de
tão grandes consequências. De fato, não tenho nem ciência, nem ponderação, nem experiência para me
conduzir em negócios tão espinhosos e a respeito de princípios dos quais se diz que, se forem mal
colocados, dariam margem a que se seguissem vários absurdos. Torna-se necessário um sábio arquiteto
para lançar aqui os fundamentos, e tenho muito motivo para crer que me tenho distanciado dos outros
por minhas loucuras. Não digo isto por humildade de gancho, a fim de procurar astutamente obter algum
posto de chefia, seja qual for. Nada há com efeito, mais capaz de me abater o ânimo do que me ver fora
da direção de um superior. Se não me enviardes um, como não duvido que o fareis, creio que cairia
demasiado em faltas, pois já fui causa de muitos males. E não quero aumentá-los, para a minha própria
perdição e para pôr em perdição a salvação de muitos. Pelo contrário, se for comandado, parece-me que
ficarei livre da morte, que é a minha própria vontade; andarei, então, de coração dilatado, na senda da
obediência, sem nada que me possa pesar, ao me ver livre desse fardo. Eu o temo mais do que todas as
penas imagináveis, porque não vejo possibilidade de me salvar sob esse peso; e a minha salvação eu
devo preferi-la à de todo mundo. Por outro lado, não temo o naufrágio no barco da obediência.
De tudo acima, peço-vos fazer um resumo do que é mais importante e mandar o remédio por
aquele que enviardes. Podereis dar-lhe plenas informações de tudo, por palavras ou por escrito.
Quanto às coisas temporais, seria necessário, no caso de virem três ou quatro padres com dois ou
três irmãos coadjutores, trazer o máximo para nos ir mantendo, e outro tanto em uma outra viagem.
Procurai saber, e mandai aos que vierem que se informem com alguém que tenha conhecimento das
coisas necessárias neste país, por nele terem estado, não por ouvir dizer. Vede, sobretudo, se convém
continuarmos com a assistência aos franceses. Se há uma razão pro, há duas contra. Podemos fazer o
que quisermos, jamais faremos algo que valha e que lhes agrade. E o que é mais é que de todos os
homens o tal que aqui está é o mais difícil quando se trata de entrarmos em entendimento e o mais difícil
de contentar, por causa de juízos e suspeitas temerárias, desconfianças e mexericos. Se não for possível
sair e tivermos de permanecer na residência, ordenai que tenhamos garantida nossa situação desde a
França, sem, de modo algum, aguardar por isto aqui. Com efeito, não ousaríamos abrir a boca, por mais
suavemente que o fizéssemos, sem sermos despachados diante de todos. Nosso Instituto não é fundado
para dependermos de alguém, para vivermos o dia a dia como vivo aqui, comprometido com pessoas do
mundo, que nas refeições e em tudo não observam nenhuma regra, nem respeitam tempo algum, e nem
têm medida para seu apetite. Com isso, perde-se muito tempo e o espírito se exaure muito cedo com suas
conversas frívolas.
Eis aí o amontoado confuso que escrevi com muitos intervalos. Contava escrever tudo com mais
ordem, não fosse a urgência da partida do navio. Tirai de todo esse veneno um antídoto adequado, e dai-
me instruções sobre todas as minhas faltas, se me retiverdes ainda neste país. Possivelmente, se Deus
tivesse conservado o Padre Gondrèe, teria ido prestar-vos conta eu mesmo, não para deixar o país, mas
para voltar com melhor disposição. Se achardes bom que eu dê uma ida à França pelo primeiro navio,
seriam quatro meses de viagem de ida, quatro na França e quatro de volta para não mais sair, uma vez
bem estabelecido aqui. A vontade de Deus seja feita em tudo e por toda parte!
O senhor Flacourt permanece ainda aqui por três anos. Quando escrevi isto, pensava que estava
indo de volta daqui. Como já fizera seus preparativos, esta decisão foi uma mudança repentina. Não
291

cheguei a conversar com ele sobre se arranjaria padres, ou se fundaríamos seminários aqui. Disse-lhe,
contudo, não há muito tempo, o meu parecer e os meios que julgava necessários para isso. Como, porém,
ele me escutou com frieza, deixo a seus cuidados comunicar tudo aos senhores da Companhia, que vos
transmitirão as informações. De vossa parte, comunicar-lhes-eis, de tudo que escrevi, o que julgardes
mais necessário, deixando de lado o supérfluo.
Vejo claro que não poderei ir até muito longe. Mas tratarei de dispor os pais dos vilarejos dos
arredores para o batismo de seus filhos, e de visitar, quando puder, aqueles com os quais já estive. Será
que teremos um intérprete português para Andian Ramach e o que for preciso para fazer lá uma igreja?
E Deus nos concederá a graça de reconduzi-lo? Poderíamos dar-lhe algum presente para lhe
conquistarmos a simpatia? Por exemplo, cristais talhados em oliva, algum tecido de seda, alguma xícara
ou argolas de prata, algumas pepitas de ouro, imitações de pérola, coral, material do qual me pediu um
terço, e o Ofício das Horas em português. Tudo lhe daríamos aos poucos, para lhe fomentar a amizade e
assim atraí-lo a uma escuta mais atenta e a acolher os caminhos de sua salvação e de muitos outros.
Posteriormente, poderíamos adotar algum procedimento semelhante ao anterior para granjear a
simpatia de algum Ombiasse. Depois de instruí-lo e tirar-lhe o interesse por seu olis, servir-nos-íamos
dele para atrair aqueles que outrora andaram enganando. A quantia de 100 ou 200 libras dariam bem
para isso, tanto para o Rei quanto para os Ombiasses. Deus sabe que consequências resultariam disso e
quantas almas se ganhariam, das quais uma única vale mais do que todos os tesouros da terra. Esses
senhores da Companhia terão dificuldade em aprovar esse expediente, que reputo bem adequado entre as
pessoas ligadas aos próprios interesses, como são as daqui. Receio muito que deem a entender que se
fazem grandes gastos em nosso favor e no da religião, a qual é o motivo principal da concessão desta
ilha. E apresentem isso para obterem a isenção das taxas de entradas de navios e mercadorias na
França, sem se tocarem muito com contribuir, mesmo de modo medíocre, para a obra de Deus! Praza ao
Senhor que assim não seja!
Não sei se ireis enviar missionários para Santa Maria, onde há franceses. Não há outro meio de
comunicação daqui para lá, a não ser por mar. O clima lá é insalubre; e é onde se precisa de boa
alimentação, por causa dos maus ares e frequentes chuvas. Há mudanças na língua. Vou procurar, com
alguns franceses que estão aqui e estiveram por lá, introduzir as palavras daquela região no catecismo
que já está preparado à maneira daqui. Dizem que vão fazer várias residências dos franceses, entre
outras, duas de grande tamanho, uma nos Antavares, perto dos Matatanes, a três dias de viagem de lá.
Pensai no que vos propus, se confiareis o cuidado dos franceses a padres da Missão, ou a padres
seculares. Que tudo vá no sentido da maior glória de Deus, em cujo amor sou, de todo meu coração,
senhor Padre e muito honrado Pai, vosso muito humilde e muito obediente filho.

CHARLES NACQUART,
muito indigno padre da Missão de Madagascar.

Fort-Dauphin, 9 de fevereiro de 1650.

1184. – ÀS FILHAS DA CARIDADE DE VALPUISEAUX1

Paris, 10 de fevereiro de 1650.

Minhas caras Irmãs,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Estou muito contente por ter recebido vossa carta. Peço a Nosso Senhor devolva a saúde à Irmã
Perrette e conserve a da Irmã Margarida, para poderdes continuar juntas os serviços que prestais a Deus.

.
Carta 1184. – C. as. – Dossiê da Missão, original.
1
1. Comuna dos arredores de Etampes (Seine-et-Oise). As Filhas da Caridade estavam estabelecidas lá desde o ano de 1648.
292

Agradeço-vos a caridade que tivestes para conosco, vigiando as nossas coisas, e o favor que a
Irmã Margarida prestou-nos indo olhar os livros e a roupa. Se algo se perdeu, paciência! Procurai
conservar o que restou.
Esse pobre homem veio, ontem de manhã, à portaria, pegar suas roupas, sem entrar aqui, nem falar
com outra pessoa senão com o porteiro. Podeis estar certas, minhas Irmãs, de que jamais o tornareis a ver
por lá com minha autorização. E se ele fosse tão insensato a ponto de retornar, peço-vos informar-me
imediatamente, para que eu providencie o seu afastamento. Não creio que volte a estar comigo e ficarei
bem contente, se assim o for.
Rogo a Nosso Senhor vos conceda sua paz e seu espírito e a mim alguma participação em vossas
orações. Sou, no amor de Nosso Senhor, minhas queridas irmãs, vosso afeiçoado servidor,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: A nossas Irmãs da Caridade, servas dos pobres doentes, em Val de Puiseau.

1185. – A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

11 de fevereiro de 1650.

Estou preocupado com o modo de agir do Padre..., mas não surpreso. Os que faltam à palavra, no
que respeita à vocação, raramente voltam a ser como deveriam. Há, de ordinário, nessas pessoas uma
certa tendência oposta à regularidade que as leva a se aborrecerem a cada instante. E o pior é que
indispõem outros, a fim de terem companheiros com sua indisposição, e se presumirem de que têm razão.
Há muito tempo que estou decidido a não mais receber gente assim. Muito recentemente, dispensamos
dois desses, os quais fizeram insistentes pedidos para voltar; mas, Deus me deu a graça de permanecer
firme. O que me comunicais a respeito do Padre... me confirma nesta decisão. Dele vos direi ainda esta
palavra: é melhor deixá-lo ir por uma segunda vez, a última, do que mantê-lo, se não tiverdes grande
esperança de sua correção.

1186. [– LUÍSA DE MARILLAC A SÃO VICENTE

Fevereiro de 16501].

Meu muito honrado Pai,

Acredito que o senhor bailio 2 vos informou ontem sobre o estado do seu mau negócio. Parece que
tudo vai depender da maneira como o senhor Lesguier expuser ao Senhor de Emery3 a vontade da
Rainha, a respeito dessa questão. Ele recebeu nova ordem de Sua Majestade. Suplico muito
humildemente vossa caridade me faça o obséquio de dizer se não seria necessário mandar alguém falar
com ele, e quem. Mas teria de ser ainda hoje. Isso me obriga a nada descuidar, porque serão necessárias
umas mil e duzentas ou mil e quinhentas libras, além dessa taxa, para os gastos da tomada de posse;
segundo me disseram, talvez outras duas mil4.
.
Carta 1185. – Reg. 2, p. 266.
.[
Carta 1186. – C. aut. Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Data acrescentada no dorso do original pelo Irmão Ducournau.
2
2. Michel le Gras, bailio de São Lázaro.
3
3. Michel Particelli, senhor de Emery, controlador geral das finanças de 1643 a 1648, nascido em Lião, falecido em Paris, em 1650.
4
4. Michel de la Rochemaillet, conselheiro na Casa das Moedas, tinha resignado seu ofício em favor do seu irmão Renê Michel de la
Rochemaillet que, por sua vez, o cedera ele próprio a Michel Le Gras, advogado no Parlamento. As cartas de provisão foram assinadas em 13
de junho de 1650. Depois da investigação usual sobre sua “vida, costumes e religião”, o novo conselheiro foi autorizado, em 14 de julho, a
293

Em nome de Deus, meu reverendíssimo Pai, vede, por favor, se não deveria aconselhar as Damas
a não receberem, por agora, mais crianças expostas, para que nos seja possível pagar as dívidas. Além
disso, sejam retiradas todas as já desmamadas dos campos, pois, asseguro-vos, em consciência, que não
há presentemente possibilidade de resistir à compaixão que nos causa essa pobre gente, quando nos pede
o que, em justiça, se lhes deve. E isto, não só por seus esforços, mas porque eles, tendo adiantado seu
dinheiro, estão agora à míngua, e obrigados a vir três ou quatro vezes, de muito longe, sem ter dinheiro.
Temos de atender a muita coisa: a alimentação das amas de leite e, frequentemente, até sete ou oito
crianças desmamadas, com dinheiro emprestado. Não é, porém, nosso interesse que nos leva a falar;
todavia, se a coisa continuar assim, teremos forçosamente de gastar do nosso, pois não podemos
negar-nos a lhes dar o que pudermos, por pouco que seja.
Perdoai, por favor, minhas contínuas importunações, e honrai-me sempre com a certeza de que
sou, meu muito honrado Pai, vossa muito humilde e obediente filha e serva,

L. DE M.

Destinatário: Ao senhor Padre Vicente.

1187. – ALAIN DE SOLMINIHAC A SÃO VICENTE

Mercuès, 15 de fevereiro de 1650.

Senhor Padre,

Depois de vos ter agradecido, muito afetuosamente, os cuidados que vos apraz empregar em
nosso favor, na questão de Santa Genoveva e vos ter suplicado, como o faço muito humildemente, que
lhes deis continuidade, assim como à vossa assistência, aceitai que vos diga, em segredo e
confidencialmente, que o Reverendo Padre Vitet, síndico de Chancelade, nutre violenta paixão por ver o
fim desta questão. Não há nada que ele não faça e não arrisque por isso. E vendo que encontraria
resistência no caminho via Roma e que o apelo ao Parlamento, como se tratando de um caso de abuso,
era um meio adequado para o fim visado, decidiu levar a questão para lá, a qualquer preço. É, antes de
tudo, por esta razão, que os de Santa Genoveva começaram intimando-nos a apelação interposta por eles
da sentença de Beauvais e que firmaram em Grosbois. O Padre Vitet ma enviou com vários relatórios,
contendo diversas causas de apelo contra abuso. Escreveu-me que era necessário apelar ao Parlamento
contra a obtenção do breve dirigido ao Abade de Grosbois 1 e, igualmente, contra as decretos do Cardeal
de la Rochefoucauld. Enviei a cópia desse breve, com os referidos relatórios, a Paris, pedindo consulta
aos senhores Camus e Mortelon a respeito deles, Consultei ainda, aqui, o meu advogado de Cahors,
ilustre personagem. O parecer de todos foi unânime: Não há lugar para apelar, como de um abuso,
contra o breve obtido pelos de Santa Genoveva, dirigido ao dito senhor Abade de Grosbois. Era
necessário, porém, já que ele era ardiloso e fraudulento, conseguir de Sua Santidade que mandasse fosse
declarado nulo, e assim, apresentando-se diante do Abade de Grosbois, requerer que nos remetesse a
Sua Santidade, em razão da nulidade do citado breve... que o compromete, e em caso de recusa, protestar
que estavam apelando contra ele, e numerar as nulidades desse mesmo breve.
Enviei ao Padre Vitet o parecer dos referidos advogados, tanto de Paris quanto de Cahors, com o
auto inteiramente redigido e a ordem de seguir fielmente esse parecer. Respondeu que os tinha recebido,
mas insiste em que é preciso apelar ao Parlamento, como de um abuso. Meu Vigário Geral lhe escreveu,
por ordem minha, como também ao Padre Prior de Chancelade, que eu julgava muito estranho o parecer
dele e me admirava de que não seguisse as ordens que lhe enviara, que comportavam, entre outras
coisas, nada representar diante do referido senhor Abade de Grosbois, e que seguisse os pareceres do

prestar juramento (Arch, Nat. Z1b 566.).


.
Carta 1187. – Arquivos da diocese de Cahors, caderno, cópia do original.
1
1. Grobosc ou Grosbois, abadia de homens da Ordem Cisterciense, na diocese de Angoulême, perto dos limites com Périgord. Jean de la
Font era o abade desde 18 de maio de 1641.
294

Conselho. Ele foi fazer a requisição do dito Abade, que não quis se pronunciar diretamente sobre a
sugestão de nos remeter à Santa Sé, mas ordenou que as partes comparecessem dentro de três dias; o
Padre Vitet devia, nesse mesmo tempo, lavrar o auto de protestação de apelo, conforme a ordem que
detinha e o parecer dos advogados. Ele apresentou nosso decreto ao Conselho, contra a proibição
expressa de fazê-lo que lhe tínhamos dado, e se dirigiu dali à Coroa, para que notificasse aos de Santa
Genoveva sobre os protestos de apelação, caso o dito senhor Abade de Grosbois fosse em frente. Voltou
depois a Grosbois onde verificou que o Abade havia pronunciado a sentença.
Quando voltei a Chancelade, o Padre Prior mo comunicou aqui. Respondi-lhe que estranhava
muito a maneira de proceder do Padre Vitet, prescindindo do parecer do Conselho para seguir seus
próprios impulsos, e procedendo em lei, contrariamente às proibições expressas que recebera a respeito.
Ele se escusou por carta, dizendo que não era possível agir de outro modo, porque era preciso intimar,
antes, essas protestações, aos de Santa Genoveva do que ao Abade; o que é algo muito impertinente e
ridículo.
Mandei-lhe que viesse estar comigo. Ao chegar lhe perguntei por que razão afirmava que era
preciso intimar as protestações antes aos de Santa Genoveva do que ao Abade de Grosbois, e por que
não seguira minhas ordens. A resposta foi apenas a de levantar os ombros e abaixar a cabeça. Como,
porém, somente ele tem conduzido esta questão e é o único de que dispomos bem entendido no caso, não
quis fazer-lhe a censura que merecia. Tratei-o com grande mansidão, depois de uma tal falta, e lhe disse
que precisava ir a Paris, para responder, perante o Conselho privado, contra a referida sentença.
Durante todo tempo em que aqui esteve, tinha sempre em mente e falava, de quando em vez, de sua
apelação como de abuso, tanto contra a referida sentença dada pelo Abade Grosbois, quanto contra a do
senhor Cardeal de la Rochefoucauld. Eu rejeitava todas essas propostas e lhe alegava o que me tinha
referido, quando do seu retorno de Paris, depois de ter obtido nosso decreto de 1647, ou seja, que todos
os amigos de Paris lhe haviam dito que não recorresse ao Parlamento, dada a grande influência que
tinham sobre ele os de Santa Genoveva, devido ao grande número de religiosos e pensionistas que têm,
parentes dos que teriam de julgar-nos, o que é verdade. Antes de sua partida daqui, mandei que pusesse
por escrito certas ordens e pareceres que lhe dei, para se servir deles no prosseguimento deste negócio.
Disse-lhe que nada fizesse sem pedir conselho e que o acatasse. Acrescentei, ao mesmo tempo, que não
levasse a questão ao Parlamento, aonde ele próprio me disse que nossos amigos de Paris aconselhavam-
nos a não ir. Expus-lhe ainda algumas razões que me dizem respeito, em particular, e que me obrigam a
não recorrer a ele.
Chegando a Paris, consulta, conforme ordem nossa, os senhores Camus e Montelon. Estes
últimos acharam que estávamos muito bem fundamentados, no sentido de recorrer ao Conselho, contra a
sentença do Abade de Grosbois. No correio seguinte, disse-me, ao contrário, que o senhor Montelon era
do parecer de que apelássemos ao Parlamento e que o senhor Camus não tinha ainda uma decisão. Em
outro correio posterior, escreveu-me que os dois estavam de acordo quanto ao apelar, como de abuso, ao
Parlamento de Paris, tanto da sentença de Grosbois como das ordenanças do senhor Cardeal de la
Rochefoucauld, e que estava mandando redigir cartas de apelação para esse fim, antecipando-se a uma
queixa que os de Santa Genoveva tinham mandado apresentar ao dito Parlamento.
Podeis imaginar quanto essa notícia me surpreendeu. Enviei imediatamente meu Vigário Geral a
Cahors para ponderar com nosso Conselho o que se deveria fazer. O espanto do Conselho com o tal
procedimento foi tão grande que não sou capaz de exprimi-lo Redigiu, no mesmo instante, um ato de
reprovação desse procedimento. Enviei-o ao senhor Lefèvre, meu procurador em Paris, para mandá-lo
intimar aos de Santa Genoveva. Escrevi, também, sobre o mesmo assunto, uma grande carta ao Padre
Vitet, ao qual comuniquei que me admirava muito de que tivesse, contra as minhas ordens, levado a
questão ao Parlamento. Respondeu-me e se escusou dizendo-me que eu lhe havia escrito por três vezes,
por meu Vigário Geral, que ele deveria seguir o Conselho e lho tinha dito pessoalmente, o que é verdade.
Cala, porém, a proibição expressa que tinha de levar o assunto ao Parlamento. Escreveu ao meu Vigário
Geral uma carta toda queixosa, e o fez muito perturbado, pois nela entra em contradição com outras
cartas suas, e depois de ter descambado em muitas outras palavras, pede-lhe que lhe envie um pouco de
dinheiro para se retirar imediatamente, já que não ousaria mais aparecer por aqui, após a desaprovação
dada por mim ao seu procedimento.
Notai, por obséquio, que as cartas que resolvera apresentar ao Parlamento, como apelo e
antecipação, ainda não foram apresentadas, já que o Conselho foi do parecer de se aguardar que a
295

queixa dada pelos de Santa Genoveva tenham caducado. Isto posto, não há desaprovação nem
revogação, uma vez que não se havia ainda atuado no Parlamento.
Mas em vez de calar a dita desaprovação, foi publicá-la e mostrou minhas cartas e as do meu
Vigário Geral aos referidos senhores Camus e Montelon. Comunica-me depois que levaram muito a mal
que eu tenha mandado reformar o parecer deles por um advogado de Cahors. Eu lhe tinha escrito,
enviando-lhe a sobredita desaprovação, que obtivesse cartas quadrimestrais do Parlamento solicitando
quatro meses de prazo para recorrermos à Santa Se, com proibição, entrementes, às partes de tomar
qualquer medida; e que se desse ciência delas aos de Santa Genoveva. A esta altura, não me deu
resposta alguma. Encontro-me assim, no presente, bem tolhido e com grande necessidade de vosso
parecer e de vossa assistência. Realmente, como vos disse, não tenho ninguém que entenda desta questão
como ele. O Padre Parrot, seu companheiro, tem igualmente delegação para o caso, tanto quanto ele.
Entretanto, ele não entende tão bem do assunto, pois o outro foi conduzindo o negócio sozinho, não
permitindo a ingerência do Padre Parrot. Além do mais, os autos todos estão em poder dele.
Suplico-vos, em nome de Deus, trabalhar para reconduzir esse espírito e levá-lo a abandonar, se
possível for, o pensamento de ainda ir ao Parlamento; e nem mesmo ao Conselho, no momento, pois este
último nos remeteria ao Parlamento. Que ele aja por via de Roma, conforme a ordem expressa que lhe
dei, esperando que o Conselho recupere sua autoridade.
Ele vos surpreendeu, dando-vos a entender que no decreto de ereção da Congregação de Santa
Genoveva constava que a dita Congregação não poderia estabelecer-se em outras casas a não ser com o
consentimento dos bispos diocesanos, juntamente com a dos abades e religiosos dela, como me
escrevestes. Mas não é assim, como vereis pelos termos do referido decreto anexo à presente. Nele vos
peço ter atenção ao que diz a respeito das Casas que existem atualmente na dita Congregação. Ora, pela
sentença do Abade de Grosbois, nossas Casas estão compreendidas nela, e, embora estejamos apelando,
a dita sentença subsiste até que lhe consigamos a anulação. Nosso Conselho de Cahors, que é muito
hábil e prudente, sempre acreditou que se trata de um engodo. Quanto a mim, preciso confessar-vos que
sempre julguei que o tal decreto nos era muito prejudicial. E todos aos quais o mostrei foram do mesmo
parecer. Contudo, o Padre Vitet faz alarde desse decreto e o publica como se fosse uma cidade
conquistada por nós; com este pretexto, me queria obrigar a consentir que a questão fosse levada ao
Parlamento. Não tivesse ele elaborado, como o fez, a sentença do Abade de Grosbois, parece-me que o
dito decreto poderia ser-nos favorável. Mas no estado em que se encontram as coisas, ele não conseguirá
persuadir-me nunca. Na verdade, ainda que a dita sentença de Grosbois não estivesse em jogo, eu me
guardaria bem de me dirigir ao Parlamento, já que, como se trata de cláusulas acrescentadas ao dito
decreto proprio motu, o Parlamento há de ignorá-las ou interpretá-las como bem lhes parecer, tanto
contra o Geral como contra os particulares.
Surpreendeu-vos também ao vos dizer que tínhamos feito apelação como de abuso. O que não é
verdade, pois o que existe é um simples auto de protesto, no sentido de possível apelação. Seria
necessário a tal apelação se não fosse para o Conselho, uma requisição nossa e um decreto sobre ela,
citando as partes ao comparecimento. Se fosse ao Parlamento, seriam necessárias cartas. Ora não existe
nada disso; desta sorte, estamos em plena liberdade para recorrer a Roma, como importa fazer, como lhe
comuniquei antes e vos peço dar-lhe ordem absoluta, com proibição expressa de recorrer ao Parlamento.
Se quiserdes ter a bondade de lhe dizer as razões, são elas: as boas relações dos de Santa Genoveva por
meio de muitos religiosos e pensionistas com parentes no Parlamento, os quais se movimentariam contra
nós; além do mais as dificuldades próprias do teor deste negócio, suas circunstâncias e ramificações. A
maior parte das causas que nos levam a recorrer aos tribunais são de ordem espiritual, como a
observância regular, o espírito das regras religiosas e não há advogado na França capaz de conduzir um
pleito desta natureza, nem o senhor advogado geral; não creio mesmo que juízes leigos possam entendê-
las. É uma questão que demandaria mais de duas audiências para serem bem julgadas, pois os de Santa
Genoveva haveriam de esticá-la e embaralhá-la, quanto lhes fosse possível.
De minha parte, tenho sérias razões para não recorrer ao Parlamento: conheceis a censura do
livro sobre as Liberdades da Igreja galicana2, da qual fui um dos comissionados, juntamente com o senhor

2
2. Tratado dos direitos e liberdades da Igreja galicana [por Pierre Dupuy], s.l., 1639, 2 vol. in-f°. Esta obra legitimava todas as
intromissões do poder secular no poder dos bispos e do Papa. Foi censurada em 9 de fevereiro de 1639 por uma parte notável do episcopado.
296

Arcebispo de Sens3 e o senhor Bispo de Uzès 4, para tratar de sua condenação; a maneira como agi neste
país a serviço do Rei; um intendente das finanças me escreveu de Paris que eu era conhecido de todos; e
uma quantidade de outras coisas que me dizem respeito. Se, depois de tudo isto, não puderdes convencer
esse espírito, rogo-vos avisar-me, e pedir, entretanto, a Lefèvre, o jovem, meu procurador no Conselho-
Mor, que requeira do Parlamento as ditas cartas quadrimestrais, quanto antes, e as envie a Roma.
Gostaria muito de poder tornar-vos ciente do fim que leva esse espírito a querer ver, prontamente,
o término deste negócio, favorável ou não, e a arriscar tudo para isso. Mas se trata de um secreto
mistério que me foi revelado em segredo e que só partilhei com meu Vigário Geral, o qual vos escreve em
meu nome a presente. Não posso confiá-lo ao papel, mas desejaria muito vo-lo sugerir ao ouvido. Tudo
teve início há apenas cerca de dois anos. Peço-vos, por isto, acautelar-vos contra esse espírito e vos
informar, de tempos a tempos, sobre o que tiver feito neste assunto. Não lhe deis permissão de partir,
antes de ter conseguido as ditas cartas quadrimestrais e de tê-las enviado à corte de Roma, para solicitar
o envio do breve e obter os comissionados que lhe indiquei. E que aguarde ainda algum tempo, para ver
se os de Santa Genoveva não aprontarão nada no Parlamento.
Escrevo-vos outra carta pelo referido Padre Vitet. Quando vos levar minha carta, rogo-vos que
faleis com ele conforme o Espírito Santo vos inspirar, e cuidar, ao conversar com ele, que não saiba de
relatório algum que eu vos tenha enviado.
Asseguraram-me que o mais famoso doutor regente da Universidade de Tolosa começou a
ensinar a doutrina de Jansênio pelo primeiro artigo dos seus erros. Disseram-me também que o senhor
Bispo de Comminges5 fizera lá três pregações desta doutrina. No dia seguinte, um anônimo escreveu-lhe
uma carta refutando tudo o que ele tinha dito.
Um Padre do Oratório pregou, há pouco, que Jesus Cristo não morreu pelos condenados e
reprovados. Essa cidade vai nos fazer mal. Rogo a Deus tenha piedade de sua Igreja. Não sou capaz de
admirar bastante a bondade de Deus para com minha diocese. Em meio ao grande comércio existente
com o povo de Tolosa, os que de lá retornam, assim como de Paris, não trazem contaminação alguma;
dizem apenas que há uma certa religião nova que divide os espíritos. Tudo depois fica enterrado e, pela
graça de Deus, não vejo ninguém sensibilizado ou falando disso e que não siga meus sentimentos a
respeito da fé e da doutrina da Igreja. Louvo a Deus a quem suplico queira conceder-vos tantas graças
quantas desejo para vós.
Sinto-me confundido por vos escrever tão longa carta. Mas a necessidade a isso me obrigou.
Julguei que vos devia dizer, sempre sob segredo, que essa grande paixão do Padre Vitet por ver
prontamente o final, bem ou mal, de nossa questão, não é por ter ele alguma tendência favorável aos de
Santa Genoveva. Pelo contrário, sente grande aversão por eles. A razão é que, se houver bom êxito no
caso, o que ele estimaria muito, ele poderá executar o mistério de que vos falei, que não posso confiar ao
papel, e para o qual seria necessário muito tempo; e caso não tenha êxito, está seguro de conseguir um
bom benefício. Eis porque tudo arrisca para lhe pôr fim. Penso que será bom, depois de ter lido a minha
outra carta, que o Padre Vitet vos entregará, mostrá-la a ele ou ler-lha em voz alta, para ter ocasião, a
partir daí, de falar com ele.
Sou, senhor Padre, etc.

ALAIN,
Bispo de Cahors.

1188. – CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO,


A SÃO VICENTE

Fort Dauphin, 16 de fevereiro de 1650.

3
3. Octave de Saint-Lary de Bellegarde, falecido em 1646
4
4. Nicolas de Grille.
5
5. Gilbert de Choiseul.
.
Carta 1188. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII.
297

Vossa santa bênção, por obséquio.


Depois de ter escrito as cartas precedentes, a presente vos tornará ciente de que aconteceram muitas
mudanças necessárias. Com efeito, ficareis sabendo que no dia da septuagésima1, no momento em que lia
na missa o evangelho dos operários enviados para a vinha, esta vinha para onde me enviaram me
pareceu tão grande, e vi tão grande necessidade de operários que, durante toda a missa, estive com o
coração vivamente sensibilizado, pensando que era preciso não deixá-la definhar, por falta de operários.
Realmente, há tão longo tempo o Mestre censura aos preguiçosos: quid hic statis tota die otiosi? Ite in
vineam meam2 (Porque ficais aí o dia inteiro ociosos? Ide para a minha vinha). Isto me levou a refletir
que Deus, com toda certeza, pedia algo de minha parte, uma contribuição neste sentido, maior do que a
que eu dera no passado. Acredito que foi uma inspiração e supliquei a Nosso Senhor que surtisse seu
efeito. Foi igualmente o fruto da tristeza de ter feito tão pouco e de prever que faria menos ainda, no
futuro. Examinando, ademais, o motivo pelo qual fui enviado, o atendimento aos franceses e aos negros,
vi que cumpria o primeiro com tão pouco fruto, e o segundo sem saber o que mais fazer. Estou só e com
minha negligência, minha ignorância e incapacidade. Vi que não tinha a assistência possível e
necessária no plano material. De fato, notava que o senhor Flacourt, todo enredado na direção dos
assuntos temporais, se dava pouco ao trabalho de contribuir para o progresso espiritual. Estava para
partir ou escrever para França, quando mudou sua decisão de ir para lá. Não falou nada comigo, muito
embora lhe tenha manifestado meu desejo de trazer de volta à fé o Rei batizado, construindo uma
residência em Fanshere, e de manter lá um seminário. Chegou a dizer-me que era muito gasto para a
Companhia e que se tratava de um empreendimento para o nosso Rei (da França). Ainda que, por outro
lado, ele e todos esses senhores de Paris tivessem vontade de contribuir para esse plano, sem falar de
todas as demais pessoas, eu não via motivos, além das pequenas relutâncias gratuitas de que dera
mostras a meu respeito, para não querer dar-me um intérprete que ficasse inteiramente aplicado à
versão das minhas instruções religiosas. Tive de fazê-la aos poucos, com muitas interrupções, servindo-
me, ainda assim, daquele que pressionava com muita determinação para ficar comigo de graça, sem
pagamento ou salário nenhum. Além do mais, eu via que não poderia ficar sem ele, a fim de que, estando
sozinho, eu pudesse, ao menos, preparar com ele, dentro das minhas possibilidades, as instruções por
escrito, nesta língua, não somente em meu proveito, mas também para o dos pósteros. Este moço é o que
melhor fala a língua do país, e tem de Deus o dom de se fazer entender, no presente, sobre esses
assuntos. No início, eram muito difíceis para ele, por falta de costume e por jamais ter falado sobre eles.
Quase não podia ir aos campos e deixar a residência. Eu não podia dar somente as instruções aos
negros da residência. Eles sabiam bem os grandes mistérios da fé e tinham necessidade de explicação
sobre outras matérias necessárias à salvação, que eu não lhes posso ministrar bem, nem entender bem o
que dizem, sem um bom intérprete. Tudo isso confrangia meu coração muito fortemente, ao ver como eu
só poderia permanecer inútil, ficando sozinho. Temia também que minhas cartas caíssem sob suspeitas e
fossem retidas para impedir a execução de tudo quanto propus fazer neste país. Disse-me então a mim
mesmo: assim como um fogo envolto na nuvem produz seu efeito, fazendo-a prorromper em chuva de
lágrimas e em estalidos de preces e gemidos, assim também experimento tudo isso em mim mesmo, no
momento. Fazia muito tempo que eu temia causar desgosto à pessoa, à qual, por vil respeito, não ousava
expor livremente meus sentimentos. Receava estragar algo em assunto tão importante, como seria o caso
se viesse a perder a honra de continuar um trabalho tão belo para toda a Companhia, como aconteceu
aos bondosos padres capuchinhos na ilha São Cristóvão. Deste modo, entre esses dois extremos, vi que
só havia dois ou três meios de remediar a isso. Vieram-me ao espírito na presença de Nosso Senhor, e os
comuniquei a três pessoas que julguei de melhor conselho.
Tomei o capitão Le Bourg como mediador, que tudo dispôs para a paz que se seguiu. E eis o que
aconteceu: meu coração imediatamente se encheu de confiança em Deus, que tudo conduziria para o
melhor êxito. Preparei-me para falar, com todo respeito possível, com o senhor Flacourt, ao qual
prometi acatar a decisão que tomasse: “Senhor, vós conheceis os desígnios de Deus e de vossos
dirigentes, assim como de meus superiores a respeito desta Missão. São duas as finalidades para as
quais devo trabalhar. A primeira é a de prestar-vos, e a toda residência dos franceses, os serviços do
meu ministério; a segunda é a de atrair os negros e habitantes do país. Para as duas finalidades
1
1. Segundo o calendário litúrgico católico em vigor até o Concílio Vaticano II, domingo que se celebrava setenta dias antes da Páscoa,
aproximadamente. Após este domingo, vinha o dá Sexagésima e o da Quinquagésima, todos antes da Quaresma (N. do T.).
2
2. Mt 20, 6-7.
298

precisamos dos meios necessários. Quanto ao primeiro fim, estais vendo como faço tudo para consegui-
lo, se não de modo ideal, ao menos seguindo minhas pobres capacidades e, às vezes, bem mal. A este
respeito, não posso queixar-me, a não ser de minha negligência e impotência, que me fazem desejar um
outro mais digno. No que se refere ao outro fim, apesar da minha boa vontade de empregar em sua
realização tudo o que me é possível, por ser novo aqui e ignorar a língua, não posso consegui-lo sem um
intérprete tempo integral, exclusivamente dedicado a este serviço, sem ser interrompido. E é o que tem
ocorrido comigo, até o presente, quando enviam para tratamento de negócios e para os campos aquele
que é o mais indicado para o meu serviço, e que só pede a Deus para se entregar a ele, pois me disse
várias vezes que não podia servir a dois senhores. Podeis dispor de outras pessoas, que não ele, para
atender às vossas precisões nas coisas temporais. Quanto a mim, não encontro outro, além dele, a quem
Deus deu o dom para o tal serviço. Sem isto, estaria perdendo meu tempo, aguardando padres que nada
encontrarão preparado. E eu contava enviar-lhes muitas coisas, na primeira viagem de regresso do
navio, o que não consegui. Por outro lado, os que pudessem enviar não estariam informados das
necessidades deste país, e certamente não seria possível escrever as coisas da mesma maneira como as
falamos. Ainda que eu o escrevesse, seria eu julgado talvez suspeito. Não obstante, eu preciso expressar
livremente meus sentimentos ao meu superior, ao qual é necessário que eu comunique o meu interior e
que peça os conselhos para a minha conduta e sobre como proceder com aqueles de quem recebi o
encargo. Só há dois caminhos, e fareis pender a balança do lado que achardes melhor: ou daria eu uma
volta à França, a fim de dizer o que penso diante de Deus ser necessário para a sua glória neste país, ou
que tenha a liberdade de escrever sem ser tachado de suspeito. Ou então, se ficar aqui, que eu tenha as
coisas necessárias, que estão ao vosso alcance conceder-me, a saber, que, como devo ter confiança em
vós, vós, de vossa parte, a tenhais em mim, e que vosso braço ajude o meu, e o meu ao vosso, em resumo,
que me permitais afastar-me a cem passos do forte, fora do barulho, com esse intérprete, para viver
minha vida particular e me dedicar às funções da profissão de um humilde missionário, como eu sou.
A decisão dele, por então, foi a de que eu fosse à França. Embora aquele bom padre 3 tivesse
grande desejo de retornar, ao saber da minha intenção, no sentido de avançar mais e de buscar o maior
número de operários que pudesse, a fim de procurar o bem de todos, consentiu nisso, e na frente do
senhor Flacourt, que se deu por satisfeito. Tudo concluído, portanto. Ele ficaria. Deixei tudo à
disposição dele. Fiz minha mala, com o mais indispensável possível. O senhor Flacourt rogou-me que me
despedisse dos franceses depois das Vésperas, no próprio domingo da septuagésima. Eu o fiz, explicando
o motivo. Feito isto, ficaram todos com os mais diversos sentimentos, tanto quanto eu. Sentia dificuldade
em deixá-los e em empreender esse ir e vir tão longo e perigoso. Os do navio se alegravam por me ter
como companhia, os da residência me queriam, por sua vez, reter para o serviço deles. Por outro lado,
cediam às razões do Evangelho, que pedia prontamente pelos operários que eu ia buscar, missionários
daqueles necessários para cultivar esta vinha, prontos para sofrer o peso do calor dos dias. E assim, ali
estava um pobre padre dilacerado com força por sentimentos diversos, próprios e alheios. Contudo,
embora a decisão tivesse sido tomada e fosse aceita por todos, eu me mantinha na disposição íntima de
indiferença, suplicando ao Senhor da vinha que me dissesse: ide logo ao amanhecer, ou, aguardai até o
meio-dia, para não perder o prêmio da obediência à sua única vontade. Deus sabe que não minto, que
não sabia o que fazer, a não ser que ele conduziria tudo ao que fosse melhor e que dispunha de recursos
e caminhos para o êxito dos seus desígnios e da sua providência infalível, contra a qual é impossível
resistir.
No dia seguinte, recomendei tudo na santa missa. Nenhuma resposta. Enviei minha mala para o
navio e me preparei para ser eu mesmo o portador das minhas cartas. De repente, eis todas as cartas
reviradas: dizem-me que era preciso que eu permanecer, para satisfazer aos que não estavam contentes
com o padre que ficava. Na verdade ele podia muito bem atender somente a tudo que era necessário na
residência. Até os negros vinham a mim. “Como! tu vais embora! Quem nos ensinará a orar a Deus?”
Foi como travas de ferro nos pés da minha vontade, prisioneira da de Deus, na voz do povo.
A outra proposta, porém, de ficar só, com meu intérprete, foi atendida, sem prejuízo do respeito e
da amizade com o senhor Flacourt, antes para aumentá-los e lhe dar menos motivo para tantas faltas
concernentes às nossas relações. Eis, afinal, unidos nossos corações, com promessas recíprocas de que
tudo seria para a maior glória de Deus. Vão fazer para mim um pequeno presbitério ao lado da Igreja. O
pobre companheiro, porém, que me servirá de intérprete, caiu doente de pleurisia, em consequência,
3
3. O Padre Bellebarbe.
299

segundo ele, da tristeza de ter de se separar de mim. A notícia, contudo, de que eu ficaria, o que era
desejo seu, mais a sangria e o bom trato que lhe dispensei, já desfez mais da metade do seu mal, já que,
segundo ele, foi eliminada a causa. Queira Deus não venha ele a mudar suas disposições! Com efeito,
não sei se isto é próprio do país, onde vemos, comumente, camaleões que não mudam com tanta
frequência de cor, quanto certos espíritos de resoluções e humor. Ora estão bem, ora mal, mas sempre
mais mal do que bem. Não obstante as belas aparências, não estou fora de suspeita de ter seduzido este
intérprete às custas desses Senhores. Mas o que poderei fazer senão dedicar-me, inteiramente, com a
ajuda dele, ao aprendizado da língua e à instrução dos negros? A honra disso recairá sobre eles, como,
no Canadá, sobre o senhor de Montmagny4. Oh! oxalá houvesse aqui alguém como ele! Receio muito,
pelo que transparece, que esses Senhores (da Companhia) se contentem com belas propostas para a
conversão deste país e que venham a nos engambelar, adiando por tempo demasiado o que se poderia
fazer sem demora. Se não virdes possibilidade de que se possa manter uma ou duas residências, como
vos disse, seja por meio deles ou por outros, valerá a pena enviar para tão longe, com tantas
dificuldades, e incomodar pobres padres para vir morrer, servindo residências tão mal regradas? Já não
temos nós franceses suficientes ao nosso alcance? Não lhes basta ter um padre, vivendo às suas
expensas, sem que fiquemos cativos e impedidos de trabalhar como convém na conversão dos negros, que
só aguardam por isso?
Vede a última carta que dirijo a esses Senhores, na qual lhes proponho os meios, talvez com
demasiada vantagem para eles e responsabilidade para nós. Fazei dela o que vos aprouver. Minha
consciência fica aliviada, depois de ter dito o que sei, e feito o que pude.
Se vos derdes ao trabalho de escrever a Madame Gondrée, enderece a carta para Dieppe,
residência do capitão Le Bourg. E se quiserdes escrever uma palavrinha a meu pobre pai, se ainda
estiver vivo, o endereço está na carta que lhe escrevo.
Não deixeis arrefecer o plano de Deus sobre este país, quando esses Senhores da Companhia
manifestarem desinteresse sobre ele. A providência de Deus vos há de fornecer, por outros caminhos, os
meios para empreendê-lo. Informações a respeito obtê-las-eis do capitão Le Bourg. Se isso for possível,
talvez até seja melhor.
Tudo o que vos relatei não seria capaz de interessar a Companhia inteira nesse plano,
especialmente nossos seminaristas, e levá-los a assumir a profissão de São Pedro, no sentido de aprender
a fazer e refazer redes próprias para pescar tantas almas? Enviastes-me para lançar as redes. Até agora,
pegamos apenas 57 peixes, todos pequenos, fora três grandes. Mas há tantos a fisgar que não duvido que
fareis embarcar pessoas que virão pescar outros, a ponto de as redes se romperem.
Não direi nada sobre Maillard, que pedira tanto para vir. Ele tem boas disposições de espírito e
saúde de corpo. Creio que tem a voz um pouco fraca e é sujeito à prisão de ventre; mas é bom ecônomo e
muito apto para a instrução das crianças. Deixo tudo à vossa disposição, desejando unicamente aqueles
a quem Nosso Senhor concedeu boa disposição, para deles fazer pescadores de homens; que saibam o
que importa fazer na direção desta obra e que possam resolver as dificuldades que se apresentem aqui,
onde não se pode com facilidade escrever para pedir orientação.
Tenho muitos motivos para me lançar aos pés de Nosso Senhor, como um pobre pescador e um
grande pecador. Suplico-vos lançar-vos aos seus pés, para que ele não se afaste de mim, pois lhe dou
motivo demais para isso. E quando vos aprouver me livrar deste fardo que me abate, se for necessário
que eu vá fazer penitência de minhas faltas, que o seja para voltar ao Seminário Interno, a fim de
reformar um monstro pelo exemplo e fervor daqueles a cujos pés me humilhe, para obter, por eles e por
vós, a esperança na misericórdia e na graça de Nosso Senhor. Rogo à sua caridade impelir-nos os
corações para executar os desígnios que tem sobre a Companhia. Em seu amor, sou, meu muito honrado
Pai, vosso muito humilde e muito obediente filho,

C. NACQUART
muito indigno padre da Missão de Madagascar.

4
4. Charles Huault de Montmagny, cavaleiro de Malta, Governador do Canadá, muito zeloso pela propagação da fé.
300

1189. – CHARLES NACQUART, PADRE DA MISSÃO, A SÃO VICENTE

Fort Dauphin, 16 de fevereiro de 1650.

Senhor Padre,

Vossa santa bênção, por favor!


Bendito seja Deus por ser aquele, em cujo favor escrevo a presente carta, o próprio portador
dela, conforme me prometeu1! Devo-lhe favores, recebi dele gestos prazerosos, honra e afeição,
presentes de várias utilidades, tanto em seu navio, quanto depois, durante mais de um ano em que
precisou residir no litoral. Compadeceu-se de mim como um bom pai para com um filho necessitado.
Pressionou-me, além do mais, a aceitar cem francos para cobrir as necessidades que pudesse vir a ter
nesse país. Se fosse preciso devolver-lhe o cêntuplo, e que o quisesse aceitar, quem duvidaria que lho
concedêsseis? Mas ele deseja receber simplesmente esta soma, que empregarei apenas, criteriosamente,
no que me for necessário, e para evitar o que sabeis e que ele vos poderá dizer. Ó senhor Padre,
reconfortai-me as entranhas, recebendo-o, não como ele merece e eu gostaria, mas, superlativamente,
com toda cordialidade possível. Assegurai-o de que, caso se apresente a ocasião de prestar-lhe algum
serviço, vós o fareis ou mandareis fazê-lo, como se fosse para o meu próprio pai. Conheço de tal modo
sua natural bondade que estou certo de que ele está pronto para contribuir muito com a obra de Deus
neste país. Sem dúvida alguma, no que diz respeito à esfera espiritual; sobre isto, troquei ideias com ele e
acolhi com honra seus sentimentos, como daquele que melhor me aconselhou neste país, e serviu-me de
mediador, como já vos disse antes. Mas além disso, se fosse ele que tivesse a chefia do primeiro barco
que vier,e disto ele é muito capaz, não há pessoa, que eu conheça, mais apto para vos manter a par de
tudo, e para efetivar a promessa que me fez de contribuir com as pequenas provisões temporais, se ele
vier. Ainda, porém, que não fosse ele, não deixaria de dar os conselhos a respeito, e até mesmo de redigir
sobre isso um relatório. Se estivesse em Dieppe, trataria fielmente de prover ao que estivesse a seu
alcance. Basta isso para seu louvor. Oxalá houvesse alguém que pudesse, como ele merece, arranjar-lhe
um cargo de capitão do Rei, que custa apenas uma palavra de requisição, e outra de concessão por parte
de sua Majestade, a governante e tutora do reino! Se estiver a vosso alcance contribuir para isto, em
favor deste homem leal, ou em outra coisa, não tereis favorecido um ingrato. E eu o sentirei como feito
àquele que é, no amor de Nosso Senhor, que será a sua e a vossa recompensa, senhor Padre e muito
honrado Pai, vosso muito obediente servo e muito afeiçoado filho,

C. NACQUART,
i. p. d. M.

Caso não seja ele o portador, sei que lhe agradecereis por carta e lhe fareis chegar às mãos a
referida soma, sem ter menos afeto em obsequiá-lo em qualquer ocasião. Praza a Deus o reveja eu neste
país, no primeiro embarque, com quatro padres e três irmãos coadjutores! Et sic dienceps diu usque
impleatur numerus fratrum nostrorum (E assim por diante, durante muito tempo, até se completar o
número de nossos Irmãos).

1190. – A . – A LUÍS RIVET, PADRE DA MISSÃO, EM SAINTES

20 de fevereiro de 1650.

Agradeço-vos pelas informações que me enviastes. Estou escrevendo à pessoa 1 e espero que
voltará atrás, em seu modo de agir. É tempestade que passa, suscitada pela idade e as paixões. Graças a
.
Carta 1189. – Dossiê da Missão, cópia do século XVII.
1
1. Capitão Le Bourg.
.–A
Carta 1190. – Reg. 2, p. 108.
1
1. A carta anunciada aqui é muito provavelmente a carta 1191.
301

Deus, o íntimo dele é bom e merece lhe suportem as fragilidades da natureza, como fazeis. Rendo, pois,
graças a Nosso Senhor, cuja paciência estais honrando, pela que exerceis em relação às faltas dos outros.
Vós os suportais como ele suportava a rusticidade dos seus discípulos e suporta todos os dias os maiores
pecadores como eu. Ó senhor Padre, como fico contente, vendo que trabalhais incessantemente na
virtude! O amor que tendes por ela transparece no pesar que sentis por não trabalharem nela, com afinco,
os outros. Quando, acrescendo a isto, vejo vossa assídua aplicação ao ministério do Evangelho, para
conquistar almas para Jesus Cristo, não sou capaz de estimar o bastante e querer todo bem que conviria à
vossa. A terna afeição que nutro por ela, desde longo tempo, faz com que a ofereça mui frequentemente a
Deus, a fim de que ele a santifique cada vez mais e salve por meio de vós, os povos que estais servindo.
Sem dúvida, senhor Padre, é muito difícil encontrar superiores completos. O vosso2 tem pouca
experiência, é verdade, e pouca aparência externa. Mas é prudente e virtuoso, como vós mesmo
reconheceis. E é exatamente isto que sempre me levou a esperar que Nosso Senhor suprirá o resto,
aguardando que, com a prática, adquirisse uma parte do que lhe falta. Peço-vos, senhor Padre, contribuir
pela palavra e pelo exemplo, para que a comunidade tenha confiança nele e que seja fiel a nossas
pequenas observâncias. Recomendar-lhe-ei que, de sua parte, aja mais humilde e suavemente, o que não
lhe será difícil, pois, ao que me parece, tem muito boa disposição neste sentido.

1191. – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE SAINTES. – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE SAINTES

20 de fevereiro de 1650.

Não posso deixar de testemunhar-vos minha satisfação por estardes quase incessantemente
aplicado à salvação das almas. Que a vossa progrida por esse meio no amor de Deus e que praza a sua
infinita bondade abençoar-vos os trabalhos. Agradeço por isto a essa mesma bondade infinita, e rendo-
lhe, por certo, meu reconhecimento, com tanta gratidão quanto me concedeu de estima e de ternura por
vós.
Estou vos escrevendo também por outro motivo. Trata-se da dúvida em que me encontro, se vos
respondi à carta que me escrevestes, há algum tempo. Por um lado, sei que tive intenção de fazê-lo, e que
só meus grandes embaraços teriam podido levar-me a omitir esta obrigação; mas, por outro, ciente de que,
por mais esforço que faça, caio no mínimo em atrasos em minha correspondência, receio ter cometido
esta falta a vosso respeito. Se assim o foi, senhor Padre, peço-vos perdão; se não, rogo-vos dizer-mo.
Fizestes-me vossa comunicação interior nessa carta, na qual encontrei motivo de louvar a Deus,
tanto pelo zelo que vos concede, no sentido de buscar a correção das faltas existentes em vossa
comunidade, quanto, particularmente, pelas boas disposições em que vos colocou para o seu serviço.
Como, porém, o estado de espírito do homem muda a cada dia, sobretudo naqueles que trabalham, como
vós, para o seu próprio progresso, peço-vos, se permaneceis na mesma devoção de fazer vossa
comunicação interior comigo, o façais segundo vossa disposição atual. Asseguro-vos que não deixarei de
vos dar resposta, não somente no que diz respeito a vosso interior, mas também a tudo mais, e todas as
vezes que me escreverdes. Graças a Deus, procuro fazê-lo para com todos, quanto mais para convosco,
que sois para mim o que Nosso Senhor sabe, e no qual sou para vós tudo que posso. Não duvideis disto,
por obséquio.
Contudo, se preferirdes abrir-vos com o Padre Watebled, para não sair do caminho ordinário,
ficarei contente e vós também satisfeito, assim o espero. Realmente, Nosso Senhor haverá muito por bem
a confiança que tiverdes em vosso superior, como representante de sua divina pessoa. Ele há de vos
inspirar tudo que vos for conveniente. Embora não tenha ele a experiência que eu possa ter, nem todos os
outros predicados desejáveis em uma pessoa de direção, não diminuais em nada, em razão disso, em tão
santa prática, nem em todas as que o beneplácito de Deus nos impõe em nossa condição. Todas são de
grande valor, moldadas dentro do espírito de amor e obediência. Sabeis que é perigoso seguir outras
luzes. Falo delas somente para nos estimular ao reconhecimento da graça que Deus nos concedeu, de
inspirar-nos a decisão de caminhar nas trilhas de Nosso Senhor e dos santos. Peçamos-lhe a graça de ir até
2
2. Pierre Watebled.
. – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE SAINTES
Carta 1191. – Reg. 2, p. 307.
302

o fim. Quero crer que a natureza vos instiga vários pensamentos contra a estima e a deferência que deveis
para com o Padre Watebled. Quero, contudo, crer, também, que superais esses sentimentos corrompidos e
que tirais proveito dessas repugnâncias, o que confere um acréscimo de mérito a vossa fidelidade. É
verdade que ele ainda é novo no cargo e não tem o perfil nem, talvez, a suavidade que requer. Mas posso
garantir-vos que é uma das almas mais dadas a Deus que eu conheça, e no qual sempre notamos muita
virtude. Não é fácil encontrar pessoas completas, nas quais nada haja a censurar. O que falta a esse servo
de Deus não é coisa considerável, em comparação com as qualidades que tem. E Nosso Senhor suprirá ao
que não tem, naquilo que vos diz respeito, se o considerardes nele, e ele em Nosso Senhor, como vos rogo
de todo meu coração.

1192. – A IRMÃ JEANNE LEPEINTRE


Paris, 23 de fevereiro de 1650.

Minha cara Irmã,


A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!
Fiquei muito feliz ao receber vossa carta. Por outro lado, trouxe-me motivo de aflição por vos ver
em contínuo incômodo, na mui pequena casa de que dispondes para morar. Se o próprio Deus não
providenciar o remédio para isto, é preciso não procurá-lo em outro lugar. Vede-o, contudo, com o Padre
d’Annemont1. Mostrai-lhe os inconvenientes que ocorrem por estarem em tão exíguo espaço e terem
tantos doentes, para que reflita com os senhores Administradores e veja com eles se é possível ajustar
algum lugar próximo, ou então em cima das salas, para vos dar um pouco mais de liberdade.
Fiquei igualmente feliz com a insistência com que pedis sejais aliviada do cargo de superiora. De
fato, toda pessoa que tem o ofício de direção faz bem em pedir de tempos a tempos a própria deposição,
muito embora deva permanecer na indiferença, como fazeis, graças a Deus. Continuai no esforço por bem
vos estabelecer no encargo que tendes, confiando-vos sempre aos cuidados da Providência. Ela vos há de
libertar desse ofício, quando for conveniente, e vos concederá as graças requeridas para bem cumpri-lo,
enquanto estiverdes no exercício dele. Sim, minha Irmã, ficai certa de que, permanecendo no estado em
que a obediência vos colocou, o mérito da mesma obediência se difundirá sobre tudo que fizerdes e
conferirá a cada ação um preço inestimável, embora as coisas não sucedam conforme vosso desejo.
É verdade, minha Irmã, que a direção espiritual é muito útil. É um espaço para conselhos nas
dificuldades, de encorajamento nos desgostos, de refúgio nas tentações, de força nos desalentos. Enfim, é
uma fonte de bens e de consolação, quando o diretor é bastante caridoso, prudente e experimentado. Mas
sabeis também muito bem que, quando faltam os homens, começa o socorro de Deus? É ele que nos
instrui, nos fortalece, que é tudo para nós, e que nos conduz para ele, por ele mesmo. Se permite que não
tenhais um pai espiritual a quem possais recorrer em todas as dificuldades, pensais por acaso que seja
para vos privar do benefício da direção de um tal pai? De modo algum. Muito pelo contrário, é Nosso
Senhor que lhe toma o lugar e que tem a bondade de vos dirigir. Parece bem claro que ele o fez até o
presente, e não duvideis de que o faça até prover de outro modo a tal situação. Sempre observei o cuidado
particular da Providência sobre uma quantidade de pessoas destituídas de semelhante auxílio da parte dos
homens. Poder-vos-ia relatar numerosos e belos exemplos a esse respeito, e mostrar-vos coisas
admiráveis nesse mesmo sentido. Mas não julgo necessário fazê-lo a vós, que disso não tendes dúvida e
sentis todos os dias os efeitos da proteção divina.
Não chegou o momento de podermos chamar de volta a Irmã Henriqueta. Rogo-vos ter paciência.
É muito de se desejar que tenhais todas um mesmo confessor. A meu juízo, o Padre Cheneau é
bem capaz deste serviço e é muito boa pessoa. Portanto, continuai, de tempos a tempos, a persuadir essa
irmã a se confessar com ele. Assim, se ela for confessar-se com um outro, saiba o senhor Bispo de
Nantes2 que não é por ordem vossa, nem com vosso consentimento.
Vejo claramente que o que vos tem impedido de elaborar vosso pequeno regulamento e de seguir
os avisos que vos deixei são as pequenas perturbações por vós sofridas até o presente. Espero da bondade
.
Carta 1192. – C. as. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Capelão do Marechal de la Meilleraye.
2
2. Gabriel de Beauvau de Rivarennes.
303

de Deus que para o futuro vos dará mais paz e mais graça para serem bem fiéis, e que vós possais dar o
exemplo a nossas irmãs.
Se a entrada de rapazes em vossa cozinha é um mal necessário, importa suportá-lo por amor a
Deus que o permite. Se for possível evitá-lo, é necessário contar com as providências dos senhores
Administradores. Para esse fim, deveis solicitá-las, vez por outra, ao Padre Truchart, com a devida
submissão, entretanto, ao que vier a acontecer.
Dizeis que vos arranjaram um fiscal que vos causa incômodo. Confesso que é algo aborrecido;
mas depois dos esforços que fizestes para vos ver livres desta sujeição, é preciso ter paciência. Meu Deus!
minha Filha, não sei quem não tenha algum vigilante. As pessoas mais importantes os têm até em seus
quartos. E a miséria do mundo é hoje tão grande que quase todas as pessoas que vemos são outros tantos
fiscais. Disto devemos tirar a advertência de que é preciso agir com grande prudência e na presença de
Deus. Quero crer que vós e vossas irmãs procedeis assim. Desta sorte, aqueles mesmos que observam
vossas ações hão de tornar públicas vossas virtudes.
Mandastes fazer em vosso dormitório a divisão que serviria para vossas pequenas assembleias,
conforme julgamos conveniente quando eu estava em Nantes? Se já está pronta, não vos seria possível
fazer nela um momento de recreação? Peço-vos um esclarecimento sobre isso. Entrementes, aprovo vossa
discrição em dar um pouco de liberdade a nossas Irmãs para rirem e falarem ao se apresentar a ocasião, se
é verdade que não tendes uma horinha para vos recrear em conjunto. Com efeito, é preciso um pouco de
“relax” em vossas contínuas ocupações.
Louvo a Deus porque vossa Irmã enferma está melhor e porque as demais estão com boa
disposição, especialmente vós.
Saúdo-vos em geral, e a cada uma em particular, com todo afeto possível. Peço-vos suplicar a
misericórdia de Deus por mim. De minha parte, ofereço-vos frequentemente a ele, para que vos dê a força
e a generosidade de espírito, a fim de superar as dificuldades que ocorrem no serviço de Deus e no dos
pobres. Seja ele enfim vossa eterna recompensa no céu. Em seu amor sou, minha cara Irmã, vosso
afeiçoado servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: Para a Irmã Jeanne Lepeintre, serva dos pobres e das Filhas da Caridade do hospital
de Nantes, em Nantes.

1193. – A BERNARDO CODOING, SUPERIOR, EM RICHELIEU

Paris, 13 de fevereiro de 1650.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Pedi à Madame Duquesa de Aiguillon o canonicato vacante ou prestes a ficar vacante em
Champigny1 para o filho do vosso médico. Disse-me ela que se tinha comprometido a concedê-lo a um
jovem de Tours, mas que, numa outra ocasião, terá todo o prazer em agraciar o citado médico. De minha
parte, estarei atento a isto, desejoso de poder prestar-lhe serviço, como é minha obrigação. Saúdo-o muito
humildemente2.
Disse-vos que a referida madame dá toda aprovação à mudança a se fazer no hospital de
Champigny, à retirada do capelão 3 e ao estabelecimento de nossas Irmãs e tudo mais que determinastes
para a ordem e para o bem dos pobres. Disponde todas as coisas para isso, aguardando que a senhora Le
.
Carta 1193. – C. as. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Champigny-sur-Veude, comuna dos arredores de Chinon (Indre-et-Loire).
2
2. Estas palavras, desde como é minha obrigação são da mão do Santo.
3
3. Padre Romillon.
304

Gras vos prepare duas de suas Filhas, das quais já falei com ela. Comunicar-vos-emos o tempo em que
poderão partir. A dita Madame concordará com o que dizeis que é preciso fazer com essa moça que resta
no hospital. Contudo, antes de dispensá-la, peço-vos esperar até que lhe tenha falado sobre ela, ainda uma
vez, para saber, com clareza, de sua vontade.
Depois de ter escrito o que está acima, tornei a falar com a Madame. Acha bom que retirem esta
moça da casa, até mesmo que a afastem para longe, pois está com a vida desregrada4.
Não estou sabendo se, ao escrever ao senhor Drouard, fizestes-lhe a proposta dos terrenos vagos
de Richelieu em favor da fábrica (da igreja). Se encontrardes facilidade para isto da parte dos habitantes e
dos interessados, escrevei a respeito ao senhor Drouard, se é que já não o fizestes. Com efeito, quanto a
mim, não quero fazer esta proposta à Madame. Convém que me envieis as cartas abertas5.
Vou saber da senhora Le Gras se quer receber a jovem daí que se apresenta para entrar na
Caridade e vo-lo comunicarei.
Recebi a cópia do contrato de arrendamento de Bois-Bouchard. Confesso que não consigo
compreender como foi concebido. Aquela casa com suas dependências é avaliada na base de mil ou mil e
cem libras de renda. Vosso contrato foi feito na base de apenas cento e noventa e cinco libras para uma
granja. Seria, portanto, necessário que as reservas feitas por vós vos dessem por ano oitocentas ou
novecentas libras, o que não posso crer. E mesmo se assim o fosse, dever-se-ia fazer um arrendamento do
restante por tão pouco? Deve haver algum mal-entendido em tudo isso. Peço-vos, senhor Padre, enviar-
me os esclarecimentos quanto antes.
A propósito, renovo o pedido que vos fiz de nada mudar nem inovar nas coisas principais. As
Companhias bem regradas, especialmente os Jesuítas, têm por máxima, quando um novo superior vai para
uma Casa, que ele nela deixe as coisas no estado em que seus predecessores as deixaram, sobretudo
quando o Visitador já passou por ela. Se me disserdes que agistes assim em Richelieu, como já me
escrevestes, e que vos permiti passar tal contrato, observar-vos-ei, por favor, que é verdade que vos dei
essa permissão, mas que esse arrendamento foi passado em termos totalmente diversos, dos que me foram
propostos. Aguardo notícias vossas sobre o caso, e sobre o estado da comunidade, que saúdo juntamente
convosco, senhor Padre, de quem sou in Domino vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Codoing.

1194. – A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

Paris, 23 de fevereiro de 1650.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Folgo com vos ver livre dessa taxa do clero, por este ano, pelo pagamento que dela fizestes. Para
os próximos anos, nós o veremos.
As 800 ou 1000 libras que quereis tomar emprestado se destinam à liquidação de vossas dívidas.
Ora, as ordenações se aproximam sem que inicieis os preparativos para tal, por falta de recursos. Sendo
assim, sou de opinião que tomeis emprestado mil libras a mais, para comprar camas e outras coisas
necessárias. Talvez o senhor de Beaugé vos possa fornecer as duas somas; se não, podereis encontrar em
outro lugar o que ele vos recusar. Para isto, mandarei redigir uma procuração e vo-la enviarei muito em
breve. Se o dito senhor Beaugé quisesse receber como reembolso, ou parte deste, as pequenas rendas de
que me falais, eu seria de parecer que elas fossem dadas a ele. Mas duvido muito que as aceite.
4
4. Esta última frase é da mão do Santo.
5
5. Mesma observação.
.
Carta 1194. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
305

Informai-me por qual quantia o senhor Planchois vos quer quitar a metade de sua pensão e de
quanto é esta pensão. Ainda que chegásseis a um acordo sobre isso, não creio que se deva romper a
primeira concordata feita com ele, para fazer uma nova, como dizeis. Com efeito, ela deve estar atrelada
às patentes do Rei, verificadas no Parlamento 1. Nela não convém tocar, particularmente por causa das
referidas patentes, que dela fazem menção.
Mandarei verificar no livro de nossas despesas se o dito senhor Planchois tem razão ao dizer que
passou dois recibos referentes a uma soma de 18 libras, para que não fique no prejuízo, se a recebeu uma
única vez, por equívoco de vossa parte. Aguardo notícias do Padre Lucas 2, a respeito da missão que
pregou.
Desejo a todos perfeita saúde e muita bênção sobre vós e vossos trabalhos.
Sou, in Domino (no Senhor), senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Gentil.

1195. – A LUÍSA DE MARILLAC

[Entre 16451 e 1660].

Se a senhora Le Gras houver por bem que me dirija ao parlatório, fá-lo-ei com todo prazer,
embora eu esteja com calafrio. A experiência me fez ver que não devo sair ao ar livre nesse estado sem
que me acometa novo calafrio, acompanhado por vezes de febre. Farei, não obstante, o que aprouver à
referida senhora. Caso lhe apraza escrever-me o que deseja dizer-me, recebê-lo-ei com o coração que
Nosso Senhor me deu, pronto para fazer o que ela pensar deva eu fazer por Deus. Enviar-vos-ei em breve
nosso Irmão Ducournau.

1196. – UM PADRE DA MISSÃO A SÃO VICENTE

1650.

Devo prestar-vos conta dos frutos que vossas preces e santos sacrifícios operaram, tanto em Joigny como
em Longron1, onde atualmente pregamos missão. Nada tenho a dizer sobre Joigny, a não ser que me
admira a assiduidade dos habitantes em ouvir as pregações e os catecismos, assim como a prontidão em
se levantar tão cedo. Com efeito, começaram, algumas vezes, a tocar o sino para a pregação às duas da
madrugada, e, no entanto, a igreja estava repleta.
Devo, contudo, confessar francamente que constato maior profusão de bênçãos nos campos do
que nas cidades. Neles, reconheço sinais mais evidentes de uma verdadeira e sincera penitência e
daquela primeira retidão e simplicidade do cristianismo nascente. Esse bom povo, ordinariamente, só se
apresenta para a confissão desfeito em lágrimas. Consideram-se os maiores pecadores do mundo e
suplicam penitências maiores do que as que se lhes impõem. Ontem, uma pessoa, que se confessara com
outro missionário, veio pedir-me lhe impusesse uma penitência maior do que a que lhe fora dada, e lhe
ordenasse jejuar três vezes na semana, durante todo este ano. Um outro, rogou-me lhe desse como
1
1. 15 de janeiro de 1650 (Arch. Nat. MM 535).
2
2. Superior da casa.
.
Carta 1195. – C. as. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. O Irmão Ducournau tornou-se secretário de São Vicente em 1645.
.
Carta 1196. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. II, § 7, 1ª ed., p. 46.
1
1. Le Grand-Longueron, lugarejo da comuna de Champigny, perto de Joigny (Yonne).
306

penitência caminhar descalço sobre a terra, no tempo da geada. Nesse mesmo dia de ontem, veio estar
comigo um homem, dizendo estas palavras: “Senhor Padre, ouvi na pregação que não havia melhor
meio para deixar de fazer juramentos do que lançar-se imediatamente de joelhos, na presença daqueles
diante dos quais se havia jurado. É o que acabo de fazer. Tão logo me dei conta de que havia jurado
minha fé, pus-me de joelhos e supliquei a Deus misericórdia.

1197. .a
– A LUÍSA DE MARILLAC

Não tenho febre, senhora Estou apenas com um resfriado que já me acometera e que regrediu muito,
graças a Deus. Já tomei qutro purgativos e creio que bastam.
Não vos esqueci hoje. Deus me deu a graça de celebrar a santa missa em vossa intenção1.
Fico contente com o que me dizeis da Madame chanceler2.
Será bom que estejais presente amanhã aqui, na assembleia 3, e que vos encontreis pela manhã com
Madame de Marillac4. Se, porém, não for possível fazer as duas coisas, adiai para terça-feira a visita a
essa senhora, por favor.
Boa-noite, senhora. Sou...

V. D. P.

Destinatário: À senhora Le Gras.

1198. – A MATHURIN GENTIL, PADRE DA MISSÃO, EM LE MANS

Paris, 16 de março de 1650.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Envio-vos as duas peças documentais que me solicitastes. A primeira é uma cópia colacionada do
decreto do Parlamento sobre a verificação de vosso estabelecimento 1. A segunda, o recibo do senhor
Planchois da última parcela do dinheiro que lhe mandei entregar, por duas vezes, num total de 24 libras, a
descontar do que lhe deveis. Disse-lhe que não lhe daríamos mais nada e que se dirija a vós. Quanto ao
ajuste que nos propôs, relativo à metade da sua pensão, não chegamos a nenhum acordo sobre isso, como
estais pensando. Pelo contrário, testemunhei-lhe que, sobre isso, não poderíamos de modo algum nos
entender, e ele nada mais espera a respeito.
O senhor Pousset não me escreveu no sentido de lhe dar apoio em negócio algum no Parlamento.
Por outro lado, não lhe posso prestar serviço nenhum nesse caso, pois jamais faço alguma solicitação em
favor de alguém, sendo-me vedado fazê-lo. Se, entretanto, em outra oportunidade, eu lhe pudesse ser útil,
poderia contar com meu empenho e com toda a minha boa vontade.
Temos dois irmãos clérigos aptos para prestar serviço à Igreja, como de fato estão fazendo. De
fato, estão ensinando a moral, um no Colégio dos Bons-Enfants e o outro no Seminário de Agen. Aquele
se chama [Luís] Champion e esse último [Francisco] Fournier 2. O primeiro é natural de Châteaudun e o

. .a
Carta 1197. – C. aut. – Dossiê das Filhas da Caridade, original.
1
1. Era provavelmente a festa de Luísa de Marillac ou aniversário de algum acontecimento memorável de sua vida.
2
2. Madame Séguier.
3
3. Assembleia das Damas da Caridade.
4
4. Maria de Creil, esposa de René de Marillac, ou Jeanne Potier, esposa de Michel de Marillac.
.
Carta 1198. – C. as. – Dossiê de Turim, original.
1
1. Cf. Arq. nac. S. 6707.
2
2. O secretário deixou em branco o lugar dos nomes, que ele não conhecia ou que tinha esquecido.
307

outro de Laval, na diocese de Le Mans. Os dois já estão com boa idade e trabalham na aquisição das
virtudes. São apenas tonsurados3. Peço-vos, a vós ou ao Padre Lucas, solicitar para eles ao senhor Bispo
de Le Mans cartas dimissórias ad omnes4, se for possível. Temo não poder enviar-vos hoje suas cartas de
tonsura. Ficará para uma outra vez.
Guardai-vos, senhor Padre, de retirar as fechaduras colocadas nos celeiros pelos senhores
Administradores, como me propondes, como também de mandar fazer alguma chave para abri-los. De
modo algum deveis entrar em litígio com eles, mas viver no melhor entendimento possível, ainda mesmo
quando intentassem privar-vos totalmente dos ditos celeiros. E eles não farão isso, se viverdes em paz
com eles. A paz vale mais do que todos os bens do mundo; além do mais, Deus a recompensa já desde
esse mesmo mundo. Rogo-vos trabalhar neste sentido e não pensar em fornecer renda alguma em
pagamento, nem como venda, nem como troca, nem como outra destinação, com o fim de nada
desmembrar da casa. Tomai vós mesmo as diligências necessárias para impedir que essas rendas mal
garantidas se venham a perder-se.
Estou com tanta pressa que não tenho tampo algum para escrever ao Padre Lucas. Tenho apenas
tempo para abraçá-lo, e com ele toda a comunidade. A daqui está bastante bem.
Sou, in Domino, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Embaixo da primeira página: Padre Gentil.

1199. – A ANTÔNIO LUCAS, SUPERIOR, EM LE MANS

23 de março de 1650.

A proposta que me fazeis do priorado de Laval é contrária à nossa máxima e ao uso nosso de não
buscar nenhum estabelecimento direta ou indiretamente. Foi unicamente a Providência que nos chamou
para todos os que temos, por intermédio daqueles a quem competia. E se a Companhia crê em mim, há de
se manter inviolavelmente nesta discrição. Se o tal senhor ainda vos falar disso, dizei-lhe que vos dei esta
resposta.
Pedi ao ecônomo de vossa Casa1 que deixe as coisas como estão, com relação aos senhores
Administradores. Tenha ele todo cuidado em não mexer nas fechaduras dos celeiros, e, mais ainda, de não
instruir nenhum processo. A paz vale mais do que tudo que vos tiram. E se a procuramos em se tratando
dos outros, não é mais razoável que a conservemos em nosso meio, a fim de que não nos aflijam com a
censura que lemos ontem no Evangelho: médico, cura-te a ti mesmo2? Em nome de Deus, senhor Padre,
soframos tais perdas de preferência a dar escândalo. Deus tomará em suas mãos nossa causa, se
praticarmos este conselho de Nosso Senhor.

1200. eso
– A RENÊ ALMÉRAS, SUPERIOR, EM ROMA

25 de março de 1650.

3
3. A tonsura, raspagem do cabelo em forma de coroa, feita no ápice da cabeça dos candidatos, era uma cerimônia introdutória à clericatura,
antes da recepção das ordens (N. do T.).
4
4. “Ad omnes” : para todas as ordens sacras (N. do T.).
.
Carta 1199. – Reg. 2, pp. 58 e 123. O segundo fragmento começa nas palavras: J’ai prié (Roguei). Talvez fosse o primeiro no original.
1
1. Mathurin Gentil.
2
2. Lc 4, 23.
. eso
Carta 1200. – Reg. 2, p. 232.
308

Se a Casa de Roma ficou órfã, como dizeis, com a ausência do Padre Dehorgny, Nosso Senhor lhe será o
pai, o conselheiro e o protetor. Não duvideis disto, redobrai de confiança em sua bondade e deixai-o agir.
Ele mesmo será esse homem, com graça e inteligência, que estimais deva ser colocado em vosso lugar.
Sabeis, senhor Padre, que o êxito dos negócios depende totalmente dele, e sei que, se tivesse dependido
de nós, o que mpreendeste teria tido muito bm êxito, já que empregastes toda a precaução, o cuidado e a
diligência que se poderia esperar de um homem de virtude. As obras de Deus não se realizam quando as
desejamos, mas quando lhe apraz. Crede que os Jesuítas tenham desleixado alguma coisa, quando vieram
a Paris, para obter imediata permissão de ali se estabelecerem? De modo algum. Contudo, passaram
quatro anos sem ver nenhum fruto de suas solicitações e iniciativas. Os Padres do Oratório estão em
Roma desde muito tempo; por ventura já conseguiram obter lá um pequeno estabelecimento próprio para
eles? Não. Estão bem em São Luís, mas sujeitos à confraria 1. Deus adia com frequência o resultado final
de uma santa iniciativa, para levar aos que a empreendem a merecer-lhe a graça, quer pelo trabalho
demorado, quer pela paciência e pela oração. É a razão por que vos peço não vos deixar abater pelo
cansaço, em vossos empreendimentos. Embora tarde, Deus vos mostrará sua aprovação e agrado, se, na
verdade, tudo for feito com a devida resignação em relação ao resultado final.

1201. – AO PADRE BLANCHART

São Lázaro, 26 de março de 1650.

O R.P. Geral da Congregação de Santa Genoveva é solicitado muito humildemente por seu servo
Vicente de Paulo a conceder audiência favorável a esse cavalheiro que vai falar com ele sobre um negócio
importante para sua própria salvação.

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

1202. – A UM PADRE DA MISSÃO DA CASA DE SAINTES1

27 de março de 1650.

Respondo à vossa carta do dia 16. Estou muito sentido por ter anteriormente tardado em vos
escrever e por cair ainda agora nessa falta. Peço-vos de novo perdão, humildemente prostrado em espírito
a vossos pés.
Não estranho que tenhais sido tentado, porque isto é próprio dos que querem servir a Deus. O
próprio Nosso Senhor o foi, e não sei quem poderia, depois dele, ficar isento de tentações. Soubesse eu de
alguém que nunca as tenha tido, então me estranharia. Os grandes bens da graça, tanto quanto os da
fortuna, só se conservam com dificuldade e esforço, e o diabo não se interessa em vos deixar em paz. Não
deixará ele de vos desviar, se puder, de vossas santas resoluções, porque atingem a salvação de uma
grande multidão de almas, que podereis livrar da tirania dele, pela força das santas palavras que lhes
dirigis, e pela graça da vossa vocação. É grande o desígnio de Deus sobre vós, levando-vos a exercer o
ofício de Jesus Cristo na terra, o que merece resistais com fortaleza de ânimo à tentação, com particular
confiança no socorro de sua divina bondade. Coragem, pois, senhor Padre, sede-lhe fiel, e ela vos será
propícia. Suplico-lhe muito humildemente vos conceda essa graça, e que vos dê a conhecer a estima e
afeição que tenho por vossa pessoa, assegurando-vos que vão além do que podeis imaginar.
1
1. Dos vinte e quatro padres que constituíam o corpo dos capelães de Saint-Louis-des-Français, seis eram tomados, desde 1618, dos Padres
do Oratório da França (Cf. Mémoire historique sur les institutions de France à Rome, por Dom Pierre La Croix, Paris, 1868, in-8°, p. 47).
.
Carta 1201. – Bibl. de Santa Genoveva, ms. 2555, cópia.
.
Carta 1202. – Reg. 2, p. 308.
1
1. O destinatário da carta de 20 de fevereiro.
309

Quanto à dificuldade que tendes de vos comunicar com o Padre Watebled, é bom fazer esforço por
superar-vos, tendo em vista a comunicação do Filho de Deus com a Santíssima Virgem e São José, e,
depois, com os apóstolos e até mesmo com os escribas, os fariseus e os tribunos. Se Deus privou esse
bom padre de muita simpatia exterior, enriqueceu-lhe o interior de muita virtude, como vós mesmo o
reconheceis. Se há pessoas na cidade que se admiram de que alguém possa ser súbdito dele, é gente que
regala os olhos com a elegância dos corpos. Vós, porém, que olhais mais profundamente, que sabeis
quanto uma alma pura, toda aplicada ao serviço de Deus e que é o templo do Espírito Santo, é preciosa e
digna de veneração, vós não deveis vos deter na aparência exterior. Mas nem também deveis submeter-
vos a um homem em razão de suas virtudes, seja qual for sua santidade, mas unicamente por Deus, que
nele deveis ver. É o que vos peço fazer em relação à pessoa do senhor Padre Watebled e na de quem vier
a suceder a ele.
Estou certo, senhor Padre, de que a vida sedentária vos é prejudicial. O que está acontecendo é
fruto de um sangue quente e de um espírito vivo, que se modera com a idade e não com mudança de Casa.
Com efeito, carregamos por toda parte nosso temperamento. E esse calor e vivacidade são fonte de
aborrecimentos e inquietudes. Há pessoas que se contentam com tudo, e há outras que não se satisfazem
com quase nada. Estas últimas precisam de paciência para se suportarem a si mesmas.
Penso que a presente vos encontrará quase fora da quaresma. Sendo assim, seria inútil oferecer-
vos algum remédio para o incômodo que dela recebeis. E depois, vós não quereis ser dispensado de suas
obrigações.
Rogo a Nosso Senhor, senhor Padre, possamos morrer para nós mesmos, para ressuscitar com ele.
Seja ele a alegria de vosso coração, o fim e a alma de vossas ações, e vossa glória no céu. Isso acontecerá
se doravante nos humilharmos como ele se humilhou, se renunciarmos às nossas próprias satisfações para
segui-lo, carregando nossas pequenas cruzes. E mais, se dermos, de bom coração, nossa vida, como ele
deu a sua, para o nosso próximo, que ele ama e quer que amemos como a nós mesmos.
Estou plenamente confiante em vossas preces.

1203. – BALTHAZAR GRANGIER, BISPO DE TRÉGUIER, A SÃO VICENTE

1650.

Agradeço-vos pelo fiel ministério dos vossos quatro padres em minha missão nesse lugar. Sua
capacidade, seu zelo e assiduidade em pregar e confessar foram tão grandes que foram coroados com
excelente êxito. Posso dizer que todos os habitantes deste lugar, de qualquer idade, sexo e condição, se
converteram e tenho grande motivo para louvar a Deus por me ter dado, por vosso meio, tão bons
operários. O Padre... é dotado de tal vigor no púlpito que ninguém lhe resiste. Já vou retê-lo para a
missão de... no ano que vem.

1204. – A UM BISPO

[Entre 1646 e 16521].


Senhor Bispo,

Um religioso desta cidade fez uma tese na qual avançou uma proposição ligada ao jansenismo e
que foi condenada pela Sorbona. O senhor Chanceler 2, em vista disto, proibiu a assembleia e as
discussões que se fariam sobre o assunto. Tendo o superior do religioso oposto alguma dificuldade em
.
Carta 1203. – Abelly, op. cit., l. II, cap. I, sec. II, § 6, 1ª ed, p. 45.
.
Carta 1204. – Abelly, op. cit., l. II, cap. XII, p. 417.
1
1. São Vicente fala aqui do jansenismo num tom decidido e determinado, que não lhe era habitual antes de 1646. Por outro lado, a carta
parece do tempo em que ainda fazia parte do Conselho de Consciência.
2
2. Pierre Séguier.
310

acatar a proibição, o senhor Chanceler o mandou chamar e lhe disse que, se viesse a desobedecer à ordem
dada, ele saberia muito bem como enquadrá-lo no seu dever, a ele e a todos os seus. Ordenou-lhe que
fosse procurar o senhor Núncio, o qual lhe fez severas censuras por não ter impedido que tal tese fosse
apresentada. Ameaçou a ele e a todos dentre os seus, que favorecessem essa doutrina, de mandá-los
castigar e de escrever sobre o caso ao Papa e ao Superior Geral. Posteriormente o próprio referido
superior e sua comunidade puniram o dito religioso, declarando-o inapto a todos os cargos e ofícios na
Ordem, privando-o de voz ativa e passiva. Em seguida, expulsaram-no de sua Casa. Temos motivo de
esperar que, se for mantida mão firme para impedir tais empreendimentos, essa perniciosa doutrina
poderá finalmente dissipar-se.

1205. – A UM BISPO

[Entre 1643 e 16521].

Há um ano, ou mais ou menos isto, me dei a honra de vos escrever a respeito da eleição de... como
abade de..., a fim de terdes a bondade de vos dar ao trabalho de vir a Paris, para informar a Rainha sobre
as qualidades do personagem e as necessidades da abadia. Em razão, porém, de um incômodo que vos
impediu de fazê-lo, tivestes a bondade de me relatar por carta os justos motivos existentes para impedir
que essa eleição se efetivasse. A questão se arrastou, depois, diante da oposição de dois religiosos
eleitores, convocados para a eleição um dia após sua realização. A referida oposição acaba de ser
esvaziada no Parlamento, surpreendentemente, em favor do dito eleito, mais do que nunca inflamado de
ardor em perseguir a própria confirmação, pressionando insistentemente pela expedição do seu diploma.
Como está sendo apoiado por muitas pessoas poderosas, há razão para se crer que o consiga. Daí porque
vossa presença aqui é muito de se desejar, a fim de dizer uma palavra à Rainha e conferir o devido peso
às razões de impedir esse mal. Tenho conhecimento de que sua Majestade, que muito vos estima, o
aprovará inteiramente, e o senhor ministro da justiça achou bom que eu vos suplique, como faço
humildemente, que venhais quanto antes, pelo amor de Deus. Acolho esta confiança por saber quanto
seus interesses vos tocam o coração. Talvez desse momento, como me fizestes a honra de comunicar-me,
depende a reforma dessa Casa e de suas filiadas. E certamente Nosso Senhor deseja que o mérito de tão
suspirado êxito vos seja imputado, como a um dos prelados do reino mais zelosos pela glória de sua
Igreja.

.
Carta 1205. – Abelly, op. cit., t. II, cap. XIII, sec. VII, p. 457.
1
1. Tempo durante o qual São Vicente fez parte do Conselho de Consciência.
311

APÊNDICES

(As duas Requisições feitas por São Vicente ao Parlamento, de abril de 1647 e de julho de 1647, foram
transferidas para o Tomo XIII dos Documentos)
312

ANEXO III

48. – A BONIFÁCIO NOUELLY1,


Padre da Missão, Superior em Argel

Paris, 7 de setembro de 1646.

.
Carta 48. – C. aut. – Original posto à venda por M. Lemasle, comerciante de autógrafos em Paris, em 1925 ou 1926.
Texto publicado nos Annales de la C.M., 1926, P. 233-235.
1
1. Bonifáfio Nouelly (ou Nouel, ou Noel), nascido em 1618, em Collonges, diocese de Genebra. Ingressou já como padre na Congregação
da Missão em 1643. Acabava de chegar a Argel, onde morreu em 1647, vítima de peste contraída na cabeceira de um doente a quem dava
assistência.
313

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Rogo a Nosso Senhor vos dê a conhecer a consolação incomparável que vossas cartas me
trouxeram. Peço a sua divina bondade, que vos escolheu desde toda eternidade para uma obra de tal
importância, vos conceda o espírito que manteve em seu íntimo, na submissão exterior a São José.
Ó senhor Padre, quantos demônios o príncipe dos demônios destinou para vos tentar nesse estado.
A função do nosso querido Irmão2, a diversidade de opiniões, o desacordo mútuo e recíproco, a natural
inclinação que temos no sentido de que tudo ceda a nós, como todas essas coisas são acompanhadas de
um espírito maligno, que trabalha incessantemente para romper os laços da caridade com que Deus vos
uniu os corações! Mas permanecei firme, senhor Padre, humilhando-vos muito pelo bem dos dois. Fazei
numerosos atos interiores em favor dessa querida metade de vós mesmo, e destroçareis esses espectros
malignos, precipitando-os no mais fundo dos infernos, de tal maneira que jamais venham a tentar-vos.
Imaginai, senhor Padre, que a santidade de vosso ofício e a maneira como vos comportais enraivece os
demônios.
Trabalhai, entretanto, em vosso ministério principal, senhor Padre. Visitai, consolai, fortalecei e
animai com o espírito de Deus vossos pobres escravos 3. É este o principal e único objetivo de vossos
ofícios. O resto está sujeito a isso.
Ó senhor Padre, como o Padre Chrétien 4 procede bem a contento de cada um. Todos reconhecem
que o espírito de Deus anima e conduz o dele. Não vos seria possível escrever um ao outro? Se houver
algum meio, ficaria muito contente, a fim de que a mútua comunicação entreanime e entreajude a ambos.
Se o fizerdes, é necessário que isto se faça com tanta discrição que ninguém encontre nada a censurar em
vossas cartas, caso venham a se interceptadas.
Escrevo ao senhor cônsul nossos humildes pareceres sobre dois assuntos. A comunicação de sua
carta, que antecipareis pela comunicação da vossa, vos informará do que vos digo, pois estou
extremamente apressado.
Agora, dou-vos uma notícia que vos informará sobre a grande aflição em que estamos com a
prisão, no Parlamento de Rennes, do senhor Padre Braumont5, onde corre risco de vida. Eis de que se
trata. O senhor Bispo de Saint-Malo6 nos estabeleceu em Saint-Méen, diocese sua, onde instituiu um
seminário de eclesiásticos, ao qual uniu, com o consentimento do Rei, a mesa 7 dos religiosos da abadia,
também com o consentimento deles, em conformidade com o Concílio de Trento e as ordenanças de
nossos reis. Os religiosos reformados de São Bento se queixaram ao Parlamento e o instigaram. Fomos
assim expulsos desse lugar. Ao sermos reintegrados pela autoridade do Rei, tomaram como prisioneiro o
dito Padre de Beaumont e decidiram que seremos expulsos da província, contra os decretos do Rei que ali
nos mantêm.
Eis, senhor Padre, como temos motivo de honrar a expulsão de Nosso Senhor de algumas
províncias, e a dos apóstolos, e como nossa pequena Companhia começou a sofrer a prisão sem ter
praticado o mal. Pelo, contrário, Deus abençoou seus trabalhos de maneira particular e em especial os do
Padre de Beaumont, um dos maiores homens de bem que jamais conheci, e dos melhores operários da
Companhia. Sofremos com isto, e por tudo que transparece do ódio que alimentam contra o senhor Bispo
de Saint-Malo, por se ter ele dirigido ao magno Conselho, em vez de se dirigir a eles, para o registro de
nossas cartas de estabelecimento no Parlamento.
Compartilho convosco minha dor, a fim de que vejais que encontrais segurança, embora
trabalhando entre infiéis, enquanto nós padecemos todas essas coisas no meio dos fiéis.

2
2. O Irmão Jean Barreau, ainda clérigo da Missão, nascido em 1612 em Paris. Ingressou na Congregação da Missão em 1645. Em 1646, era
cônsul na França em Argel. Morreu em Paris em 1679, ou pouco depois.
3
3. B. Nouelly tinha sido enviado para Argel para o serviço espiritual dos escravos cristãos retidos como cativos em Argel.
4
4. Jean Chrétien, nascido em 1606 em Oncourt, diocese de Toul, ordenado padre em 1631. Entrou na Congregação da Missão em 1640; era,
em 1646, superior da casa de Marselha. Morreu depois de 1667.
5
5. Pierre de Beaumont, nascido em 1617 em Puiseaux, diocese de Sens. Entrou na Congregação da Missão em 1641, ordenado padre em
1644, colocado em Saint-Méen. Esteve preso durante algum tempo em consequência das questões surgidas pelo estabelecimento dos
Missionários em 1645. A respeito dessa aborrecida questão, ver Coste: Le grand saint du grand siècle, Monsieur Vincent, t. II, p. 133-144.
6
6. Achille de Harlay de Sancy, nascido em Paris em 1581. Entrou no Oratório em 1620. Foi nomeado Bispo de Saint-Malo em 1631.
Morreu em Saint-Malo em 20 de setembro de 1646.
7
7. Mesa, ou título de sustentação, era a renda anexa à abadia destinada ao sustento dos religiosos.
314

Sou premido a terminar recomendando-me a vossas preces, eu que sou, no amor de Nosso Senhor,
senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Para o senhor Padre Nouel, padre da Missão, em Argel.

49. – . – A JEAN DEHORGNY,


Padre da Missão, Superior em Roma

Orsigny1, 27 de setembro de 1646.

Senhor Padre,
A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!
Fizestes bem em não tentar a...2 estando os negócios no estado em que estão o p. Co... ...jacobino
estima que devamos contentar-nos... de M. de Paris, e acredita que basta isso e qu’... e que, dada a nossa
intenção de nos manter no... é melhor, porque as do Papa seriam uma dispo... para entrar no estado de
religião.
Os senhores Padres Portail e Alméras ainda estão em La Rose 3. De lá passarão por Marselha4.
Procuram levar todos a observarem integralmente o pequeno regulamento 5 escrito. Vereis quando
estiverem aí.
Folgo em saber o que me dissestes, que Dom Ingoli pensou em tornar vigários forâneos os Padres
Guérin e Nouelly6.
Estou igualmente contente por terdes enviado o Padre Richard 7 para Gênova. Aquela pequena
comunidade goza de elevada estima, pelo que me relatou o intendente da justiça do exército do Rei na
Itália.
Concordo com o vosso parecer relativo ao estabelecimento da Companhia naquela República8.
Concordo, igualmente, com a maneira com que procedestes com o senhor Cardeal Ludovisi9.
Julgo, além do mais, que fazeis bem em reduzir, ao mínimo, o que concerne a vossa moradia.
Agi como Deus vos inspirar a respeito de Saint-Sauveur1010. A ocasião de vos retirar de lá é bem
oportuna, já que julgais que o estabelecimento naquele lugar comporta alguns inconvenientes.

.–
Carta 49. – C. aut. – Original posto à venda, em 1651, pelo Senhor Degrange, comerciante de autógrafos em Paris constava, em janeiro de
1854, no catálogo do senhor Laverdet, comerciante de autógrafo, sob o número 1060.
Dois trechos pequenos foram publicados na edição de Coste, III, 58, n° 862. O texto autógrafo foi publicado, com a ortografia e a
disposição do original, nos Annales de la C.M., 1951, p. 373-374.
1
1. Orsigny, granja importante da Congregação da Missão, desde 1644 (sobre o atual território da Comuna de Saclay, em Seine-et-Oise). São
Vicente ficou lá de passagem, algumas vezes.
2
2. Um fragmento do original (no alto, à direita) foi arrancado, donde as lacunas indicadas pelas reticências.
3
3. Notre Dame de la Rose, perto de Saint-Lavrade, diocese de Agen. Os missionários ali estavam estabelecidos desde 1639, para o serviço
da peregrinação e das missões nos campos. O padre Portail fazia então a visita canônica da casa. O Padre Alméras se encontrava em La Rose:
O Padre Vicente pensava em confiar-lhe a visita canônica da casa de Annecy, depois, da de Roma, e enfim a direção da casa de Roma.
4
4. Os Padres Portail e Alméras deviam passar por Marselha. Por lá passaram de fato. O Padre Portail foi fazer a visita canônica na casa de
Roma, da qual o Padre Alméras foi nomeado superior.
5
5. Trata-se do primeiro projeto das Regras Comuns, posto em funcionamento em 1642, cuja aprovação se buscava em Paris, posteriormente
em Roma. O primeiro parágrafo desta carta, a despeito das lacunas, trata provavelmente da questão da aprovação.
6
6. Dom Ingoli, secretário da Congregação da Propaganda, para aumentar os poderes dos missionários da Barbária (Juliano Guérin, em
Túnis, Bonifácio Nouelly, em Argel), os fez nomear Vigários Gerais do Arcebispo de Cartago.
7
7. Francisco Richard, nascido em 1622 em Metz, ingressado na Congregação da Missão em 1643, colocado em Roma, depois, em Gênova.
8
8. República de Gênova.
9
9. Niccolò Albergati-Ludovisi, Arcebispo de Bolonha e Cardeal em 1645, falecido em 1687.
10
10. Talvez a abadia de Saint-Sauveur, a quinze léguas de Roma, onde os missionários vez por outra foram descansar.
315

...1111 seria muito de se desejar que se achasse “quelque” (algum, alguma?)... “dient” a respeito de
Saint-Sprit de Toul1212. Começam... a missão no campo em consequência do odor... a Companhia na
administração da paróquia de Saint-Amand1313.
A pequena perseguição da Bretanha1414 ainda não foi apaziguada, embora Suas Excelências, o
senhor Bispo e o Coadjutor de Saint-Malo, tenham ido até o local, expressamente para esse fim. Nosso
prisioneiro foi solto cinco dias depois. A comunidade está espalhada por aqui e por ali. Nosso Senhor os
reagrupará quando lhe aprouver. Quanto a mim, termino recomendando-me a vossas orações e sou, no
amor de Nosso Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Senhor Padre de Horgny.

50. – A GUILHERME DELVILLE1


Padre da Missão, em Montmirail2

São Lázaro, 4 de outubro de 1646.

O Padre Delville ficará tranquilo, por este bilhete que escrevo às pressas, [estando] por aqui o
mensageiro, de que recebemos as cartas que escreve ao Padre Codoing e a mim. As do Padre Codoing
mandarei entregar-lhe em Rouy3, na Bretanha, onde se encontra. De sua parte, rogo ao Padre Delville
remeter-me quanto antes as pregações que ele lhe deixou, pois precisa muito delas onde está.
O senhor Bispo de Soissons4 deseja muito vosso estabelecimento em Montmirail, nas condições
aliás conhecidas. Nós lhe escrevemos. Parece-me que o senhor Prior 5 me disse que fostes estar com ele e
que vos deu seu consentimento. Se assim foi, será bom que vades encontrar o Padre Nacquart 6 e que
aceiteis a doação que vos deseja fazer da casa, mesmo no caso em que o referido senhor não vos tenha
ainda dado a palavra. O que não se pode fazer num determinado tempo, poderá ser feito noutro. Não
percais tempo, portanto, por obséquio7 [...]. Mas não vejo sinal de que faça o que projetara e é preciso
nem mesmo pensar nisso.
Se nos fosse possível assumir as missões e o seminário de que falais, senhor Padre, seria preciso
fazê-lo, conquanto se trata de jovens que aspirem ao estado eclesiástico. Mas qual! não podemos assumir
as primeiras, nossa finalidade principal; com que meios assumir o segundo! Não assumir as missões, ó
Jesus! senhor Padre, Deus nos livre! Veremos com o tempo se poderemos enviar dois de nossos
estudantes para dar as aulas, enquanto pregareis a missão com o Padre Royer8 e o que vos será enviado.
11
11. As lacunas nas linhas seguintes têm por origem o rasgão mencionado na nota 2 da presente carta.
12
12. Faz-se aqui alusão às dificuldades encontradas pelos missionários estabelecidos em Toul, em 1637, quanto às missões e aos exercícios
espirituais dos Ordinandos. Os Irmãos do Espírito Santo que serviam ao hospital se consideravam lesados pela fundação.
13
13. Sem dúvida a paróquia da cidade de Toul, da qual os missionários foram provisoriamente encarregados.
14
14. Alusão às dificuldades de Saint-Méen. Ver a nota 5 da carta precedente.
.
Carta 50. – C. aut. – Original posto à venda em Paris em 1932. Texto publicado nos Annales de la C.M., 1933, pp. 217-219.
1
1. Guilherme Delville nascido em Tilloy-les-Bapaume (diocese de Arras) em 1608. Entrou na Congregação da Missão, já como padre, e
morreu em Arras em 1658.
2
2. Os padres da Missão estavam estabelecidos em Montmirail (diocese de Soissons, atualmente departamento do Marne) desde 1644.
3
3. B. Codoing era então superior da casa de Saint-Méen (diocese de Saint-Malo). Rouy é uma localidade que não foi possível indentificar.
4
4. Simon Le Gras, nascido em Paris em 1589, nomeado Bispo de Soissons em 1623, falecido no castelo de Sept-Mons, perto de Soissons,
em 1656.
5
5. O prior do Hospital Geral de La Chaussée (subúrbio de Montmirail, que dependia da diocese de Troyes.
6
6. Charles Narquart, nascido em Treslon (diocese de Soissons) em 1617. Entrou na Congregação da Missão em 1640. Depois da sua
ordenação, ele missionou em Richelieu. Designado para Madagascar, fez parte da primeira equipe lazarista. Chegou lá no fim de 1648 e
morreu em pleno trabalho, em 1650. Charles Nacquart era natural da diocese da Soissons e assim se explica que tenha pensado em doar uma
casa, a ele pertencente, à casa de Montmirail.
7
7. Aqui vem um rasgão de duas linhas. A primeira linha começa por “M. le Pri...”, a segunda por: “Delville”...
8
8. Trata-se ou de Nicolas Royer, nascido em Chenières (diocese de Trèves) em 1613, ingressado na Congregação da Missão em 1639,
ordenado padre em 1642, ou de Ponce Royer, nascido em Thor (diocese de Cavaillon) em 1615, ingressado como padre na Congregação da
316

Agradeço-vos muito humildemente o tratamento cordial que dispensastes ao senhor Prior e ao seu
pessoal, do qual ficamos cientes.
Falo-vos do meu retiro. Somos uns quarenta a fazê-lo [em vários grupos; além] de sete padres
[uma palavra ilegível], há dois ou três clérigos entre nós. Uma parte do seminário está em outro grupo. Os
irmãos coajutores o fazem separados. Quando fareis o vosso? Rogo-vos recomendar a Deus os nossos e
Deus sabe com que coração nós lhe recomendaremos os vossos e como de coração vos estimo. Com
certeza, só ele vos poderia dar a conhecê-lo.
Saúdo também muito humildemente o Padre Le Royer e prometo, a vós dois, enviar-vos algum
padre, quanto antes. Sou, no amor de mesmo Senhor, senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Delville, superior da Missão de Fontaine-Essart9, em Motmirail.

51. – A ANTÔNIO PORTAIL, Padre da Missão, em La Rose

Paris, 6 de outubro de [1646]1.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Recebi ontem duas cartas vossas, uma de 21 e [a outra de] 22 de setembro. Vou escrever ao M.de
[... Eu] vos envio a presente por um portador expresso.
Meu Deus, senhor Padre, que faremos diante do que me dizeis? Conseguir que essa pessoa 2 volte
atrás em suas opiniões não parece provável, em razão da qualidade do seu espírito, tanto mais quanto já
chegou ao ponto de estimar que os Concílios não entenderam muito bem as Sagradas Escrituras. Levá-lo
a retroceder não se ajusta à têmpera do seu caráter. O outro3 é de humor volúvel. Este4, um pouco
irascível e determinado. Mantê-lo entre nós é desgastante, e desgastante ainda é despachá-lo. Entretanto,
tudo bem pesado, seremos constrangidos a chegar a esse ponto.
Vereis, pela carta que lhe escrevo e que vos envio aberta, que lacrareis depois com nosso selo
como lhe peço que se dirija a Richelieu, onde me proponho ir estar com ele e refletir no que importará
fazer. Entregar-lha-eis quando e da maneira como julgardes conveniente. E venha ele a dizer seja o que
for, mantende-vos sempre na humildade e suavidade de espírito.
Quanto ao Padre Boucher, se quiser acompanhá-lo, dir-lhe-eis que precisa ordem minha para isso.
Não convém que ele o acompanhe. Se o fizer por própria conta, nós o veremos.
Quanto àquele que deixareis em seu lugar, o que me dizeis do Padre Dufour 5 em Cahors, e do
Padre Delattre em La Rose não é viável, no que diz respeito ao referido Padre Dufour. Seria mortificar
demais o senhor Bispo de Saintes6. Mas veja o que me veio à mente: Colocar o Padre Testacy 7 em
Cahors, se o senhor Bispo concordar e não virdes inconveniente, levando em conta a sua conduta e a

Missão em 1645.
9
9. Lugarejo próximo de Montmirail onde se tinham estabelecido os missionários, depois de deixarem La Chaussée, tornada inabitável.
.
Carta 51. – C. aut. – Original na Biblioteca do Estado prussiano, em Berlim (em 1931). Texto publicado conforme uma cópia com erros e
lacunas, na edição Pémartin (n° 3040, suplemento, pp. 61-64), reproduzida tal e qual (algumas correções conjecturais à parte) na edição
Coste (n° 870, III, 70-73). Foi publicado conforme o original nos Annales de la C.M., 1931, pp. 696-699).
1
1. Data correta, de acordo com o contexto.
2
2. Francisco Du Coudray. Era um erudito mas, desde algum tempo, professava ideias heterodoxas. O Padre Vicente teve de afastá-lo de La
Rose. Colocou-o em Richelieu, onde morreu em 1649.
3
3. Leonardo Boucher; fazia parte da comunidade de La Rose e demonstrava apego à pessoa e às ideias de seu superior, Francisco du
Coudray.
4
4. Até o fim do parágrafo e em todo o parágrafo seguinte, os pronomes se referem a Francisco du Coudray.
5
5. Cláudio Dufour, nascido em Allanche (diocese de Clarmont) em 1618. Entrou, como padre, na Congregação da Missão em 1644. Em
1646, era superior do seminário de Saintes. Ficou no cargo até 1648. Morreu em Madagascar em 1656. Como o Padre Delattre devia ser
transferido de Cahors, o Padre Portail tinha proposto colocar em seu lugar o Padre Cláudio Dufour.
317

proximidade de sua bondosa mãe8. Ele parece homem de bom senso, bastante fiel às suas práticas,
experiente e entendido nos negócios. Isto é um pouco aborrecido, pelo fato de que ele acaba de ser
ordenado e que a [comunidade9] terá dificuldade em vê-lo de um bom salto [chegar] ao primeiro posto.
Como, porém, os senhores Padres Water1010 e Treffort1111 são boas pessoas e sem ambição, podereis
levá-los a aceitá-lo mostrando-lhes a inteligência de que é dotado nos negócios. Quanto ao senhor Bispo
de Cahors1212, talvez o encontreis bem disposto a aceitar a mudança; caso contrário, trataremos de enviar-
vos o Padre Grimal ou o Padre Berthe 1313. Tinha eu pensado no Padre Bourdet, mas cogito em enviá-lo
para a Irlanda, onde nos pressionam no sentido de enviarmos missionários do país, sob a direção de um
superior francês. Poderão partir dentro de 15 dias, se o Padre Bourdet estiver pronto.
Restar-vos-ão ai os Padres Riou1414, um bom padrezinho da Normandia 1515, o Padre des
Noyelles1616, o Padre Le Soudier1717, pois o outro1818 partiu para a Barbária, embora ainda esteja em
Marselha. Estamos na dúvida se poderá prosseguir, por causa do obstáculo de um franciscano recoleto
que se antecipou a ele. Além do mais, estávamos na dúvida de quem partiria, ele ou o Padre Lesage.
Se o Padre Le Soudier não for para La Rose, o Padre Cuissot, o jovem 1919, que vai substituí-lo, e
trabalha presentemente muito bem, vai para La Rose e o Padre Perraud 2020, para Saintes. Cuidaremos de
enviar quanto antes os outros dois.
Afinal, estamos, pela segunda vez, estabelecidos em Saint-Méen, por decreto do Conselho. Mas o
Parlamento, cujo comissário que expulsou os nossos2121 e o procurador geral2222 receberam intimação
pessoal, lhes instigou tal fúria que se pensa não tenhamos jamais tranquilidade naquela província, se não
acontecer algum acordo de paz. É para isso que trabalha o Padre Codoing, que para lá enviamos.
Quando esse bom padre2323 tiver partido, será preciso acabar com o trato dessas mulheres e
despachar os rapazes, se não pagarem pensão razoável.
O senhor Bispo de Cahors me comunicou que desejava [que] fizésseis a visita na nossa Casa da
diocese dele. Ele desafogará convosco [o seu coração]. Ele guarda certa mágoa contra [mim], penso eu,
por não lhe ter [prestado serviço] na medida dos desejos daqueles reverendos Padres 2424, no processo que
tinha aqui.
Nada fizestes de mais acertado do que permanecer em La Rose, até que todas as coisas estivessem
no melhor estado em que vos foi possível colocá-las.

6
6. Jacques-Raul de la Guibourgère, transferido neste mesmo ano para Maillezais-La Richelle. Seu sucessor na sede de Saintes será nomeado
no fim de 1646. Será ele Luís de Bassompierre.
7
7. Charles Testacy, nascido em Condom em 1613. Entrou na Congregação da Missão em 1643. Nomeado superior da Casa de Cahors, no
fim de 1646, apesar do que diz aqui o superior da Missão.
8
8. Não havia muito mais de cinquenta léguas entre Cahors e Condom.
9
9. Os Coirmãos da Casa.
10
10. James Water, nascido e Cork (Irlanda), em 1616. Entrou na Congregação da Missão em 1638 e foi ordenado padre em 1642. Em 1646,
estava em Cahors.
11
11. Simão Treffort, nascido em Villers-Herbisse (diocese de Troyes) em 1611. Entrou na Congregação da Missão em 1642. Em 1646,
estava no seminário de Cahor. Morreu em Cahors em 1682.
12
12. Alain de Solminihac.
13
13. Thomas Berthe, nascido em Donchery (diocese de Reins) em 1622, entrou na Congregação da Missão em 1640, foi ordenado padre em
1646 e colocado em Sedam. Exerceu altos cargos na Companhia e morreu em 1697.
14
14. Não identificado. Não figura nas listas do pessoal.
15
15. Guilherme Michel, nascido em Esteville (diocese de Rouen) em 1607. Entrou na Congregação da Missão, já como padre, em 1646.
16
16. Filipe des Noyelles, nascido em Arras em 1609. Entrou na Congregação da Missão em 1642.
17
17. Samson Le Soudier, nascido em Courson (diocese de Coutances) em 1609, ingressou na Congregação da Missão em 1638.
18
18. Trata-se de Jacques Le Soudier, que São Vicente chama por vezes de Le Soudier, o jovem.
19
19. Jean Cuissot, padre, nascido em Moulins em 1619. Entrou na Congregação da Missão em 1642, irmão mais novo de Gilbert Cuissot,
padre da Missão.
20
20. Hugues Perraud, nascido em Arguel (diocese de Besançon) em 1615. Entrou na Congregação da Missão em 1640, foi ordenado padre
em 1646 e faleceu em Paris em 1659.
21
21. O senhor de la Touche-Frélon, conselheiro no Parlamento.
22
22. O senhor Huchet de la Bédoyère.
23
23. Francisco du Coudray.
24
24. Os religiosos da Reforma de Chancelade, cujo superior era Alain de Solminihac, Bispo de Cahors. Esses religiosos estavam então em
processo contra os Agostinianos de Santa Genoveva.
318

Penso que não teremos dificuldade em mandar mudar o que vós e o Padre Dehorgny julgardes
conveniente mudar a respeito dos ofícios2525 que me indicais, nem em relação aos outros. Não deixarei de
insistir com o senhor Bispo Coajutor2626, que é muito vagaroso.
Somos cerca de 40 os que fazemos o retiro. Dou assistência ao grupo dos padres. Deus me
concedeu forças para isso. Estamos no oitavo dia. Penso em adiar, apenas, a nossa visita, até a vossa
volta, que rogo a Deus aconteça quanto antes for possível.
Escrever-vos-ei em Marselha, e para lá vos enviarei as Regras Comuns, em latim2727.
Abraço, entretanto, essa pequena comunidade com toda humildade e afeição a mim possível. Sou,
senhor Padre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

O senhor Padre Bourdet me apresentou grandes escusas pelo que vos contradisse, e prometeu
mandar observar vossas determinações. Se ele não for para a Irlanda, poderemos enviá-lo para La Rose,
se não destinastes para lá um ou outro dos que vos indiquei.
Escrevi ao senhor Bispo de Cahors, por ter ele pedido que chamássemos de volta o Padre Delattre.
Pensava eu em mostrar-lhe que não tínhamos outro entendido em negócios, a não ser ele, e que faríamos,
no entanto, o que ele ordenasse.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em La Rose.

52. – A ANTÔNIO PORTAIL, Padre da Missão, em La Rose

Paris, 18 de [outubro de 1646]1.

Senhor Padre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!


Fiquei muito contente com vossos [...] estou aguardando êxito, eu [...] duas vezes contra [...] penso
que devíeis fazer em La Rose, e em especial de fazer de tal modo que o personagem de que se trata 2
venha a Richelieu3 e veremos se será necessário convencê-lo a vir até aqui.
Pelo modo como me falais do Padre Testacy, vejo com clareza que não convém tentar o que vos
escrevi em minha última carta, a saber, confiar-lhe a direção de La Rose, nem a de Cahors. Precisamos
esperar que Nosso Senhor fará o que for melhor. Estava pensando em enviar para aí o Padre Lucas 4 ou o
Padre Grimal, ou então o Padre Le Soudier, o jovem 5, que estou duvidando que vá para a Barbária. Um

25
25. Trata-se aqui de uma parte da Regras e Constituições da Congração da Missão, cuja aprovação São Vicente buscava primeiro junto ao
Arcebispo de Paris. O Superior da Missão solicitava o parecer do Padre Portail sobre essas Regras.
26
26. João Francisco Paulo de Gondi, coajutor desde 1643 de seu tio João Francisco de Gondi, Arcebispo de Paris. Será Cardial em 1652 e
sucederá ao seu tio em 1654.
27
27. O Padre Vicente refere-se ao texto das Regras da Companhia, texto que só estará definitivamente estabelecido em 1658.
.
Carta 52. -- C. aut. – Original posto à venda no Hospital des Ventes, em Paris, em 1937.
Texto publicado na edição Coste (n° 877, t III, p. 81-84) conforme a edição Pémartin (n° 505, t. I, pp. 591-592). Uma cópia com
disposição e ortografia do original (encontrado em 1937) foi publicada nos Annales de la C.M., 1937, pp. 730-731. Esta cópia denuncia as
preterições, os “arranjos” e as más leituras do texto publicado por Pémartin.
1
Um grande rasgão do canto da folha, no alto e à direita, fez desaparecer, na primeira página e no verso, palavras numerosas demais,
de modo a impedir de se dar um sentido aos fragmentos de linhas subsistentes.
1. A data é certa, estabelecida pelo sólido raciocínio do Padre Coste e em sua edição.
2
2. Francisco du Coudray, Padre da Missão.
3
3. Os Missionários eram titulares da Paróquia de Richelieu, fundada pelo Cardeal desde 1638.
4
4. Antônio Lucas, nascido em Paris em 1600. Ingressou na Congregação da Missão em 1626. Em 1646, fazia parte do pessoal da casa de La
Rose. Morreu em 1656.
5
5. Jacques Le Soudier, nascido em Vire (diocese de Bayeux) em 1619. Entrou na Congregação da Missão em 1638, foi ordenado padre em
1642 e faleceu em Montauban, em 1663.
319

Recoleto6 passou por cima dele, tomou-lhe a dianteira e a condição que lhe estava reservada em Salé 7.
Uma palavra dizendo vosso parecer sobre tudo isso, por favor, quanto antes puderdes. O Padre Brin 8, o
Padre Barry9, o Irmão O’ Brien1010, o Irmão Le Clerc1111 e nosso Irmão Patriarche 1212 partiram para a
Irlanda1313 e devem juntar-se ao Padre Le Blanc14 14 e Duiguin1515 e o Irmão Le Vacher1616 em Le Mans,
e talvez o Padre Bourdet, na Bretanha. Fomos pressionados a isso por Roma e pelos Prelados do país. Em
razão disto, não faremos fundação alguma, por longo tempo.
[...] tínheis razão em mandar partir [...] Annecy saúde lhe permite [...] que me afirmais e vos [...]
que ele sente alguma tendência para [...] o ano passado é melhor [...] do que por pouco tempo em La
Rose, de onde [...] para voltar, e enviar algum outro a Annecy e às outras Casas, onde pedem
incessantemente a visita1717. O principal que vos peço considerar aqui é a saúde. Nosso Senhor proverá
ao resto.
Tomareis conhecimento em Marselha da falta cometida pelo Irmão Barreau, cônsul de Argel, ao
se comprometer a pagar quarenta mil libras para redenção de algum cativo contra a proibição expressa
que lhe fora feita. Este negócio nos coloca em dificuldade. O que é mais aborrecido é que o Padre
Nouelly1818 o havia conjurado a não fazê-lo, uma hora antes. Peço-vos mandar celebrar uma missa na
intenção de cada um na comunidade de La Rose, como também pela missão da Irlanda.
Fomos reintegrados em Saint-Méen por ordem do Rei, mas não sei se isso vai durar1919.
Acabamos de fazer nossos retiros com fruto, pela graça de Deus, em cujo amor sou, senhor Padre,
vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Ao senhor Padre Portail, padre da Missão, em La Rose.

53. – CARTA DEDICATÓRIA DE CHARLES AUBERT1 A SÃO VICENTE

Ao Padre Vicente, Superior Geral dos Padres da Missão.


Senhor Padre, julgarão por acaso estranho que, embora privado da felicidade de vos conhecer
pessoalmente, eu vos apresente com tanta liberdade este pequeno Discurso2, na simplicidade de nosso
6
6. Os Recoletos formavam, desde o início do século XVII, um ramo da Ordem franciscana.
7
7. Ver as notas 1 e 2 da carta n° 39 da presente edição (Tomo II, anexo II).
8
8. Gérard Brin, nascido perto de Cashel (Irlanda) em 1618. Entrou na Congregação da Missão em 1639 e foi ordenado padre em 1644.
Muito estimado por São Vicente, missionou na Irlanda (por duas vezes) e na França.
9
9. Edme Barry, nascido na diocese de Cloyne (Irlanda) em 1613, ordenado padre em 1639. Entrou na Congregação da Missão em 1641.
Partiu para a Irlanda em 1646 e de lá regressou em 1652. Morreu em Montauban em 1680.
10
10. Dermot O’Brien, nascido em Enly (Irlanda) em 1621. Entrou na Congregação da Missão em 1645, falecido como padre em 1649.
11
11. Pierre Leclerc, Irmão Coadjutor, nascido em Meaux em 1624, entrou na Congregação da Missão em 1642.
12
12. Salomão Patriarche, Irmão Coadjutor, nascido na ilha de Jersey em 1620, ingressou na Congregação da Missão em 1644.
13
13. Outro nome da Irlanda. Os Missionários enviados por São Vicente trabalharam com dedicação no país, apesar das perseguições, de
1646 a 1652.
14
14. Francisco Le Blanc (ou White), nascido em Limerick (Irlanda) em 1620, entrou na Congregação da Missão em 1645. Foi ordenado
padre em 1651. Missionou na França e na Escócia, onde morreu em 1679.
15
15. Dermot Duiguin, nascido na Irlanda em 1620. Entrou na Congregação da Missão em 1645. Foi missionário na Irlanda, depois, na
Escócia, onde morreu em 1657.
16
16. Filipe Le Vacher, nascido em Ecouen (diocese de Paris) em 1622. Entrou na Congregação da Missão em 1653. Depois de três anos
passados na Irlanda, foi chamado para a França. Ordenado padre em 1650, trabalhou em Argel (Vigário Apostólico e, mais tarde, cônsul da
França). Voltou para a França em 1662, morreu em Fontainebleau em 1672.
17
17. Trata-se da visita canônica.
18
18. Ver as notas 1, 2, 3 da carta n° 48 da presente edição ((Anexo do Tomo III)).
19
19. Ver a nota 5 da carta n° 48 da presente edição (Anexo do Tomo III).
.–
Carta 53. – Carta impressa no cabeçalho do volume Breve Discurso... Texto publicado nos Annales de la C.M., 1941-1942, p. 274.
1
1. Charles Aubert (cerca de 1567 – cerca de 1653), advogado e padre de Le Mans, autor de obras de caráter religioso, cf. Dicion. de Biogr.
Francesa, t. IV (1948), col. 14-15: art. Aubert (Charles), por J. Balteau.
2
2. “Brief Discours de Charles Aubert, padre, sobre o respeito e a honra das crianças para com seus pais e mães, ao padre Vicente, Superior
Geral dos Padres da Missão”. Le Mans, 1646, 152 p. (Biblioteca Nacional: D 21298).
320

espírito e linguagem. O grande progresso, porém, que acontece todas os dias por meio de dignos e
piedosos personagens que nosso Deus, por vosso ministério, suscitou nesta região, os quais trabalham de
modo tão feliz pelo bem e salvação das almas 3, contribui para reconhecer com evidência o ardor de vosso
zelo pelo seu serviço, sua honra e sua glória. Este reconhecimento nos deu coragem para vo-lo apresentar
com simplicidade, estimando coisa indigna e inconveniente a nossa idade, aduzir artifício para obscurecer
ou antes dissimular a verdade em todas as coisas. Seria isso antes um chamariz para o pecado do que um
guia seguro para caminhar com retidão no caminho da virtude que, por si mesma, possui meios eficazes
para atrair o espírito bem nascido, sem mendigar ornamentos externos.
Apresento-vos, portanto, senhor Padre, este pequeno trabalho, com inteira e humilde submissão no
sentido de receber as correções que vos aprouver acrescentar-lhe. Ficarei assim, pelo resto dos meus dias,
senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo, em Nosso Senhor,

C. AUBERT,
indigno padre.

54. – A JOÃO FRANCISCO DE GONDI,


Arcebispo de Paris

8 de setembro de 16471.

“... De modo geral, o Santo estava prevenido contra novas comunidades. Vê-se isto por uma
grande carta que escreveu neste mesmo ano de 1647 ao senhor Arcebispo de Paris e na qual une a um
profundo respeito uma firmeza verdadeiramente sacerdotal. Um homem 2 que tinha um priorado3
dependente da abadia de Saint-Florent-les-Saumur4, queria, há vários anos, reuni-lo ao Seminário dos
Bons-Enfants5, sobrecarregado de modo extraordinário6 com a alimentação de quarenta padres externos,
que pagavam apenas sete soldos por dia.
O senhor Arcebispo, a quem foi dirigida a proposta, não a aceitou. Deu a entender aos que lhe
faziam a proposta que estava descontente com Vicente de Paulo, que ele sabia de fonte segura que era
quem, no Conselho do Rei7, impedira que uma certa religiosa se estabelecesse em Lagny8, e que se ele
quisesse como dantes, ser contado entre seus amigos, era preciso que mudasse de comportamento e
levasse a Rainha a mudar de sentimentos.
Foi nessa ocasião que o Santo escreveu ao prelado a carta de que acabo de falar. Ela traz em
substância: é verdade que a Rainha 9, de volta de Amiens, lhe falou do estabelecimento em questão; é
também verdade que ele não lhe foi favorável, mas que teve razões sérias para agir assim; que, desde
longa data, fora decidido no Conselho eclesiástico 1010, que não seriam mais permitidos novos
estabelecimentos de religiosas; que reconheciam que os havia demais; que Sua Majestade recebia
frequentemente queixas a respeito deles; que vários deles se desfaziam por si mesmos; que pouco tempo

3
3. Alusão aos trabalhos apostólicos dos Padres da Missão, estabelecidos em Le Mans desde 1645 (Seminário Maior e Missões).
.
Carta 54. – Texto tirado de Collet (Pierre), C.M. Vie de Saint Vicent de Paul... (Nancy, 1748, 2 tomos), t. I, p. 430-431. O autor dá a
substância da carta com algumas citações textuais.
1
1. Data fornecida por Collet.
2
2. O Padre Ribier.
3
3. O Priorado de Bruyères-le-Châtel, priorado beneditino situado perto de Entampes, então diocese de Paris.
4
4. A abadia beneditina de Saint-Florent-les-Saumur, situada na diocese de Angers, comuna de Saumur, estava anexada desde 1637 à
Congregação de Saint-Maur.
5
5. Antigo Colégio dos Bons-Enfants, berço da Congregação da Missão, que nele se estabelecera em 1625; em 1632, São Vicente e os
missionários tendo-se transferido para São Lázaro, o Colégio passou por diversas destinações; em 1645 instituíram nele um Seminário para
os padres desejosos de se aprimorarem nas funções de seu estado.
6
6. Sobre toda esta questão, ver a carta de São Vicente a J.F. de Gondi datada de 3 de setembro de 1647 (publicada na edição Coste, III, 232-
233).
7
7. O Conselho de Consciência, instituído pela Rainha Regente Ana d’Áustria em 1643 para as nomeações aos benefícios (bispados, abadias)
e para o que dizia respeito às questões eclesiásticas e religiosas. São Vicente fez parte desse Conselho de que foi, por um tempo, relator.
8
8. Localidade situada a leste de Paris (antiga diocese de Paris, atual departamento de Seine-et-Marne).
9
9. Ana d’Áustria.
10
10. Trata-se ainda aqui do Conselho de Consciência que Collet denomina mais acima de Conselho do Rei.
321

antes viram-se formar e desaparecer seis ou sete dessas espécies de Congregações 1111; que algumas
tinham causado escândalo e excitado murmurações; enfim, que era não conhecer bastante o espírito da
Rainha acreditar que ela era capaz de mudar do branco para o negro; e que, quanto a ele, não poderia ele
arrepender-se, nem desdizer-se de um parecer que tinha dado com vista unicamente em Deus.
A firmeza dessas palavras era temperada com testemunhos de reconhecimento, de submissão e
respeito, que suprimo neste lugar, quando não se trata de constatar as justas deferências que o Santo
sempre teve para com os Pontífices da Igreja de Deus; mas se trata apenas de mostrar que a aparência de
bem não o seduzia e que só dava aprovação aos novos estabelecimentos de Irmãs quando o Espírito de
Deus, a natureza e os princípios do seu Instituto e mais ainda a experiência o colocavam em condição de
julgar que nada havia a temer e muito a esperar1212”.

1019.Bis1. – PADRE VICENTE A JEANNE LEPEINTRE, EM NANTES

Paris, 8 de março de 1648.

Minha querida Irmã,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!

Estou mais feliz do que é possível dizer, ao saber dos bons serviços que vós e nossas caras Irmãs
prestam a Deus na pessoa de seus pobres. Oh! como sereis felizes naquele grande dia em que nossas obras
serão examinadas, ao poderem responder: “Sim, Senhor, fizemos as coisas que nos pedistes”.
Espero enviar-vos sem demora um bom confessor. Há em nosso Colégio um eclesiástico piedoso e
sábio que nos deu a esperança de aceitar este ofício e de ir habitar em vosso hospital. Urgiremos sua
partida, e se vier a retratar-se, trataremos de enviar um outro, tal como os senhores Administradores estão
solicitando.
Entrementes, rogo a nossas caras Irmãs e a vós igualmente que vos suporteis umas as outras. Ireis
juntas para a Eternidade e sois todas esposas de nosso Salvador Jesus Cristo. Uni-vos, pois, cada vez mais
estreitamente. Que nenhuma se entristeça se uma outra a contradiz, nem se o mundo fala ou murmura
contra ela. Ninguém existe no mundo que não tenha matéria para suportar do próximo. É preciso passar
por isto ou viver isolado no deserto. Mas infeliz de quem fica isolado. Caminhemos, pois, suave e
alegremente, juntos; pertencemos a Deus, obrigados a aceitar o que ordena e o que permite.
Rejeitam-nos com desdém, buscam motivos para censura no que fizemos, tratam-nos pior do que a
empregados, fazem comentários, andam à escuta, fazem contra nós o pior que podem. Ó Senhor, meu
Deus, como essas ocasiões são excelentes para adquirir a santa humildade, para se exercitar na mansidão
e na paciência, para nos tornar agradáveis aos olhos de Deus, para nos fazer amar a gloriosa Virgem e
toda a corte celeste. Enfim, para conquistar o coração daqueles mesmos que nos causam sofrimento: mais
cedo ou mais tarde hão de reconhecer sua falta, conquanto cumpramos nosso pequeno dever. E é o que
nos importa fazer com zelo e diligência. Façamo-lo, portanto, minha querida Irmã, digo, minhas queridas
Irmãs, pois falo a todas. Façamo-lo na presença de Deus, com tranquilidade de espírito, suavidade e
condescendência para com todos. Desse modo, vossas ações serão todas de ouro e vossa recompensa será
grande.
Mas o que é necessário fazer para usar bem das contradições e dos aborrecimentos que Deus nos
envia? É que precisamos amá-los; mas qual o meio de amar o que nos desagrada? É preciso antes de tudo
considerar que foi esta a prática contínua de Nosso Senhor enquanto estava no mundo e, geralmente, de
todos os santos. 2 – Que não se vai para o céu a não ser pela tribulação e pela penitência. 3 – Que é uma
necessidade sofrer neste mundo, por bem ou por mal, e que só não sofrem os que amam o sofrimento. 4 –
Se as Irmãs da Caridade não querem honrar em nada a Paixão de Nosso Senhor, elas que ele escolheu
11
11. Collet acrescenta em nota: “Elas são explicitadas na carta do Santo”.
12
12. Assim se explica por que São Vicente fazia o possível para impedir que as Filhas da Caridade, instituídas por ele e Santa Luísa de
Marillac em 1633, fossem consideradas religiosas.
1
1. Carta 1019 bis. – C. as. Original nos arquivos das Filhas da Caridade, Paris, registro n° 1bis. Fotocópia nos Arquivos da Missão, Paris.
322

entre milhares para educá-las em seu amor, quem haveria então de fazê-lo? Sois as filhas da Caridade. A
mortificação é também filha da caridade e deve ser, por conseguinte, vossa irmã. Acariciai-a, portanto,
contemplai-a, com freqüência, na oração, lembrai-vos dela ao surgirem as ocasiões. Pedi a Deus vos
afeiçoe a ela, a fim de que, por esse meio possais um dia reinar amparadas nela, com Nosso Senhor, em
cujo amor sou, de todas em geral e de vós, em particular, minha cara Irmã, muito humilde e afeiçoado
servo,

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Destinatário: Para minha irmã, Irmã Jeanne Lepeintre, filha da Caridade, no hospital de Nantes,
em Nantes.

55. – CARTA A JEAN DEHORGNY, Padre da Missão

Senhor Padre,

Suplico-vos tenhais a bondade de entregar a meu irmão, portador da presente, as vinte e seis libras
da bolsa do trimestre, vencida no dia primeiro de abril último, durante o qual ele permaneceu no Colégio,
saindo apenas no fim do mês de março. Fazei-me o obséquio de nada pagar ao sobrinho do Pároco de
Fontenay, pretenso bolsista, até que tenhamos resolvido nossa discordância. Enquanto aguardo isso, pelo
favor do Padre Vicente e vosso, sou, senhor Padre, vosso obediente e afeiçoado servo,

PLUYETTE.

Paris, 28 de abril de 1648.

Destinatário: Ao senhor Padre Dehorgny, Padre da Missão, em São Lázaro, Paris.

56. – CARTA DEDICATÓRIA DE J.B. DE LA PLACE1 A SÃO VICENTE

[1648].

Ao Senhor,

Padre Vicente de Paulo, Fundador e Superior Geral da Congregação da Missão.

Senhor Padre,

Seria infiel ao meu dever, se não vos oferecesse esta Union2. Cotejo com o original para ajuizar
da fidelidade de minha cópia; meditei esta obra olhando para os vossos trabalhos. O público só me deve
um pouco de tela e de cores, além de muitas desconfianças que lhe ocultam nela mais belezas do que nela
as desvela. Desde que vosso zelo se uniu à piedade para disseminá-la a todo mundo cristão, a ignorância
deixou o altar, as choupanas tem seus doutores tanto quanto os palácios, e lábios de ouro se fazem ouvir
.
Carta 55. – Arq. Nac., Paris. M 105.
.
Carta 56. – Carta impressa no cabeçalho do volume Union mystique. Texto publicado nos Annales de la C.M., 1947-48, p. 323.
1
1. Jean-Baptiste de la Place (1612-1678). Doutor da Sorbona, abade comendatário da abadia de Val-Richer (abadia cisterciense na diocese
de Bayeux, atual departamento do Calvados), que ele reconduziu à Observância regular em 1645. Demitiu-se em 1651, mas retornou a Val-
Richer onde morou alguns anos antes de morrer, em 1678, sob o hábito cisterciense.
2
2. “União mística ou Exercícios espirituais para se unir a Jesus Cristo Nosso Senhor, em todos os tempos do ano, segundo a ordem
eclesiástica...”. Paris, 1648, 194 p.
323

onde só se celebravam sacrifícios em bacias de despejo. Antes de o mais justo de nossos monarcas ter
colocado sua Igreja entre vossas mãos, já se nascia com a mitra e o anel. Administrais os bens desta
ilustre menor com uma equitativa obstinação. Vossa escolha recai de preferência sobre uma ciência
plebeia do que sobre uma nobre ignorância, e a virtude, que poderia queixar-se de um berço pobre, vos é
devedora do trono a que foi alçada com o desprezo de qualquer favoritismo 3. Vossa humildade, senhor
Padre, se iguala ao vosso zelo; irradia brilho e se mantém na obscuridade; impregnada de grandeza, não
abandona a atitude da própria insignificância. A França vos olha como a Antiguidade aos seus heróis,
que não conservavam de suas conquistas a não ser a glória de doá-las. Tantas virtudes que reunis
justificam a proteção de minha obra, que não se distancia do meu desígnio se me liga à vossa pessoa,
senhor Padre, na qualidade de vosso muito humilde e muito obediente servo,

DE LA PLACE.

1081.BIS1. – PARA A MADRE SUPERIORA DO PRIMEIRO


MOSTEIRO DA VISITAÇÃO DE PARIS

São Lázaro, 14 de dezembro de 1648.

Minha mui cara Madre,

A graça de Nosso Senhor esteja sempre convosco!

Agradeço-vos pela lembrança frequente que tendes de mim, que me é muito útil diante de Deus.
Estou passando melhor por sua misericórdia e hoje tomei um purgativo como um derradeiro remédio.
Espero poder trabalhar com as pessoas de fora amanhã ou depois.
Parece-me, pela carta que me chegou de Saint-Denis, que a Irmã diretora carrega com suavidade
sua cruz e que ela não julga necessário o alívio que lhe ofereceis. Penso assim que é bom deixá-la.
O tempo nos revelará pouco a pouco as falhas de Port-Royal. Já soubera de alguma coisa
semelhante ao conteúdo da carta que me enviastes, através de uma pessoa vinda expressamente da
Bretanha para entrar para lá, e que de lá saiu 7 ou 8 meses depois, em vista de várias coisas que por lá
deixam a desejar. Dir-vos-ei algo mais, quando tiver a consolação de estar convosco. Nada me dizeis
sobre vossa saúde. Suplico-vos que dela vos cuideis.
Concordo plenamente, minha cara [Madre], que leveis a pretendente a entrar para Copiègne, e
vossa pequena sobrinha por um dia. Nosso Senhor seja a vida de nossos corações. Sou, com todo o meu,
em seu amor, minha muito cara Madre, vosso muito humilde servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. da Missão.

1089 BIS. o
– A SANTA LUÍSA DE MARILLAC

Fréneville, 11 de fevereiro de 1649.

3
3. Alusão ao zelo desenvolvido por São Vicente no Conselho de Consciência para prover as sedes episcopais de prelados dignos de sua
função pastoral.
11
Carta 1081bis. – C. as. – Uma nota do Padre Jean Couty, Superior Geral dos Lazaristas, inserida nos arquivos da Visitação, Avenida
Denfert-Rochereau, 68, Paris, assinala que o original, assinado pela mão de São Vicente, foi enviado a Roma pelo primeiro mosteiro da
Visitação de Paris. Uma cópia manuscrita se encontra nos arquivos da Visitação, Avenida Denfert-Rochereau, 68, Paris. Fotocópia desta
cópia nos Arquivos da Missão. París.
. o
Carta 1089bis. – C. aut. – Arquivos da comunidade de N.D. de Caridade, rua Outrequin, 5, Chevilly-Larue,
94150 Rungis, França, original. Fotocópia nos Arquivos da Missão, Paris.
324

Senhora,

A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre convosco!


Acabo de receber duas de vossas cartas, por um portador que o Padre Lambert me enviou, uma do dia 2 d
mês de janeiro último e a outra de anteontem que me endereçais para aqui. Uma e outra me fazem ver
com admiração a bondade de Deus na saúde que vos concede, entre tantas coisas que vos trazem motivo
de sofrimento e em meio ao rigor do tempo atual. Agradeço-lhe com muita humildade e lhe agradecerei
diariamente no santo altar, onde me encontro convosco e com vossas caras Filhas, todos os dias.
Penso que tendes razão, senhora, para ir estar com estas senhoras, com a finalidade de que me
falais. Mas não estou seguro de que o clima fechado da cidade não vos seja menos sadio, já que vindes de
um clima bom e saudável. Poder-se-ia suavizar a coisa limitando-vos a dormir ali uma ou duas noites e
voltando em seguinte para o vosso canto. A última noite, acompanhada desse irmão eclesiástico, parece
também dizer alguma coisa, o suficiente no caso, se ele tiver alojamento separado e for de bom exemplo
na paróquia. Não me dizeis o nome do claustro1.
Rendo graças a Deus pela disposição com que ele anima nossas caras irmãs de Bicêtre e
especialmente nossa cara Irmã Genoveva2. Ó meu Deus, senhora, como há grandes traços do espírito de
Nosso Senhor no dela. É provável que se levará em conta que se trata de um hospital real: os de Paris não
farão mal ali, e os outros não se aproximarão tão perto da cidade. Rogo a Deus e lhe rogarei todos os dias
por elas, essas queridas Filhas, e por essas queridas crianças que Deus abençoa.
Será preciso ver, portanto, o que se fará desta pobre Filha que perturba essa Casa, de tal sorte. O
que propondes não é mau. Veremos se é do agrado de Deus.
Envio-vos uma carta aberta que escrevo às senhoras da Caridade. Entregá-la-eis ou retê-la-eis
conforme julgardes conveniente. Estaria mais inclinado a deixar por conta delas, não fosse... [rasura de
uma linha]. Temo não acompanhar a obra de Deus à qual a Providência parece ter-me chamado para lhe
prestar algum pequeno serviço. Enfim, conversareis sobre o caso com o Padre Lambert, por obséquio, e
em...[rasgão]. Nosso Senhor vos aconselhará.
Eis-me detido pelo frio intenso em Fréneville, até que mude o tempo, o que não será para tão logo.
Se entretanto, houver algo urgente, o Padre Lambert poderá enviar-me algum portador.
Estou passando bem, pela graça de Deus, neste lugar onde a caridade que me dispensam nossas
caras Irmãs ao me dar do seu pão, do seu toucinho, de suas maçãs, supre vosso caldo. Enviei-lhes ontem à
tarde esta... [palavra apagada]. Irmã Jeanne3 está um pouco indisposta hoje, pelo que me disse Bárbara,
que me surpreendeu esta manhã, ao vê-la presente à Missa em nossa capelinha de cima. Não era intenção
minha que nossas irmãs subissem até lá. Sempre falei com elas embaixo, onde mora a caseira, em sua
presença e na de suas crianças, a não ser quando me quiseram dizer alguma palavra em particular, mais
reservadamente, na mesma sala. Estão trabalhando bem e combinam muito, graças a Deus. Tendo o
senhor Pároco se queixado delas ao Padre Escart por uma bagatela, Bárbara foi esperá-lo antes de ontem
junto ao... [palavra apagada] e lhe pediu perdão de joelhos. Louvei-a por este gesto. Sofre por vezes ele da
doença de gota; deseja que elas o visitem. Tenho dificuldade para desaconselhá-las, pois está em jogo a
caridade, e de aconselhá-las, porque ele se solta demais, embora apenas em palavras. Pensei em dizer-lhes
que não vão jamais sozinhas, mas que vão as duas juntas.
Eis, senhora, pelo que me lembro, o que vos posso dizer no momento. Acresce apenas que recebi
com satisfação a recomendação de nossas caras Irmãs Juliana 4, Hellot5, e as de todas as outras em geral,
cujo nome eu citaria, se deles me lembrasse, como me lembro de suas pessoas, todos os dias, diante de
Deus, no santo altar, onde as vejo com consolação. Peço-lhes que roguem a misericórdia de Deus por
mim, por causa de tantos pecados que cometi e cometo todos os dias, particularmente do mau uso que
faço de suas graças. Não duvido, senhora, de que não me façais esta mesma caridade que começastes a
fazer há tanto tempo. Sou, no amor de Nosso Senhor, senhora6, vosso muito humilde e obediente servo,

1
1. Trata-se provavelmente do Claustro onde as Filhas da Caridade iam fazer sua hospedagem. Ver mais adiante, no início do postscriptum.
2
2. Irmã Genoveva Poisson.
3
3. Irmã Jeanne Fouré.
4
4. Irmã Juliana Loret.
5
5. Irmã Elisabeth Hellot.
6
6. Por distração, São Vicente escreveu “Senhor”.
325

VICENTE DE PAULO,
indigno padre da Missão.

Depois de escrita a presente, recebi vossa última carta que me fala dos confessores extraordinários
para nossas caras Irmãs. Eis o que penso que será bom fazer: Se todas não podem ir até vossa Casa para
as conferências, façam-se duas, uma num dia da semana ou de quinze em quinze dias, em vossa Casa de
São Lázaro, e a outra na Casa do Claustro, onde ireis fazer vossa pousada. Quanto às confissões, creio
que elas poderão ir confessar-se duas a duas, cada dia, em vossa Casa do subúrbio, onde peço ao Padre
Duchesne que as vá atender em vosso pequeno oratório, e ao Padre Lambert que assista às conferências
ou mande o Padre Duchesne assistir a elas, quando ele estiver impossibilitado de estar presente... [rasura
de uma linha], aguardando até que tenhais um parlatório exterior, onde poderão ser atendidas, se desde
agora não destinardes vossa sala nova, perto da porta, para esse fim, o que será melhor. Parece que, como
não é possível ir servir a essas Filhas em La Chapelle, é justo fazê-lo no subúrbio. Renunciamos às
confissões nas cidades, não nos subúrbios. Discuti tudo isto com o Padre Lambert, por favor.
Vossas Filhas voltaram para a Missa. Disse-lhes que estava contente por vê-las, mas que não é
conveniente continuar, e lhes falei que irei amanhã até elas, depois das Vésperas, para fazer lá uma
conferência. O assunto será que é bom saber se há algumas virtudes próprias das Filhas da Caridade dos
campos, além das outras comuns às demais Irmãs que estão nas cidades; o segundo ponto seria saber
quais são, se as houver. Disse-lhes que mandem procurar uma senhora de sociedade da paróquia, ligada à
Caridade.

Destinatário: À senhora Le Gras, Superiora das Filhas da Caridade, frente a São Lázaro, Paris.

1090BIS. – A SANTA LUÍSA DE MARILLAC

Fréneville, 17 de fevereiro de 1649.

Bendito seja Deus, senhora, por tudo que me comunicais e por tudo o que fez pelas pobres
crianças expostas1. Ó Jesus, meu Salvador, como sois bom para com essas pobres pequenas criaturas
abandonadas! Deve isto encorajar-nos muito, senhora, a continuar com os pequenos serviços que
procuramos prestar-lhes.
Rendo graças a Deus por que estais continuando a passar bem e por haver razão para esperar que
este pequeno socorro espiritual em favor de vossas Filhas as recolocará no caminho do qual a miséria
pública as tinha um pouco desviado2. São pessoas boas, pela graça de Deus; creio que essa pequena
alteração não atingiu o íntimo de seus corações que é muito bom, pela graça de Deus.
Ireis portanto e voltareis de vossa Casa para essa hotelaria da cidade. Espero que isso se fará com
muito proveito.
Fizemos, domingo passado, nossa pequena conferência para nossas Irmãs daqui. O Padre Escart e
as duas oficiais da Caridade assistiram a ela. Jeanne 3 foi quem começou a falar e disse coisas excelentes
sobre o assunto que vos comuniquei, a saber, se havia algumas virtudes próprias e particulares para as
Filhas da Caridade dos campos, distintas das que Nosso Senhor pede das Filhas da mesma Companhia
que residem nas cidades. Bárbara expôs seus pensamentos por escrito. Uma e outra disseram que não,
mas que é certo que numerosas virtudes devem existir num grau mais eminente nas Filhas dos campos
que nas da cidade. Assim, por exemplo, a caridade para com os doentes, por causa da distância dos
lugares onde são obrigadas a servi-los, e da miséria incomparável em que se encontram. Disseram a
mesma coisa, com os mesmos motivos, a respeito da mortificação. Disseram, além disso, que o amor da

.
Carta 1090bis. – C. aut. – Arquivos das Filhas da Caridade, Paris, original. Publicada, com erros de transcrição, nos Échos de la
Compagnie, fevereiro de 1985, p. 61-63. Fotocópia do original nos Arquivos da Missão, Paris.
1
1. Em sua carta de 4 de fevereiro (n° 1088), São Vicente pedira a Santa Luísa para ir a Bicêtre, porque uma das Irmãs estava sendo lá a fonte
das dificuldades.
2
2. O francês “détraquées” significava “détournées”; em português: “desviado”.
3
3. Irmã Jeanne Fouré.
326

pureza, da pobreza e da simplicidade devem primar nas dos campos, e que, talvez, no futuro, a
experiência mostrará que será preciso escolher para os campos as mais consumadas na virtude. Foi este,
aproximadamente, o resultado dos seus pensamentos, pelos quais fiquei muito consolado. O médico dessa
região veio estar comigo ontem. Disse-me que estava inclinado a se confiar a elas, para o tratamento da
doença que contraiu, recentemente, e que desistiu da ideia pela consideração de que isso prejudicaria aos
cirurgiões de Messe3, onde mora e onde o público o conhece. Com efeito, seria acusá-los de ignorância.
Pressiona-me ele no sentido de lhes comprar uma casa. Disse-lhe que procuraremos fazê-lo com o tempo.
Disse-me, ademais, que elas carecem de drogas comuns para purgativo daqueles que se recuperam de
doença; é a razão da recaída da maior parte. Disse-lhe, também, que lhas providenciaríamos. Jeanne está
ainda um pouco incomodada.
Espero partir amanhã, com a ajuda de Deus, se a neve que começa não continuar por longo tempo.
Espero que vossas orações e as de vossas filhas me obterão a misericórdia de Deus e que meus pecados,
pelo contrário, não impeçam a realização de seus desígnios em minha viagem 4. Sou, em seu amor,
senhora, vosso muito humilde e obediente servo,

VICENTE DE PAULO,
i. p. d. M.

Destinatário: A senhora Le Gras, Superiora das Filhas da Caridade, em frente a São Lázaro, em
Paris.

57. – A LAMBERT AUX COUTEAUX1


Padre da Missão, em São Lázaro

[Fevereiro ou março de 1649].

“... Fiquei, muito consolado ao saber por vossa carta que vós e toda a comunidade recebeis com
alegria a perda de vossos bens2. Garanto-vos, senhor Padre, que não me resta outro pesar por estas
grandes perdas a não ser o de vos ver nesse trabalho extraordinário de que estais encarregado...”

58. – CARTA DO PADRE MARTIN LEVASSEUR A SÃO VICENTE

[Roma, 29 de setembro de 1649].

Senhor Padre,

A presente é para vos dar a conhecer em poucas linhas o que observei de mais importante na vida
e na morte do Padre Dunotz e o que se disse na conferência feita sobre este assunto. Haveria muito a
dizer, se quisesse expor-vos detalhadamente as ações virtuosas desse bom servo de Deus. Falarei apenas
do que me parece mais considerável e edificante.

3
3. “Messe” é provavelmente uma abreviação de Mespuits, que era, como Fréneville, um lugarejo da comuna de Valpuiseaux.
4
4. São Vicente tinha a intenção de passar por Le Mans, Angers e Saint-Méen,
.
Carta 57. – Trecho tirado de Abelly(L) Vie du Vénérable Serviteur de Dieu Vincent de Paul... Segunda edição (Paris, 1668, 2 tomos) t. I, p.
293.
1
1. Lambert aux Couteaux era então (desde 1642) assistente do Superior Geral no governo da Casa-Mãe. Escrevera ao Padre Vicente para
informá-lo da situação de São Lázaro. O Santo, depois de sua diligência junto a Mazarino (14 de janeiro de 1649), tentando levar o ministro a
deixar a corte, julgara prudente afastar-se de Paris. Encontrava-se, então, no oeste da França, onde fazia a visita das casas de sua Companhia.
2
2. São Lázaro fora pilhado pelos soldados em janeiro de 1649, durante os tumultos da Fronda. Aconteceu o mesmo, pouco depois, com a
granja de Orsigny que alimentava São Lázaro.
.
Carta 58. – Biblioteca municipal de Lyon. Manuscrito 1285.
327

Podemos olhar esse bom servo de Deus como padre e como missionário. Como padre, pode-se
dizer que era um retrato da ideia que São Paulo nos apresenta a respeito, nas cartas a Timóteo e a Tito,
e creio que seria muito difícil encontrar um padre, em meio à vida ativa e comum como a nossa, e de sua
idade, que pusesse mais fielmente em prática o que esse apóstolo nos ordena.
Em primeiro lugar, sua devoção era sincera, sem dissimulação, sem indiscrição, substancial e
sólida, não superficial e volúvel como a de muitos que é mais labareda que calor. Era homem de
meditação quase contínua, exceto durante o tempo que empregava na celebração da santa missa, e na
recitação de certas preces e orações vocais que fazia todos os dias. Seus estudos eram mais oração do
que especulação. Sabeis, senhor Padre, com que atenção e fervor recitava o ofício divino, e todos, antes
de sua morte, disseram que ele parecia um anjo, no coro, com os outros.
Quanto à santa missa, jamais a celebrava a não ser após longa preparação e, quando podia,
depois de ter assistido a uma. Sua ação de graça durava sempre uma meia hora ou três quartos de hora.
Se não tivesse assistido a uma missa antes de ir para o altar, ele assistia a alguma depois de ter
celebrado. Nos domingos e festas, assistia ordinariamente a três.
A piedade e a virtude da religião transpareciam-lhe do grande zelo pela limpeza da Igreja e
ornamentos sacerdotais. Varria frequentemente a Igreja e a sacristia e não permitia que ninguém mais o
fizesse ou auxiliasse, agradecendo os que queriam aliviá-lo; continuou assim até a sua enfermidade,
embora não fosse mais o sacristão. Era ele também quem lavava os corporais e sanguinhos. Cuidava
muito que se observassem as cerimônias e que se conservassem limpas as mãos, porque, dizia ele, eram
os instrumentos do sacrifício da missa.
Em seus estudos, nada mais pretendia a não ser excitar-se ao amor de Deus e às outras virtudes,
como se evidenciou pelos escritos seus, encontrados após sua morte. Com efeito, se excetuarmos um
compêndio de teologia escolástica e um de filosofia que ele tinha transcrito e algumas adições que lhes
fez, nada conservou desde sua chegada a Roma, senão um resumo dos Comentários de Ménochius sobre
a Escritura, que ele fez nos primeiros meses de sua permanência na Itália, e alguns comentários que fez a
um resumo latino das pregações da Missão e das Instruções de Murcantius. Foi tudo o que se encontrou
dele, com os versos sobre o A. Kempis, e algumas ladainhas. No entanto, disse-me, antes da sua morte,
que lera todos os livros existentes aqui, com exceção de Ara, que leu apenas em parte, na medida das
dificuldades que lhe sobrevinham. Em tudo que comenta a seu respeito, nada há de subtil ou curioso, mas
tudo tem um tom afetivo e de devoção, e são coisas comuns.

Como Missionário

1° Uma imensa e extraordinária estima a sua vocação. Encontrei isto, escrito de seu próprio
punho: “Guarda-te de imaginar que poderias fazer coisa melhor em outros lugares”. Falava sempre
favoravelmente da vocação.
2° Sua regularidade era conhecida e, para dizer singelamente meu sentimento, era ele a alma da
boa ordem da Casa, por seu exemplo, e pelo cuidado que tinha em tocar o sino para os exercícios do dia,
com toda exatidão.
3° Seu fervor, jamais permanecia ocioso. Pelo contrário, ou rezava, ou lia, ou varria ou
trabalhava no jardim. Acordou a comunidade durante um ano inteiro, com tanta pontualidade que,
qualquer que fosse o frio, e mesmo que o relógio parasse à noite, levantava-se pontualmente. Disse-me
uma vez, parecendo em êxtase: “Homo dei apprehendo vitam aeternam (Como homem de Deus, busco à
vida eterna). Sua conversa ordinária era sobre Deus e a virtude.
4° Sua misericórdia para com os pobres. Disse-me várias vezes que era muito penoso morar neste
lugar, por causa da pobreza do povo. Isso o afligia e o tornava melancólico, vendo a impossibilidade de
socorrê-los conforme suas necessidades. Está sempre à minha procura para ver como seria possível
ajudá-los.
5° Sua caridade para com Deus. Dizia sempre: “Temos de morrer; que fazemos neste mundo? E
como desejava estar no céu! Dizia-me, por ocasião de uma falta de alguma pessoa, que não suportava
presenciar uma ofensa a Deus. Causava-lhe isto uma dor semelhante à que sofreria se lhe rasgassem o
coração. Rogava-me sempre que advertisse os outros de suas faltas; ao dizer-lhe certa vez que era tempo
perdido, replicou-me que o fizesse ao menos para não ser responsabilizado diante de Deus e que
aprovava inteiramente a máxima dos Padres Jesuítas: ou a ordem ou a porta.
328

Vem daí que nas confissões era muito circunspecto em não dar a absolvição a não ser aos que
julgava dispostos. Ao ser um dia interrogado por alguns padres da Companhia a respeito da opinião de
alguns autores sobre a questão das ocasiões próximas, necessárias e presumidas, não voluntárias e sobre
as recaídas, respondeu friamente que, quanto a ele, jamais seria dessa opinião. Falando-me um dia da
facilidade de alguém em dar a absolvição e penitências leves, disse-me “Ó senhor Padre, como é difícil
ter verdadeira fé no que acontece com o Sacramento da Penitência e da Eucaristia e não ser mais zeloso
no sentido de que não sejam profanados”. Comunicando-lhe certo dia que andavam murmurando por
causa das penitências dadas e do adiamento da absolvição, respondeu-me que era preciso deixar que
falassem e ter apenas Deus em mira. Estava totalmente persuadido de que a facilidade dos confessores
era uma das maiores ocasiões do desregramento dos povos. Não podia ouvir falar o contrário sem
testemunhar seu sentimento: sei, por experiência, o que isto operou em algumas almas, que se achavam
metidas em grandes desordens e que, pela graça de Deus, voltaram atrás.
O cavalheiro Santi caindo doente, mandou pedir-me que lho enviasse, mas já estava morto. Um
outro foi até lá, mas não quis confessar-se. Indo estar com ele, disse-me que sentiu grande pesar a
respeito desse bom padre e que teve a consolação de se confessar com ele. Tivera vários confessores em
Roma e outros lugares, mas que jamais encontrara um que lhe tivesse dado mais esclarecimentos e maior
consolação.
Em sua vida particular, confessava-se com tanta humildade, compunção e santo temor que, com
frequência, ao atendê-lo, ocorria-me esta passagem de Escritura Sagrada: “Ad quem respiciam nisi ad
pauperculum et trementem sermones meos1”(Para quem voltarei os meus olhos, senão para o pobrezinho
que treme diante da minha palavra). Jamais dei absolvição com tanta alegria e amplidão de coração,
pois se me afigurava ver nele a graça de Deus, de tal modo transparecia exteriormente neste bom servo
do Senhor.
Embora fosse absolutamente necessário, e isso quase sempre, colocar em prática o costume da
Companhia de declarar novamente algum pecado da vida passada, a fim de garantir o sacramento,
contudo, sua alma era tão pura que, além da penitência que eu lhe impunha, rogava-me muitas vezes
acrescentar-lhe uma rude disciplina: eram suas palavras.
Sua obediência era “quasi modo geniti infantis” (ao estilo de crianças recém-nascidas), sem
jamais replicar algo. Dizia-me frequentemente que se admirava de que pudesse haver alguém com
dificuldade para obedecer. Pelo contrário, quanto a ele, tinha experiência de que, seguindo seu
sentimento, sempre se enganara e que, seguindo o dos superiores, reconhecera sempre a verdade destas
palavras: “Qui vos audit, me audit” (Quem vos ouve, a mim ouve). Repetia muitas vezes estas palavras
de São Bernardo: “quem segue o seu próprio parecer, segue um falso mestre”.
Quando ia a algum lugar, ainda que por uma meia hora, colocava-se de joelho, pedindo-me a
bênção, as mais das vezes à porta, diante dos externos, e com tanta humildade e devoção que os que o
viam ficavam enternecidos. Uma pessoa que se encontrava então presente me disse: “Ó senhor Padre,
sabeis entre vós o que é virtude; quanto a nós, vivemos como animais”.
Quando tinha algum escrúpulo, vinha procurar-me e me perguntava se, no caso, havia pecado, e
se deveria confessar-se. Ao dizer-lhe que não, dirigia-se para a sacristia, a fim de se paramentar para a
celebração.
Quanto à mansidão, jamais contristou alguém e embora, em certas ocasiões, tivesse sido
repreendido com azedume, jamais deixou transparecer algum sinal de desgosto ou tristeza, mas sempre
se humilhava.
Sua mortificação era mais para ser admirada do que imitada. Iria longe, se quisesse escrever-vos
o que sofreu pela castidade. Além das disciplinas ordinárias que tinha permissão de aplicar a si, vinha
com freqüência pedir-me permissão para assumir outras. Usou por longo tempo certos cintos de ramos
de groselheira que dobrava e ajustava para essa finalidade, aplicando-os na carne viva. Causa horror
ver os espinhos dessa espécie de arbustos, pois ele pegava ramos de um ano, vede-o, senhor Padre, que
se empregam para grandes arranjos. Com efeito é desse ramo que Santa Teresa usou como disciplina,
juntamente com urtiga. Deitou-se por longo tempo em chão duro. É verdade que deixou de se servir
dessas últimas mortificações nos dois últimos anos de sua vida, porque lhes foram proibidas. Disse-me
que não era sem motivo que se honravam os santos, pois a virtude era difícil de se adquirir e que era
preciso sofrer muito antes de alcançá-las um pouco.
1
1. Is 66,2.
329

Deus lhe deu em recompensa grande pureza de corpo e de espírito. Disse-me em suas últimas
comunicações interiores que não sentia mais nada das tentações passadas, e que havia mais de um ano
que a misericórdia de Deus o tinha ajudado neste ponto. Era, entretanto, muito circunspecto nas
conversas com mulheres e jamais olhava para elas.
Enfim, a constância com que sempre procurou a virtude, a perseverança com que selou suas boas
obras, fizeram com que, ao cair doente, me pedisse para não abandoná-lo. Confessou-se no dia seguinte,
pediu a comunhão como viático, depois da qual solicitou-me que lhe desse a Unção dos Enfermos, logo
que necessário.
Demonstrou extrema paciência, sem jamais se queixar ou se lamentar. Disse que não mais se
levantaria de sua enfermidade, e na manhã precedente à de sua morte, disse-me que sofrera à noite de
modo extraordinário, que Deus o fizera experimentar uma espécie de soma de todos os males sofridos
pelos santos. Pouco depois, acrescentou: “mesmo os dos santos mártires”. Não ousei interrogá-lo sobre
os detalhes, mas imaginei se tratasse de alguma visão do demônio. Morreu em grande paz e apagou
como uma criança de berço. Depois da sua morte, encontrei entre seus papéis um pequeno escrito com
protestos de entrega a Deus, redigidos com seu sangue e lacrados com cuidado, para que não os lessem.
Eu vo-lo envio, senhor Padre, juntamente com os versos que compôs sobre Gerson e sobre o Evangelho,
que julgo mereçam ser conservados. Um capuchinho pedira-me parte deles, mas me escusei, dizendo que
queria enviar-vo-los. Haverá alguns erros, porque não pôde revê-los e fazia isso para seu particular
consolo. O Padre Blosquelet me pede seus escritos sobre a escolástica; um outro, os sobre a Escritura
Sagrada; interrogam pelo resumo das instruções de Menochius e das pregações da Missão, das quais
escreveu resumidamente os pontos em latim. Pedem-vos, senhor Padre, que mos conceda, se julgardes
conveniente.
Eis, senhor Padre, o que tinha a vos dizer sobre o falecido, o bondoso Padre Dumotz. Creio,
porém, que sua humildade nos privou do conhecimento de muitas de suas ações, que nos teriam servido
de exemplo e nos teriam proporcionado muita edificação. Com efeito, posso dizer com verdade e
simplicidade que, a meu pobre juízo, é muito difícil que um homem possa chegar nesta vida a uma maior
pureza e inocência do que esse bom servo de Deus. Por essa razão, creio que ele está no céu, conforme a
sentença de Nosso Senhor: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Peço-vos,
senhor Padre, rogar a Deus por mim, a fim de que me perdoe o mau uso que fiz dos exemplos desse bom
servo de Deus e me conceda a graça de imitá-lo em alguma coisa.
Acrescentarei ainda, aqui, duas palavras: 1°, ele se levantava sempre pela meia-noite, para fazer
de joelhos alguma pequena prece, isto, com a devida permissão, pois jamais o teria feito sem ela, por
maior que fosse sua devoção 2°, era extremamente reservado quando se tratava de falar em detrimento
do próximo, e não podia tão pouco ouvir falar mal, nem mesmo de modo geral dos vícios e desordens de
algumas províncias ou cidades, ou de algumas profissões. 3°, dizia de ordinário: “Senhores Padres e
meus Irmãos, façamos o bem; nós o encontraremos”. Enquanto ensinava a alguns dos nossos, quase não
passava um dia, quer na aula, quer na partilha de oração sem que nos mandasse, algumas vezes, na
ausência do superior, dizer no final: “Façamos o bem, nós o encontraremos”. 4°, frequentemente,
também, e muito frequentemente, dizia: “Desejo morrer, desejo morrer”, o que mostra quanto era
desapegado do mundo e quanto pensava na eternidade. Mas como dizer tudo? Sua vida foi uma contínua
dedicação a Deus e às obras de caridade para com o próximo. E assim, seria impossível dizer quanto sua
perda é sentida tanto pelos externos quanto pelos da Casa.
Sou, senhor Padre, vosso muito humilde e obediente servo,

LE VASSEUR,
indigno padre da Missão.

Saint Sauveur, 29 de setembro de 1649.

ÍNDICE DAS MATÉRIAS


330

829. A Estêvão Blatiron, 2 de agosto de 1646...........................................................................................


830. A Luísa de Marillac, 4 de Agosto de 1646
831. Luísa de Marillac a São Vicente,11 de agosto de 1646
832. A Antônio Portail, 12 de agosto de 1646
833. Luísa de Marillac, 14 de agosto de [1646]
834. Juliano Guérin a São Vicente, agosto de 1646
835. Ao Cardeal Mazarino, 20 de agosto de 1646
836. A Luísa de Marillac, 21 de agosto de 1646
837. Luísa de Marillac a São Vicente, 22 de agosto de [1646].
838. A Alguns Parentes
839. A Jean Barreau, 24 de agosto de 1646
840. A Estêvão Blatiron, 24 de agosto de 1646
841. A Luísa de Marillac, 25 de agosto de 1646
842. A Gilberto Cuissot, 25 de agosto de 1646
843. A Antônio Portail, 25 de agosto de 1646
844. Mazarino a São Vicente, 27 de agosto [1646]
845. Jean Garron a São Vicente, 27 de agosto de 1646
846. Luísa de Marillac a São Vicente, 28 de agosto [1646]
847. A Luís Callon, 28 de agosto de 1646
848. A Jean Martin, [fim de agosto de 1646]
849. A Jean Dehorgny, 31 de agosto de 1646
850. A Jean Bourdet, 1° de setembro de 1646
851. Ao Cardeal Mazarino, 4 de setembro de 1646
852. A Jean Barreau, 6 de setembro de 1646
853. A Jean Martin, 6 de setembro de 1646
854. Mazarino a São Vicente, 7 de setembro de 1646
855. A Cláudio de Marbeuf, 8 de setembro de 1646
856. A N***, 12 de setembro de 1646
857. A Jean Fonteneil, 13 de setembro de 1646
858. A Cláudio Dufour, 13 de setembro de 1646
859. A Jean Martin, 14 de setembro de 1646
860. A João Francisco de Gondi, [entre agosto e novembro de 1646]
861. A Antônio Portail, 22 de setembro de 1646
862. A Jean Dehorgny, 27 de setembro de 1646
863. A Jean Martin, 27 de setembro de 1646
864. A Renê Alméras, pai [28, 29 ou 30 de setembro de 1646].
865. Ao superior da Casa de Toul, 1646
866. A uma Irmã da Visitação [entre 1 e 6 de outubro de 1646]
867. Ao Cardeal Grimalde, 4 de outubro de 1646
868. A senhor Desgordes, 4 de outubro de 1646
869. A André Prat, 5 de outubro de 1646
870. A Antônio Portail, 6 de outubro de 1646
871. A Francisco du Coudray, [6 de outubro de 1646]
872. Estêvão Blatiron a São Vicente, 1646
873. A uma Irmã da Visitação, 9 de outubro [1646]
874. A Renê Alméras, pai, a São Vicente, [outubro de 1646]
875. A Antônio Portail, 13 de outubro [1646]
876. A Edmundo Dwyer, 15 [de outubro de 1646]
877. A Antônio Portail, [20 de outubro de 1646]
878. Ao Marquês de Mirepoix, 20 [de outubro de 1646]
879. A um padre da Missão, outubro de 1646
880. Nicolau Pavillon a São Vicente, 25 de outubro de 1646
881. A Estêvão Blatiron, 26 de outubro de 1646
882. A Antônio Portail, 27 de outubro de 1646
331

883. A Francisco Perrochel, 31 de outubro de 1646


884. A Jean Martin, 2 de novembro [de 1646]
885. A Estêvão Blatiron, 2 de novembro [de 1646]
886. A Antônio Portail, 3 de novembro de 1646
887. A Jean Dehorgny, 8 de novembro de 1646
888. A Antônio Portail, 10 de novembro [de 1646]
889. Luísa de Marillac a São Vicente, [novembro de 1646]
890. Luísa de Marillac a São Vicente, [antes de 1650]
891. A Michel Alix, 23 de novembro [de 1646]
892. A Estêvão Blatiron, 23 de novembro de 1646.
893. A Guilherme Delattre, 23 de novembro de 1646
894. A Antônio Portail, 23 de novembro [de 1646]
895. A Bonifácio Nouelly, 2 [... novembro de 1646]
896. A um padre da Missão, 24 de novembro de 1646
897. A um padre da Missão, 27 de novembro [de 1646]
898. Luísa de Marillac a São Vicente [1646]
899. A Antônio Portail, 1° de dezembro [de 1646]
900. A Luís Thibault, 02 [de dezembro de 1646]
901. A Jean Martin, 7 de dezembro [de 1646]
902. A Antônio Portail, 8 de dezembro [de 1646]
903. A Jacques Tholard, 8 [de dezembro de 1646]
904. A Jean Martin, 14 de dezembro de 1646
905. A Bernardo Codoing, 15 de dezembro [de 1646]
906. A Luís Rivet, 19 de dezembro de 1646
907. A Dênis Gautier, 23 de dezembro [de 1646]
908. A Jacques Chiroye, 23 de dezembro de 1646
909. Juliano Guérin a São Vicente, [entre 1645 e maio de 1648]
910. A Luísa de Marillac [entre 1645 e 1651]
911. A Estêvão Blatiron, 28 de dezembro [de 1646]
912. A Estêvão Blatiron, 4 de janeiro de 1647
913. Alain de Solminihac a São Vicente [1647]
914. A Jean Martin, 11 de janeiro de 1647
915. Luísa de Marillac a São Vicente [entre 1643 e 1649]
916. A Jean Martin, 1° de fevereiro de 1647
917. A Jean Martin, 18 de fevereiro de 1647
918. Luísa de Marillac a São Vicente, [entre 1639 e 1649]
919. A Jean Martin, 28 de fevereiro de 1647
920. A Francisco Adhémar de Monteil, 1° de março de 1647
921. Alain de Sominihac à São Vicente, 3 de março de 1647
922. A Jean Dehorgny, março de 1647
923. A Jean Martin, 8 de março de 1647
924. A Estêvão Blatiron, 8 de março de 1647
925. Luísa de Marillac a São Vicente, 10 de março [de 1647]
926. A Dom Ingoli, 15 de março de 1647
927. Um padre da Missão a São Vicente, 1647
928. A Jean Martin, 15 de março de 1647
929. A um padre da Missão, 1647
930. Um padre da Missão a São Vicente, 1647
931. A Cláudio Dufour, 31 de março de 1647
932. A um Superior, 9 de abril de 1647
933. A Francisco Adhémar de Monteil, [1647]
934. Juliano Guérin a São Vicente, [entre 1645 e maio de 1648]
935. Luísa de Marillac a São Vicente, [entre 1642 e 1649]
936. A Luísa de Marillac, [entre 1642 e 1649]
332

937. Luísa de Marillac a São Vicente, 21 de abril [de 1647]


938. A Cláudio Dufour, 23 de abril de 1647
939. Às Filhas da Caridade de Nantes, 24 de abril de 1647
940. Jacques Lescot a São Vicente, 1647
941. A Jean Martin, 26 de abril de 1647
942. A Jean Dehorgny, 2 de maio de 1647
943. A Jean Martin, 3 de maio de 1647
944. Estêvão Blatiron a São Vicente, 6 de maio de 1647
945. A Jean Dehorgny, 9 de maio de 1647
946. A Renê Alméras, 10 de maio de 1647
947. A Jean Martin, 10 de maio de 1647
948. A Bernardo Codoing, 11 de maio de 1647
949. A Madre Catarina de Beaumont, 19 de maio de 1647
950. A Estêvão Blatiron, 24 de maio de 1647
951. Juliano Guérin a São Vicente, 1647
952. A Jean Martin, 31 de maio de 1647
953. Luísa de Marillac a São Vicente [junho de 1647]
954. A Luísa de Marillac
955. A Luísa de Marillac [cerca de 1647]
956. A Luísa de Marillac
957. A Luísa de Marillac [cerca de 1647]
958. A Jean Martin, 7 de junho de 1647
959. A Antônio Portail, 14 de junho de 1647
960. A Cláudio Dufour, 15 de junho de 1647
961. Juliano Guérin a São Vicente, junho de 1647
962. A Estêvão Blatiron, 21 de junho de 1647
963. A Jean Martin, 27 de junho de 1647
964. Luísa de Marillac a São Vicente, 24 de junho [de 1647]
965. A Luísa de Marillac, 26 de junho de 1647
966. Luísa de Marillac a São Vicente, 26 de junho [de 1647]
967. A Luís Serre, 2 de julho de 1647
968. A um padre da Missão, em Richelieu, 7 de julho de 1647
969. A Luísa de Marillac [julho de 1647]
970. Luísa de Marillac a São Vicente [julho de 1647]
971. As Irmãs da Casa-Mãe a São Vicente, 23 de julho [de 1647]
972. A Luísa de Marillac [julho de 1647]
973. Lambert aux Couteaux a São Vicente, 26 de julho de 1647.
974. Jean Barreau a São Vicente, 27 de Julho de 1747
975. Juliano Guérin a São Vicente [entre 1645 e maio de 1648]
976. A Alain de Solminihac, 30 de julho de 1647
977. A um padre da Missão [1647]
978. Juliano Guérin a São Vicente [entre 1645 e maio de 1648]
979. Luísa de Marillac a São Vicente [agosto de 1647]
980. Alain de Solminihac a São Vicente, 20 de agosto de 1647
981. Luísa de Marillac a São Vicente, [22 de agosto de 1647]
982. Luísa de Marillac a São Vicente, 24 de agosto
983. A Luísa de Marillac [25 de agosto]
984. A João Francisco de Gondi, 3 de setembro de 1647
985. A Mathurin Gentil, 17 de setembro de 1647
986. A Antônio Portail, 20 de setembro de 1647
987. A Charles Testacy, 21 de setembro de 1647.
988. Alain de Sominihac a São Vicente, 21 de setembro de 1647
989. A Estêvão Blatiron, 27 de setembro de 1647
990. A Jean Barreau [setembro ou outubro de 1647]
333

991. A um padre da Missão [setembro ou outubro de 1647]


992. A Jacques Desclaux, 2 de outubro de 1647
993. A Antônio Portail, 4 de outubro de 1647
994. Mazarino a São Vicente, 10 de outubro de 1647
995. A Guilherme Delville, 11 de outubro de 1647
996. A Jean Chrétien [entre setembro de novembro de 1647]
997. A Jean Le Vacher [entre setembro e novembro de 1647]
998. Luísa de Marillac a São Vicente, 19 de outubro [de 1647]
999. Luísa de Marillac a São Vicente [outubro de 1647]
1000. Luísa de Marillac a São Vicente [novembro de 1647]
1001. Alain de Solminihac a São Vicente, 4 de dezembro de 1647
1002. A Estêvão Blatiron, 13 de dezembro de 1647
1003. Estêvão Blatiron a São Vicente, 16 de dezembro de 1647
1004. A Antônio Portail, 20 de dezembro de 1647
1005. A Nicolau Pavillon, [03] de janeiro de 1648
1006. Luísa de Marillac a São Vicente [entre 1644 e 1649]
1007. Luísa de Marillac a São Vicente [15 de janeiro de 1648]
1008. A vários padres, 17 de janeiro de 1648
1009. Luísa de Marillac a São Vicente [23 de janeiro de 1648]
1010. A Duquesa de Aiguillon, 24 de janeiro de 1648
1011. Nicolau Pavillon a São Vicente, 29 janeiro 1648
1012. Um padre da Missão a São Vicente, 1648
1013. Balthazar Grangier a São Vicente, 1648
1014. A um padre da Missão [1648]
1015. A Antônio Portail, 7 de fevereiro de 1648
1016. A Antônio Portail, 14 de fevereiro de 1648
1017. A Estêvão Blatiron, 14 de fevereiro de 1648
1018. À Marquesa de Maignelay [1647 ou 1648]
1019. Luísa de Marillac a São Vicente
1020. A Charles Nacquart, 22 de março de 1648
1021. A Dênis Gautier, 29 de março de 1648
1022. Charles Nacquart a São Vicente, 1° de abril de 1648
1023. Nicolau Gondrée a São Vicente, 3 de abril de 1648
1024. A Luísa de Marillac [entre 1645 e 1649]
1025. Jean-Jacques Olier a São Vicente [abril de 1648]
1026. Alain de Solminihac a São Vicente [abril de 1648]
1027. A Antônio Portail, 24 de abril de 1648
1028. A Dênis Gautier, 26 de abril de 1648
1029. Luísa de Marillac a São Vicente, 4 de maio [de 1648]
1030. A Antônio Portail, 8 de maio de 1648
1031. Juliano Guérin a São Vicente, maio de 1648
1032. Luísa de Marillac a São Vicente, 13 de maio de 1648
1033. A Jean Martin, 15 de maio de 1648
1034. Dênis Gautier a São Vicente, 1648
1035. Jean Barreau a São Vicente [maio de 1648]
1036. Luísa de Marillac a São Vicente [antes de 1650]
1037. A Jean Martin, 22 de maio de 1648.
1038. A Jean Martin, 12 de junho de 1648.
1039. A Mathurin Gentil, 14 de junho de 1648,
1040. Thomas Turchi a São Vicente, 15 de junho de 1648
1041. Luísa de Marillac a São Vicente [junho de 1648]
1042. A Luísa de Marillac [junho de 1648]
1043. A Jean Dehorgny, 25 de junho de 1648
1044. Charles Nacquart a São Vicente [25 de junho de 1648]
334

1045. A Jean Martin, 26 de junho de 1648


1046. À Propaganda [1648]
1047. A Estêvão Blatiron, 3 de julho de 1648
1048. Jean Le Vacher a São Vicente [1648]
1049. A Bernardo Codoing, 11 de julho de 1648
1050. A Secretaria das Finanças da cidade de Paris [cerca da 14 de julho de 1648]
1051. A um clérigo da Missão, 15 de julho de 1648
1052. Alain de Solminihac a São Vicente, 15 de julho de 1648
1053. Alain de Solminihac a São Vicente, 22 de julho de 1648
1054. A Cláudio Dufour, 24 de julho de 1648
1055. A um padre da Missão em Roma, 24 de julho de 1648
1056. Alain de Solminihac a São Vicente, 28 de julho de 1648
1057. A Dênis Gautier [julho de 1648]
1058. A Estêvão Blatiron, 15 de agosto de 1648
1059. Edmundo Dwyer a São Vicente [cerca de agosto de 1648]
1060. Thomás Walsh a São Vicente, [1648]
1061. Jean Le Vacher a São Vicente [1648]
1062. A Irmã Madalena de Maupeou, 3 de setembro de 1648
1063. A Luísa de Marillac, 5 de setembro de 1648
1064. A Jean Dehorgny, 10 de setembro de 1648
1065. A Estêvão Blatiron, 25 de setembro de 1648
1066. A Luísa de Marillac [outubro de 1648]
1067. Luísa de Marillac a São Vicente [outubro de 1648]
1068. A Renê Alméras, 23 de outubro de 1648
1069. A Antônio Portail, 30 de outubro de 1648
1070. A Estêvão Blatiron, 30 de outubro de 1648
1071. A um bispo recentemente eleito, 5 de novembro de 1648
1072. Luísa de Marillac a São Vicente, 6 de novembro [de 1648]
1073. A Luísa de Marillac [6 ou 7 de novembro de 1648]
1074. A Mathurin Gentil, 7 de novembro de 1648
1075. A Luís River, 15 de novembro de 1648
1076. Henrique de Maupas du Tour a São Vicente, 18 de novembro de 1648
1077. Thomás Turchi a São Vicente, 26 de novembro [de 1648]
1078. A Jean Barreau, 4 de dezembro de 1648
1079. Luísa de Marillac a São Vicente, [dezembro de 1648]
1080. Estêvão Blatiron a São Vicente, 10 de dezembro de 1648
1081. A Renê Alméras, 11 de dezembro de 1648
1082. Thomás Turchi a São Vicente, 21 de dezembro de 1648
1083. A Estêvão Blatiron [25 de dezembro de 1648]
1084. A um padre da Missão [dezembro de 1648 ou janeiro de 1649]
1085. Ao Marquês Desportes, 31 de dezembro de 1648
1086. A Lambert aux Couteaux, 18 de janeiro de 1649
1087. A Antônio Portail, 22 de janeiro de 1649
1088. A Luísa de Marillac, 4 de fevereiro de 1649
1089. A Jacques Norais, 5 de fevereiro de 1649
1090. Às Damas da Caridade, 11 de fevereiro de 1649
1091. A Dênis Gautier, 25 de fevereiro de 1649
1092. A Duquesa de Aiguillon a São Vicente, 2 de março de 1649
1093. A Antônio Portail, 4 de março de 1649
1094. A Luísa de Marillac, 14 de março de 1649
1095. Edmundo Dwyer a São Vicente [1649 ou 1650]
1096. A Luísa de Marillac, 23 de março de 1649
1097. A Luísa de Marillac, 5 de abril de 1649.
1098. Luísa de Marillac a São Vicente, 6 de abril de 1649
335

1099. A Luísa de Marillac, 9 de abril de 1649


1100. A Luísa de Marillac, 15 de abril de 1649
1101. A Luísa de Marillac, 28 de abril de 1649
1102. A Antônio Portail, 11 de maio de 1649
1103. A Luísa de Marillac, 14 de maio de 1649
1104. Charles Nacquart a São Vicente, 27 de maio de 1649
1105. A Luísa de Marillac, 29 de maio de 1649
1106. Um Missionário da Barbária a São Vicente [entre 1645 e 1660]
1107. Benjamin Huguier a São Vicente, 5 de junho de 1649
1108. A Michel Thépault de Rumelin, 7 de junho de 1649
1109. A Renê Alméras, 18 de junho de 1649
1110. A Gabriel Delespiney, 19 de junho de 1649
1111. A Jacques Rivet, 19 de junho de 1649
1112. A um padre da Missão [cerca de junho de 1649]
1113. A Jacques Rivet, 27 de junho de 1649
1114. A Madre Jeanne Margarida Chahu [cerca de junho de 1649]
1115. A Bernardo Codoing, 30 de junho de 1649
1116. A Luís Thibault, 3 de julho de 1649
1117. A Hugues Perraud, 4 de julho de 1649
1118. A um padre da Missão da Casa de Gênova
1119. A Renê Alméras, 9 de julho de 1649
1120. A Estêvão Blatiron, 9 de julho de 1649
1121. Alain de Sominihac a São Vicente, 9 de julho de 1649
1122. A Bernardo Codoing, 25 de julho de 1649
1123. Alain de Solminihac a São Vicente, 28 de julho de 1649
1124. A Francisco Fournier, 1° de agosto de 1649
1125. A Antônio Portail, 6 de agosto de 1649
1126. A Estêvão Blatiron, [cerca de 6 de agosto de 1649]
1127. A um padre da Missão, [cerca de 6 de agosto de 1649]
1128. Luísa de Marillac a São Vicente [agosto de 1649]
1129. Luísa de Marillac a São Vicente [agosto de 1649]
1130. Luísa de Marillac a São Vicente [30 de agosto de 1649]
1131. A N***, 31 de agosto de 1649
1132. A Luísa de Marillac, 2 de setembro [de 1649]
1133. Ao senhor des Vergnes, 4 de setembro de 1649
1134. A Jacques Rivet, 5 de setembro de 1649
1135. À superiora do segundo mosteiro da Visitação, 8 de setembro
1136. A Renê Alméras, 11 de setembro de 1649.
1137. A um padre da Missão em Roma [1649]
1138. A Estêvão Blatiron, 17 de setembro de 1649
1139. A Cláudio Dufour, 18 de setembro de 1649
1140. Ao R. P. Francisco Blanchart, 29 de setembro de 1649
1141. A Felisberto de Beaumanoir de Lavardin, outubro de 1649
1142. A Jaccques Chiroye, 3 de outubro de 1649
1143. A Renê Alméras, 8 de outubro de 1649.
1144. A Mathurin Gentil, 12 outubro de 1649
1145. Mazarino a São Vicente, 13 de outubro de 1649
1146. Estêvão Blatiron a São Vicente, 19 de outubro de 1649
1147. A Guilherme Delattre, 23 de outubro de 1649
1148. A Dom Dênis Massari, 5 de novembro de 1649
1149. A Mathurin Gentil, 9 de novembro de 1649
1150. Estêvão Blatiron a São Vicente, novembro de 1649
1151. Luísa de Marillac a São Vicente [entre 1647 e 1649]
1152. A Jacques Rivet, 13 de novembro de 1649
336

1153. A Marcos Coglée, 15 de novembro [de 1649]


1154. Luísa de Marillac a São Vicente [novembro de 1649]
1155. Luísa de Marillac a São Vicente [novembro de 1649]
1156. Luísa de Marillac a São Vicente [novembro de 1649]
1157. A Jean Gicquel, 5 de dezembro de 1649
1158. A Luís Rivet, 8 de dezembro de 1649
1159. A Renê Alméras, 10 de dezembro de 1649
1160. Luísa de Marillac a São Vicente [dezembro de 1649]
1161. A Simon Le Gras, 15 de dezembro de 1649
1162. A Bernardo Codoing, 15 de dezembro de 1649
1163. Alain de Solminihac, 15 de dezembro de 1649
1164. Luísa de Marillac a São Vicente [dezembro de 1649]
1165. Luísa de Marillac a São Vicente [dezembro de 1649]
1166. A Luísa de Marillac [dezembro de 1649]
1167. A Bernardo Codoing, 18 de dezembro de 1649
1168. Luísa de Marillac a São Vicente, 20 de dezembro [de 1649]
1169. A Estêvão Blatiron, 31 de dezembro de 1649
1170. Alain de Solminihac a São Vicente, 5 de Janeiro de 1650
1171. A Marcos Goglée, 7 de Janeiro de 1650
1172. A Jacques Chiroye, 9 de Janeiro de 1650
1173. A Luís Serre, 11 de Janeiro de 1650
1174. A um bispo [entre 1643 e 1652]
1175. A Madre Ana Maria Bollain
1176. Aos superiores, 15 de Janeiro de 1650
1177. A Luísa de Marillac [Janeiro de 1650]
1178. A Renê Alméras, 4 de fevereiro de 1650
1179. Charles Nacquart a São Vicente, 5 de fevereiro de 1650
1180. A Guilherme Dellattre, 6 de fevereiro de 1650
1181. A um padre da Missão
1182. A Mathurin Gentil, 9 de fevereiro de 1650
1183. Charles Nacquart a São Vicente, 9 de fevereiro de 1650
1184. Às Irmãs de Valpuiseaux, 10 de fevereiro de 1650
1185. A Renê Alméras, 11 de fevereiro de 1650
1186. Luísa de Marillac a São Vicente [fevereiro de 1650]
1187. Alain de Sominihac a São Vicente, 15 de fevereiro de 1650
1188. Charles Nacquart a São Vicente, 16 de fevereiro de 1650
1189. Charles Nacquart a São Vicente, 16 de fevereiro de 1650
1190. A Luís Rivet, 20 de fevereiro de 1650
1191. A um padre da Missão, em Saintes, 20 de fevereiro de 1650
1192. A Irmã Jeanne Lepeintre, 23 de fevereiro de 1650
1193. A Bernardo Codoing, 23 de fevereiro de 1650
1194. A Mathurin Gentil, 23 de fevereiro de 1650
1195. A Luísa de Marillac [entre 1645 e 1660]
1196. Um padre da Missão a São Vicente, 1650
1197. A Luísa de Marillac
1198. A Mathurin Gentil, 16 de março de 1650
1199. A Antônio Lucas, 23 de março de 1650
1200. A Renê Alméras, 25 de março de 1650
1201. Ao Padre Blanchart, 26 de março de 1650
1202. A um padre da Missão, em Saintes, 27 de março de 1650
1203. Balthazar Grangier a São Vicente, 1650
1204. A um bispo [entre 1646 e 1652]
1205. A um bispo [entre 1646 e 1652]
337

ÍNDICE DO ANEXO DO TOMO III

48. A Bonifácio Nouelly, 7 de setembro de 1646


49. A Jean Dehorgny, 27 de setembro de 1646
50. A Guilherme Delville, 4 de outubro de 1646
51. A Antônio Portail, 6 de outubro [de 1646]
52. A Antônio Portail, 18 de [outubro de 1646]
53. Carta dedicatória de Charles Aubert a São Vicente
54. A João Francisco de Gondi, 8 de setembro de 1647
1019.Bis. Padre Vicente a Jeanne Lepeintre, 8 de março de 1648
55. A Jean Dehorgny, 28 de abril de 1648
56. Carta dedicatória de J.B. de la Place a São Vicente [1648]
1081.Bis. Para a Madre superiora do primeiro mosteiro da Visitação de Paris, 14 de dezembro de 1648
1089 BIS. A Santa Luísa de Marillac, 11 de fevereiro de 1649
1090BIS. A Santa Luísa de Marillac, 17 de fevereiro de 1649
57. A Lambert aux Couteaux [fevereiro ou março de 1649]
58. Padre Martin Levasseur a São Vicente, [29 de setembro de 1649]

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