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A SOMBRA

UM CONTO PERTURBADOR

Aurora H. Domme
A SOMBRA

À s vezes ela olhava para seu interior e só via a escuridão.


Havia luz, mas as trevas sempre prevaleceram.
Quando ainda criança o lado sombrio lhe foi apresentado.
Ela ainda se lembra daquela noite em que tudo começou de forma simples, com
um singelo carinho, depois o convite para brincar. Assim ele ganhou um pedacinho da
confiança dela.
Ele lhe dava atenção, conversava com ela, mostrava interesse. A família dela
nunca a via, sempre estavam envoltos em seu mundo de negócios. Assim ele ganhou
ainda mais confiança.
Aos poucos, a ousadia cresceu.
Em uma tarde ele lhe pagou um sorvete e a olhava atentamente.
Na semana seguinte, elogiou o short curto e a regata de um personagem infantil.
Ela, com sete anos, carente de carinho e atenção, não viu o olhar de cobiça.
Em uma determinada noite, os pais o chamaram para um jantar, sentaram-se à
mesa e trocaram frivolidades. Naquela noite ele tocou quase que acidentalmente na
perna dela, sem ninguém ver.
Depois os pais foram para a sala e ele ficou sentado ao lado dela, enquanto ela
fazia um desenho, mais uma vez elogiando-a. Os pais estavam sempre preocupados com
sua irmã mais nova, com a bisavó, com o alcoolismo, com tudo. Menos com ela.
Em uma determinada tarde ele foi ousado e a chamou para sua casa, a fim de lhe
mostrar um segredo.
Como sempre saía sozinha, ninguém a questionou.
Ao chegar, bateu timidamente na porta e foi recebida pelo aroma diferenciado que
aquele lugar tinha. Cheirava a terra e algo velho.
Ele, sorrindo, a convidou para entrar, deu a ela um pirulito e lhe mostrou gibis,
sabendo de sua paixão.
Ela, inocente, achou que aquele fosse o segredo, mas não era.
Ele a sentou em um pequeno banco e tirou os cabelos que estavam em seu rosto,
tocando levemente a sua bochecha.
Naquele momento ele se inclinou em direção ao ouvido dela e sussurrou, que
meninas boazinhas nunca eram castigadas. Ela não entendeu, assim, sorriu achando
interessante aquela conversa adulta.
Então, mais uma vez, ele disse a ela que meninas boazinhas nunca eram
castigadas. E naquele momento ele fez a pergunta que até hoje ela escuta:
— Você gosta de ser boazinha, né? Não quer ser castigada, né?

Ela, que já conhecia o quanto doía ser castigada, pois sempre apanhava em casa,
disse rápido a ele que não queria ser castigada e que sempre seria boazinha. Então ele
deu a ela mais um pirulito e disse que ela já podia ir para casa.
Nos dias que se seguiram, ele novamente foi a sua casa, sempre com seus pais por
lá, embora muitas vezes o pai estivesse no bar e sua mãe atrapalhada com as coisas. Ela
estava sempre pela casa, brincando. Assim, ele se aproximava e sempre dizia como ela
era boazinha.
Até a tarde em que tudo mudou.
Seu pai havia saído para viajar a trabalho, sua mãe estava na cidade vizinha, a
babá cuidava somente da bebê da casa e da bisavó. Naquele dia, ele a chamou no
portão, e pediu para que ela fosse boazinha.
Assim, ela o seguiu, até a sua casa.
Ele abriu a porta e pediu para ela entrar.
Logo depois mandou que ela sentasse no sofá.
Então disse a ela: “Você está crescendo, logo será uma mocinha. Eu preciso ver se
você vai ser uma boa mocinha, tá?!”
Ali, a escuridão a envolveu.  
Ele a olhou, depois a tocou. Dizendo com voz doce que aquilo era bom, ela sabia
que estava errado, mas seu corpo maroto aquecia, sua mente gritava para parar.
Naquele primeiro dia, ele tocou todo o corpo dela, insistindo em fazê-la acreditar
que aquilo era bom e que aquele seria o segredo deles, pois se ela era boazinha, ele não
precisaria castigá-la.
Ela voltou para casa, sem saber quanto tempo havia passado.
Tentou brincar e se entreter, mas em vão.
Ninguém olhou para ela, e na hora do banho ela esfregou-se até ficar com a pele
vermelha, esperando que aquilo nunca mais acontecesse.   
Mas aconteceu.
Dias depois ele repetiu o mesmo modo de agir. Ela, insegura e com medo, o
seguiu.
Mais uma vez ele a fez entrar, e desta vez a levou até seu quarto. Ela ainda se
lembra do odor daquele lugar.
Ele a deitou na cama ao lado de um bichinho de pelúcia, e disse mais uma vez:
“Garotas boazinhas nunca são castigadas, então hoje eu vou te mostrar algo novo. Mas
primeiro, você vai tirar o short para eu ver a sua calcinha”.
Ela, com a voz trêmula, perguntou: “Só o short, né? ”. Ele não respondeu, apenas
sorriu. Assim, ela tirou o pequeno short rosa e ficou com sua calcinha de bolinhas.

“Agora você vai tirar a sua calcinha também, senão algo ruim vai acontecer”.
Ela, mais uma vez tremendo de medo, tirou e se encolheu.
Então ele começou a tocar no corpo e guiou a pequena mão dela até a sua calça
jeans grossa, e disse com voz rouca: “Viu, o que você faz comigo?”.
Ela rapidamente afastou a mão e ele lhe deu um tapa forte acima da coxa,
fazendo-a chorar. Ao ver as lágrimas, ele ficou mais violento, xingou e mandou que ela
ficasse quieta. Então, a menina engoliu as lágrimas da mesma maneira como fazia com
as surras que sua mãe lhe dava. Ele voltou a alisá-la, estimulando seu corpo, fazendo
com que tudo ficasse confuso em sua pequena cabeça.
Naquele dia ele a levou ao seu primeiro orgasmo. Com todos os estímulos errados.
Ao voltar para casa, desta vez arrastando os pés, tentando entender o que sentiu
em seu corpo e confusa com sua mente, mais uma vez ninguém a viu.
Algumas noites depois, ele foi até a sua casa, parecia querer saber se ela havia
contado para alguém.
Mas ela continuava só.
Naquela noite, ao ficar sozinho com ela, puxou-a pelo braço e perguntou sobre o
segredo deles. Ela disse que não havia contado a ninguém, então ele falou algo que
mudou tudo: “Se um dia você contar para alguém, eu pego a sua irmãzinha e faço pior
com ela”.
Assim, ela olhava para sua irmã, um bebe de dois anos, e imaginava como ela
aguentaria. Decidiu então que sofreria, mas pouparia a irmã.
Os abusos foram aumentando, os machucados davam trabalho para serem
escondidos.
A confiança dele também aumentou, muitas vezes a tocava com a família próxima
e olhava para sua irmã sorrindo.
Levou quase cinco anos, até que ela tenha se negado a ele. Quando isso ocorreu
as coisas ficaram difíceis.
Ela se aproximou de outros familiares, deixou de estar na casa dos pais.
Criou-se um abismo.
O prazer agora é sempre associado a escuridão.
E quanto a ele, o Abusador, ele foi castigado, teve problemas de saúde, amputou
as duas pernas devido a diabete e morreu sozinho.
Ela teve vontade de ir ao velório para cuspir na sepultura.
Hoje ela trabalha isso em si mesma, a família jamais soube.
Ela luta com todas as forças para que o mesmo não ocorra com o filho ou filha
dela.
Hoje, esta criança, menina, adolescente e mulher e mãe…

SOU EU.

Aurora H. Domme
ACOMPANHE A PRODUÇÃO LITERÁRIA DA ESCRITORA AURORA H. DOMME:

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