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fibromialgia

A fibromialgia (FM) é uma síndrome álgica musculoesquelética crônica, de


duração superior a 3 meses, generalizada, na qual existe um distúrbio do
processamento dos centros sensitivos aferentes, causando dor.
Caracteristicamente, a dor acomete todo o corpo, embora não
necessariamente de maneira concomitante. Em mais de 80% dos casos, a dor vem
acompanhada por sintomas de fadiga, sono não reparador e rigidez matinal.
A fibromialgia tem distribuição universal, não havendo diferenças raciais, de
cor ou condição socioeconômica. Embora acometa todas as faixas etárias, o pico de
prevalência está entre a 4ª e 6ª décadas. Já a sua incidência aumenta com a idade,
tornando-se mais frequente na 7ª década. As mulheres são mais acometidas, em
uma proporção de até 10 mulheres para 1 homem.

➔ Fisiopatologia

O modelo fisiopatológico que melhor descreve a fibromialgia parte da


observação de que o aparecimento dos sintomas dolorosos ocorre de forma
geralmente espontânea, simétrica e num sentido craniocaudal, contrariando uma
hipótese de lesões periféricas e sugerindo uma origem nervosa central para a
síndrome.
Substratos funcionais para a hipótese de percepção dolorosa incluem a
elevação da concentração de substância P e os distúrbios metabólicos do
metabolismo da serotonina. A substância P (SP) é um neuromodulador presente em
fibras nervosas do tipo C, não-mielinizadas. Quando estimuladas por estímulos
nociceptivos, essas fibras liberam SP num grupo específico de neurônios do corno
posterior da medula, que passam a responder com potenciais lentos, prolongados e
com somação temporal, num fenômeno chamado "windup". Considerando a
participação da SP nas respostas dos neurônios nociceptivos, qualquer distúrbio da
sua produção, atividade funcional ou degradação pode resultar numa percepção
dolorosa defeituosa. Russell comparou pessoas com fibromialgia a controles sem
dor e percebeu que no líquor dos indivíduos do primeiro grupo, os níveis de
substância P eram mais elevados, o que indica uma maior ativação das vias
aferentes dolorosas.
Por outro lado, as vias descendentes inibitórias de dor, que partem de
estruturas do tronco encefálico para os diversos níveis segmentares de medula,
também parecem estar envolvidas na fisiopatologia da fibromialgia. Esse conjunto
de estruturas é denominado Sistema Inibidor de Dor e os principais
neurotransmissores envolvidos no seu funcionamento são a serotonina e
noradrenalina ao nível do tronco encefálico e as dinorfinas e encefalinas a nível
segmentar medular.
Esse sistema foi descrito com um tônus basal, o que sugere uma atividade
constante, contudo ele também parece ser ativado por condicionamento e estado
motivacional. Estímulos nociceptivos são decididamente responsáveis por uma
elevação do seu funcionamento, o que o classificaria como uma alça de
retroalimentação negativa em relação a sensações dolorosas. Fica demonstrado
que os estímulos dolorosos seriam capazes inicialmente de produzir a sensação
desagradável da dor, mas posteriormente estimulariam estas vias descendentes,
atuando assim como moduladores da dor.
As alterações do metabolismo da serotonina implicam na redução da
atividade do Sistema Inibidor de Dor, com uma consequente elevação da resposta
dolorosa frente a estímulos algiogênicos ou mesmo o aparecimento de dor
espontânea. Níveis reduzidos de serotonina foram detectados no líquor e soro,
assim como os níveis dos seus precursores. O mesmo foi observado com os níveis
de receptores plaquetários e séricos para essa substância.
Outra hipótese para a reduzida atividade da serotonina é que seus receptores
apresentem algum tipo de diferença funcional nesses pacientes. O polimorfismo do
gene codificador de receptores para serotonina foi identificado em pacientes com
fibromialgia e é mais uma evidência nesse sentido, além de constituir uma
explicação para o habitual agrupamento familiar de pacientes portadores de dor
crônica, generalizada ou não.
O receptor 5-HT3 está localizado no Sistema Nervoso Central (SNC) e
Periférico e pode ser encontrado em várias outras células. Na periferia podem ser
encontrado no sistema nervoso autonômico, em nervos sensitivos e no sistema
nervoso entérico. No SNC está localizado em vários sítios, entre eles o hipocampo,
amídala, núcleo solitário, núcleo vaudatus, núcleo accubens, córtex cingulado e
corno posterior da medula espinhal. Este receptor modula a liberação de
neurotransmissores e neuropeptídeos como a dopamina, colecistoquinina,
acetilcolina, GABA, substância P e a serotonina. Foi demonstrado seu envolvimento
com a transmissão sensitiva, regulação de funções autonômicas, processo de dor e
controle da ansiedade.

➔ Quadro clínico

O quadro clínico se caracteriza por:


- Dor difusa crônica (bilateral, acima e abaixo do tronco e no esqueleto
axial, com duração maior que 3 meses);
- Fadiga;
- Distúrbios do sono;
- Pode também haver sintomas de depressão, ansiedade, desatenção,
cefaleia, vertigens, parestesias, sintomas compatíveis com síndrome
do intestino irritável ou com síndrome das pernas inquietas, entre
diversos outros sintomas não relacionados ao aparelho locomotor.
Pacientes com FM frequentemente apresentam geradores de dor periférica
que, acredita-se, atuam como gatilhos para a dor mais disseminada atribuída a
fatores do sistema nervoso central. Geradores de dor potenciais, como artrite,
bursite, tendinite, neuropatias e outras condições inflamatórias ou degenerativas,
devem ser identificados pela anamnese e exame físico. Geradores de dor mais sutis
podem incluir hipermobilidade articular e escoliose. Além disso, os pacientes podem
apresentar mialgias crônicas desencadeadas por condições infecciosas,
metabólicas ou psiquiátricas, que também podem atuar como gatilhos para o
desenvolvimento da FM.

Além da dor disseminada, os pacientes com FM normalmente se


queixam de fadiga, rigidez, transtorno do sono, disfunção cognitiva, ansiedade e
depressão. A dor, a rigidez e a fadiga frequentemente são agravadas pelo exercício
ou por uma atividade não habitual (mal-estar após esforços). As queixas quanto ao
sono incluem dificuldade em adormecer, dificuldade em manter o sono e acordar
cedo pela manhã. Independentemente da queixa específica, os pacientes acordam
sentindo-se cansados. Pacientes com FM podem preencher os critérios para a
síndrome das pernas inquietas e sono com distúrbio da respiração; além disso,
pode ocorrer apneia do sono franca. As queixas cognitivas caracterizam-se por
lentidão no processamento, dificuldades de atenção ou concentração, problemas
com lembrança de palavras e perda da memória de curto prazo.

Como a apresentação da FM pode superpor-se a outras condições de dor


crônica, a revisão dos sistemas frequentemente revela cefaleias, dor
facial/mandibular, dor miofascial regional, que acomete particularmente o pescoço
ou as costas e artrite. Com frequência, ocorre também dor visceral que acomete o
trato gastrintestinal, bexiga e a região pélvica ou perineal. Os pacientes podem ou
não preencher critérios definidos para síndromes específicas. É importante que o
paciente compreenda que podem existir vias compartilhadas que medeiam os
sintomas, e que o uso de estratégias de tratamento efetivas para uma condição
pode ajudar no manejo global dos sintomas.
➔ Diagnóstico

O diagnóstico de FM é eminentemente clínico, com a história, exame físico e


exames laboratoriais auxiliando a afastar outras condições que podem causar
sintomas semelhantes.

Critérios diagnósticos da ACR – 2010:

1) IDG - Marcar as áreas em que o paciente sentiu dor nos últimos 7 dias,
contabilizar 1 ponto para cada área relatada, totalizando 19 pontos no máximo.
- Mandíbula esquerda
- Mandíbula direita
- Cervical
- Ombro esquerdo
- Ombro direito
- Antebraço esquerdo
- Antebraço direito
- Braço esquerdo
- Braço direito
- Tórax
- Dorso
- Abdome
- Lombar
- Quadril esquerdo
- Quadril direito
- Coxa esquerda
- Coxa direita
- Perna esquerda
- Perna direita

2) EGS - Marcar a gravidade entre 0, 1, 2 ou 3 dos seguintes sintomas nos


últimos 7 dias:
- Fadiga (cansaço ao executar atividades);
- Sono não reparador (acordar cansado);
- Sintomas cognitivos (dificuldade de memória, concentração)
- Sintomas somáticos (dor abdominal; cefaleia; depressão...)

Considerar se o paciente apresentou, nos últimos 6 meses, nenhum sintoma


(0 pontos), poucos sintomas (1 ponto), número moderado de sintomas (2 pontos) ou
considerável número de sintomas (3 pontos).

Classifica-se como fibromialgia se as 3 condições estiverem presentes:

1) IDG ≥ 7 e EGS ≥ 5, ou IDG 3-6 e EGS ≥ 9;


2) Sintomas estáveis e presentes por pelo menos 3 meses;
3) Não haver outra causa que explique os sintomas

➔ Diagnóstico diferencial

Como a dor musculoesquelética constitui uma queixa tão comum, o


diagnóstico diferencial da FM é amplo.
Os pacientes com queixa recente de dor crônica disseminada devem ser
avaliados, em sua maioria, quanto às entidades mais comuns no diagnóstico
diferencial. Os exames radiográficos devem ser usados de modo parcimonioso e
apenas para o diagnóstico de artrite inflamatória.
➔ Tratamento

O tratamento da FM deve ser multidisciplinar, individualizado, contar com a


participação ativa do paciente e basear-se na combinação das modalidades não
farmacológicas e farmacológicas, devendo ser elaborado de acordo com a
intensidade e características dos sintomas. É importante que sejam consideradas
também as questões biopsicossociais envolvidas no contexto do adoecimento.
A explicação da genética, dos gatilhos e da fisiologia da FM pode
proporcionar um auxílio importante no alívio da ansiedade associada e na redução
do custo global de assistência médica.
As estratégias de tratamento devem incluir condicionamento físico, com
incentivo para iniciar exercícios aeróbios de baixo nível e prosseguir lentamente,
porém de modo consistente. Pacientes que eram fisicamente inativos ou que
relatam a ocorrência de mal-estar após esforços podem ter melhor resposta inicial
em programas supervisionados ou realizados na água. As atividades que promovem
melhora da função física com relaxamento, como ioga e tai chi, também podem ser
úteis. Pode-se recomendar a prática de musculação quando os pacientes alcançam
suas metas aeróbias. Programas de exercício são úteis para reduzir a
hipersensibilidade e aumentar a autoeficácia. As estratégias
cognitivo-comportamentais para melhorar a higiene do sono e reduzir os
comportamentos de doença também podem ser úteis no tratamento.

É essencial que o médico trate qualquer condição desencadeante comórbida


e estabeleça claramente para o paciente as metas de tratamento com cada
medicação. Por exemplo, os glicocorticoides ou os anti-inflamatórios não esteroides
podem ser úteis no tratamento dos fatores desencadeantes inflamatórios, porém
não são efetivos para os sintomas relacionados com a FM. Na atualidade, as
abordagens de tratamento que demonstraram ter maior sucesso em paciente com
FM são dirigidas para as vias aferentes ou descendentes de dor.
É preciso ressaltar que os analgésicos opioides devem ser evitados em
pacientes com FM. Esses agentes não têm nenhuma eficácia demonstrada na FM e
estão associados a hiperalgesia induzida por opioides, que pode agravar tanto os
sintomas quanto a função.
Diversos fármacos já foram empregados para o controle dos sintomas da FM.
Os antidepressivos provavelmente são os mais utilizados no tratamento de
manutenção. Entre os tricíclicos, a amitriptilina é o fármaco que reúne mais
informação na literatura, inibe a recaptação tanto de noradrenalina como de
serotonina, o que em sistemas moduladores descendentes gera analgesia central.
Seu nível de recomendação entre diretrizes é elevado, com tendência a se orientar
doses abaixo de 50mg/dia com melhora não somente da dor, como de fadiga e
sono.
Os inibidores da recaptação de noradrenalina e serotonina, também
conhecidos como inibidores duais, de modo similar aos tricíclicos, produzem
analgesia central por ação em vias nervosas inibitórias descendentes. De modo
geral, apresentam melhor tolerabilidade e perfil de efeitos adversos que os
tricíclicos. A duloxetina é o fármaco desse grupo que apresenta melhor evidência de
eficácia para o tratamento da FM. O milnaciprano foi considerado útil nos pacientes
que se queixavam também de dificuldades cognitivas.
Entre os anticonvulsivantes, a pregabalina e a gabapentina são os mais
usados. Em que pese ambas possuírem similaridade estrutural com o
neurotransmissor ácido gama-aminobutírico (GABA), não possuem ação nessa via,
mas sim em canais de cálcio voltagem-dependentes. O postulado atual mais aceito
sugere que nessa síndrome haveria hiperatividade glutamatérgica que, por sua vez,
seria controlada pelo bloqueio de influxo de cálcio em terminais pré-sinápticos por
ação da pregabalina.
Anti-inflamatório não hormonais e corticosteroides somente devem ser
usados para o tratamento de comorbidades inflamatórias quando estas estão
presentes. Estudos clínicos demonstram a sua ineficácia quando usados
isoladamente para o controle da dor da fibromialgia.

Harrison - Medicina Interna;


Tratado Brasileiro de Reumatologia;
Fisiopatologia da fibromialgia - Marcelo Riberto;
https://www.medicina.ufmg.br/alo/wp-content/uploads/sites/23/2020/07/Roteriro-de-F
ibromialgia-.pdf;
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2595-31922018000300255&script=sci_arttext
&tlng=pt;

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