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Tese Jaqueline Muniz
Tese Jaqueline Muniz
RESUMO 1
AGRADECIMENTOS 3
INTRODUÇÃO 6
BIBLIOGRAFIA 269
ANEXOS 278
2
RESUMO
Este trabalho tem como foco principal o universo cultural e institucional da Policial
sorte de eventos insólitos e emergenciais que, por um lado, não encontra uma tradução na
racionalidade jurídica e que, por outro, tem correspondido a uma zona cinzenta do
posto para a prática policial ostensiva: conciliar, em ambientes ordenados pelo acaso,
estado de direito.
como uma agência policial específica, com passado, estruturas, experiências e modos de
ser particulares que são contrastados com elementos extraídos da bibliografia dos estudos
capture os modos pelos quais os aspectos formais do mundo policial ostensivo são
alguns elementos referenciais que concorrem para a conformação de uma “cultura policial
das ruas”, entendida como uma síntese complexa e sutil dos estímulos e expedientes ora
convergentes, ora contraditórios e paradoxais que servem de guia para os atores que se
AGRADECIMENTOS
A hospitalidade com que fui recebida ao longo do percurso deste trabalho, fez-me
devedora de pessoas e das instituições que algumas delas encarnavam. A Polícia Militar
Silva foram embaixadores, bem como fontes constantes de experiência e reflexão acerca
das polícias. O Coronel Sérgio da Cruz apoiou desde há muito esta jornada, orientado
pela lúcida percepção dos ganhos resultantes do aprofundamento das relações entre
polícia e sociedade. Um destaque especial tem que ser feito ao 19º BPM. Sob o comando
do Cel José Aureliano, este batalhão recepcionou calorosamente um dos meus primeiros
trabalhos de pesquisa sobre polícia. Não posso deixar de agradecer às 60 praças da Cia
conversas e rondas. Foi também no 19º BPM que o Cel Bello me agraciou com a gentileza
Fernando. Reconheço, ainda, o meu débito para com um sem-número de oficiais e praças
das Polícias Militares de outros Estados que, nas conversas informais, durante o trabalho
de patrulha, no suporte às visitas de estudo e no convívio mais ou menos formal das aulas
e palestras, confiaram a mim tanto do seu saber e das suas vidas. A Brigada Militar do
Rio Grande do Sul me recepcionou repetidas vezes com o calor da hospitalidade policial
militar gaúcha, a qual homenageio nas figuras dos seus comandantes Cel Dilamari e Ten
Cel Brenner. A Polícia Militar do Estado do Espírito Santo me permitiu conhecer de perto
5
todo o seu pessoal e instalações, cabendo destacar o Maj Júlio César, essência da
estas há que se somar a ajuda pontual mas de grande valor de oficiais das Polícias
Militares do Acre, Amazonas, Tocantins, Paraíba, Ceará e Paraná. Ainda que este trabalho
das Polícias Civis de tantos estados brasileiros contribuíram com sua sabedoria,
o lugar singular que é ocupado pelos Delegados de Polícia Carlos Alberto D’Oliveira,
Martha Rocha e Cláudio Ferraz da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, com os
Roberto Kant de Lima. Seu arrojo e competência são fontes constantes de inspiração. Não
posso deixar de mencionar as instituições e colegas com os quais iniciei a minha trajetória
acadêmica. Tanto no ISER quanto no Viva Rio, pude contar com o carinho de Rubem
Cesar Fernandes e Elisabeth Sussekind. Não sei como descrever tudo que pude aprender
com adoráveis parceiros e cúmplices: Luiz Eduardo, Bárbara, Patrick, Leonarda, Bianca,
João Trajano, José Augusto, Regina, Lilian, Jacqueline, Edigar, Fabíola, Helena, Cristina,
Marco e Cleber. Zeca Borges permitiu e apoiou uma visão complementar importante,
trabalho relevantes – sou grata a Eugenio, Clovis e Cepik pela sua receptividade ao tema
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policial. A estes se somam, de forma diferente mas com igual carinho, Otávio Velho,
Wanderley Guilherme dos Santos, Cláudio Beato e Galeno Tinoco Ferraz Filho.
Nestes últimos meses contei com a amizade de Newton, Julita, Silvia, Dolores, Elenice e
com a generosa ajuda de Beth Cobra, que se empenhou na revisão dos originais com
rapidez e competência.
A Maria Alice Resende de Carvalho, Renato Lessa, Roberto Kant de Lima e Domício
sensibilidade.
Ao meu orientador Luiz Eduardo Bento Soares, um amigo e parceiro que com o “rigor de
sua indisciplina” soube emprestar medida e rumo aos meus estudos desde muito antes da
Há aquelas pessoas cujo apoio se faz de uma forma indizível e indispensável: Marquinho,
Isabel, Roldão, Camilinha, Cimá, Glória, Ademar, Belli, Cacati, Rosane, Marcelo,
Henrique, Lucas, Beta, Shê, Verinha gaúcha, Malu, Paula, Dedé, Dona Lilita e Sr.
Leandro.
também emprestou o seu apoio. De fato, muito do que aqui apresento resultou de
trabalhos e atividades que contaram com o suporte desta secretaria, bem como de
INTRODUÇÃO
Nacional, UFRJ, fui convidada pelo prof. Luiz Eduardo Soares a integrar a sua equipe de
do ISER. Os projetos de pesquisa ali desenvolvidos tinham como desafio aliar os rigores
anos de trabalho, lidamos com o amplo tema da violência através de recortes específicos
De fato, boa parte dessas pesquisas dependia de um contato estreito com as organizações
policiais fluminenses e, por sua vez, do acesso as suas bases de dados. Contudo, essas
agências ainda não figuravam como o nosso “objeto de pesquisa” privilegiado. Nesse
primeiro momento, as polícias entravam em cena apenas de uma forma indireta, isto é,
1
Os principais resultados desses trabalhos foram reunidos na livro “Violência e Política no Rio de Janeiro”
organizado por Luiz Eduardo Soares e publicado pela Relume & Dumará/ISER, em 1996.
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É bem verdade que desde essa época já nos encontrávamos insatisfeitos com o nosso
medida em que as nossas atividades de pesquisa avançavam, ia ficando cada vez mais
normativas-legais.
de que era indispensável dirigir algum esforço para uma área ainda muito pouco explorada
1994, surgiu como uma preciosa oportunidade para desencadear nosso primeiro trabalho
a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, coube aos pesquisadores do ISER a tarefa
de monitoramento deste programa, desde a sua concepção e até a sua efetiva execução.
realizado no Rio de Janeiro, se estendeu pelos 11 meses de sua duração.2 Nesse período,
2
O programa de polícia comunitária em Copacabana começou a ser desmontado em junho de 1995, logo
após o general Nilton de Albuquerque Cerqueira assumir o cargo de secretário de segurança pública. A sua
completa desativação ocorreu em setembro do mesmo ano.
9
serviram não só para orientar novas pesquisas realizadas na PMERJ e em outras polícias
Dentre as diversas questões que aguçaram a minha curiosidade, procurei neste trabalho
polícia ostensiva. Decidi que um caminho frutífero seria tentar seguir bem de perto as
pistas ofertadas pelos atores que faziam parte da realidade investigada, aproveitando, na
explícita, subtendida ou enviesada, apareciam nos seus discursos e atitudes. Por conta
dessa opção, os temas aqui tratados foram tomados de empréstimo dos próprios policiais
militares que ocupam-se de refletir sobre a suas corporações, as doutrinas por elas
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Além do trabalho de campo no 19º BPM, as atividades de pesquisa contemplaram o acompanhamento das
reuniões mensais dos seis Conselhos Comunitários de Área (CCAs); o mapeamento das ocorrências
registradas na área pelas unidades operacionais das Polícias Militar e Civil; a análise dos bilhetes
depositados pela população local nas trinta urnas espalhadas pelos bairros de Copacabana e Leme; e breves
estudos de caso sobre o quiosque gay, o baile funk realizado na quadra do morro Chapéu Mangueira e
algumas boates de prostituição da praça do Lido. Para uma apreciação dos resultados desta pesquisa ver:
Musumerci, 1996.
10
espaço de manobra decisória dos policiais de ponta no atendimento a toda sorte de eventos
insólitos e emergenciais que, por um lado, não encontra uma tradução na racionalidade
jurídica e que, por outro, tem correspondido a uma zona cinzenta do trabalho policial,
permanecendo pouco visível para as corporações, os PMs e a clientela que utiliza os seus
organizacional. Trata-se de fazer aparecer uma moldura geral que permita contextualizar
passado, estruturas, experiências e modos de ser particulares que são contrastados com
elementos extraídos da bibliografia dos estudos policiais. Essa apreciação se inicia por
uma consideração mais ampla que inquire sobre os relacionamentos entre as organizações
polícia?). O descarte de falsas oposições – a vigência dos direitos civis e uso da força,
dualidade entre estado de direito e polícia é que se pode compreender a razão de ser das
oportuno ressaltar que o processo de construção e ampliação dos chamados direitos civis
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constituiu uma das principais molas propulsoras para a criação e reforma das polícia
faz pela crítica da interpretação marxista da história desse relacionamento, assim como
estendem até o século passado. Outros pontos importantes para a compreensão do lugar
entre impulso de violência e uso da força, o papel das chamadas "competências residuais"
(definidas pelos PMs como toda sorte de demandas sociais saídas das ruas e que não estão
esses elementos, uma apreciação dos expedientes de disciplinarização dos meios de força
Rio de Janeiro passa então a ser o objeto central da análise que se beneficia de uma breve
É a partir desse referencial que a especificidade da PMERJ dos dias de hoje emerge e
pode ser percebida como um amálgama de organizações policiais distintas, que propiciou
12
a reinvenção de uma outra tradição, uma outra forma de expressão identitária, enfim, uma
iniciar essas considerações através de um relato suscinto das formas pelas quais as
polícias militares. Por um lado, cabe destacar o período de 160 anos em que a PMERJ
foi comandada por oficiais do exército. Por outro lado, merece atenção os problemas
tempo, de uma força auxiliar e reserva do exército, o que impõem, na ordem prática, duas
matrizes que informam o processo formativo dos policiais militares. É dessa forma que
se pode fazer aparecer a identidade híbrida e complexa da PMERJ como mais do que a
simples soma das antigas Polícias Militares dos Estados do Rio de Janeiro e da
Guanabara.
Com esse pano-de-fundo, se inicia uma apreciação mais detalhada do ethos policial
esprit de corps e o senso de missão (I.4: “Este espelho reflete você e você a PMERJ”: o
esprit de corps e o senso de missão). Desde logo, o lugar dispensado à palavra e seu uso
da corporação policial informam uma gramática corporal peculiar, assim como fazem
aparecer um senso de missão e uma mística a ele associada que se estendem para além da
realidade profissional dos agentes da lei, fazendo-se presentes nas esferas ordinárias de
eficiência" que se traduz no cotidiano da caserna em um tipo de ensaio para a coisa real -
profissional e pessoal dos PMs, que ajudam a conformar um esprit de corps alimentado
tanto por rituais de passagem calcados na vivência direta do trabalho policial, quanto
realistas”, para os quais o modelo militarista oferece mais problemas do que soluções por
polícia que desafia, na prática, os modelos e doutrinas que buscam reproduzir nas PMs
Esta não é uma discussão abstrata, uma vez que incide de forma dramática na vida
punir os PMs no desempenho de seu trabalho (I.6: “O que foi que eu fiz”: entre a culpa
polícia realizadas nas ruas, isto é, as ações propriamente policiais que têm lugar muito
além dos muros dos quartéis. Ocorre que no dia-a-dia, o policial de ponta se vê diante do
dilema da decisão à sombra da alternativa de ser punido seja por fazer de menos, seja por
fazer demais, seja até por fazer ou por deixar de fazer. Tal fato não contribui apenas para
referenciais que concorrem para a conformação de uma “cultura policial das ruas”,
entendida como uma síntese complexa e sutil dos estímulos e expedientes ora
convergentes, ora contraditórios e paradoxais que servem de guia para os atores que se
hermenêutica "nativa" entre o prescrito e o praticado (II.1: “Na prática é outra coisa”: a
para a busca de convergência entre "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que
encontra-se no mundo e não está na lei" apresentam-se, na ordem dos fatos, como a
condição de possibilidade para que a ação policial ostensiva conseqüente possa ter lugar.
Até porque as atribuições da polícia ostensiva confundem-se, em boa medida, com o largo
horizonte da ordem pública. No dia-a-dia ela é chamada a atuar sempre que ocorre "algo-
que-não-devia-estar-acontecendo-e-sobre-o-qual-alguém-tem-que-fazer-alguma-coisa-
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agora-e-bem" (Cf.Bittner, 1990). Os PMs da ordem pública descobrem on the job que, na
maior parte vezes, não há a oportunidade de um encontro feliz entre os diversos níveis de
exigência que circunscrevem a sua ação pontual. Eles aprendem no agora-já das pessoas,
situações e acontecimentos, que nem sempre é possível fazer convergir a "letra da lei", a
eficazes e satisfatórios. Por conta disso, observa-se uma renúncia, mais ou menos
um processo simultâneo de “training on the job” e troca de vivências entre policiais mais
e a presteza, são associados a esse saber "em estado de alerta". Um saber reestruturado a
cada nova circunstância atendida, preparado para assistir ao "pior de nós mesmos" e
construído nas ruas da cidade e, por meio dessa empresa, contextualizar os desafios,
Assim como em outras ocupações que lidam com o risco, as percepções sobre perigo e a
própria no mundo da polícia (II.2: Ação e Adrenalina: “ser policial é perigoso, divino e
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maravilhoso”). Elas parecem operar como chaves cognitivas que contribuem para a
maravilhoso" mundo da cop culture. Extremamente valorizados por aqueles atores que se
pensam talhados para agir em situações de incerteza e risco, esses atributos contribuem
para estruturar uma visão de mundo cuja apreensão do tempo se dá pela sua intensidade.
Por outro lado, emergem do cotidiano imagens românticas do policial herói, justiceiro e
do dia-a-dia policial, ajudam a configurar ora pela adesão a essas construções, ora pelo
que é, via de regra, constantemente alimentada pelas pressões morais exercidas sobre os
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policiais (II.3: O Caçador de Ações: suspeita, perigo e decepção). Percebida pelos PMs
da blue line como uma "atitude saudável" de todo policial e, por conseguinte, como um
indispensável "mecanismo de sobrevivência" nas ruas, a suspeita oferta uma forma "útil"
e ao mesmo tempo existencialmente sofrida de olhar o mundo social. O seu preço seria a
alimentando o dramático isolamento social sentido pelos policiais. Uma vez que
papel, missão e atuação da polícia costumam ser traduzidas em termos de uma cruzada
do bem contra o mal, cuja versão funcional pode ser expressa no clássico jargão policial
por um lado, mostra-se muito pouco otimista com os rumos da vida em comum e, por
e idealizado estado de total conformidade moral no qual não ocorriam conflitos, crimes
e litígios.
policial" que se faz presente nas mais distintas organizações policiais, e aparece
19
sintetizado na linguagem cotidiana dos nossos PMs da ponta linha através da expressão
policial ideal, reforçam o ethos masculino dos meios de força comedida, ao mesmo tempo
policial como um dos muitos lugares de diálogo conflituoso estabelecido com outros
mundos sociais elaborados na ampla sintaxe das ruas, em particular aqueles mundos
estereótipos na rotina ostensiva. Por outro, procura-se demonstrar que a própria economia
e atitudes discriminatórias.
Por fim, uma via complementar a essas questões é a administração cotidiana do "estigma"
associado a profissão policial (II.5: O que os “outros” dizem de nós). Aqui o que está em
jogo é, a luz do clássico paradoxo "vigiar aqueles que vigiam", compreender o modo
mesmo como os PMs interpretam e negociam com as imagens negativas construídas pelos
"outros" que eles "policiam”. Trata-se, ainda, de apreciar as formas pelas quais a
Toda vez que o tema violência e criminalidade urbanas é chamado à discussão, o ponto
manter a lei e preservar a ordem pública é direto e executivo. Nos noticiários, em nossas
talvez por isso, muito espinhosas em relação às polícias. De um lado, cobramos a pronta
estado de direito. Em uma frase, cobramos dos policiais, em cada curso de ação escolhido
ou em cada ocorrência atendida em alguma rua de nossa cidade, que produzam resultados
efetivos sem violar as garantias individuais e coletivas. Não há nada de absurdo nisso.
uma evidência negativa das ações policiais - expressa a própria condição de possibilidade
vista, imaginar, as agências policiais encontram sua razão de ser exatamente na arte de
disponível de reflexões sobre o estado da arte dos meios de força policiais têm contribuído
polícia”, “o mundo do crime não tem direito, tem dívida”, “a polícia só apresenta
fato de que as indagações e demandas que fazemos hoje sobre a eficácia do trabalho de
polícia e o pleno exercício dos direitos civis são, em grande parte, as mesmas questões
confecção de uma matriz moderna de polícia - a polícia londrina de Sir Robert Peel.
Ainda que pareça surpreendente, a luta pelos direitos civis estava originalmente
certa medida, as polícias profissionais surgiram como uma solução operacional, uma
humanitárias da época.
A polícia ostensiva, tal como conhecemos nos dias de hoje - com uniformes, cassetetes e
armas convencionais, patrulhando as ruas das pequenas e grandes cidades -, é uma recente
invenção ocidental. Sua criação remonta às primeiras décadas do século XIX (Critchley,
1992; Devlin, 1992; Harring e McMullin, 1992; McLaughlin e Muncie, 1992). Resulta
moderna, orientada pela ambição iluminista de produzir e sustentar a paz através de meios
pacíficos e “civilizados”.4
De certa forma, esses esforços significaram uma releitura da clássica distinção entre o
máximo emprego de violência para abalar a coesão do inimigo na guerra, e o uso mínimo
de força necessário para compelir à obediência individual e coletiva nos tempos de paz.
interna do território conquistado foi, durante um longo período, a face interna das forças
Segundo alguns autores, a aspiração da paz, além de vinculada aos valores iluministas, encontrava-se
também atrelada à modesta ética do utilitarismo. Desse modo, a ambição do bem comum não se apresentou
apenas como um ideal abstrato, mas como algo que resultaria em vantagens individuais. O desejo de abolir
a violência estava, portanto, fundamentado na crença de que a violência e a brutalidade seriam
humanamente repreensíveis e também na pragmática conclusão de que elas são tolas e onerosas. (Ver
Bittner, 1990).
24
Certamente o projeto civilizatório de produzir a paz com instrumentos pacíficos não foi,
e ainda não é - mesmo tendo transcorrido quase 200 anos de história - algo cuja
estado de direito (Bittner, 1975). As fortes pressões civis pela garantia e ampliação dos
ambiente necessário para o debate sobre a pertinência de uma instituição capaz de atender
às exigências postas por esse novo mundo. O episódio de criação da moderna polícia de
5
A lógica imperial alexandrina, que fundou o modo ocidental de fazer a guerra, dependia dessa dualidade
extremada no emprego da força: a conquista guerreira e o policiamento na paz, ver: Keegan, 1995.
25
A polícia de matriz britânica foi construída em oposição à ameaça que uma polícia
com uma vocação totalitária. Ela consistia nos olhos, nos ouvidos e no braço direito do
soberano: "deve ela tudo saber para que o governante decida o que permitir ou reprimir".
Neste sentido, embutia tarefas que, em outras concepções, eram exclusivas das Forças
territorial. Grosso modo, pode-se dizer que o modelo francês de polícia agregava missões
distintas em uma única instituição. A polícia à moda de França era, portanto, a união do
que hoje se distinguem como serviço secreto, polícia de fronteiras, polícia política,
Sir Robert Peel e seus colaboradores sabiam que o seu projeto de uma nova força policial
população se ele em nada lembrasse a police francesa (Reiner, 1992). A Inglaterra já tinha
vivido uma guerra civil pelo controle do Exército e pela soberania da Câmara dos
Comuns. Via-se uma polícia do Estado como um instrumento de tirania, tal como a polícia
do Ministro Fouché havia sido para Napoleão e seguira sendo para os Bourbon
6
O antigo aparato soviético do Ministério do Interior e da KGB espelhava este tipo de concepção totalitária
de polícia, mesmo quando a polícia ostensiva foi separada em uma força profissional à parte,
contraditoriamente designada milícia das grandes cidades.
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restaurados. Mesmo após uma breve realização experimental em Dublin, a idéia de se ter
uma força policial de tempo integral ainda soava como uma possível arma do executivo
contra o Parlamento e a população. Uma das principais razões para as fortes resistências
era o receio público de que a existência de tal força fizesse a balança do poder pender
experimenta um ano com inúmeros crimes brutais e uma seqüência de desastrosos motins
e tumultos urbanos - em parte reflexo das guerras napoleônicas - que foram dominados
pelas forças militares com graves prejuízos à vida e a propriedade. A manutenção da paz,
através das Forças Armadas, mostrou-se falha, uma vez que o uso da repressão armada
havia demonstrado não ter nenhum efeito dissuasivo, a despeito de sua ilimitada
surgidos com a vida urbana industrial como o crime, os conflitos sociais e os distúrbios
integrantes, não podiam constituir uma força de tempo integral. As críticas quanto aos
serviços prestados por elas iam desde o uso arbitrário e desmedido da força até a
Os periódicos de Londres na década de 30 do século passado, assim como os manifestos de Sir Robert
Peel, retratam a falência dos modelos privados de segurança com expressões e ênfases muito similares às
evocações hoje observadas em relação à “crise da segurança pública” no Brasil. A demanda por uma
organização policial (police) sustentava-se na "escalada do crime e da desordem", no "temor da população"
etc. O apedrejamento da casa do Duque de Wellington, primeiro ministro, serve como ilustração das causas
da insatisfação popular quanto aos arranjos de segurança da época.
27
atores particulares.
Londres parecia ter se transformado em um cenário novo e estranho para aqueles que lá
Mainwaring escreveu, em 1821, em suas “Observations on the Present State of the Police
“The most superficial observer of the external and visible appearance of this town,
must soon be convinced, that there is a large mass of unproductive population living
upon it, without occupation or ostensible means of subsistence; and, it is notorious
that hundreds and thousands go forth from day to day trusting alone to charity or
rappine; and differing little from the barbarous hordes which traverse an uncivilized
land [...] The principle of [their] action is the same; their life is predatory; it is equally
a war against society, and the object is alike to gratify desire by stratagem or force”
(apud Silver, 1992:57-81).8
Mas, os debates britânicos sobre a necessidade de uma organização policial insistiam cada
vez mais no desejo de construir uma agência de controle social superior aos desenhos
França. Daí o incômodo - expresso inúmeras vezes nos debates da época - de se adotar o
próprio termo police, de origem francesa para uma instituição nova e diferente que estava
sendo ainda concebida (Ericson, 1992; 151:159). Os ingleses queriam uma organização
que sustentasse a ordem pública, fizesse cumprir a lei e mantivesse a paz nas cidades.
Cabe aqui um breve comentário: a passagem mencionada, se ocultadas as referências de tempo e espaço,
poderia ser literalmente tomada como um dos muitos bilhetes de moradores de Copacabana, depositados
nas urnas do programa de policiamento comunitário em 1995, no Rio de Janeiro. (Ver: Musumeci, 1998)
28
Esta organização não poderia intervir nas lutas políticas, questionar as conquistas civis,
nem violar a privacidade dos súditos. 9 Seria uma polícia sem papel paramilitar,
A polícia de Peel resultou de uma série de compromissos com os seus aliados e oponentes:
preparada para a ação em grupo, mas com uma prática cotidiana centrada no indivíduo.
Matriz principal da atual estrutura policial britânica, a polícia de Londres teria que ser a
polícia dos súditos, do Parlamento -- nunca do Estado. Assim a polícia inglesa, paradigma
da polícia moderna, nasceu desarmada e sem função investigativa: sua missão estava
pela legalidade e legitimidade de seu emprego - uma realidade mais complexa que,
É evidente que esta perspectiva não vigorou nas Colônias inglesas cujos arranjos de policiamento
aproximavam-se da polícia à moda de França (McCormick e Visano, 1992).
10
Esse arranjo policial concebido por Peel e seus colaboradores rapidamente propagou-se pelo Ocidente e,
submetido a diversos ajustes, serviu de base para o primeiro departamento de policia americano - o
departamento de polícia de Nova York (Ver: Skolnick e Fyfe, 1993).
11
O valor atribuído à paz foi suficientemente forte para desautorizar todas as formas de violência
provocativa. Mas isto não significou a supressão dos mecanismos coercitivos do Estado. O emprego da
força provocada, por exemplo, continuou se mostrando útil, passando a ser utilizado de forma menos
29
poucos que governam e a maioria governada, entre as leis estabelecidas e suas formas de
definido como último, mas querido como “remoto” (Foucault, 1989). A importância dos
ilustrada pelo fato de que o "pontapé na porta", a “detenção para averiguação” começaram
onerosa e sob restrito controle. Note-se que a expectativa da paz e o seu enraizamento como uma nova ética
forçaram uma necessária dissociação entre as noções de violência (um ato de força desmedido, arbitrário,
ilegítimo e ilegal) e uso da força, sendo esta última a realização de um ato comedido, autorizado, consentido
e, por isso, entendido como positivo. A confusão, ou mesmo a busca de um plano de contiguidade entre
estas duas categorias, tem dificultado mais do que contribuído para o aperfeiçoamento dos expedientes de
controle, capacitação e treinamento das polícias no que se refere aos gradientes que envolvem o recurso à
força.
12
Apenas como uma ilustração do refinamento dos mecanismos coercitivos, cabe mencionar que em
períodos anteriores os impostos eram coletados por soldados armados e o exercício da conscrição consistia
na captura de indivíduos nas vilas e cidades por tropas armadas.
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de multas para os crimes mais leves. Assiste-se, então, aos esforços de difusão do
autoridade.13
de uma força comedida - uma agência de larga escala estruturada nos moldes das
autoridade pública na vida diária das pessoas e a redução dos custos da coerção oficial
para validar o pacto social firmado entre os cidadãos. A violência necessária para
compelir à obediência deveria estar circunscrita, ela mesma, à lei; e a própria lei limitada
13
Sir Robert Peel sabia que o seu empenho em conceber um novo artefato coercitivo - a polícia ostensiva -
não poderia estar dissociado de uma ampla reforma do sistema criminal em vigor, sob pena de sua criação
redundar em um retumbante fracasso. Neste sentido, ao mesmo tempo em que modelava a sua polícia, Peel
e seus colaboradores dedicavam-se também às tarefas de reestruturação do sistema penal inglês. (Ver:
Skolnick e Fyfe, 1993; Reiner, 1992; MacLaughlin e Muncie, 1996).
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e singular artefato coercitivo do mundo moderno. Cabe ressaltar que antes do advento dos
Grosso modo, tratava-se de arranjos comunitários de vigilância que iam desde o rodízio,
passando por uma infinidade de tipos de milícia, até a conexão, mais ou menos cotidiana,
grupos (“foi um filisteu que matou, um filisteu tem que morrer”), passando pela distinção
entre diferentes justiças e autoridades judiciárias (a comunidade pune até certo ponto, o
senhor um pouco mais e o soberano detém o poder de vida e morte), até a delegação da
etc.).
14
Não é demais ressaltar a existência anterior à criação das organizações policiais modernas de diversas
agências estatais com funções regulatórias e fiscalizadoras e, por sua vez, com efetivo “poder de polícia”.
Este é o caso dos órgãos de coleta de impostos, de controle alfandegário, etc.
32
Pode-se dizer que a criação da polícia moderna está intimamente associada à construção
dos espaços comuns e seus fluxos configuraram novas dinâmicas demográficas que vão
desde a utilização de espaços coletivos de lazer até o vaivém diuturno entre moradia e
emprego do combate para a sustentação da ordem contra oponentes civis em sua maioria
Do que foi exposto, pode-se facilmente concluir que a implantação das polícias
como vimos, até metade do século passado era quase que integralmente produzido e
controlado por atores e recursos privados. Eis, aqui, mais uma inovação derivada da
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histórico importante, cujo impacto parece ter sido notável no que concerne à garantia dos
Creio que a esta altura não causaria nenhuma surpresa afirmar que as organizações
policiais estão entre aquelas agências do Estado que mais se transformaram no curso de
que elas passaram por transformações sensíveis desde sua criação até os dias atuais (Ver:
as tecnologias por elas adotadas etc. Essas agudas alterações resultaram principalmente
críticas públicas.15 As polícias, desde sua criação, tornaram-se a face mais delicada do
Estado. Elas têm se apresentado como o lugar no qual se pode legitimar ou descredenciar
o valor atribuído à autoridade. Isto porque as agências policiais representam, por um lado,
(cf. Garotinho, Soares et alli; 1998); e por outro, o único meio de força legal, disponível
15
A ineficiência dos arranjos policiais mistos como a antiga guarda municipal, somada a queixas de
corrupção, brutalidade, insubordinação levaram à criação, em 10 de outubro de 1831, da nossa primeira
polícia profissional e de tempo integral: o Corpo de Guardas Municipais Permanentes; uma corporação
paramilitar, bem selecionada e bem paga, e subordinada ao ministro da Justiça. As Instruções de novembro
de 1831 são claras quanto à preocupação com excessos no uso da força: os “permanentes” deveriam cumprir
com o seu dever sem excluir ninguém, devendo ser "com todos prudentes, circunspectos, guardando aquela
civilidade e respeito devido aos direitos do cidadão" (ver: Holloway, 1997).
34
está sujeita a produção mesma de ordem pública, se fazem sentir nas organizações
mais diferenciadas clientelas. Tudo isso se resume em uma banal constatação: se a polícia
No que diz respeito ao dimensionamento de forças, seja das Forças Armadas da defesa
nacional, seja das polícias da ordem pública, o que está em jogo é uma percepção, ou
16
É interessante notar o significativo grau de convergência entre os policiais brasileiros e de outras polícias
quando se reportam à dificil arte de negociar com o papel de autoridade no cotidiano. De um modo geral,
suas falas ressaltam o fato de que os descaminhos das políticas públicas são refletidos na polícia que
funcionaria, segundo eles, como um “bode expiatório” para a desaprovação popular. Inúmeras vezes ouvi
policiais de várias PMs do Brasil mencionarem a seguinte máxima: “quando o governo falha, acaba
sobrando para a polícia. O povo desconta sua insatisfação com os policiais”. Para uma apreciação dos
depoimentos de diversos policiais ingleses sobre os temas relevantes à vida policial, ver Graef (1989).
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política (polity) contém determinados valores que instruem o que seja aceitável no que se
É preciso enfatizar que o tipo de Estado constituído, assim como o tipo de ordem pública
concebida (se construída por todos, se referida somente a certos grupos, se emanada ou
policiais e suas especificidades históricas são parte integrante dos processos políticos
através dos quais as conquistas civis ganham forma e redesenham o seu diálogo com o
ordenamento estatal.
ordinários entre policiais e cidadãos, em alguma esquina ou rua de nossa cidade, que os
interações dos “agente da lei” com a população que a arquitetura formal dos direitos e
realidade “de direito”, uma realidade “de fato”, um recurso estratégico disponível e
mobilizável pelos atores sociais. As polícias têm o seu campo de atuação exatamente
neste intervalo cujo espaço é o da construção mesma da cidadania - lugar de teste (ou da
36
prova de fogo) das categorias formais que emolduram os valores políticos e éticos de uma
sociedade.
Se isto procede, parece pouco producente buscar entender a natureza política das polícias
pela negação daquilo que constitui o estado de sua arte: um meio de força comedida que,
no curso dos eventos, busca dar conta de um dilema posto pela tradição liberal: mediar a
tensão entre “o que está na lei e se encontra no mundo” (o mundo da lei) e “o que se
encontra no mundo e não está na lei” (as leis do mundo). O desconhecimento de que os
os problemas, não por aquilo que eles são, mas por sua ausência, ou melhor, pelo que
neles faltaria ou deixaria a desejar. O que certamente impede uma visão mais consistente
Como será visto mais adiante, esse tipo de visão tende a ser enganadora principalmente
força e o emprego da violência nas ações cotidianas de polícia, quanto a pouca atenção
conferida à baixa visibilidade dessas ações, sobretudo nas interações ordinárias com os
cidadãos.
37
Maureen Cain, em seu artigo “Trends in the Sociology of Police Work” (1992: 3-32), faz
uma observação no mínimo curiosa. A autora afirma, com base em uma expressiva
revisão de trabalhos acadêmicos, que “os estudos de polícia revelam tanto o pior quanto
àqueles estudos que, segundo ela, teriam promovido “banalidades suaves” à condição de
pretendem estudar as polícias. Mas, desse inventário pode-se chamar à memória uma
observam, por vezes se deixam convencer ou mesmo se enganar pela realidade que
“empiria” que recortam é, também, o produto das expectativas do seu olhar no diálogo
De fato, certas realidades que recortamos como “objeto de pesquisa” são tão
próximas e presentes no nosso dia-a-dia que guardamos a forte impressão de que sabemos
muito sobre elas mesmo sem conhecê-las profundamente. Em alguns momentos, são
princípio, não há nada de errado com estas percepções. Como um ponto de partida, elas
17
O trabalho de revisão bibliográfica que consta neste artigo reporta-se a produção acadêmica internacional
dos últimos cinco anos anteriores à data de publicação.
38
forma, em contato com elas: através da idealização heróica e quase sempre romântica dos
seriados de TV, dos trillers de ação e dos folhetins policiais; nos noticiários sobre crimes
avenida da cidade. Os policiais militares fazem parte da paisagem urbana carioca como
tantas outras personagens menos identificáveis que eles. Trajados com seus uniformes e
entre os muitos atores que circulam pelo Rio de Janeiro. Nos encontros indesejáveis, nas
Egon Bittner, em seu clássico artigo “Florence Nightingale in Pursuit of Willie Sutton: A
Theory of the Police” (1990), ressalta que, dentre as instituições que integram as
modernas formas de governo, a polícia ocupa uma posição controvertida. Ela é a agência
sociedade estão, em algum grau, cientes de sua existência: somos capazes de solicitar ou
de regras que nos orientam sobre “como agir na presença de uma autoridade policial” etc.
de atuação das organizações policiais, via de regra, nos restringimos ao mais trivial dos
lugares comuns - “a polícia sustenta a lei e combate o crime” - o que, evidentemente, não
faz justiça à riqueza e a complexidade das nossas interações cotidianas com os meios de
Essa forma econômica e sucinta de atender às indagações “o que é a polícia? e para que
ela serve?” também se faz presente na fala dos policiais de ponta, sobretudo entre os
conformam a realidade das polícias em sua inserção na vida diária das pessoas,
realmente fazem ou estão fazendo à luz dessas imagens. Do mesmo modo, elas parecem
ocultar, mais do que indicar, o universo aberto e contingente das nossas expectativas em
No âmbito da produção científica também se pode notar que algumas formalizações sobre
historicamente uma tal força persuasiva que ainda hoje se apresentam como um de pano
de fundo obrigatório, uma espécie de senso comum acadêmico que serviria de base para
forma como as relações entre polícia e Estado têm sido tradicionalmente enquadradas.
Creio que é neste recorte que as críticas de Maureen Cain parecem mais consistentes.
40
Uma parte significativa dos estudos sobre as burocracias policiais modernas possui uma
pela ambição de ressuscitar uma “grande teoria” já conhecida de todos nós: no plano mais
que não pouparia esforços para impor sua hegemonia aos mais distintos domínios da vida
em comum. As polícias, assim como outras agências de controle existentes, fariam parte
Note-se que a polícia é apresentada como uma das muitas respostas instrumentais
concebidas para atender a um único e universal propósito: servir aos interesses dos
poderosos (onde quer que eles estejam) e “fazer o serviço sujo”, oprimindo aqueles que
deveriam permanecer alienados do valor do seu trabalho e dos meios de produção. Nesta
linha de entendimento, não parece fazer nenhum sentido estudar as polícias como uma
realidade em si mesma. Elas não teriam nada de essencial a revelar que não pudesse ser
18
O abstract deste artigo é suficiente para indicar o enfoque teórico do autor: “This paper begins with the
observation that the legal system in liberal democracies, despite its egalitarian ideals, is used as a recourse
in political conflict to mantain structures of dominance. It then draws attention to the theorical requirement
to identify the specific mechanisms that provide for this persistent and systematic institutional hypocrisy
[...]”.
19
A idéia de que as forças de defesa, a polícia e o sistema penal constituem instrumentos de violência do
Estado a serviço dos caprichos da classe capitalista é detalhamente denvolvida por Lenin (1995).
41
Em um mundo político tão mal intencionado, as iniciativas policiais - tanto aquelas ações
capitalista. Se as explicações sobre as polícias são buscadas fora delas, parece óbvia a
as aparências que mascaram as suas verdadeiras e originais intenções. Fica evidente que
circular, de uma intenção perversa que se faria sentir em todas as esferas da estrutura
processo histórico e de suas descontinuidades, uma vez que nesta proposta de organização
deixado contagiar, em parte, por uma leitura branda deste enfoque, principalmente os
época que impelia os pesquisadores a darem a sua contribuição para a luta contra o regime
20
As restrições aos problemas derivados da perspectiva marxista sobre os meios de força policiais e de outras
agências de controle não significa a adesão a uma espécie de liberalismo ingênuo que advoga um
determinismo de outra natureza: os conflitos de interesses se resolveriam pela mágica do livre mercado, do
mesmo modo que os instrumentos do Estado teriam suas imperfeições corrigidas no percurso evolutivo do
próprio ordenamento estatal.
42
força, e destes últimos com a população. 21 O problema central desses estudos era,
portanto, o mesmo: evidenciar que, por um lado, a imposição violenta do projeto burguês
- realizado por um Estado comprometido até a raiz com as classes proprietárias - forçava
incluindo desde a recusa a uma organização industrial do trabalho (ainda rudimentar) até
burguesia e a elite agrária brasileiras. Neste cenário, as posições políticas são retratadas
com uma tal ordem de rigidez que parece impossível vislumbrar, nas ruas, interações
alianças que não aquelas traçadas pelos donos do poder. Tudo se passa como se o mundo
21
Dentre os estudos históricos que se orientaram por esta perspectiva ver: Neder et alli (1981); Rodrigues et
alli (s/d).
22
Para uma crítica desta perspectiva ver: Bretas (1997).
43
das ruas dramatizasse, através da oposição polícia versus população, um roteiro já escrito
da luta de classes.23
Bretas (1997:32) observa que o tema polícia tem sido sistematicamente inserido como
“um apêndice à história das classes populares e do movimento operário, sobre o qual a
polícia estendia sua implacável repressão”. Talvez por isso, persiste o autor, a “sua
abordagem se faça apenas através de relatórios, regulamentos e leis que são produzidos
síntese, constata-se um recorte apenas formal e enviesado da instituição policial. São raros
os trabalhos históricos que têm se ocupado em tentar resgatar os aspectos cotidianos das
atividades de polícia, como as interações dos policiais e as pessoas nas tarefas rotineiras
de patrulhamento ou ainda nas contingências surgidas das ruas. Cabe aqui mencionar, por
filas nas fontes públicas de água no Rio de Janeiro, nos anos 30 do século XIX.24 De fato,
não é comum encontrar abordagens que façam aparecer os policiais como sujeitos de suas
ações ou que se mostram capazes de descrevê-los como atores que interpretam e decidem
23
É evidente que não se devem desconsiderar as evidências históricas exaustivamente exploradas de que
em vários momentos as organizações policiais - sobretudo os modelos pré-modernos - se mostraram úteis
como ferramentas dos Estados totalitários, ou como peças integrantes de estratégias autoritárias. Este é o
caso dos Estados Policiais à moda de França e das chamadas polícias secretas e polícias políticas que
exitiram no Brasil desde o advento das organizações policiais na Corte em 1808. (ver: Brodeur, 1992;
Holloway, 1997).
24
A Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, criada em 13 de maio de 1809 por D.João VI e adotada pela
PMERJ como a referência simbólica de sua fundação, foi extinta em julho de 1831 em virtude de um grave
motim ocorrido no mesmo período, do qual também participou o 26º Batalhão de Infantaria do Exército
regular. Em 10 de outubro do mesmo ano, foi criada uma outra organização policial militarizada - o Corpo
de Guardas Municipais Permanentes. Os “permanentes” receberam, em 1866, a designação formal de Corpo
Militar de Polícia da Corte; e com a Constituição republicana de 1891, foram transformados na Brigada de
Polícia da Capital Federal. A partir de 1919, a então Brigada passou a se chamar Polícia Militar. (ver:
Holloway, 1997; “Evolução Onomástica e Galeria dos Ex-Comandantes Gerais”, Arquivo Geral-
AjG/PMERJ, s/d).
44
visão singular sobre o seu lugar no mundo etc. Em suma, a polícia e os policiais aparecem
“apassivados” diante de um jogo do poder mais essencial que a eles só caberia executar.
Mas as críticas de Bretas à historiografia brasileira, no tocante aos estudos de polícia, vão
um pouco mais além. 25 O autor chama atenção para o modo como as fontes documentais
têm sido interpretadas quando comenta que os registros policiais, largamente utilizados
pelos pesquisadores, costumam ser trabalhados de uma forma que por vezes impede o seu
melhor aproveitamento. O ponto principal parece incidir sobre a falsa crença de que a
razão conspiratória burguesa (entidade não demonstrável) teria chegado até o nível da
outras palavras, estas análises estariam impedidas de fazer aparecer a história que não
resgatar a história oficiosa ou a realidade, de fato, “real”, tende a produzir uma camisa de
25
A discussão sobre os limites do enquadramento histórico tradicional é apresentada por outros
historiadores que se dedicam ao estudo da produção do espaço público, da cidadania e da urbanidade no
Rio de Janeiro. (Ver: Carvalho, 1985a; 1985b; Silva, 1988; Carvalho, 1987).
45
produziu.
libertar os ouvidos para escutar o que os dados têm a dizer sobre as múltiplas vozes que
ali se fazem presentes, sobre o modo mesmo como as identidades dos cidadãos e dos
policiais são construídas nas ocorrências notificadas. As clássicas fontes policiais, além
período, buscando construir em sua atividade cotidiana nas ruas o modo operativo que
iluminadas ou nefastas - definidas por grupos no poder, para tornar-se um dos atores,
construindo seu saber específico sobre como controlar o espaço urbano" (Idem).
26
É curioso observar que nesta maneira de tratar os eventos o pesquisador aparece como algo mais
importante que a própria realidade que investiga. Ele seria o principal ator do processo, aquele que em outro
tempo resgataria a verdadeira história fazendo justiça à “fala dos oprimidos”.
46
É, pois, bastante razoável afirmar que as interações do Estado e as polícias não tenham
sido somente marcadas pela comunhão de propósitos ou por uma identificação natural
costurada sempre por cima. Até porque isto supõe uma visão homogênea e substantiva
tanto da arquitetura estatal quanto dos meios de força policiais. E, mais grave ainda, oferta
moveria como um bloco sólido, uno e coeso, ausente de interesses divergentes entre os
cumprir de forma unilateral, isto é, sem negociações internas, sem barganhas e sem
mediações com o mundo externo, parecem não fazer muito sentido no mundo político do
de alianças tecidas entre as polícias e outros órgãos do governo, assim como os lobbies
políticos construídos por elas junto aos tomadores de decisão e a opinião pública,
forçaram uma abertura para novas indagações (ver Reiner, 1978). Os efeitos da
policiais e a sua capacidade de exercer pressão por mais recursos através da retórica
com a greve das polícias militares em junho de 1997.28 Como em uma espécie de efeito
espalhando por outros estados. Durante o período dos protestos, o país assistiu ao que
Estado. Os PMs das mais baixas patentes (soldados, cabos e sargentos) “promoveram a
27
Na gestão de Margareth Thatcher observou-se um expressivo aumento da ordem de 158% dos recursos
destinados às polícias sem que este esforço tivesse sido acompanhado da melhoria dos “índices de sucesso
polícial”. O descompasso entre os investimentos realizados e os benefícios produzidos, somado a outros
fatores, levaram o próprio partido conservador a rever as promessas de campanha calcadas no lema “law
and order”. As respostas às pressões policiais, por exemplo, vieram através de um conjunto de reformas
voltadas i) para o aperfeiçoamento dos expedientes internos e externos de controle do departamentos de
polícia e; ii) para a melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados. Esta nova política ficou
conhecida como “value of money”. Ver Morgan e Newburn (1997).
28
Nos anos anteriores, as Polícias Civis de alguns estados como Espírito Santo e Rio Grande do Sul
esboçaram uma paralisação dos seus serviços, promovendo protestos públicos e passeatas. Todavia, estas
manifestações não chegaram a produzir reações públicas de espanto e perplexidade como ocorreu no caso
da “greve das PMs”. Na época, alguns policiais militares comentaram, de forma jocosa, que “quando a
Polícia Civil faz greve, ninguém nota e ninguém sente falta”.
29
Na primeira semana de dezembro de 1998, os jornais noticiaram que os Policiais Militares do Espírito
Santo estavam “quartelados” em sinal de protesto contra o atraso de quatro meses de seus pagamentos.
48
coisa inusitada estava acontecendo: “os policiais apontaram suas armas contra o palácio
dia 25 de junho de 1997, o Jornal do Brasil publica a seguinte manchete “Minas chama o
Exército contra a PM - Rebelião da polícia por salário maior transforma Belo Horizonte
intransigente”. Nas conversas informais, muitos faziam apostas e “bolões” sobre quem
ganharia a batalha nas ruas (caso ela se concretizasse), as PMs “rebeladas” ou o Exército
“despreparado”?31
medida, o clássico paradoxo dos mecanismos de controle coletivo: “quem vigia e como
se vigiam os vigias?” O ponto central girava em torno dos riscos e dos danos que a
sustentação da governância democrática. 32 Para a discussão que, por ora, apresento cabe
30
O Editorial do Jornal do Brasil, intitulado “Confiança Quebrada”, publicado em 25/07/97, traz as seguintes
passagens: “A opinião pública nacional foi surpreendida, ontem, por mais um ato de insensatez
inadmissível. A Polícia Militar de Minas Gerais, tida como das mais ordeiras do país, tentou invadir o
Palácio da Liberdade, sede do Governo, em sua luta por melhores salários. Quando os agentes da lei, que
por definição constitucional devem ser agentes da ordem, deixam-se manipular politicamente a ponto de se
tornarem agentes da desordem, é sinal de que alguma coisa vai muito mal nos meandros da corporação. (...)
Uma corporação militar em que a hierarquia é quebrada por praças não oferece garantia de segurança à
sociedade. ”
31
Com a saída dos PMs das ruas, o agravamento da percepção coletiva e difusa de insegurança pôde ser
registrado pela longas coberturas televisivas. Em Recife, vimos as pessoas organizando-se em grupos de
amigos para retornarem às suas casas “em segurança” após o trabalho. Nos pontos de ônibus ou nos
deslocamentos pela cidade observou-se a conformação espontânea de grupos de vigilância ou de pequenas
milícias informais. Os saques e arrombamentos no comércio emprestavam um tom ainda mais dramático à
sensação coletiva de medo.
32
Ver Muniz e Proença Júnior (1997). Neste artigo procuramos identificar os problemas estruturais dos
arranjos atuais de segurança que teriam contribuído para o movimento grevista.
49
apenas ressaltar que a “revolta das praças” não constituiu um fato inédito na história de
nossas polícias. Esta não teria sido, portanto, a primeira vez que aqueles que deveriam
a crise institucional do Império que terminou com a dissolução da Guarda Real de Polícia
- a nossa primeira força policial ostensiva. A gota d’água para deflagrar o motim policial
regular, uma das unidades que deveria ser desativada em cumprimento ao decreto que
Com a extinção da Guarda Real, 33 22 anos após sua criação, uma das medidas
foi a criação, a toque de caixa, de uma força-tarefa do Exército regular constituída por
“oficiais de confiança”. Esta força se tornou conhecida por todos, entre outros nomes,
como Voluntários da Pátria; e tudo indica que ela tenha exercido atribuições de
1997:80-81).
Pode-se dizer que, desde essa época, a lealdade e a confiança esperadas dos meios de
que dele faziam parte logo perceberam que as alianças com as polícias recém-criadas não
ou melhor, buscar manter as rédeas sobre os homens a quem o Estado tinha entregue
Creio que se pode dizer que o paradoxo inerente ao indispensável controle sobre os meios
de força policiais (“vigiar quem vigia”) foi traduzido, no nosso caso, em uma espécie de
entre as autoridades constituídas e as polícias. Penso que data desta época a construção
do discurso de que “faltaria ordem e disciplina” à sociedade e aos próprios meios de força,
33
Os oficiais da Guarda Real de Polícia foram realocados nas unidades do Exército regular, e as praças
foram dispensadas, recebendo transporte gratuito para retornarem às suas províncias. (Holloway, 1997:81-
82).
51
população quanto das polícias que ela havia criado. A retórica conservadora de que seria
necessário disciplinar a vida social “(im)pondo ordem na casa”, ainda em moda nos dias
de hoje, pôs em evidência uma visão negativa dos conflitos e, por sua vez, uma leitura
também, na prática, sendo negociada e imposta. Este é um período marcado pela crise de
(1997), o próprio Estado poderia ser descrito, nesta época, como um “grande balão de
sistema policial na Corte teria sido, segundo o autor, conduzido na base das tentativas e
dos erros.35
34
No caso inglês, a polícia de Londres - paradigma das polícias ostensivas modernas - foi o último dos
blocos essenciais a ser colocado na estrutura do moderno governo executivo britânico. A conscrição militar;
a justiça, o sistema de coleta de impostos; o planejamento fiscal e econômico; os serviços sociais e
assistenciais e; um amplo conjunto de agências administrativas teriam antecedido a fundação da polícia por
várias gerações. (ver Bittner, 1990).
35
É importante notar que o nosso sistema policial antecedeu a adequação do sistema legal às demandas da
época. Tinha-se, de um lado, organizações policiais semiprofissionais instituídas, e de outro, a precariedade
do aparato jurídico-formal, ferramenta indispensável ao trabalho profissional e cotidiano de policiamento.
Tudo se passa como se nós tivéssemos invertido a ordem inglesa de fazer as coisas: primeiro criamos a
polícia e depois nos ocupamos de definir quando, como e onde ela deveria atuar. Roberto Kant de Lima
explora os efeitos perversos daí resultantes e seus impactos quando discute, na contemporaneidade
brasileira, os paradoxos da polícia e a perspectiva inquisitorial do sistema jurídico penal brasileiro. Ver
Lima (1995).
52
Não foram triviais os primeiros passos para o enraizamento da autoridade pública na vida
diária das pessoas. Esse empreendimento não poderia deixar de incluir também as elites.
desenhos de polícia que procuraram traduzir uma possível conciliação entre o arranjos
ao mesmo tempo, do fracasso das estruturas de vigilância financiadas somente por meios
particulares. 37
Se, hoje, após transcorridos quase 200 anos desde a criação das primeiras polícias no
Brasil, parte das críticas ao seu desempenho é creditada aos “conflitos de competência” e
36
Conforme adverte Holloway, “mais do que uma transição generalizada de mecanismos pessoais e
individualizados de controle para sistemas impessoais e padronizados, o que aconteceu no Brasil foi que as
duas hierarquias de poder - tradicional e privada, de um lado, e moderno e público, de outro, -
permaneceram complementares, fortalecendo-se mutuamente." Ver: Holloway (1997:116).
37
No Rio de Janeiro, a Guarda Nacional - uma resposta aos anseios das elites agrárias de respaldar o seu
poder local - amplia seu poder de polícia à medida em que se afasta da Corte, exercendo um papel mais
decisivo fora da capital. Ver Rodrigues et alli (s/d).
53
Nacional, o Exército regular38 etc., não se entendiam quanto ao exercício de suas tarefas,
demais. Nas ruas do Rio assistia-se não apenas aos conflitos entre a população e os meios
agentes da lei (Holloway, 1997). Conclui-se que, no dia-a-dia, a autoridade do Estado era
questionada nas ruas pela população e pelos policiais no desempenho das atividades de
patrulhamento. Ao que parece o governo tinha boas razões para não confiar plenamente
A origem social das praças também teria contribuído para a emergência de um olhar
38
Além dos distúrbios civis e das atividades de controle de multidões, era comum solicitar o Exército para
efetuar prisões e prestar atividades de patrulhamento convencional.
39
Na maioria das vezes as dramáticas disputas só eram resolvidas com a intermediação do ministro da
Justiça que, na época, exercia uma autoridade direta sobre as polícias. Ver Holloway (1997)
40
Mesmo nos seus primórdios, os nossos meios de força policiais realizavam, na prática, outras coisas além
do previsto ou delimitado pelo Ministério da Justiça. As atividades de ordem pública - em boa parte dos
casos a sua imposição - ultrapassavam os mecanismos de controle até então imaginados. As demandas,
esculpidas nas contigências do trabalho de rua, nem sempre eram passíveis de antecipação pelo Estado e
pelas autoridades policiais . Assim, desde o início, parece ter sido difícil para as nossos policiais
"cumprirem as ordens determinadas". Isto fica não só evidente nos casos de abuso de autoridade, na
arbitrariedade e violência contra certos segmentos da população, mas nos conflitos institucionais entre o
Estado e as polícias, e entre estas últimas, no tocante à interpretação e ao cumprimento de suas atribuições
cotidianas.
54
vencimentos às praças para poder garantir um melhor nível dos recrutas (Holloway,1997).
das praças foi sempre a mesma - reforçar ainda mais os expedientes de disciplinarização
necessidade cada vez maior de disciplinar os meios de força e de submetê-los a uma rígida
receoso de sua autoridade e das suas ferramentas de controle era a crescente militarização
universo de onde saíram e que deveriam passar a policiar. Mostrava-se pertinente aos
olhos das autoridades restringir as praças à sua vida na caserna. O argumento era claro: o
oportunidades de corrupção.41
41
O discurso da valorização da vida na caserna como um remédio eficaz contra a corrupção e a indisciplina
- elementos identificados como provenientes do excesso de liberdade presente no mundo civil - ainda hoje
faz eco em alguns setores da opinião pública e dentro das organizações policiais. Entretanto, nestas últimas
a sua utilidade tem sido sistematicamente questionada. Boa parte dos executivos de polícia tem advogado
uma perspectiva inversa - a da reaproximação da polícia com as suas comunidades, entendendo que o
“espírito de separação” seria, hoje, um forte obstáculo à modernização das polícias militares. Em suas
próprias palavras: “nosso grande fator de resistência interna é a cultura institucional que é apegada ao
militarismo”.
55
Municipais Permanentes (a atual Polícia Militar), e de lhe conferir uma identidade e uma
“tradição”. Foi durante os sete anos de seu comando que a Polícia Militar do Rio começou
a sedimentar uma alma corporativa e que suas praças passaram a ter uma vida
“nós contra eles” incutida na tropa em relação não apenas às agências rivais como a
reconhecimento do trabalho de Caxias junto à Polícia Militar veio quase ao final de sua
paramilitar para a polícia, profere o seguinte elogio: “[...] sendo a polícia uma das
primeiras colunas que sustentam a paz pública e a tranqüilidade dos povos, mal
conseguiriam o seu fim os corpos que delas se acham encarregados se a disciplina militar
lhe não der essa boa ordem, asseio e exatidão no serviço" (idem:147).
Não se pode deixar de comentar que as preocupações com a brutalidade policial ou com
42
O tenente coronel do Exército Luiz Alves de Lima e Silva comandou a Polícia Militar de 1832 a 1839,
período que corresponde à institucionalização da força policial como uma organização militar em corpo e
espírito. Ver documentação relativa à evolução onomástica e a Galeria de Ex-Comandantes Gerais da
PMERJ. Arquivo Geral/ AjG; PMERJ, s/d.
56
faziam em suas rondas contra as pessoas, e mais para o que esses agentes poderiam estar
operacional: a polícia deveria policiar a sociedade e ser policiada pelo Estado com
eficácia. Como bem salientou Holloway, não se pode afirmar que a utilização do modelo
este era o modelo organizacional disponível para as forças policiais no ocidente (Bittner,
43
Nota-se que desde essa época a tentativa de resposta à discricionariedade da ação de polícia tem sido
traduzida como um problema de disciplina e obediência, diagnóstico que certamente impediu uma saída
satisfatória para a questão. O incremento de expedientes de controle internos próprios do modelo militar
não possuem respostas definitivas para isso, persistindo o problema até hoje.
44
A dimensão operacional das atividades de polícia foi sendo desenhada no improviso deixando a impressão
de que as técnicas policiais estariam sendo construídas no curso das intervenções. Em verdade, as formas
de ação e os critérios que deveriam orientar a sua escolha consistiam em uma grande área cinzenta que
pouco distinguia os procedimentos corretos dos errados. Questões concretas do tipo “quem devo parar, por
que devo parar, como e quando devo deter, revistar ou interrogar” não teriam sido objeto de sistematização
e padronização. Certamente, essas limitações técnicas contribuíam para que o policial no cumprimento
zeloso do dever produzisse violência e brutalidade. Pode-se dizer que o exercício do emprego legal e
legítimo da força ficou restrito a observações genéricas que se reportavam apenas à necessidade de tratar a
todos com o devido respeito. Este parece ser um problema que persiste ainda em nosso presente. É voz
corrente entre os oficiais da PMERJ que a elaboração de expedientes, procedimentos e técnicas voltados
para o emprego profissional de força proporcional à ameaça oferecida ainda são génericos e insatisfatórios
para a realidade do trabalho de polícia. Ver Holloway (1997); Skolnick e Fyfe (1993); Kleinig (1996).
57
época: “(...) a desordem, rebeldia e indisciplina percebidas, bem como a falta de respeito
para com a autoridade por parte da população que ocupava as ruas e os lugares públicos
da cidade, faziam dessa força policial com características opostas a resposta mais
Todavia, a visão política da ordem pública que deveria ser produzida indicava que não
eram somente as praças da polícia militar que careciam de disciplina e boa conduta, mas
polícia era gasta na fiscalização da moralidade pública e, por sua vez, na imposição de
um comportamento tido como desejável para certas categorias de cidadãos, nos espaços
meios de força policiais teriam que reprimir (Holloway, 1997). A aplicação deste
legalismo moral, que não está muito distante do que ainda se pode observar nos tempos
tempo em que fazia aumentar o universo de risco e suspeição policial. No limite, todos
honradas pessoas de bem, poderiam ser virtualmente enquadrados como elementos com
comportamento suspeito. Parece não ter sido uma atividade muito tranqüila vagar pelas
45
Neste período era corrente a idéia de que os jovens rebeldes e idolentes das camadas populares deveriam
servir na polícia ou no Exécito para se tornarem cidadãos responsáveis. É neste contexto que aparece a
expressão “sentar praça” até hoje presente em nossa linguagem. Ver Holloway (1997).
58
De fato, observou-se aqui uma leitura particular da concepção ibérica de ordem pública.
induzir a população a uma certa visão de civilidade, ainda que a oferta desse horizonte
(1997), a Intendência de Polícia - que tal como a Guarda Real resultou de uma adaptação
do sistema policial português - foi implantada, em 1808, com amplas atribuições, muito
próximas daquelas conferidas aos alcaides e aos atuais prefeitos. Inúmeras eram as tarefas
No nosso caso, a visão ibérica de ordem pública estaria a serviço de uma cultura política
orientada pela suspeita. Sua adaptação aos interesses do governo executivo significou
46
O adendo da Constituição do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, relativo ao papel das Câmaras
Municipais reporta-se à amplitude das intituladas “Posturas Policiais”. Os diversos parágrafos do Artigo 66
discriminam o amplo espectro das referidas posturas. O parágrafo primeiro reporta-se aos seguintes
aspectos: “Alinhamento, limpeza, iluminação, e desempachamento de ruas, cais e praças, conservação e
reparos de muralhas feitas para a segurança dos edifícios e prisões públicas, calçadas, ponte, fontes,
aquedutos, chafarizes, poços, tanques e quaisquer outras construções em benefício comum dos habitantes,
ou para decoro e ornamento das povoações”.
47
Se na nossa origem buscava-se um monopólio interno da produção ordem em tudo análogo ao monopólio
da força pelo Estado, na prática, ao longo do tempo, as polícias passaram a conviver com uma variedade
de arranjos e instituições públicas e civis coprovedoras de ordem, tendendo a se tornar, no mundo
59
Estado, cabendo a ele tutorar a vida em comum informando como agir e de que modo se
comportar. 48
Creio que a indistinção, ou melhor, a confusão entre o monopólio legal e legítimo do uso
manifestações de repúdio e de revolta dos segmentos populares. Tudo isso foi, em boa
pelos historiadores. Se isto procede, parece-me razoável supor que as hostilidades entre
mundo político, não haveria lugar para uma visão suspeitosa por parte do Estado. Isto
democrático, uma instância articuladora e de salvaguarda do interesse público mais do que um agente
exclusivo e auto-suficiente.
48
Em uma concepção de ordem pública restritiva e imposta, as acusações de vadiagem, por exemplo,
convertiam-se em um recurso utilizado de forma recorrente pelas autoridades policiais quando precisavam
apresentar produção ou “mostrar serviço”. Diante da dificuldade de “formar a culpa” em atos criminosos
comuns, o enquadramento por vadiagem permitia tirar pessoas das ruas e “dar uma lição de moral”. Este
corretivo policial, corrente na vida do Império, se fez ainda presente até há bem pouco tempo. Não está
muito distante o período em que o cidadão desprovido da carteira de trabalho poderia ser acusado de
“vadiagem”, sendo “detido e conduzido à delegacia” pela autoridade policial.
60
precondição para o provimento de ordem pública. Produzir ordem pública, nestes termos,
É, por excelência, na vida democrática que se pode observar, por um lado, a sustentação
espectro da cidadania. Antes de ser uma realidade formal-legal, a ordem pública é algo
atual sistema policial teve o propósito de evidenciar que certos problemas colocados na
origem mesma das polícias ainda se fazem presentes como um desafio a ser enfrentado
nos tempos atuais. A visão militarizada das forças policiais ostensivas, por exemplo, ainda
“controle dos homens armados” que fiscalizam o cumprimento da lei no espaço urbano.
O argumento da sua tradição tem prevalecido nos debates, mesmo que não tenha sido
proposição de que “tem sido assim em todos os lugares de que se tem notícia” ou de que
“não dispomos de um outro modelo para lidar com os meios de força policiais” tem
Em suma, os diversos ajustes por que passou o sistema policial brasileiro mantiveram
como uma resposta ao real poder discricionário; a idéia de que ofertar segurança pública
equivale a uma gloriosa caçada dos inimigos da “boa ordem e da paz pública”; a
identificação das questões de ordem pública com aquelas relativas à soberania do Estado;
as solicitações para que o Exército atue nos assuntos de ordem pública, foram marcantes
em nosso passado e ainda têm sido, curiosamente, uma realidade na vida democrática
brasileira.
62
“O oficial de polícia precisa ter uma identidade própria. O nosso problema é que estamos em uma
encruzilhada entre coisa alguma e coisa nenhuma. Que tipo de profissional estamos formando com essa
vidinha de caserna? Isto nos serve? Nós precisamos formar um especialista em segurança pública”.
(Oficial com 25 anos de serviços prestados à PMERJ.)
“Nós vivemos uma crise de identidade. Nós, policiais, nos olhamos no espelho e não enxergamos a nossa
farda. Ainda vemos o fantasma verde-oliva ou o fantasma do bacharel em direito. Afinal, o que nós
queremos ser?”
(Oficial reformado com 35 anos de serviços prestados à PMERJ.)
os últimos três anos foram intensos e, sobretudo, muito enriquecedores no que concerne
e institucionais em todo o país. Uma parte expressiva desses eventos foi organizada pelas
para a interlocução com os atores externos. Outras iniciativas desta natureza contaram
Humanos, das Universidades e das ONGs locais. Estes fóruns apresentaram uma marca
corporações.49
Posso dizer que o meu desejo de tentar cumprir essa agenda de conferências e de dar
aeroporto, durante os vôos, no saguão do hotel ou nos grupos de discussão sempre surgia
um novo tema a ser debatido e, por conseguinte, uma nova proposta para uma próxima
palestra.50 A cortesia militar dos meus companheiros de seminário e o seu quase secreto
gosto pelo livre debate, em particular as “polêmicas criadas com a professora Jacqueline”,
renderam-me outras visitas às suas corporações. Creio que fomos, ao longo do tempo,
49
No período de dezembro de 1995 a maio de 1997, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e o
Movimento Viva Rio organizaram - com o apoio de distintos órgãos federais, estaduais e civis - uma série
de conferências intituladas “Segurança, Justiça e Cidadania” em todas as regiões do Brasil. Seu propósito
era levantar o acervo de experiências desenvolvidas em cada estado, produzir um diagnóstico diversificado
dos problemas atinentes à segurança e à justiça e ofertar um amplo conjunto de propostas e sugestões. Esse
projeto culminou em uma grande plenária nacional que reuniu 155 participantes provenientes de todas as
unidades federativas. As recomendações e iniciativas saídas dos grupos de trabalhos foram reunidas em
uma publicação do Programa Nacional de Direitos Humanos.
50
Nos anos de 1997 e 1998, realizei palestras nos cursos de formação e nos eventos extra-curriculares das
Polícias Militares do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Rio Grande do Sul, do Paraná, de
Pernambuco e do Distrito Federal.
51
Nas minhas intermináveis conversas com os policiais, eu passava uma boa parte do tempo sendo também
entrevistada e tentando, na medida do possível, saciar toda a sua curiosidade acerca do meu interesse em
estudar a polícia e, mais que isso, da minha disposição em partilhar do seu convívio. Responder à pergunta
“O que levou uma moça como a senhora a se interessar pela polícia militar?” tornou-se uma rotina nas
minhas atividades de campo. Ao final desses colóquios os policiais, insatisfeitos com as minhas explicações
de cunho acadêmico, sempre indagavam sobre a existência de uma motivação de foro pessoal que
justificasse a minha “ausência de preconceito contra os PMs”. Especulações sobre a “existência de policiais
em minha família ou no meu círculo mais íntimo de amigos” lhes parecia, à primeira vista, uma resposta
mais satisfatória porque capaz de melhor contextualizar a “minha preocupação com a dura vida do policial”.
64
bem verdade, por uma ampla lista de temas que incluía toda sorte de preocupações
Militar, sua tradição e o seus atuais desafios. Um tipo de incômodo recorrente que, quando
não era claramente explicitado, ainda assim se fazia ouvir através das reticências, de
Refiro-me à eminência, nem sempre parda, do Exército nos assuntos de polícia, isto é, ao
dessas agências para as atividades de segurança interna, isto é, para o combate aos virtuais
52
Ver Manual Básico da Escola Superior de Guerra (1988). Para uma apreciação das limitações e paradoxos
da Doutrina da Segurança Nacional confira Proença Junior e Diniz (1998:37-54).
65
em algum grau, sentidas como custosas e indigestas para a corporação policial militar.
democráticos, tem-se traduzido em um tardio e, por isso mesmo, exaustivo dever de casa.
sociedade civil organizada. Tudo se passa como se houvesse um acerto histórico de contas
Talvez resulte daí o receio inicial, e até um certo acuamento, experimentados pelos
oficiais de polícia quando são chamados a permanecer frente a frente com os seus mais
representantes civis tem sido ainda pontuada por uma estratégica cautela e pela
necessidade exegética de passar a limpo as suas diferenças, “encerrando (se possível para
os PMs) este capítulo, de uma vez por todas”. Em verdade, os momentos inaugurais das
reuniões entre os policiais das mais altas patentes e os cidadãos interessados nas questões
53
Por razões distintas, os administradores de outras polícias - em particular, as polícias inglesas e
americanas - também apresentariam um razoável grau de retraimento e resistência no que concerne à tarefa
de prestar contas de suas atividades através da mídia ou dos foruns públicos de discussão. Alguns autores
chegam mesmo a mencionar um certo “medo policial do mundo civil”. Para uma discussão sobre os
mecanismos de prestação de contas ver: McCormick e Visano (1992); Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997); Reiner (1992); Skolnick e Fyfe (1993); Bittner (1990).
66
catarse coletiva.54 Inúmeros têm sido os eventos institucionais que começam com uma
outro, contam seus mortos e feridos, informam suas demandas e seus pontos de vista e,
purgação de uma herança enunciada como “maldita” por uma parte expressiva do
população”.55
possuem menos de vinte anos de polícia. O episódio que se segue retrata de forma
com a forma pela qual teria sido por eles “tratado e enquadrado”. Disse-me que fora
54
Durante o ano de 1995, os pesquisadores do ISER encontravam-se realizando o trabalho de
monitoramento qualitativo e quantitativo da experiência de policiamento comunitário de Copacabana, no
Rio de Janeiro. Além das atividades de ronda com os “PMs comunitários”, nossa equipe acompanhava as
atividades dos Conselhos Comunitários de Área (CCA) através das suas reuniões. Para uma apreciação
detalhada da experiência e das demandas saídas das comunidades ver Musumeci (1996).
55
Ainda que pareça óbvio, não é trivial o reconhecimento do profissional de polícia como um servidor
público que realiza uma atividade essencial para a vida democrática. A imagem da polícia como um
aparelho repressivo a serviço do poder ainda está viva em nosso imaginário político. Para uma crítica desta
perspectiva ver: Muniz e Proença Junior (1997); Bretas (1997); Balestreri (1998).
67
“injustamente acusado de colaborar com a ditadura” pelo simples fato de “ter escolhido
ser policial e militar”. Face ao que considerou uma “provocação desnecessária”, meu
tinha motivos para não se orgulhar de sua farda” e que durante o regime militar ele, como
Exército] fizeram o serviço sujo e ficaram bem com a população. Quem se desgastou com
o povo foi a Polícia Militar. O Exército sempre soube fazer a sua propaganda”.
Do que foi exposto, pode-se observar que toda a energia consumida na tentativa de fazer
incessante à sua própria singularidade. Creio poder dizer que isto revela uma vontade
mesma de identidade que, como será apresentado um pouco mais adiante, teria sido, em
Ainda que, à primeira vista, esta caçada a um outro de si mesmo possa ser percebida como
um truísmo - já que parece evidente que “uma polícia é uma polícia” - considero que se
nem sempre visível aos olhos externos. Ela acena para uma tentativa de transformação
dos marcos estruturais que, durante um bom tempo, emprestaram um Norte à organização
e de tudo que esta conceituação traz em termos de doutrina, missão, mandato, saberes,
68
está sendo revisitada e, conseqüentemente, reinscrita pelos seus atores. Penso que o que
ambiciona passar em revista os seus próprios mitos, os seus próprios altares de adoração.56
externo de uma diferença que se quer explicitar consiste em um ardiloso caminho de mão
dupla, implicando, por sua vez, a conquista dessa mesma alteridade para dentro. A
meios de força policial e da defesa nacional, são percebidas e experimentadas tanto pelos
modo pelo qual estas percepções são vividas e enunciadas. Em outras palavras, o drama
identitário da PM é, de alguma forma, sentido e objetivado por todos os atores, ora através
dos conflitos intra-corporativos, ora através das cobranças e das insatisfações saídas do
mundo civil.
polícias militares e dos policiais militares” nos dias de hoje (Silva, 1990:179-191). Uma
56
Alguns oficiais de várias PMs, munidos de uma “visão crítica” de sua própria história, discutem não
apenas a utilidade de certos ritos do mundo da caserna, mas também se os patronos, os hinos e demais
símbolos de suas unidades operacionais expressariam, de fato, a autenticidade histórica da corporação, ou
melhor, representariam de forma adequada a sua missão policial de “ proteger e servir”.
69
O primeiro ponto a ser considerado é que desde a Carta Constitucional de 1934 compete
militares” (Constituição Federal, § XXI, art. 22, 1988). Se a competência da União para
interferir nas questões estruturais relacionadas às PMs permaneceu até hoje basicamente
capítulo dedicado às questões “Da Segurança Nacional”. Neste artigo é definido o papel
das PMs que, como “reservas do Exército”, passam a gozar “das mesmas vantagens a este
legislação especial que determinou que as polícias militares - polícias urbanas - deveriam
A subordinação das PMs à força combatente é reforçada com a Carta de 1946. No referido
texto constitucional a missão das PMs e o seu emprego são estabelecidos na seção voltada
pública, segurança pública, segurança interna e defesa nacional está anunciada não apenas
70
pelo lugar no qual esta relação é definida, mas principalmente pelo conteúdo do Artigo
Cabem aqui alguns rápidos comentários. Observe-se que não aparece um qualificativo
para a “ordem” que deve ser “mantida” pelas PMs. Tudo parece indicar que não se tratava
pela sociedade. Mas, inversamente, de uma ordem proveniente do Estado. Outra novidade
trazida com o artigo 183, é a definição das PMs como “forças auxiliares” além da
polícias militares deixa entrever que todos os seus recursos deveriam atender, a um só
57
No final de 1998 realizei uma visita técnica de uma semana à Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Meu
propósito era, por solicitação da Fundação Ford, conhecer de perto as inovações organizacionais realizadas
por essa corporação nos últimos três anos. Em vários momentos de minhas conversas pude detectar o
questionamento de distintos oficiais sobre o sentido e a extensão do qualificativo “força auxiliar” mantida
pela atual constituição. De forma crítica, indagavam: “Nós temos que prestar auxílio em quais atividades?
Não está claro em quais missões e tarefas do Exército caberia à Polícia Militar auxiliar. O que estamos
fazendo no dia-a-dia que atende a essa exigência constitucional?”
58
A idéia de prontidão militar só faz sentido quando a destinação do meio de força é o combate. Ela se
aplica, portanto, às Forças Armadas que poderiam ser definidas como armas combinadas para abalar a
coesão do inimigo e destruir idealmente a sua vontade de lutar, sempre através do máximo emprego de
violência. Pode-se identificar quatro níveis de prontidão distintos da realidade do combate:
Prontidão estrutural - Corresponde à existência das estruturas humana e material - tipicamente
identificadas com a presença de oficiais e de uma percentagem de pessoal e equipamentos de linha - que,
pela simples adição de tropa e equipamento, permite iniciar o ciclo de preparo de prontidão operacional. A
prontidão estrutural pode ser compreendida como uma forma de economia em tempos de paz, uma vez que
permite manter o pessoal qualificado - recurso mais difícil de se obter.
Prontidão mobilizacional - Corresponde à existência de estruturas e planejamentos capazes de
orientar o correto dimensionamento e provisionamento de pessoas e coisas de tal forma a compor unidades
operacionalmente prontas. A prontidão mobilizacional seria mais um esforço de planejamento e
autoconhecimento do que, necessariamente, um plano específico.
71
las (Silva, 1990). Relata ainda o autor, que a missão de “manter a ordem” estava tão-
nos casos mais extremados de distúrbios civis (Idem). Pode-se dizer que até o final de
como as polícias civis, as guardas de vigilância, as guardas civis etc. (Idem). Conforme
que esta inversão estivesse sinalizando uma recondução gradativa das PMs às suas
mesmo decreto, o governo militar cria a Inspetoria Geral das Polícias Militares - IGPM,
Público, mais ainda para obstar às damnosas especulações do Contrabando, que nenhuma outra
Providência, nem as mais rigorosas Leis prohibitivas tem podido cohibir: Sou Servido Crear huma Divisão
Militar da Guarda Real da Policia desta Corte, com a possivel semelhança daquella, que com tão
reconhecidas vantagens Estabeleci em Lisboa, a qual se organizará na conformidade do Plano, que com
este baixa, assignado pelo Conde de Linhares, do Meu Conselho de Estado, Ministro, e Secretario de Estado
dos Negocios Estrangeiros, e da Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido, e o faça
executar na parte, que lhe toca. Palacio do Rio de Janeiro em treze de Maio de mil oitocentos e nove.”
(Arquivo Geral - AjG/PMERJ).
73
O reforço da subordinação das polícias militares ao Exército, além de criar uma agência
de controle direto das suas atividades enquanto uma força paramilitar, incluía ainda a
que os integrantes das PMs não poderiam, em nenhuma hipótese, receber vencimentos
correspondentes.60
perturbador. Note-se que em 190 anos de existência, a atual Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro foi durante quase 160 anos comandada por um oficial de alta patente do
Exército regular. 61 O quadro abaixo é bastante elucidativo dos longos períodos em que
60
Esta proibição é mantida pela carta constitucional de 17 de outubro de 1969.
61
Para uma crítica da identificação dos problemas de ordem pública com os assuntos de segurança interna,
e do processo de “remilitarização da segurança pública” na era democrática ver Cerqueira (1996); Silva
(1996).
74
É interessante também observar que, somente após 23 anos, com a carta constitucional
missão das polícias militares. Ainda instituídas para a “manutenção” de uma ordem agora
ações paramilitares. Conforme evidencia o artigo 25, do Decreto no. 66.862, de 8 de julho
Comandos Militares de Áreas, nas respectivas áreas de jurisdição”. Se, por um lado, as
PMs deixaram de ser, a partir de 1969, a primeira linha de frente no combate aos
“inimigos internos”, por outro, elas deveriam fazer o trabalho publicamente invisível de
segurança interna ainda se fariam sentir por mais algum tempo, evidenciando uma certa
62
O ingresso das PMs nos sistema de informações e contra-informações do Exército motivou o inchaço do
seu “serviço reservado” - a PM/2, que passou a se ocupar menos com as tarefas internas de sindicância e
de investigação criminal e mais com a produção de informações voltadas para a segurança interna. Confira
Silva (1990:179-191).
75
Pode-se dizer que resulta deste período o atual desenho do sistema policial brasileiro, com
propriamente civis de polícia. Pela primeira vez, as questões policiais são tratadas, no
artigo 144 define o que deve ser entendido por “segurança pública”, circunscrevendo as
permaneceram, desde 1934, como “forças auxiliares e reservas do Exército”, elas também
Federal e dos Territórios”. Ainda que somente referidas ao Poder Executivo, 63 constata-
63
Em outros países, por exemplo os EUA, as diversas polícias estão subordinadas ao poder executivo (local,
estadual ou federal), mas sob estrito controle da justiça. Ver Bittner (1990); Walker (1993); Ohlin e
Remington (1993).
76
Nesta nova concepção, a ordem pública deixa de ser “mantida” para ser “preservada” por
todos, com a ação executiva e continuada das PMs ou “polícias ostensivas”. Fica evidente
mudanças nas realidades do mundo. A polícia militar foi devolvida, somente nos últimos
trinta anos, à sua condição de polícia propriamente dita, com plenas tarefas ostensivas,
complexo que a realidade mapeada no início do século. Era preciso, portanto, aprender
de novo a “fazer polícia”; era inadiável “voltar a ser Polícia de verdade”. A retomada de
sua identidade policial, isto é, a reconstrução do seu lugar e de sua forma de estar no
As questões e os desafios da ordem urbana social eram outras;64 também eram outros os
64
Para uma discussão sobre a problemática da criminalidade e da violência contemporânea ver Soares et
alli (1996); Garotinho, Soares et alli (1998); Rico e Salas (1992); Pinheiro (1997); Caldeira (1997); Paixão
e Beato (1997).
77
consolidação da vida democrática também se fez sentir na PM, que até os dias de hoje
Silva (1990) chama atenção para o fato de que a Doutrina da Segurança Nacional - morta
pela pena da lei - teria deixado, no presente, as suas marcas no que concerne à instrução
e ensino das polícias militares. “Na Escola Superior de Polícia Militar (ESPM) do Rio de
Janeiro, por exemplo, até o ano de 1984, os assuntos policiais comuns eram tratados na
disciplina Segurança Interna II, sendo a cadeira Segurança Interna I destinada à segurança
quadros policiais militares tem consistido em uma variável importante, não apenas para
a afirmação corporativa de uma “identidade policial”, mas também para a prestação eficaz
65
Por exemplo, os sistema de telecomunicações voltado para o controle e despacho de viaturas - o GPS,
uma ferramenta trivial de polícia ostensiva - foi implantado recentemente e ainda necessita, segundo os
oficiais e técnicos responsáveis, ser aperfeiçoado e expandido para toda a região metropolitana do Rio de
Janeiro.
78
tarefa -, o atual horizonte de polícia requer uma ênfase dirigida para o desenvolvimento
nas habilidades do police officer já havia sido anunciada por Sir Robert Peel. Não se pode
esquecer que a individualização das decisões e ações policiais fazia parte da matriz
londrina de polícia.
Este não é um desafio trivial. As discussões acerca da reformulação dos currículos, dos
formação policial, ocupa uma parte expressiva da atenção dos reformadores de polícia.
Tal como vem ocorrendo na Brigada Militar do Rio Grande do Sul, outras PMs têm
melhor qualidade. 67
perspectiva criminal do direito. É evidente que, no seu cotidiano, as polícias passam uma
públicos, juízes e demais operadores do mundo jurídico formal. É fato que elas gastam
66
Cabe salientar que faz parte dessa realidade uma dose substantiva de imprevisibilidade. Não há como se
ter certeza prévia do curso de ação mais adequado - em particular, se haverá mesmo a necessidade do
emprego da força ou simplesmente de sua ameaça.
67
Acerca do projeto de modernização da Brigada Militar confira Luz (1998).
79
instrumentalidade do direito penal para certas questões de polícia não devem ser
tão necessário quanto tantos outros no dia-a-dia de um PM. O conhecimento, ainda que
qualificado, das firulas jurídicas penais (incluindo aí as formas de processamento das leis
criminais) não é suficiente para informar o perfil desejável de um patrulheiro que atua em
todo tipo de problemas, conflitos e desordens - os quais, ou não possuem, em sua maioria,
penais parece ser pouco relevante para orientar um PM a escolher, com rapidez e
os policiais a adotarem uma estratégia de ação ou a decidirem qual recurso tático é mais
adequado às circunstâncias em que se está atuando. Por outro lado, como a polícia
querela de vizinhos, a aplicação estrito senso dos expedientes penais pouco pode auxiliar
ostensiva atua - , o ensino do Direito Penal nas Academias da Polícia Militar tornou-se
uma tradição nas duas últimas décadas. As disciplinas da área jurídica passaram a ocupar
uma parte tão expressiva da formação policial que os oficiais PMs saem habilitados a
concluírem o bacharelado em Direito em, no máximo, dois anos. Além de não recobrir o
policial voltada, quase que exclusivamente, para as ciências jurídicas, parece ter
de polícia são, na maior parte dos casos, irreparáveis. Diferente dos usuais operadores do
sistema criminal, os policiais ostensivos estão nas ruas interagindo de forma descontínua
excessivamente penal - quase sempre revestido de uma atraente aparência legalista - eles
Como em uma espécie de profecia que se autocumpre, esses policiais, no afã de buscar
limite da vida social - ela mesma passando a ser, paradoxalmente, identificada como
“suspeita” e “ilegal”.
81
resultante da criação do novo Estado do Rio de Janeiro não foi algo banal em termos dos
impactos internos provocados. Até hoje a PM do Rio sente os efeitos da fusão. Ainda
profissional. São muitos os policiais de igual patente e com o mesmo tempo de serviço,
e rotinas diversos em uma outra realidade organizacional não foi, e nem poderia ser,
tradicionalmente adotadas nas pequenas e médias cidades ou nas áreas rurais cobertas
e políticas de policiamento.
84
Pode-se dizer que a PM carioca, a partir de 1975, passou a enfrentar dois grandes desafios:
exercício dos serviços policiais propriamente ditos. Para alguns policiais da “antiga
geração”, a PM do Rio teria sofrido uma diversificação e uma ampliação do seu universo
territorial de cobertura, sem que esse crescimento tivesse sido, contudo, acompanhado
razoável dose de comicidade, “o lado bom da fusão das PMs”. Na sua versão bem
humorada, o único ponto que teria sido objeto de consenso dentro das forças teria sido a
Para o meu confidente, os PMs fluminenses se sentiam “diminuídos” com a sua antiga
farda. “Feia e sem prestígio”, a cor caqui do seu fardamento - que “parecia que estava
sempre suja e com poeira” - era facilmente confundida, na época, com os uniformes dos
identificadas como indispensáveis pois, afinal, “os PMs são ostensivos, porque gostam
de aparecer”.
85
Dos distintos aspectos relacionados à crise identitária enfrentada pela PMERJ, cabe
policiamento. É voz corrente que “polícia não se improvisa”. Neste sentido, parece
prestados.
86
Ele é um policial militar! São muitos os significados passíveis de serem extraídos de uma
mais óbvia e que atende à exigência cognitiva de produzir e seguir emprestando algum
sentido às nossas interações sociais é aquela que aponta para a apreensão de uma
diferença - qualquer uma - que teria sido rapidamente percebida. Que anuncia, de forma
também imaginada como outra, sobretudo quando comparada, à primeira vista, com a
qualquer dinâmica interativa, toda pista ou qualquer traço que capture as singularidades
identificadas nesse “outro” visto como “diferente” adquire uma importância estratégica:
que se colam aos atores com os quais interagimos, podem se mostrar rentáveis ao
Se contrastados com os cidadãos comuns, os policiais militares não são nem tão exóticos
assim e nem tão desapercebidos. Talvez, ao seu modo, eles sejam diversos e se queiram
PMs anunciam a seguinte advertência para os “civis” que os observam, solicitam o seus
serviços e os vigiam: “não somos ETs, também saímos dessa sociedade que está aí”. Mas
imprime marcas simbólicas que são visíveis ao primeiro olhar, que se mostram evidentes
palavra, na forma de ingressar socialmente nos lugares, no jeito mesmo de interagir com
as pessoas etc. Creio que mesmo uma pessoa desinteressada e distante do universo dos
seu comportamento.
68
A forma econômica, quase cifrada da fala policial é comumente caricaturada nos programas
humorísticos. Neles sempre aparece um PM confinado às falas “positivo e operante” ou “negativo
operante”.
88
estrutura verticalizada das patentes. De certa maneira, a palavra costuma ser acionada
respostas, seja na interação com os oficiais superiores, seja no contato com o cidadão.
mascaramento da premência dos fatos, uma espécie de fuga planejada de algo mais
negativo; uma forma capciosa de engano ou de falseamento do real, cujo propósito seria
urgentes e necessárias.
De fato, o falar, sobretudo o falar questionador e propositivo, “não é o forte” dos policiais
militares, que preferem se orgulhar de serem talhados para “agir”, cumprindo com
assimilado como uma missão com um razoável teor de risco, objeto mesmo de
associadas a uma visão pejorativa do ardiloso mundo da política, a palavra e a sua livre
ou ao intolerável “prometer e não fazer nada”. Talvez por isso o bom uso da oratória no
89
meio policial militar traga embutido uma ênfase eminentemente pragmática e funcional.
cidadãos prestigiados pela força - é apresentado para o mundo externo como uma das
Somam-se a essa negociação peculiar com a palavra os inúmeros sinais emitidos pela
ereta, fazendo sempre um invejável ângulo de 90o com a base; a gesticulação econômica
e precisa evidenciam, entre outras coisas, o apego afetivo e moral à similitude estética.
Anunciam que toda essa teatralidade retrata o amor aprendido pela disciplina - valor em
boa medida reiterado no corpo por uma espécie de obsessão pela correção postural. 70 A
ser notada na aversão ao desleixo e o incômodo sentido em relação às coisas que estariam
69
A experimentação da vida aquartelada na polícia põe em tela inúmeras características que têm sua raiz nas
tradições militares estrito senso. A cortesia e a etiqueta militares adotadas pela PM orientam-se pelo
“Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas ”. Para uma abordagem
do universo cultural das Forças Armadas ver: Castro (1994).
70
A literatura antropológica descreve, com muita propriedade, os modos mais diversos pelos quais os
grupos sociais e distintas culturas têm utilizado o corpo como uma matéria-prima privilegiada para
inscrever as suas marcas. Em relação ao lugar do corpo na construção identitária de grupos urbanos ver:
Rodrigues (1980); Perlongher (1987); Caiafa (1985); Silva (1993).
90
fora do prumo ou do seu devido lugar. Os sapatos bem engraxados, a vestimenta sem
conferir atenção ao modo pelo qual se deve apresentar e divulgar a imagem da PMERJ. 71
É evidente que todo esse cuidado ritual com a aparência individual é algo aprendido e
reforçado durante os anos que os policiais militares passam na Academia de Polícia. Além
das horas gastas diariamente com as atividades relativas ao aprendizado da “ordem unida”
- que visa a condicionar os cadetes a agirem e a se pensarem como uma fração de tropa
a imagem institucional está, por excelência, voltado para produzir interna e externamente
uma visão virtuosa e austera da organização policial militar. Neste sentido, é importante
frisar, qualquer tarefa atribuída (desde uma atividade propriamente policial até as tarefas
cerimoniais da etiqueta militar), deve sempre ser executada com o máximo de capricho e
71
Conta um oficial PM, hoje reformado, que quando era recruta teria sido submetido ao chamado “teste do
algodão” - uma prática pedagógica oriunda do Exército brasileiro. Por ocasião da revista matinal da tropa,
o oficial instrutor costumava escolher algum praça e, na frente dos demais, passava um pedaço de algodão
em seu rosto para checar se a barba estava bem feita. Caso as fibras do algodão ficassem retidas na face, o
recruta era imediatamente retirado para executar de forma exemplar o seu asseio pessoal.
91
Toda vez que me encontro diante de um oficial da PM, imediatamente vem à minha mente
a seguinte questão: como eles conseguem, após um dia inteiro de trabalho, aparentar ter
acabado de sair do banho? Até bem pouco tempo, essa minha despretensiosa impressão
estava somente dirigida aos padres e pastores. Penso que os policiais militares buscam
policial ostensivo. De algum modo, isto operaria com uma espécie de contraponto
cerimonial. Seu visual, principalmente quando fardados, estaria, fazendo uso do próprio
jargão policial, sempre “pronto” para ser passado “em revista” pelo Comando e pela
sociedade.
Certa ocasião, fui convidada para realizar a minha primeira palestra no curso de formação
planejado e combinado. Apesar do meu interesse infantil de fazer uma ronda em um carro
cinematográficas que estão sempre sob condições totais de controle, fui informada de que
“para não causar constrangimentos na vizinhança” e à minha própria pessoa, uma viatura
“descaracterizada" viria me buscar para conduzir-me até a Academia D. João VI, situada
horário combinado. Durante o percurso fui conversando sobre o dia-a-dia da polícia com
os policiais encarregados da missão de conduzir-me até a escola. Logo que entrei nas suas
instalações - amplas, modestas e muito bem cuidadas - fui recepcionada por outros
honras militares destinadas a todos os visitantes. Eu ainda tinha alguns minutos antes de
interno e coberto, fui vaidosamente atraída por um grande espelho cujas proporções
capturavam minha imagem de corpo inteiro. Não resisti a uma parada estratégica para
checar como estava o meu visual, dando uma última arrumação no cabelo e na vestimenta.
Entretida na minha breve sessão de futilidade, notei que acima da base superior do espelho
encontrava-se escrito na parede a seguinte frase: "Esse espelho reflete você e você a
PMERJ". Imediatamente comentei com um dos meus cicerones, em tom jocoso: “Ah!
não são só as meninas que gostam de espelho!” Ao que fui imediatamente esclarecida por
escola passam obrigatoriamente por aqui. Antes de iniciar suas atividades eles corrigem
a postura, checam o fardamento e vêem se está tudo no lugar”. Informou-me, ainda, que
malandro, porque quer imitar o jeitão de bandido. Ele pode até ser honesto, mas fica
do cidadão".
93
Como se pode notar, o ethos policial militar apresenta-se a tal ponto internalizado que as
suas manifestações soam como algo extremamente normal, natural e corriqueiro para um
integrante da força. Por outro lado, ele evidencia - pelo caráter exagerado e ostensivo de
sua ritualização, sobretudo quando observado de fora da vida intramuros - que se trata de
que se recebe, que se preserva e que, fundamentalmente, deve permanecer sendo um bem
do universo civil. Pode-se dizer que “a conduta esperada do policial militar” consiste em
exibir a honra e a distinção não apenas para o mundo externo mas, principalmente, para
dentro da própria PM. O zelo por uma conduta militar querida como “exemplar” e o
contraste entre os policiais militares. São acionados como uma importante referência
movimentos. Talvez se possa dizer que as brechas para alguma individualização brotem
94
da paixão mesma pela similitude. A constante e obrigatória busca do ideal de uma conduta
praça”.72
Fica evidente que a formação e a doutrina militares forjam elementos valorativos comuns
(a força terrestre da defesa nacional). A chamada tradição militar, ancorada nos princípios
está dirigida, por excelência, para o mundo da ação, os meios de força desenvolvem
rapidez, os seus recursos humanos e materiais para ofertar respostas imediatas aos
continuada, em cenários de crise é - por ora - suficiente para indicar a existência de uma
72
São inúmeras as referências sociológicas acerca do impacto exercido pelas "Instituições Totais" sobre a
construção do lugar do indivíduo e as possibililidades negociadas de individualização, ver: Mauss, 1974 e
1981.
95
própria para conviver com o perigo e com o risco e para administrar, individual e
profissional em torno daqueles atores que, como narra a Canção do Policial Militar,
fizeram o juramento de “na luta contra o mal”, “enfrentar a morte, [e] mostrar-se um
afetivo propositado.73 Oficiais e praças são unânimes em dizer que “a polícia é um tipo
de profissão que você não pode chegar em casa contando tudo que fez no seu dia de
com o perigo ou a sua ameaça e, por outro, a inserção regular em ambientes desenhados
pelo acaso e por um alto teor de incerteza (afinal, um tranqüilo atendimento assistencial
73
Mesmo naquelas polícias que não adotaram integralmente o clássico modelo militar, optando por uma
estrutura mais flexível e descentralizada observa-se uma expressiva valorização do espírito de corpo. Ver
Bittner (1990); Skolnick e Fyfe (1993); Reiner (1992).
96
seus pares, particularmente daqueles que fazem parte de uma mesma guarnição. Esses
a tensão expressa, ora no tédio da espera por um episódio inesperado ou violento em uma
ronda que, até então, seguia monótona e previsível, ora no estresse de experimentar, de
cidadãos. Pode-se dizer que uma das coisas que governam o centro da ação de polícia é a
idéia latente de que “um de nós” pode estar correndo perigo em serviço e que o “nosso
nas ruas. Sua força corporativa cresce na proporção da iminência do risco ou de sua
trabalho de polícia, passando pela defesa inconteste da PMERJ frente às críticas externas,
até as pressões classistas; no plano interno, ele se faz presente, sobretudo, como um
tropa transforma-se em uma fração pronta para encarar os desafios da profissão policial
quando, repetida vezes, ela é aprovada no teste da união. Diante da suspeita de que alguma
praça teria cometido uma indisciplina dentro da escola, e frente à advertência de que todo
o grupo será indistintamente punido, espera-se que a tropa comporte-se como “tropa”
97
expressando a sua unidade de grupo pelo silêncio ante o interrogatório, e que o próprio
Além da atividade policial, outras profissões que, de uma maneira distinta, relacionam-se
com as questões relativas à vida e à morte, como a medicina, o sacerdócio etc., são
também revestidas de uma roupagem mística e despertam uma razoável dose de mistério
constituição de trajetórias que guardam a pretensão de lidar, de forma mais intensa, com
grau, estruturada por uma gramática que cobra dos seus inscritos um tipo de adesão total,
que reivindica dos seus sujeitos uma vinculação social substantiva e totalizante (cf. Mauss
1974 e 1981). Isto pode ser observado no exercício disciplinado da abnegação e da entrega
um passaporte necessário para a realização de uma causa nobre, etc. Muitos policiais
militares quando se reportam à sua vocação, à sua escolha profissional - em verdade, uma
“proteger e servir”, fazem uso de uma estrutura de narrativa muito próxima dos
pelos indivíduos, devem ser encenados nos espaços mais distintos de sociabilidade dos
conversos, até mesmo nas esferas mais triviais do mundo social, como uma festa de
parece ser preciso se manter vigilante, em uma espécie de estado existencial de prontidão,
jamais perdendo de vista o comprometimento de sempre “honrar a farda” “em cada ação
realizada”, “em cada ideal alcançado”, em suma, “em cada exemplo deixado”.
A construção dessa nova identidade, cujo momento zero é ritualizado, por exemplo, no
sociais para além dos muros seguros dos quartéis. Fazendo uso de um jargão
vivenciados por certas trajetórias religiosas, a carreira policial militar parece reforçar a
vivenciam a sua transição através de uma total imersão no novo mundo oferecido. Os
uma maneira mais intensa, a elaboração do self policial militar - aquele que,
fardo de sustentar as tradições policiais militares recai, por excelência, sobre o oficialato
período de formação escolar: eles são adestrados para intervir nos conflitos sociais, e
paradoxalmente, não são educados para compreender que esses mesmos conflitos
74
Em várias polícias militares, os candidatos a cadetes chegaram a ingressar nas Academias com dezesseis
anos de idade. Este é o caso, por exemplo, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul que há pelo menos
vinte anos aceitava cadetes adolescentes. Conforme foi-me explicado, esses garotos completavam os
estudos de segundo grau na própria Academia, tornando-se aspirantes muito jovens.
100
estruturação positiva da vida em sociedade. Busca-se, como vimos, ainda que idealmente,
jocoso provérbio "na PM nada se cria e tudo se copia": uma clara alusão à adoção integral
organização.
construção identitária dos policiais, enfatizam que o ingresso na carreira policial significa
muito mais do que a simples aquisição de uma identidade profissional ou a adesão a uma
para os postulantes como um estilo de vida, uma forma mesma de se pôr no mundo (
Skolnick, 1994; Chan, 1997, Muir Jr, 1977). Cabe salientar que as exigências
75
Na International Police Review, maio/junho de 1998, foi publicada uma matéria sobre o crescimento das
taxas de suicídio nas polícias americanas, em particular a Polícia de New York. Segundo a reportagem,
construída a partir da pesquisa realizada pela Columbia University, entre 1992 e 1994 o suicídio
correspondeu a 37,0% das mortes de policiais superando os índices de homicídio. Dentre as características
que informam o perfil do polícial com propensões suicídas destacam-se o sexo e a idade. A grande maioria
é do sexo masculino, possui acima de cinquenta anos e já se encontra aponsentada ou próxima de concluir
101
O mesmo se pode constatar em nossas polícias, principalmente nas polícias militares, que
são extremamente zelosas e apaixonadas pela sua tradição. Se a carreira policial militar é
ofertada aos seus inscritos como uma forma privilegiada de inserção no mundo, então
parece fazer todo o sentido anunciar a esse mundo que “ser policial é sobretudo uma razão
outras coisas, a conduta social desejada para a “família policial militar”: um PM deve
sempre se comportar como um espelho da PMERJ, zelando pelo “bom nome da classe”,
quando abre um crediário, quando escolhe os seus locais de lazer, quando faz amigos,
querela interpessoal, quando se relaciona com seus familiares etc. 76 Note-se que o
cumprimento da disciplina policial militar nos mais diversos níveis de interação social e,
mesmo na inatividade, exige uma tal ordem de fidelidade à corporação que acaba por
possibilitar o seu efeito inverso: parece quase impossível para um integrante da força
conduzir a sua vida privada e social ao seu próprio modo sem, no limite, romper alguma
a crença absoluta na capacidade das regras de traduzir, e ordenar, todos os fluxos da vida
comum, tendem a motivar uma outra realidade, distinta daquela que seria moral e
e cúmplice na indisciplina.
o seu tempo de serviço na força. Uma das hipóteses consideradas no estudo publicado refere-se ao
sentimento de perda de uma identidade que interfere em todos os domínios da vida do policial.
76
O Anexo I do Regulamento Disciplinar da PMERJ (RDPM), atualizado pelo Decreto no. 6.579, de 5 de
março de 1983, lista um conjunto de 125 transgressões, algumas das quais serão apresentadas mais adiante.
102
como uma realidade que se faria sentir em todas as esferas da vida social, é o agudo senso
de missão - valor profundamente enraizado nos PMs. Uma carreira estruturada por um
virtudes humanas, não pode prescindir de uma certa estética missionária e militante.
Como ocorre em outros meios de força militarizados, os policiais militares estão sempre,
É razoável afirmar que, na vida intramuros, toda e qualquer solicitação vinda de cima é
apreendida como uma inquestionável missão que deve ser “prontamente obedecida”,
atividades-fim de polícia. Em outras palavras, “tudo” - e esse tudo abarca uma diversidade
de coisas - merece ser tratado como uma missão: ser escalado como motorista para um
oficial superior, uma autoridade civil ou um visitante; servir como ajudante de ordens;
77
Confira: Regulamento Disciplinar da PMERJ - RDPM/ Diretoria Geral de Pessoal/EMG/PMERJ.
103
organizar uma partida de futebol; doar sangue quando solicitado; pintar as instalações do
corporação em algum evento, etc. Esses exemplos fazem parte de um rol ilimitado de
da Instituição”.78
manter uma fração a postos para atender alguma demanda de última hora - empresta à
habilidade do seu pessoal para o improviso, para o agir na derradeira hora. O policial
militar é em boa medida um faz tudo, que deve estar sempre “pronto” para resolver - com
comunitário conhecida como “Polícia Interativa”. Minha visita técnica estava prevista
78
Idem.
104
seu secretariado, entrevistas nos jornais, rádios e TV locais etc. Logo à minha chegada no
aeroporto de Vitória, fui recepcionada por um conjunto de oficiais PMs que saudaram-
absolutamente detalhado e cronometrado. Confesso que jamais havia recebido algo tão
bem elaborado. De imediato, não acreditei que se poderia cumprir tudo aquilo que estava
previsto. Mas, tudo foi prontamente concluído. Os longos percursos entre uma e outra
estabelecidos pelo cronograma. À medida que os dias passavam, eu ia ficando cada vez
mais surpreendida com tanta eficiência. Até as atividades de lazer tinham sido
concebidas: as visitas aos pontos turísticos, as paradas para as fotos, as idas aos shoppings
e aos restaurantes foram feitas com os meus anfitriões PMs - sempre dentro dos horários
estabelecidos. No meu único dia de folga desejei, como qualquer mortal, ir à praia. Desejo
prontamente atendido: dois sargentos levaram-me às lindas praias de Vila Velha e, sob o
olhar sempre atento e gentil dos meus cicerones, tomei banho de mar, comi uma
maravilhosa moqueca capixaba e bebi alguns chopes, sozinha, é claro, pois meus amigos
Na metade dessa minha incursão, eu já estava prestes acreditar que o mundo, tal como a
vida da caserna, poderia existir sem acidentes, desencontros e coisas do gênero. Diante
do menor imprevisto, sempre havia uma rápida solução de contorno. Pelo rádio da viatura,
105
professora já está chegando”. Sempre que havia, portanto, a possibilidade de alguma coisa
não ocorrer com a perfeição desejada, eu ouvia desculpas antecipadas e percebia uma
certa apreensão, mais uma vez acompanhada de rápidas soluções. Tudo, evidentemente,
ia sendo feito para causar uma merecida boa impressão da corporação e dos seus
integrantes. De minha parte, eu sempre achava que estava ocupando demais meus
poderia ser lida como uma eficiente operação militar. Ir ao banheiro dentro dos Batalhões
deslocamento e ocupação: "a senhora não repara, mas as instalações do quartel não foram
feitas para mulheres, assim a senhora vai usar o banheiro do comandante". Lembro-me
que tentar comprar cigarros foi um tarefa impossível, pois os policiais se antecipavam em
todas as coisas, inclusive preencher as fichas dos hotéis, providenciar artigos de higiene
pessoal como sabonetes e pasta de dente ou anti-alérgicos para minha implacável rinite.
pronta atuação de meus incansáveis e diuturnos tutores também incluía troca de turnos e,
sargento me informa: "Dra, eu fui destacado para render o sargento beltrano e estou à sua
disposição”. Não consegui sequer usar o serviço de despertador dos hotéis por onde
passei, os PMs também se incumbiam de fazer esse serviço. Nessa intensa convivência
com os oficiais e praças capixabas acabei sendo, pouco a pouco, contagiada pela
felicidade juvenil evidenciada a cada encerramento de uma missão. Não havia como não
106
entrar nesse clima. Assim, também passei a estar “engajada e pronta”, e comecei a
Creio poder dizer que a missão, o seu caráter extensivo ou os múltiplos sentidos a ela
atribuídos, assim como a teatralidade sociológica de sua execução, parecem servir como
um tipo de ensaio para a vida real de polícia, uma espécie de grande preparação para o
real da coisa - o trabalho nas ruas. Se isto procede, esses expedientes buscam
como dispositivos de reforço da própria cultura institucional (para dentro e para fora),
Para Jerome Skolnick, além dessas características gerais que se fazem presentes na
experiência concreta nas ruas, combinam-se de uma forma única se comparada a outras
79
Cabe registrar que não foi diferente o contato com outras Polícias Militares. As minhas inúmeras visitas
realizadas à Brigada Militar do Rio Grande do Sul, às Polícias Militares do Rio de Janeiro, de São Paulo e
de Pernambuco foram pontuadas pela presteza e pela cortesia militares. Sem o suporte sempre oferecido
por essas instituições e por seus integrantes, teria sido impossível realizar as pesquisas e mesmo as
atividades de consultoria que motivaram boa parte de nossos encontros. Em verdade, os policiais militares
são exemplares na elaboração de cerimoniais impecáveis. A preocupação com “o bom nome da classe” e o
esforço de reverter a estigmatização das PMs estavam sempre presentes como uma importante estratégia a
pontuar as interações. Alguns oficiais chegavam mesmo a explicitar que eu “poderia ver qualquer coisa”
que julgasse importante para o meu trabalho. Do seu ponto de vista, não havia nada mais a ser escondido.
Ao contrário, era importante conquistar parceiros e, quem sabe, futuros defensores da polícia militar. Nessas
diversas polícias, ouvi casos que poderiam ser classificados como histórias de conversão. Contaram-me
que vários opositores e críticos das PMs (principalmente os “defensores dos direitos humanos”), quando
tiveram a oportunidade de conhecer a PM de perto, teriam mudado a sua imagem da organização, tornando-
se importantes “defensores da PM”.
107
(Skolnick, 1994:41). Nos termos do autor, elas concorrem de forma decisiva para a
cognitiva singular e útil no enfrentamento do dilema prático posto para os meios de força
policiais: produzir ordem pública sob o império da lei (Idem). Se o modelo de organização
policial (as ruas) emprestam conteúdos diferenciados a essa cultura, ou melhor, inscrevem
aquilo que seria específico das realidades policiais. A “working personality” policial a
que o sociólogo se refere seria, nesta perspectiva, o produto da interação entre o modelo
atividades efetivamente policiais. Sob este prisma, as características que foram até o
momento mencionadas sobre a realidade da PMERJ dizem respeito a uma grande moldura
cultural que encompassa todos os integrantes da PM, mas que se faz sentir de uma forma
organização, para o policiamento nas ruas, tendem a ser mais devotos a uma espécie de
“cultura policial das ruas”. Estes últimos pertencem, em sua maioria, ao mundo das
praças, que é, de acordo com a estrutura hierárquica, constituído das patentes mais baixas
“Ser militar é o nosso diferencial. Eu gosto de usar farda e você vê que a outra polícia à paisana é uma
bagunça, ninguém sabe quem é quem. Eu sempre quis ser policial militar. Mas o que estraga a Polícia
Militar é o militarismo.”
(soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)
“Nós ficamos tão preocupados com o lado militar que alguns colegas esquecem que são policiais. Eles têm
uma mentalidade mais fechada, mais apegada ao militarismo”.
(Oficial PM, com 20 anos de serviços prestados à PMERJ)
“A corporação tem que ver também a nossa condição. O comando cobra, o governo cobra, a sociedade
cobra, todo mundo cobra do policial. Tem que olhar para a nossa situação, para o material humano do
policial”.
(Cabo PM, com 15 anos de serviços prestados à PMERJ)
qualquer discussão sobre as questões relativas à segurança pública. No caso das polícias
profissional, essas figuras se fazem presentes não só no nome (Polícias Militares), como
os serviços de policiamento.81 Assim como no Exército, ela possui Estado Maior, Cadeia
atribuições:
80
Diferente dos nossos meios de força ostensiva que adotaram integralmente o desenho organizacional do
Exército brasileiro, outras polícias que realizam o ciclo completo policial fazem uso de uma estrutura
paramilitar, uma espécie de adaptação do clássico modelo militar. Ver Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997); Skolnick e Bayley (1988); Reiner (1992); McCormick e Visano (1992).
81
Ver, em anexo, o Organograma Institucional da PMERJ.
109
“confronto”, o “inimigo” etc. são empregadas tanto no senso comum quanto na mídia
Também são freqüentes as fabulações que vinculam a função de polícia a uma “guerra
metáforas, parte delas até condizente com a realidade policial militar. Nossos PMs, ou
melhor, os soldados, cabos, sargentos etc., não fazem uso de uniformes como os agentes
82
O Estatuto da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, aprovado através da Lei n o. 443 de 1 de julho
de 1981, apresenta o plano de carreira do servidor policial militar, estabelecendo as atribuições para cada
patente.
110
assemelhadas aos trajes de combate dos militares regulares. Nestas fardas estão fixados
diversos apetrechos, como uma tarja com o “nome de guerra”, as divisas correspondentes
militar.
Como foi observado, essas associações possuem raízes históricas profundas. Elas
policiais militares.
O debate, hoje, em torno da crise institucional das polícias militares, aquecido pela
Doutrina da Segurança Nacional, e que teria se cristalizado no interior das PMs como a
83
A Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro ou a Empresa Municipal de Vigilância S.A. foi instituída
na gestão do prefeito César Maia, através do decreto n o.12.000 de 30 de março de 1993, de acordo com as
prerrogativas legais discriminadas pela Lei Orgânica do Município.
84
Alguns estudiosos de polícia falam de um processo de “militarização ideológica” da segurança pública e
das polícias militares no Brasil. Um tipo de perspectiva que ainda vigora, a despeito do retorno à
democracia. Consultar Cerqueira (1996); Silva (1996).
111
peso de sua tradição histórica no ordenamento das agências policiais e ao alto custo
história das polícias ocidentais ao mesmo tempo que revelou os problemas oriundos da
contemporânea.
Como se vê, esta linha de raciocínio, atenta às opiniões contrárias e procurando responder
aperfeiçoar o desenho militar que traria ao menos a virtude de já estar sedimentado nas
PMs. A questão principal não seria a experimentação de um outro modelo mais adequado
85
Do ponto de vista das praças, a resistência de setores do oficialato à mudança do modelo militar pode ser
compreendida como uma defesa dos próprios interesses corporativos, uma vez que a adoção de uma outra
arquitetura organizacional poderia suprimir alguns postos hieráquicos superiores e algumas funções
alocadas nas atividades-meio.
112
policiais que fosse capaz de romper com o círculo vicioso do malfadado “militarismo”.
É evidente que todo esse empenho argumentativo também se volta para dentro da
missão e do papel das polícias ostensivas, reproduzindo falsos paralelismos com as forças
da defesa nacional.
operacionais próprias dos grandes meios de força. Esta proposta, em certa medida
emprego da força, performance etc. entre as forças comedidas voltadas para controle
social e as Forças Armadas orientadas para o combate. De fato, esta é uma empresa mais
policiamento ostensivo nos grandes núcleos urbanos somente nos últimos trinta anos. Sob
113
este aspecto, pode-se dizer que o seu acervo de reflexões e técnicas acerca de tudo aquilo
extremamente recente.
assim como a explícita ingerência do Exército na vida institucional das polícias militares
segurança pública sedimentada no Brasil teria poluído esse mesmo modelo, exagerando
que a PMERJ foi comandada por generais e coronéis do Exército, tornam essa discussão
um pouco mais complexa e por vezes parecem criar uma enorme cortina de fumaça que
adquirido contornos mais radicais, e que certos estímulos autoritários possam ter
e fora da organização. Isto fica mais evidente nos expedientes de socialização no interior
militar inadequado às polícias, ou seria o “militarismo” que o reveste ? Talvez caiba aqui
86
As dificuldades encontradas no levantamento de uma literatura qualificada sobre as polícias da América
Latina impossibilitaram a elaboração de um estudo comparativo entre aqueles países que também
experimentaram regimes de exceção e possuem polícias estruturadas militarmente.
114
argumentativo? O caso das polícias norte-americanas pode ser bastante útil para melhor
compreender as vantagens e as reais limitações do modelo militar, uma vez que o mundo
Segundo Egon Bittner (1990), a adesão cada vez maior dos departamentos americanos de
cinqüenta. A “militarização” americana das polícias não dizia respeito a uma concepção
os planejadores de polícia e isto não aconteceu sem alguma razão. Em primeiro lugar,
interna das primeiras no contexto das segundas (Idem). Um ponto que foi muito
o pessoal das Polícias e das Forças Armadas seja mantido em um estado altamente
115
Em segundo lugar, as polícias americanas - não muito diferente do que tem ocorrido com
os nossos meios de força - foram, durante um bom tempo, a cachaça predileta dos
políticos locais e, em parte por essa razão, tornaram-se vulneráveis às artimanhas das
87
O uso eleitoral das agências policiais também tem sido uma constante na realidade das polícias
brasileiras. No nosso caso, pode-se mais apropriadamente dizer que o modelo militar não se mostrou imune
à chamada “politicagem”. Policiais militares de diversas patentes e de distintas PMs no Brasil reclamam da
forte interferência política no interior das organizações policiais. Alguns chegam a mencionar que “A PM
é do Governador e não da sociedade” ou que “as PMs possuem vários patrões”, em uma clara alusão aos
inúmeros “favores” atendidos aos parlamentares e políticos locais. Segundo esses profissionais, tem sido
uma rotina o empenho do efetivo da PM por critérios estranhos às recomendações técnicas. Em resposta às
pressões dos políticos são implantados Destacamentos Policiais Militares em locais desnecessários, criando
duplicidade e desperdício de recursos. Não é incomum encontrar municípios pequenos que possuem
proporcionalmente mais policiais do que outros que possuem índices críticos de insegurança. Do mesmo
modo, policiais militares são cedidos para realizar trabalhos alheios às tarefas de policiamento ostensivo
como servir de motorista e de segurança particular para deputados e políticos locais. No intuito de
minimizar os efeitos das demandas dos políticos sobre os escassos recursos policiais, a Brigada Militar do
Rio Grande do Sul conseguiu recentemente aprovar, junto à Assembléia legislativa, a “Lei de Fixação do
Efetivo” que determina a aplicação do pessoal segundo critérios profissionais de alocação dos meios
policiais.
116
motivos pelo qual essas organizações foram as únicas agências públicas de larga escala
Não resta dúvida de que a “militarização” americana emprestou alguma ordem ao caos
adotados produziu, é bem verdade, uma espécie de alento - ainda que parcial e provisório
- para o complexo problema do controle das ações policiais em seu conjunto, dilema que
88
Pouco a pouco, o poder judiciário foi perdendo a sua expressão no que tange ao controle externo das
polícias. (ver Bittner, 1975). Para um discussão sobre o lugar da discricionaridade no sistema criminal ver
Walker (1993).
89
Para alguns estudiosos, os reformadores teriam também adotado o método militar porque não dispunham
de outras opções para reduzir a influência política e assegurar a disciplina interna. Como uma boa parte dos
indivíduos que trabalhavam nas polícias tinham alguma experiência militar, a construção de uma estrutura
militar policial poderia ser realizada sem a ajuda e a preocupante interferência externa. De qualquer forma,
os trabalhos históricos evidenciam que até a revolução industrial, eram poucas as organizações de larga
escala que existiam além da militar. E a maioria dessas organizações - as agências de grandes negócios, as
burocracias governamentais etc. - geralmente possuíam uma arquitetura organizacional assemelhada ao
desenho militar. Em certa medida, a organização de polícia seguindo as linhas militares teria sido um
acidente histórico. Se outros modelos eficientes estivessem disponíveis na época, as polícias poderiam ter
sido organizadas de forma diferente. Ver Bittner (1975); Skolnick e Fyfe (1993); Reiner (1992).
117
pelos administradores policiais, nem pelos estudiosos. De acordo com Bittner, uma boa
parte dos trabalhos que fazem referência a essa modelagem aplicada às polícias ou a
considera uma espécie de realidade natural das organizações, ou critica apenas os seus
ponto de vista do referido autor, a atenção deve se voltar para o próprio modelo,
indagando sobre a sua capacidade de realizar o que promete, isto é, de ofertar mecanismos
tempos de paz.
regulamentos e normas que buscam normatizar a sua rotina organizacional. Contudo, essa
diferente do que ocorre com as nossas PMs, notou-se um expressivo contraste entre o
1990).
118
inferência de que as áreas reais de ação de polícia, uma vez que não estão devidamente
forma compensatória e pouco sistemática pelas notas de instrução e pelas “ordens do dia”.
ainda acreditam que este tipo de descompasso pode ser simplesmente resolvido com a
extensão gradual das regulações já existentes aos domínios das atividades propriamente
policiais que se encontram desreguladas. O fato de que tal adição resulta em um conjunto
policial pode e deve ser instruído sobre como interagir com os cidadãos de forma a não
90
Para uma crítica desta perspectiva ver Kleinig (1996;1997); Ohlin e Remington (1993); Delattre (1996).
119
burocracia militar não ocorreu sem alguma justificativa. É preciso registrar que, tanto nas
polícias americanas quanto nas nossas PMs, esses dispositivos possibilitaram algum
dos políticos etc. Do mesmo modo, introduziram uma forma de avaliação dos
comportamentos desejados.
situações internas às forças policiais, elas também deixaram evidente as suas limitações.
Se antes da aplicação do método militar as polícias não dispunham de padrões claros que
definissem a conduta certa daquela considerada errada, com a sua introdução passou-se a
ter algum critério para distinguir os bons policiais dos desviantes. Mas, uma vez que os
a disciplina interna, os resultados dos julgamentos à luz desses padrões, com raras
exceções, não estão relacionados com o trabalho que o soldado-policial desenvolve nas
àqueles que possuem um bom comportamento dentro dos quartéis, e não nas ruas, onde
as obrigações efetivas de polícia são de fato realizadas. 92 Cria-se com isso uma situação
no mínimo curiosa: a maior parte das iniciativas adotadas pelo policial de ponta em sua
91
É evidente que a estabilidade organizacional e, por sua vez, o moral da tropa requerem que as
recompensas e as sanções sejam distribuídas metodicamente, isto é, que elas sejam aplicadas de acordo
com regras racionais e explícitas. Afinal não é uma tarefa fácil assinalar débitos e créditos para
performances que não estão reguladas ou que se configuram como práticas informais a despeito de sua
pertinência.
92
A fragilidade destes expedientes pode ser demonstrada quando se observa que em muitos casos noticiados
na mídia, os policiais militares envolvidos em seqüestros, acusados de corrupção e brutalidade
apresentavam uma folha disciplinar impecável.
120
repressivas – tende a se tornar invisível para o próprio policial que atuou, para a sua
policial. Isto ocorre com maior freqüência sobretudo naqueles atendimentos que
Levando-se em conta este importante traço da rotina policial, pode-se dizer que a terapia
esta realidade - particularmente se entendemos que este papel deve significar, na prática,
o emprego de habilidades técnicas e a confiança pública nos atores que fazem uso de uma
a força letal.93
são muito distintos das questões críticas identificadas nas PMs brasileiras. Constata-se
que a disciplina militar que visa a fortalecer a cadeia de comando e controle tem,
bem mais corrosivo do que parece à primeira vista. Como, na prática, os oficiais
superiores não partilham das atividades policiais de seus subordinados, eles tendem a ser
93
São inúmeros os estudos acadêmicos que se dedicam a refletir sobre o estado da arte do emprego da força
no âmbito das atividades policiais. Este empreendimento não tem sido uma tarefa trivial, pois o uso da força
consiste no centro da ação de polícia, e tem sido, paradoxalmente, alvo de abordagens inconsistentes e
pouco elucidativas. Dentro do rol de interpretações empobrecedoras destacam-se aquelas que classificam o
emprego da força como uma variante da violência consentida. Para um tratamento mais qualificado da
questão ver Bittner (1990); Geller e Toch (1995); Geller e Scott (1992); Alpert e Dunham (1997) .
121
percebidos pela tropa como meros “disciplinadores” que estariam distantes e alheios aos
problemas policiais surgidos no dia-a-dia. Nas diversas PMs, as praças costumam referir-
“uma vida fácil” porque “não tiram polícia” e, por conseguinte, só saberiam “aplicar o
regulamento”.
blue line expressam, em boa medida, os conflitos de interesses existentes entre os níveis
profissionais - divergências comuns em qualquer grande organização. Por outro lado, não
se pode menosprezar o fato de que a manutenção nas PMs de uma estrutura hierarquizada
ordens eram passadas de viva voz para centenas de homens agrupados, propicia um
que estão alocados nas atividades-meio (tarefas internas à força) e as mais baixas patentes
trabalho nas ruas. Resulta daí que o seu importante papel como uma liderança não pode
Diferente do que ocorre nas Forças Armadas , onde se espera que o oficial conduza os
seus homens na cena do combate (mesmo que ele jamais tenha a chance de fazê-lo), o
122
policial superior com um posto análogo é alguém que pode apenas ordenar uma “ grande
missão” para a sua tropa e fazer muito pouco por ela no ato mesmo do cumprimento da
decisões por sua própria conta sem qualquer contato com os seus superiores.
observa que, quanto maior o grau de confiança e crença dos oficiais superiores nos
expedientes normativos que regulam a vida dos policiais aquém dos muros seguros dos
quartéis, menos livres eles estão para censurar as práticas desreguladas e informais que
do controle ofertada pelo desenho militar faz com que a multiplicação das normas
de licenciosidades nos terrenos desprovidos de uma regulação adequada. Isto pode ser
nos termos da burocracia militar, sua performance além dos muros tende a ser menos
Por outro lado, “fazer vista grossa” para certas transgressões, tais como a quebra da
de reforço dos frágeis elos de lealdade que irrigam a cadeia de comando e controle da
123
força policial. No entanto, cabe salientar que os possíveis benefícios advindos desta
solução de contorno são provisórios e restritos, pois além de deixarem explícito o hiato
disciplina militar que, por sua vez, enfraquece ainda mais o emprego dos primeiros. Em
parte por esta razão, o mundo das interações dos policiais e cidadãos tem consistido em
um espaço de baixa visibilidade e, mais grave ainda, aberto a toda sorte de interpretações
esquina ou rua da cidade por um policial ou por uma pequena guarnição móvel, o
ao limitado universo do bom senso e da boa vontade individual e ao perigoso mundo dos
preconceitos sociais.
orientados - segundo os próprios PMs - “pela intuição e pelo empirismo”, fica-se com a
94
Observou-se nos departamentos americanos de polícia que em virtude da limitação colocada pelos
regulamentos, a estratégia encontrada pelos policiais superiores para promover a lealdade de seus
subordinados tem sido cobrir certas transgressões disciplinares sendo mais flexíveis na interpretação e
aplicação dos regulamentos. Ver Bittner (1990); Skolnick (1994).
124
nítida impressão de que a pertinência das regras existentes é menos relevante do que a
policiais devem sempre estar cientes de que eles podem ser chamados a prestar conta por
desobedecê-los, mesmo que a suposta “falta disciplinar” ocorra em benefício de uma ação
comunitários de Copacabana vez por outra “arribavam”, isto é, saíam de seus setores de
policiamento para atender a uma determinada demanda sem cobertura policial e que se
É fato que uma parte da leitura da “ordem do dia” - rito matinal realizado no interior das
aos cidadãos, ou melhor, reporta-se formalmente ao modo como o policial deve agir com
os agressores, com uma multidão desregrada, com esposas ameaçadas, com vítimas de
concedem muito pouco espaço para que os policiais das mais baixas patentes possam
95
A filosofia comunitária de polícia, que tem se tornado a coqueluche das agências policiais em todo
mundo, procura ofertar uma resposta conseqüente para os dilemas experimentados pelo policial de ponta,
enfatizando a importância da capacidade decisória daqueles profissionais que interagem diretamente com
125
Não é difícil concluir que o policial de ponta, a despeito de sua liberdade discricionária,
a realidade do seu trabalho está freqüentemente em conflito com uma ou outra regra
disciplinar estabelecida. Embora essas regras possam não ser relevantes para o episódio
gerenciado, o PM sabe que sua performance será avaliada de acordo com essas mesmas
regras. Deve ele, portanto, evitar, na medida do possível, a sua violação, mesmo que isto
enfrentado. Neste cenário, parece bastante razoável (ainda que pouco eficaz) que um PM
decida registrar ou não uma ocorrência muito mais com base no seu desejo de sobreviver
dentro da organização policial militar do que pelos méritos policiais do caso em tela. 96
Copacabana, pude observar o receio e até mesmo o medo desses jovens policiais em
adotar estratégias alternativas para a resolução dos problemas por eles diagnosticados.
paralisados pela dúvida, ainda que tivessem concebido formas criativas e competentes de
a mesma, e pode ser resumida da seguinte maneira: o oficial superior falou somente sobre
“o que não pode” e não determinou “o que pode” ser feito. Assim, na dúvida sobre o que
se pode fazer, “é melhor não fazer nada” para evitar uma punição futura.
os cidadãos. Ver Trojanowicz e Bucqueroux, 1994; Rico e Salas, 1992; MacLaughlin e Muncie, 1996;
Bayley, 1998.
96
Este tem sido um problema recorrente em vários departamentos de polícia que adotaram traços da
modelagem paramilitar. Ver Bittner (1990); Skolnick e Fyfe (1993); Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997).
126
Tal como foi constatado na realidade das polícias americanas, a disciplina burocrático-
militar compete de forma improdutiva com o controle positivo e profissional das práticas
policiais. Não sendo capaz de fornecer orientações efetivas sobre como agir nas situações
reais, e limitando-se a ser rentável apenas nas atividades intramuros, ela acaba por
transgressões nas ruas – e, em boa parte dos casos, uma forma de atuação eminentemente
experientes, é o recurso à indisciplina para melhor trabalhar, isto é, a sutil violação dos
Vários autores observaram que a tensão entre as dinâmicas legais e legítimas de atuação
baixas patentes que se encontram na linha da obrigação (cf. Reiner, 1992; Bittner, 1990;
Skolnick, 1994; Chan, 1997). O chamado “cinismo policial” é acionado como um tipo de
afinado com as exigências da conduta disciplinar militar, simular obediência cega aos
princípios que regulam a vida institucional das agências policiais, têm-se apresentado
97
Segundo os dados fornecidos pelo Comando de Policiamento da Capital - PMERJ, 77,15% das
ocorrências atendidas e notificadas pelo 19o BPM no ano de 1998 - Batalhão que cobre os bairros de
Copacabana e Leme – foram provenientes do Serviço Emergencial 190, caracterizando a natureza tão-
somente reativa do policiamento ofertado na área.
127
demandas do trabalho nas ruas com as exigências da burocracia militar. Uma vez que não
estar compromissado com elas, a primeira coisa que um jovem policial aprende nos seus
primeiros dias de trabalho nas ruas é que ele deve esquecer tudo que aprendeu na escola
de cinismo entre os policiais. Todo o policial de ponta aprende com os PMs mais antigos
e “cascudos” que “a prática é outra coisa”. Que para sobreviver no interior da organização
policial militar é preciso adquirir uma dose razoável de distanciamento que seja capaz de
fornecer alguma proteção afetiva contra a adesão incondicional ao rigoroso ethos policial
Assim, é bastante comum observar nas praças uma postura por vezes refratária, marcada
pela ironia sutil e por uma certa indiferença em relação às advertências transmitidas nas
instruções diárias. De posse do seu saber prático, que informa que “a bomba explode
sempre na ponta”, os soldados, cabos e sargentos sabem que para “tirar polícia” de
verdade, de antemão terão não só que produzir alguns arranhões no código disciplinar,
É um fato sociológico trivial que as regras e convenções por si mesmas não fazem
aparecer a realidade que anunciam. Neste sentido, a produção excessiva de regras pouco
relevantes ou estritamente rígidas tende a tornar quase impossível para a thin blue line
realizar o seu trabalho sem rotineiramente violá-las. Os PMs que estão na ponta da linha
possíveis justificativas para a sua existência. Não resta dúvida de que isto reforça a
128
preocupante e generalizada sensação de que eles estão entregues à sua própria sorte e de
por resultados. A pressão exercida interna e externamente sobre agências policiais para
produzir resultados visíveis e mensuráveis contribui em boa medida para a ampliação dos
concretas de polícia. Bittner, assim como Skolnick, argumentam que a ênfase sobre o
Afirmam ainda que, quando esta ênfase aparece combinada com a necessidade sempre
a natureza do trabalho policial (Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Skolnick e Fyfe, 1993,
como detenções para averiguação, apreensões, prisões, ocupações etc. Em suma, trata-se
Observa-se nas organizações policiais que adotaram o modelo militar ou paramilitar duas
claro que o balanço positivo na primeira ordem de cobrança motive uma excessiva
flexibilidade na segunda. A freqüência com que isto ocorre no dia-a-dia parece aumentar
produtividade. Neste sentido, não basta que o PM seja apenas um obediente soldado-
burocrata, ele deve ainda “mostrar serviço” contribuindo para a contabilidade das
Deixando de lado qualquer exagero, os estudos de polícia revelam que há poucas dúvidas
militar possibilitam, mesmo que sob uma roupagem legalista, que os policiais não
transgridam apenas para realizar “prisões e apreensões", mas também produzam estas
últimas para dissimular suas faltas disciplinares ou suas deficiências técnicas na condução
de uma dada ocorrência. O caso abaixo é bastante ilustrativo deste tipo de situação:
"Um Cabo PM contou-me que na sua época de soldado, teria vivido um episódio
dramático e estressante. Certo dia, quando puxava o trânsito em uma rua
movimentada da cidade, sacou seu revólver e atirou na direção de um automóvel
suspeito cujo motorista não tinha acatado os seus comandos manuais e verbais de
abordagem. Os disparos de sua arma acabaram provocando tumulto e o descontrole
de um outro veículo que atravessava discretamente o cruzamento. Conta que o
referido carro, após rodopiar na pista, parou em cima da calçada e que o condutor
parecia estar desmaiado. Enquanto corria transtornado para socorrer a vítima de sua
98
Um dos problemas graves do produtivismo policial enfrentados por todas as organizações policiais tem
sido a fabricação de ocorrências e a simulação de flagrantes.
130
Desta breve estorinha cabe destacar uma importante consideração: a ênfase nos
eficaz através da limitante disciplina militar tem subvertido o próprio treinamento dos
policiais. Bittner (1990) comenta que, até o início dos anos oitenta, os melhores
auto-dirigidos, enfim, policiais qualificados para fazer uso legal e legítimo dos
parte da carga horária destes programas era dedicada ao ensino das regulamentações
131
internas dos departamentos de polícia, um tipo de realidade não muito distinta do que
incorporadas e normatizadas de forma eficiente não tomou lugar, a despeito dos esforços
(cf. Skolnick e Fyfe, 1993). Isto porque o emprego de métodos realistas de controle do
estilo das regulações correntes da disciplina interna. Segundo os estudiosos, a prática teria
Fyfe, 1993; Bittner, 1990; Kleinig, 1996,1997; Delattre, 1996; Elliston e Feldberg, 1985).
com o segundo. A identificação deste dilema pode ser resumida da seguinte forma: se,
por um lado, cabe ao policial interagir com os cidadãos empregando o “poder de polícia”
como um soldado-burocrata. Por outro lado, se o policial deve ser formado como um
soldado-burocrata, então dele não se poderá esperar que tome decisões profissionais sob
pelos policiais na linha de frente. Os autores esclarecem que a forma piramidal do modelo
meios, assim como a responsabilização pelos cursos de ação escolhidos. 99 Cabe salientar
que não está franqueado ao mundo das praças a deliberação sobre os níveis de preparação
Ainda que o centro da ação, tanto da força militar quanto da polícia, seja a ameaça e o
emprego da força, esta justificativa, do ponto de vista dos autores mencionados, não é
pessoas que trabalham coletivamente para resolver conflitos de larga escala como a
longe da vista dos oficiais supervisores, os policiais de ponta tomam “decisões de baixa
visibilidade” que têm grandes efeitos sobre a vida e a liberdade das pessoas. Neste exato
99
Para uma discussão sobre as singularidades do campo dos estudos estratégicos e do estado da arte dos
meios de força da defesa, ver Clausewitz (1996), Proença Junior e Diniz (1999).
133
momento, por exemplo, é possível imaginar que os PMs que patrulham o Rio de Janeiro
apenas retiram o bêbado inconveniente; se tentam imobilizar um criminoso que faz uso
Diante de tal evidência, creio que é oportuno questionar a pertinência da relação entre as
grandes estratégias do mundo militar real e as atividades policiais ordinárias, tais como
andamento.
Não se pode esquecer que as inúmeras decisões tomadas individualmente pelos policiais
execução. Em princípio, não haveria nada de preocupante com isto se essa miríade de
vida dos indivíduos e das comunidades. Na maior parte dos casos em que os policiais
tomam decisões e escolhem o curso de ação que consideram mais apropriado, não se têm
que ajudou a elucidar alguns casos dramáticos de brutalidade policial, como os recentes
134
episódios da Favela Naval em São Paulo e na Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Somente
soltura foi adequada, se o tiro disparado feriu gravemente, se o emprego da força estava
exercício discricionário dos policiais (por exemplo, quando, em vez de receberem uma
multa, recebem apenas uma advertência), qualquer oportunidade de revisão oficial acerca
dispositivos da disciplina militar é ainda mais perversa nas situações em que a sabedoria
grande espaço discricionário dos PMs das mais baixas patentes pelo recurso prioritário à
disciplina militar não tem atendido sequer às próprias expectativas da força policial.
discricionárias fluidas que constituem o escopo de atuação policial (cf. Muir Jr., 1977).
É evidente que na maioria das agências responsáveis por tratar com emergências, entre
especializadas, que devem fazer o seu trabalho com o máximo de competência e o mínimo
trabalho policial nas ruas. Alguns autores chegam a sustentar que uma concepção
seria mais adequada às agências de polícia (Skolnick e Fyfe, 1993; Skolnick, 1994;
Bittner, 1990). As considerações deste tipo buscam uma aproximação com outras
os policiais de ponta decidem se devem ou não atirar; são também os médicos e não os
provenientes dessas profissões, uma das principais ferramentas identificadas como capaz
e, por sua vez, frouxo para regular o comportamento esperado dos policiais. A premissa
que está por trás desse raciocínio é muito simples: no desempenho de seu trabalho nas
136
oriundos não apenas do mundo do crime, mas também dos cidadãos e das comunidades.
vez que ela anuncia o seu próprio fracasso. Diante da impossibilidade de eliminar o
pecado humano caberia, por antecipação, suspeitar daqueles profissionais aos quais,
acaba por funcionar como uma profecia que se autocumpre, exponenciando o universo
mais o seu vigor pela implementação de sanções e pelo reforço indesejado das áreas
invisíveis do trabalho policial. De uma forma paradoxal, os PMs costumam ser orientados
a produzir comportamentos positivos por intermédio de uma visão negativa das regras
estabelecidas. Resulta daí que a lista do que “não se pode fazer” tende a ser sempre
“O PM não tem responsabilidade, tem culpa. Tudo que acontece na sociedade é culpa do PM”.
(Cabo PM, com 9 anos de serviços prestados à PMERJ)
Durante uma das minhas visitas à Escola Superior da Polícia Militar (ESPM), em Niterói,
fui convidada a provar da comida servida no novo rancho recentemente inaugurado. Com
a famosa “ração” servida na escola, o espaço informal do almoço consistia uma ótima
oportunidade para seguir discutindo com os vários oficiais PMs ali presentes - de uma
oficial, com quem já havia entabulado um divertido papo sobre as "encarnações" e demais
brincadeiras que aconteciam entre os cadetes nos seus idos tempos de aluno-oficial.
Contava-me, animado, as inúmeras vezes em que foi escolhido como “o príncipe das
extrovertido causavam ciúmes nos colegas de turma. Entre o vaivém dos copos e talheres
a sua orgulhosa trajetória dentro da corporação, reprisando um dos dias mais importantes
de sua carreira policial. Naquele dia, meu confidente foi encarregado de cumprir uma
importante missão externa. Havia sido escalado para ajudar a organizar uma grande
138
operação especial de escolta para um chefe de Estado, que permaneceria no Rio de Janeiro
por uns dois dias. Enquanto cumpria suas inúmeras atribuições, deslocando-se entre
seguiram até a sua apresentação à cúpula da PMERJ foram descritos como momentos
de forma lenta. Uma frase insistia em martelar a sua cabeça, criando eco e aumentando a
sensação de angústia: “O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” Conta-me, com um
tom narrativo agora mais dramático, que tentava inutilmente se lembrar de alguma tarefa
de algum detalhe crucial no cumprimento da missão atribuída, etc. Mas nada parecia
iluminar a sua mente que não fosse a torturante e kafkaniana idéia fixa de receber uma
repreensão por algo que nem ele mesmo sabia ou conseguia lembrar. A esta altura da
estória, face ao clima de suspense criado pelo meu interlocutor, eu, já bastante impaciente,
indaguei: “E aí, o que aconteceu?” Com um ar próprio de quem conta uma piada, o oficial,
gargalhando, concluiu enfim a sua breve saga: lá chegando, foi festivamente comunicado
prestados à corporação, a partir daquela data ele passaria a ocupar uma posição mais
Tem sido um lugar comum dos estudos sociológicos sobre as organizações policiais
Muitos têm sido os problemas identificados como resultantes da rigidez dos regulamentos
disciplinares a que todos os membros da força policial estão sujeitos. Os próprios PMs,
lhes são impostos no dia-a-dia de suas vidas. Máximas como “o PM trabalha para não ser
preso” e “até o bandido tem mais direitos humanos do que o PM” visitam de forma
Mesmo que as punições disciplinares não ocorram com a freqüência com que são
possibilidade sempre iminente de sua utilização, parecem suficientes para configurar uma
traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos
[para] a elevação moral da tropa” a disciplina militar promete, a princípio, estar a serviço
De acordo com este projeto, o comportamento do policial militar deve se pautar pelas
previstas pelas normas e outras disposições internas à força que não constituam crimes.
Transgressões” inclui um total de 125 insubordinações que podem ser, grosso modo,
Comparecer o policial militar a qualquer solenidade, festividade ou reunião social, com uniforme diferente
do marcado.
Fumar em lugar ou ocasiões onde isso seja vedado, ou quando se dirigir a superior.
Deixar, quando estiver sentado, de oferecer seu lugar a superior, ressalvadas as exceções prescritas no
Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas .
Usar, quando uniformizado, barba, cabelos, bigode ou costeletas excessivamente compridos ou exagerados,
contrariando as disposições a respeito.
Usar, quando uniformizada, cabelos de cor diferente do natural ou peruca, sem permissão da autoridade
competente.
Transgressões relativas às atividades de policiamento:
Abandonar o serviço para o qual tenha sido designado.
Portar a Praça arma regulamentar sem estar de serviço ou sem ordem para tal.
Portar a Praça arma não regulamentar sem permissão por escrito da autoridade competente.
Disparar arma por imprudência ou negligência.
Usar de violência desnecessária no ato de efetuar prisão.
Transgressões relativas à vida civil e ao convívio social:
Contrair dívidas ou assumir compromisso superior às suas possibilidades, comprometendo o bom nome da
classe.
Não atender à obrigação de dar assistência à sua família ou dependentes legalmente constituídos.
Esquivar-se a satisfazer compromissos de ordem moral ou pecuniária que houver assumido.
Ter pouco cuidado com o asseio próprio ou coletivo, em qualquer circunstância.
Portar-se sem compostura em lugar público.
Desrespeitar em público as convenções sociais.
Conversar ou fazer ruído em ocasião, lugares ou horas impróprias.
Freqüentar lugares incompatíveis com o seu nível social e o decoro da classe.
Embriagar-se ou induzir outrem à embriaguez, embora tal estado não tenha sido constatado por médico.
tudo o que “não se pode fazer”. Isto se traduz, é claro, em uma rígida camisa de força
empresa pedagógica totalizadora pretende deixar pouco espaço subjetivo de manobra para
aqueles que optaram pela carreira policial militar. Não se pode esquecer que, entre as
que podem chegar até a 30 dias de reclusão para todas as patentes. 100 O recurso ao castigo
100
Segundo o Regulamento Disciplinar da PMERJ, aprovado pelo Decreto n o. 6.579, de 5 de março de
1983, as punições, obedecendo o julgamento da transgressão cometida, seguem a seguinte ordem crescente
de gravidade: I) advertência; II) repreensão; III) detenção; IV) prisão e prisão em separado; e V)
licenciamento e exclusão a bem da disciplina.
142
da prisão, que em casos mais greves vem acompanhada do total isolamento, mesmo que
policial como uma ameaça latente e dispersa pela atmosfera institucional da PM,
operando simbolicamente como uma espécie de dedo de Deus sempre apontado para os
policiais. 101
necessário, para os problemas crônicos comuns a todas as polícias, parece não resistir à
demonstração empírica dos seus resultados terapêuticos nas diversas agências policiais
que fazem uso da modelagem paramilitar (Skolnick e Fyfe, 1993; Bittner, 1990). No
nosso caso, essas ferramentas sequer contemplam, de forma satisfatória, as tarefas reais
de policiamento. Como pode ser observado na figura a seguir, apenas 23% das
à polícia ostensiva propriamente dita. Note-se, ainda, que 56% delas dizem respeito ao
101
Este tipo de ambiência pôde ser observado entre os policiais que participaram do programa de
policiamento comunitário em Copacabana. Ver Musumeci (1996).
143
correição podem não estar atendendo satisfatoriamente às finalidades para as quais foram
implementados, resta comentar sobre os custos derivados da sua adoção, isto é, sobre os
É importante ressaltar que o apego institucional exagerado aos ritos militares como
policial – sobretudo nas patentes inferiores que estão mais expostas às sanções
disciplinares - uma concepção de ordem social mais rigorosa e, por vezes, mais intolerante
reforço das rígidas regulações internas, em boa parte dissociadas da realidade do trabalho
ruas, dos princípios e normas que regulam as suas vidas na caserna, como a uniformidade
administração da autoridade policial no contato com os cidadãos. Nas ruas, não são
interpretadas pelos PMs como “desacato à autoridade policial”. 102 Imersos em uma
espécie de posição desvantajosa, tanto na caserna quanto nas ruas, os policiais que fazem
o patrulhamento, sempre que encontram uma oportunidade para falar do seu trabalho,
educação” dos cidadãos que parecem “nunca enxergar o lado do policial”. Ora acometidos
por uma passividade reativa, ora estimulados a se engajar em uma “guerra contra o crime”
olhar suspeitoso e desconfiado da corporação para com aqueles que ingressam nas suas
102
Cabe ressaltar que a maior parte dos casos de emprego inadequado da força está inscrita no universo das
interações de baixa visibilidade, particularmente os episódios em que foram utilizados outros gradientes de
força que não a arma de fogo.
103
Para uma discussão sobre os fundamentos jurídicos do poder de polícia ver Lazzarini (1987).
145
efeito ilusório de que o estrito cumprimento do que foi estabelecido formalmente em lei
pelos indivíduos.
insegurança por parte dos policiais de ponta no que se refere à gestão ordinária da
espaço para o aparecimento da sensação coletiva de culpa: “tudo de ruim que acontece
nesta cidade é culpa do PM, foi o PM que falhou”. A percepção cristalizada entre as
praças de que toda ação policial consiste antecipadamente em um erro, contribui ainda
mais para restringir o escopo da criatividade individual àquelas situações em que a polícia
satisfatórias. Justificativas do tipo “até parece que a gente não quer fazer nada” revelam
o tom da frustração com as restrições à dimensão reflexiva do seu trabalho. Uma parte
Como também não poderia deixar de ser, o olhar suspeitoso e punitivo projetado sobre
baixas patentes. É possível estimar que uma parte expressiva das preciosas informações
qualitativas sobre pessoas, problemas, eventos e locais, que poderiam orientar políticas
efetivas de prevenção, e que normalmente são mapeadas pelos policiais em suas rondas,
corruptas e violentas, ainda que estes arranjos possam se beneficiar dos vínculos
sociológicos comuns àqueles atores sociais que se percebem excluídos ou à margem das
esferas privilegiadas de interação dentro do seu próprio meio social ou da sociedade mais
ampla (Cf. Simmel, 1983).104 De todo modo, a lógica do segredo favorece a reverberação
104
A lógica do segredo revela propriedades interessantes. Do ponto de vista sociológico, ela permite que
os indivíduos que a vivenciam se dissolvam em outros grupos ao mesmo tempo em que afirmam a sua
identidade frente a eles. Em verdade, o segredo nem precisa objetivamente existir. Importa que,
experimentado como tal, ele anuncia que alguma coisa está sendo partilhada, fazendo aparecer uma espécie
de comunhão invisível dos seus sujeitos, um tipo de irmandade inclusiva, sem unidade fixa de lugar. Para
uma discussão sobre a estética do presente na vida urbana contemporânea ver: Maffesoli, 1984 e 1987.
147
ainda mais os seus mecanismos de controle. Por outro lado, ela cria uma barreira protetora
extremamente rígido também se fazem notar no modo mesmo como os PMs da thin blue
line recortam o seu lugar no mercado da cidadania. Na contabilidade pragmática dos seus
direitos e deveres, esses policiais sentem-se, via de regra, os “filhos feios” do Estado, que
teriam sido esquecidos pela sua própria corporação. No mundo das praças, a associação
entre cidadania e direitos humanos é corriqueira e tem se apresentado como uma realidade
É certo que este tipo de percepção encontrou solo fértil nas distorções e nos equívocos
Contudo, ela também tem se alimentado na própria cultura institucional da PM, que
prioriza e cobra as obrigações militares do policial em detrimento dos seus direitos civis.
nas ruas. O contato diário com o mundo social além dos muros dos quartéis põe em
possíveis na vida civil. Para os PMs que se vêem confinados ao universo dos deveres e
Olhando “pelo lado do PM” parece não ser muito difícil concluir, mesmo que
“Vagabundo diz que ele tira diploma do crime na cadeia. Para o policial o diploma está na rua. A rua é a
escola do policial. Tudo que você quiser ver está ali, é só olhar. Eu aprendi ter olho técnico na rua. O que
eu já vi acho que não dá nem para contar.”
(Sargento PM, com 17 anos de serviços prestados à PMERJ)
“Ir para a rua? Demorou. É um papo meio sinistro. Olha aí, tem que saber olhar, tem que ter sangue frio
para segurar. A cabeça tem que estar ligada, funcionando bem. Isso eu aprendi com os mais velhos. Para
tirar polícia para valer você tem que agüentar, tem que segurar, senão você cai fora, desiste de ser policial.
Senão qualquer vagabundo te dá uma rasteira, é só bobear.”
(Cabo PM, com 13 anos de serviços prestados à PMERJ)
Era o seu primeiro dia de trabalho como soldado PM nas ruas da cidade. Ele já tinha
“estágio não conta, porque você não está ali todo dia para valer”. Meu jovem confidente
ia sair para uma ronda convencional com uma guarnição motorizada composta por mais
dois policiais. À primeira vista, a missão era simples. A papeleta de serviço informava
excepcional naquilo que parecia já ser uma rotina para os demais PMs. “Era o seu
primeiro dia”, o momento ritual do seu batismo de verdade e ele, sob o olhar gazeteiro e
feito no dia da formatura e de passar mentalmente em revista tudo que havia aprendido
de polícia na escola.
150
Faço aqui um breve parênteses nesta curta estória, pois meu emocionado interlocutor
que, logo que entrou para a PMERJ, tinha também se deixado iludir pela fantasia dos
filmes e seriados de TV que, como hoje ele próprio reconhece, transmitem uma imagem
de polícia não admite “vedetes” e que as fitas policiais, indiferentes a esta desencantadora
“sem planejamento”; que “nunca obedece a lei” e que, por tudo isso, se torna “um grande
Apesar das brincadeiras e da “pagação de terror” que seus colegas “cascudos” faziam no
intuito de descontraí-lo, nosso soldado PM, naquele dia, dizia-se ansioso e muito
preocupado em fazer a coisa certa, em “tirar polícia sem vacilo". Lembra-se, aos risos,
que seus calejados companheiros insistiam em lhe dizer: “bola da vez, não adianta tanta
teoria, a prática é outra coisa”. Uma coisa, ao menos, o dedicado “bicho” sabia: era
preciso “ler as ruas”, pois só aprendendo a reconhecer o que se passa nas ruas ele poderia
construir em ato o seletivo processo de observação. Mas, o que observar? O que deveria
constituir o seu campo de vigilância? Para onde olhar? Onde começa e onde termina a
ordem pública cuja preservação lhe foi atribuída? Tudo parecia saltar aos seus olhos como
algo diferente e preocupante. Tudo, “tudo mesmo”, poderia naturalmente ser convertido
forma singular da paisagem urbana, agora sob vigília, como os avisos luminosos das
boates, o barulho de uma sirene, o entra e sai das pessoas nos bares, a família de mendigos
embaixo de uma marquise, o cachorro com “pelada”, o homem correndo pela calçada, a
sua cinta-liga, o carro parado no acostamento com a luz interna acesa, o casal gesticulando
embrulho nas mãos etc. Tudo parecia merecer o enquadramento do seu olhar alerta e em
os ouvidos para discernir os “sons das ruas”, seus ruídos e silêncios; reconhecer e decifrar
movimentos; educar o olhar para ver “o que está por trás das coisas”, procurando sempre
identificar o que antes estava presente e ele não via. Certamente, meu interlocutor tinha
muitas dúvidas e uma perturbadora certeza: “alguma coisa está acontecendo agora em
algum lugar; como saber e como antecipar?” Enquanto nosso marinheiro de primeira
viagem se via afogado pelos inúmeros estímulos saídos das ruas, e se esforçava cada vez
mais por identificar algo “anormal” em um ambiente que ele mesmo teria começado a
perplexidade, foi no exato momento em que o bate-papo sobre a última roda de pagode
por eles organizada seguia acalorado que os PMs mais velhos pararam rapidamente a
viatura e abordaram dois rapazes “brancos e boa pinta” que andavam discretamente pela
calçada. A surpresa do nosso neófito não foi pequena: os rapazes estavam armados e
na delegacia, sua indagação não foi outra: “como vocês sabiam disso?” A resposta obtida
de seus companheiros foi para ele tão inesperada quanto o seu début com um flagrante:
“Ah! Isso vem naturalmente, você vai sentir, é só olhar” responderam os colegas de
guarnição. Disse-me que só conseguiu compreender inteiramente o que lhe foi ensinado
naquele dia depois que havia adquirido alguma experiência de patrulhamento. Concluiu
sua estória dizendo-me que para ser um bom policial nunca se deve parar de aprender a
Do rico e inesgotável mundo policial tem algo que particularmente intriga a nossa
imaginação. Refiro-me a um tipo de conhecimento peculiar esculpido nas ruas das cidades
desse curioso saber, ora enunciado em uma versão romântica e dramática, ora
De fato, esse parece ser um tipo de conhecimento que, nascido da trivialidade da vida
encantamentos e fabulações. Sua obviedade desafia, seu pragmatismo seduz, sua crueza
assusta, seu sentimentalismo surpreende e sua nostalgia comove. O contato com uma
espécie de “conhecer” saído da urgência dos fatos, que se confunde mesmo com o fazer
e o agir, nos faz pensar que os policiais que patrulham as ruas nas nossas cidades sabem
de coisas que não sabemos ou que não queremos perceber. Seu conhecimento é
constituído aqui na esquina, dia após dia convivendo, de uma forma explícita e sem
partir do “pior de nós mesmos”, isto é, reportam-se a um saber que se constitui como uma
sempre que possível esconder.105 Trata-se de uma forma de recortar o mundo estruturada
estado de alerta, sempre “preparado para o pior” dos mundos possíveis. Um PM, que há
muito “tira polícia” no trânsito, penetra profundamente em uma psique humana contraída
locais de homicídios e que socorreu vítimas de crimes sexuais nos diz coisas que Nelson
Rodrigues talvez só tenha imaginado. O que os PMs sabem não está ordenado em um
formato científico, não aparece quantificável ou traduzido nas estatísticas, não pode ser
provado com números, tabelas e gráficos. Este saber atrelado ao episódico, constrangido
pelas contingências, parece resistir à padronização. Ele está ali em cada evento, na
memória prodigiosa de cada policial. Ele é parte indissociável da trajetória de vida e das
desenham o cenário urbano. Este tipo de saber descobre-se atento ao menor indício de
“anormalidade”; ele está à procura do que se encontra “fora do lugar”, ele se põe em
“inadequado”:
“Quando você é polícia de verdade, você está sempre querendo saber o que está
acontecendo ao seu redor. Isto está entranhado dentro da gente. Eu faço isso até na
minha folga. Quando eu vejo eu estou fazendo isso até quando eu levo a minha
105
São muitas as publicações e as narrativas autobiográficas que procuram desvendar o mundo da polícia
a partir dos depoimentos de policiais sobre o seu dia-a-dia nas ruas. Ver MacDonald (1992); Baker (1986);
Fletch (1992).
154
Os “mundos” que os PMs visitam e que constituem o seu próprio mundo policial são
assistir e de freqüentar por muito tempo. É preciso “ter estômago” para socorrer um
homem anônimo caído na calçada sufocando-se em seu próprio vômito. É preciso segurar
a sensação de náusea diante de cenas nas quais se encontram indivíduos mutilados, corpos
Os PMs privam de um saber especial e doloroso que, em boa parte, costuma ser partilhado
somente com outros policiais e, às vezes, com seus familiares. As reservas em expor esse
percepção de que esse conhecimento choca, expõe as feridas e desencanta; ele mostra “a
nua e crua realidade” dos atos. Em certa medida, ele desumaniza aqueles que, de algum
não contar para ninguém porque ela ia parar com essa vida. Até hoje eu não falei
nada, mas eu fiquei na minha vigiando ela. Eu não vi mais ela por ali e as outras
garotas falaram que ela tinha sumido. Depois que eu virei polícia eu comecei a ver
que todo mundo tem um lado que quer esconder.”
(Soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)
“Eu não disse para a minha mulher que eu precisei matar um vagabundo. Eu e meu
parceiro surpreendemos um elemento assaltando as pessoas no ponto de ônibus. O
bandido empreendeu fuga e nós fizemos o cerco e enquadramos ele. Ai, eu gritei
para o camarada: Se entrega porque você dançou! É brincadeira, você acredita que o
marginal sozinho, se protegendo atrás do poste, cresceu para cima da gente. Ele
atirava e gritava: Seus putos, seus PMs de merda! Meu parceiro acertou o joelho do
vagabundo e ele caiu atirando na gente. O cara não parava de atirar. Aí, eu mandei
bala nele. Ele morreu tentando me acertar. Eu fiquei muito alterado, eu fiquei com
isso na cabeça: eu matei, eu matei. Eu fui para casa nervoso. A minha mulher
perguntou o que tinha acontecido e eu só falei que tinha me desentendido no serviço.
Aí eu pensei: se eu contar ela vai ficar pensando “meu marido matou um homem,
meu marido matou um ser humano. Meu marido pode matar alguém de novo”. Eu
passei muito tempo tendo um mesmo sonho: o vagabundo ia morrendo e ia
apontando a arma para mim.”
(Sargento PM, com 16 anos de serviços prestados à PMERJ)
Na rotina, os policiais socializam de forma extremamente seletiva o seu saber das ruas.
As situações reais de tensão e perigo, mesmo que estilizadas e abrandadas, são geralmente
consideradas pesadas e impróprias ao convívio pessoal. Como contar que quase ao final
do expediente sua viatura foi alvejada por indivíduos não identificados? Como contar que
“Nesse tempo todo que eu estou na PM eu acho que eu já passei por tudo. Eu já
ajudei a fazer parto, eu e meus companheiros conseguimos escapar de uma
emboscada organizada por um marginal que eu tinha prendido. Eu já tive que levar
156
muita gente para o hospital. Eu já salvei a vida de muita gente. Nesse tempo todo
que eu tirei polícia, três companheiros de guarnição foram mortos pela bandidagem.
Eu estava ali na hora. O último morava perto de mim, era um grande companheiro.
Nós não voltamos para casa juntos. Eu fiquei pensando: o que eu vou dizer para a
mulher dele, para o filhinho dele? Um dia desses aí, eu estava na minha folga e eu
impedi um assalto em um restaurante. Eles eram três e renderam o gerente. Eu estava
no ponto de ônibus e um senhor gritou por socorro. Eu consegui prender eles. Eu não
ganhei premiação porque eu não matei ninguém. Sabe o que eu ganhei? Eu ganhei
uma úlcera, eu tomo remédio para hipertensão, até doença de pele por causa dos
nervos eu já tive. Eu não ganhei premiação porque eu não matei. Mas não tem nada
não, eu estou com a minha consciência tranqüila, minha consciência está limpa com
Cristo.”
(Sargento PM, com 19 anos de serviços prestados à PMERJ)
prática, a represar certas reações emotivas como nojo, náusea, vertigem, mal-estar etc.
Por outro lado, normalmente poupam o seu interlocutor conversando em camadas sobre
estrangulamento, eventos que fazem parte da rotina policial, requer a introdução de filtros
Como se pode deduzir, a vida recortada pelo saber policial de fato não costuma estar
fielmente retratada nos filmes policiais e muito menos nos romances e seriados de TV. A
sordidez do seu relato parece não poder ser traduzida em outra linguagem que não aquela
dos fatos reais. Os policiais percebem isso e normalmente ironizam o que é mostrado do
mundo deles. Ainda que guardem uma especial predileção pelos chamados “filmes de
157
ação”, os seus comentários convergem para o mesmo ponto: “não tem nada a ver com a
realidade, é uma grande ilusão”. Uma visão de mundo reconhecida intimamente como
fantasiosa, mas que os PMs da vida real gostariam, em certa medida, de “copiar”.
Transvestir a realidade de fantasia não apenas assimilando a falsa regularidade das ações
sofisticados, as viaturas feitas sob medida para o trabalho policial, os sensores individuais,
faz com cada PM individualmente é parte integrante do processo afetivo e singular de sua
Durante a minha última visita à Brigada Militar do Rio Grande do Sul, eu saí para jantar
tema de nossa conversa inicial girava em torno dos países e dos costumes que cada um
de nós tinha conhecido e das futuras viagens que gostaríamos de fazer. Mas a discussão
sobre o mundo policial era inevitável. Nós sabíamos que em algum momento ela
aconteceria. Estimulado por minha curiosidade, um dois oficiais resolve me contar aquele
que foi um dos dias mais dramáticos de sua vida no trabalho. Ele havia recebido um
miserável nos arredores de Porto Alegre. Lá chegando com a sua guarnição, constatou
que o incêndio se alastrava com muita velocidade pelos barracos construídos de madeira
o trabalho de resgate e salvamento das vítimas. Conta-me que o que via era hediondo:
queimaduras etc. Homens, mulheres e crianças gritavam de dor e de desespero. Seu relato
tomado conta de tudo e que havia pouco a fazer para tentar salvar os poucos bens que
mulher visivelmente transtornada grita por socorro e agarra o meu confidente, dizendo
que seus dois filhos ainda se encontravam no interior do barraco. Imediatamente toda a
guarnição dirigiu os seus esforços para salvar as crianças. Fala emocionado que apesar de
todo o empenho e mobilização não foi possível “salvar a vida daqueles dois inocentes”.
dissolver feito “um saco de papel”. Neste momento eles ouviam os gemidos das crianças
dos policiais entra em estado de choque, começa a gritar e vai ao encontro das chamas
sendo impedido pelo seu companheiro. A mãe e os demais familiares desesperados gritam
pelo nome das crianças. Revela-me que “todos viram as crianças pegando fogo e não
puderam fazer nada”. “Todos nós ouvimos os gemidos delas até o mais completo
os policiais de terem deixado os seus filhos morrerem. Conta-me que foi emocionalmente
doloroso segurar em seus braços aqueles corpos carbonizados, transfigurados pelo fogo e
pelo carvão. Fala-me que esta foi uma cena que os policiais ali presentes jamais
esqueceram. Encerra o seu relato dizendo-me que ao chegar em casa, abraçou sua mulher
159
e seus filhos – que tinham a mesma idade das vítimas – e permaneceu ali chorando e
Enquanto esse episódio infeliz ia sendo contado, pude observar que as pessoas que
Apesar da discrição de nossa conversa, aqueles que conseguiam ouvi-la iam perdendo a
descontração, o paladar e o apetite. Uma moça que comia uma pizza começou a ter
Experimentações tão intensas como a que foi acima mencionada podem levar à lapidação
de ponta -, mas também produzem marcas profundas que se manifestam tanto pelas
emocionais abruptos que vivenciam no dia-a-dia das ruas, e de como a vivência recorrente
uma percepção ácida da realidade revela-se, por exemplo, no humor policial amargo que,
para aqueles que estão distantes da rotina de polícia, aparece, à primeira vista, como mais
106
Uma seleta de depoimentos de policiais ingleses encontra-se em: Graef (1989).
160
As mais distintas realidades visitadas pelos policiais durante a sua jornada de trabalho
conformam um saber que procura se equilibrar nos extremos, que se capacita a lidar com
Um PM, com algum tempo de polícia ostensiva, logo aprende que as situações que
parecem ser menos perigosas são precisamente aquelas que explodem com um alto grau
Outra lição aprendida nas ruas é aquela que informa que os mais trágicos resultados
intencionais como, por exemplo, os acidentes de trânsito que quase sempre produzem
muitas vítimas. A constatação de que as coisas da vida seguem cursos mais complexos
do que a lógica simplória que determina uma falsa proporcionalidade entre causas e
efeitos - algo do tipo eventos pequenos geram pequenos problemas - contribui para a
corroboração de um saber que se curva às evidências porque ele deve se apresentar como
situações voláteis e fugidias, prima pela sua adaptabilidade ou pela sua concessão ao
161
ordem pública é uma espécie de “faz-tudo”, um tipo de especialista que se generaliza nas
Mas, um conhecimento que se abre às possibilidades, que “dá o seu jeito” para responder
adquire uma marca pessoal, que aparece como algo próprio, individualizado. Esse saber
policiais.
Há um outro ponto que favorece a personalização desse saber tecido nas ruas. Refiro-me
ao fato de que a prestação dos serviços ostensivos de polícia desloca o seu balcão de
Polícia Militar, tem-se, portanto, uma espécie de “franquia ocupacional” que é exercida
vida cotidiana das pessoas - que condiciona, em boa medida, a própria natureza ostensiva
162
valorizadas como derivadas do “estilo pessoal de trabalho” de cada PM. Neste sentido, a
“forma de trabalhar” nas ruas, ainda que faça uso dos expedientes de preparo técnico
aprendido nas escolas, adquire, na prática, uma roupagem personalizada que leva em
personalidade, a sua vivência pessoal, o seu interesse, a sua disposição para o trabalho,
os seus talentos, os seus humores e mesmo a sua afinidade com o "tipo de polícia tirado".
A flexibilidade deste tipo de saber tão individualizado permite, por exemplo, que
imponham às outras ou sejam formuladas como superiores a priori. De fato, os PMs com
de seus próprios modos de atuação, e muito menos se mostram refratários a outras formas
realidade descontínuos e fugazes em que eles são chamados a intervir, como um assalto
em uma rua movimentada da cidade ou uma "briga de ponto" entre camelôs. 107 Porque os
PMs estão todos os dias nas ruas lidando com um elenco de situações supostamente
idênticas e, ao mesmo tempo, irredutíveis entre si, eles sabem que os fatores
107
A necessidade de uma maior sinergia entre o conhecimento formal e o saber informal dos policiais tem-
se apresentado como uma questão relevante mesmo para aquelas polícias que já conseguiram avanços
significativos no seu processo de formação e instrução, como é o caso das polícias inglesas e americanas.
Ver Bittner (1990); Morgan e Newburn (1997).
163
circunstanciais específicos de cada episódio enfrentado devem ser levados em conta, sob
cidadãos.
É evidente que esse tipo de visão não pretende negar que os procedimentos formais e
universais do tipo “de acordo com o manual” têm a sua utilidade e produzem resultados
conseqüentes. O que esse saber prático anuncia é que a negligência dos elementos
policiamento, tendem a ser de pouca serventia. Parece claro, portanto, que um saber de
para superestimar uma leitura particularizante e contextual dos eventos e dos seus cursos.
sendo suspensa por conta das circunstâncias que conformaram uma dada ocorrência. Uma
vez que esse tipo de contextualização é freqüente na retórica policial de rua, fica
suficientemente claro que a norma opera como uma referência para a ação. Os desvios e
as divergências em relação à sua execução não são, portanto, exceções e nem muito
menos acidentes de percurso. Na rua, se “faz tudo diferente” porque a própria aplicação
da norma parece sempre envolver a sua necessária adequação aos valorizados fatores
circunstanciais. Dito de outra maneira, o "mundo da lei" precisa ser interpretado e, por
sua vez, ajustado as diversas realidades com compõem as "leis do mundo". Mesmo que
fosse possível imaginar que todo o pessoal da linha de frente da PM pudesse ser
164
adotadas, ainda assim persistiria o desafio colocado pelos fatores circunstanciais que
conformam uma dada ocorrência policial. Isso porque o curso de ação escolhido para
ação.
Penso que é importante ressaltar que um saber generoso e atento a tudo aquilo que se
redutor de que “a prática nega a teoria” ou vice-versa. Em verdade, esse saber é uma
impostas pela vida prática, entre elas a instrumentalização desse mesmo conhecimento.
Quando os PMs dizem que nos seus primeiros dias de rua logo aprendem a lição "esqueça
praticado, que parece dialogar muito pouco com as situações concretas que aparecem nas
ruas. A ênfase excessiva sobre “o que não se pode fazer” deixa a cargo das habilidades
metodologia desse ensino e os saberes necessários não apenas para sobreviver dentro da
organização policial militar, mas também para efetuar o trabalho de polícia de forma atual
e conseqüente.108
O que esse saber prático e informal construído pelos PMs faz é, em certa medida, tentar
profissional. Esta é uma forma de saber que vai se experimentando, que vai sendo testada
a cada nova e específica situação e que procura sempre conciliar os procedimentos gerais
com as dinâmicas e os fluxos da realidade cotidiana. Esse saber, como qualquer outro,
não se furta à incorporação das normas e técnicas aprendidas. Entretanto, não se pode
perder de vista que ele precisa ser efetivamente útil. Na retórica policial de rua, o
“método” de trabalho saído desse saber não aparece na fala dos PMs como um artefato
108
Tal como ocorre em outros meios de força policiais, o predomínio da visão normativo-legal da polícia,
da qual deriva o papel institucional das agências policiais, obscurece, em boa medida, a realidade da
execução desse mesmo papel.
166
é chamado a atuar na emergência dos eventos, no agora e já das pessoas, das coisas e das
para os “outros”, posta para qualquer PM de ponta, contribui para um recorte singular da
cronologia dos acontecimentos. Parece indispensável a esse saber ser capaz de lidar com
a intensidade dos indivíduos, dos atos e dos fatos sobre os quais é chamado a intervir. O
do uso da força; ele se mostra necessário em todos os aspectos que compõem a atividade
encontros irregulares com os cidadãos. Inscrito, em boa medida, na urgência prescrita por
aqueles que mobilizam os serviços da polícia da ordem pública, esse saber deve se mostrar
acontecimento enfrentado.
intensidade dos episódios vivenciados etc., parece não poder prescindir do afetivo, ou
racionalidade, reconhece o mundo das emoções como um importante recurso que deve
“Quando o lado racional falha e o lado militar falha também, a gente apela para a
emoção, a gente se apega à intuição que todo o polícia tem”. (Cabo PM, com 9 anos
de serviços prestados à PMERJ).
desespero. Nesse tipo de ocupação profissional, que lida principalmente com situações
que envolvem todo tipo de sentimento, como ódio, indignação, fúria, desprezo e medo,
descontrole emocional típico das pessoas comuns em situações de crise. Na prática, isso
se traduz, por exemplo, em “não aceitar provocações”, ou melhor, em “não entrar no jogo
apresenta como um impulso decisivo rumo à tomada de decisão, ora como uma poderosa
Nota-se que os PMs se sentem mais confortáveis e seguros naquelas situações cuja
que nestas ocorrências a possibilidade de resistência violenta esteja colocada desde o seu
crime em andamento. Nestas ocorrências, “a polícia sabe o que a espera”, porque policiais
oponentes: “de arma na mão eles [os criminosos] são todos valentões; é só desarmar que
ponto de vista penal, e que envolvem, sobretudo, querelas entre pessoas comuns ou
“vítimas”. É, por excelência, neste último grupo de ocorrências que a dupla exigência de
“fator surpresa”, que se faz presente tanto no comportamento dos envolvidos, quanto no
e, por sua vez, o acionamento de reações policiais típicas. Isto se traduz em um problema
real da ação de polícia: enquanto nas colisões com os delinqüentes a preocupação maior
do PM é a possibilidade de inação (“fiz menos do que devia e podia”), nas interações com
do que devia e podia”). Esse é, certamente, um dos clássicos dilemas morais vividos no
contribuir de forma decisiva não apenas para reduzir a insegurança quanto à forma de
intuitivamente para o que eles interpretam como sendo o amplo e nem sempre harmônico
Um outro aspecto interessante do saber policial de rua é a sua comunhão, ou melhor, são
os seus planos de contigüidade com outros saberes que orientam certas personagens que
vivem das ruas ou estão freqüentemente nas ruas das cidades. O conhecimento de área
urbana, dos seus fluxos, das suas personagens, dos seus códigos informais, das suas regras
através de suas inserções, e que disputam os seus espaços, inscrevendo neles a sua própria
forma de estar no mundo. De certa maneira, esses personagens estão – como os policiais
modo. Todos eles, invariavelmente, sabem o que acontece ao seu redor, quem entra e
quem sai dos seus territórios, “quem está fazendo o quê” e “o que está procurando”. 109
É fato que esse acervo de informações tem sido tradicionalmente cobiçado pelos PMs que
se encontram na linha da obrigação. As interações amistosas com os atores que estão nas
109
Para uma apreciação acerca dos códigos de tolerância e da construção de uma sintaxe ampliada das
ruas ver: Silva, 1995.
170
ruas e as “colaborações forçadas com a autoridade policial” extraídas dos indivíduos que
apontadores do bicho), que são colocados à margem da vida social (como os “sem-teto”
cotidiano de polícia. 110 Isso porque o sentido de observação e de vigília está posto, em
algum nível, para todos aqueles que ingressam de uma forma ilegal, clandestina ou
informal na gramática ampliada das ruas. Creio ser possível dizer que a horda de urbanitas
que vaga pela cidade e conquista os seus “pontos” realiza, no limite do seu próprio
recortadas por cada tribo ou grupo urbano são, via de regra, visitados pelos PMs durante
Mas a afinidade do saber policial com esses outros saberes informais põe em evidência
uma importante característica comum a todos eles. Refiro-me à baixa visibilidade das
esquinas e calçadas da cidade pelos PMs, e pelo “povo das ruas”, configura um tipo de
110
Sobre os obstáculos e as facilidades encontradas pelos PMs do programa de policiamento comunitário
no trabalho de confecção de parcerias de ponta, ver Musumeci (1996).
171
da cidade. Ele resulta das dinâmicas de interação e observação de atores cujos discursos
Para alguns estudiosos de polícia, uma das razões pelas quais o processo discricionário
polícia ostensiva – sofre de pouca visibilidade, reporta-se à evidência de que ele se centra
principalmente em torno da vida de pessoas cujas vozes contam muito pouco no fórum
da opinião pública.111 De fato, é extremamente raro que um PM tome alguma decisão que
afete as condições de vida dos membros das classes média e alta. Na rotina do trabalho
administração dos crimes, conflitos e desordens ocorridos nos espaços públicos. Por conta
do controle do tráfego, nos conflitos e acidentes de trânsito. Contudo, para o resto dos
substantiva as suas vidas. Os atendimentos assistenciais (que respondem por uma parcela
111
Para um discussão sobre a dimensão política dos processos decisórios policiais e seus impactos na vida
dos cidadãos comuns ver, Bittner (1990); Skolnick (1994); Muir Jr. (1977).
172
Há ainda uma outra marca distintiva desse saber que se mostra afim e interessado nos
configuram o patrimônio intelectual dos PMs designados para o trabalho de rua, são o
produto do apego desmedido à minúcia, elas resultam de uma espécie de obsessão pelo
como um saber detalhista que se ocupa, até as últimas conseqüências, dos mais
importância para o PM da blue line que diariamente interage com os inúmeros anônimos
que compõem a massa urbana. Um bigode, uma voz, um cheiro, uma cicatriz, um cabelo
pintado, uns óculos com lentes azuis, uma pantomima, um cacoete etc. fazem parte do
escopo de atenção de um tipo de saber que não só personaliza quem o detém, mas que
também procura individualizar, até o limite, as pessoas sobre as quais debruça a sua
vigilante e suspeitosa observação. Salvo exceções, todo policial acha que já conheceu,
conhece ou conhecerá aquelas pessoas que porventura se tornam objeto do seu olhar
vigilante. Expressões do tipo “eu acho que te conheço”, “eu já te vi em algum lugar” ou
“você parece com (ou está me lembrando) alguém que eu conheço” fazem parte da típica
sociabilidade policial.
Não se trata de um "conhecimento de fato” tal como definido pelos cânones científicos,
compromissado com as dimensões mais irredutíveis das experiências por ele passadas em
revista. Esta é, certamente, uma forma de apreensão do mundo que necessita de uma
173
mapeadas. As estórias contadas pelos PMs são invariavelmente narradas de uma forma
muito precisa e descrevem, com uma enorme riqueza de detalhes, os indivíduos, os seus
nomes e vulgos, os locais, os objetos, as horas, a “mecânica dos eventos” etc. Este é um
saber que prima pela oralidade. Quando rompido o receio de comentar sobre o seu próprio
desandam a falar animados, sempre em grande profusão, sobre o que sabem, o que viram
e o que participaram. É preciso insistir, os eventos e seus mais discretos efeitos são
de seu setor; e isto de tal modo que eles organizam e reconhecem, em um simples relance,
realidade visitada. Trata-se, portanto, de um olhar entre tantos outros olhares que
capturam a vida cotidiana, ainda que o pragmático “olho técnico policial” guarde a
pretensão do controle efetivo dos territórios físicos e simbólicos que compõem o seu
campo de observação.
De todo modo, o que parece pertinente para este saber, produzido no calor dos
acumulação cada vez maior de informações que sejam passíveis de classificação e que
possam vir a ser fundamentalmente úteis para a ação. O conhecimento factual da área de
Guardadas as devidas precauções, pode-se dizer que o saber produzido pelos policiais de
que ele, por ora, se dedica. Não muito diferente do que fazem os antropólogos sociais em
após dia cobrindo a sua área, convivendo com os seus “índios” e tomando decisões que
recortados tendem a ser apreendidos como uma instância particular de uma classe de
112
Em diversos textos, Roberto Kant de Lima chama a atenção para os planos de contiguidade existentes
entre o lugar do pesquisador que observa e investiga, e o papel do policial que se utiliza dos mesmos
expedientes para intervir, pela ótica do controle social, na realidade que observa. Ver Lima (1995).
175
eventos, não sendo categorizados nem como episódios únicos e incomparáveis, nem
É bem verdade que o conhecimento etnográfico da área de patrulha tem sido elaborado a
daqueles que motivam os antropólogos a conviverem, por algum período de tempo, com
dos seus autores, tem uma finalidade prática que, em boa medida, endereça o seu modo
de olhar para a realidade: o ato de “policiar” constrói uma perspectiva diversa daquela
do saber policial traz a pretensão de "descobrir e provar a suposta verdade dos atos". A
imprimir algum controle mesmo que difuso e indireto. Restrita ao seu universo de
cumprimento da missão e das atribuições policiais. É a partir dela que o PM que patrulha
"A grande coisa de trabalhar na rua é que você não precisa ir para a guerra ou para a selva para ter aventuras.
Você tem muita adrenalina, muita excitação e ainda sai do trabalho e volta para a família".
(Soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)
“O meu negócio é ação, eu sou muito operacional. Eu gosto mesmo de subir morro, de tirar polícia no
BOPE, no Choque, na PATAMO. É uma questão de temperamento. Eu quis ser policial porque eu gosto
do perigo e da aventura. Eu não sirvo para ficar atrás de uma mesa de escritório”.
(Soldado PM, com 4 anos de serviços prestados à PMERJ).
“Você quando começa a tirar polícia, você tem aquela agitação. Todo bicho novo quer está na frente do
negócio, quer trocar tiro, quer correr perigo, quer ficar com a adrenalina lá em cima. Eu agora estou
tranqüilo, quero completar o meu tempo de polícia mais relaxado. Eu deixo para os mais jovens esse
negócio de correr atrás de vagabundo”.
(Subtenente PM com 27 anos de serviços prestados à PMERJ)
Fazer trabalho de campo com a polícia ostensiva é, de alguma maneira, também aprender
particularmente aqueles que estão lotados nas diversas modalidades de patrulha. No dia-
a-dia de uma unidade operacional - pode ser um Batalhão, uma companhia independente
estão sempre “empenhadas” nas tarefas de rua. Segundo os dados mais recentes do Estado
Maior Geral da PMERJ, eles correspondem a 95,3% do efetivo policial militar da cidade
do Rio de Janeiro, e seu índice de emprego nas atividades-fim apresenta uma média que
oscila em torno de 82,8% de sua capacidade de pronto emprego. Em uma frase, isto quer
dizer que nossos policiais ostensivos estão invariavelmente “de serviço” nas ruas,
cavar uma brecha para conversar informalmente ou realizar uma entrevista estruturada
com esses assoberbados executivos das esquinas, ainda que por pouco tempo, foi preciso
Logo que comecei a superar a estranheza inicial causada pela presença de uma
teria que ser mais efetiva aproveitando, na medida do possível, as possibilidades que aos
trabalho; após a ordem unida; alguns minutos antes da divulgação da escala de serviço;
nos breves intervalos para refeição; ao final do expediente e mesmo durante as rondas
foi realmente decisivo para uma apreensão mais sensível do dia-a-dia policial. Por conta
aquele tipo de conversa fragmentada cujo desfecho vai se concluindo dia após dia.
179
Uma coisa era imediatamente perceptível na maioria dos PMs de ponta com os quais
convivi – a pressa de ir para as ruas, o gosto em vestir a farda e ir tomar conta do seu
crime”, “vencer o mal”, “acertar a conta com a bandidagem”, “aplicar a lei” etc.), tinha
como pano de fundo um certo amor pelo imprevisível, um certo prazer pela excitação de
Muitos autores têm chamado atenção para alguns aspectos universais da cop culture,
dentre eles destaca-se o seu caráter hedonista (Muir Jr., 1977; Skolnick, 1994; Bittner,
1990; Reiner, 1992; Chan, 1997). Mesmo que a missão de policiar pareça invariavelmente
cansativa e muito desgastante, ela é posta na retórica das ruas como uma atribuição que,
em algum nível, precisa ter “o seu lado divertido e empolgante”. O esgotamento físico
própria natureza do trabalho ostensivo, cujo bem produzido é difuso, indiviso e pouco
tangível, são contrabalançados pelo forte convite lúdico de “estar solto nas ruas” vagando
e interagindo com toda sorte de eventos, confrontando-se com o acaso, “dando uma volta”
consentida aos que legalmente vigiam) de poder entrar e sair dos mais distintos mundos
relação ao resto da tropa do 19o BPM que, por escassez de recurso, não poderia dispor da
descobrir “as manhas do amigo do peito”. Durante as rondas a pé, eles acionavam com
freqüência o novo brinquedo mesmo sem haver muita necessidade. Parecia ser realmente
muito divertido brincar de “polícia do primeiro mundo”. Assim, eles estavam sempre
tentando contatar os seus colegas de turno: “Câmbio, aqui é o SD fulano do setor bravo,
tentando chamar o setor delta. Tudo tranqüilo aí? Aqui está tudo sob controle.” O mesmo
aspecto lúdico se fez presente quando foi implantado o sistema GPS nas viaturas. Várias
vezes fui convidada a ouvir explicações sobre o porque da “corcova” dos carros e a assistir
Certa vez um policial, absolutamente convicto de sua escolha de vida, disse-me que
“como bem mostrou o poeta, tirar polícia é perigoso, divino e maravilhoso”. Enquanto
apaixonada que contagiava toda a rodinha da conversa e contrastava com os aspectos mais
crus da vida policial – vinham à minha mente algumas frases de sua própria referência
poética e os possíveis significados que essa apropriação estética tão particular emprestava
Creio que devo concordar com o meu filosófico interlocutor: tem algo de maravilhoso,
divino e perigoso no ato de lidar com a condição humana em todas as suas exasperações.
As ruas de uma grande cidade ofertam a certos atores – como o policial, por exemplo - a
dramáticas. Algumas delas chegam a ser ridículas, banais e monstruosas, mas todas elas
são inegavelmente verdadeiras, sentidas, reais. Os seus efeitos produzem ecos nas vidas
das pessoas e são, em muitos casos, fatais ou irreversíveis. Talvez, por conta dessa
assistir e socorrer” se traduza nas ruas em um tipo de convocação que incita ao desafio,
ao arrojo, ao risco e, por tudo isso, à inscrição subjetiva em uma espécie de incansável
subjetividade policial elaborada nas ruas, sobretudo entre os PMs mais jovens. Elas
poder de intervenção que esse mesmo mundo possibilita. Note-se que este tipo de apelo
de polícia, costumam ser objetos de censura no meio policial e, evidentemente, não fazem
Um dos tipos ideais esculpidos pela cultura policial é aquele agente da lei impávido e
assertivo que é capaz de levar aos extremos os adjetivos acima mencionados, não se
deixando contaminar pelas fraquezas humanas que ele assiste, socorre, protege ou
Eastwood, que se utiliza de meios por vezes controvertidos e heterodoxos para produzir
o bem inquestionável, faz parte do elenco de perfis policiais teatralizados nas ruas. Não
importando a idade e o tempo de polícia tirado, todo PM de ponta tem ao menos uma
estória mirabolante ou uma aventura perigosa e arriscada para contar. O prazer de narrar
estas estórias consiste em uma forma vaidosa de anunciar o seu mundo para si mesmo e
imediatos. Neste sentido, parece pouco relevante se essas narrativas heróicas reproduzem
simbólico de reordenação das trajetórias individuais à luz dos ícones e dos valores que
Assim como aprendemos nas sagas heróicas e nas histórias em quadrinhos, a missão de
proteger na vida real os indefesos contra os predatórios tem igualmente um alto preço,
que prevê o propagandeado “risco da própria vida”. Mas dele também se pode tirar algum
prazer, algum proveito. Já mencionei que a profissão policial adquire uma roupagem
mística e um certo glamour que contagia e, em boa medida, contribui para a adesão
subterrâneos da vida social, e de que esta presença deve poupar o resto dos mortais
183
comuns das confrontações diretas com o pavoroso, com o sinistro e com o repugnante de
nós mesmos, faz com que os policiais se percebam e sejam percebidos como proprietários
para a apreensão do papel do PM como uma espécie de fiel depositário do superego social
e, por conseguinte, como a principal linha de defesa da sociedade contra os seus próprios
males. Neste sentido, apesar das ondas de descrédito e desconfiança populares, a atividade
de polícia não é percebida por aqueles que integram a thin blue line como um trabalho
qualquer que pode ser realizado por qualquer um, mas, inversamente, como uma honrada
e difícil atribuição que requer qualidades especiais e que, por isso mesmo, deve ser
De fato, o trabalho policial ostensivo e tudo aquilo que se pode vivenciar através dele,
como, por exemplo, o exercício capilar da autoridade, o emprego legal e legítimo da força,
autorização para deter alguém, o “respeito forçado” dos criminosos de rua e, mesmo, a
exercem um grande fascínio sobre aqueles que, por alguma razão, ingressam nos quadros
ordem pública, ele dispõe de uma infinidade de recursos que não estão disponíveis a todos
os indivíduos, e que o faz mais qualificado e mais “poderoso” do que um cidadão comum.
Isto é mais evidente no que diz respeito às suas decisões que podem alterar sensivelmente
184
o curso da vida das pessoas com as quais colide ou é chamado a interagir. Mesmo que em
uma versão menos grandiosa e mais ordinária do que a odisséia anunciada pelo imponente
Jano, os indivíduos que se tornam policiais estão, como o deus romano das transições e
Por razões óbvias, as motivações que levam jovens, em sua maioria, provenientes da
classe média baixa, com apenas o primeiro grau concluído e residentes nas regiões pobres
família”, as explicações para continuar sendo policial, encontram o seu paraíso no amor
despeito das preocupações familiares com a natureza arriscada do trabalho de polícia, dos
afirmação de que na lida se “pega gosto pelo serviço”, ou de que é na prática que se
tímida vocação para “resolver rápido os problemas da população”, para “topar qualquer
185
parada” ou para “segurar qualquer tranco” que, de uma forma escondida, já se fazia
presente desde o início. Não muito diferente da conversão evangélica que constrange os
“nascimento para a nova vida” policial, mesmo que conduzindo à perda da inocência
original, reproduz o mesmo tipo de demanda subjetiva para aqueles que pretendem
professar o seu credo. De certa maneira, a vinculação efetiva ao mundo policial requer
que a tarefa de policiamento seja internalizada não apenas como uma atividade
profissional entre outras, mas como uma relevante causa a ser defendida após a conversão.
De fato, a devoção emocional aos apelos da cultura policial de rua é vivida de uma forma
mais intensa pelos policiais mais jovens e, por conseguinte, com menos tempo de serviço
prestado à corporação. Fica evidente que não só as qualidades pessoais mencionadas nas
falas dos PMs de ponta como imprescindíveis ao policial ideal, como também a natureza
concreta de boa parte das atividades ostensivas de polícia, guardam uma afinidade estreita
juventude. Muito próximo do que ocorre em outras profissões que necessitam, em parte
simbólicos associados aos indivíduos jovens, como a saúde, o vigor, a disposição, a boa
forma física, a audácia etc. A necessidade constante das organizações policiais ostensivas
desgaste natural do trabalho feito nas ruas. A composição etária atual dos policiais
Como se pode notar, mais da metade dos PMs que são empregados nas atividades
que 24% deles encontram-se na faixa de 30 a 34 anos e que nada menos do que 35% dos
Pelos dados acima dispostos, não resta dúvida de que a PMERJ apresenta um perfil de
idade que contribui para reforçar a importância conferida aos atributos da juventude.
Talvez se possa dizer que a juventude aparece no mundo policial como um valor em si
organização, mas antes de uma evocação aos atributos físicos e morais da jovialidade que
adquirida através dos recursos técnicos da força física, o manuseio profissional da arma
de fogo e a disponibilidade para enfrentar situações de perigo e risco, são sintetizados nas
falas dos PMs pela expressão “ser operacional” cujos significados apontam, entre outras
coisas, para a pretensão de que o espírito jovial ultrapasse o seu próprio tempo. Na cultura
policial das ruas uma das fantasias expressas é a de que ser policial é, em alguma medida,
permanecer “sempre jovem” e, por isso mesmo, “mostrar-se um [homem] forte”, potente
e viril diante dos desafios a serem enfrentados. O imaginário policial tecido nas ruas pede
que seus integrantes absorvam os acontecimentos pela intensidade dos atos. A fixação e
descontínuo e provisório (Cf. Maffesoli, 1984 e 1987). Uma das estratégias subjetivas
plausíveis para contornar a potência do acaso e das contingências posta na vida ordinária
atemporal.
Um PM que siga à risca o receituário saído das ruas não se contenta apenas em ver e ser
visto durante o seu trabalho. Ele guarda a expectativa juvenil de ser efetivamente notado,
ele deseja ter algum destaque. Este é um problema peculiar das atividades cotidianas de
maior parte dos resultados da presença ostensiva da PM nas ruas se desfaz como um
ozônio e tem permanecido imaterial e incontável. Toda essa dimensão invisível do grande
introduz mais um estímulo para que os PMs que estão na linha da obrigação não consigam
do trabalho ostensivo. Soma-se a isso o fato de que tanto o sistema criminal quanto a
opinião pública validam como o produto prioritário do serviço de polícia o que resulta da
contabilidade dos corpos e das coisas: os bens ilegais apreendidos, os criminosos presos,
113
A comunhão entre a “invisibilidade” das atividades ostensivas convencionais e a cobrança por resultados
tangíveis que alimentem a lógica do sistema criminal, constitui uma mistura em si mesma explosiva, uma
vez que alimenta, ainda que de forma indesejada ou não prevista, o controvertido “produtivismo policial”.
Levando em consideração os estímulos saídos da cultura policial das ruas, fica evidente que para multiplicar
resultados desastrosos e irreversíveis das ações ostensivas basta, por exemplo, a introdução de mecanismos
de avaliação e premiação que reforcem e valorizem as ações ostensivas excepcionais como os confrontos
armados, os enfrentamentos etc. Alguns departamentos americanos de polícia experimentaram o
crescimento da letalidade da ação policial e a fabricação ilegal de flagrantes e provas por conta da cobrança
exagerada de produtividade. No caso carioca, a “premiação por bravura” - apelidada pelos policiais de
“premiação faroeste” – parece ter sido suficiente para exponenciar as arbitrariedades praticadas e o poder
letal das organizações policiais. Ver Skolnick e Fyfe (1993); Cano (1997).
189
Há, ainda, um outro ponto a ser mencionado sobre a concepção juvenil de que a vida
atividades de patrulha que também costuma ser enfadonho, trivial e, em alguns casos,
De certa maneira, essa versão espetacular da vida policial procura também contornar o
tédio e a monotonia que se fazem presentes nas alternâncias de ritmo próprias de uma
ronda convencional em uma dada área da cidade. Quem ao menos já parou ao lado de
uma radiopatrulha em um sinal de trânsito, pôde perceber o estado fastidioso dos seus
uma ocorrência a ser assumida. Os PMs têm razão quando afirmam orgulhosos que na
rua acontece de tudo. Mas é igualmente verdade que esse “tudo” contém, inclusive, o
é possível vivenciar situações incertas e violentas. Nada pior para atores que se definem
ostensivo concluir que nada aconteceu em todo o seu dia de trabalho pela falta de
se tem a certeza universal que alguma coisa está acontecendo em algum lugar e neste
A força do acaso tem o mau hábito de sempre pregar as suas peças. A contrapartida da
imprevisível e insurreto dos eventos - que não avisam antecipadamente onde e quando
sua política de policiamento, colida com os problemas que cabe a ela resolver, mas
Os PMs sabem que no seu plano de ronda eles podem ter passado segundos antes de um
certo fato acontecer ou minutos depois de um outro episódio ter acontecido. Faz parte do
seu trabalho lidar com o descompasso de estar em todos os lugares e de não se encontrar
provisoriamente indispensável. Faz parte ainda do seu trabalho conviver com um certo
nível de frustração extraído da sensação de que a polícia pode não estar na hora que
alguma pessoa precisa dela porque, de forma difusa, ela se encontra servindo a todos e
em todos os lugares.
114
Os policiais alemães parecem ter uma outra forma de entendimento do trabalho ostensivo que realizam.
Segundo as descrições do “diário de campo” do Ten Cel PM Ubiratan, que realizou diversas visitas técnicas
à Polícia Alemã, um dia de trabalho produtivo é, exatamente, aquele em que “nada aconteceu” na área de
cobertura do patrulheiro por conta de sua presença ostensiva. Ver Relatório de Visita à Alemanha, PMERJ,
1990.
191
demais policiais com os quais convivi disseram-me que, antes de entrarem para o Curso
medida do possível, procuravam evitar qualquer contato com policiais. Creio que essas
percepções iniciais não causam nenhuma surpresa ou qualquer espanto. Não se pode
esquecer que, até há bem pouco tempo, as Cartas Constitucionais, bem como as políticas
de segurança adotadas nas unidades federativas, foram explicitamente orientadas por uma
tranqüilidade dos cidadãos de bem. Para aqueles atores saídos dos chamados “balões de
cidadania, virar um policial tem um significado muito maior do que a conquista de uma
disponibilizados ao agente policial não é uma experiência que pode ser classificada como
trivial, sobretudo para sujeitos cuja origem social não os credenciava politicamente como
cidadãos plenos. Cumpre notar que o abstrato “poder de polícia” ganha de fato concreção
quando exercido na ponta da linha, ou melhor, quando executado por cada PM ao dobrar
uma esquina e colidir com um crime em andamento, ao ser destacado para um evento de
exaltados etc.
A construção diária da autoridade policial respaldada pelo recurso legal e legítimo do uso
doutrinários e técnicos que embasam o seu exercício. Além das informações sobre as
legislações criminal, civil e militar e suas formas de execução, dos saberes relativos ao
ambientes onde ele realmente atua. Ele precisa aprender “na marra”, on the job, como
as suas ações nos cenários mais heteróclitos com os quais ele se depara. Ele precisa
ele precisa descobrir, também on the job, como exercer a autoridade sem ser arbitrário ou
autoritário.
percebem que precisam “ter jogo de cintura” para lidar com a volatilidade dos eventos
porque a oferta aos cidadãos de alternativas de obediência às leis, mesmo que legais e
Assim, tão logo as praças ingressam no trabalho de rua, constatam que não é suficiente a
envergadura legal do seu mandato; percebem, pela força da prática, que não basta o
aparato jurídico formal que os qualifica como agentes da lei. Mostra-se indispensável a
193
o seu exercício.
cada situação particular não é um empreendimento fácil, muito menos ausente de tensões
e equívocos. Isto porque a aplicação rigorosa e precisa das leis não corresponde ao amplo
espectro da ordem pública, assim como não está previamente garantido que o movimento
estão na linha da obrigação (the thin blue line), são investidos de um considerável poder
formal (de direito) e de um poder físico (de fato) por eles administrados em um amplo e
encontram uma tradução legal possível. No dia-a-dia, os PMs são chamados a atuar
Note-se que a demanda contemporânea por serviços policiais recobre o vasto mundo da
"preservação da paz e moralidade públicas" no qual qualquer evento, além das violações
polícia”. Em quaisquer desses assuntos, espera-se que a atuação policial ostensiva esteja
sempre subordinada aos limites impostos pelo ordenamento legal. Na sua rotina, os
policiais fazem, então, uso do poder discricionário para equilibrar-se na tênue fronteira
seriam, simultânea e paradoxalmente, "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que
imperativos nem sempre conciliáveis do "mundo da lei", das suas formas práticas de
194
execução (law enforcement) e das "leis do mundo" revela que as organizações policiais,
Esta é certamente uma das razões pelas quais a empresa de enraizar o princípio da
autoridade pública na vida diária das pessoas tem sido um dos grandes desafios
ou de sua ameaça caso seja necessário. Eis, aqui, anunciada, uma contradição bastante
ocidentais com tradição liberal, adquiriu conteúdos particulares entre nós. Por um lado,
pública contribuíram, de uma forma decisiva, para a percepção – viva ainda hoje naqueles
insurgentes” - de que a presença do Estado na vida das pessoas tem sido ora clientelista,
ora invasiva, desrespeitosa e arbitrária. Não sem razões, esta forma de entendimento foi
por causa dos seus procedimentos de interação com as camadas menos favorecidas da
195
população que nem sempre primaram pela sustentação das garantias individuais e pela
Uma das sensações mais evidentes para o PM que inicia as suas tarefas de policiamento
quando a resolução do problema que motivou a presença policial foi “vantajosa” para o
melhor, para aqueles que elas acham que “precisam de polícia” como os delinqüentes, a
Politician (Muir Jr., 1977) ou na condição de uma válvula equilibrante das relações de
poder no microcosmo social, o PM rapidamente percebe que ele precisa manobrar com a
espinhosa questão de não permitir que a sua própria autoridade seja leiloada, de não deixar
litigantes que participam da ocorrência atendida. Ele também sabe que, no fundo,
“ninguém gosta de perder” e que, para produzir uma solução satisfatória nas dinâmicas
115
A maior parte dos policiais comunitários do programa de Copacabana reclamava do comportamento dos
“moradores da zona sul” que, do seu ponto de vista, não reconheciam devidamente o papel da autoridade
policial. O tratamento impositivo era dispensado aos comunitários sobretudo pelos comerciantes e síndicos
que “tinham o rei na barriga” e achavam que podiam “dar ordens no PM”. Alguns PMs foram mais enfáticos
em suas críticas à “falta de educação” de alguns membros da comunidade que, só “vendo o seu lado”,
queriam que o policial ficasse vigiando o seu patrimônio.
196
As lições extraídas das ruas advertem para uma infinidade de riscos e tentações aos quais
descoberta de que quando vestem suas fardas se transformam em uma “outra pessoa”,
Mostra-se indispensável “ter cabeça fria” e não se deixar levar pelo deslumbramento
trazido, por exemplo, pelo poder de parar, deter ou questionar alguém. É preciso, ainda,
“ter a cabeça no lugar” para enfrentar toda a sorte de testes colocados nas interações com
os cidadãos. Os PMs aprendem on the job, que a sua autoridade encontra-se regularmente
sendo “vigiada” e “questionada”, inclusive nos eventos mais triviais. O simples ato de
tomar um cafezinho no bar leva os outros fregueses a indagarem “será que ele vai pagar?”
turista, faz os curiosos imaginarem “olha lá, o PM está faturando a puta de graça”. Quando
116
Estas situações mencionadas estão reunidas na “Cartilha de Humanização e Qualidade na Prestação de
Serviços Policiais”, Vol. I e Vol II, de autoria do Psicólogo e Ten Cel PM Luiz Fernando Santos de
Azevedo, publicada pela APOM/PMERJ, em 1994. O propósito deste rico material didático era, a partir de
episódios reais do dia-a-dia policial, sensibilizar os policiais militares de ponta para a qualidade do serviço
policial prestado, ofertando alternativas concretas de ação elaboradas em sintonia com a prática ostensiva.
Face aos resultados positivos obtidos, este material passou a compor o “Módulo Profissionalizante” do
Telecurso 2000, um projeto voltado para as praças que possuem apenas o primeiro grau, implantado em
março de 1999 através de um convênio entre a PMERJ, o Movimento Viva Rio e a Fundação Roberto
Marinho.
197
Após algum tempo passado nas ruas, o PM sabe que pode “ser mal interpretado” e que o
seu “poder de polícia” está, na maioria do eventos, sendo colocado a prova. Certa vez um
sargento PM explicou-me que a “experiência” ensina como lidar com essa difícil questão.
Do seu ponto de vista, basta “saber interpretar a lei” à luz das circunstâncias (o que em si
ocorrências em que o policial não está muito certo de sua decisão, seria necessário
problema em tela. Meu interlocutor conclui sua explicação dizendo-me que, no dia-a-dia,
comuns que, em sua maioria, possuem “desconhecimento de causa” dos seus próprios
conflitos. Sob esta ótica, a falta generalizada de informações sobre os direitos e deveres
que conformam o exercício da cidadania seria um dos fatores que mais contribuem para
Como se vê, administrar, em cada ocorrência atendida ou no curso de uma ação escolhida,
à complexa arte de exercer a autoridade policial no estado democrático. Isso fica mais
pelos PMs tem correspondido a uma zona cinzenta, de "baixa visibilidade" do trabalho
policial (cf. Elliston e Feldberg, 1985; Kleinig, 1996). Não é demais enfatizar que o
desenvolvidas nas ruas, tem permanecido pouco visível para as próprias organizações
198
eficaz. Se isto procede, cabe advertir que as iniciativas de prevenção e dissuasão bem-
“Todo mundo tem alguma coisa para esconder da polícia. Quem não cometeu um erro na vida? A gente
nunca pode garantir o que está por trás das pessoas. Tem gente que chama a polícia por um motivo fútil só
para tentar prejudicar um antigo desafeto. O policial tem que estar esperto para isso.”
(Sargento PM, com 23 anos de serviços prestados à PMERJ)
“Todos mentem para a polícia, até o inocente mente para a polícia. É da psicologia das pessoas. ”
(Cabo PM, com 16 anos de serviços prestados à PMERJ)
“Um dia é da caça, outro do caçador”. Este é um dos muitos provérbios da sabedoria
que nas narrativas míticas não pode prescindir de uma força física incomum, de uma
limites do caos que, identificado com as feras indomáveis ou insurretas, subsiste nos
civilizatória contra tudo aquilo que associamos à animalidade e que nos faz contíguos a
caçada simbólica que investe não apenas contra as bestas reais e imaginárias, mas,
comum sobre as forças identificadas como negativas e malfeitoras, se faz por intermédio
todas as suas manifestações. Ávido em melhorar o mundo em que vivemos, o arcanjo São
Miguel, patrono dos cavaleiros, não poupou a sua espada quando venceu o demônio e pôs
pelo popular São Jorge, cuja trajetória como cavaleiro converte-se na cristalização da
No nosso sincretismo religioso, a figura de São Jorge aparece vinculada ao Orixá Ogun.
Este último é descrito como um ancestral africano destemido, justo e, também, muito
emotivo que dominava tanto a arte de caçador quanto a de ferreiro. Suas epopéias falam
de um Deus que elogia a vida comunitária e inaugura a era civilizada representada pela
suplantar o pânico da morte e a finitude que ela enseja, Ogun é apresentado, em muitas
de suas lendas, como uma divindade zelosa de seu reino e sempre disposto a enfrentar os
aqueles que são “protegidos” ou “filhos” de Ogun trazem um talento especial para as
atividades de polícia. Entre os habitats prediletos desse orixá guardião estão as ruas, as
Devotos ou não de São Miguel, integrantes ou não da Companhia de São Jorge, filhos ou
não de Ogun, os PMs da thin blue line encontram-se também inscritos em uma espécie
é, salvo raras exceções, respaldado pelo senso comum. Se para os policiais que estão na
prática de “proteger e servir”, para o senso comum ela se traduz em uma expectativa
sedimentada e, por sua vez, em uma demanda subjetiva a ser atendida. Espera-se, por
lugar, que se cristaliza ao sabor das fronteiras morais e simbólicas acionadas, de uma
a “comunidade do bem” adquire concreção pela delimitação do seu território moral, isto
é, pela demarcação de linhas divisórias que distingam e separem os “tipos bons” dos
“tipos maus”. Isto ocorre não apenas em relação aos episódios torpes, venais e
Aos seus próprios olhos, os PMs de ponta são invariavelmente os “mocinhos” da história,
ou melhor, a turma “sangue bom” que está aí pelas ruas, esquinas e avenidas da cidade
202
“defendendo e protegendo a sociedade”, sua “boa moral”, seus “bons costumes” e seus
robocop, não são, portanto, atores neutros e muito menos alienados dos contextos sociais
nos quais atuam. De um lado, os PMs partilham da ampla grade valorativa que informa
percurso para alcançar os fins justos através de meios não só escassos mas, em muitos
casos, polêmicos do ponto de vista legal, adequados do ponto de vista técnico e toleráveis
circunstâncias de cada episódio atendido, o curso de ação escolhido nem sempre resulta
policial ostensiva. Na prática, nem sempre é possível fazer coincidir a “letra da lei”, a sua
que esses imperativos, ainda que necessários e legítimos, conformam ordens distintas de
cobrança que são, por vezes, contraditórias e, até mesmo, excludentes. Conforme
demonstra o gráfico abaixo, uma parte expressiva das ocorrências registradas pela
configuram como infrações penais e sequer encontram uma tradução propriamente legal.
117
O descompasso existente entre os diversos níveis de contrangimentos mencionados é parte indissociável
da própria natureza do trabalho de polícia e do seu escopo de atuação nas sociedades de tradição liberal-
democrática. Ver Bittner (1990); Skolnick (1994).
203
Em parte por essa razão, os PMs da blue line estão sempre fazendo uso do “bom senso”
como uma espécie de moeda, isto é, como uma ferramenta de equivalência entre os níveis
medida, procurar atender à economia prática do trabalho policial (produzir, com presteza,
políticas e morais que instruem os ambientes sociais onde esse trabalho se desenvolve.
Por conta disso, o “bom senso” policial, resultante da síntese das experiências vividas nas
ruas e dos saberes ordinários extraídos do mundo cotidiano, se presta como um poderoso
recurso cognitivo, mobilizado pelos PMs de uma forma heterogênea, para conter os
De fato, a forte carga moral intrínseca à complexa missão de policiar a ordem pública
o bem a todo custo, uma das leituras possíveis é, exatamente, aquela que interpreta os
criminoso, em seu sentido genérico, seria entendido como uma “provocação” ou uma
“injusta agressão” dirigida aos agentes da lei, de uma forma deliberada e proposital. A
“testar” os policiais, tende a ser perversamente alimentada pela intensidade com que o
isolamento social é sentido por esses atores. O grau da sensação de afastamento percebido
“policiadas”, contribui para radicalizar a distinção funcional posta pela cultura das ruas
de que o mundo social se divide em um “nós contra eles” e, em uma forma mais dramática
uma espécie de juízo final entre polícia e “bandido”. Note-se que, para aqueles PMs que
para revista, os confrontos armados etc., deixam de figurar como um meio para se atingir
maneira que, os flagrantes e as prisões, em vez de serem tratados como um serviço público
de ação policial, passam a ser enquadrados tão-somente como mais uma “vitória pessoal”
individual belicosa, quanto cria a ilusão de que as perseguições aos supostos criminosos
policiais de ponta, que se faz presente nas mais distintas polícias pesquisadas. Estou me
conflito (Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Skolnick e Fyfe, 1993; Reiner, 1992). Pelo menos
se analisa a natureza do trabalho policial sob essa ótica ideal, salta aos olhos a evidência
de que os policiais, mesmo que jamais errem ao fazer uso do seu poder discricionário,
alcançar alguma coisa para alguém somente porque também agiram contra alguém.
dos eventos sobre os quais atua, impedem que os “executivos de quarteirão” possam
refletir, em ato, sobre os aspectos mais essenciais das demandas conflituosas que
mobilizam a sua presença. Os históricos e os contextos dos problemas que chegam até os
também pela própria natureza oportuna da intervenção policial. Assim, embora seja
microcosmo social, sejam judiciosos no exercício do seu poder de polícia, por conta
inclusive das habilidades pessoais desenvolvidas pela experiência adquirida nas ruas,
206
seria extremamente ingênuo supor que, a um só tempo, eles possam ser rápidos, oportunos
e sutis. Mesmo naquelas situações nas quais é possível manobrar os níveis de resistência
apresentados através dos mais baixos gradientes de força como, por exemplo, os
uma apreciação sofisticada da complexidade dos problemas em curso. Uma vez que os
meios de força policiais não podem prescindir da presteza que qualifica a sua performance
e motiva o seu acionamento, as suas iniciativas e os seus desempenhos estão, pela sua
já" das pessoas e dos eventos restringe, de forma drástica, a oportunidade de se emprestar
ordem pública tratar rotineiramente com assuntos que envolvem conflitos humanos
complexos e com questões morais e legais espinhosas, sem ter o tempo necessário e a
dramas exigem, sobretudo quando tratados nos seus fóruns específicos, faz com que o seu
“crueza” de atitudes.
Uma das queixas mais freqüentes entre os PMs de ponta, resulta do sentimento
generalizado de que, via de regra, eles não são devidamente compreendidos pelos
cidadãos. Além de serem chamados de “Seu Guarda”, nada desagrada mais aos
“executivos das esquinas” do que ouvir alegações do tipo “vocês não tem o que fazer,
não?” ou “vocês deviam estar subindo morro e correndo atrás dos bandidos em vez de
importunar o cidadão de bem”, que são constantemente acionadas por aqueles litigantes
207
uma simples ocorrência como, por exemplo, um conflito no trânsito ou uma querela de
vizinhança.
A dolorosa sensação de que “não importa o que fazemos estaremos sempre sendo mal
interpretados”, põe em evidência um dilema moral em parte motivado pela falsa oposição
“polícia-força versus polícia-serviço” que tem sido exaustivamente explorada por visões
O desconhecimento por parte do senso comum ilustrado (incluindo aí alguns setores das
forma criteriosa e consistente, o uso da violência (um impulso arbitrário, ilegal, ilegítimo
e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e profissional). O ônus
dessa indistinção é imenso tanto para Polícia Militar quanto para a sociedade. No que diz
respeito aos PMs que estão na linha da obrigação, essa indistinção tem contribuído para
118
Para um discussão sobre os limites de uma concepção tradicional do papel da Polícia Militar e as
resistências a uma perspectiva voltada para a proteção social, ver Azevedo (1998).
208
procedimentos profissionais de emprego legal e legítimo da força até o seu uso “bem
intencionado”, porém inadequado e, em muitos casos, excessivo e arbitrário por parte dos
policiais.
Note-se que este tipo de enquadramento, perde de vista um elemento básico do estado da
arte de polícia: no momento da interação dos policiais com a sua clientela, a perspectiva
do uso da força está posta por antecipação. Ela é parte indissociável da autoridade policial.
É porque o policial está legalmente autorizado a usar a força para respaldar a sua
autoridade que ele é acionado e pode intervir nos conflitos, abrindo possibilidades para a
sua resolução que vão, desde a negociação até a imposição de alternativas pacíficas de
que o policial assume o papel de um coordenador que orienta o que será feito, comanda
vítimas de acidente de trânsito: iniciativas como parar o trânsito, cercar a área, afastar os
transeuntes, chamar a ambulância, assegurar o seu acesso, lidar com parentes e vítimas,
209
rápido até o hospital, seriam muito pouco eficazes sem a perspectiva de compelir, o que
pressupõe, uma vez mais, a possibilidade do uso de força consentida à autoridade policial.
Conforme salienta Bittner (1990), não se pode ignorar que a presteza policial está
diretamente relacionada ao requisito da força que envolve, não apenas os diversos níveis
de seu emprego efetivo e explícito, mas também a sua própria possibilidade, que está
colocada previamente em qualquer atividade ostensiva de polícia. Isso fica evidente nas
ocorrências mais triviais como “conter e encaminhar um alienado mental”, “conduzir uma
etc.
A essa altura, creio que fica perceptível como a força que respalda a autoridade de polícia
é inseparável de todas as suas ações, ainda que, é importante frisar, ela permaneça como
um elemento potencial em boa parte dos casos, incluindo nesse rol de eventos uma parcela
significativa das ocorrências propriamente criminais. Certamente, esta é uma das muitas
completo das atividades ostensivas de polícia tanto podem contribuir para sua utilização
amadora e desregrada na ponta da linha, quanto ajudam a projetar o seu emprego em uma
não se pode saber “como fica a cabeça do PM”. Parece inevitável a abertura de
oportunidades para que o uso concreto da força pelos policiais seja pontuado por exageros
210
ou imprecisões. Isto é mais grave ainda, naquelas interações cotidianas entre policiais e
fogo. Normalmente inscritos no universo difuso e volátil dos conflitos e das desordens,
esses episódios tendem a camuflar o amplo uso inadequado da força, sobretudo porque
Mas, além dos problemas relacionados aos entendimentos equivocados quanto ao uso da
bastante cientes de que o seu trabalho nas ruas desenvolveu neles uma postura de
constante suspeição que, em graus diferenciados, altera não somente as suas formas de
interação com os atores externos, mas também a sociabilidade desenvolvida com os seus
sofrido. A suspeita apresenta-se como uma forma dramática de olhar o mundo social que
não pode ser literalmente suprimida da rotina de polícia, e cujo preço individual é a perda
propagando-se por todas as esferas de convívio social. Ela está presente na forma
119
Conforme já foi mencionado, esses eventos, quando registrados, tendem a aparecer na contabilidade das
ocorrências policiais militares ora como “desacato à autoridade”, ora como “abuso de autoridade”.
211
receio de que alguém que se aproxima pode guardar o objetivo de “tirar vantagem” da
Várias vezes observei que os PMs, durante suas rondas a pé em Copacabana, seguiam
conversando por longos períodos sem dirigir o olhar um ao outro. Tudo parecia indicar
que eles estavam mais preocupados em permanecer atentos ao que poderia vir até eles.
Muitos deles diziam que as ocorrências vêm sempre ao encontro do policial de uma forma
imperceptível anunciação.
de polícia (cf. Skolnick, 1994). A exigência moral de que os PMs da ordem pública
refinada pelas condições intrínsecas do trabalho policial nas ruas, mas também encorajada
identificar pessoas que estiveram ou estão fazendo “coisas erradas” e, até mesmo, aquelas
“pessoas suspeitas”:
213
XV – PESSOAS SUSPEITAS
1. Um automóvel estacionado em um beco (nem sempre é ilegal), porém pode indicar que um roubo está sendo
cometido ou alguém está a espreita de algo ou alguém.
3. Uma pessoa passando de um carro para outro (pequeno roubo ou roubo de automóvel).
4. Uma pessoa em pé, perto de uma registradora e o caixa está amedrontado. (Um assalto está se processando).
5. Uma pessoa caminhando para um lado e para o outro em frente a um posto de gasolina, mercearia, bar, agência
telegráfica etc. ( Fazendo observações para agir mais tarde).
7. Um veículo que está sendo dirigido sem licença ( roubo, infração de trânsito).
10. Uma pessoa andando apressadamente à noite (pode estar atrasada para o serviço ou pode ser um criminoso).
12. Desocupados rondando guichês de estrada de ferro, terminais de ônibus, caixas de bancos etc.
13. Pessoas usando roupas pesadas quando as condições climáticas não recomendam.
17. Uma pessoa no banco dianteiro que passa para o banco traseiro de um veículo.
20. Uma pessoa que deseja manter uma conversação consigo (distraindo sua atenção enquanto um cúmplice está
cometendo um crime por perto).
21. Uma pessoa pobremente vestida carregando uma mala bastante cara.
23. Homens rondando escolas, play-grounds, parques infantis etc. (Pervertidos sexuais).
25. Homens rondando à noite a entrada de agência de empregos femininos, hospitais, companhia telefônica.
(Assaltos).
26. Jovens indo de casa em casa em áreas residenciais, agindo como se fossem vendedores. (Ladrões de casas)
É claro que essa lista de situações e de “elementos suspeitos” (categoria presente no atual
integralmente adotada pela atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Contudo,
ela serve para indicar as principais variáveis que concorrem para a construção pedagógica
seus níveis de tolerância para com a alteridade e; por fim, o “modus operandi” dos
indivíduos “vigiados” e a percepção do perigo construídos à luz dos padrões culturais que
Do ponto de vista pragmático da cultura policial das ruas, suspeitar consiste em “uma
atitude saudável" de todo policial. Isto significa que, na ordem prática, os PMs da blue
line necessitam desenvolver mapas do mundo social, de modo que eles possam
atores que circulam nos mais diferentes contextos da vida urbana. Os clássicos
indicadores sociológicos, tais como sexo, idade, raça, origem social e nível de renda,
uma “sociologia policial” voltada para a elaboração funcional de tipos sociais, cuja
eventos sob vigília ocorrem. Especialmente talhados para agir diante da menor alteração
que indique a possibilidade de crime e desordem, os PMs conferem à sua sociologia nativa
“suspeitos” tem sido, não sem fundamento, objeto de críticas sistemáticas por parte da
poder e as desigualdades sociais existentes na sociedade mais ampla. Sob esse recorte, os
para a discriminação daqueles atores que não se encontram bem posicionados no mercado
da cidadania. Segue que, aqueles que se situam na “periferia” da vida social ou que se
tendem a ser elevados à condição de alvos principais da vigilância policial. Assim, muito
vigilância do espaço público ainda dedica uma atenção especial às “classes de risco” que
Na ordem dos eventos, a pedagogia da suspeita tem-se apresentado como uma questão de
natureza e pela realidade à qual se aplica – a ordem pública, passível de ser contagiada
pelos juízos de valor que habitam o senso comum, mostrando-se vulnerável às diversas
reforço dos comportamentos sociais classificados como “desviantes”. 120 Não muito
sempre”.
ostensiva é a ordem pública em seu sentido extenso - a questão crucial não é, portanto, a
sua existência; isto porque algum sistema de tipificação dos comportamentos sociais será
inevitavelmente concebido e acionado pela sociologia policial das ruas. Parece-me, então,
que o problema fundamental é se esse sistema está baseado na realidade dos eventos
policiais, informados apenas por juízos de valor, podem ser não apenas injustos com uma
120
A produção acadêmica relativa à construção social de identidades desviantes é extremamente rica e
ocupa um papel reflexivo importante nos estudos de antropologia e sociologia urbanas. Ver Goffman
(1978); Becker (1977); Velho (1981).
121
Hoje, dispomos de uma rica produção científica internacional sobre o universo da abordagem policial
que considera, por exemplo, os processos discricionários de tomada de decisão e de emprego da força
comedida. Contudo, este é um campo reflexivo que continua a estimular os estudiosos de polícia, sobretudo
porque boa parte dos estudos produzidos, dirigiu sua atenção para os grupamentos policiais especializados
e as forças-tarefa, deixando em segundo plano a realidade do policiamento ostensivo cotidiano que mobiliza
a maior parte dos recursos policiais. Para uma discussão sobre o tema ver: Fyfe e Greene (1996), Fyfe
(1982) Swanson (1998). Um dos modelos de uso de força empregados pelas polícias, em particular pela
PMERJ, foi desenvolvido pela Illinois University em parceria com o Federal Law Enforcement Training
Center. Este modelo é estruturado a partir do uso da força progressivo e proporcional ao nível de resistência
apresentado pelo oponente. Em anexo encontra-se o diagrama que explicita a dinâmica do modelo FLECT.
217
meio policial. Para melhor contextualizá-la, é preciso considerar a alta dose de acaso e
ostensiva. A dimensão volátil e descontínua dos eventos sobre os quais a PM atua, tanto
restringe a possibilidade de uma precisão cartesiana das decisões e ações policiais (já que
não se pode antecipar, com elevado grau de certeza, se será ou não necessário usar o
nas ocorrências “não criminais” – que ameaçam se tornar arriscadas para todos que estão
pública que, em parte por conta disso, ocupa-se de educar a sua sensibilidade para a
suspeita. Nesse processo pedagógico, não é preciso ter passado por uma situação
efetivamente perigosa para construir o olhar suspeitoso. Isto porque o que está em jogo
ameaça.
realidade policial. Para o criminólogo inglês, o perigo no meio policial não está
fatais. Salienta que, enquanto outros profissionais como os mineiros e os técnicos que
convivem com elementos tóxicos, podem se encontrar expostos a níveis elevados de risco
de vida, os policiais são os únicos profissionais dos quais é exigido o convívio constante
com situações cujos riscos vinculam-se ao seu encontro com outras pessoas. Se em boa
resultam, principalmente, das falhas técnicas e dos azares ambientais, no caso da polícia,
circunstanciais, faz com que os policiais alimentem uma percepção ampliada da ameaça
que pode, por exemplo, se fazer presente quando ele dobra uma esquina, atrás de uma
porta entreaberta, no comportamento de uma inocente criança que brinca com uma arma
Essa percepção do perigo e de sua ameaça está, acrescenta Skolnick (1994), diretamente
para identificar certos tipos de pessoas como “agressores simbólicos”, isto é, como atores
cujos gestual, linguagem, atitudes etc. são, do ponto de vista do imaginário policial,
perigo intrínseco às atividades policiais, sobretudo porque também multiplica o leque dos
219
atores sociais que, pela sua própria existência singular no cenário urbano, supostamente
atentariam contra a “boa ordem pública”. Nesse tipo de sintaxe, não é necessário que o
crime ou feito uso de recursos violentos. É suficiente que ele apenas contrarie o
desesperado amor pelo convencional que tanto comove a cultura policial das ruas. O
ser um traço transcultural, o profundo desgosto que os policiais de ponta sentem pelas
pessoas que matam o tempo nas ruas, que se vestem de forma extravagante, que falam
com acentos exóticos, que se comportam de forma expansiva, que apresentam um estilo
incomum etc. (cf. Skolnick, 1994; Graef, 1989; Chan, 1997; Reiner, 1992). Dependendo
da maior ou menor onda de legalismo moral – quase sempre motivada pelas pressões
sociais “ameaçadoras”, tendem a ser ainda mais exacerbadas, não só ampliando cada vez
também reiterando demandas populares e autoritárias por ordem (cf. Soares et alli, 1996).
A esta altura, vê-se como a experimentação do perigo e da suspeita que ele ajuda a
autoridade policial. De forma apropriada, Skolnick (1994) argumenta que uma vez que o
legítima, ele está motivado a perceber e a enfrentar aqueles que, de algum modo, são
aceita pelos ingleses. Todavia, apesar da pertinência desse esforço, cabe ponderar que
essa propositada representação do agente da lei costuma, na ordem prática das interações
autoridade tem que ser exercida sobre alguém. 122 Nota-se que, mesmo nessa perspectiva,
encontram-se sujeitas a leituras valorativas ambivalentes, sobretudo para aqueles que não
perigo e por uma expectativa ampliada da ameaça social, é a elaboração de uma economia
afetiva da decepção que, ao longo da carreira policial, vai cristalizando uma visão
122
Para uma apreciação das políticas de policiamento no mundo inglês, ver McLaughlin e Muncie (1996);
Morgan e Newburn (1997).
221
apesar dos seus esforços para sustentar a thin blue line, apontaria para o caos entre os
homens e a desagregação crescente dos vínculos sociais. Este tipo de sociologia nativa
se pela imagem de que, em um passado não muito distante, teria existido um “paraíso
consciência e da vontade, ainda não havia se deixado sangrar pela invenção da política.
por “mais polícia nas ruas” aparecem como uma espécie de confirmação dramática de um
prognóstico que anuncia a realização do pior dos mundos sociais possíveis. Um tipo de
pelo oportunismo e pela mentira. Aqui, a idealização da “barbárie social” está projetada
em um futuro que, no momento presente, já daria uma amostra de sua força moral
corrosiva: uma vez que “polícia muito perto é sujeira”, todos se veriam motivados a
123
Segundo depoimentos de vários policiais militares, tem crescido, nos últimos anos, o número de PMs
que se converteram as mais distintas denominações evangélicas, sobretudo entre as praças. Este tem sido
um fenômeno comum em várias polícias militares. Em algumas PMs que visitei, conheci grupos de policiais
"convertidos" que se autodenominavam "PMs de Cristo". Muitos são os elementos de natureza biográfica
que desencadeiam o processo de conversão. Dentre eles destaco as decepções sofridas e as dolorosas
experiências de se encontrar "entre a vida e a morte", situações tão comuns no mundo policial. Talvez a
realização de pesquisas sobre a religiosidade no meio policial, possa confirmar a suspeita de que exista uma
afinidade entre a desencantada sociologia policial e a forma pela qual os conversos reportam-se ao seu
"novo nascimento". Refiro-me aqui a um tipo de narrativa corrente que informa que os verdadeiros
convertidos "estão no mundo, mas não pertencem ao mundo".
222
natureza humana. O seu vaticínio sobre o que os homens e as mulheres fazem com o seu
e não na vontade dos homens" . Tudo se passa como se houvesse uma predisposição
emocional dos indivíduos para praticarem toda sorte de erros e desatinos. O sentimento
de que, via de regra, “a ocasião faz o ladrão”, projeta os “cavaleiros da ordem pública”
“paraíso social” a muito tempo esquecido pelos atores que compõem a vida urbana
contemporânea. Nas ruas, isso se traduz na percepção de que eles estão sempre “em
ocorrência “assumida”. Sob esta ótica, os PMs entrariam em cena “derrotados pela
invisibilidade institucional e pública a que está confinada a maior parte das atividades
criminal parece ser capaz de "fazer justiça" ao seu árduo e arriscado trabalho. A máxima
"a polícia prende e a justiça solta" além de animar os seriados de TV, visita os diversos
meios policiais brasileiros e internacionais (cf. Graef, 1989; Skolnick, 1994; Kleinig,
223
a partir do saber policial de rua e das interações cotidianas com atores suspeitos e
desgastante. A temporalidade da ação ostensiva orientada pelo agora-já das pessoas e dos
palavras, o tempo jurídico penal concebido pós fato não é contíguo ao tempo policial que,
daquela "realidade" que legalmente conta para o sistema criminal. Os PMs de ponta
policiamento e que, por sua vez, não "assinaram na justiça" os seus crimes, voltam para
as ruas para "ameaçar o cidadão ordeiro e se vingar do policial" que o prendeu. Sabem
ainda que os cidadãos "acuados pela audácia dos bandidos só cobram [soluções] da
polícia" e não da justiça. Do ponto de vista policial, tudo isso se traduz na desiludida
horrores e perigos das ruas, vividos pelos policiais e cidadãos comuns, conspiram contra
somente para enaltecer juízes, promotores, defensores e advogados que, apesar de "bem
vistos pela sociedade", jamais teriam arriscado suas vidas "em nome da lei". 124
na vida dos cidadãos. A despeito do fato de que a polícia pode também vir a produzir a
desordem e o temor, a visão de que o mundo social seria ainda pior sem o seu abnegado
trabalho é central para a cultura policial das ruas. Não muito diferente dos cops
americanos e dos bobbies ingleses, os PMs cariocas aprenderam a se pensar como a thin
blue line, isto é, como a única linha de defesa da sociedade contra os criminosos e outros
de uma vida em comum pacífica e ordeira. A extinção de sua presença é vista, portanto,
como produzindo conseqüências por demais desastrosas para ser efetivamente tentada na
124
No artigo "O problema da polícia", Antonio Luiz Paixão chama atenção para as “suspeitas coletivas” e
o “baixo prestígio atribuído quase universalmente à profissão policial”, vista como um serviço “sujo”, em
contraste com a “pureza” que o Judiciário reivindica para seu trabalho de “aplicação imparcial e
desinteressada da lei por meio do ritual do procedimento”. Ver Paixão (1995:11).
225
chamar à memória as cenas reais de temor coletivo resultantes da greve das PMs, ocorrida
ruas e mesmo da sua expectativa propiciou o ambiente necessário não apenas para a
estabelecimentos comerciais. Contudo, o que importa enfatizar aqui é a forma pela qual
quais convivi.
sua trajetória nas ruas contribui para a cristalização de uma visão apocalíptica da evolução
solitário papel e cercada por todos os lados pelas forças crescentes da barbárie humana,
por conseguinte, o seu "poder de polícia". 125 Tudo isso, é claro, para fazer frente às graves
define e explica a complexa realidade social unicamente através dos seus vínculos
primários. Nesse tipo de visão funcional das interações sociais, a própria existência de
125
Para uma reflexão crítica acerca da retórica policial sobre a necessidade de ampliação do "poder de
polícia" em outras polícias ver Rico e Salas (1992); Bayley (1994); Morgan e Newburn (1997).
226
proliferação de comunidades sem unidade fixa de lugar como, por exemplo, as diversas
redes formadas por internautas, não seriam outra coisa que uma prova infeliz da crescente
deterioração dos pilares sociais responsáveis pela construção da civilidade. Tudo se passa
como se os policiais da ordem pública tentassem "enquadrar" a vida urbana atual através
pública e aos bons costumes. Seriam inúmeras as "más influências" que invadem os lares,
sua retórica fatalista adverte sobre "os desserviços prestados pela mídia", uma poderosa
PMs da blue line acionam um tipo de seqüência argumentativa que começa com a ruptura
sido uma moeda corrente nas queixosas narrativas policiais. Segundo esses discursos, as
"Daqui a pouco eu vou completar 27 anos de polícia tirada. Nesse tempo todo eu
nunca presenciei cenas de violência iguais aquelas que os meus filhos vêem nos
filmes passados na televisão. Outro dia eu cheguei em casa e eles estavam assistindo
um filme de ação que o mocinho grandalhão atirava para todos os lados, matando
todo mundo de uma vez só. Eu tento explicar, ensinar as coisas para eles. Mas eu
sinto que não adianta muito. Eles acham esses enlatados americanos uma curtição.
Para eles o careta sou eu."
(Sargento PM, com 27 anos de serviços prestados à PMERJ)
O poder sedutor das TVs é de tal maneira superestimado na sociologia policial que nem
mesmo os centuriões da ordem pública conseguem sair completamente ilesos das infinitas
provocações. De acordo com os próprios PMs, tem sido crescente o número de casos de
separação conjugal, alcoolismo e distúrbios mentais dentro da sua corporação. 126 Muitos
capacidade que a mídia teria de "fazer a cabeça das pessoas para as coisas ruins". 127 O
diagnóstico saído da cultura policial das ruas é bem claro e direto: os avanços e a
"liberdade excessiva" propiciados pela vida moderna possuem uma importante parcela de
responsabilidade na fabricação da "desarmonia social", cada vez mais agravada pelo fato
do poder de polícia não ter sido ampliado na proporção do aumento da "liberação da moral
126
Segundo os dados do Hospital Central da Polícia Militar relativos ao ano de 1997, 16,9% dos Atestados
de Incapacidade Física Parcial (IFP) e 5,6% das Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) foram emitidos
pela Clínica de Psiquiatria.
127
Níveis elevados de divórcios, de alcoolismo e de suicídio têm sido, de longa data, uma fonte de grande
preocupação em diversas organizações policiais. O estudo sistemático da incidência e da gravidade destes
problemas no meio policial contribuiu para que vários departamentos americanos de polícia alterassem a
sua política de recursos humanos e de assistência social, introduzindo programas preventivos voltados para
a redução do estresse e para a melhoria da qualidade e segurança no trabalho. Ver Bittner (1975).
228
"polícia era mais respeitada pelo cidadão de bem e temida pelos marginais da lei".
Circulam entre os policiais de ponta inúmeras estórias de uma época na qual o policial
- não só põe em evidência o apego extremado da cultura policial de rua a tudo aquilo que
é alimentada pela própria complexidade do cotidiano ostensivo de polícia assim como por
PMERJ.128
Estes sentimentos de decepção vividos de forma mais aguda pelo mundo das praças
policial militar pelo quadro de oficiais ou pelo quadro de praças. Para os candidatos que
128
A baixa remuneração da tropa policial parece ter sido um problema recorrente nas organizações policiais
brasileiras, desde a sua infância. Ver Holloway (1997).
229
iniciam a sua carreira policial como Oficial PM, está aberta a oportunidade para galgar
mesmo não ocorre com aqueles policiais que “vêm de baixo” da pirâmide hierárquica.
Conforme evidencia o quadro abaixo, ao final dos seus 30 anos de serviços prestados, os
A lição que fica para os já decepcionados PMs, é de que quanto mais próximos eles se
encontram das tarefas efetivamente policiais, menores são o prestígio e o status conferidos
policiamento.131
129
O Regulamento de Promoção de Praças (RRP), aprovado em 28 de novembro de 1984, foi atualizado
pelos Decretos n.º 22.169 - maio de1996 e n.º 23.673 - novembro/1997.
130
O Decreto n.º 216, aprovado em 18 de julho de 1975, estabelece os critérios de Promoções de Oficiais
ainda adotados pela corporação.
131
Em uma entrevista concedida á revista Veja, em 3 de março de 1999, o Coronel José Vicente da Silva
Filho, chama atenção para o fato de que "aprende-se logo, nas PMs que, quanto mais longe do policiamento,
melhor para a carreira".
231
De fato, esse tem sido um problema enfrentado por todas as instituições policiais,
neste universo aquelas polícias que possuem um rank hierárquico mais enxuto e cuja
paramilitar mascara, em boa medida, o fato de que as polícias são (por exemplo, como o
de serviços (cf. Azevedo, 1998). Seus integrantes figuram como experts que desfrutam
de um alto poder decisório no desempenho de suas atribuições. Por conta disso, eles não
precisamente, a real valorização dos quadros que estão na linha de frente e que, por isso
No caso específico das PMs, apesar do “poder de polícia” ser concreto e amplo na base
profissional que operam dentro da organização. Resulta daí, uma espécie de hiato entre o
132
Para uma apreciação das estruturas organizacionais de diversas polícias, ver: Bayley (1994).
232
policial de ponta. As decepções experimentadas dentro e fora dos quartéis vão, aos
carreira policial. De uma forma mais dramática, cresce também o já comentado “cinismo
de uma tarefa extra-policial, que quase sempre mascaram o real desinteresse pelo que
acontece nas ruas. De um modo geral, os PMs mais antigos e experientes, em boa parte
próprios definem como “só cumprir as ordens do oficial superior” ou tão-somente “fazer
o arroz com feijão”. A sensação de que “se deu mais à corporação do recebeu” motiva
profissionais de rua mais vividos a competir pelo “serviços mais leves”, tais como ser
"Esse negócio de homossexual vai até contra a natureza. Mas, até aí tudo bem. O que não dá para aceitar é
o comportamento deles [os travestis]. É só o policial chegar na ocorrência que eles começam a tumultuar a
situação, eles começam fazer escândalo. Eles ficam gritando que o PM vai bater e tirar as coisas deles. Eles
criam confusão com eles mesmos. Eles gostam é de provocar. Eles querem mesmo é complicar o lado deles
com a polícia."
(Soldado PM com 6 anos de serviços prestados à PMERJ)
"Eu sou de origem humilde mas eu tive berço porque a minha família me deu educação. Eu tive uma família
para me dar uma orientação. Mas você pode observar que na minha raça tem muito mais gente que não
presta, que não tem jeito mesmo porque tem um sangue ruim. Eu que tenho que correr atrás de marginal,
vejo isso. Tem sempre mais bandido crioulo do que bandido branco."
(Soldado PM com 7 anos de serviços prestados à PMERJ)
"Quando eu entrei para PM não tinha concurso para mulher. Eu não sou contra mulher na polícia. Tem
muita mulher polícia que é mais "responsa" do que muito homem. Mas o serviço de rua é muito puxado e
perigoso. É coisa para sujeito homem mesmo."
(Sargento PM com 21 anos de serviços prestados à PMERJ)
Já mencionei que não foi uma tarefa fácil participar do dia-a-dia das atividades de
trabalho nas ruas, não foi a única novidade perturbadora em um mundo acostumado à
ausência e mesmo a uma certa indiferença por parte dos atores externos. 133 Certamente,
outros elementos ajudariam a compor a estranheza inicial que uma modesta "guarnição"
133
Creio que a fragilidade da imagem pública da Corporação Policial Militar e o isolamento social
experimentado pelos seus integrantes serviram de cenário para dúvidas e temores relativos à interação mais
estreita com personagens alheios ao mundo da polícia. Policiais Militares, tanto do oficialato quanto do
círculo das praças, reportam-se constantamente à existência de uma espécie de "medo da sociedade" que se
faria presente em parcelas significativas do efetivo policial. Alguns PMs mais críticos chegam a explicitar
em suas narrativas que eles "não estão devidamente preparados para lidar com a sociedade" porque ao longo
de décadas teriam sido "educados" para evitar o convívio com os cidadãos.
134
234
"gringo engraçado que falava bem português e tinha um [duvidoso?] brinco na orelha",
havia duas moças (uma que usava uns óculos azuis "diferentes" e a outra, aficionada por
chocolates) que também faziam questão de ir para o serviço de ronda, quando se esperava
desconforto de ter "moças à paisana" como "parceiros de rua". Entretanto, podia se ler
nos subtextos das nossas primeiras interações o receio que uma companhia feminina
parecia causar entre eles. Apesar da suspeita coletiva de que a pesquisa consistia, à
primeira vista, em uma outra forma de vigilância e fiscalização concebida pelo alto
comando da PM, o pesquisador de nossa equipe não encontrou maiores dificuldades para
que não "entendesse nada de polícia" e necessitasse passar por alguns rituais de
companheira de equipe - que, aliás, "mais parecia uma menina" - não encontramos o
mesmo grau de facilidade. A despeito da autorização vinda de cima, foi preciso conquistar
O processo amistoso de aproximação entre a nossa equipe de pesquisa e os policiais do 19º BPM foi
marcado por um ritual curioso: durante os três primeiros meses fomos sutilmente instados a repetir para os
PMs de ponta e dos escalões intermediários os propósitos de nosso trabalho e os motivos que nos levaram
a querer trabalhar com a polícia. Guardadas as devidas proporções, essas inquirições regulares lembravam
em muito aquelas técnicas policiais, nas quais o "elemento suspeito" é submetido a sucessivas interrogações
para confirmar a consistência e a veracidade de seu depoimento.
135
Na primeira fase de nosso convívio foram muitos os comentários jocosos que circulavam no interior da
tropa, sobretudo entre os PMs "tradicionais" que viam com restrição a implantação da filosofia comunitária
de polícia. De um modo geral, os PMs aproveitavam o espaço das rondas para testar a "masculinidade" de
nosso pesquisador através de sutis provocações sobre sua coragem e, por sua vez, sobre a sua capacidade
de agir como um "sujeito homem" nas situações de perigo e risco.
235
possibilitar o acesso "das moças do Viva Rio" 136 às atividades de ronda incluíam longas
homilias quase sempre recheadas por "sinceras advertências" sobre os inúmeros riscos de
se caminhar par e passo com PMs pelas ruas do bairro, incluindo aí a assimilação da
bom andamento do trabalho de patrulha": O que fazer com essas moças quando acontecer
um chamado emergencial? Como assumir uma ocorrência perigosa com elas ao lado?
Como garantir sua integridade física? E se acontecer um assalto, o que fazer? O que vão
dizer os PMs "tradicionais"? Será que o cidadão vai pensar que o PM está namorando em
serviço? Será que essas moças têm realmente idéia do que estão querendo?
iniciais dos policiais, foi a típica saída masculina e cavalheira de não recusar um pedido
feminino mas de cumpri-lo com as devidas reservas e restrições: por fim, os policiais
seus subsetores. Já nas ruas com os PMs nós, as "meninas" da pesquisa, logo aprendemos
136
O Movimento Viva Rio constitui um parceiro fundamental para a PMERJ não só na fase de elaboração
do projeto de polícia comunitária como também durante todo o processo da sua implantação. Coube, por
exemplo, ao Viva Rio o trabalho de sensibilização das comunidades, de organização dos seis Conselhos
Comunitários de Área (CCAs) e de articulação com a mídia. Para os PMs comunitários, o Movimento Viva
Rio era visto como um importante "padrinho" e um estratégico mediador junto á cúpula da PMERJ e ao
Governador. Tratava-se de um canal privilegiado através do qual se acreditava poder fazer escoar toda sorte
de demandas, reclamações e insatisfações que não necessariamente encontravam lugar na cadeia de
comando e controle da PM. Em parte por conta disso, os pesquisadores do Iser costumavam ser
interpretados como "mensageiros" e "representantes do Dr. Rubem César Fernandes", coordenador do
movimento. Assim, no interior do Batalhão nós fomos também frequentemente identificados como o
"pessoal do Viva Rio" que estava ali para "defender os PMs" e garantir os meios necessários para a
consolidação do programa.
236
que ante a menor suspeição de que algum episódio muito arriscado ou "impróprio para
mulheres" poderia vir a acontecer, deveríamos sempre guardar uma significativa distância
e comum nas mais distintas organizações policiais (cf. Muir,1977; Graef, 1989; Reiner;
1992; Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Chan, 1997). Constata-se, na literatura acadêmica
mais recente sobre polícia, a existência de um consenso acerca do caráter sexista da cop
americanas e inglesas. Tudo se passa como se o imaginário puritano servisse como uma
sociedades de tradição católica - como a nossa, por exemplo -, outros estudiosos preferem
enfatizar sua correlação com o histórico ethos masculino da força e, por sua vez, com o
defesa nacional quanto da ordem pública, tem sido um problema recorrente em vários
organizações policiais, é interessante notar que mesmo a polícia inglesa, matriz das
quadros na década de oitenta, isto é, 150 anos após a sua criação por Robert Peel. Em
Na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, o atual contingente policial feminino não
ultrapassa a tímida cifra de 1,2% de toda a tropa e o seu ingresso data do início dos anos
80, ou melhor, 175 anos após a fundação da primeira força policial ostensiva brasileira. 138
ordem pública não é uma constatação trivial. De um lado, esse fato está inscrito em nosso
processo histórico de conquista e ampliação dos direitos civis. De outro, anuncia que o
atribuímos foram e ainda têm sido uma característica cultural predominante na auto-
imagem dos organismos policiais e, por sua vez, na sua forma de "estar no mundo". Na
linguagem cotidiana de polícia, isso pode ser traduzido da seguinte maneira: tudo aquilo
137
Em recente entrevista concedida, o Diretor do Ministério do Interior da Austria, Dr. Franz Brenner,
ressaltou que um dos importantes esforços políticos tem sido o de ampliar o efetivo policial feminino, sendo
a meta do atual governo social democrata elevar o percentual de mulheres nas polícias de 12,5% para 30%
nos próximos dois anos.
138
A portaria nº 27-EME, de 16 de junho de 1977, que estabelece as Normas para a organização das Polícias
Militares e Corpos de Bombeiros Militares define a oportunidade para a criação da “Polícia Feminina”,
assim como os propósitos de seu emprego. O Capítulo III determina que: “Nas atividades normais de
policiamento ostensivo verificando-se acentuadas dificuldades para a efetiva ação no trato com menores
delinqüentes ou abandonados e com mulheres envolvidas em ilícitos penais. Para atender a esse campo da
atividade policial e também a certos tipos de relações com determinado público, no interesse da
corporação,caso julgado conveniente, é possível dotar as Polícias Militares de elementos de Polícia
Feminina. Após a adoção de instrumentos legais, poderão ser criadas organizações de Polícia Feminina
com determinados graus hierárquicos, assemelhados ao da hierarquia militar”.
238
que guarda alguma afinidade com o atributo físico da força, a oportunidade de seu uso e
Talvez seja oportuno fazer aqui um breve parênteses apenas para ressaltar que a abertura
política. No ano de 1982 tem-se, em todo país, o retorno às eleições diretas para
governador Leonel Brizola fez publicar um ato importante que determinava que somente
policiais militares da mais alta patente poderiam ocupar o cargo de comandante geral da
Polícia Militar.139 Essa medida executiva inaugurou um novo momento identitário para a
PMERJ porque marcou o rompimento com um estranho costume que havia se arrastado
por mais de 170 anos da história política carioca: a tradição de se nomear para o posto
adequação de sua doutrina e missão às demandas contemporâneas por uma ordem pública
militar ganha força e lugar. A partir de 1984, as mulheres ingressam nas fileiras da
139
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, promulgada em 5 de outubro de 1988, regulamenta a
proposta do executivo no seu artigo 189, parágrafo 2: "As corporações militares do Estado serão
comandadas por ofical combatente da ativa, do último posto dos respectivos quadros, salvo no caso de
mobilização nacional".
140
De acordo com os depoimentos de oficiais mais antigos da PMERJ, até 1982 o nome do comandante da
PM saía de uma lista tríplice produzida pelo Comando do Leste e acatada pelos governadores.
239
unificação dos quadros e dos mecanismos de acesso. Todavia, apesar dessa relevante
lotação, ainda constitui uma realidade que se reflete no pequeno efetivo feminino e que
141
O Decreto-lei nº 2.106, de 06 de fevereiro de 1984, que alterou o conteúdo do Decreto-lei nº 667, de 2
de julho de 69, no que concerne a organização das Polícias Militares, esclarece, no seu artigo 8, parágrafo
2, a “conveniência” de policiais femininas da seguinte forma: “Os Estados, Territórios e o Distrito Federal
poderão, se convier às Polícias Militares: a) admitir o ingresso de pessoal feminino em seus efetivos de
Oficiais e Praças, para atender necessidades da respectiva Corporação em atividades específicas, mediante
prévia autorização do Ministério do Exército”. Este decreto possibilitou a regulamentação da Lei estadual
nº 476, de 11 de novembro de 1981, que criou a Companhia Independente de Polícia Militar Feminina da
PMERJ e determinou a doutrina de seu emprego. A condição de Companhia estabelecia como posto
máximo a ser atingido pelas oficiais femininas a patente intermediária de Capitão.
142
A Lei estadual nº 476, ainda em vigor, determina, no seu artigo 4, o emprego do efetivo feminino. O
texto é bastante claro quanto as limitações da “condição” feminina para o trabalho policial: “As Policiais
Militares integrantes da Cia PM Fem. serão empregadas precipuamente em missões de policiamento
ostensivo cabendo-lhes as seguintes atribuições, além de outras que sejam estabelecidas pelo Comandante-
Geral: I - Policiamento de Trânsito, em locais e horários em que as mesmas tenham melhores condições
de segurança, a critério do Comandante-Geral; II- Nas operações policiais-militares no trato com mulheres
e menores em geral; III - Nos terminais marítimos, ferroviários, rodoviários e aeroviários e nos demais
serviços de policiamento cujos riscos ou encargos sejam, a critério do Comandante-Geral, exclusivamente
compatíveis com suas condições de mulheres.”
240
Idealizado pelos PMs da ponta da linha como uma espécie de "terra de machos", o mundo
das ruas é descrito como um tipo de realidade que não se deixa comover pelas virtudes
sórdido, violento, insensível e, por tudo isso, masculino, parece só haver lugar para a
e desregrados, que compõem o "bonde do mal". Esse tipo de gramática dos papéis de
da tropa. Dela resulta o discurso que pressupõe a inadequação das mulheres para as tarefas
de policiamento e prescreve para elas outros tipos de serviços quase sempre burocráticos
ao mito romântico do policial-herói, reforçada pelo senso comum extraído das ruas,
ancora-se em uma espécie de elogio tão extremado dos atributos associados à virilidade
que este culto parece não poder prescindir de expedientes diretos e indiretos de vigília do
sensibilidade, o medo, etc. são, via de regra, interpretados como "coisa de mulher" cuja
sentido, tudo aquilo que na vida ordinária encontra-se associado à noção de passividade
costuma ser traduzido pelo imaginário policial como um grave "fator de risco" moral
para os PMs da ponta da linha. O recado da cultura policial de rua é muito claro: todo
cuidado é pouco quando se trata de evitar que os centuriões da conformidade moral e dos
241
bons costumes se tornem "alvos fáceis [não só] nas mãos da bandidagem" como também
no cenário urbano.
Realmente não deve ser uma tarefa existencial muito fácil para os PMs da thin blue line
afirmar, diante dos olhos sempre vigilantes de seus pares, a ambicionada “condição de
sujeito homem” em cada pequeno ato, em cada interação, em cada circunstância saída do
trabalho nas ruas. A desejada “macheza” e sua convincente demonstração para uma
platéia policial vaidosa e exigente de seus dotes, operam como um tipo de termômetro
capaz de mensurar o grau de respeito e companheirismo obtido dos colegas de ofício. Esta
pressão moral é de tal maneira evidente no cotidiano ostensivo de polícia que os jovens
1996).
Uma das lendas mais corriqueiras no meio policial de rua é aquela que exalta a
indiscutível competência sexual dos policiais. Os seus grandes rivais no mercado erótico
conquistas sexuais. Os rapazes fardados da polícia ostensiva têm sempre uma peripécia
amorosa para contar. Gabam-se do fascínio sexual que exercem sobre as inúmeras “peças
sobressalentes” disponíveis nas ruas e, como não poderia deixar de ser, orgulham-se da
facilidade com que “conseguem” mulheres. Não é incomum ouvir os PMs contando que
emergenciais e “ocorrências frustradas” só para poder “trocar uma idéia” com aqueles
“homens de verdade” que “não negam fogo” e sempre “dão no couro”. Acerca do
tom jocoso, que os PMs da linha da obrigação se sentem como “os verdadeiros reis das
parceiros. Note-se que pouco importa se essa "realeza" é exagerada ou mentirosa, o fato
é que ela faz parte da forma como os PMs de ponta recortam e interpretam o mundo no
qual atuam, sendo portanto tão real quanto as gloriosas narrativas relacionadas ao controle
do crime.
personality policial está, por um lado, associada ao ethos masculino da força e, por outro,
às tensões existenciais derivadas do trabalho de polícia (cf. Chan, 1997; Reiner, 1992;
De fato, para esses personagens que vagam diuturnamente pela cidade patrulhando seus
territórios físicos e simbólicos, a deriva urbana e seus fluxos apresentam-se como uma
143
A PMERJ não dispõe de estatísticas sobre a incidência de separações formais e informais no interior da
corporação. Entretanto é voz corrente dentro da organização que os conflitos conjugais são extremamante
elevados. Parece ser uma prática comum entre as esposas dos PMs de ponta a solicitação do arbítrio dos
superiores hierárquicos para a resolução dos problemas familiares.
243
no cotidiano das interações é ritualizado, por exemplo, no uso e no trato vaidoso com o
das ruas de uma forma garbosa e atraente. Na dura vida policial há, portanto, tempo para
o cuidado detalhado e até mesmo fútil com a aparência. Tudo indica que nossos PMs de
ponta ambicionam ser tão ostentatórios quanto ostensivos. A segunda arma, os óculos de
bigode acidental no rosto limpo conformam a “moda PM”, um tipo de estética que,
acredita-se “marca ponto” e faz sucesso sexual nas ruas e esquinas da cidade.
Talvez se possa dizer que o “machismo” e suas enunciações plasmam o mundo policial,
servindo como um dos lugares de diálogo conflituoso com outros mundos sociais
elaborados na ampla sintaxe das ruas. Se os PMs da blue line são conhecidos pela sua
também são retratados pela sua deliberada aversão às práticas sexuais alternativas, como
àqueles atores, cuja opção sexual soa como destoante e, por sua vez, "naturalmente"
“abuso de autoridade” e “exercício arbitrário das próprias razões” contra gays, lésbicas e
versão trágica do folclore policial das mais distintas organizações policiais (cf. Graef,
1989; Reiner, 1992; Chan, 1997). Talvez seja oportuno dizer que a paixão desmesurada
da cultura policial de rua por tudo aquilo que possa ser enquadrado dentro do
244
suposta “ordem natural” das coisas, eventos e pessoas, contribuem para exagerar os
ostensivas de policiamento.
Em outros momentos, chamei atenção para o fato de que, nas atividades convencionais
de polícia ostensiva, os riscos simbólicos tendem a ser mais expressivos do que os perigos
propriamente físicos, ainda que estes últimos sejam exaltados na retórica policial como
uma precondição para a existência dos primeiros. Mesmo fazendo parte do horizonte das
policiais estão efetivamente bem aquém da gravidade a que o imaginário policial supõe.
Por ora, esta consideração é suficiente para ressaltar que a administração do risco
potencial, assim como as atitudes policiais dirigidas às minorias sexuais e étnicas, estão
dos eventos, comportamentos e atitudes percebidos pela ótica policial como sendo
ameaçadores.
grade valorativa que estrutura o senso comum. Isto significa dizer que a distribuição
que aqueles atores ou grupos que se encontram mal posicionados no mercado da cidadania
fazem parte do que se costuma chamar de "propriedade" da polícia (cf. Bittner, 1990;
245
Reiner, 1992). Aqui, o círculo vicioso policial de reforço das "classes perigosas" adquire
desigualdade social.
também verdade que a sua instrumentalização na rotina de polícia produz problemas por
incorpora os atores sociais de uma forma assimétrica. Grosso modo, o risco associado a
custo das ações policiais injustificadas; já no caso das situações relativas aos "agressores
simbólicos", atores sobre os quais paira uma suspeita estrutural, o risco reporta-se
fundamentalmente à ausência de ação policial ou à sua baixa intensidade. Tudo isso pode
ser resumido na seguinte constatação: os PMs de ponta acreditam, para a indignação dos
exercício do seu trabalho se não suspeitassem das "classes perigosas" e se, diante delas,
não esboçassem alguma reação. Esse tipo de convicção, evidentemente, encontra eco no
competência das polícias que, via de regra, estão compelidas a atuar nas contingências e
risco, estão constrangidas a produzir resultados, cujas leituras sociais são ambivalentes e
246
preconceituosa os eventos e pessoas sobre os quais dirige sua intervenção, mesmo quando
ele, pessoalmente, não partilha dos preconceitos que se mostram "úteis" na rotina do seu
trabalho. Isso ocorre de tal maneira que até aqueles policiais que se consideram
razoavelmente justificados em dirigir, por exemplo, muito mais o seu olhar suspeitoso
Certamente, nossos PMs de ponta não estão sozinhos, quando adotam essas distinções;
"cidadão decente e ordeiro" do que constatar que a sua palavra pode vir a ter o mesmo
adquire cores mais radicais, em razão da natureza mesma do seu trabalho e da realidade
social, sobre a qual esse trabalho se aplica. Os policiais possuem mais "poderes" do que
o cidadão comum e os seus serviços são freqüentemente mais utilizados por aqueles atores
policiais. Penso que isso ocorre em parte, por conta da predominância da abordagem
a perspectiva legalista não considera o fato de que a polícia pode, concretamente, não ser
247
apenas orientada pelos princípios legais que conformam sua missão, doutrina e mandato.
ambiente de atuação das polícias, interpretando suas práticas tão-somente a partir do rigor
instituídos.
Como temos visto, existe uma enorme camada informal que não é derivada dos
ideais normativos, mas que estrutura o trabalho policial cotidiano e suas demandas,
orientando o que a polícia realmente faz, no seu dia-a-dia. É evidente que os PMs guiam-
se pela "letra da lei". Contudo, "aplicar a lei" na rotina ostensiva significa muito mais do
contingente à racionalidade criminal. Como bem colocou Skolnick (1994), trata-se antes
mediação, barganha e interpretação dos agentes da lei, quando dos seus encontros
polícia, como um dos muitos recursos estratégicos disponíveis. Em boa parte dos casos,
policial que desencadeia o processo de tomada de decisão, mas que não necessariamente
impede as escolhas sobre como conduzir a ocorrência "assumida". Isso significa dizer
que, em cada episódio singular no qual a presença da polícia ostensiva foi solicitada,
entre a idiossincrasia do evento em questão e sua possível tradução, nos termos do que se
considera legal e legítimo. Para o PM que está ali na esquina, trata-se, pontualmente, de
acionar o "bom senso" e procurar saber "o que fazer" e "como agir" em uma dada situação
ação mais adequado: aplicar uma multa ou uma advertência ao infrator de trânsito?;
percurso escolhido terá o "mundo da lei" como uma indispensável referência, uma meta
que, para ser atingida, pressupõe a sua articulação concreta com as "leis do mundo", que
policial de rua, ainda que em muitos aspectos apresente uma ênfase conservadora, deixa
essa abertura está na própria rotina ostensiva de polícia. Vagar diuturnamente pelas ruas,
entrando e saindo dos diversos mundos sociais que compõem o mapa citadino
de interação com aqueles personagens que estão colocados do "outro lado" da blue line
gramática das ruas, pode ser compreendido como um caminho de mão dupla que pode
tanto sinbalizar para a consolidação quanto para a quebra das arraigadas resistências
etnocêntricas. De todo modo, pode-se dizer que a constância e a intensidade das colisões
de tolerância negociada com aqueles personagens que não gostam da polícia e que, por
ela, pouco são queridos. Assim, mesmo que zelosos de sua visão de mundo os PMs
aprendem, pela força das necessidades de seu trabalho, a interagir com o que detestam,
minimamente das linguagens dos outsiders, faz com que eles conheçam "de perto" os
demais atores que circulam e recortam os seus "pedaços", na cidade. Note-se que se é um
imperativo operacional falar as línguas das ruas, então os guardiães das fronteiras sociais
"vadios" etc.144
Na rotina do trabalho policial os processos disjuntivos são, portanto, tão prováveis quanto
são chamados a se confrontar com os seus próprios pontos de vista. Isso se dá, por
exemplo, quando atendem, no Leme, uma prostituta que reivindica o justo pagamento de
seu "encrenqueiro" cliente alemão; quando dão voz de prisão a um simpático velhinho
144
O deslocamento do preconceito relativo a certas categorias sociais, aparece como um recurso estratégico
utilizado pelos atores na arena interativa. A individualização de alguém vinculado a um grupo
estigmatizado, pemite distanciá-lo das marcas simbólicas negativas atribuídas ao seu meio social. Isso
acontece, no cotidiano, de uma forma que permite conciliar o preconceito genérico e atitudes ausentes de
discriminação dirigidas uma determinada pessoa com a qual se convive: por um lado, "todos os viados são
desprezíveis", por outro, "aquele viado que eu conheço é um cara legal". O mesmo ocorre em relação aos
próprios policiais que quando individualizados são "absolvidos" das imagens negativas a eles associados.
250
valiosas com os travestis da Lapa; quando são prestigiados pela rodinha de pagode que
por um "motivo fútil"; ou mesmo quando impedem que os "boiolas do baixo gay" sejam
Parece óbvio que a riqueza e a complexidade dos problemas que desaguam nas mãos dos
controle mais efetivo das atitudes policiais discriminatórias, como também sua
" Os nossos acertos são escritos na areia e nossos erros são gravados em bronze".
(Máxima utilizada pelos Policiais Militares)
tem sido uma tarefa existencialmente tranqüila para os PMs da ordem pública. A
e arbítrio envolvendo os agentes da lei invadem o nosso dia-a-dia e parecem servir para
sobre aqueles aos quais delegamos a complexa e difícil missão de fazer convergir, na
desfrutam de poderes e mandatos superiores aos concedidos aos comuns dos mortais -
tem sido uma característica recorrente na realidade de polícia em qualquer época e lugar.
polícia em relação aos cidadãos quanto do seu inverso. Entretanto, mesmo nos atuais
percepções ambíguas por parte não só de sua clientela como também do próprio Estado.
Pode-se dizer que desde a sua infância até os dias de hoje, as organizações policiais e seus
integrantes sempre estiveram sob a mira dos olhares atentos e vigilantes da população.
Note-se que o caráter paradoxal da agência policial contemporânea está dado pelo lugar
no qual ela está inscrita - um meio de força comedida cuja atuação se insere entre "o está
na lei e se encontra no mundo" e "o que se encontra no mundo e não está na lei". A
de se "vigiar aqueles que [nos] vigiam". Em parte por conta disso, a economia da suspeita,
construído por uma sociabilidade conflituosa que, via de regra, manifesta-se através de
entre PMs e cidadãos costumam ser marcados pelo receio mútuo e pela incerteza acerca
eles não devesse jamais ocorrer, permanecendo apenas como uma possibilidade remota.
Note-se que isto se dá de tal maneira que durante a "indesejada" e "temida" colisão os
lugar e momento errados. Nesses termos, cruzar acidentalmente com a polícia em alguma
esquina da cidade consistiria em um golpe de azar, seria um claro sinal de que a priori
Do ponto de vista dos streetcorner politicians isso se traduz na triste percepção de que
eles não são queridos por ninguém e em lugar algum, servindo apenas para realizar em
nosso lugar o "serviço sujo" de retirar as ervas daninhas que brotam no interior da
sociedade (cf. Punch, 1983; Paixão, 1982; Musumeci,1996). Sustentar a thin blue line,
ou melhor, policiar as entradas, fluxos e saídas do mundo social tem um preço moral
elevado para os PMs, o drama de conviver com a sua imagem pública sob constante
suspeição.
Tal como ocorre com outras profissões que lidam com os interstícios e as câmaras ocultas
com tudo aquilo que previnem, dissuadem ou reprimem (Douglas, 1976; Paixão, 1982;
254
Skolnick, 1994; Bittner, 1990). Uma vez associados ao absurdo e ao pior de nós mesmos
que assistem de uma forma nua e crua no cotidiano, os PMs aparecem aos nossos olhos
como criaturas ambivalentes, contaminadas pelo risco e perigo que diariamente convivem
amargo para quem recebeu uma licença especial, ou melhor, para quem adquiriu um tipo
de franquia moral para interagir com todos os "lados feios e desagradáveis da vida".
fascínio, dúvida e temor: um policial pode realmente sair incólume das suas visitas
regulares aos esgotos da vida coletiva?; é mesmo possível para o "guardião da ordem
Bittner (1990) observa que em função da natureza do trabalho de polícia e das realidades
sobre as quais esse trabalho se conforma, a profissão policial tende a ser percebida pelos
“o bem versus o mal”, é instrumentalizada nas ruas tanto pelos policiais quanto pelo
público, e tem sido uma das chaves simbólicas estruturantes das percepções ordinárias
PMs de ponta necessitam se misturar com o mal, falar a sua linguagem e domesticá-lo.
Por outro, devem encenar o papel de superego social apresentando-se como uma espécie
de "unidade de medida" das atitudes dos cidadãos ou como uma vivificação do modelo
Os estudos sociológicos que se dedicam à reflexão sobre o estigma social, ofertam pistas
negociação na realidade (Cf. Goffman, 1978; Misse, 1981; Velho, 1985). Um ponto
caso específico dos PMs da ponta da linha, o processo de socialização no mundo policial
capazes de conter as pressões externas e intramuros derivadas dos seus papéis de agente
quem esperamos que sejam a incorporação ambulante do "cidadão ideal" e que "policiem"
No dia-a-dia dos encontros intencionais e das colisões inesperadas com o "outro", os PMs
cariocas da blue line rapidamente aprendem que não basta ocultar apenas da
"bandidagem" a sua identidade de policial, por exemplo, quando pegam o ônibus para
voltar para casa, quando resolvem tomar uma cerveja com amigos durante a folga, quando
256
vão com a esposa ao supermercado fazer compras ou simplesmente quando retornam para
o seu local de moradia, lugar por vezes "controlado pelo pessoal do tráfico". 145 É preciso,
ainda, administrar a sua "condição de PM" nos seus espaços privados e informais de
sociabilidade.
Assim como os bobbies ingleses e os cops americanos, os PMs do Rio também sentem
sociais. Eles vivenciam o dilema existencial de se verem inscritos como uma legião de
almas estrangeiras em quaisquer realidades que visitam ora por obrigação do ofício, ora
porque com elas espontaneamente se identificam (Muir, 1977; Graef, 1989; Skolnick,
Não são poucas as narrativas que relatam, em tons sempre queixosos, o isolamento social
encontrados para estabelecer laços cordiais para além do próprio meio policial. Sustentar
antigas amizades, fazer novos amigos, estreitar vínculos com a vizinhança são tarefas
cotidianas que exigem um esforço a mais por parte dos PMs. Nos espaços de convívio
social, alguns policiais chegam a optar pelo disfarce, omitindo sempre que possível a
profissão que exercem. Este tipo de expediente também se estende aos familiares que,
dependendo da situação em tela, preferem não comentar que alguém da família "é da
145
É comum ouvir dos policiais militares que a administração do risco pessoal inclui expedientes de
ocultação da identidade policial. São inúmeros os relatos que retratam a real preocupação em disfarçar a
arma pessoal e a identidade profissional quando saem do trabalho em direção a suas casas. Muitos PMs
falam que guardam a carteira profissional no fundo do sapato, outros mencionam que a escondem dentro
das roupas íntimas.
257
quando se busca tão-somente estabelecer contatos com os novos vizinhos do bairro, ser
confraternização, preencher uma ficha cadastral para abrir um crediário, tomar uma
receio de uma possível exclusão ou de um simples reforço das barreiras sociais por conta
da "condição policial", parece fazer parte da gestão cotidiana dos PMs de ponta e de seus
Leitores assíduos das páginas policiais, os PMs da "ponta da linha" estão sempre
corporação em práticas ilegais. Eles, talvez de uma forma mais intensa que qualquer um
de nós, sentem e sabem a importância que tem "tudo" que é pensado e dito a seu respeito.
que a divulgação de qualquer matéria sobre crimes praticados por policiais comprometia
retomar do início o amistoso processo aproximação. Nos seus próprios termos a "idéia
que é passada para sociedade" pelos meios de comunicação, ainda que em muitos casos
compreensível, não faria justiça aos "pais de família honestos e trabalhadores" que
integram a PMERJ:
"É só abrir o jornal que está lá: tem lá uma nota falando de um companheiro que
praticou um desvio de conduta. A situação está de um jeito que a população fica
mesmo desacreditada. As coisas estão invertidas para o lado da PM. Agora a gente
tem que provar todo dia que é honesto."
"Existem questões políticas por trás de tudo isso. Alguns policiais erram mas são
uma minoria. A mídia manipula tudo e a melhor forma de atacar o governo é através
da Polícia Militar que é ostensiva, fardada e aparece com facilidade. A mídia só passa
distorções, tem até Mister PM."
Mas não é só o impacto provocado pela percepção coletiva, quase sempre difusa e
ampliada do lugar suspeitoso da polícia, que se pode apreender dos reclames policiais
acima ilustrados. Os breves depoimentos anunciam que nas relações com os chamados
"A maioria dos PMs é pobre, favelado. É um problema de classe social. A pessoa já
chega para o policial oferecendo dinheiro. Olha, eu vou ser sincero: antes de entrar
na PM eu passava longe de policial."
"Eu fico imaginando o meu filho em casa vendo televisão: olha lá os colegas do
papai roubando, matando. A gente sente muita vergonha. Eu não quero que o meu
filho entre para a PM. Nem pensar ! Mas se ele quiser mesmo, não tem jeito eu vou
ter que apoiar."
259
aqueles personagens que, como os próprios PMs, são percebidos como desterrados e
forasteiros nos territórios urbanos por onde circulam e definem seus pontos. Flanelinhas,
camelôs, mendigos, porteiros, seguranças e demais atores que compõem o "povo das
ruas" fazem parte do universo regular de interações dos PMs da blue line (Musumeci,
1996). Esse é certamente um mundo com baixa visibilidade social, que também não
desfruta de legitimidade pública e cuja voz, por sua vez, costuma ser muito pouco ouvida.
Observe que a profissão policial não é a única atividade profissional que lida com os
e a elevada exposição pública dos comportamentos policiais equivocados. Isso pode ser
em parte compreendido pelo fato do trabalho policial, além de interferir de uma forma
mais direta na vida das pessoas, representar o espaço da autoridade capilarizada, uma
espécie de caminho privilegiado para o enraizamento das garantias civis no cotidiano dos
cidadãos. Desse ponto de vista, a atividade policial encarna o lugar concreto de onde se
pode confirmar ou não as regras postas pelo jogo democrático. Talvez por conta disso,
continuada da condição sutil e peculiar da autoridade policial faz com que os PMs
concedidos tem sido a sensação de solidão assim como o desprezo e o afastamento por
proteger".
261
CONSIDERAÇÕES FINAIS
um controle eficaz e transparente, têm constituído um dos pontos centrais das reflexões
também, como uma questão complexa, recorrente e de difícil enfrentamento, que vem
ocupando, desde há muito tempo, um lugar estratégico na agenda política dos países com
uma longa tradição democrática como a Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá. Nesses
jurídico e de significativas reformas nas agências policiais. Nos últimos cinqüenta anos,
modelos de uso da força das polícias. Tudo isso ocorreu ao mesmo tempo em que
pública democrática e, por sua vez, a redefinição do papel das agências policiais
vivido no país. Foi, precisamente, nesta década que a "crise da segurança" ganhou
relevância pública. A "revolta das praças", ocorrida em vários estados, no ano de 97,
contribuiu, ainda que por uma via traumática, para emprestar uma maior visibilidade ao
262
problema das polícias brasileiras, evidenciando os enormes riscos a que está exposta a
sustentação do estado de direito, quando se tem uma debilidade crescente dos organismos
estado da arte das teorias de polícia. A partir deles pode-se melhor compreender, por
quais essas ferramentas pacíficas produzem obediência por meios também pacíficos e,
ampliam na razão inversa da estrutura hierárquica. Isto significa dizer que o "fazer
inferiores da corporação. Os PMs, sobretudo aqueles que estão alocados nas atividades
direito) e de um poder físico (de fato), por eles administrados num amplo e diversificado
dia, os PMs da blue line são chamados a intervir em qualquer evento, ou melhor, eles são
qual-alguém-tem-que-fazer-alguma-coisa-agora-e-bem”.
263
Note-se que a amplitude de suas atribuições não é alguma coisa que pode ser definida
como trivial. No fluxo da vida ordinária, ela abarca toda sorte de acidentes, dramas,
quer nos espaços públicos, quer nos seus domínios privados. Em uma frase, toda essa
demanda por serviços policiais recobre o vasto mundo da "preservação da ordem pública"
onde qualquer episódio, além das violações previstas nas leis, pode vir a ser considerado
Por outro lado, é esperado que a atuação policial, em quaisquer desses assuntos, seja, a
paradoxalmente, "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que encontra-se no
mundo e não está na lei"; pouco importando se o que motivou a sua presença foi a
acidente de trânsito.
risco, atendendo aos imperativos nem sempre conciliáveis do "mundo da lei" e das suas
formas práticas de execução (law enforcement), das "leis do mundo" (incluindo aí, as
das cobranças por resultados tangíveis, põe em tela a real complexidade do papel da
efetividade), constitui o principal desafio da polícia ostensiva. Isso fica mais evidente se
ambulante, sendo concretamente exercido por cada um dos 10 mil PMs que patrulham
A esta altura, parece oportuno enfatizar que no mundo policial ostensivo a oportunidade
fluido marcado pela necessidade imperiosa de presteza e pelo caráter irredutível das
contingências, exige dos agentes da lei o famoso "jogo de cintura" expresso na aquisição
está em questão é uma espécie de hipertrofia do lugar social de intérprete posto para
eles mesmos, subordinados aos caprichos das circunstâncias que estruturam os eventos.
necessário extrair dos próprios fatos as chaves interpretativas através das quais eles
possam ser lidos. O saber-ato policial sintetiza esse processo da seguinte maneira: "cada
265
ocorrência é sempre uma ocorrência diferente". Tudo isso se volta para construir, ao nível
prático, algum grau de convergência das idiossincrasias dos episódios "assumidos" e suas
legal e legítimo. Para o PM que está agora ali na esquina, trata-se, portanto, de acionar a
arquitetura reflexiva do "bom senso" e identificar "o que fazer" e "como agir" em cada
situação, em cada fato particular. Talvez por conta disso, o "saber policial de rua" se
Orientada pelo "bom senso", essa economia prática policial evidencia que a fragilidade e,
mesmo, a ausência de regras formais objetivas e úteis, não projeta o uso cotidiano da
produção de alternativas para a obediência também lança mão das subjetividades e dos
conhecimentos informais que modelam o senso comum. Isto significa dizer que, na ordem
ofertar um guia para a ação efetiva. Nesse contexto, os processos decisórios acionados
decisões que afetam diretamente a vida das pessoas são tomadas pelos policiais de ponta.
Todas elas têm correspondido a uma grande área cinzenta do trabalho policial. Nas ruas,
visibilidade das suas iniciativas é gritante, em particular no âmbito das ações preventivas
e dissuasivas. Esse é um ponto crítico da realidade policial militar, uma vez que possibilita
uma parcela expressiva do atendimento policial, esses episódios difusos e voláteis não se
realizado.
Concorre para agravar a pouca visibilidade das iniciativas policiais ordinárias, a falsa
idéia de que as ações da PM reportam-se tão-somente ao combate ao crime. Uma vez que
mensuráveis em boa parte dos casos, a cobrança por resultados tangíveis tende a ser
assalto abortado porque havia policiais próximos? Como notificar um homicídio que não
ocorreu porque a patrulha passava naquele exato momento no local? Como contabilizar
um estupro que não chegou a acontecer porque alguém gritou que a polícia estava
chegando?
são aqueles eventos que podem vir a ser objeto de ação legal, tais como os flagrantes, as
reativas e repressivas que, num ciclo vicioso, tendem a ser novamente reforçadas dentro
passa a ser subvalorizado diante da contabilidade dos "saldos" das operações repressivas
recursos a serem destinados a essas agências pelos resultados que elas deveriam produzir.
A avaliação quando restrita apenas àquelas ações que produzem registros conduz a uma
distorção evidente: a contabilidade das prisões efetuadas, por exemplo, pode induzir
começar senão não conta ponto”) até o estímulo à produção espúria de resultados
(“prende, mesmo que depois tenha que soltar”). Cabe salientar que a inexistência de
Um outro ponto que contribui para reforçar a baixa visibilidade das ações policiais
concretamente, só podem ser exercidos pelos indivíduos. É nesse contexto que se pode
assistir às reações de receio e insegurança por parte dos policiais de ponta no que se refere
à gestão ordinária da autoridade a eles delegada, sobretudo nas interações difusas com os
cidadãos.
parecem permanecer como um desafio a ser encarado nos dias de hoje. A perspectiva
pública e setores do senso comum ilustrado, sobretudo quando os problemas em foco são
a "a guerra contra o crime", o “lado operacional da polícia” e o necessário “controle dos
homens armados” que fazem cumprir a lei. A despeito das mudanças do regime político
corresponde a uma caçada dos inimigos da “boa ordem e da paz pública”; a perversa
associação das questões de ordem pública com aquelas relativas à soberania do Estado;
as demandas para que o Exército atue nos assuntos de ordem pública, imprimiram a sua
marca em nosso passado e ainda têm configurado uma sombria realidade na vida
democrática brasileira.
269
270
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