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ÍNDICE

RESUMO 1

AGRADECIMENTOS 3

INTRODUÇÃO 6

PARTE I - HISTÓRIA, MODELO E CULTURA INSTITUCIONAIS 20

1. Qual estado? Qual ordem? Qual polícia? 21


2. Polícia e Estado: uma estória possível de conflitos, suspeitas e desconfianças 36
3. Azulões ou verdes-olivas ? Um drama identitário 61
4. “Este espelho reflete você e você a PMERJ”: o esprit de corps e o senso de missão 85
5. O mundo da caserna: Policiais Militares versus o “Militarismo” 108
6. “O que foi que eu fiz”: entre a culpa e a responsabilidade 137

PARTE II - O FIM DA INOCÊNCIA: ELEMENTOS PARA UMA CULTURA

POLICIAL DAS RUAS 149

1. “Na prática é outra coisa”: a singularidade do saber policial de rua 149


2. Ação e Adrenalina: “ser policial é perigoso, divino e maravilhoso” 176
3. O Caçador de Ações: suspeita, perigo e decepção 198
4. "Um sujeito homem": Orgulho, preconceito e relativização 232
5. O que os "outros" dizem de nós 251

CONSIDERAÇÕES FINAIS 260

BIBLIOGRAFIA 269

ANEXOS 278
2

RESUMO

“SER POLICIAL É, SOBRETUDO, UMA RAZÃO DE SER”


Cultura e Cotidiano
da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

Este trabalho tem como foco principal o universo cultural e institucional da Policial

Militar do Estado do Rio de Janeiro. O problema de fundo selecionado para conectar os

aspectos culturais institucionais e informais trabalhados nas partes I e II dessa dissertação,

pode ser resumido da seguinte forma: o "fazer ostensivo da polícia" pressupõe um

significativo espaço de manobra decisória dos policiais de ponta no atendimento a toda

sorte de eventos insólitos e emergenciais que, por um lado, não encontra uma tradução na

racionalidade jurídica e que, por outro, tem correspondido a uma zona cinzenta do

trabalho policial, permanecendo pouco visível para as corporações, os PMs e a clientela

que utiliza os seus serviços. As implicações do recurso discricionário e sua "baixa

visibilidade", tanto nas ações individuais consideradas adequadas quanto naquelas

interpretadas como arbitrárias e violentas, colocam em evidência a magnitude do desafio

posto para a prática policial ostensiva: conciliar, em ambientes ordenados pelo acaso,

incerteza e risco, os princípios da legalidade e legitimidade que conformam a vigência do

estado de direito.

Na primeira parte, discute-se alguns elementos essenciais sobre a história, modelo e

culturas intitucionais da polícia ostensiva, com ênfase no seu aspecto formal e

organizacional. Através de diversos recortes complementares, a PMERJ é apresentada

como uma agência policial específica, com passado, estruturas, experiências e modos de

ser particulares que são contrastados com elementos extraídos da bibliografia dos estudos

policiais. A forma como a estrutura organizacional e os valores institucionais da PMERJ


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são apresentados, deixa entrever a necessidade de uma abordagem complementar que

capture os modos pelos quais os aspectos formais do mundo policial ostensivo são

experimentados, interpretados, contraditados e redefinidos pelos PMs no cotidiano do seu

trabalho. A segunda parte, ocupa-se de relatar, através de casos, expectativas e

representações trazidos ao texto pelo recurso etnográfico, os processos informais que

emprestam concreção ao mundo ordinário da polícia ostensiva. Busca-se identificar

alguns elementos referenciais que concorrem para a conformação de uma “cultura policial

das ruas”, entendida como uma síntese complexa e sutil dos estímulos e expedientes ora

convergentes, ora contraditórios e paradoxais que servem de guia para os atores que se

inscrevem no universo policial ostensivo.


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AGRADECIMENTOS

A hospitalidade com que fui recebida ao longo do percurso deste trabalho, fez-me

devedora de pessoas e das instituições que algumas delas encarnavam. A Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro me recebeu com amizade e sinceridade, partilhando seus

dilemas, ambições e expectativas. Os coronéis da reserva Nazareth Cerqueira e Jorge da

Silva foram embaixadores, bem como fontes constantes de experiência e reflexão acerca

das polícias. O Coronel Sérgio da Cruz apoiou desde há muito esta jornada, orientado

pela lúcida percepção dos ganhos resultantes do aprofundamento das relações entre

polícia e sociedade. Um destaque especial tem que ser feito ao 19º BPM. Sob o comando

do Cel José Aureliano, este batalhão recepcionou calorosamente um dos meus primeiros

trabalhos de pesquisa sobre polícia. Não posso deixar de agradecer às 60 praças da Cia

de policiamento comunitário, em especial o Sgt Wagner, que possibilitaram inúmeras

conversas e rondas. Foi também no 19º BPM que o Cel Bello me agraciou com a gentileza

do título de Comandante Honorária, que muito me emociona e motiva. Além de tantos

amigos conquistados dentro da PMERJ, há que distinguir os adoráveis parceiros de

convívio e infindáveis discussões apaixonadas: Ubiratan, Antônio Carlos e Luiz

Fernando. Reconheço, ainda, o meu débito para com um sem-número de oficiais e praças

das Polícias Militares de outros Estados que, nas conversas informais, durante o trabalho

de patrulha, no suporte às visitas de estudo e no convívio mais ou menos formal das aulas

e palestras, confiaram a mim tanto do seu saber e das suas vidas. A Brigada Militar do

Rio Grande do Sul me recepcionou repetidas vezes com o calor da hospitalidade policial

militar gaúcha, a qual homenageio nas figuras dos seus comandantes Cel Dilamari e Ten

Cel Brenner. A Polícia Militar do Estado do Espírito Santo me permitiu conhecer de perto
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os desafios e as iniciativas do Programa de Polícia Interativa, franqueando-me acesso a

todo o seu pessoal e instalações, cabendo destacar o Maj Júlio César, essência da

receptividade e afetividade capixabas. É justo nomear outras organizações policiais

militares que, com igual atenção, também me acolheram: as Polícias Militares de

Pernambuco, da Bahia, de São Paulo, de Minas Gerais, do Distrito Federal e do Pará. A

estas há que se somar a ajuda pontual mas de grande valor de oficiais das Polícias

Militares do Acre, Amazonas, Tocantins, Paraíba, Ceará e Paraná. Ainda que este trabalho

enfatize o aspecto ostensivo da ação policial, diversos profissionais da Polícia Federal e

das Polícias Civis de tantos estados brasileiros contribuíram com sua sabedoria,

conhecimento e amizade para o meu entendimento da questão policial. Cabe reconhecer

o lugar singular que é ocupado pelos Delegados de Polícia Carlos Alberto D’Oliveira,

Martha Rocha e Cláudio Ferraz da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, com os

quais tenho o privilégio de dialogar e aprender já há muitos anos.

Sinto-me devedora daqueles pioneiros que ousaram ir além dos preconceitos e

resistências ao se aventurem no estudo das questões policiais: Luiz Antônio Paixão e

Roberto Kant de Lima. Seu arrojo e competência são fontes constantes de inspiração. Não

posso deixar de mencionar as instituições e colegas com os quais iniciei a minha trajetória

acadêmica. Tanto no ISER quanto no Viva Rio, pude contar com o carinho de Rubem

Cesar Fernandes e Elisabeth Sussekind. Não sei como descrever tudo que pude aprender

com adoráveis parceiros e cúmplices: Luiz Eduardo, Bárbara, Patrick, Leonarda, Bianca,

João Trajano, José Augusto, Regina, Lilian, Jacqueline, Edigar, Fabíola, Helena, Cristina,

Marco e Cleber. Zeca Borges permitiu e apoiou uma visão complementar importante,

nascida do trabalho junto ao Disque-Denúncia. O Grupo de Estudos Estratégicos ampliou

meus horizontes para a questão do uso da força, permitindo-me partilhar reflexão e

trabalho relevantes – sou grata a Eugenio, Clovis e Cepik pela sua receptividade ao tema
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policial. A estes se somam, de forma diferente mas com igual carinho, Otávio Velho,

Wanderley Guilherme dos Santos, Cláudio Beato e Galeno Tinoco Ferraz Filho.

Nestes últimos meses contei com a amizade de Newton, Julita, Silvia, Dolores, Elenice e

Adelmo, companheiros da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania - SSP/RJ. Contei ainda

com a generosa ajuda de Beth Cobra, que se empenhou na revisão dos originais com

rapidez e competência.

A Maria Alice Resende de Carvalho, Renato Lessa, Roberto Kant de Lima e Domício

Proença Júnior, membros da banca, um agradecimento especial pela consideração e

sensibilidade.

Ao meu orientador Luiz Eduardo Bento Soares, um amigo e parceiro que com o “rigor de

sua indisciplina” soube emprestar medida e rumo aos meus estudos desde muito antes da

aventura do doutorado, empresto a minha sincera admiração e amizade.

Há aquelas pessoas cujo apoio se faz de uma forma indizível e indispensável: Marquinho,

Isabel, Roldão, Camilinha, Cimá, Glória, Ademar, Belli, Cacati, Rosane, Marcelo,

Henrique, Lucas, Beta, Shê, Verinha gaúcha, Malu, Paula, Dedé, Dona Lilita e Sr.

Leandro.

A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, sob a orientação do Dr. José Gregori,

também emprestou o seu apoio. De fato, muito do que aqui apresento resultou de

trabalhos e atividades que contaram com o suporte desta secretaria, bem como de

financiamento ou apoio do Centro Cultural do Banco do Brasil, da FAPERJ, da

UNESCO, do PNUD e da Fundação Ford. Durante o doutoramento, fui beneficiada com

uma bolsa de estudos do CNPq.


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INTRODUÇÃO

Em 1992, logo após a conclusão de meu mestrado em Antropologia Social, no Museu

Nacional, UFRJ, fui convidada pelo prof. Luiz Eduardo Soares a integrar a sua equipe de

pesquisadores da recém-criada área de estudos sobre violência e criminalidade urbanas

do ISER. Os projetos de pesquisa ali desenvolvidos tinham como desafio aliar os rigores

do trabalho científico ao compromisso ético de atender às crescentes demandas públicas

por informações e diagnósticos qualificados, regulares e acessíveis sobre a problemática

do crime e da violência na cidade e no Estado do Rio de Janeiro. Durante os três primeiros

anos de trabalho, lidamos com o amplo tema da violência através de recortes específicos

e complementares, procurando combinar, sempre que possível, ferramentas e recursos

metodológicos quantitativos e qualitativos. Nossos estudos contemplaram,

principalmente, o universo valorativo da chamada “massa carcerária”, as formas

particulares de violência praticada contra mulher, criança e adolescente, e as dinâmicas

da criminalidade letal, interativa e com fins lucrativos. 1

De fato, boa parte dessas pesquisas dependia de um contato estreito com as organizações

policiais fluminenses e, por sua vez, do acesso as suas bases de dados. Contudo, essas

agências ainda não figuravam como o nosso “objeto de pesquisa” privilegiado. Nesse

primeiro momento, as polícias entravam em cena apenas de uma forma indireta, isto é,

como um insumo importante porém suplementar às questões relativas ao fenômeno do

crime e da violência nas grandes cidades.

1
Os principais resultados desses trabalhos foram reunidos na livro “Violência e Política no Rio de Janeiro”
organizado por Luiz Eduardo Soares e publicado pela Relume & Dumará/ISER, em 1996.
8

É bem verdade que desde essa época já nos encontrávamos insatisfeitos com o nosso

conhecimento genérico sobre as agências policiais. Afinal, o entendimento de muitas das

questões levantadas em nossos principais estudos requeriam uma compreensão mais

aprofundada dessas instituições, dos seus integrantes e do cotidiano do seu trabalho. A

medida em que as nossas atividades de pesquisa avançavam, ia ficando cada vez mais

evidente a necessidade de reunir e produzir saberes específicos sobre os meios de força

comedida. Mostrava-se oportuno compreender o outro lado da moeda, ou melhor, visitar

as polícias por dentro, ultrapassando os estereótipos, as leituras externas e as definições

normativas-legais.

A incorporação do tema "polícia" na agenda de pesquisas veio traduzir o

amadurecimento de nossas reflexões sobre o campo da segurança pública e a convicção

de que era indispensável dirigir algum esforço para uma área ainda muito pouco explorada

no Brasil. A implantação do programa de polícia comunitária, em Copacabana, no ano de

1994, surgiu como uma preciosa oportunidade para desencadear nosso primeiro trabalho

de fôlego junto as organizações policiais ostensivas. Através da parceria estabelecida com

a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, coube aos pesquisadores do ISER a tarefa

de monitoramento deste programa, desde a sua concepção e até a sua efetiva execução.

O trabalho de avaliação do primeiro projeto de policiamento comunitário de larga escala,

realizado no Rio de Janeiro, se estendeu pelos 11 meses de sua duração.2 Nesse período,

acompanhamos as rotinas interna e externa executadas pelos 509 policiais que

2
O programa de polícia comunitária em Copacabana começou a ser desmontado em junho de 1995, logo
após o general Nilton de Albuquerque Cerqueira assumir o cargo de secretário de segurança pública. A sua
completa desativação ocorreu em setembro do mesmo ano.
9

compunham o efetivo do 19º BPM.3 Sem dúvida, as observações sobre o dia-a-dia de

uma unidade policial ostensiva e, principalmente, o longo convívio com os "meninos da

polícia comunitária" durante os seus afazeres profissionais e nas folgas, constituíram um

rico acervo de informações, problemas e indagações relativos ao "mundo policial" que

serviram não só para orientar novas pesquisas realizadas na PMERJ e em outras polícias

militares, como também para modelar as considerações aqui tecidas.

Dentre as diversas questões que aguçaram a minha curiosidade, procurei neste trabalho

dissertar sobre aquelas que me pareceram fundamentais para compreender o universo

policial militar e, ao mesmo tempo, ambientar o leitor comum no complexo "mundo" da

polícia ostensiva. Decidi que um caminho frutífero seria tentar seguir bem de perto as

pistas ofertadas pelos atores que faziam parte da realidade investigada, aproveitando, na

medida do possível, os pontos recorrentes, sensíveis e críticos, os quais, de uma forma

explícita, subtendida ou enviesada, apareciam nos seus discursos e atitudes. Por conta

dessa opção, os temas aqui tratados foram tomados de empréstimo dos próprios policiais

militares que ocupam-se de refletir sobre a suas corporações, as doutrinas por elas

adotadas, a missões atribuídas, a sua forma de estar no mundo, os problemas resultantes

da ação ostensiva cotidiana, as cobranças públicas, etc.

O problema de fundo que selecionei para conectar os aspectos culturais institucionais e

informais trabalhados, respectivamente, nas partes I e II dessa dissertação, pode ser

resumido da seguinte maneira: o "fazer ostensivo da polícia" pressupõe um significativo

3
Além do trabalho de campo no 19º BPM, as atividades de pesquisa contemplaram o acompanhamento das
reuniões mensais dos seis Conselhos Comunitários de Área (CCAs); o mapeamento das ocorrências
registradas na área pelas unidades operacionais das Polícias Militar e Civil; a análise dos bilhetes
depositados pela população local nas trinta urnas espalhadas pelos bairros de Copacabana e Leme; e breves
estudos de caso sobre o quiosque gay, o baile funk realizado na quadra do morro Chapéu Mangueira e
algumas boates de prostituição da praça do Lido. Para uma apreciação dos resultados desta pesquisa ver:
Musumerci, 1996.
10

espaço de manobra decisória dos policiais de ponta no atendimento a toda sorte de eventos

insólitos e emergenciais que, por um lado, não encontra uma tradução na racionalidade

jurídica e que, por outro, tem correspondido a uma zona cinzenta do trabalho policial,

permanecendo pouco visível para as corporações, os PMs e a clientela que utiliza os seus

serviços. As implicações do recurso discricionário e sua "baixa visibilidade", tanto nas

ações individuais consideradas adequadas quanto naquelas interpretadas como arbitrárias

e violentas, colocam em evidência a magnitude do desafio posto para a prática policial

ostensiva: conciliar, em ambientes ordenados pelo acaso, incerteza e risco, os princípios

da legalidade e legitimidade que conformam a vigência do estado de direito.

Na primeira parte, apresento alguns elementos essenciais sobre a história, modelo e

culturas intitucionais da polícia ostensiva, com ênfase no seu aspecto formal e

organizacional. Trata-se de fazer aparecer uma moldura geral que permita contextualizar

o lugar sócio-político ocupado pelas organizações policiais. Através de diversos recortes

complementares, a PMERJ é apresentada como uma agência policial específica, com

passado, estruturas, experiências e modos de ser particulares que são contrastados com

elementos extraídos da bibliografia dos estudos policiais. Essa apreciação se inicia por

uma consideração mais ampla que inquire sobre os relacionamentos entre as organizações

policiais e as prerrogativas da ação do Estado (I.1:Qual Estado? Qual ordem? Qual

polícia?). O descarte de falsas oposições – a vigência dos direitos civis e uso da força,

para tomar a mais candente – é um passo necessário. Só a partir da superação da falsa

dualidade entre estado de direito e polícia é que se pode compreender a razão de ser das

organizações policiais profissionais (meios de força comedida), identificando sua

natureza, função e especificidade de ação no Estado moderno. Mostrou-se, portanto,

oportuno ressaltar que o processo de construção e ampliação dos chamados direitos civis
11

constituiu uma das principais molas propulsoras para a criação e reforma das polícia

urbanas, ou seja, das organizações policiais profissionais.

A seguir, busca-se fornecer algumas evidências da dinâmica de suspeição que tem

marcado o relacionamento entre as polícias e o Estado, em particular entre as diversas

formas organizacionais da(s) polícia(s) no Rio de Janeiro e o Estado brasileiro (I.2:

Polícia e Estado: uma estória possível de conflitos, suspeitas e desconfianças). Isto se

faz pela crítica da interpretação marxista da história desse relacionamento, assim como

pela consideração de alguns problemas metodológicos relativos ao tratamento dispensado

às fontes produzidas pelas polícias, por exemplo. A indicação de outras formas de

interação polícia/Estado permite compreender a recente “rebelião das praças” e outros

movimentos reivindicatórios como continuidade e atualização de histórias que se

estendem até o século passado. Outros pontos importantes para a compreensão do lugar

de polícia são apresentados ao longo deste capítulo. Destacam-se a necessária distinção

entre impulso de violência e uso da força, o papel das chamadas "competências residuais"

(definidas pelos PMs como toda sorte de demandas sociais saídas das ruas e que não estão

necessariamente previstas nas atribuições formais da polícia ostensiva). Somam-se a

esses elementos, uma apreciação dos expedientes de disciplinarização dos meios de força

e da sua crescente militarização, interpretados como uma resposta problemática à

inevitável discricionariedade dos policiais de ponta. A criação das polícias ostensivas no

Rio de Janeiro passa então a ser o objeto central da análise que se beneficia de uma breve

contextualização das concepções ibérica e liberal-democrática da ordem pública.

É a partir desse referencial que a especificidade da PMERJ dos dias de hoje emerge e

pode ser percebida como um amálgama de organizações policiais distintas, que propiciou
12

a reinvenção de uma outra tradição, uma outra forma de expressão identitária, enfim, uma

outra história (I.3: Azulões ou verdes-olivas? Um drama identitário). Pareceu adequado

iniciar essas considerações através de um relato suscinto das formas pelas quais as

constituições brasileiras correlacionaram os assuntos de ordem pública, segurança interna

e defesa nacional, definindo os papéis, atribuições e instâncias de subordinação das

polícias militares. Por um lado, cabe destacar o período de 160 anos em que a PMERJ

foi comandada por oficiais do exército. Por outro lado, merece atenção os problemas

derivados da sua atribuição constitucional de polícia da ordem pública e, ao mesmo

tempo, de uma força auxiliar e reserva do exército, o que impõem, na ordem prática, duas

lógicas radicalmente distintas de engajamento da força: a prontidão para o combate e o

pronto-emprego nas atividades propriamente policiais. Essa breve descrição permite

observar a atualidade das discussões sobre a herança da Doutrina de Segurança Nacional

e o difícil legado da interação entre o Exército e as Polícias Militares. A esses elementos

historiográficos se segue a ponderação da forma presente dessa dinâmica expressa, por

exemplo, no entendimento do que sejam as tarefas ostensivas contemporâneas e as

matrizes que informam o processo formativo dos policiais militares. É dessa forma que

se pode fazer aparecer a identidade híbrida e complexa da PMERJ como mais do que a

simples soma das antigas Polícias Militares dos Estados do Rio de Janeiro e da

Guanabara.

Com esse pano-de-fundo, se inicia uma apreciação mais detalhada do ethos policial

militar, a partir da qual procura-se compreender a sua natureza e sentido, destacando o

esprit de corps e o senso de missão (I.4: “Este espelho reflete você e você a PMERJ”: o

esprit de corps e o senso de missão). Desde logo, o lugar dispensado à palavra e seu uso

pelos PMs é descrito como parte de um autoentendimento pautado pela incisividade no


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agir, no qual a postura e aparência, expressões simbólicas do papel do policial militar

como agente da Lei, da Ordem e do Estado, têm um lugar decisivo no processo de

construção da identidade institucional. Merece consideração a forma pela qual os valores

da corporação policial informam uma gramática corporal peculiar, assim como fazem

aparecer um senso de missão e uma mística a ele associada que se estendem para além da

realidade profissional dos agentes da lei, fazendo-se presentes nas esferas ordinárias de

convívio social. O modo mesmo como o senso de missão é concebido e experimentado

pelos atores deixa entrever a perseguição a uma espécie de "cultura da presteza e

eficiência" que se traduz no cotidiano da caserna em um tipo de ensaio para a coisa real -

o trabalho de polícia. A isto se associam outras considerações sobre a conduta

profissional e pessoal dos PMs, que ajudam a conformar um esprit de corps alimentado

tanto por rituais de passagem calcados na vivência direta do trabalho policial, quanto

pelos requisitos da tradição e desempenho da missão policial, valorados de uma forma

diferenciada sob a luz do modelo paramilitar.

Os próprios policiais militares diagnosticam a tensão daí resultante (I.5: O mundo da

caserna: Policiais Militares versus o “Militarismo”), onde as dinâmicas históricas,

organizacionais e doutrinárias de matriz militar se chocam com os processos,

necessidades e percepções propriamente policiais circunscritos pelas demandas por uma

ordem pública democrática. Identifica-se, assim, o “militarismo” como uma corrente

conservadora que pretende subordinar a realidade de polícia às formas de organização e

ação da força terrestre de defesa. A essa perspectiva se contrapõem os “policiais militares

realistas”, para os quais o modelo militarista oferece mais problemas do que soluções por

conta, sobretudo, da diversidade não-combatente da ação policial. Nesse particular, é

preciso atentar para a experiência norte-americana de paramilitarização das polícias,


14

distinguindo-a fortemente do fenômeno ocorrido no Brasil. O “militarismo” tratado aqui

não se confunde com a necessidade funcional nem do uniforme nem da hierarquia no

funcionamento de um meio de força comedida. Reporta-se a perniciosa influência do

Exército sobre os assuntos de segurança pública que desconsidera as especificidades do

trabalho policial. Nesse contexto, a capilaridade e a baixa visibilidade do "fazer policial

ostensivo" traz à luz a centralidade do recurso discricionário na ação individualizada de

polícia que desafia, na prática, os modelos e doutrinas que buscam reproduzir nas PMs

hábitos e práticas marciais inadequadas para o cumprimento de suas tarefas.

Esta não é uma discussão abstrata, uma vez que incide de forma dramática na vida

profissional e no convívio social dos policiais militares. Os mecanismos de controle

disciplinar da organização policial militar mostram-se inadequados para recompensar ou

punir os PMs no desempenho de seu trabalho (I.6: “O que foi que eu fiz”: entre a culpa

e a responsabilidade). De fato, evidencia-se que a rígida disciplina militar revela-se frágil

e pouco eficaz quando se trata de fiscalizar as atividades cotidianas e individualizadas de

polícia realizadas nas ruas, isto é, as ações propriamente policiais que têm lugar muito

além dos muros dos quartéis. Ocorre que no dia-a-dia, o policial de ponta se vê diante do

dilema da decisão à sombra da alternativa de ser punido seja por fazer de menos, seja por

fazer demais, seja até por fazer ou por deixar de fazer. Tal fato não contribui apenas para

debilitar e desacreditar os próprios expedientes de controle e supervisão. Ele ainda

favorece não só o mascaramento dos processos decisórios, ampliando o medo e a

insegurança na escolha do curso de ação, como também propicia a exacerbação de

práticas amadoras e arbitrárias nas interações com os cidadãos.


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A forma como a estrutura organizacional e os valores institucionais da PMERJ são

apresentados, deixa entrever a necessidade de uma abordagem complementar que capture

os modos pelos quais os aspectos formais do mundo policial ostensivo são

experimentados, interpretados, contraditados e redefinidos pelos PMs no cotidiano do seu

trabalho. A segunda parte da dissertação busca atender a essa exigência. Dedica-se a

relatar, através de casos, expectativas e representações trazidos ao texto pelo recurso

etnográfico, os processos informais que emprestam concreção ao mundo ordinário da

polícia ostensiva. De uma forma suscinta, trata-se de identificar alguns elementos

referenciais que concorrem para a conformação de uma “cultura policial das ruas”,

entendida como uma síntese complexa e sutil dos estímulos e expedientes ora

convergentes, ora contraditórios e paradoxais que servem de guia para os atores que se

inscrevem no universo policial ostensivo. Em outras palavras, o que se faz aqui é

apresentar um conjunto selecionado de chaves interpretativas através das quais pode-se

aproximar do “mundo da polícia” nas ruas.

De imediato, os PMs da blue line evidenciam na administração de episódios heteróclitos,

informes e descontínuos, o caráter indispensável de se por em operação uma espécie de

hermenêutica "nativa" entre o prescrito e o praticado (II.1: “Na prática é outra coisa”: a

singularidade do saber policial de rua). Em verdade, os esforços interpretativos voltados

para a busca de convergência entre "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que

encontra-se no mundo e não está na lei" apresentam-se, na ordem dos fatos, como a

condição de possibilidade para que a ação policial ostensiva conseqüente possa ter lugar.

Até porque as atribuições da polícia ostensiva confundem-se, em boa medida, com o largo

horizonte da ordem pública. No dia-a-dia ela é chamada a atuar sempre que ocorre "algo-

que-não-devia-estar-acontecendo-e-sobre-o-qual-alguém-tem-que-fazer-alguma-coisa-
16

agora-e-bem" (Cf.Bittner, 1990). Os PMs da ordem pública descobrem on the job que, na

maior parte vezes, não há a oportunidade de um encontro feliz entre os diversos níveis de

exigência que circunscrevem a sua ação pontual. Eles aprendem no agora-já das pessoas,

situações e acontecimentos, que nem sempre é possível fazer convergir a "letra da lei", a

sua interpretação em termos de enforcement, os procedimentos de emprego do uso da

força, a validação moral do curso de ação adotado e a produção de resultados tangíveis,

eficazes e satisfatórios. Por conta disso, observa-se uma renúncia, mais ou menos

consciente, daquelas orientações contidas nos manuais e processos de formação que

mostram-se pouco adequadas a um ambiente de intervenção policial invariavelmente

marcado pela contingência, incerteza e volatilidade. Por outro lado, constata-se a

valorização da experiência pessoal como uma forma de "saber-ato" que é construído em

um processo simultâneo de “training on the job” e troca de vivências entre policiais mais

e menos experientes. Outros qualificativos tais como o pragmatismo, a crueza, o

sentimentalismo, a nostalgia, a personalização, a empiria, o detalhismo, a adaptabilidade

e a presteza, são associados a esse saber "em estado de alerta". Um saber reestruturado a

cada nova circunstância atendida, preparado para assistir ao "pior de nós mesmos" e

disposto a conviver com os "lados desagradáveis da vida". Através das múltiplas

caracterizações desse saber procura-se, então, resgatar um conhecimento singular

construído nas ruas da cidade e, por meio dessa empresa, contextualizar os desafios,

impasses e alternativas experimentados pelos PMs da ponta da linha em razão da

complexa tarefa de preservar uma ordem pública contemporânea.

Assim como em outras ocupações que lidam com o risco, as percepções sobre perigo e a

possibilidade mesma de sua experimentação estão presentes de uma forma marcante e

própria no mundo da polícia (II.2: Ação e Adrenalina: “ser policial é perigoso, divino e
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maravilhoso”). Elas parecem operar como chaves cognitivas que contribuem para a

conformação de uma working personality policial enriquecida com os estímulos saídos

do aqui-e-agora das esquinas da cidade. As expectativas ampliadas da ameaça emprestam

cores particulares às formas de estar no mundo, aos modos de agir e classificar os

potenciais "agressores simbólicos", alvos constantes de atenção e vigília policiais. Além

dos significados atribuídos ao perigo e a ameaça, as representações associadas à

juventude, à virilidade e ao hedonismo também encontram sólo fertil no "divino e

maravilhoso" mundo da cop culture. Extremamente valorizados por aqueles atores que se

pensam talhados para agir em situações de incerteza e risco, esses atributos contribuem

para estruturar uma visão de mundo cuja apreensão do tempo se dá pela sua intensidade.

Por outro lado, emergem do cotidiano imagens românticas do policial herói, justiceiro e

operacional que constrastam com a realidade do trabalho de polícia, ao mesmo tempo

que compensam o tédio e a monotonia que também se fazem presentes na desgastante

rotina ostensiva. Um outro ponto importante no processo de tornar-se nas ruas um

"policial de verdade", diz respeito à construção e negociação cotidianas do lugar da

autoridade policial, cuja manifestação ocorre de forma capilar, ambulante e

individualizada. Aqui as percepções do perigo e risco, assim como as visões espetaculares

do dia-a-dia policial, ajudam a configurar ora pela adesão a essas construções, ora pelo

afastamento, um modo singular de experimentar o exercício da autoridade, desafiando os

streetcorner politicians a acionar o "bom senso" e a procurar distinguir - em situações

difusas, contigentes e desconexas - a sutil fronteira entre o arbítrio e a arbitrariedade.

No mundo policial de rua, os elementos de incerteza, perigo e autoridade compõem uma

mistura singular e encontram-se intimamente articulados a uma pedagogia da suspeita

que é, via de regra, constantemente alimentada pelas pressões morais exercidas sobre os
18

policiais (II.3: O Caçador de Ações: suspeita, perigo e decepção). Percebida pelos PMs

da blue line como uma "atitude saudável" de todo policial e, por conseguinte, como um

indispensável "mecanismo de sobrevivência" nas ruas, a suspeita oferta uma forma "útil"

e ao mesmo tempo existencialmente sofrida de olhar o mundo social. O seu preço seria a

perda da inocência original. Constata-se que a suspeição não se restringe às atividades

ostensivas de polícia, propagando-se por todas as esferas informais de convívio e

alimentando o dramático isolamento social sentido pelos policiais. Uma vez que

"suspeitar" apresenta-se como um recurso inevitável do cotidiano ostensivo da polícia,

parece inescapável a elaboração de estereótipos associados aos indivíduos considerados

"suspeitos". Na prática policial, a economia da suspeita tem-se apresentado como uma

questão de díficil equacionamento, principalmente por causa da corriqueira moralização

das atividades policiais. Na ordem prática, as expectativas morais projetadas sobre o

papel, missão e atuação da polícia costumam ser traduzidas em termos de uma cruzada

do bem contra o mal, cuja versão funcional pode ser expressa no clássico jargão policial

"nós contra eles". O contraponto de um imaginário contaminado pela suspeita é a

elaboração de uma economia afetiva da decepção. Os PMs da linha da obrigação vão, ao

longo de suas trajetórias, cristalizando uma visão desencantadora da vida urbana

contemporânea. Resulta daí uma espécie de sociologia policial do desapontamento que,

por um lado, mostra-se muito pouco otimista com os rumos da vida em comum e, por

outro, apresenta-se saudosa de um mítico "estado de sociedade", isto é, de um romântico

e idealizado estado de total conformidade moral no qual não ocorriam conflitos, crimes

e litígios.

Um outro traço cultural que merece ser considerado, é o propagandeado "machismo

policial" que se faz presente nas mais distintas organizações policiais, e aparece
19

sintetizado na linguagem cotidiana dos nossos PMs da ponta linha através da expressão

"eu sou um sujeito homem"(II.4: “Um sujeito homem”: Orgulho, preconceito e

relativização). Suas manifestações, afins aos outros atributos associados à imagem do

policial ideal, reforçam o ethos masculino dos meios de força comedida, ao mesmo tempo

que contextualizam as resistências e obstáculos relativos ao tardio ingresso das mulheres

na força policial ostensiva. Através desse recorte, retoma-se a delicada questão do

preconceito instrumentalizado nas ações cotidianas de polícia, identificando a "macheza"

policial como um dos muitos lugares de diálogo conflituoso estabelecido com outros

mundos sociais elaborados na ampla sintaxe das ruas, em particular aqueles mundos

percebidos como "desviantes" e "naturalmente" ameaçadores e provocativos. Por um

lado, busca-se evidenciar os riscos e os limites derivados da funcionalidade dos clichês e

estereótipos na rotina ostensiva. Por outro, procura-se demonstrar que a própria economia

prática policial possibilita comportamentos relativizadores, em razão da oportunidade

aberta nas interações de se construir intervalos de disjunção entre valores preconceituosos

e atitudes discriminatórias.

Por fim, uma via complementar a essas questões é a administração cotidiana do "estigma"

associado a profissão policial (II.5: O que os “outros” dizem de nós). Aqui o que está em

jogo é, a luz do clássico paradoxo "vigiar aqueles que vigiam", compreender o modo

mesmo como os PMs interpretam e negociam com as imagens negativas construídas pelos

"outros" que eles "policiam”. Trata-se, ainda, de apreciar as formas pelas quais a

experimentação de uma "identidade social deteriorada" compromete a interações com os

cidadãos, contribuindo para reiterar o isolamento social expresso na sensação de que os

policiais constituem uma "raça a parte".


20
21

PARTE I - HISTÓRIA, MODELO E CULTURA


INSTITUCIONAIS

1. Qual estado? Qual ordem? Qual polícia?

Toda vez que o tema violência e criminalidade urbanas é chamado à discussão, o ponto

nevrálgico do debate acabam naturalmente sendo as organizações policiais, cujo papel de

manter a lei e preservar a ordem pública é direto e executivo. Nos noticiários, em nossas

conversas informais e mesmo nos fóruns governamentais e acadêmicos, somos

inevitavelmente conduzidos a enfrentar algumas questões com implicações práticas e,

talvez por isso, muito espinhosas em relação às polícias. De um lado, cobramos a pronta

atuação e a produtividade dos meios de força policiais no enfrentamento da desordem, do

crime e da violência; de outro, exigimos sua adesão e a subordinação incontestável ao

estado de direito. Em uma frase, cobramos dos policiais, em cada curso de ação escolhido

ou em cada ocorrência atendida em alguma rua de nossa cidade, que produzam resultados

efetivos sem violar as garantias individuais e coletivas. Não há nada de absurdo nisso.

A tensão estrutural na realização de um ato que pressupõe o emprego da força ou a sua

ameaça e que seja, a um só tempo, produtivo, legal e legítimo é inerente às “forças

comedidas” (Skolnick, 1994). Em verdade, essa tensão - erroneamente interpretada como

uma evidência negativa das ações policiais - expressa a própria condição de possibilidade

da emergência da polícia como um meio de força singular, cujos doutrina, missão,

competências e procedimentos de tomada de decisão são, constrangidos pelo estado de

direito, radicalmente distintos das forças combatentes da sociedade. As agências policiais

resultam do encontro original e sutil de aspectos do mundo político nem sempre


22

conciliáveis na ordem prática, como o monopólio legítimo do uso da força, a esfera de

ação legal e o consentimento dos cidadãos. Diferentemente do que se pode, à primeira

vista, imaginar, as agências policiais encontram sua razão de ser exatamente na arte de

fazer convergir, em nível operacional, esses elementos por vezes conflitantes.

Contudo, o desconhecimento da natureza positiva e estruturante dessa tensão nas

atividades de polícia e, até certo ponto, a ausência, no Brasil, de um acervo consistente e

disponível de reflexões sobre o estado da arte dos meios de força policiais têm contribuído

para a cristalização de falsas oposições tais como “operacionalidade policial X direitos

humanos” ou “polícia X direitos civis”. Tem, ainda, propiciado a elaboração de

conclusões amorais e catárticas do tipo “os direitos humanos atrapalham o serviço da

polícia”, “o mundo do crime não tem direito, tem dívida”, “a polícia só apresenta

resultado quando faz serviço sujo” etc.

A naturalização destas imagens é de tal forma corrosiva e afetivamente poderosa -

sobretudo durante as ondas de agravamento coletivo do temor - que tende a obscurecer o

fato de que as indagações e demandas que fazemos hoje sobre a eficácia do trabalho de

polícia e o pleno exercício dos direitos civis são, em grande parte, as mesmas questões

que conduziram à ruptura dos padrões arcaicos de vigilância e que possibilitaram a

confecção de uma matriz moderna de polícia - a polícia londrina de Sir Robert Peel.

Ainda que pareça surpreendente, a luta pelos direitos civis estava originalmente

comprometida com a criação das organizações policiais modernas ou profissionais. Em

certa medida, as polícias profissionais surgiram como uma solução operacional, uma

“resposta civilizada” às insatisfações públicas relativas às arbitrariedades produzidas pelo


23

uso privado da força e pelas intervenções descontínuas e truculentas do Exército nos

conflitos sociais. Assim, como será observado mais adiante, os esforços de

institucionalização de serviços policiais profissionais visavam atender as reivindicações

humanitárias da época.

A polícia ostensiva, tal como conhecemos nos dias de hoje - com uniformes, cassetetes e

armas convencionais, patrulhando as ruas das pequenas e grandes cidades -, é uma recente

invenção ocidental. Sua criação remonta às primeiras décadas do século XIX (Critchley,

1992; Devlin, 1992; Harring e McMullin, 1992; McLaughlin e Muncie, 1992). Resulta

dos esforços de construção de uma concepção de Estado que identificamos como

moderna, orientada pela ambição iluminista de produzir e sustentar a paz através de meios

pacíficos e “civilizados”.4

De certa forma, esses esforços significaram uma releitura da clássica distinção entre o

máximo emprego de violência para abalar a coesão do inimigo na guerra, e o uso mínimo

de força necessário para compelir à obediência individual e coletiva nos tempos de paz.

Tratava-se de romper a perversa e contraproducente dualidade estabelecida no emprego

indistinto dos instrumentos de força existentes. O uso da força comedida na sustentação

interna do território conquistado foi, durante um longo período, a face interna das forças

Segundo alguns autores, a aspiração da paz, além de vinculada aos valores iluministas, encontrava-se
também atrelada à modesta ética do utilitarismo. Desse modo, a ambição do bem comum não se apresentou
apenas como um ideal abstrato, mas como algo que resultaria em vantagens individuais. O desejo de abolir
a violência estava, portanto, fundamentado na crença de que a violência e a brutalidade seriam
humanamente repreensíveis e também na pragmática conclusão de que elas são tolas e onerosas. (Ver
Bittner, 1990).
24

combativas no Ocidente. Era, de fato, a mesma força guerreira que conquistava um

território e impunha sobre ele a ordem do conquistador.5

Certamente o projeto civilizatório de produzir a paz com instrumentos pacíficos não foi,

e ainda não é - mesmo tendo transcorrido quase 200 anos de história - algo cuja

experimentação possa ser apreendida como simples ou trivial. Ao contrário, a perspectiva

de se buscarem resolver os conflitos por intermédio de procedimentos entendidos como

legítimos e “humanitários” representou uma novidade sem precedentes que possibilitou,

por exemplo, a emergência de uma noção de autoridade assentada sobre os princípios da

legalidade e do consentimento, e o permanente desafio de viabilizar o seu enraizamento

no cotidiano dos cidadãos.

O surgimento e a disseminação das polícias profissionais por todo o Ocidente

refletiram, em boa medida, o processo mesmo de construção da perspectiva liberal do

estado de direito (Bittner, 1975). As fortes pressões civis pela garantia e ampliação dos

direitos conquistados, e os esforços empreendidos pelos Estados para monopolizar o uso

ou ameaça do emprego da força na resolução dos conflitos internos propiciaram o

ambiente necessário para o debate sobre a pertinência de uma instituição capaz de atender

às exigências postas por esse novo mundo. O episódio de criação da moderna polícia de

Londres é bastante ilustrativo das preocupações e questionamentos quanto à concepção

de uma força policial profissional.

5
A lógica imperial alexandrina, que fundou o modo ocidental de fazer a guerra, dependia dessa dualidade
extremada no emprego da força: a conquista guerreira e o policiamento na paz, ver: Keegan, 1995.
25

A polícia de matriz britânica foi construída em oposição à ameaça que uma polícia

tradicional à moda de França representava à liberdade inglesa. A police francesa nasceu

com uma vocação totalitária. Ela consistia nos olhos, nos ouvidos e no braço direito do

soberano: "deve ela tudo saber para que o governante decida o que permitir ou reprimir".

Descende de um arranjo que buscava assegurar a hegemonia de Paris sobre o território

francês. A amplitude de seu mandato se confundia com a extensão do próprio Estado.

Neste sentido, embutia tarefas que, em outras concepções, eram exclusivas das Forças

Armadas, dividindo com elas a responsabilidade da defesa nacional em sua expressão

territorial. Grosso modo, pode-se dizer que o modelo francês de polícia agregava missões

distintas em uma única instituição. A polícia à moda de França era, portanto, a união do

que hoje se distinguem como serviço secreto, polícia de fronteiras, polícia política,

serviço de contra-espionagem, força paramilitar de ação interna e defesa territorial,

polícia de costumes, polícia judiciária, polícia investigativa e polícia ostensiva. A

repartição administrativa destas tarefas em divisões funcionais e territoriais não

comprometia nem a sua unidade de comando (firmemente plantada na chefia do Estado),

nem o trânsito de informações e quadros entre as diversas atividades. 6

Sir Robert Peel e seus colaboradores sabiam que o seu projeto de uma nova força policial

- moderna e profissional - só conseguiria vencer as resistências no Parlamento e na

população se ele em nada lembrasse a police francesa (Reiner, 1992). A Inglaterra já tinha

vivido uma guerra civil pelo controle do Exército e pela soberania da Câmara dos

Comuns. Via-se uma polícia do Estado como um instrumento de tirania, tal como a polícia

do Ministro Fouché havia sido para Napoleão e seguira sendo para os Bourbon

6
O antigo aparato soviético do Ministério do Interior e da KGB espelhava este tipo de concepção totalitária
de polícia, mesmo quando a polícia ostensiva foi separada em uma força profissional à parte,
contraditoriamente designada milícia das grandes cidades.
26

restaurados. Mesmo após uma breve realização experimental em Dublin, a idéia de se ter

uma força policial de tempo integral ainda soava como uma possível arma do executivo

contra o Parlamento e a população. Uma das principais razões para as fortes resistências

era o receio público de que a existência de tal força fizesse a balança do poder pender

favoravelmente para o ramo executivo do governo, conduzindo inevitavelmente a um

retrocesso em relação aos direitos conquistados.

Mas a regularidade e o incremento de diversos episódios violentos ocorridos em Londres

acabaram por minimizar as resistências e as desconfianças. Em 1820, a cidade

experimenta um ano com inúmeros crimes brutais e uma seqüência de desastrosos motins

e tumultos urbanos - em parte reflexo das guerras napoleônicas - que foram dominados

pelas forças militares com graves prejuízos à vida e a propriedade. A manutenção da paz,

através das Forças Armadas, mostrou-se falha, uma vez que o uso da repressão armada

havia demonstrado não ter nenhum efeito dissuasivo, a despeito de sua ilimitada

brutalidade. Outras críticas foram dirigidas às experiências privadas de segurança. Os

velhos arranjos comunais de provimento de ordem (milícias, xerifados, constables etc.)

mostraram-se insatisfatórios para os próprios "homens de bem". 7 Além de produzirem

violações, torturas e privilégios, revelaram-se também incapazes de atender aos desafios

surgidos com a vida urbana industrial como o crime, os conflitos sociais e os distúrbios

civis. As forças privadas de segurança, além de subordinadas às conveniências de seus

integrantes, não podiam constituir uma força de tempo integral. As críticas quanto aos

serviços prestados por elas iam desde o uso arbitrário e desmedido da força até a

Os periódicos de Londres na década de 30 do século passado, assim como os manifestos de Sir Robert
Peel, retratam a falência dos modelos privados de segurança com expressões e ênfases muito similares às
evocações hoje observadas em relação à “crise da segurança pública” no Brasil. A demanda por uma
organização policial (police) sustentava-se na "escalada do crime e da desordem", no "temor da população"
etc. O apedrejamento da casa do Duque de Wellington, primeiro ministro, serve como ilustração das causas
da insatisfação popular quanto aos arranjos de segurança da época.
27

fragilização da autoridade legal do Estado, que franqueava essa mesma autoridade a

atores particulares.

Londres parecia ter se transformado em um cenário novo e estranho para aqueles que lá

viviam e que passaram a experimentar uma realidade “outra”, constituída de personagens,

barulhos, fluxos e comportamentos inéditos. Observe o trecho abaixo que George

Mainwaring escreveu, em 1821, em suas “Observations on the Present State of the Police

of the Metropolis, pp: 4-5”:

“The most superficial observer of the external and visible appearance of this town,
must soon be convinced, that there is a large mass of unproductive population living
upon it, without occupation or ostensible means of subsistence; and, it is notorious
that hundreds and thousands go forth from day to day trusting alone to charity or
rappine; and differing little from the barbarous hordes which traverse an uncivilized
land [...] The principle of [their] action is the same; their life is predatory; it is equally
a war against society, and the object is alike to gratify desire by stratagem or force”
(apud Silver, 1992:57-81).8

Mas, os debates britânicos sobre a necessidade de uma organização policial insistiam cada

vez mais no desejo de construir uma agência de controle social superior aos desenhos

privados de segurança e radicalmente diversa do fantasma da polícia totalitária à moda de

França. Daí o incômodo - expresso inúmeras vezes nos debates da época - de se adotar o

próprio termo police, de origem francesa para uma instituição nova e diferente que estava

sendo ainda concebida (Ericson, 1992; 151:159). Os ingleses queriam uma organização

que sustentasse a ordem pública, fizesse cumprir a lei e mantivesse a paz nas cidades.

Cabe aqui um breve comentário: a passagem mencionada, se ocultadas as referências de tempo e espaço,
poderia ser literalmente tomada como um dos muitos bilhetes de moradores de Copacabana, depositados
nas urnas do programa de policiamento comunitário em 1995, no Rio de Janeiro. (Ver: Musumeci, 1998)
28

Esta organização não poderia intervir nas lutas políticas, questionar as conquistas civis,

nem violar a privacidade dos súditos. 9 Seria uma polícia sem papel paramilitar,

exclusivamente orientada para atender as demandas citadinas. Outras organizações menos

pervasivas e capazes, responderiam pela segurança do Reino.

A polícia de Peel resultou de uma série de compromissos com os seus aliados e oponentes:

deveria ser um meio de força civil, estruturado sob os princípios da hierarquia e da

disciplina paramilitares; com uma administração centralizada e autonomia regional;

preparada para a ação em grupo, mas com uma prática cotidiana centrada no indivíduo.

Matriz principal da atual estrutura policial britânica, a polícia de Londres teria que ser a

polícia dos súditos, do Parlamento -- nunca do Estado. Assim a polícia inglesa, paradigma

da polícia moderna, nasceu desarmada e sem função investigativa: sua missão estava

restrita a “proteger e servir”. 10

Todavia, a pretensão civilizatória de controle dos recursos violentos, tradicionalmente

utilizados na resolução de disputas, não significou a eliminação nem a recusa radical à

presença de expedientes de regulação. Em verdade, ela estimulou o redesenho e a

diferenciação das ferramentas coercitivas, tornando o recurso à força - agora constrangido

pela legalidade e legitimidade de seu emprego - uma realidade mais complexa que,

evidentemente, passou a exigir institutos e arranjos mais adequados às novas exigências. 11

É evidente que esta perspectiva não vigorou nas Colônias inglesas cujos arranjos de policiamento
aproximavam-se da polícia à moda de França (McCormick e Visano, 1992).
10

Esse arranjo policial concebido por Peel e seus colaboradores rapidamente propagou-se pelo Ocidente e,
submetido a diversos ajustes, serviu de base para o primeiro departamento de policia americano - o
departamento de polícia de Nova York (Ver: Skolnick e Fyfe, 1993).
11

O valor atribuído à paz foi suficientemente forte para desautorizar todas as formas de violência
provocativa. Mas isto não significou a supressão dos mecanismos coercitivos do Estado. O emprego da
força provocada, por exemplo, continuou se mostrando útil, passando a ser utilizado de forma menos
29

O emprego da força no Estado moderno quando contrastado com as formas anteriores de

produção da obediência revestiu-se de sofisticação e preparo técnico. Conforme salienta

Bittner (1975:18), um aspecto relevante da implantação da autoridade legal e legítima foi

a interposição de distâncias, ou melhor, a proliferação de intervalos de mediação entre os

poucos que governam e a maioria governada, entre as leis estabelecidas e suas formas de

execução, suas dinâmicas de imposição e de fiscalização.12 A coerção ou a sua ameaça

não estariam ausentes na tradição liberal e, particularmente, nos governos democráticos.

Ela se revestiria de uma roupagem singular: sua elaborada simbolização e os diversos

ritos que passaram a estruturar a sua manifestação evidenciavam a necessidade de se

introduzirem gradações e justificativas, tornando essa ameaça um dispositivo indireto,

também objeto de controle, um instrumento de assimilação da autoridade, um recurso

definido como último, mas querido como “remoto” (Foucault, 1989). A importância dos

modos indiretos de implementação da autoridade e da governância pacífica pode ser

ilustrada pelo fato de que o "pontapé na porta", a “detenção para averiguação” começaram

a ser vistos como atitudes contraproducentes, autoritárias e moralmente reprováveis.

A progressiva minimização do recurso à força se fez acompanhar de mudanças

significativas na administração da justiça. Os métodos de mutilação e produção de dor

onerosa e sob restrito controle. Note-se que a expectativa da paz e o seu enraizamento como uma nova ética
forçaram uma necessária dissociação entre as noções de violência (um ato de força desmedido, arbitrário,
ilegítimo e ilegal) e uso da força, sendo esta última a realização de um ato comedido, autorizado, consentido
e, por isso, entendido como positivo. A confusão, ou mesmo a busca de um plano de contiguidade entre
estas duas categorias, tem dificultado mais do que contribuído para o aperfeiçoamento dos expedientes de
controle, capacitação e treinamento das polícias no que se refere aos gradientes que envolvem o recurso à
força.
12
Apenas como uma ilustração do refinamento dos mecanismos coercitivos, cabe mencionar que em
períodos anteriores os impostos eram coletados por soldados armados e o exercício da conscrição consistia
na captura de indivíduos nas vilas e cidades por tropas armadas.
30

física adotados como instrumentos de punição são gradativamente abandonados em nome

de expedientes mais racionais e humanitários como a privação da liberdade e a aplicação

de multas para os crimes mais leves. Assiste-se, então, aos esforços de difusão do

julgamento justo à luz da lei em lugar da paixão da comunidade ou do arbítrio da

autoridade.13

No contexto deste movimento de especialização e complexificação dos dispositivos de

vigia e punição, a substituição da intervenção militar intermitente pelo policiamento

profissional figurava como um dos grandes benefícios civilizatórios resultantes da criação

de uma força comedida - uma agência de larga escala estruturada nos moldes das

burocracias profissionais. Outros ganhos, como a presença pervasiva e contínua da

autoridade pública na vida diária das pessoas e a redução dos custos da coerção oficial

para o Estado e para as classes proprietárias exigiram, em algum nível, a cooperação

negociada com a sociedade civil. Em termos da ambição humanitária embutida no valor

atribuído à paz, buscava-se dramatizar a possibilidade da vida sem violência, mesmo

naquelas condições em que a imposição de sanções coercitivas pareciam indispensáveis

para validar o pacto social firmado entre os cidadãos. A violência necessária para

compelir à obediência deveria estar circunscrita, ela mesma, à lei; e a própria lei limitada

pelo consentimento dos governados.

13
Sir Robert Peel sabia que o seu empenho em conceber um novo artefato coercitivo - a polícia ostensiva -
não poderia estar dissociado de uma ampla reforma do sistema criminal em vigor, sob pena de sua criação
redundar em um retumbante fracasso. Neste sentido, ao mesmo tempo em que modelava a sua polícia, Peel
e seus colaboradores dedicavam-se também às tarefas de reestruturação do sistema penal inglês. (Ver:
Skolnick e Fyfe, 1993; Reiner, 1992; MacLaughlin e Muncie, 1996).
31

Se os expedientes de segurança e o poder de polícia sempre se fizeram presentes em todas

as formas de ordenamento político 14 , as agências policiais propriamente ditas -

concebidas como entidades profissionais, neutras e universais, voltadas tão-somente para

a preservação pacífica da ordem pública - constituíram, é preciso insistir, um engenhoso

e singular artefato coercitivo do mundo moderno. Cabe ressaltar que antes do advento dos

meios de força policiais, o que se tinha eram as formas provincianas de policiamento.

Grosso modo, tratava-se de arranjos comunitários de vigilância que iam desde o rodízio,

passando por uma infinidade de tipos de milícia, até a conexão, mais ou menos cotidiana,

com os Exércitos. Essas composições amadoras combinavam vários critérios de

atribuição de responsabilidade, policiamento e punição: desde a responsabilização de

grupos (“foi um filisteu que matou, um filisteu tem que morrer”), passando pela distinção

entre diferentes justiças e autoridades judiciárias (a comunidade pune até certo ponto, o

senhor um pouco mais e o soberano detém o poder de vida e morte), até a delegação da

justiça e do policiamento a certos indivíduos pelo soberano (o xerifado, os constables

etc.).

Entretanto, o surgimento das primeiras cidades industriais impôs outros ambientes e

novos desafios, inviabilizando as dinâmicas privadas de vigilância e punição. A

emergência do mundo urbano reconfigurou os padrões de sociabilidade, alterou visões de

mundo, inscrevendo novos atores na arena política e, sobretudo, introduzindo uma

dinâmica técnico-produtiva que propiciou o crescimento e o adensamento populacional

nas cidades. Essas transformações, evidentemente, frustraram os arranjos comunais e

privados de policiamento até então considerados suficientes.

14
Não é demais ressaltar a existência anterior à criação das organizações policiais modernas de diversas
agências estatais com funções regulatórias e fiscalizadoras e, por sua vez, com efetivo “poder de polícia”.
Este é o caso dos órgãos de coleta de impostos, de controle alfandegário, etc.
32

As grandes concentrações populacionais nos núcleos urbanos contribuíram, de forma

decisiva, para inviabilizar as práticas da responsabilização individual ou grupal pela

segurança, a existência de esferas isoladas de justiça e julgamento, a delegação individual

de autoridade. A isto se somaram, noutro plano, os conflitos sociais e os distúrbios civis,

de escala inédita, associados à destruição das estruturas de poder e prestígio tradicionais.

Pode-se dizer que a criação da polícia moderna está intimamente associada à construção

do espaço público e às mudanças nele transcorridas. A vida nas cidades, o aparecimento

dos espaços comuns e seus fluxos configuraram novas dinâmicas demográficas que vão

desde a utilização de espaços coletivos de lazer até o vaivém diuturno entre moradia e

local de trabalho. A conquista burguesa da cidadania, à medida que se estendia a outras

categorias sociais, redesenhava o acesso às vias e locais públicos, universalizando sua

disponibilidade. Nos países europeus, tornou-se inaceitável, no fim do século XIX, o

emprego do combate para a sustentação da ordem contra oponentes civis em sua maioria

desarmados. Apenas excepcionalmente os Exércitos retornariam às cidades para impor a

ordem, mas de forma episódica, no limite da guerra civil.

Do que foi exposto, pode-se facilmente concluir que a implantação das polícias

ou das “forças comedidas” anunciava o esforço de transformar a segurança - razão

original da própria existência do Estado - em um bem público, universal. Um bem distinto

da soberania do Estado (defesa nacional) e que se faria presente de forma pervasiva e

capilarizada no interior da vida social (provimento de ordem pública). Um serviço que,

como vimos, até metade do século passado era quase que integralmente produzido e

controlado por atores e recursos privados. Eis, aqui, mais uma inovação derivada da
33

aposta de sustentar a paz com expedientes coercitivos pacíficos e legítimos. A idéia de

segurança como um serviço essencial prestado pelo Estado representou um marco

histórico importante, cujo impacto parece ter sido notável no que concerne à garantia dos

direitos conquistados, à reconfiguração dos mecanismos senhoriais de poder e ao

assentamento da autoridade estatal na vida ordinária.

Creio que a esta altura não causaria nenhuma surpresa afirmar que as organizações

policiais estão entre aquelas agências do Estado que mais se transformaram no curso de

sua história. Contrariando a visão consensual de que as polícias - mantenedoras da lei e

da ordem - tenderiam a ser pouco afeitas a mudanças, os estudos históricos evidenciam

que elas passaram por transformações sensíveis desde sua criação até os dias atuais (Ver:

Bayley,1994; Morgan e Newburn, 1997; McCormick e Visano, 1992; Bittner, 1975).

Alteraram-se a doutrina de emprego da força, a missão, a extensão de seu poder e

mandato, os expedientes de fiscalização de suas atividades, os seus métodos de atuação,

as tecnologias por elas adotadas etc. Essas agudas alterações resultaram principalmente

do fato de que as polícias sempre estiveram inevitavelmente expostas e vulneráveis às

críticas públicas.15 As polícias, desde sua criação, tornaram-se a face mais delicada do

Estado. Elas têm se apresentado como o lugar no qual se pode legitimar ou descredenciar

o valor atribuído à autoridade. Isto porque as agências policiais representam, por um lado,

a encarnação mais concreta e cotidiana da autoridade governamental na vida dos cidadãos

(cf. Garotinho, Soares et alli; 1998); e por outro, o único meio de força legal, disponível

15
A ineficiência dos arranjos policiais mistos como a antiga guarda municipal, somada a queixas de
corrupção, brutalidade, insubordinação levaram à criação, em 10 de outubro de 1831, da nossa primeira
polícia profissional e de tempo integral: o Corpo de Guardas Municipais Permanentes; uma corporação
paramilitar, bem selecionada e bem paga, e subordinada ao ministro da Justiça. As Instruções de novembro
de 1831 são claras quanto à preocupação com excessos no uso da força: os “permanentes” deveriam cumprir
com o seu dever sem excluir ninguém, devendo ser "com todos prudentes, circunspectos, guardando aquela
civilidade e respeito devido aos direitos do cidadão" (ver: Holloway, 1997).
34

diuturnamente, capaz de responder de forma imediata e emergencial às mais distintas e

heteróclitas demandas citadinas por ordem pública.16

As atividades de policiamento recobrem o vasto mundo da vida nas cidades e, por

conseguinte, toda sorte de acidentes, interações ou conflitos experimentados pelos

indivíduos no espaço público. Exatamente por isso, as organizações policiais estão

constrangidas a acompanhar - em um recorte mais sensível, carregado de tensões e atritos

- as reinscrições e os desafios propostos pela multiplicidade de atores que constróem o

cenário político-urbano. O reconhecimento político das dinâmicas urbanas informais -

antes consideradas ilegítimas e ilegais - e o conseqüente processo de incorporação da

alteridade (inclusão de novos cenários e de novos atores no mercado da cidadania) a que

está sujeita a produção mesma de ordem pública, se fazem sentir nas organizações

policiais que necessitam constantemente se adequar aos caprichos e às críticas de suas

mais diferenciadas clientelas. Tudo isso se resume em uma banal constatação: se a polícia

é um meio de força extensivo e territorializado, ou melhor, enraizado localmente nas

comunidades, o desenho de seus serviços encontra-se diretamente vinculado às mudanças

sociopolíticas do ambiente em que ela atua.

No que diz respeito ao dimensionamento de forças, seja das Forças Armadas da defesa

nacional, seja das polícias da ordem pública, o que está em jogo é uma percepção, ou

melhor, uma visão política da esfera legítima e legal de intervenção, ordenamento e

controle da sociedade pelo Estado. A concepção de Estado de uma certa sociedade

16
É interessante notar o significativo grau de convergência entre os policiais brasileiros e de outras polícias
quando se reportam à dificil arte de negociar com o papel de autoridade no cotidiano. De um modo geral,
suas falas ressaltam o fato de que os descaminhos das políticas públicas são refletidos na polícia que
funcionaria, segundo eles, como um “bode expiatório” para a desaprovação popular. Inúmeras vezes ouvi
policiais de várias PMs do Brasil mencionarem a seguinte máxima: “quando o governo falha, acaba
sobrando para a polícia. O povo desconta sua insatisfação com os policiais”. Para uma apreciação dos
depoimentos de diversos policiais ingleses sobre os temas relevantes à vida policial, ver Graef (1989).
35

política (polity) contém determinados valores que instruem o que seja aceitável no que se

refere às despesas, às estruturas, às missões, aos mandatos e aos comportamentos válidos

dos seus meios de força.

É preciso enfatizar que o tipo de Estado constituído, assim como o tipo de ordem pública

concebida (se construída por todos, se referida somente a certos grupos, se emanada ou

imposta pelo governante) circunscrevem, em boa medida, os propósitos e as formas de

atuação da polícia, bem como os custos e os benefícios daí derivados. Os arranjos

policiais e suas especificidades históricas são parte integrante dos processos políticos

através dos quais as conquistas civis ganham forma e redesenham o seu diálogo com o

ordenamento estatal.

De certa maneira, os meios de força policiais se inserem em uma espécie de interseção

dos condicionamentos de dois níveis: de um lado, a configuração formal-legal da

autoridade do Estado e, de outro, o conjunto diversificado de demandas concretas e

inadiáveis provenientes do convívio em sociedade. Estes limites transformam-se em

objetos de constante negociação, na prática policial. É, por excelência, nos encontros

ordinários entre policiais e cidadãos, em alguma esquina ou rua de nossa cidade, que os

princípios da legalidade e da legitimidade, que conformam o abstrato “estado de direito”,

são negociados, reinterpretados, experimentados e mesmo constituídos. É, pois, nas

interações dos “agente da lei” com a população que a arquitetura formal dos direitos e

deveres constitucionais é concretamente vivenciada, tornando-se, mais do que uma

realidade “de direito”, uma realidade “de fato”, um recurso estratégico disponível e

mobilizável pelos atores sociais. As polícias têm o seu campo de atuação exatamente

neste intervalo cujo espaço é o da construção mesma da cidadania - lugar de teste (ou da
36

prova de fogo) das categorias formais que emolduram os valores políticos e éticos de uma

sociedade.

Se isto procede, parece pouco producente buscar entender a natureza política das polícias

pela negação daquilo que constitui o estado de sua arte: um meio de força comedida que,

no curso dos eventos, busca dar conta de um dilema posto pela tradição liberal: mediar a

tensão entre “o que está na lei e se encontra no mundo” (o mundo da lei) e “o que se

encontra no mundo e não está na lei” (as leis do mundo). O desconhecimento de que os

direitos civis constituem um dos principais expedientes motivadores para a criação e

reforma das polícias conduz, inevitavelmente, ao perigoso caminho de se tentar explicar

os problemas, não por aquilo que eles são, mas por sua ausência, ou melhor, pelo que

neles faltaria ou deixaria a desejar. O que certamente impede uma visão mais consistente

dos “por quês” das próprias externalidades resultantes da ação de polícia.

Como será visto mais adiante, esse tipo de visão tende a ser enganadora principalmente

quando procura compreender os pontos mais sensíveis e custosos da atuação da polícia

ostensiva. Refiro-me tanto a contraproducente indistinção entre o uso legal e legítimo da

força e o emprego da violência nas ações cotidianas de polícia, quanto a pouca atenção

conferida à baixa visibilidade dessas ações, sobretudo nas interações ordinárias com os

cidadãos.
37

2. Polícia e Estado: uma estória possível de conflitos, suspeitas e


desconfianças

Maureen Cain, em seu artigo “Trends in the Sociology of Police Work” (1992: 3-32), faz

uma observação no mínimo curiosa. A autora afirma, com base em uma expressiva

revisão de trabalhos acadêmicos, que “os estudos de polícia revelam tanto o pior quanto

o melhor que os sociólogos podem fazer”. 17 As críticas de Cain se dirigem principalmente

àqueles estudos que, segundo ela, teriam promovido “banalidades suaves” à condição de

proposições teoricamente fundamentadas. Felizmente, a “lista” de Cain dos trabalhos

pouco relevantes é pequena e não chega a desanimar os profissionais de pesquisa que

pretendem estudar as polícias. Mas, desse inventário pode-se chamar à memória uma

velha dica de trabalho de campo: os estudiosos, encantados com os fenômenos que

observam, por vezes se deixam convencer ou mesmo se enganar pela realidade que

estudam. Na ânsia de demonstrar a consistência de suas hipóteses, esquecem que a

“empiria” que recortam é, também, o produto das expectativas do seu olhar no diálogo

com as expectativas presentes no olhar do outro.

De fato, certas realidades que recortamos como “objeto de pesquisa” são tão

próximas e presentes no nosso dia-a-dia que guardamos a forte impressão de que sabemos

muito sobre elas mesmo sem conhecê-las profundamente. Em alguns momentos, são

essas primeiras impressões que orientam nossas curiosidades, indagações e dúvidas. Em

princípio, não há nada de errado com estas percepções. Como um ponto de partida, elas

17

O trabalho de revisão bibliográfica que consta neste artigo reporta-se a produção acadêmica internacional
dos últimos cinco anos anteriores à data de publicação.
38

podem nos conduzir ao estranhamento do familiar, à descoberta do surpreendente naquilo

que parece banal e óbvio - um tipo de exercício tão ao gosto da antropologia.

Com as polícias, em particular as ostensivas, ocorre algo parecido. Estamos, de alguma

forma, em contato com elas: através da idealização heróica e quase sempre romântica dos

seriados de TV, dos trillers de ação e dos folhetins policiais; nos noticiários sobre crimes

e violência policial; e, no cotidiano, quando paramos em um sinal de trânsito, quando

participamos de uma manifestação pública, quando avistamos uma blitz ou simplesmente

quando observamos uma radiopatrulha deslocando-se monótona e lentamente por uma

avenida da cidade. Os policiais militares fazem parte da paisagem urbana carioca como

tantas outras personagens menos identificáveis que eles. Trajados com seus uniformes e

em suas viaturas caracterizadas, os PMs se destacam, são imediatamente reconhecidos

entre os muitos atores que circulam pelo Rio de Janeiro. Nos encontros indesejáveis, nas

emergências ou nas colisões casuais com os “agentes da lei”, o reconhecimento de nossa

parte é imediato: “chegou a polícia”.

Egon Bittner, em seu clássico artigo “Florence Nightingale in Pursuit of Willie Sutton: A

Theory of the Police” (1990), ressalta que, dentre as instituições que integram as

modernas formas de governo, a polícia ocupa uma posição controvertida. Ela é a agência

pública mais conhecida da população e, ao mesmo tempo, a menos compreendida e

problematizada pelos estudiosos. Ainda que de forma genérica, todos os membros da

sociedade estão, em algum grau, cientes de sua existência: somos capazes de solicitar ou

recusar os serviços policiais, assim como acionamos um elaborado e intuitivo conjunto

de regras que nos orientam sobre “como agir na presença de uma autoridade policial” etc.

De outro lado, quando somos chamados a identificar a missão, os propósitos e o campo


39

de atuação das organizações policiais, via de regra, nos restringimos ao mais trivial dos

lugares comuns - “a polícia sustenta a lei e combate o crime” - o que, evidentemente, não

faz justiça à riqueza e a complexidade das nossas interações cotidianas com os meios de

força policiais ostensivos.

Essa forma econômica e sucinta de atender às indagações “o que é a polícia? e para que

ela serve?” também se faz presente na fala dos policiais de ponta, sobretudo entre os

recrutas recém-ingressos na PMERJ que, seguindo à risca o manual, respondem

prontamente, e em uníssono: “proteger a sociedade, sustentando a lei e combatendo o

crime”. As justificativas ordinárias sobre a existência e a pertinência da organização

policial aparecem normalmente dissociadas dos planos de experimentação que

conformam a realidade das polícias em sua inserção na vida diária das pessoas,

prevalecendo a idealização de imagens jurídicos-formais que, mesmo fazendo parte da

moldura que conforma as instituições policiais, pouco refletem o que as polícias

realmente fazem ou estão fazendo à luz dessas imagens. Do mesmo modo, elas parecem

ocultar, mais do que indicar, o universo aberto e contingente das nossas expectativas em

torno dos serviços policiais.

No âmbito da produção científica também se pode notar que algumas formalizações sobre

as polícias, a despeito dos alcances e limites de sua rentabilidade explicativa, ganharam

historicamente uma tal força persuasiva que ainda hoje se apresentam como um de pano

de fundo obrigatório, uma espécie de senso comum acadêmico que serviria de base para

as discussões sobre o papel das organizações policiais. Refiro-me, principalmente, à

forma como as relações entre polícia e Estado têm sido tradicionalmente enquadradas.

Creio que é neste recorte que as críticas de Maureen Cain parecem mais consistentes.
40

Uma parte significativa dos estudos sobre as burocracias policiais modernas possui uma

inspiração claramente marxista (Shearing,1992:349-369).18 Esta perspectiva é informada

pela ambição de ressuscitar uma “grande teoria” já conhecida de todos nós: no plano mais

essencial e subterrâneo da manifestação dos fenômenos sociais, seria possível revelar um

meticuloso e consciente projeto de dominação econômica e política da classe capitalista,

que não pouparia esforços para impor sua hegemonia aos mais distintos domínios da vida

em comum. As polícias, assim como outras agências de controle existentes, fariam parte

de um conjunto bem articulado de aparelhos repressivos do Estado contra as aspirações

dos trabalhadores e demais atores subalternos ao poder.19

Note-se que a polícia é apresentada como uma das muitas respostas instrumentais

concebidas para atender a um único e universal propósito: servir aos interesses dos

poderosos (onde quer que eles estejam) e “fazer o serviço sujo”, oprimindo aqueles que

deveriam permanecer alienados do valor do seu trabalho e dos meios de produção. Nesta

linha de entendimento, não parece fazer nenhum sentido estudar as polícias como uma

realidade em si mesma. Elas não teriam nada de essencial a revelar que não pudesse ser

demonstrado pela identificação antecipada dos interesses da elite governante. Suas

missões e objetivos estariam a priori esclarecidos, ou melhor, determinados pela

racionalidade conspiratória de um Estado inexoravelmente comprometido com os grupos

18

O abstract deste artigo é suficiente para indicar o enfoque teórico do autor: “This paper begins with the
observation that the legal system in liberal democracies, despite its egalitarian ideals, is used as a recourse
in political conflict to mantain structures of dominance. It then draws attention to the theorical requirement
to identify the specific mechanisms that provide for this persistent and systematic institutional hypocrisy
[...]”.
19

A idéia de que as forças de defesa, a polícia e o sistema penal constituem instrumentos de violência do
Estado a serviço dos caprichos da classe capitalista é detalhamente denvolvida por Lenin (1995).
41

poderosos. Na condição de agentes reprodutores, as polícias estariam somente

“cumprindo ordens” em quaisquer situações a elas apresentadas. 20

Em um mundo político tão mal intencionado, as iniciativas policiais - tanto aquelas ações

consideradas convencionais e propositadas quanto as violentas e ilegais - são,

invariavelmente, interpretadas como derivadas das necessidades oportunistas do sistema

capitalista. Se as explicações sobre as polícias são buscadas fora delas, parece óbvia a

conclusão simplista de que, em qualquer tempo e lugar, elas estariam atualizando, de

forma mimética e mecânica, sempre os mesmos propósitos repressivos, variando apenas

as aparências que mascaram as suas verdadeiras e originais intenções. Fica evidente que

o que parece importar neste tipo de enquadramento é a confirmação, pela demonstração

circular, de uma intenção perversa que se faria sentir em todas as esferas da estrutura

governamental. O que se tem com este raciocínio é, paradoxalmente, a negação do

processo histórico e de suas descontinuidades, uma vez que nesta proposta de organização

dos eventos as personagens parecem ocupar um lugar pouco relevante - o de repetidoras

de determinações que as ultrapassariam.

Conforme salienta Marcos Bretas (1997), a historiografia recente brasileira teria se

deixado contagiar, em parte, por uma leitura branda deste enfoque, principalmente os

estudos desenvolvidos no final da década de 70. Talvez, um modismo universitário da

época que impelia os pesquisadores a darem a sua contribuição para a luta contra o regime

militar, engajando-se em “uma visão crítica e comprometida com as causas populares.”

20

As restrições aos problemas derivados da perspectiva marxista sobre os meios de força policiais e de outras
agências de controle não significa a adesão a uma espécie de liberalismo ingênuo que advoga um
determinismo de outra natureza: os conflitos de interesses se resolveriam pela mágica do livre mercado, do
mesmo modo que os instrumentos do Estado teriam suas imperfeições corrigidas no percurso evolutivo do
próprio ordenamento estatal.
42

Apesar da riqueza da documentação analisada nesses trabalhos, as premissas gerais

caminham em uma certa direção: demonstrar o papel dos mecanismos de repressão e

controle estatais na construção dialética da classe trabalhadora no Brasil desde os tempos

da escravidão, tomando como monolítica a relação do governo com os seus meios de

força, e destes últimos com a população. 21 O problema central desses estudos era,

portanto, o mesmo: evidenciar que, por um lado, a imposição violenta do projeto burguês

- realizado por um Estado comprometido até a raiz com as classes proprietárias - forçava

a valorização do trabalho e da disciplina indispensáveis à dominação capitalista e, por

outro, propiciava fortes manifestações populares de rejeição e resistência, fazendo

emergir uma identidade autêntica para a classe trabalhadora.

Nessa historiografia, o conceito de “resistência popular” é extremamente amplo,

incluindo desde a recusa a uma organização industrial do trabalho (ainda rudimentar) até

as desordens e os crimes contra a propriedade. 22 É, por excelência, no contexto das

chamadas resistências populares que as polícias são mencionadas. Os meios de força

policiais entrariam em cena figurando apenas como uma instância de procedimentos

formais. Suas aparições nos textos acadêmicos reportam-se tão-somente à descrição do

cumprimento das estratégias violentas de domesticação concebidas por outros atores - a

burguesia e a elite agrária brasileiras. Neste cenário, as posições políticas são retratadas

com uma tal ordem de rigidez que parece impossível vislumbrar, nas ruas, interações

cordiais entre polícia e segmentos da população ou mesmo o estabelecimento de outras

alianças que não aquelas traçadas pelos donos do poder. Tudo se passa como se o mundo

21

Dentre os estudos históricos que se orientaram por esta perspectiva ver: Neder et alli (1981); Rodrigues et
alli (s/d).
22
Para uma crítica desta perspectiva ver: Bretas (1997).
43

das ruas dramatizasse, através da oposição polícia versus população, um roteiro já escrito

da luta de classes.23

Bretas (1997:32) observa que o tema polícia tem sido sistematicamente inserido como

“um apêndice à história das classes populares e do movimento operário, sobre o qual a

polícia estendia sua implacável repressão”. Talvez por isso, persiste o autor, a “sua

abordagem se faça apenas através de relatórios, regulamentos e leis que são produzidos

pela alta hierarquia policial ou mesmo em instâncias superiores do poder político”. Em

síntese, constata-se um recorte apenas formal e enviesado da instituição policial. São raros

os trabalhos históricos que têm se ocupado em tentar resgatar os aspectos cotidianos das

atividades de polícia, como as interações dos policiais e as pessoas nas tarefas rotineiras

de patrulhamento ou ainda nas contingências surgidas das ruas. Cabe aqui mencionar, por

exemplo, a insatisfação dos chamados “permanentes” - integrantes do Corpo de Guardas

Municipais Permanentes da Corte - quanto à atribuição a eles conferida de fiscalizar as

filas nas fontes públicas de água no Rio de Janeiro, nos anos 30 do século XIX.24 De fato,

não é comum encontrar abordagens que façam aparecer os policiais como sujeitos de suas

ações ou que se mostram capazes de descrevê-los como atores que interpretam e decidem

23
É evidente que não se devem desconsiderar as evidências históricas exaustivamente exploradas de que
em vários momentos as organizações policiais - sobretudo os modelos pré-modernos - se mostraram úteis
como ferramentas dos Estados totalitários, ou como peças integrantes de estratégias autoritárias. Este é o
caso dos Estados Policiais à moda de França e das chamadas polícias secretas e polícias políticas que
exitiram no Brasil desde o advento das organizações policiais na Corte em 1808. (ver: Brodeur, 1992;
Holloway, 1997).
24
A Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, criada em 13 de maio de 1809 por D.João VI e adotada pela
PMERJ como a referência simbólica de sua fundação, foi extinta em julho de 1831 em virtude de um grave
motim ocorrido no mesmo período, do qual também participou o 26º Batalhão de Infantaria do Exército
regular. Em 10 de outubro do mesmo ano, foi criada uma outra organização policial militarizada - o Corpo
de Guardas Municipais Permanentes. Os “permanentes” receberam, em 1866, a designação formal de Corpo
Militar de Polícia da Corte; e com a Constituição republicana de 1891, foram transformados na Brigada de
Polícia da Capital Federal. A partir de 1919, a então Brigada passou a se chamar Polícia Militar. (ver:
Holloway, 1997; “Evolução Onomástica e Galeria dos Ex-Comandantes Gerais”, Arquivo Geral-
AjG/PMERJ, s/d).
44

sobre as atribuições registradas nas leis e nas regulamentações institucionais. As leituras

tradicionais, é preciso enfatizar, tendem a apresentar a polícia como ocupando um papel

intermediário, e seus integrantes como seres desprovidos de um saber próprio, de uma

visão singular sobre o seu lugar no mundo etc. Em suma, a polícia e os policiais aparecem

“apassivados” diante de um jogo do poder mais essencial que a eles só caberia executar.

Mas as críticas de Bretas à historiografia brasileira, no tocante aos estudos de polícia, vão

um pouco mais além. 25 O autor chama atenção para o modo como as fontes documentais

têm sido interpretadas quando comenta que os registros policiais, largamente utilizados

pelos pesquisadores, costumam ser trabalhados de uma forma que por vezes impede o seu

melhor aproveitamento. O ponto principal parece incidir sobre a falsa crença de que a

razão conspiratória burguesa (entidade não demonstrável) teria chegado até o nível da

fabricação dos registros oficiais. A pressuposição de que a polícia seria “a principal

instância falsificadora” de uma história verdadeira da resistência popular acaba

introduzindo um problema de difícil solução no manuseio dos dados institucionais: se as

fontes policiais (inquéritos, notificações, regulamentos etc.) são sempre monotemáticas,

expressando a versão dos atores oficiais e excluindo deliberadamente outros pontos de

vista (inclusive o da polícia), qualquer análise realizada a partir delas estaria, em

princípio, condenada a somente reproduzir o olhar vigilante e punitivo do poder. Em

outras palavras, estas análises estariam impedidas de fazer aparecer a história que não

teria sido documentada, e pior, estariam impossibilitadas de reconstruir as próprias falas

da “resistência”, propósito último desses estudos. A preocupação quase paranóica de

resgatar a história oficiosa ou a realidade, de fato, “real”, tende a produzir uma camisa de

25
A discussão sobre os limites do enquadramento histórico tradicional é apresentada por outros
historiadores que se dedicam ao estudo da produção do espaço público, da cidadania e da urbanidade no
Rio de Janeiro. (Ver: Carvalho, 1985a; 1985b; Silva, 1988; Carvalho, 1987).
45

força que nem mesmo a astúcia de um historiador-herói, investido da virtude de apreender

todas as entrelinhas e os subtextos, é capaz de superar.26 Enfim, este tipo de expectativa

tende a se converter em um círculo vicioso: perseguir os fantasmas que ela própria

produziu.

Uma via alternativa ao pesadelo do oficialismo histórico encontra-se disponível no

próprio acervo documental das polícias. Suspenso o raciocínio conspiratório, podem-se

libertar os ouvidos para escutar o que os dados têm a dizer sobre as múltiplas vozes que

ali se fazem presentes, sobre o modo mesmo como as identidades dos cidadãos e dos

policiais são construídas nas ocorrências notificadas. As clássicas fontes policiais, além

de indicarem as estratégias de controle, permitem, por exemplo, enxergar uma realidade

outra: “[a realidade] da polícia como uma organização imperfeitamente constituída,

condicionada pelos limites da técnica e dos investimentos em segurança realizados no

período, buscando construir em sua atividade cotidiana nas ruas o modo operativo que

vai caracterizá-la”(Bretas,1997:32-33). Através de um olhar mais dialógico e atento, a

polícia “emerge com características próprias, capaz de aliar-se a grupos em conflito em

defesa de uma determinada política” (Idem:28), incluindo aí a sua política, os seus

próprios interesses. Nesta perspectiva, a polícia “deixa de ser um agente de políticas -

iluminadas ou nefastas - definidas por grupos no poder, para tornar-se um dos atores,

capaz de ter interesse próprios, de participar na definição de seus poderes e atribuições,

construindo seu saber específico sobre como controlar o espaço urbano" (Idem).

26
É curioso observar que nesta maneira de tratar os eventos o pesquisador aparece como algo mais
importante que a própria realidade que investiga. Ele seria o principal ator do processo, aquele que em outro
tempo resgataria a verdadeira história fazendo justiça à “fala dos oprimidos”.
46

É, pois, bastante razoável afirmar que as interações do Estado e as polícias não tenham

sido somente marcadas pela comunhão de propósitos ou por uma identificação natural

costurada sempre por cima. Até porque isto supõe uma visão homogênea e substantiva

tanto da arquitetura estatal quanto dos meios de força policiais. E, mais grave ainda, oferta

uma leitura empobrecedora do próprio universo da política. A idéia de que o Estado se

moveria como um bloco sólido, uno e coeso, ausente de interesses divergentes entre os

grupos e os órgãos que o compõem, e a pressuposição de que as suas políticas se fariam

cumprir de forma unilateral, isto é, sem negociações internas, sem barganhas e sem

mediações com o mundo externo, parecem não fazer muito sentido no mundo político do

nosso passado e muito menos nos dias de hoje.

O recente movimento de sindicalização dos profissionais de polícia, sobretudo nos

Estados Unidos e na Inglaterra, gerou um intenso debate sobre os “perigos do

sindicalismo policial”, e pôs em xeque as teorizações mais ingênuas sobre o

relacionamento Estado e Polícia (Cain, 1992:3-32). Os estudos dedicados às entidades

classistas policiais desmitificaram certos pontos de vista, reposicionando algumas

questões antes naturalizadas. O reconhecimento da existência de relações conflituosas e

de alianças tecidas entre as polícias e outros órgãos do governo, assim como os lobbies

políticos construídos por elas junto aos tomadores de decisão e a opinião pública,

forçaram uma abertura para novas indagações (ver Reiner, 1978). Os efeitos da

mobilização classista policial nas relações da polícia com os cidadãos; a construção de

uma agenda comum de reivindicações envolvendo policiais e outras categorias de

trabalhadores; a fragilidade dos mecanismos internos de controle sobre os meios de força

policiais e a sua capacidade de exercer pressão por mais recursos através da retórica

alarmista da “escalada do crime, da violência e da insegurança”, tornaram-se objetos de


47

preocupação política e acadêmica.27 Alguns estudos chegaram a levantar a hipótese de

que os policiais - normalmente classificados como “conservadores” - não estariam tão

distantes das demandas liberais democráticas que mobilizariam outras categorias

profissionais mais “progressistas”.

No Brasil, a mobilização trabalhista policial adquiriu tintas fortes e contornos marcantes

com a greve das polícias militares em junho de 1997.28 Como em uma espécie de efeito

dominó, a chamada “revolta das praças”, deflagrada em Minas Gerais, acabou se

espalhando por outros estados. Durante o período dos protestos, o país assistiu ao que

para muitos parecia um episódio inacreditável ou algo sem precedentes na história:

aqueles que representariam, na ponta, a autoridade do Estado, desafiavam o próprio

Estado. Os PMs das mais baixas patentes (soldados, cabos e sargentos) “promoveram a

desordem e a baderna” em vez de proverem a ordem; “quebraram a hierarquia e a

disciplina” - exatamente os princípios que justificariam a adoção do modelo policial

paramilitar; “desafiaram” o poder executivo representado pelo governador; tudo isso em

nome da reivindicação por melhores salários. 29 Os debates sobre o assunto nacional do

momento estavam recheados de exclamações que deixavam transparecer que alguma

27
Na gestão de Margareth Thatcher observou-se um expressivo aumento da ordem de 158% dos recursos
destinados às polícias sem que este esforço tivesse sido acompanhado da melhoria dos “índices de sucesso
polícial”. O descompasso entre os investimentos realizados e os benefícios produzidos, somado a outros
fatores, levaram o próprio partido conservador a rever as promessas de campanha calcadas no lema “law
and order”. As respostas às pressões policiais, por exemplo, vieram através de um conjunto de reformas
voltadas i) para o aperfeiçoamento dos expedientes internos e externos de controle do departamentos de
polícia e; ii) para a melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados. Esta nova política ficou
conhecida como “value of money”. Ver Morgan e Newburn (1997).
28

Nos anos anteriores, as Polícias Civis de alguns estados como Espírito Santo e Rio Grande do Sul
esboçaram uma paralisação dos seus serviços, promovendo protestos públicos e passeatas. Todavia, estas
manifestações não chegaram a produzir reações públicas de espanto e perplexidade como ocorreu no caso
da “greve das PMs”. Na época, alguns policiais militares comentaram, de forma jocosa, que “quando a
Polícia Civil faz greve, ninguém nota e ninguém sente falta”.
29

Na primeira semana de dezembro de 1998, os jornais noticiaram que os Policiais Militares do Espírito
Santo estavam “quartelados” em sinal de protesto contra o atraso de quatro meses de seus pagamentos.
48

coisa inusitada estava acontecendo: “os policiais apontaram suas armas contra o palácio

do governo!” obrigando o Exército a “proteger a sede do poder executivo em Minas”. No

dia 25 de junho de 1997, o Jornal do Brasil publica a seguinte manchete “Minas chama o

Exército contra a PM - Rebelião da polícia por salário maior transforma Belo Horizonte

em praça de guerra”.30 As opiniões mais exaltadas chegaram a classificar o episódio como

um grave “atentado à ordem constitucional” ou como “um espetáculo autoritário e

intransigente”. Nas conversas informais, muitos faziam apostas e “bolões” sobre quem

ganharia a batalha nas ruas (caso ela se concretizasse), as PMs “rebeladas” ou o Exército

“despreparado”?31

As questões trazidas a público com a greve das PMs, reproduziram, em larga

medida, o clássico paradoxo dos mecanismos de controle coletivo: “quem vigia e como

se vigiam os vigias?” O ponto central girava em torno dos riscos e dos danos que a

concessão do “direito à greve” aos policiais - prestadores de um serviço essencial - e a

sua “participação política” em termos de organização sindical, representavam para a

sustentação da governância democrática. 32 Para a discussão que, por ora, apresento cabe

30

O Editorial do Jornal do Brasil, intitulado “Confiança Quebrada”, publicado em 25/07/97, traz as seguintes
passagens: “A opinião pública nacional foi surpreendida, ontem, por mais um ato de insensatez
inadmissível. A Polícia Militar de Minas Gerais, tida como das mais ordeiras do país, tentou invadir o
Palácio da Liberdade, sede do Governo, em sua luta por melhores salários. Quando os agentes da lei, que
por definição constitucional devem ser agentes da ordem, deixam-se manipular politicamente a ponto de se
tornarem agentes da desordem, é sinal de que alguma coisa vai muito mal nos meandros da corporação. (...)
Uma corporação militar em que a hierarquia é quebrada por praças não oferece garantia de segurança à
sociedade. ”
31

Com a saída dos PMs das ruas, o agravamento da percepção coletiva e difusa de insegurança pôde ser
registrado pela longas coberturas televisivas. Em Recife, vimos as pessoas organizando-se em grupos de
amigos para retornarem às suas casas “em segurança” após o trabalho. Nos pontos de ônibus ou nos
deslocamentos pela cidade observou-se a conformação espontânea de grupos de vigilância ou de pequenas
milícias informais. Os saques e arrombamentos no comércio emprestavam um tom ainda mais dramático à
sensação coletiva de medo.
32
Ver Muniz e Proença Júnior (1997). Neste artigo procuramos identificar os problemas estruturais dos
arranjos atuais de segurança que teriam contribuído para o movimento grevista.
49

apenas ressaltar que a “revolta das praças” não constituiu um fato inédito na história de

nossas polícias. Esta não teria sido, portanto, a primeira vez que aqueles que deveriam

“controlar a população” ficariam “fora de controle”, ameaçando o Estado.

Thomas Holloway (1997) descreve um episódio muito interessante transcorrido durante

a crise institucional do Império que terminou com a dissolução da Guarda Real de Polícia

- a nossa primeira força policial ostensiva. A gota d’água para deflagrar o motim policial

de 14 de julho de 1831 teria sido a amotinagem do 26º Batalhão de Infantaria do Exército

regular, uma das unidades que deveria ser desativada em cumprimento ao decreto que

estabelecia a redução do tamanho do Exército:

“(...) enquanto os rebeldes do 26º Batalhão de Infantaria eram transportados em


navios para longe do Rio de Janeiro, o grosso das tropas da Guarda Real de Polícia
deixou seus quartéis, contrariando ordens expressas, e tomou de assalto as ruas da
cidade, saqueando lojas, atacando quem passava e, de acordo com alguns relatos,
matando diversas pessoas e em geral ‘espalhando pânico e terror’. Em seguida a essa
onda de violência, as unidades policiais marcharam para o Campo de Santana em
franca rebelião, acompanhadas por uma multidão crescente de civis, exigindo a volta
do 26º Batalhão e o fim dos castigos corporais para os militares. Na manhã seguinte,
o general José Joaquim de Lima e Silva, comandante militar da capital, ordenou às
unidades do Exército regular que entrassem em forma na praça da Constituição (hoje
praça Tiradentes), a apenas três quadras do Campo de Santana. Só que, em vez de
intimidar os soldados rebeldes da Guarda Real, boa parte das tropas do Exército
juntou-se aos colegas da polícia, em oposição ao governo. As unidades militares do
Rio em peso, inclusive sua força policial, engrossadas por civis que defendiam o
liberalismo radical e o nativismo anti-português, além de numerosos espectadores
simpatizantes, formaram uma multidão de cerca de 4 mil desafiantes das autoridades
constituídas”. (Holloway,1997:79)
50

Com a extinção da Guarda Real, 33 22 anos após sua criação, uma das medidas

emergenciais adotadas para conter os ânimos exaltados e prover policiamento à capital

foi a criação, a toque de caixa, de uma força-tarefa do Exército regular constituída por

“oficiais de confiança”. Esta força se tornou conhecida por todos, entre outros nomes,

como Voluntários da Pátria; e tudo indica que ela tenha exercido atribuições de

patrulhamento após a criação do Corpo de Guardas Municipais Permanentes (Holloway,

1997:80-81).

Pode-se dizer que, desde essa época, a lealdade e a confiança esperadas dos meios de

força - sobretudo os militares - se tornaram uma fonte de interrogações e de constante

preocupação para os que compunham o Estado e pretendiam se manter no poder. Aqueles

que dele faziam parte logo perceberam que as alianças com as polícias recém-criadas não

estavam naturalmente dadas. Restaurar e manter o controle sobre a capital significava

muito mais do que sufocar os agitadores republicanos, conter os capoeiras, disciplinar os

escravos de ganho e normatizar o comportamento público. Era preciso também controlar,

ou melhor, buscar manter as rédeas sobre os homens a quem o Estado tinha entregue

armas e mandato para agir em seu nome.

Creio que se pode dizer que o paradoxo inerente ao indispensável controle sobre os meios

de força policiais (“vigiar quem vigia”) foi traduzido, no nosso caso, em uma espécie de

suspeita estruturante. Um tipo de interação orientada por um certo nível de desconfiança

entre as autoridades constituídas e as polícias. Penso que data desta época a construção

do discurso de que “faltaria ordem e disciplina” à sociedade e aos próprios meios de força,

33
Os oficiais da Guarda Real de Polícia foram realocados nas unidades do Exército regular, e as praças
foram dispensadas, recebendo transporte gratuito para retornarem às suas províncias. (Holloway, 1997:81-
82).
51

ambos percebidos como suscetíveis à insubordinação e indiferentes às modernidades que

o Estado representava. Parecia ser indispensável ao poder do Estado suspeitar tanto da

população quanto das polícias que ela havia criado. A retórica conservadora de que seria

necessário disciplinar a vida social “(im)pondo ordem na casa”, ainda em moda nos dias

de hoje, pôs em evidência uma visão negativa dos conflitos e, por sua vez, uma leitura

tão-somente punitiva (repressiva) dos expedientes de controle.

Um aspecto importante, que ajuda a contextualizar esse posicionamento, é o fato de que

a criação das organizações policiais se deu concomitantemente ao processo de

institucionalização do próprio Estado brasileiro. 34 A ambicionada arquitetura estatal

moderna estava sendo inventada e a universalização da autoridade pública estava

também, na prática, sendo negociada e imposta. Este é um período marcado pela crise de

governabilidade provocada pela abdicação de Pedro I. Como bem colocou Holloway

(1997), o próprio Estado poderia ser descrito, nesta época, como um “grande balão de

ensaios” do qual faziam parte o esforço de estatização dos serviços de segurança e as

iniciativas voltadas para monopolizar o uso legal e legítimo da força. A configuração do

sistema policial na Corte teria sido, segundo o autor, conduzido na base das tentativas e

dos erros.35

34
No caso inglês, a polícia de Londres - paradigma das polícias ostensivas modernas - foi o último dos
blocos essenciais a ser colocado na estrutura do moderno governo executivo britânico. A conscrição militar;
a justiça, o sistema de coleta de impostos; o planejamento fiscal e econômico; os serviços sociais e
assistenciais e; um amplo conjunto de agências administrativas teriam antecedido a fundação da polícia por
várias gerações. (ver Bittner, 1990).
35
É importante notar que o nosso sistema policial antecedeu a adequação do sistema legal às demandas da
época. Tinha-se, de um lado, organizações policiais semiprofissionais instituídas, e de outro, a precariedade
do aparato jurídico-formal, ferramenta indispensável ao trabalho profissional e cotidiano de policiamento.
Tudo se passa como se nós tivéssemos invertido a ordem inglesa de fazer as coisas: primeiro criamos a
polícia e depois nos ocupamos de definir quando, como e onde ela deveria atuar. Roberto Kant de Lima
explora os efeitos perversos daí resultantes e seus impactos quando discute, na contemporaneidade
brasileira, os paradoxos da polícia e a perspectiva inquisitorial do sistema jurídico penal brasileiro. Ver
Lima (1995).
52

Não foram triviais os primeiros passos para o enraizamento da autoridade pública na vida

diária das pessoas. Esse empreendimento não poderia deixar de incluir também as elites.

Afinal, o uso exclusivo e privado da força consistia um forte obstáculo às pretensões do

governo executivo. O monopólio estatal do uso legítimo da força resultou, portanto, de

um trabalho de construção de alianças. O que de certa forma se refletiu nos primeiros

desenhos de polícia que procuraram traduzir uma possível conciliação entre o arranjos

privados de poder e o modelo universalizante do Estado. 36 Surgiram daí vários

expedientes policiais híbridos, produtos da combinação dos recursos do Estado e dos

agentes privados. A Guarda Municipal (rapidamente desativada) e a Guarda Nacional

constituem bons exemplos da composição do Estado com suas classes de sustentação e,

ao mesmo tempo, do fracasso das estruturas de vigilância financiadas somente por meios

particulares. 37

Se, hoje, após transcorridos quase 200 anos desde a criação das primeiras polícias no

Brasil, parte das críticas ao seu desempenho é creditada aos “conflitos de competência” e

à “falta de integração”, pode-se imaginar o que estes problemas significavam quando da

infância dessas organizações. Em verdade, os atritos relativos às atribuições e

responsabilidades de cada força expressavam, de um lado, o caráter incipiente da

autoridade pública e; de outro, a imprecisão das missões e o improviso das formas de

atuação das polícias. Os diversos meios de força se sobrepunham e se estranhavam no

36
Conforme adverte Holloway, “mais do que uma transição generalizada de mecanismos pessoais e
individualizados de controle para sistemas impessoais e padronizados, o que aconteceu no Brasil foi que as
duas hierarquias de poder - tradicional e privada, de um lado, e moderno e público, de outro, -
permaneceram complementares, fortalecendo-se mutuamente." Ver: Holloway (1997:116).
37
No Rio de Janeiro, a Guarda Nacional - uma resposta aos anseios das elites agrárias de respaldar o seu
poder local - amplia seu poder de polícia à medida em que se afasta da Corte, exercendo um papel mais
decisivo fora da capital. Ver Rodrigues et alli (s/d).
53

desempenho de suas atividades de rua. O Corpo de Permanentes, a Intendência, a Guarda

Nacional, o Exército regular38 etc., não se entendiam quanto ao exercício de suas tarefas,

competências e subordinações. É farta a documentação que exprime as queixas dos

responsáveis por estes órgãos reclamando da atuação, insolência e intromissão dos

demais. Nas ruas do Rio assistia-se não apenas aos conflitos entre a população e os meios

de força, mas também às confrontações entre estes últimos. 39 Os incidentes mais

rotineiros envolviam voz de prisão recíproca, xingamentos e outros insultos, mal-

entendidos sobre quem deveria bater continência e as conhecidas “carteiradas”. Em certa

medida, os policiais davam a sua parcela de contribuição para a produção da desordem.

Alguns relatos da época referem-se ao comportamento desmedido e presunçoso dos

agentes da lei (Holloway, 1997). Conclui-se que, no dia-a-dia, a autoridade do Estado era

questionada nas ruas pela população e pelos policiais no desempenho das atividades de

patrulhamento. Ao que parece o governo tinha boas razões para não confiar plenamente

em suas próprias ferramentas coercitivas. 40

A origem social das praças também teria contribuído para a emergência de um olhar

desconfiado e punitivo do Estado em relação às suas polícias. Os homens armados

encarregados de fazer valer a autoridade pública saíam daqueles segmentos populares

38
Além dos distúrbios civis e das atividades de controle de multidões, era comum solicitar o Exército para
efetuar prisões e prestar atividades de patrulhamento convencional.
39
Na maioria das vezes as dramáticas disputas só eram resolvidas com a intermediação do ministro da
Justiça que, na época, exercia uma autoridade direta sobre as polícias. Ver Holloway (1997)
40
Mesmo nos seus primórdios, os nossos meios de força policiais realizavam, na prática, outras coisas além
do previsto ou delimitado pelo Ministério da Justiça. As atividades de ordem pública - em boa parte dos
casos a sua imposição - ultrapassavam os mecanismos de controle até então imaginados. As demandas,
esculpidas nas contigências do trabalho de rua, nem sempre eram passíveis de antecipação pelo Estado e
pelas autoridades policiais . Assim, desde o início, parece ter sido difícil para as nossos policiais
"cumprirem as ordens determinadas". Isto fica não só evidente nos casos de abuso de autoridade, na
arbitrariedade e violência contra certos segmentos da população, mas nos conflitos institucionais entre o
Estado e as polícias, e entre estas últimas, no tocante à interpretação e ao cumprimento de suas atribuições
cotidianas.
54

percebidos como insurretos e indolentes. Os "pobres sem patrão", os ex-escravos, os

descendentes de escravos, os mestiços, os artesãos e os biscateiros engrossavam as fileiras

dos meios de força. E, como os capoeiras, os estrangeiros, os negros forros e os

portugueses de pouca posse, deveriam ser objetos de normatização. Já naquela época

responsabilizava-se a composição popular do efetivo pelos excessos cometidos e pela

indisciplina; e, por conta disso, discutia-se a necessidade premente de oferecer melhores

vencimentos às praças para poder garantir um melhor nível dos recrutas (Holloway,1997).

A terapia para conter a rebeldia, a falta de dedicação, as constantes deserções e o desleixo

das praças foi sempre a mesma - reforçar ainda mais os expedientes de disciplinarização

das tropas. São inúmeros os despachos, requerimentos e notificações que evidenciam a

necessidade cada vez maior de disciplinar os meios de força e de submetê-los a uma rígida

hierarquia, incluindo aí o próprio Exército (Idem). A saída vislumbrada por um Estado

receoso de sua autoridade e das suas ferramentas de controle era a crescente militarização

da força ostensiva. A profissionalização da polícia e a sua transformação em uma

burocracia eficaz passava pelo aprimoramento do modelo paramilitar já adotado desde a

criação da Guarda Real. A isto se somava a necessidade de afastar os agentes da lei do

universo de onde saíram e que deveriam passar a policiar. Mostrava-se pertinente aos

olhos das autoridades restringir as praças à sua vida na caserna. O argumento era claro: o

afastamento da convivência social reduziria as influências contestatórias e as

oportunidades de corrupção.41

41
O discurso da valorização da vida na caserna como um remédio eficaz contra a corrupção e a indisciplina
- elementos identificados como provenientes do excesso de liberdade presente no mundo civil - ainda hoje
faz eco em alguns setores da opinião pública e dentro das organizações policiais. Entretanto, nestas últimas
a sua utilidade tem sido sistematicamente questionada. Boa parte dos executivos de polícia tem advogado
uma perspectiva inversa - a da reaproximação da polícia com as suas comunidades, entendendo que o
“espírito de separação” seria, hoje, um forte obstáculo à modernização das polícias militares. Em suas
próprias palavras: “nosso grande fator de resistência interna é a cultura institucional que é apegada ao
militarismo”.
55

Caxias, subcomandante dos Voluntários da Pátria e reconhecido pela sua lealdade ao

governo, recebeu a difícil “missão” de militarizar o insubordinado Corpo de Guardas

Municipais Permanentes (a atual Polícia Militar), e de lhe conferir uma identidade e uma

“tradição”. Foi durante os sete anos de seu comando que a Polícia Militar do Rio começou

a sedimentar uma alma corporativa e que suas praças passaram a ter uma vida

intramuros.42 O espírito de separação e isolamento se fez acompanhar da mentalidade do

“nós contra eles” incutida na tropa em relação não apenas às agências rivais como a

Guarda Nacional, mas também em relação à sociedade (Holloway, 1997). O

reconhecimento do trabalho de Caxias junto à Polícia Militar veio quase ao final de sua

gestão. Em 1837, o ministro da Justiça, defendendo a utilidade da adoção do modelo

paramilitar para a polícia, profere o seguinte elogio: “[...] sendo a polícia uma das

primeiras colunas que sustentam a paz pública e a tranqüilidade dos povos, mal

conseguiriam o seu fim os corpos que delas se acham encarregados se a disciplina militar

lhe não der essa boa ordem, asseio e exatidão no serviço" (idem:147).

Não se pode deixar de comentar que as preocupações com a brutalidade policial ou com

o emprego da força em uma escala desproporcional à ameaça oferecida pelos

“desordeiros” fazia parte do conjunto de problemas cotidianos enfrentados pelos nossos

reformadores da polícia. O pano de fundo dessas preocupações era a inevitável

constatação de que o exercício do controle coletivo produzia uma situação paradoxal: os

agentes de controle dispunham de um razoável grau de liberdade discricionária no uso do

42
O tenente coronel do Exército Luiz Alves de Lima e Silva comandou a Polícia Militar de 1832 a 1839,
período que corresponde à institucionalização da força policial como uma organização militar em corpo e
espírito. Ver documentação relativa à evolução onomástica e a Galeria de Ex-Comandantes Gerais da
PMERJ. Arquivo Geral/ AjG; PMERJ, s/d.
56

recurso à autoridade e no emprego da força. 43 Contudo, a urgência parecia dirigida à

produção de elos de confiança e fidelidade com o poder executivo. Assim, em um

primeiro momento, a preocupação com o controle visava a atender, inicialmente, à

segurança do Estado. Tratava-se de resolver o dilema concreto de controlar aqueles que

representavam de forma direta e imediata a autoridade instituída. As atenções dessa

autoridade governamental temerosa voltaram-se menos para o que os homens armados

faziam em suas rondas contra as pessoas, e mais para o que esses agentes poderiam estar

fazendo contra o próprio Estado.44

A aposta na militarização da polícia buscava responder a uma dupla exigência

operacional: a polícia deveria policiar a sociedade e ser policiada pelo Estado com

eficácia. Como bem salientou Holloway, não se pode afirmar que a utilização do modelo

paramilitar seria apenas uma confirmação empírica da “propensão à estrutura e à

disciplina na cultura brasileira”, pois ele atendia a questões de natureza prática

relacionadas à organização, preparo e emprego do meio de força policial. Naquela época,

este era o modelo organizacional disponível para as forças policiais no ocidente (Bittner,

1975) e acreditava-se que ele seria capaz de responder às necessidades concretas da

43
Nota-se que desde essa época a tentativa de resposta à discricionariedade da ação de polícia tem sido
traduzida como um problema de disciplina e obediência, diagnóstico que certamente impediu uma saída
satisfatória para a questão. O incremento de expedientes de controle internos próprios do modelo militar
não possuem respostas definitivas para isso, persistindo o problema até hoje.
44

A dimensão operacional das atividades de polícia foi sendo desenhada no improviso deixando a impressão
de que as técnicas policiais estariam sendo construídas no curso das intervenções. Em verdade, as formas
de ação e os critérios que deveriam orientar a sua escolha consistiam em uma grande área cinzenta que
pouco distinguia os procedimentos corretos dos errados. Questões concretas do tipo “quem devo parar, por
que devo parar, como e quando devo deter, revistar ou interrogar” não teriam sido objeto de sistematização
e padronização. Certamente, essas limitações técnicas contribuíam para que o policial no cumprimento
zeloso do dever produzisse violência e brutalidade. Pode-se dizer que o exercício do emprego legal e
legítimo da força ficou restrito a observações genéricas que se reportavam apenas à necessidade de tratar a
todos com o devido respeito. Este parece ser um problema que persiste ainda em nosso presente. É voz
corrente entre os oficiais da PMERJ que a elaboração de expedientes, procedimentos e técnicas voltados
para o emprego profissional de força proporcional à ameaça oferecida ainda são génericos e insatisfatórios
para a realidade do trabalho de polícia. Ver Holloway (1997); Skolnick e Fyfe (1993); Kleinig (1996).
57

época: “(...) a desordem, rebeldia e indisciplina percebidas, bem como a falta de respeito

para com a autoridade por parte da população que ocupava as ruas e os lugares públicos

da cidade, faziam dessa força policial com características opostas a resposta mais

apropriada" (Holloway, 1997:147).

Todavia, a visão política da ordem pública que deveria ser produzida indicava que não

eram somente as praças da polícia militar que careciam de disciplina e boa conduta, mas

principalmente a população. O comedimento e obediência militares pareciam úteis a uma

sociedade percebida como desregrada e desordeira. 45 A maior parte das energias da

polícia era gasta na fiscalização da moralidade pública e, por sua vez, na imposição de

um comportamento tido como desejável para certas categorias de cidadãos, nos espaços

comuns. A capoeira, a violação do toque de recolher, a vadiagem, as aglomerações nos

botequins, a prostituição, a embriaguez, a mendicância, o carteado e as rodas de aposta

faziam parte do inventário de condutas interpretadas como inconvenientes, as quais os

meios de força policiais teriam que reprimir (Holloway, 1997). A aplicação deste

legalismo moral, que não está muito distante do que ainda se pode observar nos tempos

atuais, multiplicava a potencialidade criminosa e “indecente” da população, ao mesmo

tempo em que fazia aumentar o universo de risco e suspeição policial. No limite, todos

os indivíduos que circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro, excetuando as conhecidas e

honradas pessoas de bem, poderiam ser virtualmente enquadrados como elementos com

comportamento suspeito. Parece não ter sido uma atividade muito tranqüila vagar pelas

ruas do Rio de Janeiro na metade do século passado.

45
Neste período era corrente a idéia de que os jovens rebeldes e idolentes das camadas populares deveriam
servir na polícia ou no Exécito para se tornarem cidadãos responsáveis. É neste contexto que aparece a
expressão “sentar praça” até hoje presente em nossa linguagem. Ver Holloway (1997).
58

De fato, observou-se aqui uma leitura particular da concepção ibérica de ordem pública.

Na perspectiva ibérica, o Estado se atribui a responsabilidade de modernizar seu povo.

Prover ordem pública ou “policiar”, na tradição portuguesa, significava educar e construir

uma nação. Caberia ao governo executivo, portanto, a missão de conformar hábitos, de

induzir a população a uma certa visão de civilidade, ainda que a oferta desse horizonte

viesse a ser feita à custa da imposição e da arbitrariedade. Conforme revela Holloway

(1997), a Intendência de Polícia - que tal como a Guarda Real resultou de uma adaptação

do sistema policial português - foi implantada, em 1808, com amplas atribuições, muito

próximas daquelas conferidas aos alcaides e aos atuais prefeitos. Inúmeras eram as tarefas

do Intendente: cuidar dos equipamentos coletivos urbanos - como as fontes de água e a

iluminação pública; ajudar na realização de obras públicas; resgatar escravos em

quilombos; dar suporte às atividades de higiene e limpeza públicas; fiscalizar os eventos

sociais e festeiros; disciplinar jovens rebeldes, estabelecer toques de recolher; normatizar

o comportamento público etc.46

No nosso caso, a visão ibérica de ordem pública estaria a serviço de uma cultura política

orientada pela suspeita. Sua adaptação aos interesses do governo executivo significou

mais do que consolidar o monopólio estatal do uso da força. Implicou também na

pretensão de monopolizar a produção mesma da ordem pública; o que, forçosamente,

excluía as expectativas e visões de ordem tecidas pela sociedade. 47 A penetração contínua

46
O adendo da Constituição do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, relativo ao papel das Câmaras
Municipais reporta-se à amplitude das intituladas “Posturas Policiais”. Os diversos parágrafos do Artigo 66
discriminam o amplo espectro das referidas posturas. O parágrafo primeiro reporta-se aos seguintes
aspectos: “Alinhamento, limpeza, iluminação, e desempachamento de ruas, cais e praças, conservação e
reparos de muralhas feitas para a segurança dos edifícios e prisões públicas, calçadas, ponte, fontes,
aquedutos, chafarizes, poços, tanques e quaisquer outras construções em benefício comum dos habitantes,
ou para decoro e ornamento das povoações”.
47
Se na nossa origem buscava-se um monopólio interno da produção ordem em tudo análogo ao monopólio
da força pelo Estado, na prática, ao longo do tempo, as polícias passaram a conviver com uma variedade
de arranjos e instituições públicas e civis coprovedoras de ordem, tendendo a se tornar, no mundo
59

da presença da autoridade na vida diária, através das polícias, veio acompanhada da

proposição de uma ordem ilegítima, desprovida do assentimento da população.

Comportamentos, atitudes e posturas morais faziam parte do universo de controle do

Estado, cabendo a ele tutorar a vida em comum informando como agir e de que modo se

comportar. 48

Creio que a indistinção, ou melhor, a confusão entre o monopólio legal e legítimo do uso

da força pelo Estado e o monopólio da constituição da ordem social - em nada equivalente

à invenção de uma segurança “pública” - contribuiu para realçar ainda mais as

manifestações de repúdio e de revolta dos segmentos populares. Tudo isso foi, em boa

medida, expresso nos embates entre polícia e população, exaustivamente explorados

pelos historiadores. Se isto procede, parece-me razoável supor que as hostilidades entre

as polícias e as “fontes de resistência no Brasil” não se reportavam apenas à “imposição

de instituições burocráticas de controle aparentemente modernas a uma sociedade carente

de outros atributos fundamentais da modernidade” (Holloway, 1997:23). Diziam respeito,

sobretudo, à imposição de uma concepção de ordem emanada de cima e voltada para o

atendimento prioritário das demandas por segurança do próprio Estado.

O governo liberal-democrático inverte essa concepção e as suas prioridades. Neste outro

mundo político, não haveria lugar para uma visão suspeitosa por parte do Estado. Isto

democrático, uma instância articuladora e de salvaguarda do interesse público mais do que um agente
exclusivo e auto-suficiente.
48
Em uma concepção de ordem pública restritiva e imposta, as acusações de vadiagem, por exemplo,
convertiam-se em um recurso utilizado de forma recorrente pelas autoridades policiais quando precisavam
apresentar produção ou “mostrar serviço”. Diante da dificuldade de “formar a culpa” em atos criminosos
comuns, o enquadramento por vadiagem permitia tirar pessoas das ruas e “dar uma lição de moral”. Este
corretivo policial, corrente na vida do Império, se fez ainda presente até há bem pouco tempo. Não está
muito distante o período em que o cidadão desprovido da carteira de trabalho poderia ser acusado de
“vadiagem”, sendo “detido e conduzido à delegacia” pela autoridade policial.
60

porque os conflitos adquirem um acento positivo, podendo ser compreendidos como o

dispositivo para a sociabilidade política, ou melhor, podendo ser reconhecidos como a

precondição para o provimento de ordem pública. Produzir ordem pública, nestes termos,

é uma tarefa extensiva a todos os atores. O empreendimento seria, portanto, outro: o de

não reduzir os processos de produção social da ordem pública às ferramentas estatais de

controle, em particular às polícias.

É, por excelência, na vida democrática que se pode observar, por um lado, a sustentação

do monopólio da força pelo Estado e, por outro, a desmonopolização estatal do

provimento da ordem. De fato, este é um problema de todos. Não se trata aqui de um

recuo ou de um enfraquecimento do papel do poder executivo contemporâneo. Ao

contrário, trata-se de um realinhamento necessário em virtude da inevitável ampliação do

espectro da cidadania. Antes de ser uma realidade formal-legal, a ordem pública é algo

construído localmente. Ela é cotidiana e comunitária, sendo, portanto, o resultado de

distintas expectativas em constante negociação na realidade.

O chamamento de algumas questões relativas ao período de fundação da matriz de nosso

atual sistema policial teve o propósito de evidenciar que certos problemas colocados na

origem mesma das polícias ainda se fazem presentes como um desafio a ser enfrentado

nos tempos atuais. A visão militarizada das forças policiais ostensivas, por exemplo, ainda

exerce um fascínio sobre os executivos de segurança pública e no senso comum ilustrado,

sobretudo quando o tema a ser discutido é o “lado operacional da polícia” ou o necessário

“controle dos homens armados” que fiscalizam o cumprimento da lei no espaço urbano.

O argumento da sua tradição tem prevalecido nos debates, mesmo que não tenha sido

satisfatoriamente demonstrada, ao longo da história, a rentabilidade do modelo militar no


61

que concerne ao controle sobre o uso legal e legítimo da força e, principalmente, à

discricionariedade no mundo policial - justificativa para a sua adoção. A simples

proposição de que “tem sido assim em todos os lugares de que se tem notícia” ou de que

“não dispomos de um outro modelo para lidar com os meios de força policiais” tem

contribuído principalmente para o mascaramento de um problema mais essencial das

organizações policiais - o caráter indispensável da discricionariedade das ações cotidianas

e individualizadas de polícia e a problemática da baixa visibilidade dessas ações.

Em suma, os diversos ajustes por que passou o sistema policial brasileiro mantiveram

sobrevivências e resíduos de outrora: o recurso excessivo aos expedientes de disciplina

como uma resposta ao real poder discricionário; a idéia de que ofertar segurança pública

equivale a uma gloriosa caçada dos inimigos da “boa ordem e da paz pública”; a

identificação das questões de ordem pública com aquelas relativas à soberania do Estado;

as solicitações para que o Exército atue nos assuntos de ordem pública, foram marcantes

em nosso passado e ainda têm sido, curiosamente, uma realidade na vida democrática

brasileira.
62

3. Azulões ou verdes-olivas ? Um drama identitário

“O oficial de polícia precisa ter uma identidade própria. O nosso problema é que estamos em uma
encruzilhada entre coisa alguma e coisa nenhuma. Que tipo de profissional estamos formando com essa
vidinha de caserna? Isto nos serve? Nós precisamos formar um especialista em segurança pública”.
(Oficial com 25 anos de serviços prestados à PMERJ.)

“Nós vivemos uma crise de identidade. Nós, policiais, nos olhamos no espelho e não enxergamos a nossa
farda. Ainda vemos o fantasma verde-oliva ou o fantasma do bacharel em direito. Afinal, o que nós
queremos ser?”
(Oficial reformado com 35 anos de serviços prestados à PMERJ.)

“Na PM nada se cria, tudo se copia”.


(Máxima jocosa utilizada pelos policiais em diversas Polícias Militares)

Para os profissionais de pesquisa que estudam as organizações policiais no Brasil,

os últimos três anos foram intensos e, sobretudo, muito enriquecedores no que concerne

ao debate sobre o papel contemporâneo das polícias no provimento da ordem pública

democrática. A partir de dezembro de 1995, ocorreram diversos seminários acadêmicos

e institucionais em todo o país. Uma parte expressiva desses eventos foi organizada pelas

próprias Polícias Militares - em uma singular e inédita demonstração de disponibilidade

para a interlocução com os atores externos. Outras iniciativas desta natureza contaram

com a colaboração efetiva do Ministério da Justiça, da Secretaria Nacional de Direitos

Humanos, das Universidades e das ONGs locais. Estes fóruns apresentaram uma marca

distintiva em relação aos encontros científicos tradicionais. Neles, os policiais -

executivos de segurança pública - lotaram as plenárias, sentaram-se à mesa para discutir

com os estudiosos, as autoridades e os representantes das organizações civis a propagada


63

“crise da segurança pública” e os problemas enfrentados no cotidiano por suas

corporações.49

Posso dizer que o meu desejo de tentar cumprir essa agenda de conferências e de dar

minimamente conta das inúmeras oportunidades para a realização de atividades de

campo, surgidas durante os simpósios, traduziu-se em uma verdadeira e instigante

maratona. Nestes encontros conheci profissionais de polícia de quase todos os estados.

Alguns deles eu reencontrava nos eventos seguintes. Desses divertidos reencontros no

aeroporto, durante os vôos, no saguão do hotel ou nos grupos de discussão sempre surgia

um novo tema a ser debatido e, por conseguinte, uma nova proposta para uma próxima

palestra.50 A cortesia militar dos meus companheiros de seminário e o seu quase secreto

gosto pelo livre debate, em particular as “polêmicas criadas com a professora Jacqueline”,

renderam-me outras visitas às suas corporações. Creio que fomos, ao longo do tempo,

rompendo o mútuo estranhamento e nos transformando em “congressistas reincidentes”

- um apelido carinhoso que também passei a utilizar nos momentos de descontração. 51

49
No período de dezembro de 1995 a maio de 1997, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e o
Movimento Viva Rio organizaram - com o apoio de distintos órgãos federais, estaduais e civis - uma série
de conferências intituladas “Segurança, Justiça e Cidadania” em todas as regiões do Brasil. Seu propósito
era levantar o acervo de experiências desenvolvidas em cada estado, produzir um diagnóstico diversificado
dos problemas atinentes à segurança e à justiça e ofertar um amplo conjunto de propostas e sugestões. Esse
projeto culminou em uma grande plenária nacional que reuniu 155 participantes provenientes de todas as
unidades federativas. As recomendações e iniciativas saídas dos grupos de trabalhos foram reunidas em
uma publicação do Programa Nacional de Direitos Humanos.
50
Nos anos de 1997 e 1998, realizei palestras nos cursos de formação e nos eventos extra-curriculares das
Polícias Militares do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Rio Grande do Sul, do Paraná, de
Pernambuco e do Distrito Federal.
51
Nas minhas intermináveis conversas com os policiais, eu passava uma boa parte do tempo sendo também
entrevistada e tentando, na medida do possível, saciar toda a sua curiosidade acerca do meu interesse em
estudar a polícia e, mais que isso, da minha disposição em partilhar do seu convívio. Responder à pergunta
“O que levou uma moça como a senhora a se interessar pela polícia militar?” tornou-se uma rotina nas
minhas atividades de campo. Ao final desses colóquios os policiais, insatisfeitos com as minhas explicações
de cunho acadêmico, sempre indagavam sobre a existência de uma motivação de foro pessoal que
justificasse a minha “ausência de preconceito contra os PMs”. Especulações sobre a “existência de policiais
em minha família ou no meu círculo mais íntimo de amigos” lhes parecia, à primeira vista, uma resposta
mais satisfatória porque capaz de melhor contextualizar a “minha preocupação com a dura vida do policial”.
64

Mas, na agenda de questionamentos levantados pelos meus interlocutores - composta, é

bem verdade, por uma ampla lista de temas que incluía toda sorte de preocupações

profissionais como modalidades de patrulhamento, direitos humanos, armas urbanas,

perfil profissional, emprego de força, gestão de crise, poder de polícia, técnicas de

abordagem e ferramentas de controle - podia-se observar uma nota dissonante ao fundo

que entrecortava, de forma insistente, as longas considerações tecidas sobre a Polícia

Militar, sua tradição e o seus atuais desafios. Um tipo de incômodo recorrente que, quando

não era claramente explicitado, ainda assim se fazia ouvir através das reticências, de

silêncios inesperados ou por meio de manifestações de desconforto e constrangimento.

Refiro-me à eminência, nem sempre parda, do Exército nos assuntos de polícia, isto é, ao

legado pernicioso deixado pela Doutrina de Segurança Nacional 52 que, segundo os

próprios policiais, teria contribuído, de forma decisiva, para “um período de

desvirtuamento” das instituições policiais militares. O direcionamento e a mobilização

dessas agências para as atividades de segurança interna, isto é, para o combate aos virtuais

“inimigos do regime militar” - intervenções, é importante enfatizar, estranhas e contrárias

às missões propriamente de polícia ostensiva - comprometeram sensivelmente a

necessária profissionalização das tarefas de policiamento estrito senso, atrasando, em

décadas, o processo de adequação dos serviços policiais aos imperativos da complexa

demanda contemporânea por ordem pública. Somou-se a isso a conseqüente fragilização

da auto-imagem da corporação policial que foi, em boa medida, contaminada pela

memória ainda viva dos duros anos de repressão política.

52
Ver Manual Básico da Escola Superior de Guerra (1988). Para uma apreciação das limitações e paradoxos
da Doutrina da Segurança Nacional confira Proença Junior e Diniz (1998:37-54).
65

Em qualquer espaço formal de debate e até nos momentos de maior informalidade, os

oficiais de polícia se vêem compelidos a demarcar com veemência as diferenças entre

eles e o pessoal do Exército. Em muitas situações, chegam mesmo a se antecipar ao

desavisado interlocutor, desfiando um rosário de justificativas e explicações - todas elas,

em algum grau, sentidas como custosas e indigestas para a corporação policial militar.

Esse esforço de singularização, ou melhor, esse empenho em buscar apresentar uma

imagem autêntica e desvinculada, tão-somente compromissada com os princípios

democráticos, tem-se traduzido em um tardio e, por isso mesmo, exaustivo dever de casa.

Tem-se convertido, portanto, em uma espécie de pedágio obrigatório para a própria

possibilidade de se construir um diálogo aberto e responsável com os atores externos. Isto

ocorre principalmente quando nossos PMs posicionam-se diante das cobranças da

sociedade civil organizada. Tudo se passa como se houvesse um acerto histórico de contas

pendentes e subliminares carregando a atmosfera das interações com o mundo civil.

Talvez resulte daí o receio inicial, e até um certo acuamento, experimentados pelos

oficiais de polícia quando são chamados a permanecer frente a frente com os seus mais

ferrenhos críticos e, sobretudo, com os profissionais da mídia. 53

De certo modo, a dinâmica de reaproximação dos policiais militares com os

representantes civis tem sido ainda pontuada por uma estratégica cautela e pela

necessidade exegética de passar a limpo as suas diferenças, “encerrando (se possível para

os PMs) este capítulo, de uma vez por todas”. Em verdade, os momentos inaugurais das

reuniões entre os policiais das mais altas patentes e os cidadãos interessados nas questões

53
Por razões distintas, os administradores de outras polícias - em particular, as polícias inglesas e
americanas - também apresentariam um razoável grau de retraimento e resistência no que concerne à tarefa
de prestar contas de suas atividades através da mídia ou dos foruns públicos de discussão. Alguns autores
chegam mesmo a mencionar um certo “medo policial do mundo civil”. Para uma discussão sobre os
mecanismos de prestação de contas ver: McCormick e Visano (1992); Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997); Reiner (1992); Skolnick e Fyfe (1993); Bittner (1990).
66

de segurança pública costumam, via de regra, adquirir um formato próximo ao de uma

catarse coletiva.54 Inúmeros têm sido os eventos institucionais que começam com uma

encenação dramática das mútuas lamentações. Ambos os lados apontam as mazelas do

outro, contam seus mortos e feridos, informam suas demandas e seus pontos de vista e,

ao afinal, procuram mostrar-se - mesmo que de forma amistosa - dispostos à realização

de um trabalho cooperativo. Trata-se, pois, de um ritual de passagem voltado para a

purgação de uma herança enunciada como “maldita” por uma parte expressiva do

oficialato da PMERJ - segmento que insiste em ser reconhecido como um grupo de

“servidores públicos que prestam um serviço civil (e não “militar”) indispensável à

população”.55

A sobrevivência, e mesmo o acionamento de uma estética do ressentimento alimentada

pelo famoso “caldo de cultura autoritária”, têm incomodado especialmente a nova

geração de oficiais e praças que, em sua maioria, é composta de profissionais que

possuem menos de vinte anos de polícia. O episódio que se segue retrata de forma

ilustrativa e resumida esse tipo de incômodo.

Um oficial superior, integrante da nova geração, contou-me que em um episódio recente,

quando estabelecia contatos com profissionais do meio intelectual, sentiu-se “indignado”

com a forma pela qual teria sido por eles “tratado e enquadrado”. Disse-me que fora

54
Durante o ano de 1995, os pesquisadores do ISER encontravam-se realizando o trabalho de
monitoramento qualitativo e quantitativo da experiência de policiamento comunitário de Copacabana, no
Rio de Janeiro. Além das atividades de ronda com os “PMs comunitários”, nossa equipe acompanhava as
atividades dos Conselhos Comunitários de Área (CCA) através das suas reuniões. Para uma apreciação
detalhada da experiência e das demandas saídas das comunidades ver Musumeci (1996).
55
Ainda que pareça óbvio, não é trivial o reconhecimento do profissional de polícia como um servidor
público que realiza uma atividade essencial para a vida democrática. A imagem da polícia como um
aparelho repressivo a serviço do poder ainda está viva em nosso imaginário político. Para uma crítica desta
perspectiva ver: Muniz e Proença Junior (1997); Bretas (1997); Balestreri (1998).
67

“injustamente acusado de colaborar com a ditadura” pelo simples fato de “ter escolhido

ser policial e militar”. Face ao que considerou uma “provocação desnecessária”, meu

confidente, visivelmente chateado, teria respondido à interpelação afirmando que “não

tinha motivos para não se orgulhar de sua farda” e que durante o regime militar ele, como

os referidos intelectuais, se encontrava nos bancos da universidade. Encerrando sua

narrativa, o oficial PM apresentou uma resignada e preocupante consideração: “eles [o

Exército] fizeram o serviço sujo e ficaram bem com a população. Quem se desgastou com

o povo foi a Polícia Militar. O Exército sempre soube fazer a sua propaganda”.

Do que foi exposto, pode-se observar que toda a energia consumida na tentativa de fazer

aparecer a especificidade da organização policial militar, em contraste com o Exército,

anuncia um drama identitário real. O empenho pertinaz - quase obsessão - de afastar o

fantasma verde-oliva pela sobre-ênfase discursiva na natureza propriamente “policial” de

uma Polícia ostensiva cujo sobrenome é Militar, evidencia um tipo de perseguição

incessante à sua própria singularidade. Creio poder dizer que isto revela uma vontade

mesma de identidade que, como será apresentado um pouco mais adiante, teria sido, em

boa medida, sufocada ou esquecida.

Ainda que, à primeira vista, esta caçada a um outro de si mesmo possa ser percebida como

um truísmo - já que parece evidente que “uma polícia é uma polícia” - considero que se

trata, antes, de um profundo processo de releitura interna da cultura institucional da PM

nem sempre visível aos olhos externos. Ela acena para uma tentativa de transformação

dos marcos estruturais que, durante um bom tempo, emprestaram um Norte à organização

policial. A valorização e a visibilidade emprestadas pela corporação à definição Polícia -

e de tudo que esta conceituação traz em termos de doutrina, missão, mandato, saberes,
68

técnicas e procedimentos - põem em tela um movimento de resgate de uma tradição que

está sendo revisitada e, conseqüentemente, reinscrita pelos seus atores. Penso que o que

está em jogo no ambiente institucional da PMERJ é, fazendo uso de uma metáfora

durkheimiana, um tipo de efervescência valorativa. Como alguns profissionais de polícia

preferem dizer “um choque de mentalidades” ou “uma quebra de paradigma” que

ambiciona passar em revista os seus próprios mitos, os seus próprios altares de adoração.56

Não se pode esquecer que, do ponto de vista antropológico, o percurso de convencimento

externo de uma diferença que se quer explicitar consiste em um ardiloso caminho de mão

dupla, implicando, por sua vez, a conquista dessa mesma alteridade para dentro. A

gramática das imprecisões e das ambigüidades, e até a aparente contigüidade entre os

meios de força policial e da defesa nacional, são percebidas e experimentadas tanto pelos

profissionais de polícia quanto pelos cidadãos, ainda que em temporalidades, contextos e

recortes distintos. A questão aqui seria a da transversalidade dessas apreensões, isto é, do

modo pelo qual estas percepções são vividas e enunciadas. Em outras palavras, o drama

identitário da PM é, de alguma forma, sentido e objetivado por todos os atores, ora através

dos conflitos intra-corporativos, ora através das cobranças e das insatisfações saídas do

mundo civil.

Existem boas razões históricas para a cristalização das ambigüidades entre a PM

e o Exército e, por conseguinte, para a exacerbação de uma “crise de identidade das

polícias militares e dos policiais militares” nos dias de hoje (Silva, 1990:179-191). Uma

56
Alguns oficiais de várias PMs, munidos de uma “visão crítica” de sua própria história, discutem não
apenas a utilidade de certos ritos do mundo da caserna, mas também se os patronos, os hinos e demais
símbolos de suas unidades operacionais expressariam, de fato, a autenticidade histórica da corporação, ou
melhor, representariam de forma adequada a sua missão policial de “ proteger e servir”.
69

breve visita às Constituições brasileiras pós-república, parece-me suficiente para elucidar

alguns elementos que concorreram para a conformação deste cenário, em particular a

forma de emprego das forças policiais militares no Brasil.

O primeiro ponto a ser considerado é que desde a Carta Constitucional de 1934 compete

à União legislar sobre as “normas gerais de organização, efetivos, material bélico,

garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros

militares” (Constituição Federal, § XXI, art. 22, 1988). Se a competência da União para

interferir nas questões estruturais relacionadas às PMs permaneceu até hoje basicamente

inalterada, a sua tradução em termos de subordinação, missões atribuídas e alocação dos

seus meios humanos e materiais sofreu significativas redefinições.

Note-se que a indistinção entre o provimento local de ordem pública e as atividades de

segurança interna foi inicialmente consumada no artigo 167 da Constituição de 1934, no

capítulo dedicado às questões “Da Segurança Nacional”. Neste artigo é definido o papel

das PMs que, como “reservas do Exército”, passam a gozar “das mesmas vantagens a este

atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da união”. Também data da década de 30, a

legislação especial que determinou que as polícias militares - polícias urbanas - deveriam

ser estruturadas à imagem e semelhança das unidades de infantaria e cavalaria do Exército

regular ( Lei n.º 192, 17/01/1936).

A subordinação das PMs à força combatente é reforçada com a Carta de 1946. No referido

texto constitucional a missão das PMs e o seu emprego são estabelecidos na seção voltada

para os assuntos “Das Forças Armadas ”. A contigüidade estabelecida entre ordem

pública, segurança pública, segurança interna e defesa nacional está anunciada não apenas
70

pelo lugar no qual esta relação é definida, mas principalmente pelo conteúdo do Artigo

183 que prioriza explicitamente o emprego das PMs na segurança interna:

“As polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem


nos estados, territórios e no distrito federal, e os corpos de bombeiros militares são
considerados forças auxiliares, reserva do Exército”.

Cabem aqui alguns rápidos comentários. Observe-se que não aparece um qualificativo

para a “ordem” que deve ser “mantida” pelas PMs. Tudo parece indicar que não se tratava

evidentemente de uma “ordem pública” ou de uma “ordem social” constituídas com ou

pela sociedade. Mas, inversamente, de uma ordem proveniente do Estado. Outra novidade

trazida com o artigo 183, é a definição das PMs como “forças auxiliares” além da

permanência do papel de “reservas” do Exército. 57 Este acréscimo às atribuições das

polícias militares deixa entrever que todos os seus recursos deveriam atender, a um só

tempo, a duas lógicas radicalmente distintas de engajamento da força: a prontidão para

o combate “em tempo de guerra externa e civil” e o pronto-emprego nas atividades


58
rotineiras de manutenção da ordem estatal. A possibilidade de responder,

57
No final de 1998 realizei uma visita técnica de uma semana à Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Meu
propósito era, por solicitação da Fundação Ford, conhecer de perto as inovações organizacionais realizadas
por essa corporação nos últimos três anos. Em vários momentos de minhas conversas pude detectar o
questionamento de distintos oficiais sobre o sentido e a extensão do qualificativo “força auxiliar” mantida
pela atual constituição. De forma crítica, indagavam: “Nós temos que prestar auxílio em quais atividades?
Não está claro em quais missões e tarefas do Exército caberia à Polícia Militar auxiliar. O que estamos
fazendo no dia-a-dia que atende a essa exigência constitucional?”
58
A idéia de prontidão militar só faz sentido quando a destinação do meio de força é o combate. Ela se
aplica, portanto, às Forças Armadas que poderiam ser definidas como armas combinadas para abalar a
coesão do inimigo e destruir idealmente a sua vontade de lutar, sempre através do máximo emprego de
violência. Pode-se identificar quatro níveis de prontidão distintos da realidade do combate:
 Prontidão estrutural - Corresponde à existência das estruturas humana e material - tipicamente
identificadas com a presença de oficiais e de uma percentagem de pessoal e equipamentos de linha - que,
pela simples adição de tropa e equipamento, permite iniciar o ciclo de preparo de prontidão operacional. A
prontidão estrutural pode ser compreendida como uma forma de economia em tempos de paz, uma vez que
permite manter o pessoal qualificado - recurso mais difícil de se obter.
 Prontidão mobilizacional - Corresponde à existência de estruturas e planejamentos capazes de
orientar o correto dimensionamento e provisionamento de pessoas e coisas de tal forma a compor unidades
operacionalmente prontas. A prontidão mobilizacional seria mais um esforço de planejamento e
autoconhecimento do que, necessariamente, um plano específico.
71

simultaneamente, às exigências da prontidão militar - que se traduz em uma forma de

espera - e às necessidades contingentes do pronto-emprego policial - que consiste em uma

forma de ação -, resultava da contigüidade estabelecida entre a “segurança interna”

(prioridade 1) e a “manutenção da ordem” (prioridade 2).

Segundo Jorge da Silva, as categorias “segurança interna” e “manutenção da ordem”

tendiam a ser interpretadas segundo uma relação de intensidade do emprego da força.

Primeiramente, seriam utilizadas as polícias militares na sustentação da segurança e

ordem internas. Caso as PMs se mostrassem incapazes ou insuficientes frente à ameaça

percebida, seriam empregadas as forças da defesa para reforçá-las ou mesmo substituí-

las (Silva, 1990). Relata ainda o autor, que a missão de “manter a ordem” estava tão-

somente referida às ações de controle nas manifestações públicas e atividades de choque,

nos casos mais extremados de distúrbios civis (Idem). Pode-se dizer que até o final de

1969, as polícias militares consistiam em forças-tarefas aquarteladas - um híbrido

particular do que hoje são o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e o Batalhão de

Choque (BPMchoque). Em verdade, elas não realizavam as atividades típicas e usuais de

policiamento que haviam justificado a sua origem no Decreto de D. João VI em 1809. 59

 Prontidão operacional - Corresponde à iminência do engajamento, significando um regime de


completamento de efetivo, equipamento e suprimentos, assim como o correto funcionamento de sistemas
de apoio. Trata-se de um ponto na curva do tempo, ou melhor, um ponto no ciclo de preparação, sustentação
e desativação dos meios e recursos. Cabe ainda salientar que a prontidão operacional não pode ser
sustentada indefinidamente, podendo ser apenas mantida por poucas horas.
 Prontidão tática - Corresponde à iminência do combate, significando, entre outras coisas, a
disposição para a luta e o aprestamento final das armas (geometria em relação ao eixo de ameaça,
destravamento da segurança dos armamentos, avisos e alertas para sistemas e armamentos de apoio).
Agradeço ao Professor Domício Proença Jr e demais integrantes do Grupo de Estudos Estratégicos -
Coppe/UFRJ, pela suas contribuições na conceitualização dos níveis acima apresentados. Para uma
discussão mais aprofundada das questões relativas ao emprego das forças combatentes ver Clausewitz
(1996).
59
Segue a reprodução do Decreto do Príncipe Regente que deu origem à Polícia Militar do Rio de Janeiro:
“Sendo de absoluta necessidade prover à segurança, e tranquilidade Pública desta Cidade cuja população,
e trafico tem crescido consideravelmente, e se augmentará todos os dias pela affluencia de Negocios
inseparavel das grandes Capitaes; e havendo mostrado a experiência, que o Estabelecimento de huma
Guarda Militar de Policia he o mais proprio não só para aquelle desejado fim da boa ordem, e socego
72

As missões de polícia propriamente ostensiva ficavam a cargo de outras agências, tais

como as polícias civis, as guardas de vigilância, as guardas civis etc. (Idem). Conforme

Silva descreve em seu livro:

“[...] cumprindo a sua missão constitucional, as polícias militares empenhavam-se


na guarda de pontos sensíveis, tais como: estações e torres de transmissão de energia
elétrica, legações estrangeiras, instalações industriais essenciais, instalações
telegráficas e postais, instalações de tratamento d’água, adutoras, e no controle de
distúrbios. Raras eram as missões de policiamento ostensivo, e ainda assim por
solicitação da autoridade judiciária ou de outras autoridades, e para o emprego em
grandes eventos”. (idem:184)

De certa maneira, a Constituição de 24 de janeiro de 1967 reproduz o que já havia sido

anteriormente definido como missão constitucional das PMs, invertendo curiosamente as

prioridades de suas atribuições. Segundo o artigo 13, inciso 4, as polícias militares

passariam a ser “instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna”. É possível

que esta inversão estivesse sinalizando uma recondução gradativa das PMs às suas

atividades parciais de polícia já que elas receberam, através de um decreto-lei, a

autorização para também exercer o policiamento ostensivo fardado. Contudo, neste

mesmo decreto, o governo militar cria a Inspetoria Geral das Polícias Militares - IGPM,

um órgão fiscalizador pertencente ao Exército e que se encontra, até hoje, em pleno

funcionamento (Decreto-Lei n.º 317, 13/03/1967).

Público, mais ainda para obstar às damnosas especulações do Contrabando, que nenhuma outra
Providência, nem as mais rigorosas Leis prohibitivas tem podido cohibir: Sou Servido Crear huma Divisão
Militar da Guarda Real da Policia desta Corte, com a possivel semelhança daquella, que com tão
reconhecidas vantagens Estabeleci em Lisboa, a qual se organizará na conformidade do Plano, que com
este baixa, assignado pelo Conde de Linhares, do Meu Conselho de Estado, Ministro, e Secretario de Estado
dos Negocios Estrangeiros, e da Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido, e o faça
executar na parte, que lhe toca. Palacio do Rio de Janeiro em treze de Maio de mil oitocentos e nove.”
(Arquivo Geral - AjG/PMERJ).
73

O reforço da subordinação das polícias militares ao Exército, além de criar uma agência

de controle direto das suas atividades enquanto uma força paramilitar, incluía ainda a

seguinte proibição: o Ato Complementar n.º 40, de 30 de dezembro de 1968, determinava

que os integrantes das PMs não poderiam, em nenhuma hipótese, receber vencimentos

superiores aos dos militares regulares ocupantes de postos e graduações

correspondentes.60

Mas a ingerência da força armada não teria se restringido às proposições legais. A

intervenção na gestão mesma da PMERJ, em particular, foi um fato histórico constante e

perturbador. Note-se que em 190 anos de existência, a atual Polícia Militar do Estado do

Rio de Janeiro foi durante quase 160 anos comandada por um oficial de alta patente do

Exército regular. 61 O quadro abaixo é bastante elucidativo dos longos períodos em que

generais, coronéis e outros oficiais superiores do Exército ocuparam o comando da

organização policial militar:

Histórico dos Comandos das Polícias Militares do Estado do Rio de Janeiro


Polícia Militar da Corte, do Distrito Federal e da Guanabara
Período Origem dos Ex-Comandantes Tempo total de comando
1809 – 1870 Exército 61 anos
1870 – 1878 Polícia Militar 8 anos
1878 – 1961 Exército 83 anos
1961 – 1965 Polícia Militar 4 anos
1965 – 1975 Exército 10 anos
Em 166 anos de existência, a antiga Polícia Militar da Guanabara foi comandada por um policial de carreira somente
por 12 anos.
Polícia Militar do Antigo Estado do Rio de Janeiro
Período Origem dos Ex-Comandantes Tempo total de comando
1835 – 1892 Exército 57 anos
1892 – 1893 Polícia Militar 1 ano
1893 - 1919 Exército 26 anos
1919 – 1922 Polícia Militar 3 anos
1922 - 1975 Exército 53 anos

60
Esta proibição é mantida pela carta constitucional de 17 de outubro de 1969.
61
Para uma crítica da identificação dos problemas de ordem pública com os assuntos de segurança interna,
e do processo de “remilitarização da segurança pública” na era democrática ver Cerqueira (1996); Silva
(1996).
74

Em 1910, o comando foi exercido por 8 meses por um Oficial da PM.


Em 1937, o Comando foi exercido por 6 meses por um Oficial da PM.
Em 1959, o Comando foi exercido por 8 meses por um Oficial da PM.
Entre 1960 e 1974, os 8 comandos provisórios exercidos por oficiais da PM não ultrapassaram a um total de 4 meses.
Observe que em 140 anos de existência, a antiga Polícia Militar Fluminense foi comandada por um policial de carreira
somente por 6 anos e 4 meses.
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ
Período Origem dos Ex-Comandantes Tempo total de comando
1975 – 1982 Exército 7 anos
1983 – 1999 Polícia Militar 16 anos
A partir do retorno às eleições diretas para o governo do Estado em 1982, o Comando da Atual PMERJ passou a ser
exercido por um policial de mais alta patente (coronel).
Fonte: Evolução Onomástica e Galeria dos Ex- Comandantes Gerais, Arquivo Geral-AjG/PMERJ.

É interessante também observar que, somente após 23 anos, com a carta constitucional

de 17 de outubro de 1969, o termo “segurança interna” é retirado do texto que definia a

missão das polícias militares. Ainda instituídas para a “manutenção” de uma ordem agora

definida como “pública”, as PMs receberiam, através de decretos-lei do mesmo ano, a

exclusividade do policiamento ostensivo (ver Decretos-lei nos 667, de 02/07/1969 e 1072,

de 30/12/1969). Mas a execução das atividades ostensivas não significou um retorno

definitivo às tarefas propriamente civis de polícia e o conseqüente abandono das antigas

ações paramilitares. Conforme evidencia o artigo 25, do Decreto no. 66.862, de 8 de julho

de 1970, as polícias militares deveriam integrar “o serviço de informações e contra-

informações do Exército, conforme dispuserem os Comandantes de Exército ou

Comandos Militares de Áreas, nas respectivas áreas de jurisdição”. Se, por um lado, as

PMs deixaram de ser, a partir de 1969, a primeira linha de frente no combate aos

“inimigos internos”, por outro, elas deveriam fazer o trabalho publicamente invisível de

contribuir para a chamada “caça às bruxas”. 62 Em outras palavras, suas atividades de

segurança interna ainda se fariam sentir por mais algum tempo, evidenciando uma certa

esquizofrenia no exercício de suas atribuições: simultaneamente uma polícia ostensiva da

62
O ingresso das PMs nos sistema de informações e contra-informações do Exército motivou o inchaço do
seu “serviço reservado” - a PM/2, que passou a se ocupar menos com as tarefas internas de sindicância e
de investigação criminal e mais com a produção de informações voltadas para a segurança interna. Confira
Silva (1990:179-191).
75

ordem pública e um órgão integrante da chamada “Comunidade de Informações”

comandada pelo Exército.

Pode-se dizer que resulta deste período o atual desenho do sistema policial brasileiro, com

duas agências policiais estaduais realizando um ciclo incompleto de polícia: a Polícia

Civil, apenas com atribuições judiciárias e investigativas, e a Polícia Militar, somente

com funções de polícia fardada e ostensiva. A atual Constituição democrática manteve

esta estrutura, procurando conformar as organizações policiais às atribuições

propriamente civis de polícia. Pela primeira vez, as questões policiais são tratadas, no

texto constitucional, em um capítulo específico intitulado “Da Segurança Pública”. O

artigo 144 define o que deve ser entendido por “segurança pública”, circunscrevendo as

missões das polícias brasileiras:

“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é


exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio.”

Traçando um plano comparativo com um certo continuísmo das constituições anteriores,

observam-se mudanças importantes de enquadramento. Se as polícias militares

permaneceram, desde 1934, como “forças auxiliares e reservas do Exército”, elas também

passaram a estar explicitamente subordinadas “aos Governadores dos Estados, do Distrito

Federal e dos Territórios”. Ainda que somente referidas ao Poder Executivo, 63 constata-

se um avanço no que concerne à autonomia das unidades federativas na elaboração de

63
Em outros países, por exemplo os EUA, as diversas polícias estão subordinadas ao poder executivo (local,
estadual ou federal), mas sob estrito controle da justiça. Ver Bittner (1990); Walker (1993); Ohlin e
Remington (1993).
76

suas políticas de segurança, incluindo aí a liberdade da governância estadual na definição

de um projeto salarial próprio para a PM, desvinculado das Forças Armadas .

Outro ponto relevante é o deslocamento da obrigação de cumprir uma ordem estabelecida

de cima para a idéia da segurança pública como um “direito” e uma “responsabilidade”

do cidadão, agora entendido como co-produtor da ordem pública que o circunscreve.

Nesta nova concepção, a ordem pública deixa de ser “mantida” para ser “preservada” por

todos, com a ação executiva e continuada das PMs ou “polícias ostensivas”. Fica evidente

a pretensão desta proposta constitucional: reparar os equívocos históricos que, de forma

redundante, promoveram a descaracterização legal e política das ferramentas policiais por

mais de meio século.

Mas, as transformações no mundo das leis não se traduzem automaticamente em

mudanças nas realidades do mundo. A polícia militar foi devolvida, somente nos últimos

trinta anos, à sua condição de polícia propriamente dita, com plenas tarefas ostensivas,

passando a experimentar um cenário urbano radicalmente distinto e infinitamente mais

complexo que a realidade mapeada no início do século. Era preciso, portanto, aprender

de novo a “fazer polícia”; era inadiável “voltar a ser Polícia de verdade”. A retomada de

sua identidade policial, isto é, a reconstrução do seu lugar e de sua forma de estar no

mundo se deram em um outro ambiente socioeconômico, em um outro cenário político.

As questões e os desafios da ordem urbana social eram outras;64 também eram outros os

atores, assim como os saberes e a realidade das técnicas policiais.

64
Para uma discussão sobre a problemática da criminalidade e da violência contemporânea ver Soares et
alli (1996); Garotinho, Soares et alli (1998); Rico e Salas (1992); Pinheiro (1997); Caldeira (1997); Paixão
e Beato (1997).
77

A partir da década de 60 o Ocidente assistiu a uma verdadeira revolução em termos de

conhecimento e tecnologias de polícia: de um lado, foi consolidado um volumoso acervo

científico; de outro, alteraram-se o ensino e a instrução, os meios de comunicação

adotados, os tipos de veículos, os armamentos, as estruturas organizacionais, as técnicas

de emprego de força, os expedientes estratégicos e táticos etc. (Bittner, 1990; Skolnick e

Bayley,1986; Bayley, 1998; Punch,1983). Mas as modernidades dos assuntos de polícia

não foram imediatamente transpostas para a realidade da PMERJ. A transição para a

consolidação da vida democrática também se fez sentir na PM, que até os dias de hoje

experimenta o descompasso entre as missões contemporâneas a ela atribuídas e a

disponibilidade dos meios humanos e materiais para cumpri-las. 65

Silva (1990) chama atenção para o fato de que a Doutrina da Segurança Nacional - morta

pela pena da lei - teria deixado, no presente, as suas marcas no que concerne à instrução

e ensino das polícias militares. “Na Escola Superior de Polícia Militar (ESPM) do Rio de

Janeiro, por exemplo, até o ano de 1984, os assuntos policiais comuns eram tratados na

disciplina Segurança Interna II, sendo a cadeira Segurança Interna I destinada à segurança

interna propriamente dita" (idem:182). De fato, o problema da formação e do preparo dos

quadros policiais militares tem consistido em uma variável importante, não apenas para

a afirmação corporativa de uma “identidade policial”, mas também para a prestação eficaz

dos serviços ostensivos civis de polícia. Se o tradicional modelo pedagógico prioriza o

adestramento e o condicionamento militares voltados para a ação padronizada como

“tropa”- expedientes considerados necessários às intervenções ao estilo de uma força-

65
Por exemplo, os sistema de telecomunicações voltado para o controle e despacho de viaturas - o GPS,
uma ferramenta trivial de polícia ostensiva - foi implantado recentemente e ainda necessita, segundo os
oficiais e técnicos responsáveis, ser aperfeiçoado e expandido para toda a região metropolitana do Rio de
Janeiro.
78

tarefa -, o atual horizonte de polícia requer uma ênfase dirigida para o desenvolvimento

da capacidade individual de ter iniciativa, criatividade e discernimento para lidar com a

variabilidade das circunstâncias contingentes, dos imponderáveis e, sobretudo, das

emergências que compõem a realidade do trabalho de polícia. 66 Em verdade, essa ênfase

nas habilidades do police officer já havia sido anunciada por Sir Robert Peel. Não se pode

esquecer que a individualização das decisões e ações policiais fazia parte da matriz

londrina de polícia.

Este não é um desafio trivial. As discussões acerca da reformulação dos currículos, dos

conteúdos disciplinares e da própria metodologia de ensino para todos os níveis de

formação policial, ocupa uma parte expressiva da atenção dos reformadores de polícia.

Tal como vem ocorrendo na Brigada Militar do Rio Grande do Sul, outras PMs têm

desenvolvido parcerias com as universidades no intuito de atualizar os perfis de entrada

e saída do profissional de polícia, e de ofertar uma formação policial mais adequada e de

melhor qualidade. 67

De certo modo, o esforço de se tentar ultrapassar as sentidas limitações da doutrina militar

aplicada à polícia, conduziu a uma outra armadilha doutrinária: o apego acrítico à

perspectiva criminal do direito. É evidente que, no seu cotidiano, as polícias passam uma

parcela do seu tempo estabelecendo contatos com advogados, promotores, defensores

públicos, juízes e demais operadores do mundo jurídico formal. É fato que elas gastam

uma quantidade de horas utilizando e procurando compreender a gramaticalidade da

66
Cabe salientar que faz parte dessa realidade uma dose substantiva de imprevisibilidade. Não há como se
ter certeza prévia do curso de ação mais adequado - em particular, se haverá mesmo a necessidade do
emprego da força ou simplesmente de sua ameaça.
67
Acerca do projeto de modernização da Brigada Militar confira Luz (1998).
79

linguagem penal. Também é verdade que, na sua rotina administrativa, as agências

policiais - principalmente a polícia judiciária e investigativa - transitam pelos meandros

burocráticos do Ministério Público e do Judiciário. Mas a proximidade e mesmo a

instrumentalidade do direito penal para certas questões de polícia não devem ser

confundidas com o amplo espectro da atuação policial, em particular o das polícias

militares ou polícias do provimento da ordem pública. É óbvio que a legislação criminal

constitui um importante instrumento para polícia ostensiva. Mas é apenas um instrumento

tão necessário quanto tantos outros no dia-a-dia de um PM. O conhecimento, ainda que

qualificado, das firulas jurídicas penais (incluindo aí as formas de processamento das leis

criminais) não é suficiente para informar o perfil desejável de um patrulheiro que atua em

todo tipo de problemas, conflitos e desordens - os quais, ou não possuem, em sua maioria,

uma tradução na rationale jurídica, ou não se configuram como realidades propriamente

criminais. As atividades de polícia ostensiva - majoritariamente preventivas - estão

circunscritas pela legalidade, mas, em boa medida, colocam-se em um momento anterior

à conformação de um ato difuso em um fato criminal propriamente dito. Mesmo naquelas

ocorrências tipificadas como “crime em andamento”, o conhecimento formal das leis

penais parece ser pouco relevante para orientar um PM a escolher, com rapidez e

discernimento, o melhor curso de ação a ser adotado. Afinal, a identificação de uma

circunstância como legalmente criminosa não elimina a dimensão contingente das

interações entre policiais e cidadãos. Na prática ostensiva, os conhecimentos penais

tornam-se, portanto, uma ferramenta limitada, principalmente quando se trata de instruir

os policiais a adotarem uma estratégia de ação ou a decidirem qual recurso tático é mais

adequado às circunstâncias em que se está atuando. Por outro lado, como a polícia

ostensiva está sempre engajada no atendimento de ocorrências difusas e heteróclitas que

interferem diretamente na produção pública de ordem como, por exemplo, o resgate de


80

um alienado mental, a condução de uma parturiente, a retirada de um bêbado ou uma

querela de vizinhos, a aplicação estrito senso dos expedientes penais pouco pode auxiliar

nos processos cotidianos de tomada de decisão policial, mostrando-se residual e, no

limite, pouco provável.

A despeito das evidências sociológicas de que a racionalidade jurídica é incapaz de

recobrir os fluxos e as descontinuidades da vida citadina - ambiente onde a polícia

ostensiva atua - , o ensino do Direito Penal nas Academias da Polícia Militar tornou-se

uma tradição nas duas últimas décadas. As disciplinas da área jurídica passaram a ocupar

uma parte tão expressiva da formação policial que os oficiais PMs saem habilitados a

concluírem o bacharelado em Direito em, no máximo, dois anos. Além de não recobrir o

conteúdo interdisciplinar necessário ao profissional de polícia ostensiva, uma formação

policial voltada, quase que exclusivamente, para as ciências jurídicas, parece ter

contribuído para o reforço de uma visão criminalizante da ordem pública, extremamente

danosa aos serviços ostensivos de polícia. A criminalização do mundo social é correlata

ao já mencionado legalismo moral, cujos efeitos perversos em termos de ação cotidiana

de polícia são, na maior parte dos casos, irreparáveis. Diferente dos usuais operadores do

sistema criminal, os policiais ostensivos estão nas ruas interagindo de forma descontínua

com os cidadãos em todo tipo de eventos. Se motivados por um imaginário

excessivamente penal - quase sempre revestido de uma atraente aparência legalista - eles

tendem a produzir e multiplicar os fatores criminogênicos que ambicionam prevenir.

Como em uma espécie de profecia que se autocumpre, esses policiais, no afã de buscar

“enquadrar a conduta criminosa”, acabam elevando o universo de elementos suspeitos ao

limite da vida social - ela mesma passando a ser, paradoxalmente, identificada como

“suspeita” e “ilegal”.
81

Soma-se às tensões derivadas das correntes doutrinárias em circulação na cultura

institucional da PMERJ, a fusão político-administrativa dos Estados da Guanabara e do

Rio de Janeiro, em 1975, que agregou mais um elemento complicador à reconstrução

identitária da PM do Rio. Conforme demonstra o quadro abaixo, a atual Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro teria apenas 24 anos de existência organizacional:


82

Evolução Onomástica da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ


Ano Antiga Guanabara Antigo Estado do Rio de Janeiro
1809 1. Divisão Militar da Guarda Real de Polícia
1831 2. Corpo de Guardas Municipais permanentes
1833 3. Corpo Municipal Permanente da Corte
1835 1. Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro
1844 2. Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro
1858 4. Corpo Policial da Corte
1865 3. Corpo Policial Provisório da Província do Rio de
Janeiro
1866 5. Corpo Militar de Polícia da Corte
1889 6. Corpo Militar de Polícia do Município 4. Regimento Policial do Rio de Janeiro
Neutro
1890 7. Regimento Policial da Capital Federal
8. Brigada Policial da Capital Federal
1893 5. Regimento Policial do Rio de Janeiro
1897 6. Brigada Policial do Rio de Janeiro
1901 7. Regimento Policial do Rio de Janeiro
1905 9. Força Policial do Distrito Federal
1911 10. Brigada Policial do Distrito Federal
1919 11. Polícia Militar do Distrito Federal
1924 8. Força Militar do Estado do Rio de Janeiro
1939 9. Força Policial do Estado do Rio de Janeiro
1947 10. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
1960 12. Polícia Militar do Estado da Guanabara
1975 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ
Fonte: Evolução Onomástica e Galeria dos Ex- Comandantes Gerais, Arquivo Geral-AjG/PMERJ.

Como se pode notar, a PMERJ constitui-se em um híbrido institucional originado do

amálgama de, no mínimo, três organizações anteriores: a Polícia Militar do Distrito

Federal, a Polícia Militar da extinta Guanabara e a Polícia Militar do antigo Estado do

Rio de Janeiro. A unificação dessas corporações significou um total realinhamento

organizacional e administrativo da máquina burocrática - implicando desde a

reestruturação do Estado Maior e dos níveis de comando, passando pelo reordenamento

dos batalhões e demais unidades operacionais, até a assimilação e ordenamento de

efetivos, instalações e equipamentos. Se consideramos que as polícias militares são,


83

dentre as agências do estado, organizações de larga escala, o processo de reestruturação

resultante da criação do novo Estado do Rio de Janeiro não foi algo banal em termos dos

impactos internos provocados. Até hoje a PM do Rio sente os efeitos da fusão. Ainda

existem no interior da corporação quadros distintos de profissionais:

 os policiais que ingressaram na PM do Distrito Federal;


 os policiais que ingressaram na PM da Guanabara;
 os policiais que ingressaram na PM do Rio de Janeiro; e
 os policiais que ingressaram na atual PMERJ.

Entre outros problemas administrativos gerados com as distintas origens institucionais,

destacam-se as complicações burocráticas produzidas no percurso de ascensão

profissional. São muitos os policiais de igual patente e com o mesmo tempo de serviço,

que já cumpriram os interstícios e as exigências necessárias, e que não puderam ser

promovidos por ausência de vagas no atual quadro de promoção. Afora os entraves de

natureza burocrática e gerencial, cabe assinalar os conflitos derivados das singularidades

institucionais trazidas pelos policiais das suas organizações de origem. Hábitos,

prioridades e procedimentos de atuação distintos e de longa data rotinizados, passaram a

conviver em uma nova organização. A conformação de valores, expectativas profissionais

e rotinas diversos em uma outra realidade organizacional não foi, e nem poderia ser,

mecânica e imediata. É bem provável que práticas policiais consentidas e

tradicionalmente adotadas nas pequenas e médias cidades ou nas áreas rurais cobertas

pelos “treme-terra” (PMs fluminenses) destoassem do estilo e da performance dos PMs

da capital e da região metropolitana. Afinal, além de um cenário distinto dos problemas

de ordem pública, essas polícias estavam expostas a diferentes orientações de comandos

e políticas de policiamento.
84

Pode-se dizer que a PM carioca, a partir de 1975, passou a enfrentar dois grandes desafios:

de um lado, a novidade de fazer policiamento ostensivo contemporâneo, ou melhor, a

necessidade de redesenhar as suas atividades-fim ao contexto das demandas atuais; e, de

outro, a reconfiguração administrativa de suas atividades-meio - suporte indispensável ao

exercício dos serviços policiais propriamente ditos. Para alguns policiais da “antiga

geração”, a PM do Rio teria sofrido uma diversificação e uma ampliação do seu universo

territorial de cobertura, sem que esse crescimento tivesse sido, contudo, acompanhado

dos devidos investimentos em estruturas, em recursos humanos e materiais. O

descompasso entre estes níveis teria, em boa medida, comprometido a “modernização”

da PMERJ, introduzindo outros constrangimentos à sua capacidade de prestar um serviço

eficiente, eficaz e efetivo.

Um experiente sargento, proveniente da PM da Guanabara, narrou-me, com uma

razoável dose de comicidade, “o lado bom da fusão das PMs”. Na sua versão bem

humorada, o único ponto que teria sido objeto de consenso dentro das forças teria sido a

escolha da cor do fardamento da PMERJ. Segundo ele, acabou prevalecendo o uniforme

“azulão” da Guanabara - uma espécie de ícone emblemático do esforço de integração.

Para o meu confidente, os PMs fluminenses se sentiam “diminuídos” com a sua antiga

farda. “Feia e sem prestígio”, a cor caqui do seu fardamento - que “parecia que estava

sempre suja e com poeira” - era facilmente confundida, na época, com os uniformes dos

lixeiros, motoristas de ônibus e entregadores de cargas. Conclui dizendo que o azulão da

PM, “que todo mundo vê à distância”, transmite “respeito e autoridade”; características

identificadas como indispensáveis pois, afinal, “os PMs são ostensivos, porque gostam

de aparecer”.
85

Dos distintos aspectos relacionados à crise identitária enfrentada pela PMERJ, cabe

ressaltar o adiamento que a influência direta do Exército, assim como a sustentação no

presente de sobrevivências herdadas da junção estabelecida constitucionalmente entre

ordem pública e segurança interna, provocaram na construção de um universo próprio de

reflexões e de técnicas dirigidas à complexidade das atribuições e atividades civis de

policiamento. É voz corrente que “polícia não se improvisa”. Neste sentido, parece

oportuno a elaboração de políticas públicas efetivas voltadas para um real

dimensionamento das questões policiais, sem as quais tornam-se limitados ou pouco

produtivos os esforços isolados de melhoria da qualidade e extensão dos serviços

prestados.
86

4. “Este espelho reflete você e você a PMERJ”: o esprit de corps e o senso


de missão

Canção do Policial Militar


“Em cada momento vivido, uma verdade vamos encontrar. Em cada fato esquecido, uma certeza nos fará
lembrar. Em cada minuto passado, mais um caminho que se descobriu. Em cada Soldado tombado, mais
um sol que nasce no céu do Brasil. Aqui nós todos aprendemos a viver demonstrando valor, pois o nosso
ideal é algo que nem todos podem entender na luta contra o mal! Ser Policial é, sobretudo, uma razão de
ser. É enfrentar a morte, mostrar-se um forte no que acontecer. Em cada pessoa encontrada mais um amigo
para defender. Em cada ação realizada, um coração pronto para agradecer. Em cada ideal alcançado, uma
esperança para outras missões. Em cada exemplo deixado, mais um gesto inscrito em nossas tradições. Em
cada instante da vida nossa Polícia Militar será sempre enaltecida em sua glória secular! Em cada recanto
do Estado, deste amado Rio de Janeiro, faremos ouvir nosso brado, o grito eterno de um bravo guerreiro!”
(Autor: Ten Cel PM Horsae - PMERJ)

Ele é um policial militar! São muitos os significados passíveis de serem extraídos de uma

frase tão sucinta e econômica, particularmente do qualificativo “militar”. A indicação

mais óbvia e que atende à exigência cognitiva de produzir e seguir emprestando algum

sentido às nossas interações sociais é aquela que aponta para a apreensão de uma

diferença - qualquer uma - que teria sido rapidamente percebida. Que anuncia, de forma

sensível e explícita, o reconhecimento de um “outro” que experimentaria uma realidade

também imaginada como outra, sobretudo quando comparada, à primeira vista, com a

nossa própria maneira de estar no mundo. Neste jogo de estranhamentos, comum a

qualquer dinâmica interativa, toda pista ou qualquer traço que capture as singularidades

identificadas nesse “outro” visto como “diferente” adquire uma importância estratégica:

a de fornecer, ainda que de forma provisória, a possibilidade de tradução dessas mesmas

singularidades. Se como afirma a reflexão antropológica, qualquer significado é melhor

do que o incômodo intelectivo da sua possível ausência (Levi-Strauss, 1976), então os

artefatos afetivos e metafóricos como as imagens, e até mesmo os clichês e as caricaturas

que se colam aos atores com os quais interagimos, podem se mostrar rentáveis ao

exercício de buscar a sua decifração e o seu entendimento.


87

Se contrastados com os cidadãos comuns, os policiais militares não são nem tão exóticos

assim e nem tão desapercebidos. Talvez, ao seu modo, eles sejam diversos e se queiram

em boa medida equivalentes. Em suas irônicas, críticas e próprias palavras, os chamados

PMs anunciam a seguinte advertência para os “civis” que os observam, solicitam o seus

serviços e os vigiam: “não somos ETs, também saímos dessa sociedade que está aí”. Mas

o que deles é possível imediatamente apreciar?

A construção do ethos policial militar, ou melhor, a ressocialização no mundo da caserna

imprime marcas simbólicas que são visíveis ao primeiro olhar, que se mostram evidentes

logo no primeiro contato. O espírito da corporação encontra-se cuidadosamente inscrito

no gestual dos policiais, no modo como se expressam, na distribuição do recurso à

palavra, na forma de ingressar socialmente nos lugares, no jeito mesmo de interagir com

as pessoas etc. Creio que mesmo uma pessoa desinteressada e distante do universo dos

policiais militares é capaz de notar algumas características peculiares e até pitorescas do

seu comportamento.

A preocupação em fazer um uso restrito e consentido da fala vem acompanhada da

obrigação de apresentar um discurso comedido e, sempre que possível, firme, impessoal

e objetivo.68 Na experimentação da vida aquartelada, parece haver pouco espaço para a

adoção da palavra como um recurso estratégico de mediação ou como um artefato de livre

circulação: a palavra é, via de regra, distribuída e sopesada de uma forma hierarquizada.

As cotas e a permissividade que ordenam o “falar” e “o que se pode dizer” espelham a

68
A forma econômica, quase cifrada da fala policial é comumente caricaturada nos programas
humorísticos. Neles sempre aparece um PM confinado às falas “positivo e operante” ou “negativo
operante”.
88

estrutura verticalizada das patentes. De certa maneira, a palavra costuma ser acionada

como uma instância reativa, isto é, como um expediente de emissão tão-somente de

respostas, seja na interação com os oficiais superiores, seja no contato com o cidadão.

Um tipo de procedimento discursivo em nada estranho para atores que foram

cuidadosamente adestrados para “não fazer questionamento” e produzir resultados

imediatos “evitando a conversa”, quase sempre entendida como um prenúncio para o

bate-boca e para o descontrole. A arte da retórica ou da construção de uma arquitetura

argumentativa tende a ser compreendida, salvo raras exceções, como um tipo de

mascaramento da premência dos fatos, uma espécie de fuga planejada de algo mais

imprescindível - a tomada de decisão. Ela se apresentaria como um artifício com sinal

negativo; uma forma capciosa de engano ou de falseamento do real, cujo propósito seria

o adiamento de intervenções e de iniciativas consideradas, do ponto de vista policial,

urgentes e necessárias.

De fato, o falar, sobretudo o falar questionador e propositivo, “não é o forte” dos policiais

militares, que preferem se orgulhar de serem talhados para “agir”, cumprindo com

devoção e presteza as suas atribuições. Constata-se, então, no mundo da PM, um receio e

até um certo temor da palavra e do seu potencial como um dispositivo de produção e de

negociação de realidades. O seu uso, quando inadiável e intransferível, costuma ser

assimilado como uma missão com um razoável teor de risco, objeto mesmo de

autopoliciamento e, em muitos casos, também objeto de autocensura. Freqüentemente

associadas a uma visão pejorativa do ardiloso mundo da política, a palavra e a sua livre

utilização tendem a ser percebidas como entidades desacreditadas e impeditivas da ação.

Nesta ordem de entendimento, o falar desinibido e desmesurado é quase igual à inação

ou ao intolerável “prometer e não fazer nada”. Talvez por isso o bom uso da oratória no
89

meio policial militar traga embutido uma ênfase eminentemente pragmática e funcional.

Reduzida à sua instrumentalidade, a palavra é transvestida em uma espécie de palavra-

ato que se mostraria capaz de converter a obediência em uma ação efetivamente

cumprida. Sua serventia estaria, portanto, confinada em uma forma aparentemente

segura: a emissão e a recepção de missões, ordens, instruções, notificações e

responsabilidades. De todo modo, o uso parcimonioso, formal e autorizado do expediente

discursivo - encenado principalmente na presença de oficiais superiores, autoridades e

cidadãos prestigiados pela força - é apresentado para o mundo externo como uma das

muitas demonstrações do caráter sedutor da etiqueta e da cortesia militares. 69

Somam-se a essa negociação peculiar com a palavra os inúmeros sinais emitidos pela

linguagem corporal. Certos movimentos milimetricamente desenhados no espaço, tais

como a forma impávida de caminhar; o jeito exaustivamente ensaiado de deixar o corpo

“descansar”; o modo vigilante, observador e, ao mesmo tempo, discreto do olhar; a pose

ereta, fazendo sempre um invejável ângulo de 90o com a base; a gesticulação econômica

e precisa evidenciam, entre outras coisas, o apego afetivo e moral à similitude estética.

Anunciam que toda essa teatralidade retrata o amor aprendido pela disciplina - valor em

boa medida reiterado no corpo por uma espécie de obsessão pela correção postural. 70 A

imposição de uma autovigília no que se refere à apresentação e ao asseio pessoais pode

ser notada na aversão ao desleixo e o incômodo sentido em relação às coisas que estariam

69

A experimentação da vida aquartelada na polícia põe em tela inúmeras características que têm sua raiz nas
tradições militares estrito senso. A cortesia e a etiqueta militares adotadas pela PM orientam-se pelo
“Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas ”. Para uma abordagem
do universo cultural das Forças Armadas ver: Castro (1994).
70
A literatura antropológica descreve, com muita propriedade, os modos mais diversos pelos quais os
grupos sociais e distintas culturas têm utilizado o corpo como uma matéria-prima privilegiada para
inscrever as suas marcas. Em relação ao lugar do corpo na construção identitária de grupos urbanos ver:
Rodrigues (1980); Perlongher (1987); Caiafa (1985); Silva (1993).
90

fora do prumo ou do seu devido lugar. Os sapatos bem engraxados, a vestimenta sem

dobraduras e amassados, o corte de cabelo muito bem batido, o semblante integralmente

exposto pela ausência de barba parecem complementar a necessidade constante de

conferir atenção ao modo pelo qual se deve apresentar e divulgar a imagem da PMERJ. 71

É evidente que todo esse cuidado ritual com a aparência individual é algo aprendido e

reforçado durante os anos que os policiais militares passam na Academia de Polícia. Além

das horas gastas diariamente com as atividades relativas ao aprendizado da “ordem unida”

- que visa a condicionar os cadetes a agirem e a se pensarem como uma fração de tropa

sempre engajada, solidária e indivisa -, outras tarefas extra-curriculares tais como o

cuidado pessoal com os fardamentos recebidos, o serviço de limpeza dos alojamentos, as

tarefas de manutenção dos equipamentos e instalações escolares, o rígido cumprimento

dos horários estabelecidos para as mais distintas atividades etc., complementam a

rigorosa pedagogia militar de introjeção do ethos corporativo. O empenho exaustivo com

a imagem institucional está, por excelência, voltado para produzir interna e externamente

uma visão virtuosa e austera da organização policial militar. Neste sentido, é importante

frisar, qualquer tarefa atribuída (desde uma atividade propriamente policial até as tarefas

cerimoniais da etiqueta militar), deve sempre ser executada com o máximo de capricho e

presteza possíveis, incluindo aí, principalmente, a atenção espartana com a aparência e a

higiene pessoais do representante da corporação.

71
Conta um oficial PM, hoje reformado, que quando era recruta teria sido submetido ao chamado “teste do
algodão” - uma prática pedagógica oriunda do Exército brasileiro. Por ocasião da revista matinal da tropa,
o oficial instrutor costumava escolher algum praça e, na frente dos demais, passava um pedaço de algodão
em seu rosto para checar se a barba estava bem feita. Caso as fibras do algodão ficassem retidas na face, o
recruta era imediatamente retirado para executar de forma exemplar o seu asseio pessoal.
91

Toda vez que me encontro diante de um oficial da PM, imediatamente vem à minha mente

a seguinte questão: como eles conseguem, após um dia inteiro de trabalho, aparentar ter

acabado de sair do banho? Até bem pouco tempo, essa minha despretensiosa impressão

estava somente dirigida aos padres e pastores. Penso que os policiais militares buscam

causar a impressão de que nunca se encontram desprevenidos, largados ao sabor do acaso,

do imprevisto ou da deriva que, em boa medida, conformam o ambiente do trabalho

policial ostensivo. De algum modo, isto operaria com uma espécie de contraponto

simbólico à experimentação da incerteza, e à conseqüente percepção ampliada do perigo.

A disciplinarização do corpo e o seu requinte apresentam-se, portanto, como uma espécie

de testemunho da possibilidade de intervir e contornar aquilo que se mostra arredio,

inesperado ou contingente. Os PMs, particularmente os oficiais, procuram estar sempre

impecáveis, encenando um estado continuado de prontidão, ou melhor, de engajamento

cerimonial. Seu visual, principalmente quando fardados, estaria, fazendo uso do próprio

jargão policial, sempre “pronto” para ser passado “em revista” pelo Comando e pela

sociedade.

Certa ocasião, fui convidada para realizar a minha primeira palestra no curso de formação

de oficiais da PMERJ. Tudo foi, como de praxe no meio militar, impecavelmente

planejado e combinado. Apesar do meu interesse infantil de fazer uma ronda em um carro

convencional de patrulha com a sirene ligada - um desejo próximo daquelas aventuras

cinematográficas que estão sempre sob condições totais de controle, fui informada de que

“para não causar constrangimentos na vizinhança” e à minha própria pessoa, uma viatura

“descaracterizada" viria me buscar para conduzir-me até a Academia D. João VI, situada

em Sulacap, na periferia da cidade. Conhecedora da pontualidade dos policiais militares

na elaboração de sua agenda de compromissos, organizei-me para estar “a postos” no


92

horário combinado. Durante o percurso fui conversando sobre o dia-a-dia da polícia com

os policiais encarregados da missão de conduzir-me até a escola. Logo que entrei nas suas

instalações - amplas, modestas e muito bem cuidadas - fui recepcionada por outros

oficiais que aguardavam também, “a postos”, a minha chegada para conceder-me as

honras militares destinadas a todos os visitantes. Eu ainda tinha alguns minutos antes de

começar a aula matinal para os cadetes. E meus anfitriões, sempre hospitaleiros,

ocuparam-se de apresentar-me às dependências da Academia. Já em um imenso pátio

interno e coberto, fui vaidosamente atraída por um grande espelho cujas proporções

capturavam minha imagem de corpo inteiro. Não resisti a uma parada estratégica para

checar como estava o meu visual, dando uma última arrumação no cabelo e na vestimenta.

Entretida na minha breve sessão de futilidade, notei que acima da base superior do espelho

encontrava-se escrito na parede a seguinte frase: "Esse espelho reflete você e você a

PMERJ". Imediatamente comentei com um dos meus cicerones, em tom jocoso: “Ah!

não são só as meninas que gostam de espelho!” Ao que fui imediatamente esclarecida por

um dos oficiais acompanhantes: “todos os alunos quando se dirigem às dependências da

escola passam obrigatoriamente por aqui. Antes de iniciar suas atividades eles corrigem

a postura, checam o fardamento e vêem se está tudo no lugar”. Informou-me, ainda, que

em todas as escolas da PMERJ eu encontraria esse mesmo espelho com a referida

advertência. Concluiu gentilmente sua explicação dizendo-me que é “indispensável à

autoridade policial militar uma apresentação digna e respeitosa”, compatível com a

missão constitucional recebida. “Muito PM é desatacado na rua porque tem pinta de

malandro, porque quer imitar o jeitão de bandido. Ele pode até ser honesto, mas fica

desacreditado. Um Policial militar desalinhado perde 50% da sua autoridade e do respeito

do cidadão".
93

Como se pode notar, o ethos policial militar apresenta-se a tal ponto internalizado que as

suas manifestações soam como algo extremamente normal, natural e corriqueiro para um

integrante da força. Por outro lado, ele evidencia - pelo caráter exagerado e ostensivo de

sua ritualização, sobretudo quando observado de fora da vida intramuros - que se trata de

um conjunto de valores institucionais que é constantemente cultivado e “policiado” por

todos os membros da organização.

A conduta militar do policial é exercida como uma espécie de patrimônio incomensurável

que se recebe, que se preserva e que, fundamentalmente, deve permanecer sendo um bem

ambicionado e perseguido ao longo da carreira profissional. É anunciada como o “grande

diferencial” que permitiria destacar o PM de outros servidores públicos e demais atores

do universo civil. Pode-se dizer que “a conduta esperada do policial militar” consiste em

um lugar ritual privilegiado para encenar a aceitação e o orgulho do pertencimento, para

exibir a honra e a distinção não apenas para o mundo externo mas, principalmente, para

dentro da própria PM. O zelo por uma conduta militar querida como “exemplar” e o

esforço cotidiano realizado para o seu aprimoramento, servem como instrumentos de

contraste entre os policiais militares. São acionados como uma importante referência

simbólica para todos os integrantes, um requisito indispensável para a aquisição de

prestígio junto aos superiores e para legitimar o emprego carismático e meritório da

liderança. Tem-se, pois, uma rigorosa pedagogia voltada para produção de

comportamentos uniformes que, ao mesmo tempo, propicia dinâmicas internas sutis de

diferenciação. O contraste e os acréscimos pessoais no cumprimento do que foi ensinado

pela formação militar, parecem resultar do próprio imperativo de perseguir, com

obstinação e adestramento, a similaridade e a simetria dos indivíduos e dos seus

movimentos. Talvez se possa dizer que as brechas para alguma individualização brotem
94

da paixão mesma pela similitude. A constante e obrigatória busca do ideal de uma conduta

homogênea, favorece o aparecimento de gradações e particularidades no empenho

individual de buscar se aproximar do comportamento coletivo idealizado como uma “boa

praça”.72

Fica evidente que a formação e a doutrina militares forjam elementos valorativos comuns

entre distintos meios de força que apresentam um modelo militar de organização

profissional, notadamente as PMs (as polícias ostensivas da ordem pública) e o Exército

(a força terrestre da defesa nacional). A chamada tradição militar, ancorada nos princípios

da hierarquia e da disciplina, de fato, empresta cores específicas às grandes organizações

burocráticas cuja centralidade é o emprego ou a ameaça do uso da força. Elas revelam

propriedades únicas se comparadas com os outros órgãos prestadores de serviços

essenciais - em particular, aqueles que se conectam com a produção de ordem pública e

suplementam os mecanismos oficiais de controle social difuso, como as agências

assistenciais e de infra-estrutura urbanas. Uma vez que a sua personalidade institucional

está dirigida, por excelência, para o mundo da ação, os meios de força desenvolvem

qualidades específicas para atuar em cenários adversos como a dinâmica de engajamento

voltada para o pronto atendimento, ou melhor, a capacidade de mobilizar, com razoável

rapidez, os seus recursos humanos e materiais para ofertar respostas imediatas aos

distintos problemas colocados. Esta capacidade de atender às demandas emergenciais

(presteza), de ofertar respostas às situações críticas e de tomar decisão e atuar, de forma

continuada, em cenários de crise é - por ora - suficiente para indicar a existência de uma

configuração identitária singular. Dessa conformação desdobra-se uma linguagem

72
São inúmeras as referências sociológicas acerca do impacto exercido pelas "Instituições Totais" sobre a
construção do lugar do indivíduo e as possibililidades negociadas de individualização, ver: Mauss, 1974 e
1981.
95

própria para conviver com o perigo e com o risco e para administrar, individual e

coletivamente, a expectativa de experimentá-los ora de forma intensa e progressiva, ora

de forma difusa e descontínua. Essa disponibilidade para vivenciar no cotidiano episódios

limítrofes, inusitados e até mesmo imponderáveis, favorecem a produção de uma mística

profissional em torno daqueles atores que, como narra a Canção do Policial Militar,

fizeram o juramento de “na luta contra o mal”, “enfrentar a morte, [e] mostrar-se um

forte no que acontecer”.

Outros elementos encontram-se diretamente associados a essa mística profissional. O

esprit de corps, por exemplo, apresenta-se como um ingrediente indispensável à

subjetividade policial militar. O perigo e os riscos vividos - e, em parcelas significativas

dos casos, idealizados de forma extremamente romantizada - são compartilhados tão-

somente com os pares, favorecendo a elaboração de fortes sentimentos de união e

cumplicidade. De fato, o espírito de corpo, valorizado e disseminado internamente, tem

alguma base na realidade do trabalho de polícia e é, em boa medida, um expediente

afetivo propositado.73 Oficiais e praças são unânimes em dizer que “a polícia é um tipo

de profissão que você não pode chegar em casa contando tudo que fez no seu dia de

trabalho”. Por um lado, a experimentação mesma da pura disponibilidade para conviver

com o perigo ou a sua ameaça e, por outro, a inserção regular em ambientes desenhados

pelo acaso e por um alto teor de incerteza (afinal, um tranqüilo atendimento assistencial

pode se converter em um quadro de resistência e oposição à presença policial), fazem

prosperar imagens associadas à fraternidade e ao companheirismo policiais. Tudo parece

indicar que os policiais não poderiam, na rotina do seu trabalho, prescindir

73
Mesmo naquelas polícias que não adotaram integralmente o clássico modelo militar, optando por uma
estrutura mais flexível e descentralizada observa-se uma expressiva valorização do espírito de corpo. Ver
Bittner (1990); Skolnick e Fyfe (1993); Reiner (1992).
96

emocionalmente da crença no auxílio inquestionável e dos sólidos elos de lealdade de

seus pares, particularmente daqueles que fazem parte de uma mesma guarnição. Esses

dispositivos afetivo-morais operam como recursos estratégicos que ajudam a administrar

a tensão expressa, ora no tédio da espera por um episódio inesperado ou violento em uma

ronda que, até então, seguia monótona e previsível, ora no estresse de experimentar, de

forma ininterrupta, toda sorte possível de interações descontínuas e fugazes com os

cidadãos. Pode-se dizer que uma das coisas que governam o centro da ação de polícia é a

idéia latente de que “um de nós” pode estar correndo perigo em serviço e que o “nosso

companheiro de farda”, agindo certo ou errado tecnicamente, necessita

inquestionavelmente de ajuda. A camaradagem estrita e a solidariedade fraternal entre os

policiais são ensinadas nos quartéis, objeto de regulamentação disciplinar e reforçadas

nas ruas. Sua força corporativa cresce na proporção da iminência do risco ou de sua

efetiva experimentação dentro e fora da corporação policial militar. Se no âmbito externo

o chamado “corporativismo policial” se manifesta, desde as situações de risco típicas do

trabalho de polícia, passando pela defesa inconteste da PMERJ frente às críticas externas,

até as pressões classistas; no plano interno, ele se faz presente, sobretudo, como um

mecanismo que serve, paradoxalmente, de defesa contra os possíveis exageros na

aplicação do regulamento disciplinar e de proteção para possíveis desvios policiais.

O processo de formação das praças e dos oficiais enfatiza o sentimento de unidade

inclusive no próprio adestramento militar. Conforme relataram alguns instrutores, uma

tropa transforma-se em uma fração pronta para encarar os desafios da profissão policial

quando, repetida vezes, ela é aprovada no teste da união. Diante da suspeita de que alguma

praça teria cometido uma indisciplina dentro da escola, e frente à advertência de que todo

o grupo será indistintamente punido, espera-se que a tropa comporte-se como “tropa”
97

expressando a sua unidade de grupo pelo silêncio ante o interrogatório, e que o próprio

insubordinado, retribuindo eticamente a solidariedade grupal anunciada pelo sacrifício,

apresente-se como o verdadeiro culpado.

Além da atividade policial, outras profissões que, de uma maneira distinta, relacionam-se

com as questões relativas à vida e à morte, como a medicina, o sacerdócio etc., são

também revestidas de uma roupagem mística e despertam uma razoável dose de mistério

e curiosidade. A literatura antropológica, sobretudo aquela dedicada aos estudos da

religião e da magia, descreve com muita propriedade os processos simbólicos de

constituição de trajetórias que guardam a pretensão de lidar, de forma mais intensa, com

os estados excepcionais da fragilidade e do descontrole humanos como o medo, a

hostilidade, a doença, o transtorno mental, as manifestações de ódio e violência etc.

Grosso modo, a dinâmica de construção social dessas carreiras é, em maior ou menor

grau, estruturada por uma gramática que cobra dos seus inscritos um tipo de adesão total,

que reivindica dos seus sujeitos uma vinculação social substantiva e totalizante (cf. Mauss

1974 e 1981). Isto pode ser observado no exercício disciplinado da abnegação e da entrega

ao ofício; na experimentação do sofrimento individual provocado pelos períodos forçados

de afastamento e de privação das boas coisas da vida; na valorização do sacrifício como

um passaporte necessário para a realização de uma causa nobre, etc. Muitos policiais

militares quando se reportam à sua vocação, à sua escolha profissional - em verdade, uma

escolha de vida - e às suas atribuições como servidores que receberam a missão de

“proteger e servir”, fazem uso de uma estrutura de narrativa muito próxima dos

testemunhos de vida que informam as conversões religiosas e demais processos

profundos de reconstrução biográfica. Enunciados marcantes tais como “no cumprimento

do dever sacrificamos nossa própria vida” ou “a farda é a minha esposa e a amante é a


98

minha mulher”, plasmam a sintaxe policial militar. Evidenciam uma simbólica

expressionista, em boa medida exegética, voltada cuidadosamente para a corroboração do

pertencimento a um mundo novo (a corporação), inaugurado por um novo nascimento,

isto é, “o nascimento para a vida policial militar”. Um tipo de pertencimento no qual a

fidelidade e o amor dedicados à corporação e à própria persona institucional assimilada

pelos indivíduos, devem ser encenados nos espaços mais distintos de sociabilidade dos

conversos, até mesmo nas esferas mais triviais do mundo social, como uma festa de

aniversário de criança, por exemplo. Na administração cotidiana dessa subjetividade

parece ser preciso se manter vigilante, em uma espécie de estado existencial de prontidão,

jamais perdendo de vista o comprometimento de sempre “honrar a farda” “em cada ação

realizada”, “em cada ideal alcançado”, em suma, “em cada exemplo deixado”.

A construção dessa nova identidade, cujo momento zero é ritualizado, por exemplo, no

recebimento de um outro nome, o "nome de escala”, se dá no ingresso para as escolas e

academias - o primeiro e, sobretudo no caso do oficialato, o principal estágio de introjeção

e da aceitação de uma visão de mundo, propositadamente concebida como distinta das

contingências, das intempéries e da imprevisibilidade a que estariam expostos os atores

sociais para além dos muros seguros dos quartéis. Fazendo uso de um jargão

antropológico, o período passado nas escolas constitui-se em um rito de passagem

estendido e reencenado em cada etapa do percurso profissional: na aquisição de uma

graduação mais elevada, no alcance de uma posição de comando, no rodízio entre as

atividades de policiamento etc. Assim como nas experiências de afastamentos

vivenciados por certas trajetórias religiosas, a carreira policial militar parece reforçar a

necessidade de uma marcada descontinuidade com o chamado mundo civil.


99

Na condição liminar de alunos-oficiais e alunos-praças, os futuros policiais militares

vivenciam a sua transição através de uma total imersão no novo mundo oferecido. Os

alunos-oficiais, por exemplo, são submetidos a um regime de internato durante,

aproximadamente, os três anos de formação escolar. De forma mais aguda do que os

soldados, que permanecem no máximo um ano dentro do Centro de Formação e

Aperfeiçoamento de Praças - CFAP-, os cadetes ou futuros oficiais experimentam, de

uma maneira mais intensa, a elaboração do self policial militar - aquele que,

evidentemente, é idealizado pela corporação. Em verdade, não são os soldados, os cabos

e os sargentos - os atores que na prática fazem a polícia, atuando nas atividades de

policiamento propriamente ditas - os maiores representantes da cultura institucional. O

fardo de sustentar as tradições policiais militares recai, por excelência, sobre o oficialato

responsável pelas atividades executivas e administrativas de comando e planejamento das

políticas da força ostensiva. Diferentemente daqueles que ingressam como praças na

organização e que trabalham nas ruas, os oficiais apresentam uma personalidade

institucional melhor elaborada, reproduzindo de forma mais explícita e com maior

convicção a desejada personalidade policial militar.74

A despeito do maior ou do menor grau de adesão individual à cultura institucional da PM,

todos os policiais militares (oficiais e praças) trazem consigo um dilema construído no

período de formação escolar: eles são adestrados para intervir nos conflitos sociais, e

paradoxalmente, não são educados para compreender que esses mesmos conflitos

constituem uma forma de sociabilidade, ou melhor, uma forma legítima de negociação da

74
Em várias polícias militares, os candidatos a cadetes chegaram a ingressar nas Academias com dezesseis
anos de idade. Este é o caso, por exemplo, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul que há pelo menos
vinte anos aceitava cadetes adolescentes. Conforme foi-me explicado, esses garotos completavam os
estudos de segundo grau na própria Academia, tornando-se aspirantes muito jovens.
100

realidade social. A percepção reificada da obediência e da disciplina militares camufla e,

em boa medida, exclui a disputa de interesses e o dissenso como uma forma de

estruturação positiva da vida em sociedade. Busca-se, como vimos, ainda que idealmente,

a uniformidade das ações e dos comportamentos. Os próprios profissionais de polícia -

principalmente a nova geração de oficiais e praças - reconhecem os elementos de

substantivação do seu universo aquartelado, expressando sua insatisfação através do

jocoso provérbio "na PM nada se cria e tudo se copia": uma clara alusão à adoção integral

do modelo organizacional e burocrático do Exército brasileiro, e ao discreto espaço

concedido às idiossincrasias individuais, à criatividade e talento dos membros da

organização.

Estudiosos de diversas polícias estrangeiras, quando se reportam ao processo de

construção identitária dos policiais, enfatizam que o ingresso na carreira policial significa

muito mais do que a simples aquisição de uma identidade profissional ou a adesão a uma

“cultura organizacional” - conceito hoje muito em moda. Essa identidade se apresenta

para os postulantes como um estilo de vida, uma forma mesma de se pôr no mundo (

Skolnick, 1994; Chan, 1997, Muir Jr, 1977). Cabe salientar que as exigências

operacionais direta e indiretamente derivadas do trabalho policial e da sua complexa

natureza - intervir ininterruptamente, através do recurso legal e legítimo da força, em um

conjunto de eventos heteróclitos e voláteis, circunscritos por cenários de incerteza e risco

- ultrapassam em muito as competências e as atribuições formais, projetando-se sobre a

existência diária e privada do policial. 75

75
Na International Police Review, maio/junho de 1998, foi publicada uma matéria sobre o crescimento das
taxas de suicídio nas polícias americanas, em particular a Polícia de New York. Segundo a reportagem,
construída a partir da pesquisa realizada pela Columbia University, entre 1992 e 1994 o suicídio
correspondeu a 37,0% das mortes de policiais superando os índices de homicídio. Dentre as características
que informam o perfil do polícial com propensões suicídas destacam-se o sexo e a idade. A grande maioria
é do sexo masculino, possui acima de cinquenta anos e já se encontra aponsentada ou próxima de concluir
101

O mesmo se pode constatar em nossas polícias, principalmente nas polícias militares, que

são extremamente zelosas e apaixonadas pela sua tradição. Se a carreira policial militar é

ofertada aos seus inscritos como uma forma privilegiada de inserção no mundo, então

parece fazer todo o sentido anunciar a esse mundo que “ser policial é sobretudo uma razão

de ser”, em tempo integral, ou melhor, “em cada instante da vida”. O Regulamento

Disciplinar a que estão sujeitos os policiais da ativa e na inatividade normatiza, entre

outras coisas, a conduta social desejada para a “família policial militar”: um PM deve

sempre se comportar como um espelho da PMERJ, zelando pelo “bom nome da classe”,

quando abre um crediário, quando escolhe os seus locais de lazer, quando faz amigos,

quando se vê como qualquer cidadão envolvido em um conflito no trânsito ou em uma

querela interpessoal, quando se relaciona com seus familiares etc. 76 Note-se que o

cumprimento da disciplina policial militar nos mais diversos níveis de interação social e,

mesmo na inatividade, exige uma tal ordem de fidelidade à corporação que acaba por

possibilitar o seu efeito inverso: parece quase impossível para um integrante da força

conduzir a sua vida privada e social ao seu próprio modo sem, no limite, romper alguma

regra e contrariar parte das centenas de transgressões previstas no Regulamento

Disciplinar. A vontade draconiana de uma normatização excessiva do comportamento, e

a crença absoluta na capacidade das regras de traduzir, e ordenar, todos os fluxos da vida

comum, tendem a motivar uma outra realidade, distinta daquela que seria moral e

eticamente ambicionada: a lealdade dos indivíduos na transgressão, a unidade silenciosa

e cúmplice na indisciplina.

o seu tempo de serviço na força. Uma das hipóteses consideradas no estudo publicado refere-se ao
sentimento de perda de uma identidade que interfere em todos os domínios da vida do policial.
76
O Anexo I do Regulamento Disciplinar da PMERJ (RDPM), atualizado pelo Decreto no. 6.579, de 5 de
março de 1983, lista um conjunto de 125 transgressões, algumas das quais serão apresentadas mais adiante.
102

Um outro aspecto diretamente relacionado à conduta policial militar e à sua manifestação

como uma realidade que se faria sentir em todas as esferas da vida social, é o agudo senso

de missão - valor profundamente enraizado nos PMs. Uma carreira estruturada por um

imaginário carregado de alegorias que se ocupam em capturar as mais nobres e heróicas

virtudes humanas, não pode prescindir de uma certa estética missionária e militante.

Como ocorre em outros meios de força militarizados, os policiais militares estão sempre,

e de alguma maneira, engajados em uma missão inadiável e intransferível. A capacidade

de ação coordenada como unidade e de pronta resposta às tarefas atribuídas, assumem

uma relevância superior à necessidade mesma de refletir sobre a pertinência da ordem

superior emitida, ou melhor, sobre a utilidade propriamente policial da missão conferida.

É razoável afirmar que, na vida intramuros, toda e qualquer solicitação vinda de cima é

apreendida como uma inquestionável missão que deve ser “prontamente obedecida”,

exceto se implicar em uma ação ilegal ou criminosa por parte do subordinado. O

regulamento disciplinar é suficientemente claro ao afirmar que o exercício da “disciplina

consciente” classifica como insubordinação atitudes como “não cumprir ordem

recebida”; “retardar a execução de qualquer ordem” e “deixar de comunicar ao superior

a execução de ordem recebida tão logo seja possível”. 77 Ante a possibilidade de

cometimento involuntário de uma falta disciplinar, vale a presteza em atender a qualquer

demanda institucional determinada, não importando a sua conectividade com as

atividades-fim de polícia. Em outras palavras, “tudo” - e esse tudo abarca uma diversidade

de coisas - merece ser tratado como uma missão: ser escalado como motorista para um

oficial superior, uma autoridade civil ou um visitante; servir como ajudante de ordens;

77
Confira: Regulamento Disciplinar da PMERJ - RDPM/ Diretoria Geral de Pessoal/EMG/PMERJ.
103

organizar uma partida de futebol; doar sangue quando solicitado; pintar as instalações do

Batalhão; realizar pequenos consertos de mecânica e eletricidade; atuar como cicerone;

providenciar aspirinas ou cigarros; servir de escolta ou de acompanhante para um

visitante ilustre; realizar tarefas de jardinagem; atuar como garçon; representar a

corporação em algum evento, etc. Esses exemplos fazem parte de um rol ilimitado de

missões que concorrem para a “colaboração espontânea à disciplina coletiva e à eficiência

da Instituição”.78

De fato, são notáveis os dispositivos de mobilização, disponibilidade e controle dos

recursos das organizações policiais militares no que concerne ao desempenho de tarefas

internas à força, ou melhor, à execução das atividades distintas do policiamento

propriamente dito e relacionadas ao exercício da prontidão militar. A capacidade do

modelo militar de produzir respostas imediatas para qualquer demanda burocrático-

organizacional - desde estacionar o carro de um visitante, até providenciar relatórios ou

manter uma fração a postos para atender alguma demanda de última hora - empresta à

corporação policial uma aura positiva de auto-suficiência e revela uma indispensável

habilidade do seu pessoal para o improviso, para o agir na derradeira hora. O policial

militar é em boa medida um faz tudo, que deve estar sempre “pronto” para resolver - com

a devida presteza e seriedade - toda missão a ele atribuída.

Em 1996, por solicitação do Ministério da Justiça e do PNUD/ONU, fui ao Espírito Santo

realizar um exaustivo levantamento sobre a bem-sucedida experiência de policiamento

comunitário conhecida como “Polícia Interativa”. Minha visita técnica estava prevista

para um total de duas semanas e, como se pode presumir, a agenda de compromissos,

78
Idem.
104

assim como o suporte de pessoal e veículos necessários à realização do trabalho de

avaliação, foram providenciados pela PM capixaba. Tudo havia sido impecavelmente

confeccionado, incluindo aí a emissão dos bilhetes aéreos, as reservas de hotéis, as

inspeções nas unidades operacionais (BPMs e Cias), as audiências com o Governador e

seu secretariado, entrevistas nos jornais, rádios e TV locais etc. Logo à minha chegada no

aeroporto de Vitória, fui recepcionada por um conjunto de oficiais PMs que saudaram-

me com as devidas honrarias militares e me entregaram um roteiro de atividades

absolutamente detalhado e cronometrado. Confesso que jamais havia recebido algo tão

bem elaborado. De imediato, não acreditei que se poderia cumprir tudo aquilo que estava

previsto. Mas, tudo foi prontamente concluído. Os longos percursos entre uma e outra

cidade, as visitas aos Batalhões, os encontros com as representações comunitárias, a

testagem dos sistemas de informações foram devidamente realizados nos horários

estabelecidos pelo cronograma. À medida que os dias passavam, eu ia ficando cada vez

mais surpreendida com tanta eficiência. Até as atividades de lazer tinham sido

concebidas: as visitas aos pontos turísticos, as paradas para as fotos, as idas aos shoppings

e aos restaurantes foram feitas com os meus anfitriões PMs - sempre dentro dos horários

estabelecidos. No meu único dia de folga desejei, como qualquer mortal, ir à praia. Desejo

prontamente atendido: dois sargentos levaram-me às lindas praias de Vila Velha e, sob o

olhar sempre atento e gentil dos meus cicerones, tomei banho de mar, comi uma

maravilhosa moqueca capixaba e bebi alguns chopes, sozinha, é claro, pois meus amigos

não bebem em serviço.

Na metade dessa minha incursão, eu já estava prestes acreditar que o mundo, tal como a

vida da caserna, poderia existir sem acidentes, desencontros e coisas do gênero. Diante

do menor imprevisto, sempre havia uma rápida solução de contorno. Pelo rádio da viatura,
105

o cabo PM informa: “Senhor, pegamos uma pequena retenção no trânsito, mas a

professora já está chegando”. Sempre que havia, portanto, a possibilidade de alguma coisa

não ocorrer com a perfeição desejada, eu ouvia desculpas antecipadas e percebia uma

certa apreensão, mais uma vez acompanhada de rápidas soluções. Tudo, evidentemente,

ia sendo feito para causar uma merecida boa impressão da corporação e dos seus

integrantes. De minha parte, eu sempre achava que estava ocupando demais meus

dedicados e eficientes anfitriões. Na condição de visitante senti-me inúmeras vezes,

fazendo parte de um teatro de operações. Acho que “a visita da professora Jacqueline”

poderia ser lida como uma eficiente operação militar. Ir ao banheiro dentro dos Batalhões

convertia-se em uma verdadeira manobra tática que implicava vistoria, desocupação,

deslocamento e ocupação: "a senhora não repara, mas as instalações do quartel não foram

feitas para mulheres, assim a senhora vai usar o banheiro do comandante". Lembro-me

que tentar comprar cigarros foi um tarefa impossível, pois os policiais se antecipavam em

todas as coisas, inclusive preencher as fichas dos hotéis, providenciar artigos de higiene

pessoal como sabonetes e pasta de dente ou anti-alérgicos para minha implacável rinite.

Raros eram os momentos em que eu ficava efetivamente sozinha. A disponibilidade e a

pronta atuação de meus incansáveis e diuturnos tutores também incluía troca de turnos e,

dessa forma, eu nunca me encontrava “desguarnecida”. Pelo interfone do hotel um

sargento me informa: "Dra, eu fui destacado para render o sargento beltrano e estou à sua

disposição”. Não consegui sequer usar o serviço de despertador dos hotéis por onde

passei, os PMs também se incumbiam de fazer esse serviço. Nessa intensa convivência

com os oficiais e praças capixabas acabei sendo, pouco a pouco, contagiada pela

felicidade juvenil evidenciada a cada encerramento de uma missão. Não havia como não
106

entrar nesse clima. Assim, também passei a estar “engajada e pronta”, e comecei a

partilhar com meus “companheiros de guarnição” o sabor de cada tarefa cumprida. 79

Creio poder dizer que a missão, o seu caráter extensivo ou os múltiplos sentidos a ela

atribuídos, assim como a teatralidade sociológica de sua execução, parecem servir como

um tipo de ensaio para a vida real de polícia, uma espécie de grande preparação para o

real da coisa - o trabalho nas ruas. Se isto procede, esses expedientes buscam

principalmente enaltecer as virtudes derivadas da disciplina e da hierarquia consideradas

necessárias ao nível do engajamento desejado. Operariam, em uma ordem simbólica,

como dispositivos de reforço da própria cultura institucional (para dentro e para fora),

através da exibição planejada do caráter virtuoso do meio de força policial.

Para Jerome Skolnick, além dessas características gerais que se fazem presentes na

carreira policial, identificam-se alguns elementos-chave saídos da realidade mesma do

trabalho de policia. Trata-se de aspectos que circunscrevem o ambiente policial

propriamente dito, como o perigo, a autoridade e a eficácia. Essas variáveis, saídas da

experiência concreta nas ruas, combinam-se de uma forma única se comparada a outras

profissões, gerando respostas cognitivas e comportamentais próprias às polícias

79
Cabe registrar que não foi diferente o contato com outras Polícias Militares. As minhas inúmeras visitas
realizadas à Brigada Militar do Rio Grande do Sul, às Polícias Militares do Rio de Janeiro, de São Paulo e
de Pernambuco foram pontuadas pela presteza e pela cortesia militares. Sem o suporte sempre oferecido
por essas instituições e por seus integrantes, teria sido impossível realizar as pesquisas e mesmo as
atividades de consultoria que motivaram boa parte de nossos encontros. Em verdade, os policiais militares
são exemplares na elaboração de cerimoniais impecáveis. A preocupação com “o bom nome da classe” e o
esforço de reverter a estigmatização das PMs estavam sempre presentes como uma importante estratégia a
pontuar as interações. Alguns oficiais chegavam mesmo a explicitar que eu “poderia ver qualquer coisa”
que julgasse importante para o meu trabalho. Do seu ponto de vista, não havia nada mais a ser escondido.
Ao contrário, era importante conquistar parceiros e, quem sabe, futuros defensores da polícia militar. Nessas
diversas polícias, ouvi casos que poderiam ser classificados como histórias de conversão. Contaram-me
que vários opositores e críticos das PMs (principalmente os “defensores dos direitos humanos”), quando
tiveram a oportunidade de conhecer a PM de perto, teriam mudado a sua imagem da organização, tornando-
se importantes “defensores da PM”.
107

(Skolnick, 1994:41). Nos termos do autor, elas concorrem de forma decisiva para a

produção de uma “working personality” policial, desenvolvendo uma disposição

cognitiva singular e útil no enfrentamento do dilema prático posto para os meios de força

policiais: produzir ordem pública sob o império da lei (Idem). Se o modelo de organização

paramilitar conforma a chamada cultura institucional, os elementos saídos do ambiente

policial (as ruas) emprestam conteúdos diferenciados a essa cultura, ou melhor, inscrevem

aquilo que seria específico das realidades policiais. A “working personality” policial a

que o sociólogo se refere seria, nesta perspectiva, o produto da interação entre o modelo

de organização adotado com o que é, na prática, experimentado como singular nas

atividades efetivamente policiais. Sob este prisma, as características que foram até o

momento mencionadas sobre a realidade da PMERJ dizem respeito a uma grande moldura

cultural que encompassa todos os integrantes da PM, mas que se faz sentir de uma forma

diferenciada segundo a divisão do trabalho policial. Conforme já foi mencionado, aqueles

profissionais que realizam atividades majoritariamente aquarteladas, em particular o

oficialato, tendem a reproduzir com maior fidelidade os princípios e os valores do mundo

policial militar. Já os profissionais que estão voltados para as atividades-fim da

organização, para o policiamento nas ruas, tendem a ser mais devotos a uma espécie de

“cultura policial das ruas”. Estes últimos pertencem, em sua maioria, ao mundo das

praças, que é, de acordo com a estrutura hierárquica, constituído das patentes mais baixas

da organização - os soldados, os cabos e os sargentos.


108

5. O mundo da caserna: Policiais Militares versus o “Militarismo”

“Ser militar é o nosso diferencial. Eu gosto de usar farda e você vê que a outra polícia à paisana é uma
bagunça, ninguém sabe quem é quem. Eu sempre quis ser policial militar. Mas o que estraga a Polícia
Militar é o militarismo.”
(soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)

“Nós ficamos tão preocupados com o lado militar que alguns colegas esquecem que são policiais. Eles têm
uma mentalidade mais fechada, mais apegada ao militarismo”.
(Oficial PM, com 20 anos de serviços prestados à PMERJ)

“A corporação tem que ver também a nossa condição. O comando cobra, o governo cobra, a sociedade
cobra, todo mundo cobra do policial. Tem que olhar para a nossa situação, para o material humano do
policial”.
(Cabo PM, com 15 anos de serviços prestados à PMERJ)

As imagens que evocam o universo propriamente militar estão sempre presentes em

qualquer discussão sobre as questões relativas à segurança pública. No caso das polícias

ostensivas brasileiras, que adotaram historicamente o modelo militar de organização

profissional, essas figuras se fazem presentes não só no nome (Polícias Militares), como

também na própria estrutura burocrática. 80 A PM está dividida internamente em

Organizações Policiais Militares (OPMs) executivas, setoriais e operacionais que prestam

os serviços de policiamento.81 Assim como no Exército, ela possui Estado Maior, Cadeia

de Comando, Batalhões, Companhias, Destacamentos, Regimentos, tropas etc. Seu

pessoal encontra-se distribuído hierarquicamente em graduações ou patentes militares,

conforme demonstra o quadro abaixo que relaciona os postos e a suas referidas

atribuições:

80
Diferente dos nossos meios de força ostensiva que adotaram integralmente o desenho organizacional do
Exército brasileiro, outras polícias que realizam o ciclo completo policial fazem uso de uma estrutura
paramilitar, uma espécie de adaptação do clássico modelo militar. Ver Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997); Skolnick e Bayley (1988); Reiner (1992); McCormick e Visano (1992).
81
Ver, em anexo, o Organograma Institucional da PMERJ.
109

CÍRCULOS POSTOS FUNÇÕES82

CÍRCULOS DOS OFICIAIS


Superiores Coronel Os oficiais que compõem os círculos superior,
Tenente Coronel intermediário e subalterno são preparados, ao
Major longo de sua carreira, para exercer funções de
comando, chefia e direção.
Intermediários Capitão
Na cadeia de comando e controle, os oficiais
Subalterno Primeiro Tenente intermediários - em particular, os capitães
Segundo Tenente destacam-se como o principal elo de
comunicação com o círculo das praças.

PRAÇAS ESPECIAIS Aspirante Oficial


Aluno Oficial

CÍRCULO DAS PRAÇAS


Subtenentes e Sargentos Subtenente Os Subtenentes e Sargentos auxiliam e
Primeiro Sargento complementam as atividades dos Oficiais,
Segundo Sargento quer na administração e no emprego dos
Terceiro Sargento recursos materiais e humanos, quer na
instrução e no adestramento das praças.
Devem ainda desempenhar as atividades de
policiamento ostensivo peculiares à Polícia
Militar.
Cabos e Soldados
Cabo Os cabos e soldados são, essencialmente, os
Soldado profissionais que devem executar as tarefas
de policiamento.
Fonte: PM/1 - Estado Maior - PMERJ.

As metáforas militares também colorem as expectativas públicas em relação às polícias

ostensivas. Alegorias associadas à simbologia da guerra como o “combate”, o

“confronto”, o “inimigo” etc. são empregadas tanto no senso comum quanto na mídia

para descrever as ações da polícia e para cobrar iniciativas e formas de intervenção.

Também são freqüentes as fabulações que vinculam a função de polícia a uma “guerra

contra o crime” e, mais recentemente, a uma “guerra às drogas”. Alguns aspectos,

sobretudo aqueles mais imediatamente apreensíveis, favorecem a cristalização dessas

metáforas, parte delas até condizente com a realidade policial militar. Nossos PMs, ou

melhor, os soldados, cabos, sargentos etc., não fazem uso de uniformes como os agentes

82
O Estatuto da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, aprovado através da Lei n o. 443 de 1 de julho
de 1981, apresenta o plano de carreira do servidor policial militar, estabelecendo as atribuições para cada
patente.
110

ostensivos da recém-criada Guarda Municipal; 83


eles utilizam “fardas” bastante

assemelhadas aos trajes de combate dos militares regulares. Nestas fardas estão fixados

diversos apetrechos, como uma tarja com o “nome de guerra”, as divisas correspondentes

aos graus hierárquicos e outras insígnias referentes à trajetória institucional do policial.

Como vimos anteriormente, eles também executam a ritualística própria do mundo

militar.

Contudo, as mais distintas associações entre o universo da PM e o mundo propriamente

militar das Forças Armadas não se restringem às aproximações decorativas e superficiais.

Como foi observado, essas associações possuem raízes históricas profundas. Elas

desencadearam conseqüências importantes e, via de regra, pouco benéficas às instituições

policiais militares.

O debate, hoje, em torno da crise institucional das polícias militares, aquecido pela

perspectiva de unificação das Polícias Militar e Civil, empenha-se em tentar dissociar a

forma de organização militar das polícias ostensivas da perversa "ideologia militar"

batizada pelo público interno da PM de “militarismo”. Em outras palavras, esse esforço

procura distinguir a utilidade da adoção do modelo militar profissional - implantado nas

PMs brasileiras, desde de 1831, com a criação do “Corpo de Permanentes” - do chamado

“militarismo”, identificado como um imaginário construído recentemente à luz da

Doutrina da Segurança Nacional, e que teria se cristalizado no interior das PMs como a

visão predominante do lugar da polícia. 84

83
A Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro ou a Empresa Municipal de Vigilância S.A. foi instituída
na gestão do prefeito César Maia, através do decreto n o.12.000 de 30 de março de 1993, de acordo com as
prerrogativas legais discriminadas pela Lei Orgânica do Município.
84
Alguns estudiosos de polícia falam de um processo de “militarização ideológica” da segurança pública e
das polícias militares no Brasil. Um tipo de perspectiva que ainda vigora, a despeito do retorno à
democracia. Consultar Cerqueira (1996); Silva (1996).
111

No jogo argumentativo, são muitas as proposições favoráveis e contrárias ao suposto

caráter indispensável e imprescindível do desenho militar aplicado às polícias. Uma das

questões normalmente consideradas pelos que defendem a estrutura militar reporta-se ao

peso de sua tradição histórica no ordenamento das agências policiais e ao alto custo

derivado de uma possível mudança do desenho organizacional. O eixo geral da

argumentação pode ser apresentado da seguinte maneira: “sempre fomos assim e em

outros países as forças policiais ostensivas também adotaram ou adaptaram a sua

organização a um modelo paramilitar”. Para aqueles que defendem a tradição, a própria

história das polícias ocidentais ao mesmo tempo que revelou os problemas oriundos da

modelagem militar, sobretudo as agudas limitações no controle da discricionariedade

inerente à ação policial individualizada ou em grupo, também teria apontado os caminhos

para o seu ajustamento às demandas provenientes de uma ordem pública complexa e

contemporânea.

Como se vê, esta linha de raciocínio, atenta às opiniões contrárias e procurando responder

às exigências dos novos tempos, admite a necessidade de “modernizar”, ou melhor, de

aperfeiçoar o desenho militar que traria ao menos a virtude de já estar sedimentado nas

PMs. A questão principal não seria a experimentação de um outro modelo mais adequado

à realidade ostensiva da polícia - empreendimento considerado extremamente arriscado

por uma parte significativa do oficialato policial85 - e sim a racionalização da máquina

85
Do ponto de vista das praças, a resistência de setores do oficialato à mudança do modelo militar pode ser
compreendida como uma defesa dos próprios interesses corporativos, uma vez que a adoção de uma outra
arquitetura organizacional poderia suprimir alguns postos hieráquicos superiores e algumas funções
alocadas nas atividades-meio.
112

burocrática existente, introduzindo uma perspectiva gerencial e atualizada dos recursos

policiais que fosse capaz de romper com o círculo vicioso do malfadado “militarismo”.

É evidente que todo esse empenho argumentativo também se volta para dentro da

corporação. Ele traz à cena o embate interno entre posicionamentos radicalmente

divergentes: tem-se, de um lado, o segmento progressista da PM, isto é, aqueles que se

intitulam os “policiais militares realistas” preocupados com o ingresso da PMERJ no

terceiro milênio e, de outro, a “mentalidade conservadora” representada pelos "policiais

militaristas" que, segundo os primeiros, ocupam-se de sustentar uma visão equivocada da

missão e do papel das polícias ostensivas, reproduzindo falsos paralelismos com as forças

da defesa nacional.

De acordo com os reformadores progressistas, o caminho mais frutífero para superar os

entraves existentes, principalmente a melhoria da qualidade dos serviços prestados pela

PMERJ, seria a realização de intervenções tópicas no âmbito da cultura institucional,

preservando a estrutura militar que supostamente atenderia às exigências técnico-

operacionais próprias dos grandes meios de força. Esta proposta, em certa medida

conciliatória com a tradição institucional, visa a eliminar, na medida do possível, os vícios

e desvirtuamentos produzidos pelo “militarismo”. Intervir na cultura militarista

corresponderia ao empreendimento de trazer a polícia para o seu devido lugar, isto é, de

transformar a polícia em Polícia, enfatizando as diferenças radicais de propósito, doutrina,

emprego da força, performance etc. entre as forças comedidas voltadas para controle

social e as Forças Armadas orientadas para o combate. De fato, esta é uma empresa mais

do que propositada, se consideramos que as PMs passaram a cuidar realmente do

policiamento ostensivo nos grandes núcleos urbanos somente nos últimos trinta anos. Sob
113

este aspecto, pode-se dizer que o seu acervo de reflexões e técnicas acerca de tudo aquilo

que se relaciona com o provimento de serviços policiais nos espaços metropolitanos é

extremamente recente.

Penso que a confluência de diversos fatores relacionados à nossa história política, às

definições constitucionais relativas ao provimento de ordem pública e às missões da PM,

assim como a explícita ingerência do Exército na vida institucional das polícias militares

compromete em muito a tentativa de demarcar com excessiva nitidez se o modelo militar

teria levado à consolidação do imaginário militarista, ou se a concepção militarista da

segurança pública sedimentada no Brasil teria poluído esse mesmo modelo, exagerando

as suas limitações.86 O passado recente de uma ditadura militar e os longos períodos em

que a PMERJ foi comandada por generais e coronéis do Exército, tornam essa discussão

um pouco mais complexa e por vezes parecem criar uma enorme cortina de fumaça que

obscurece as proposições. É razoável supor que a cultura institucional da PMERJ tenha

adquirido contornos mais radicais, e que certos estímulos autoritários possam ter

prosperado em um ambiente de restrições de direitos, produzindo efeitos danosos dentro

e fora da organização. Isto fica mais evidente nos expedientes de socialização no interior

dos quartéis e nos procedimentos de interação com os cidadãos (o real trabalho de

polícia). De todo modo, a discussão acerca da necessidade de “desmilitarizar” a segurança

pública e, em especial, as polícias militares esbarra na seguinte questão: seria o modelo

militar inadequado às polícias, ou seria o “militarismo” que o reveste ? Talvez caiba aqui

um questionamento anterior: o modelo e suas formas de institucionalização são tão

independentes e autônomos como aparecem normalmente situados no jogo

86
As dificuldades encontradas no levantamento de uma literatura qualificada sobre as polícias da América
Latina impossibilitaram a elaboração de um estudo comparativo entre aqueles países que também
experimentaram regimes de exceção e possuem polícias estruturadas militarmente.
114

argumentativo? O caso das polícias norte-americanas pode ser bastante útil para melhor

compreender as vantagens e as reais limitações do modelo militar, uma vez que o mundo

americano, diferentemente do brasileiro, não experimentou uma ditadura militar e muito

menos a sobreposição dos assuntos de defesa, segurança interna e ordem pública.

Segundo Egon Bittner (1990), a adesão cada vez maior dos departamentos americanos de

polícia à arquitetura paramilitar ocorreu no bojo de um processo crescente de

“profissionalização” dos serviços policiais, inaugurado a partir do final da década de

cinqüenta. A “militarização” americana das polícias não dizia respeito a uma concepção

de segurança pública atrelada aos assuntos de defesa atinentes às forças combatentes.

Buscava-se, inicialmente, apenas atender às críticas de corrupção, violência e politicagem

dirigidas ao sistema policial vigente. Do ponto de vista dos reformadores, a utilização do

modelo paramilitar poderia responder de forma eficiente a estas críticas, emprestando um

maior rigor à disciplina e aos mecanismos de controle.

Em verdade, a estrutura paramilitar mostrou-se um recurso extremamente atraente para

os planejadores de polícia e isto não aconteceu sem alguma razão. Em primeiro lugar,

considerando as analogias de superfície entre as Forças Armadas e as agências policiais,

não parecia ser inteiramente despropositado experimentar os métodos de organização

interna das primeiras no contexto das segundas (Idem). Um ponto que foi muito

enfatizado pelos reformadores americanos refere-se ao fato de que ambas as organizações

configuram-se como instrumentos de força e que as ocasiões para o seu emprego e

distribuição apresentariam algumas dinâmicas de incerteza e risco comuns. Espera-se que

o pessoal das Polícias e das Forças Armadas seja mantido em um estado altamente
115

disciplinado de preparação e de alerta, de forma a poder responder com presteza às

situações típicas de confronto, por exemplo.

Em segundo lugar, as polícias americanas - não muito diferente do que tem ocorrido com

os nossos meios de força - foram, durante um bom tempo, a cachaça predileta dos

políticos locais e, em parte por essa razão, tornaram-se vulneráveis às artimanhas das

disputas partidárias e aos esquemas de corrupção. Inúmeros autores mencionam o

tradicional uso eleitoral dos departamentos americanos de polícia que teriam se

convertido em preciosos objetos de barganha. 87 Tudo parece indicar que o tráfico de

influências e a utilização dos recursos policiais como expedientes de reforço do capital

político eram uma constante nas administrações municipais:

"Police reform was literally forced to resort to formidable means of internal


discipline to dislodge undesirable attitudes and influences, and the military model
seemed to serve such purposes admirably. In fact, it is no exaggeration to say that
through the 1950's and 1960's the movement to "professionalize" the police
concentred almost exclusively on efforts to eliminate political and venal corruption
by means of introducing traits of military discipline". (Bittner, 1975:53)

87
O uso eleitoral das agências policiais também tem sido uma constante na realidade das polícias
brasileiras. No nosso caso, pode-se mais apropriadamente dizer que o modelo militar não se mostrou imune
à chamada “politicagem”. Policiais militares de diversas patentes e de distintas PMs no Brasil reclamam da
forte interferência política no interior das organizações policiais. Alguns chegam a mencionar que “A PM
é do Governador e não da sociedade” ou que “as PMs possuem vários patrões”, em uma clara alusão aos
inúmeros “favores” atendidos aos parlamentares e políticos locais. Segundo esses profissionais, tem sido
uma rotina o empenho do efetivo da PM por critérios estranhos às recomendações técnicas. Em resposta às
pressões dos políticos são implantados Destacamentos Policiais Militares em locais desnecessários, criando
duplicidade e desperdício de recursos. Não é incomum encontrar municípios pequenos que possuem
proporcionalmente mais policiais do que outros que possuem índices críticos de insegurança. Do mesmo
modo, policiais militares são cedidos para realizar trabalhos alheios às tarefas de policiamento ostensivo
como servir de motorista e de segurança particular para deputados e políticos locais. No intuito de
minimizar os efeitos das demandas dos políticos sobre os escassos recursos policiais, a Brigada Militar do
Rio Grande do Sul conseguiu recentemente aprovar, junto à Assembléia legislativa, a “Lei de Fixação do
Efetivo” que determina a aplicação do pessoal segundo critérios profissionais de alocação dos meios
policiais.
116

Por quase um século, as intervenções nas polícias americanas resultaram de

manobras político-partidárias. 88 De acordo com Bittner, este foi um dos principais

motivos pelo qual essas organizações foram as únicas agências públicas de larga escala

que não se beneficiaram dos avanços da ciência da administração (Idem). Diante da

ausência de recrutamentos laterais para posições de supervisão e do desenvolvimento

incipiente de quadros definidos a partir das habilidades técnicas adequadas às funções

estabelecidas - expedientes necessários a organizações cujos profissionais alocados na

atividade-fim desfrutam de um alto poder decisório -, as mudanças foram implementadas

principalmente através da rígida aplicação de regulações e de procedimentos internos que

reforçavam a necessidade cada vez maior de disciplina. 89

Não resta dúvida de que a “militarização” americana emprestou alguma ordem ao caos

experimentado na época pelos departamentos de polícia. A promessa trazida pela

modelagem paramilitar de que os mecanismos de correição e expurgo dos quadros

indesejados seriam mais velozes e eficazes do que os instrumentos anteriormente

adotados produziu, é bem verdade, uma espécie de alento - ainda que parcial e provisório

- para o complexo problema do controle das ações policiais em seu conjunto, dilema que

até hoje permanece desafiando os estudiosos e administradores de polícia.

88
Pouco a pouco, o poder judiciário foi perdendo a sua expressão no que tange ao controle externo das
polícias. (ver Bittner, 1975). Para um discussão sobre o lugar da discricionaridade no sistema criminal ver
Walker (1993).
89
Para alguns estudiosos, os reformadores teriam também adotado o método militar porque não dispunham
de outras opções para reduzir a influência política e assegurar a disciplina interna. Como uma boa parte dos
indivíduos que trabalhavam nas polícias tinham alguma experiência militar, a construção de uma estrutura
militar policial poderia ser realizada sem a ajuda e a preocupante interferência externa. De qualquer forma,
os trabalhos históricos evidenciam que até a revolução industrial, eram poucas as organizações de larga
escala que existiam além da militar. E a maioria dessas organizações - as agências de grandes negócios, as
burocracias governamentais etc. - geralmente possuíam uma arquitetura organizacional assemelhada ao
desenho militar. Em certa medida, a organização de polícia seguindo as linhas militares teria sido um
acidente histórico. Se outros modelos eficientes estivessem disponíveis na época, as polícias poderiam ter
sido organizadas de forma diferente. Ver Bittner (1975); Skolnick e Fyfe (1993); Reiner (1992).
117

Todavia, os méritos da estruturação paramilitar dos departamentos americanos de polícia

não foram suficientemente demonstrados ou mesmo arguídos de forma convincente nem

pelos administradores policiais, nem pelos estudiosos. De acordo com Bittner, uma boa

parte dos trabalhos que fazem referência a essa modelagem aplicada às polícias ou a

considera uma espécie de realidade natural das organizações, ou critica apenas os seus

aspectos mais visíveis e exagerados, especialmente a orientação punitiva que é objeto de

questionamento inclusive dentro das próprias organizações policiais (Bittner, 1975). Do

ponto de vista do referido autor, a atenção deve se voltar para o próprio modelo,

indagando sobre a sua capacidade de realizar o que promete, isto é, de ofertar mecanismos

de controle e fiscalização eficazes e adequados às atividades reais de policiamento. Trata-

se, portanto, de buscar aferir a rentabilidade das ferramentas paramilitares na

administração da ameaça e do uso de emprego da força por atores que dispõem de um

alto grau de discricionariedade e que atuam diuturnamente nos cenários urbanos, em

tempos de paz.

Observou-se que, como em outras organizações militares e paramilitares, os

departamentos de polícia americanos são governados por um vasto número de

regulamentos e normas que buscam normatizar a sua rotina organizacional. Contudo, essa

constatação trivial veio acompanhada de uma importante consideração: não muito

diferente do que ocorre com as nossas PMs, notou-se um expressivo contraste entre o

volumoso acervo de regras que regulam os padrões de comportamento no interior da

burocracia policial e a precariedade de diretivas relacionadas à administração das

questões policiais enfrentadas quotidianamente na interação com os cidadãos (Bittner,

1990).
118

O caráter desproporcional entre a proliferação de mecanismos que regulam a vida interna

dos departamentos de polícia “militarizados” e uma certa negligência com a fabricação

de códigos e procedimentos voltados para o pronto-emprego nas ruas conduz à óbvia

inferência de que as áreas reais de ação de polícia, uma vez que não estão devidamente

contempladas pelos regulamentos administrativos e disciplinares, seriam abordadas de

forma compensatória e pouco sistemática pelas notas de instrução e pelas “ordens do dia”.

Assim como acontece no nosso caso, os defensores americanos do modelo paramilitar

ainda acreditam que este tipo de descompasso pode ser simplesmente resolvido com a

extensão gradual das regulações já existentes aos domínios das atividades propriamente

policiais que se encontram desreguladas. O fato de que tal adição resulta em um conjunto

de regras esquizofrênicas, que trazem orientações contraditórias e até mesmo

incompatíveis, não é devidamente levado em conta. Ao contrário, está implícito que o

policial pode e deve ser instruído sobre como interagir com os cidadãos de forma a não

afetar o sistema disciplinar interno. 90 A falta de apreciação quanto ao fato de que o

desenvolvimento conseqüente de métodos profissionais de discricionariedade para o

controle do crime e da manutenção da paz, constrangidos pelo imperativo do pronto-

emprego policial, compromete a aplicação das regulações burocrático-militares -

normatividades quase sempre restritas às necessidades da prontidão militar -, não é

resultante de um esquecimento ingênuo. Reporta-se a um tipo de perspectiva que

confunde os expedientes da disciplina militar com os mecanismos profissionais de

controle e fiscalização, e que elege os primeiros como um fim em si mesmo, independente

da demonstração empírica da amplitude do seu sucesso nas atividades policiais de ponta

(cf. Bittner, 1990; Kleinig, 1997).

90
Para uma crítica desta perspectiva ver Kleinig (1996;1997); Ohlin e Remington (1993); Delattre (1996).
119

Conforme já foi mencionado, a utilização dos métodos de disciplina importados da

burocracia militar não ocorreu sem alguma justificativa. É preciso registrar que, tanto nas

polícias americanas quanto nas nossas PMs, esses dispositivos possibilitaram algum

controle sobre certas práticas como a corrupção, os favoritismos pessoais, a intromissão

dos políticos etc. Do mesmo modo, introduziram uma forma de avaliação dos

comportamentos desejados.

Muito embora essas ferramentas tenham sido proveitosas em um largo conjunto de

situações internas às forças policiais, elas também deixaram evidente as suas limitações.

Se antes da aplicação do método militar as polícias não dispunham de padrões claros que

definissem a conduta certa daquela considerada errada, com a sua introdução passou-se a

ter algum critério para distinguir os bons policiais dos desviantes. Mas, uma vez que os

padrões estabelecidos consideram, quase que integralmente, os assuntos conectados com

a disciplina interna, os resultados dos julgamentos à luz desses padrões, com raras

exceções, não estão relacionados com o trabalho que o soldado-policial desenvolve nas

ruas ou nas comunidades. 91 Inversamente, o reconhecimento costuma ser conferido

àqueles que possuem um bom comportamento dentro dos quartéis, e não nas ruas, onde

as obrigações efetivas de polícia são de fato realizadas. 92 Cria-se com isso uma situação

no mínimo curiosa: a maior parte das iniciativas adotadas pelo policial de ponta em sua

91
É evidente que a estabilidade organizacional e, por sua vez, o moral da tropa requerem que as
recompensas e as sanções sejam distribuídas metodicamente, isto é, que elas sejam aplicadas de acordo
com regras racionais e explícitas. Afinal não é uma tarefa fácil assinalar débitos e créditos para
performances que não estão reguladas ou que se configuram como práticas informais a despeito de sua
pertinência.
92
A fragilidade destes expedientes pode ser demonstrada quando se observa que em muitos casos noticiados
na mídia, os policiais militares envolvidos em seqüestros, acusados de corrupção e brutalidade
apresentavam uma folha disciplinar impecável.
120

ronda convencional - desde as ações preventivas e dissuasivas até as intervenções

repressivas – tende a se tornar invisível para o próprio policial que atuou, para a sua

corporação e, fundamentalmente, para a sua principal clientela, os cidadãos. Boa parte

dos atendimentos realizados pelos PMs se desfaz no ato mesmo do encerramento

satisfatório da ocorrência, ingressando no universo intangível da chamada “cifra negra”

policial. Isto ocorre com maior freqüência sobretudo naqueles atendimentos que

resultaram de uma intervenção pró-ativa ou da iniciativa do próprio PM e que, por

diversas razões circunstanciais, não se adequaram ao sistema de registros adotado.

Levando-se em conta este importante traço da rotina policial, pode-se dizer que a terapia

disciplinar extraída do mundo militar tem propiciado a cristalização de fortes obstáculos

para o desenvolvimento de um modelo profissional do papel de polícia que contemple

esta realidade - particularmente se entendemos que este papel deve significar, na prática,

o emprego de habilidades técnicas e a confiança pública nos atores que fazem uso de uma

ampla discricionariedade e recebem o consentimento legal para usar a força, incluindo aí

a força letal.93

Como se pode observar, os problemas derivados do “militarismo” à moda americana não

são muito distintos das questões críticas identificadas nas PMs brasileiras. Constata-se

que a disciplina militar que visa a fortalecer a cadeia de comando e controle tem,

paradoxalmente, produzido um efeito inverso nas organizações policiais. Este efeito é

bem mais corrosivo do que parece à primeira vista. Como, na prática, os oficiais

superiores não partilham das atividades policiais de seus subordinados, eles tendem a ser

93
São inúmeros os estudos acadêmicos que se dedicam a refletir sobre o estado da arte do emprego da força
no âmbito das atividades policiais. Este empreendimento não tem sido uma tarefa trivial, pois o uso da força
consiste no centro da ação de polícia, e tem sido, paradoxalmente, alvo de abordagens inconsistentes e
pouco elucidativas. Dentro do rol de interpretações empobrecedoras destacam-se aquelas que classificam o
emprego da força como uma variante da violência consentida. Para um tratamento mais qualificado da
questão ver Bittner (1990); Geller e Toch (1995); Geller e Scott (1992); Alpert e Dunham (1997) .
121

percebidos pela tropa como meros “disciplinadores” que estariam distantes e alheios aos

problemas policiais surgidos no dia-a-dia. Nas diversas PMs, as praças costumam referir-

se ao oficialato, principalmente aos tenentes e capitães que estão em uma posição

hierárquica intermediária em relação à linha de frente, como profissionais que teriam

“uma vida fácil” porque “não tiram polícia” e, por conseguinte, só saberiam “aplicar o

regulamento”.

É evidente que se deve considerar que as visões e as expectativas saídas da “ponta” ou da

blue line expressam, em boa medida, os conflitos de interesses existentes entre os níveis

profissionais - divergências comuns em qualquer grande organização. Por outro lado, não

se pode menosprezar o fato de que a manutenção nas PMs de uma estrutura hierarquizada

com mais de dez níveis de graduação (patentes), reminiscência de um período em que as

ordens eram passadas de viva voz para centenas de homens agrupados, propicia um

excesso de verticalização pouco adequado às necessidades e dinâmicas de pronto-

emprego que caracterizam as agências policiais. O distanciamento entre aqueles policiais

que estão alocados nas atividades-meio (tarefas internas à força) e as mais baixas patentes

lotadas nas atividades-fim, compromete o fluxo de comunicação, sobretudo da base para

o topo, favorecendo o insulamento das tarefas de policiamento ostensivo. No cotidiano

da organização, os policiais superiores, absorvidos com as inúmeras demandas

organizacionais intramuros, raramente estão disponíveis para “ajudar” os policiais de

ponta, ou melhor, para aconselhá-los na administração das dificuldades derivadas do

trabalho nas ruas. Resulta daí que o seu importante papel como uma liderança não pode

ser efetivamente projetado para os policiais que se encontram na linha da obrigação.

Diferente do que ocorre nas Forças Armadas , onde se espera que o oficial conduza os

seus homens na cena do combate (mesmo que ele jamais tenha a chance de fazê-lo), o
122

policial superior com um posto análogo é alguém que pode apenas ordenar uma “ grande

missão” para a sua tropa e fazer muito pouco por ela no ato mesmo do cumprimento da

tarefa determinada. Na administração diuturna dos episódios heteróclitos e contingentes

que conformam a dinâmica do provimento de ordem pública, as praças, contrastando com

os seus correspondentes no Exército, são compelidas a, ou melhor, necessitam tomar

decisões por sua própria conta sem qualquer contato com os seus superiores.

A propósito da ortodoxia da modelagem militar aplicada às polícias, Bittner (1990)

observa que, quanto maior o grau de confiança e crença dos oficiais superiores nos

expedientes normativos que regulam a vida dos policiais aquém dos muros seguros dos

quartéis, menos livres eles estão para censurar as práticas desreguladas e informais que

porventura desaprovam e que são constantemente adotadas, inclusive pelos policiais

considerados promissores segundo os critérios internos de avaliação. De fato, a economia

do controle ofertada pelo desenho militar faz com que a multiplicação das normas

disciplinares desvinculadas da rotina policial nas ruas seja acompanhada do incremento

de licenciosidades nos terrenos desprovidos de uma regulação adequada. Isto pode ser

traduzido da seguinte maneira: se um policial é considerado um profissional excelente

nos termos da burocracia militar, sua performance além dos muros tende a ser menos

“policiada”, isto é, as cobranças relativas ao seu desempenho policial na interação com

os cidadãos costumam ser mais tolerantes e flexíveis, principalmente pela ausência de

procedimentos e instrumentos pertinentes de fiscalização do trabalho policial.

Por outro lado, “fazer vista grossa” para certas transgressões, tais como a quebra da

pontualidade e a falta injustificada ao serviço, tem-se convertido em uma manobra usual

de reforço dos frágeis elos de lealdade que irrigam a cadeia de comando e controle da
123

força policial. No entanto, cabe salientar que os possíveis benefícios advindos desta

solução de contorno são provisórios e restritos, pois além de deixarem explícito o hiato

existente entre as ferramentas disciplinares e a prática policial, ainda contribuem para

desacreditar qualquer esforço de supervisão e controle. 94

Constata-se que a confusão normalmente estabelecida entre os requisitos da disciplina

militar e as ferramentas de controle tem dificultado o desenvolvimento eficaz destes

últimos, abrindo espaço para a sedimentação de um círculo vicioso: quanto maior a

fragilidade dos mecanismos de controle e fiscalização, maior a necessidade de uma rígida

disciplina militar que, por sua vez, enfraquece ainda mais o emprego dos primeiros. Em

parte por esta razão, o mundo das interações dos policiais e cidadãos tem consistido em

um espaço de baixa visibilidade e, mais grave ainda, aberto a toda sorte de interpretações

individuais possíveis. Se consideramos que o balcão de atendimento da polícia ostensiva

é capilarizado, individualizado e ambulante, sendo concretamente exercido em cada

esquina ou rua da cidade por um policial ou por uma pequena guarnição móvel, o

amadorismo dos procedimentos de interação tende a confinar a ação de polícia ostensiva

ao limitado universo do bom senso e da boa vontade individual e ao perigoso mundo dos

preconceitos sociais.

Quando se observa que os processos de tomada de decisão, ou melhor, que as escolhas

entre as alternativas de ação disponíveis em uma dada ocorrência são basicamente

orientados - segundo os próprios PMs - “pela intuição e pelo empirismo”, fica-se com a

94
Observou-se nos departamentos americanos de polícia que em virtude da limitação colocada pelos
regulamentos, a estratégia encontrada pelos policiais superiores para promover a lealdade de seus
subordinados tem sido cobrir certas transgressões disciplinares sendo mais flexíveis na interpretação e
aplicação dos regulamentos. Ver Bittner (1990); Skolnick (1994).
124

nítida impressão de que a pertinência das regras existentes é menos relevante do que a

produção da sua abundância. Não importando a razoabilidade desses expedientes, os

policiais devem sempre estar cientes de que eles podem ser chamados a prestar conta por

desobedecê-los, mesmo que a suposta “falta disciplinar” ocorra em benefício de uma ação

policial mais satisfatória e conseqüente. Este é o caso das conhecidas e corriqueiras

“arribações” praticadas no dia-a-dia pelos policiais da ponta da linha. Os PMs

comunitários de Copacabana vez por outra “arribavam”, isto é, saíam de seus setores de

policiamento para atender a uma determinada demanda sem cobertura policial e que se

encontrava fora de sua área de atuação.

É fato que uma parte da leitura da “ordem do dia” - rito matinal realizado no interior das

unidades operacionais da PMERJ - é dedicada ao tratamento que a polícia deve dispensar

aos cidadãos, ou melhor, reporta-se formalmente ao modo como o policial deve agir com

os agressores, com uma multidão desregrada, com esposas ameaçadas, com vítimas de

acidente etc. Contudo, essas preleções – quase sempre estruturadas em um formato

discursivo unilateral e realizadas durante a “ordem unida” – impedem a troca de

experiências e informações sobre o dia-a-dia nas ruas. Restritas, em boa medida, ao

reforço das ferramentas disciplinares e às “notas de instrução” do comando, elas

concedem muito pouco espaço para que os policiais das mais baixas patentes possam

discutir de maneira franca e aberta as questões concretas que informam as pendências, as

dificuldades e as estratégias de intervenção adotadas frente aos problemas identificados

nas rondas.95 Em verdade, os PMs patrulheiros normalmente ouvem silenciosos e “em

forma” as advertências e a divulgação das escalas de serviço.

95
A filosofia comunitária de polícia, que tem se tornado a coqueluche das agências policiais em todo
mundo, procura ofertar uma resposta conseqüente para os dilemas experimentados pelo policial de ponta,
enfatizando a importância da capacidade decisória daqueles profissionais que interagem diretamente com
125

Não é difícil concluir que o policial de ponta, a despeito de sua liberdade discricionária,

experimenta doses dramáticas de insegurança no desempenho de suas atribuições, já que

a realidade do seu trabalho está freqüentemente em conflito com uma ou outra regra

disciplinar estabelecida. Embora essas regras possam não ser relevantes para o episódio

gerenciado, o PM sabe que sua performance será avaliada de acordo com essas mesmas

regras. Deve ele, portanto, evitar, na medida do possível, a sua violação, mesmo que isto

envolva escolher conscientemente um curso de ação inadequado à realidade do problema

enfrentado. Neste cenário, parece bastante razoável (ainda que pouco eficaz) que um PM

decida registrar ou não uma ocorrência muito mais com base no seu desejo de sobreviver

dentro da organização policial militar do que pelos méritos policiais do caso em tela. 96

No ano de 1995, enquanto eu acompanhava as rondas dos PMs comunitários em

Copacabana, pude observar o receio e até mesmo o medo desses jovens policiais em

adotar estratégias alternativas para a resolução dos problemas por eles diagnosticados.

Em diversas situações relativas, por exemplo, à população de rua, os PMs se viam

paralisados pela dúvida, ainda que tivessem concebido formas criativas e competentes de

intervenção. A preocupação desses policiais diante de um problema concreto era sempre

a mesma, e pode ser resumida da seguinte maneira: o oficial superior falou somente sobre

“o que não pode” e não determinou “o que pode” ser feito. Assim, na dúvida sobre o que

se pode fazer, “é melhor não fazer nada” para evitar uma punição futura.

os cidadãos. Ver Trojanowicz e Bucqueroux, 1994; Rico e Salas, 1992; MacLaughlin e Muncie, 1996;
Bayley, 1998.
96
Este tem sido um problema recorrente em vários departamentos de polícia que adotaram traços da
modelagem paramilitar. Ver Bittner (1990); Skolnick e Fyfe (1993); Bayley (1994); Morgan e Newburn
(1997).
126

Tal como foi constatado na realidade das polícias americanas, a disciplina burocrático-

militar compete de forma improdutiva com o controle positivo e profissional das práticas

policiais. Não sendo capaz de fornecer orientações efetivas sobre como agir nas situações

reais, e limitando-se a ser rentável apenas nas atividades intramuros, ela acaba por

restringir a possibilidade de intervenções conseqüentes, encorajando o indesejável - as

transgressões nas ruas – e, em boa parte dos casos, uma forma de atuação eminentemente

reativa, ou melhor, dependente do acionamento pelo serviço emergencial. 97 O que se

assiste no dia-a-dia das atividades ostensivas, particularmente entre os policiais mais

experientes, é o recurso à indisciplina para melhor trabalhar, isto é, a sutil violação dos

regulamentos na expectativa de melhor prestar o serviço policial.

Vários autores observaram que a tensão entre as dinâmicas legais e legítimas de atuação

policial e a rigidez dos regulamentos disciplinares tem motivado o desenvolvimento de

comportamentos dissimulados, altamente teatralizados, sobretudo no universo das mais

baixas patentes que se encontram na linha da obrigação (cf. Reiner, 1992; Bittner, 1990;

Skolnick, 1994; Chan, 1997). O chamado “cinismo policial” é acionado como um tipo de

reação crítica aos dilemas e contradições experimentados dentro das organizações e no

cotidiano das atividades de polícia. Aparentar cumprir as normas, mostrar-se dócil e

afinado com as exigências da conduta disciplinar militar, simular obediência cega aos

princípios que regulam a vida institucional das agências policiais, têm-se apresentado

como uma estratégia racional de sobrevivência no interior das corporações policiais.

Tem-se, portanto, configurado em uma forma habilidosa e informal de conciliar as

97
Segundo os dados fornecidos pelo Comando de Policiamento da Capital - PMERJ, 77,15% das
ocorrências atendidas e notificadas pelo 19o BPM no ano de 1998 - Batalhão que cobre os bairros de
Copacabana e Leme – foram provenientes do Serviço Emergencial 190, caracterizando a natureza tão-
somente reativa do policiamento ofertado na área.
127

demandas do trabalho nas ruas com as exigências da burocracia militar. Uma vez que não

existe uma relação direta entre conhecer as regulamentações e sustentar a aparência de

estar compromissado com elas, a primeira coisa que um jovem policial aprende nos seus

primeiros dias de trabalho nas ruas é que ele deve esquecer tudo que aprendeu na escola

e nos manuais. O efeito imediato do chamado "choque de realidade" traduz-se na atitude

de cinismo entre os policiais. Todo o policial de ponta aprende com os PMs mais antigos

e “cascudos” que “a prática é outra coisa”. Que para sobreviver no interior da organização

policial militar é preciso adquirir uma dose razoável de distanciamento que seja capaz de

fornecer alguma proteção afetiva contra a adesão incondicional ao rigoroso ethos policial

militar. Na administração ordinária da vida policial tem parecido indispensável procurar

equilibrar-se na fronteira entre as pesadas demandas institucionais (internas à força) e as

pressões derivadas da multiplicidade e da fluidez que conformam o trabalho nas ruas.

Assim, é bastante comum observar nas praças uma postura por vezes refratária, marcada

pela ironia sutil e por uma certa indiferença em relação às advertências transmitidas nas

instruções diárias. De posse do seu saber prático, que informa que “a bomba explode

sempre na ponta”, os soldados, cabos e sargentos sabem que para “tirar polícia” de

verdade, de antemão terão não só que produzir alguns arranhões no código disciplinar,

como também procurar descaracterizar as possíveis indisciplinas.

É um fato sociológico trivial que as regras e convenções por si mesmas não fazem

aparecer a realidade que anunciam. Neste sentido, a produção excessiva de regras pouco

relevantes ou estritamente rígidas tende a tornar quase impossível para a thin blue line

realizar o seu trabalho sem rotineiramente violá-las. Os PMs que estão na ponta da linha

se vêem motivados a desvalorizar os procedimentos e a descobrir atalhos, desprezando as

possíveis justificativas para a sua existência. Não resta dúvida de que isto reforça a
128

preocupante e generalizada sensação de que eles estão entregues à sua própria sorte e de

que os oficiais superiores estariam mais interessados em se “proteger” do que em ver os

objetivos da polícia serem realmente alcançados.

Um outro ponto problemático reporta-se ao fato de que a relevância ocupacional

concedida à disciplina burocrático-militar é acrescida da cobrança pública e institucional

por resultados. A pressão exercida interna e externamente sobre agências policiais para

produzir resultados visíveis e mensuráveis contribui em boa medida para a ampliação dos

efeitos perversos derivados da precariedade das regulamentações relativas às atividades

concretas de polícia. Bittner, assim como Skolnick, argumentam que a ênfase sobre o

cumprimento das regulações internas, tomadas em si mesmas, já é suficiente para

desencorajar a elaboração de abordagens cuidadosas nas interações policiais/cidadãos.

Afirmam ainda que, quando esta ênfase aparece combinada com a necessidade sempre

imediata de apresentar resultados, tem-se uma influência extremamente perniciosa sobre

a natureza do trabalho policial (Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Skolnick e Fyfe, 1993,

Punch, 1983,1996). Isto porque o conhecido produtivismo policial naturalmente é

traduzido naqueles aspectos mais apreensíveis e delicados da atividade de polícia, tais

como detenções para averiguação, apreensões, prisões, ocupações etc. Em suma, trata-se

de produtos que alimentam o negócio do sistema criminal e que, ao mesmo tempo,

revestem com alguma materialidade a dimensão pouco tangível da segurança pública.

Observa-se nas organizações policiais que adotaram o modelo militar ou paramilitar duas

formas distintas e independentes de prestação de contas: a disciplina interna, que é

explícita e continuamente auditada, e o tratamento com os cidadãos que, via de regra, é

desprovido de normas e procedimentos claros. Em virtude desse descompasso, parece


129

claro que o balanço positivo na primeira ordem de cobrança motive uma excessiva

flexibilidade na segunda. A freqüência com que isto ocorre no dia-a-dia parece aumentar

proporcionalmente em função da pressão cada vez maior por demonstrações de

produtividade. Neste sentido, não basta que o PM seja apenas um obediente soldado-

burocrata, ele deve ainda “mostrar serviço” contribuindo para a contabilidade das

ocorrências, o que, na prática, tende a significar prisões e flagrantes. 98

Deixando de lado qualquer exagero, os estudos de polícia revelam que há poucas dúvidas

quanto ao fato de que o cumprimento da rígida disciplina burocrático-militar recompensa

as ações policiais desreguladas nas ruas, deslocando invariavelmente o ônus dessa

incongruência para os encontros entre policiais e cidadãos (Skolnick e Fyfe,1993; Bittner,

1990, Kleinig, 1996,1997; Delattre, 1996; Elliston e Feldberg, 1985). As agências

policiais caracterizadas pela fiel reprodução dos expedientes disciplinares do modelo

militar possibilitam, mesmo que sob uma roupagem legalista, que os policiais não

transgridam apenas para realizar “prisões e apreensões", mas também produzam estas

últimas para dissimular suas faltas disciplinares ou suas deficiências técnicas na condução

de uma dada ocorrência. O caso abaixo é bastante ilustrativo deste tipo de situação:

"Um Cabo PM contou-me que na sua época de soldado, teria vivido um episódio
dramático e estressante. Certo dia, quando puxava o trânsito em uma rua
movimentada da cidade, sacou seu revólver e atirou na direção de um automóvel
suspeito cujo motorista não tinha acatado os seus comandos manuais e verbais de
abordagem. Os disparos de sua arma acabaram provocando tumulto e o descontrole
de um outro veículo que atravessava discretamente o cruzamento. Conta que o
referido carro, após rodopiar na pista, parou em cima da calçada e que o condutor
parecia estar desmaiado. Enquanto corria transtornado para socorrer a vítima de sua

98
Um dos problemas graves do produtivismo policial enfrentados por todas as organizações policiais tem
sido a fabricação de ocorrências e a simulação de flagrantes.
130

ação imprudente e equivocada, o policial reprisava o seu grave erro. Durante os


segundos que gastou para chegar até o lugar do acidente, ele imaginava o fim de sua
carreira e se indagava se era possível construir alguma explicação para os seus
superiores e para o “cidadão de bem” que ele havia vitimado. O cabo relatou-me que
a tensão e o desespero vividos nesses intermináveis segundos deram lugar a uma
sensação de alívio quando constatou que a vítima, apenas assustada, era um
“marginal procurado pela polícia” que foi imediatamente detido. Conclui a sua breve
narrativa me dizendo que havia sido, a um só tempo, visitado pelo azar e premiado
pela sorte. A sua impulsividade havia adquirido uma razoável justificativa: tratava-
se de uma ação enérgica de combate ao crime.”

Desta breve estorinha cabe destacar uma importante consideração: a ênfase nos

expedientes disciplinares, em detrimento da elaboração de mecanismos de controle e

monitoramento estruturados a partir de uma concepção de C3IC - comando, controle,

comunicação, inteligência e computação - dificulta, na prática, que os policiais

ultrapassem as esferas de atuação tão-somente reativas e desenhem ações pró-ativas com

autonomia responsável e competência atribuída. A perspectiva de se buscar um controle

eficaz através da limitante disciplina militar tem subvertido o próprio treinamento dos

policiais. Bittner (1990) comenta que, até o início dos anos oitenta, os melhores

programas de instrução policial norte-americanos tinham como propósito primeiro

converter o calouro em um soldado obediente e cumpridor dos regulamentos internos,

mais do que em executores competentes na arte de manter a paz e controlar o crime.

Tratava-se antes de priorizar estratégias capazes de formar profissionais sobre os quais a

organização pudesse exercer controle, do que de capacitar profissionais autônomos e

auto-dirigidos, enfim, policiais qualificados para fazer uso legal e legítimo dos

expedientes discricionários indispensáveis à atuação policial. Em razão disso, a maior

parte da carga horária destes programas era dedicada ao ensino das regulamentações
131

internas dos departamentos de polícia, um tipo de realidade não muito distinta do que

também acontecia nas escolas da polícia militar na mesma época (Idem).

Como se pôde notar, o militarismo à moda americana colaborou para deslocar as

condutas inadequadas para as áreas desreguladas, mais propriamente as relações

polícia/cidadãos. De fato, a suposição de que, com o tempo, essas áreas seriam

incorporadas e normatizadas de forma eficiente não tomou lugar, a despeito dos esforços

de implementação de ferramentas de controle externo e de dispositivos de accountability

(cf. Skolnick e Fyfe, 1993). Isto porque o emprego de métodos realistas de controle do

crime e de preservação da ordem pública mostrou-se profundamente incompatível com o

estilo das regulações correntes da disciplina interna. Segundo os estudiosos, a prática teria

demonstrado o fracasso da tentativa de fazer convergir, em um único sistema de controle,

as formalidades burocráticas militares e os procedimentos que governam o processo

discricionário de manobrar com a dimensão fluida e contingente das ruas (Skolnick e

Fyfe, 1993; Bittner, 1990; Kleinig, 1996,1997; Delattre, 1996; Elliston e Feldberg, 1985).

A ênfase sobre o primeiro recorte tem correspondido, no dia-a-dia, à redução do cuidado

com o segundo. A identificação deste dilema pode ser resumida da seguinte forma: se,

por um lado, cabe ao policial interagir com os cidadãos empregando o “poder de polícia”

com competência profissional e confiança pública, então parece dispensável moldá-lo

como um soldado-burocrata. Por outro lado, se o policial deve ser formado como um

soldado-burocrata, então dele não se poderá esperar que tome decisões profissionais sob

condições de incerteza e risco, sobretudo no vasto e pouco visível campo da prevenção.

As críticas de Skolnick e Fyfe (1993) à “militarização” americana enfatizam essa

incompatibilidade entre a modelagem militar e os níveis de discricionariedade exercidos


132

pelos policiais na linha de frente. Os autores esclarecem que a forma piramidal do modelo

militar teria sido originalmente concebida para estruturar a distribuição gradual da

discricionariedade, concedendo àqueles que se encontram no topo da organização o

exercício mais amplo da autoridade em sintonia, evidentemente, com o amplo espectro

de tomada de decisão exigido do posto ocupado. De fato, no mundo militar, os generais

e demais comandantes são os responsáveis pelas grandes decisões que envolvem

grandes estratégias, e que exigem a mobilização de um número expressivo de pessoas e

meios, assim como a responsabilização pelos cursos de ação escolhidos. 99 Cabe salientar

que não está franqueado ao mundo das praças a deliberação sobre os níveis de preparação

para o combate e mesmo sobre a sua condução.

Ainda que o centro da ação, tanto da força militar quanto da polícia, seja a ameaça e o

emprego da força, esta justificativa, do ponto de vista dos autores mencionados, não é

suficiente para fundamentar a assimilação da burocracia militar pelas agências policiais.

Este modelo certamente é a melhor arquitetura organizacional para as forças combatentes,

uma vez que se mostra capaz de coordenar os esforços de um expressivo número de

pessoas que trabalham coletivamente para resolver conflitos de larga escala como a

guerra. Entretanto, excluindo os eventos de massa, as demonstrações do próprio meio de

força, os distúrbios civis e as situações excepcionais de ocupação territorial e de confronto

com grupos armados, os policiais geralmente trabalham sozinhos ou em dupla, atuando

em um vasto número de conflitos pequenos, isolados e desconectados. Todos os dias,

longe da vista dos oficiais supervisores, os policiais de ponta tomam “decisões de baixa

visibilidade” que têm grandes efeitos sobre a vida e a liberdade das pessoas. Neste exato

99
Para uma discussão sobre as singularidades do campo dos estudos estratégicos e do estado da arte dos
meios de força da defesa, ver Clausewitz (1996), Proença Junior e Diniz (1999).
133

momento, por exemplo, é possível imaginar que os PMs que patrulham o Rio de Janeiro

estão decidindo se multam ou advertem um motorista imprudente; se destroem uma

bagana de maconha ou se encaminham o adolescente infrator; se conduzem à delegacia

um marido agressor; se atiram ou não em uma pessoa emocionalmente transtornada que

ameaça disparar o seu revólver; se dispersam uma rodinha de cerveja na esquina ou se

apenas retiram o bêbado inconveniente; se tentam imobilizar um criminoso que faz uso

de um refém como escudo humano ou se aguardam a chegada do apoio tático; etc.

Diante de tal evidência, creio que é oportuno questionar a pertinência da relação entre as

grandes estratégias do mundo militar real e as atividades policiais ordinárias, tais como

responder a acidentes automobilísticos e realizar os primeiros socorros; conduzir o

tráfego; checar diversos tipos de licenças e documentos; mediar querelas familiares e

interpessoais; resolver disputas entre cidadãos; transportar doentes para o hospital;

conduzir uma criança perdida; escoltar autoridades e intervirem em um crime em

andamento.

Não se pode esquecer que as inúmeras decisões tomadas individualmente pelos policiais

nas ruas, e inscritas no microcosmo social de forma descontínua e pervasiva, ofertam

possibilidades extremamente limitadas de revisão objetiva no ato mesmo de sua

execução. Em princípio, não haveria nada de preocupante com isto se essa miríade de

pequenas e singulares decisões não tivesse um impacto de proporções espetaculares na

vida dos indivíduos e das comunidades. Na maior parte dos casos em que os policiais

tomam decisões e escolhem o curso de ação que consideram mais apropriado, não se têm

relatos precisos e muito menos o recurso remoto e aleatório do videotape – ferramenta

que ajudou a elucidar alguns casos dramáticos de brutalidade policial, como os recentes
134

episódios da Favela Naval em São Paulo e na Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Somente

a posteriori, pode-se determinar se a multa emitida foi bem aplicada, se a detenção ou a

soltura foi adequada, se o tiro disparado feriu gravemente, se o emprego da força estava

justificado técnica e legalmente etc. Note-se que quando os cidadãos se beneficiam do

exercício discricionário dos policiais (por exemplo, quando, em vez de receberem uma

multa, recebem apenas uma advertência), qualquer oportunidade de revisão oficial acerca

da propriedade da decisão policial desaparece no momento mesmo em que os atores

envolvidos na ocorrência abandonam a cena do seu encontro com a polícia.

Cabe salientar que a confusão estabelecida entre as ferramentas de controle e os

dispositivos da disciplina militar é ainda mais perversa nas situações em que a sabedoria

ou a razoabilidade da decisão policial é contestada. Neste nível, salvo raras exceções, a

revisão limita-se à tentativa de capturar o que já se transformou em algo inefável.

Certamente, esta não é uma desfunção sem relevância. A tentativa de circunscrever o

grande espaço discricionário dos PMs das mais baixas patentes pelo recurso prioritário à

disciplina militar não tem atendido sequer às próprias expectativas da força policial.

Regras extremamente rígidas e firmes parecem mais satisfatórias para os trabalhos

mecânicos e pouco reflexivos, sendo, portanto, de utilidade duvidosa para as situações

discricionárias fluidas que constituem o escopo de atuação policial (cf. Muir Jr., 1977).

É evidente que na maioria das agências responsáveis por tratar com emergências, entre

elas as polícias que agregam o componente do uso da força, é absolutamente crucial a

coordenação precisa e o controle direto e imediato de um amplo grupo de pessoas

especializadas, que devem fazer o seu trabalho com o máximo de competência e o mínimo

de hesitação. Sem tal controle e precisão, a capacidade de pronto emprego fica


135

drasticamente reduzida e, por sua vez, a possibilidade de produzir respostas eficazes

torna-se limitada. A natureza imediatista e contingente das ações de polícia ostensiva

demanda expedientes de controle e monitoramento compatíveis com a realidade do

trabalho policial nas ruas. Alguns autores chegam a sustentar que uma concepção

organizacional que priorize a qualificação e o alto nível decisório de seus profissionais

seria mais adequada às agências de polícia (Skolnick e Fyfe, 1993; Skolnick, 1994;

Bittner, 1990). As considerações deste tipo buscam uma aproximação com outras

atividades que acumulam experts, como a medicina e o magistério universitário e cujo

recurso à discricionariedade é também bastante elevado na linha de frente: assim como

os policiais de ponta decidem se devem ou não atirar; são também os médicos e não os

administradores hospitalares que decidem se operam ou medicam; são ainda os

professores e não os decanos e chefes de departamento que aprovam os alunos. Diferente

da estrutura paramilitar, o conhecimento e a habilidade técnica acumulada pelos

profissionais da medicina e da educação são, em boa medida, congruentes com o exercício

da autoridade responsável necessária ao desempenho do seu ofício. Para aqueles

pesquisadores que defendem a assimilação pelas polícias de traços organizacionais

provenientes dessas profissões, uma das principais ferramentas identificadas como capaz

de contribuir para a produção de controle qualificado é, precisamente, a dimensão ética

da atividade policial (Elliston e Feldberg, 1985; Kleinig, 1996,1997; Ohlin e Remington,

1993; Delattre, 1996). Estudos acadêmicos recentes têm-se dedicado a explorar as

correlações positivas entre a instrumentalização dos valores éticos e o exercício da

discricionariedade nos processos decisórios policiais de “baixa visibilidade”. Alguns

opositores a esta perspectiva argumentam que o campo da ética é extremamente subjetivo

e, por sua vez, frouxo para regular o comportamento esperado dos policiais. A premissa

que está por trás desse raciocínio é muito simples: no desempenho de seu trabalho nas
136

ruas os policiais estariam suscetíveis a toda sorte de estímulos atraentes e perversos,

oriundos não apenas do mundo do crime, mas também dos cidadãos e das comunidades.

Para fazer frente à grandiosidade do mal, ou melhor, às inúmeras oportunidades de desvio

de conduta, seria necessário reforçar ainda mais os mecanismos disciplinares e as

conseqüentes ferramentas de punição. Esta é, no mínimo, uma perspectiva curiosa uma

vez que ela anuncia o seu próprio fracasso. Diante da impossibilidade de eliminar o

pecado humano caberia, por antecipação, suspeitar daqueles profissionais aos quais,

paradoxalmente, insistimos em conceder poderes consideráveis sobre a vida dos cidadãos.

É evidente que esta forma de enquadramento não reduz o problema da transgressão e

acaba por funcionar como uma profecia que se autocumpre, exponenciando o universo

dos policiais indisciplinados.

Enfim, guardadas as devidas imprecisões, fica-se com a impressão de que a burocracia

policial militar, em virtude da fragilidade dos seus mecanismos de fiscalização, em vez

de estimular o desenvolvimento de iniciativas pró-ativas por parte dos policiais, mostra

mais o seu vigor pela implementação de sanções e pelo reforço indesejado das áreas

invisíveis do trabalho policial. De uma forma paradoxal, os PMs costumam ser orientados

a produzir comportamentos positivos por intermédio de uma visão negativa das regras

estabelecidas. Resulta daí que a lista do que “não se pode fazer” tende a ser sempre

superior ao inventário de procedimentos positivos que atenda às demandas reais do

trabalho policial, orientando de forma pragmática sobre “o que” , “porque”, “como”,

“onde” e “quando” fazer.


137

6. “O que foi que eu fiz”: entre a culpa e a responsabilidade

“Na PM a motivação para trabalhar é a punição”.


(Oficial PM, com 12 anos de serviços prestados à PMERJ)

“O PM não tem responsabilidade, tem culpa. Tudo que acontece na sociedade é culpa do PM”.
(Cabo PM, com 9 anos de serviços prestados à PMERJ)

“O PM não tem direito, tem obrigação”.


(Sargento PM, com 16 anos de serviços prestados à PMERJ)

Durante uma das minhas visitas à Escola Superior da Polícia Militar (ESPM), em Niterói,

fui convidada a provar da comida servida no novo rancho recentemente inaugurado. Com

o apoio entusiasmado e “faminto” dos meus colegas do Grupo de Estudos Estratégicos –

COPPE/UFRJ - , aceitei de imediato a cortesia, pois além de também querer experimentar

a famosa “ração” servida na escola, o espaço informal do almoço consistia uma ótima

oportunidade para seguir discutindo com os vários oficiais PMs ali presentes - de uma

forma mais descontraída, é claro - a perspectiva de uma administração estratégica da

ordem pública e o papel a ser desempenhado pelas Polícias Militares. Durante a

distribuição das pessoas à mesa, acabei me sentando ao lado de um simpático e experiente

oficial, com quem já havia entabulado um divertido papo sobre as "encarnações" e demais

brincadeiras que aconteciam entre os cadetes nos seus idos tempos de aluno-oficial.

Contava-me, animado, as inúmeras vezes em que foi escolhido como “o príncipe das

festas de debutantes” e de como a sua condição de “pé de valsa” e o seu comportamento

extrovertido causavam ciúmes nos colegas de turma. Entre o vaivém dos copos e talheres

e o burburinho das animadas conversas paralelas, o espirituoso oficial decidiu narrar-me

a sua orgulhosa trajetória dentro da corporação, reprisando um dos dias mais importantes

de sua carreira policial. Naquele dia, meu confidente foi encarregado de cumprir uma

importante missão externa. Havia sido escalado para ajudar a organizar uma grande
138

operação especial de escolta para um chefe de Estado, que permaneceria no Rio de Janeiro

por uns dois dias. Enquanto cumpria suas inúmeras atribuições, deslocando-se entre

várias OPMs do Comando de Policiamento da Capital, a Secretaria de Segurança Pública

e o Comando Geral da PMERJ tentavam exaustivamente contatá-lo, logrando êxito quase

ao final do expediente, quando o oficial, com outros policiais superiores, inspecionava as

instalações do aeroporto internacional. A mensagem telefônica foi rápida e concisa:

"Major, retorne imediatamente ao QG e apresente-se ao comandante!" Os minutos que se

seguiram até a sua apresentação à cúpula da PMERJ foram descritos como momentos

silenciosos, carregados de excessiva tensão e de muita ansiedade. Relatou-me que durante

o trajeto do aeroporto até o centro da cidade, o tempo parecia caminhar propositalmente

de forma lenta. Uma frase insistia em martelar a sua cabeça, criando eco e aumentando a

sensação de angústia: “O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” Conta-me, com um

tom narrativo agora mais dramático, que tentava inutilmente se lembrar de alguma tarefa

não cumprida, de uma possível não observância às normas disciplinares, do esquecimento

de algum detalhe crucial no cumprimento da missão atribuída, etc. Mas nada parecia

iluminar a sua mente que não fosse a torturante e kafkaniana idéia fixa de receber uma

repreensão por algo que nem ele mesmo sabia ou conseguia lembrar. A esta altura da

estória, face ao clima de suspense criado pelo meu interlocutor, eu, já bastante impaciente,

indaguei: “E aí, o que aconteceu?” Com um ar próprio de quem conta uma piada, o oficial,

gargalhando, concluiu enfim a sua breve saga: lá chegando, foi festivamente comunicado

pelo comandante de que, em virtude do reconhecimento valoroso dos seus serviços

prestados à corporação, a partir daquela data ele passaria a ocupar uma posição mais

prestigiosa dentro da força policial.


139

Tem sido um lugar comum dos estudos sociológicos sobre as organizações policiais

questionar a produtividade da ênfase excessivamente punitiva do modelo paramilitar.

Muitos têm sido os problemas identificados como resultantes da rigidez dos regulamentos

disciplinares a que todos os membros da força policial estão sujeitos. Os próprios PMs,

particularmente aqueles que se encontram na linha da obrigação, isto é, os soldados, cabos

e sargentos, explicitam, sempre que possível, as limitações e os constrangimentos que

lhes são impostos no dia-a-dia de suas vidas. Máximas como “o PM trabalha para não ser

preso” e “até o bandido tem mais direitos humanos do que o PM” visitam de forma

preocupante e recorrente as conversas horizontais entre as mais baixas patentes. Também

correm pelos quartéis, as inúmeras fábulas sobre os casos exemplares de “detenção”,

“prisão” e “exclusão a bem da disciplina” policial militar - episódios que costumam

normalmente ser publicados nos Boletins Internos da força.

Mesmo que as punições disciplinares não ocorram com a freqüência com que são

veiculadas internamente, e que a suposta arbitrariedade de suas aplicações não possua

uma devida correspondência na prática, a sua constante invocação, assim como a

possibilidade sempre iminente de sua utilização, parecem suficientes para configurar uma

gramática pedagógica por demais opressiva. O artigo 6 do atual Regulamento Disciplinar

da PMERJ (RDPM), define a disciplina policial militar desejada como “a rigorosa

observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições,

traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos

componentes do organismo policial militar”, incluindo os inativos que já se desligaram

da força policial. Orientada para os “altos interesses da ação educativa da coletividade e

[para] a elevação moral da tropa” a disciplina militar promete, a princípio, estar a serviço

do fortalecimento dos princípios da hierarquia, do “decoro da classe”, do “pundonor


140

policial militar”, da “honra pessoal” dos integrantes, procurando incentivar no interior da

“família policial militar” o exercício da civilidade, do respeito, da deferência, da

camaradagem, da cortesia e da consideração entre os seus membros.

De acordo com este projeto, o comportamento do policial militar deve se pautar pelas

seguintes exigências institucionais: a) correção de atitudes; b) obediência pronta às

ordens dos superiores hierárquicos; c) dedicação integral ao serviço; d) colaboração

espontânea à disciplina coletiva e à eficiência da Instituição; e) consciência das

responsabilidades; e f) rigorosa observação das prescrições regulamentares. O não

cumprimento destas determinações configura uma “transgressão disciplinar” que, como

esclarece o próprio RDPM, reporta-se a qualquer violação dos deveres e obrigações

previstas pelas normas e outras disposições internas à força que não constituam crimes.

Dito de outra maneira, as “transgressões disciplinares” reportam-se às atitudes

insubordinadas que afetam a vida institucional da corporação, mas que não

necessariamente se configuram, do ponto de vista da justiça comum, em atos ilegais ou

criminosos praticados pelos policiais.

Conforme já foi mencionado, o Anexo I do atual RDPM ocupa-se de “especificar e

classificar” as diversas ações qualificadas como faltas disciplinares. A “Relação das

Transgressões” inclui um total de 125 insubordinações que podem ser, grosso modo,

tipificadas como transgressões relacionadas i) à conduta policial militar no interior da

corporação; ii) às atividades de policiamento; e iii) à vida civil e ao convívio social do

PM. Para efeito de ilustração, considero oportuno mencionar algumas delas:

Transgressões relativas à conduta policial militar no interior da organização:


 Concorrer para a discórdia ou desarmonia e/ou cultivar inimizade entre camaradas.
 Deixar de punir transgressor da disciplina.
 Não cumprir ordem estabelecida.
141

 Comparecer o policial militar a qualquer solenidade, festividade ou reunião social, com uniforme diferente
do marcado.
 Fumar em lugar ou ocasiões onde isso seja vedado, ou quando se dirigir a superior.
 Deixar, quando estiver sentado, de oferecer seu lugar a superior, ressalvadas as exceções prescritas no
Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas .
 Usar, quando uniformizado, barba, cabelos, bigode ou costeletas excessivamente compridos ou exagerados,
contrariando as disposições a respeito.
 Usar, quando uniformizada, cabelos de cor diferente do natural ou peruca, sem permissão da autoridade
competente.
Transgressões relativas às atividades de policiamento:
 Abandonar o serviço para o qual tenha sido designado.
 Portar a Praça arma regulamentar sem estar de serviço ou sem ordem para tal.
 Portar a Praça arma não regulamentar sem permissão por escrito da autoridade competente.
 Disparar arma por imprudência ou negligência.
 Usar de violência desnecessária no ato de efetuar prisão.
Transgressões relativas à vida civil e ao convívio social:
 Contrair dívidas ou assumir compromisso superior às suas possibilidades, comprometendo o bom nome da
classe.
 Não atender à obrigação de dar assistência à sua família ou dependentes legalmente constituídos.
 Esquivar-se a satisfazer compromissos de ordem moral ou pecuniária que houver assumido.
 Ter pouco cuidado com o asseio próprio ou coletivo, em qualquer circunstância.
 Portar-se sem compostura em lugar público.
 Desrespeitar em público as convenções sociais.
 Conversar ou fazer ruído em ocasião, lugares ou horas impróprias.
 Freqüentar lugares incompatíveis com o seu nível social e o decoro da classe.
 Embriagar-se ou induzir outrem à embriaguez, embora tal estado não tenha sido constatado por médico.

Parece evidente que a educação militar voltada para a internalização e o reforço da

“disciplina consciente” guarda a ambição de se fazer sentir em todas as esferas de

sociabilidade do policial, procurando antecipar-se e normatizando de forma meticulosa

tudo o que “não se pode fazer”. Isto se traduz, é claro, em uma rígida camisa de força

cujo ápice é a insolúvel tensão entre a exigida uniformidade da conduta militar - em

benefício da classe - e as esferas privadas de liberdade e ação individuais. De fato, esta

empresa pedagógica totalizadora pretende deixar pouco espaço subjetivo de manobra para

aqueles que optaram pela carreira policial militar. Não se pode esquecer que, entre as

formas de punição para as transgressões disciplinares – que, em sua maioria, é importante

insistir, não caracterizam práticas delituosas -, estão incluídas as privações de liberdade,

que podem chegar até a 30 dias de reclusão para todas as patentes. 100 O recurso ao castigo

100
Segundo o Regulamento Disciplinar da PMERJ, aprovado pelo Decreto n o. 6.579, de 5 de março de
1983, as punições, obedecendo o julgamento da transgressão cometida, seguem a seguinte ordem crescente
de gravidade: I) advertência; II) repreensão; III) detenção; IV) prisão e prisão em separado; e V)
licenciamento e exclusão a bem da disciplina.
142

da prisão, que em casos mais greves vem acompanhada do total isolamento, mesmo que

empregado de uma forma racional, justa e parcimoniosa, apresenta-se no imaginário

policial como uma ameaça latente e dispersa pela atmosfera institucional da PM,

operando simbolicamente como uma espécie de dedo de Deus sempre apontado para os

policiais. 101

Um aspecto regularmente ressaltado em defesa da pertinência da disciplina militar

aplicada à força policial ostensiva, reporta-se a sua eficácia como um expediente de

contenção dos desvios policiais praticados contra os cidadãos. A idéia de que os

dispositivos disciplinares – artifícios que os próprios oficiais superiores da PM

reconhecem que são excessivos – consiste em um tipo de remédio amargo, mas

necessário, para os problemas crônicos comuns a todas as polícias, parece não resistir à

demonstração empírica dos seus resultados terapêuticos nas diversas agências policiais

que fazem uso da modelagem paramilitar (Skolnick e Fyfe, 1993; Bittner, 1990). No

nosso caso, essas ferramentas sequer contemplam, de forma satisfatória, as tarefas reais

de policiamento. Como pode ser observado na figura a seguir, apenas 23% das

transgressões previstas no RDPM preocupam-se com o controle das atividades relativas

à polícia ostensiva propriamente dita. Note-se, ainda, que 56% delas dizem respeito ao

que parece ser a grande preocupação do Regulamento Disciplinar - a realidade intramuros

da corporação policial militar.

101
Este tipo de ambiência pôde ser observado entre os policiais que participaram do programa de
policiamento comunitário em Copacabana. Ver Musumeci (1996).
143

Uma vez aventada a possibilidade de que os mecanismos disciplinares de educação e

correição podem não estar atendendo satisfatoriamente às finalidades para as quais foram

implementados, resta comentar sobre os custos derivados da sua adoção, isto é, sobre os

seus efeitos indesejáveis.

É importante ressaltar que o apego institucional exagerado aos ritos militares como

estratégia pedagógica aplicada à força ostensiva contribui para a internalizar no efetivo

policial – sobretudo nas patentes inferiores que estão mais expostas às sanções

disciplinares - uma concepção de ordem social mais rigorosa e, por vezes, mais intolerante

do que as várias concepções de ordem adotadas pelas comunidades. A multiplicação e o

reforço das rígidas regulações internas, em boa parte dissociadas da realidade do trabalho

policial, tendem a motivar os agentes de ponta a exigirem dos cidadãos os padrões

militares de comportamento. A transferência individual, silenciosa e ressentida, para as

ruas, dos princípios e normas que regulam as suas vidas na caserna, como a uniformidade

de conduta, a obediência cega, etc., não só amplia as oportunidades de encontros violentos

com a população, como também compromete o indispensável profissionalismo na


144

administração da autoridade policial no contato com os cidadãos. Nas ruas, não são

poucas as situações preventivas e dissuasivas, de baixo potencial ofensivo e quase sempre

invisíveis, que acabam envolvendo o emprego desnecessário da força e terminam sendo

interpretadas pelos PMs como “desacato à autoridade policial”. 102 Imersos em uma

espécie de posição desvantajosa, tanto na caserna quanto nas ruas, os policiais que fazem

o patrulhamento, sempre que encontram uma oportunidade para falar do seu trabalho,

reclamam da “incivilidade”, do “desrespeito”, do “excesso de liberdade” e da “falta de

educação” dos cidadãos que parecem “nunca enxergar o lado do policial”. Ora acometidos

por uma passividade reativa, ora estimulados a se engajar em uma “guerra contra o crime”

que eles sabem inexistente, os PMs experimentam a frustração cotidiana de se perceberem

vulneráveis em um dos mais importantes aspectos do trabalho ostensivo de polícia que é

a negociação individualizada da autoridade e, por sua vez, a oferta de alternativas

legítimas e legais de obediência.

De certa maneira, a preocupação institucional exacerbada em mapear as possibilidades

de manifestações arredias e de condutas propriamente indisciplinadas deixa entrever um

olhar suspeitoso e desconfiado da corporação para com aqueles que ingressam nas suas

fileiras. Reproduzindo, ainda que de forma inadvertida, a arcaica visão de um Estado

temeroso de suas próprias ferramentas de controle, a organização policial militar parece

duvidar do emprego qualificado do “poder de polícia” pelos seus integrantes, criando

paradoxalmente brechas para o florescimento do exercício inaceitável do “poder da

polícia”. 103 A crença incondicional na capacidade normativa dos regulamentos produz o

102
Cabe ressaltar que a maior parte dos casos de emprego inadequado da força está inscrita no universo das
interações de baixa visibilidade, particularmente os episódios em que foram utilizados outros gradientes de
força que não a arma de fogo.
103
Para uma discussão sobre os fundamentos jurídicos do poder de polícia ver Lazzarini (1987).
145

efeito ilusório de que o estrito cumprimento do que foi estabelecido formalmente em lei

seria capaz de substituir a contingência, o acaso e o imponderável, restringindo ao limite

as esferas de tomada de decisão policial. Em verdade, a ingênua ambição de minimizar

os espaços individuais de escolha pelo reforço desmesurado dos expedientes disciplinares

acaba por contradizer e mesmo desautorizar o recurso à discrição e à autoexecutoriedade

- elementos essenciais da ação de polícia que, concretamente, só podem ser exercidos

pelos indivíduos.

É neste tipo de cenário que se pode assistir às indesejáveis manifestações de receio e

insegurança por parte dos policiais de ponta no que se refere à gestão ordinária da

autoridade a eles delegada, sobretudo nas interações difusas com os cidadãos. A

valorização da disciplina militar em detrimento de um projeto pedagógico consistente,

capaz de instruir os policiais sobre os processos decisórios em ambientes de incerteza e

risco, tende a restringir o exercício da autonomia responsável e conseqüente, abrindo

espaço para o aparecimento da sensação coletiva de culpa: “tudo de ruim que acontece

nesta cidade é culpa do PM, foi o PM que falhou”. A percepção cristalizada entre as

praças de que toda ação policial consiste antecipadamente em um erro, contribui ainda

mais para restringir o escopo da criatividade individual àquelas situações em que a polícia

é chamada a se pronunciar. No dia-a-dia da atividade ostensiva, os PMs se vêem, ao

mesmo tempo, envolvidos em uma profusão de demandas descontínuas e imediatas por

ordem pública e pouco municiados intelectualmente para administrá-las e ofertar decisões

satisfatórias. Justificativas do tipo “até parece que a gente não quer fazer nada” revelam

o tom da frustração com as restrições à dimensão reflexiva do seu trabalho. Uma parte

expressiva destes “executivos de quarteirão” questiona o “mecanicismo” ou a visão


146

“robocop” da rotina policial e procura resistir à paralisia decisória expressa, em boa

medida, nas intervenções tão-somente reativas.

Como também não poderia deixar de ser, o olhar suspeitoso e punitivo projetado sobre

os policiais tem como contrapartida a administração cotidiana do segredo como um

recurso de sociabilidade, ou melhor, como uma estratégia de sobrevivência no interior da

força. As redes de autoproteção, o reforço dos laços horizontais de solidariedade, ajudam

a compreender o medo da punição e o isolamento institucional experimentados pelas mais

baixas patentes. É possível estimar que uma parte expressiva das preciosas informações

qualitativas sobre pessoas, problemas, eventos e locais, que poderiam orientar políticas

efetivas de prevenção, e que normalmente são mapeadas pelos policiais em suas rondas,

não é irrigada para dentro da corporação e sequer se converte em registros e notificações.

Na prática, esse acervo de informações circula informalmente entre os pares e os

companheiros de guarnição como um tipo de troca fraternal de favores profissionais. Cabe

assinalar que a cumplicidade, a fidelidade e a unidade de grupo produzidas pelas ilhas de

irmandade da silenciosa estética do segredo não estão necessariamente a serviço da

produção de estruturas paralelas de poder ou da ocultação conspiratória de práticas

corruptas e violentas, ainda que estes arranjos possam se beneficiar dos vínculos

invisíveis que a experimentação coletiva do silêncio produz. Trata-se, antes, de recursos

sociológicos comuns àqueles atores sociais que se percebem excluídos ou à margem das

esferas privilegiadas de interação dentro do seu próprio meio social ou da sociedade mais

ampla (Cf. Simmel, 1983).104 De todo modo, a lógica do segredo favorece a reverberação

104
A lógica do segredo revela propriedades interessantes. Do ponto de vista sociológico, ela permite que
os indivíduos que a vivenciam se dissolvam em outros grupos ao mesmo tempo em que afirmam a sua
identidade frente a eles. Em verdade, o segredo nem precisa objetivamente existir. Importa que,
experimentado como tal, ele anuncia que alguma coisa está sendo partilhada, fazendo aparecer uma espécie
de comunhão invisível dos seus sujeitos, um tipo de irmandade inclusiva, sem unidade fixa de lugar. Para
uma discussão sobre a estética do presente na vida urbana contemporânea ver: Maffesoli, 1984 e 1987.
147

de ruídos e a irregularidade dos fluxos do sistema de comunicação da PM, fragilizando

ainda mais os seus mecanismos de controle. Por outro lado, ela cria uma barreira protetora

contra a aplicação do regulamento disciplinar, possibilitando o emprego informal nas ruas

de intervenções policiais alternativas aos procedimentos formais.

Por fim, cabe ainda mencionar que os efeitos de um Regulamento Disciplinar

extremamente rígido também se fazem notar no modo mesmo como os PMs da thin blue

line recortam o seu lugar no mercado da cidadania. Na contabilidade pragmática dos seus

direitos e deveres, esses policiais sentem-se, via de regra, os “filhos feios” do Estado, que

teriam sido esquecidos pela sua própria corporação. No mundo das praças, a associação

entre cidadania e direitos humanos é corriqueira e tem se apresentado como uma realidade

nebulosa, indefinida e até “prejudicial” aos policiais.

É certo que este tipo de percepção encontrou solo fértil nas distorções e nos equívocos

produzidos pelas recentes políticas de segurança pública adotadas no Estado do Rio.

Contudo, ela também tem se alimentado na própria cultura institucional da PM, que

prioriza e cobra as obrigações militares do policial em detrimento dos seus direitos civis.

O sentimento de que “o sacrifício só é cobrado do PM” é, de forma perversa, reforçado

nas ruas. O contato diário com o mundo social além dos muros dos quartéis põe em

evidência o contraste entre a inflexível conduta militar e a multiplicidade de inserções

possíveis na vida civil. Para os PMs que se vêem confinados ao universo dos deveres e

das obrigações, o descompasso entre essas realidades é reiterado a cada interação.

Olhando “pelo lado do PM” parece não ser muito difícil concluir, mesmo que

indevidamente, que “o cidadão já tem direito até demais”.


148
149

PARTE II - O FIM DA INOCÊNCIA: ELEMENTOS PARA


UMA CULTURA POLICIAL DAS RUAS

1. “Na prática é outra coisa”: a singularidade do saber policial de rua

“Vagabundo diz que ele tira diploma do crime na cadeia. Para o policial o diploma está na rua. A rua é a
escola do policial. Tudo que você quiser ver está ali, é só olhar. Eu aprendi ter olho técnico na rua. O que
eu já vi acho que não dá nem para contar.”
(Sargento PM, com 17 anos de serviços prestados à PMERJ)

“Ir para a rua? Demorou. É um papo meio sinistro. Olha aí, tem que saber olhar, tem que ter sangue frio
para segurar. A cabeça tem que estar ligada, funcionando bem. Isso eu aprendi com os mais velhos. Para
tirar polícia para valer você tem que agüentar, tem que segurar, senão você cai fora, desiste de ser policial.
Senão qualquer vagabundo te dá uma rasteira, é só bobear.”
(Cabo PM, com 13 anos de serviços prestados à PMERJ)

Era o seu primeiro dia de trabalho como soldado PM nas ruas da cidade. Ele já tinha

estado patrulhando com os policiais do 6oBPM e do 23oBPM, durante o curso no Centro

de Formação e Aperfeiçoamento de Praças - CFAP. Mas, como fez questão de me dizer,

“estágio não conta, porque você não está ali todo dia para valer”. Meu jovem confidente

ia sair para uma ronda convencional com uma guarnição motorizada composta por mais

dois policiais. À primeira vista, a missão era simples. A papeleta de serviço informava

somente que se tratava de “preservar a ordem pública”, cumprindo o plano de patrulha

estabelecido para um trecho específico de Copacabana. Contudo, havia algo de

excepcional naquilo que parecia já ser uma rotina para os demais PMs. “Era o seu

primeiro dia”, o momento ritual do seu batismo de verdade e ele, sob o olhar gazeteiro e

acolhedor de seus experientes companheiros, ainda se ocupava de reprisar o juramento

feito no dia da formatura e de passar mentalmente em revista tudo que havia aprendido

de polícia na escola.
150

Faço aqui um breve parênteses nesta curta estória, pois meu emocionado interlocutor

acaba de interromper o fluxo de sua narrativa para confessar-me, um tanto encabulado,

que, logo que entrou para a PMERJ, tinha também se deixado iludir pela fantasia dos

filmes e seriados de TV que, como hoje ele próprio reconhece, transmitem uma imagem

completamente distante da realidade do trabalho policial. Reproduzindo literalmente o

conselho de um experiente oficial PM, relata-me convencido de que o trabalho ostensivo

de polícia não admite “vedetes” e que as fitas policiais, indiferentes a esta desencantadora

constatação, mostram de forma equivocada um “mocinho” que sempre “atua sozinho” e

“sem planejamento”; que “nunca obedece a lei” e que, por tudo isso, se torna “um grande

herói”, sendo ainda “premiado com a mulher mais bonita da estória”.

Apesar das brincadeiras e da “pagação de terror” que seus colegas “cascudos” faziam no

intuito de descontraí-lo, nosso soldado PM, naquele dia, dizia-se ansioso e muito

preocupado em fazer a coisa certa, em “tirar polícia sem vacilo". Lembra-se, aos risos,

que seus calejados companheiros insistiam em lhe dizer: “bola da vez, não adianta tanta

teoria, a prática é outra coisa”. Uma coisa, ao menos, o dedicado “bicho” sabia: era

preciso “ler as ruas”, pois só aprendendo a reconhecer o que se passa nas ruas ele poderia

adquirir o ambicionado “olho técnico” e o “faro” policial.

Já circulando com a viatura, meu interlocutor diz ter experimentado a novidade de

construir em ato o seletivo processo de observação. Mas, o que observar? O que deveria

constituir o seu campo de vigilância? Para onde olhar? Onde começa e onde termina a

ordem pública cuja preservação lhe foi atribuída? Tudo parecia saltar aos seus olhos como

algo diferente e preocupante. Tudo, “tudo mesmo”, poderia naturalmente ser convertido

em objeto de cuidadosa suspeita e atenção. Enfim, qualquer coisa parecia destacar-se de


151

forma singular da paisagem urbana, agora sob vigília, como os avisos luminosos das

boates, o barulho de uma sirene, o entra e sai das pessoas nos bares, a família de mendigos

embaixo de uma marquise, o cachorro com “pelada”, o homem correndo pela calçada, a

rodinha de jovens na esquina, a jovem mulher (ou um travesti?) ajeitando eroticamente a

sua cinta-liga, o carro parado no acostamento com a luz interna acesa, o casal gesticulando

de forma desmedida em um ponto de ônibus, a freada brusca em um cruzamento, a sala

de um prédio comercial acesa na madrugada, o bêbado rodopiando com um grande

embrulho nas mãos etc. Tudo parecia merecer o enquadramento do seu olhar alerta e em

prontidão. Pergunto ao meu paciente soldado PM como é imaginar a cidade e suas

personagens da janela de uma radiopatrulha? Eram muitas as suas preocupações: afinar

os ouvidos para discernir os “sons das ruas”, seus ruídos e silêncios; reconhecer e decifrar

os mais distintos comportamentos e linguagens; capturar os mais inesperados

movimentos; educar o olhar para ver “o que está por trás das coisas”, procurando sempre

identificar o que antes estava presente e ele não via. Certamente, meu interlocutor tinha

muitas dúvidas e uma perturbadora certeza: “alguma coisa está acontecendo agora em

algum lugar; como saber e como antecipar?” Enquanto nosso marinheiro de primeira

viagem se via afogado pelos inúmeros estímulos saídos das ruas, e se esforçava cada vez

mais por identificar algo “anormal” em um ambiente que ele mesmo teria começado a

estranhar, seus companheiros de ronda pareciam fazer o patrulhamento displicentes,

conversando animadamente sobre coisas alheias ao trabalho policial. E, para a sua

perplexidade, foi no exato momento em que o bate-papo sobre a última roda de pagode

por eles organizada seguia acalorado que os PMs mais velhos pararam rapidamente a

viatura e abordaram dois rapazes “brancos e boa pinta” que andavam discretamente pela

calçada. A surpresa do nosso neófito não foi pequena: os rapazes estavam armados e

portavam uma razoável quantidade de papelotes de cocaína. Após encerrar a ocorrência


152

na delegacia, sua indagação não foi outra: “como vocês sabiam disso?” A resposta obtida

de seus companheiros foi para ele tão inesperada quanto o seu début com um flagrante:

“Ah! Isso vem naturalmente, você vai sentir, é só olhar” responderam os colegas de

guarnição. Disse-me que só conseguiu compreender inteiramente o que lhe foi ensinado

naquele dia depois que havia adquirido alguma experiência de patrulhamento. Concluiu

sua estória dizendo-me que para ser um bom policial nunca se deve parar de aprender a

fazer polícia com as ruas.

Do rico e inesgotável mundo policial tem algo que particularmente intriga a nossa

imaginação. Refiro-me a um tipo de conhecimento peculiar esculpido nas ruas das cidades

e que tem, de longa data, inspirado a sensibilidade de escritores, roteiristas, cineastas e

pesquisadores. As ficções, as novelas e os filmes policiais retiram a sua matéria-prima

desse curioso saber, ora enunciado em uma versão romântica e dramática, ora

caricaturado através de ações heróicas e espetaculares.

De fato, esse parece ser um tipo de conhecimento que, nascido da trivialidade da vida

ordinária e da irredutibilidade do acaso e da incerteza, se presta a toda sorte de

encantamentos e fabulações. Sua obviedade desafia, seu pragmatismo seduz, sua crueza

assusta, seu sentimentalismo surpreende e sua nostalgia comove. O contato com uma

espécie de “conhecer” saído da urgência dos fatos, que se confunde mesmo com o fazer

e o agir, nos faz pensar que os policiais que patrulham as ruas nas nossas cidades sabem

de coisas que não sabemos ou que não queremos perceber. Seu conhecimento é

constituído aqui na esquina, dia após dia convivendo, de uma forma explícita e sem

mediação, com a dimensão volátil, cômica, dissimulada, humilhante, violenta, confusa,

vulnerável, trágica e freqüentemente patética daquilo que chamamos de humano.


153

Algumas narrativas policiais falam da experimentação de um conhecimento elaborado a

partir do “pior de nós mesmos”, isto é, reportam-se a um saber que se constitui como uma

testemunha ocular daquelas manifestações que preferimos privadas ou que ambicionamos

sempre que possível esconder.105 Trata-se de uma forma de recortar o mundo estruturada

e aberta às sucessivas colisões com o “lado desagradável da vida”. Um tipo de saber em

estado de alerta, sempre “preparado para o pior” dos mundos possíveis. Um PM, que há

muito “tira polícia” no trânsito, penetra profundamente em uma psique humana contraída

e tensa. Um PM que interveio em cenas de assassinato, que preservou inúmeras vezes

locais de homicídios e que socorreu vítimas de crimes sexuais nos diz coisas que Nelson

Rodrigues talvez só tenha imaginado. O que os PMs sabem não está ordenado em um

formato científico, não aparece quantificável ou traduzido nas estatísticas, não pode ser

provado com números, tabelas e gráficos. Este saber atrelado ao episódico, constrangido

pelas contingências, parece resistir à padronização. Ele está ali em cada evento, na

memória prodigiosa de cada policial. Ele é parte indissociável da trajetória de vida e das

experiências individuais vividas por um personagem que deve aprender a observar - de

um lugar em movimento (a ronda), de um lugar vigilante - os “outros” personagens que

desenham o cenário urbano. Este tipo de saber descobre-se atento ao menor indício de

“anormalidade”; ele está à procura do que se encontra “fora do lugar”, ele se põe em

perseguição a tudo aquilo que pareça, à primeira vista, “incorreto”, “indevido” e

“inadequado”:

“Quando você é polícia de verdade, você está sempre querendo saber o que está
acontecendo ao seu redor. Isto está entranhado dentro da gente. Eu faço isso até na
minha folga. Quando eu vejo eu estou fazendo isso até quando eu levo a minha

105
São muitas as publicações e as narrativas autobiográficas que procuram desvendar o mundo da polícia
a partir dos depoimentos de policiais sobre o seu dia-a-dia nas ruas. Ver MacDonald (1992); Baker (1986);
Fletch (1992).
154

mulher para passear. Se você vê um policial mudando de calçada, sentando na


cadeira detrás do ônibus, procurando uma parede para se encostar, escolhendo uma
mesa do fundo da churrascaria, pode ter certeza que ele está procurando alguma coisa
errada, ele está tentando se antecipar, aí ele procura uma posição para controlar
melhor a situação. Eu tenho o meu jeito que é ficar sacando o olhar das pessoas.”
(Sargento PM, com 23 anos de serviços prestados à PMERJ)

Os “mundos” que os PMs visitam e que constituem o seu próprio mundo policial são

difíceis de descrever, são duros de explicar e, em boa medida, são desagradáveis de

assistir e de freqüentar por muito tempo. É preciso “ter estômago” para socorrer um

homem anônimo caído na calçada sufocando-se em seu próprio vômito. É preciso segurar

a sensação de náusea diante de cenas nas quais se encontram indivíduos mutilados, corpos

baleados feito peneiras e cadáveres em decomposição.

Os PMs privam de um saber especial e doloroso que, em boa parte, costuma ser partilhado

somente com outros policiais e, às vezes, com seus familiares. As reservas em expor esse

saber a outras pessoas – mesmo as mais íntimas - resulta, em parte, da propositada

percepção de que esse conhecimento choca, expõe as feridas e desencanta; ele mostra “a

nua e crua realidade” dos atos. Em certa medida, ele desumaniza aqueles que, de algum

modo, dele partilham...

“Eu estava fazendo patrulhamento na praça do Lido e eu vi a noiva do meu melhor


amigo de infância ali com outras garotas de programa. Eles estavam de casamento
marcado. Lá onde a gente mora ela sempre se comportou direito, sempre foi honesta.
Todo mundo gosta dela, e para todo mundo ela trabalha à noite como acompanhante
de idoso aqui em Copacabana. Ela não é analfabeta não, ela têm o segundo grau
completo e um curso técnico de enfermagem. Eu não pude acreditar no que eu estava
vendo. O meu amigo foi o primeiro namorado dela. Quando eu saí do trabalho, eu
fui falar com ela. Ela me disse que ela só estava fazendo isso porque ela queria ajudar
o meu amigo a terminar de construir a casa deles. Ela chorou muito e pediu para eu
155

não contar para ninguém porque ela ia parar com essa vida. Até hoje eu não falei
nada, mas eu fiquei na minha vigiando ela. Eu não vi mais ela por ali e as outras
garotas falaram que ela tinha sumido. Depois que eu virei polícia eu comecei a ver
que todo mundo tem um lado que quer esconder.”
(Soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)

“Eu não disse para a minha mulher que eu precisei matar um vagabundo. Eu e meu
parceiro surpreendemos um elemento assaltando as pessoas no ponto de ônibus. O
bandido empreendeu fuga e nós fizemos o cerco e enquadramos ele. Ai, eu gritei
para o camarada: Se entrega porque você dançou! É brincadeira, você acredita que o
marginal sozinho, se protegendo atrás do poste, cresceu para cima da gente. Ele
atirava e gritava: Seus putos, seus PMs de merda! Meu parceiro acertou o joelho do
vagabundo e ele caiu atirando na gente. O cara não parava de atirar. Aí, eu mandei
bala nele. Ele morreu tentando me acertar. Eu fiquei muito alterado, eu fiquei com
isso na cabeça: eu matei, eu matei. Eu fui para casa nervoso. A minha mulher
perguntou o que tinha acontecido e eu só falei que tinha me desentendido no serviço.
Aí eu pensei: se eu contar ela vai ficar pensando “meu marido matou um homem,
meu marido matou um ser humano. Meu marido pode matar alguém de novo”. Eu
passei muito tempo tendo um mesmo sonho: o vagabundo ia morrendo e ia
apontando a arma para mim.”
(Sargento PM, com 16 anos de serviços prestados à PMERJ)

Na rotina, os policiais socializam de forma extremamente seletiva o seu saber das ruas.

As situações reais de tensão e perigo, mesmo que estilizadas e abrandadas, são geralmente

consideradas pesadas e impróprias ao convívio pessoal. Como contar que quase ao final

do expediente sua viatura foi alvejada por indivíduos não identificados? Como contar que

um antigo companheiro de guarnição foi ferido mortalmente em uma operação especial?

“Nesse tempo todo que eu estou na PM eu acho que eu já passei por tudo. Eu já
ajudei a fazer parto, eu e meus companheiros conseguimos escapar de uma
emboscada organizada por um marginal que eu tinha prendido. Eu já tive que levar
156

muita gente para o hospital. Eu já salvei a vida de muita gente. Nesse tempo todo
que eu tirei polícia, três companheiros de guarnição foram mortos pela bandidagem.
Eu estava ali na hora. O último morava perto de mim, era um grande companheiro.
Nós não voltamos para casa juntos. Eu fiquei pensando: o que eu vou dizer para a
mulher dele, para o filhinho dele? Um dia desses aí, eu estava na minha folga e eu
impedi um assalto em um restaurante. Eles eram três e renderam o gerente. Eu estava
no ponto de ônibus e um senhor gritou por socorro. Eu consegui prender eles. Eu não
ganhei premiação porque eu não matei ninguém. Sabe o que eu ganhei? Eu ganhei
uma úlcera, eu tomo remédio para hipertensão, até doença de pele por causa dos
nervos eu já tive. Eu não ganhei premiação porque eu não matei. Mas não tem nada
não, eu estou com a minha consciência tranqüila, minha consciência está limpa com
Cristo.”
(Sargento PM, com 19 anos de serviços prestados à PMERJ)

De fato, o lado desagradável da vida não se configura como um tema de bate-papo

aprazível, causando sempre a imediata impressão de que o seu enunciador possui um

apelo mórbido e escatológico. Diferente dos cidadãos comuns, os policiais aprendem, na

prática, a represar certas reações emotivas como nojo, náusea, vertigem, mal-estar etc.

Por outro lado, normalmente poupam o seu interlocutor conversando em camadas sobre

o dia-a-dia do seu trabalho. Descrever um indivíduo com ataque epiléptico, descrever

alguém com uma faca cravada na cabeça a caminho do hospital ou relatar um

estrangulamento, eventos que fazem parte da rotina policial, requer a introdução de filtros

morais e pedágios argumentativos.

Como se pode deduzir, a vida recortada pelo saber policial de fato não costuma estar

fielmente retratada nos filmes policiais e muito menos nos romances e seriados de TV. A

sordidez do seu relato parece não poder ser traduzida em outra linguagem que não aquela

dos fatos reais. Os policiais percebem isso e normalmente ironizam o que é mostrado do

mundo deles. Ainda que guardem uma especial predileção pelos chamados “filmes de
157

ação”, os seus comentários convergem para o mesmo ponto: “não tem nada a ver com a

realidade, é uma grande ilusão”. Uma visão de mundo reconhecida intimamente como

fantasiosa, mas que os PMs da vida real gostariam, em certa medida, de “copiar”.

Transvestir a realidade de fantasia não apenas assimilando a falsa regularidade das ações

policiais destemidas, mas sobretudo adquirindo os brinquedos tecnológicos de polícia

como as pistolas automáticas com sinalizador a laser, os coletes à prova de bala

sofisticados, as viaturas feitas sob medida para o trabalho policial, os sensores individuais,

os sistemas avançados de comunicação e identificação que são, é evidente,

exaustivamente explorados nas fitas policiais.

O que o conhecimento conquistado através dos diversos tipos de policiamento “tirados”

faz com cada PM individualmente é parte integrante do processo afetivo e singular de sua

aquisição. Na prática, mostra-se difícil e perturbador para um policial o esforço cognitivo

de separar, por exemplo, os sentimentos que afloram durante a intervenção em um caso

de exploração sexual infantil ou um acidente fatal envolvendo crianças, das emoções

referidas aos seus próprios filhos...

Durante a minha última visita à Brigada Militar do Rio Grande do Sul, eu saí para jantar

com dois simpáticos e inteligentes oficiais brigadianos, em uma agradável chopperia. O

tema de nossa conversa inicial girava em torno dos países e dos costumes que cada um

de nós tinha conhecido e das futuras viagens que gostaríamos de fazer. Mas a discussão

sobre o mundo policial era inevitável. Nós sabíamos que em algum momento ela

aconteceria. Estimulado por minha curiosidade, um dois oficiais resolve me contar aquele

que foi um dos dias mais dramáticos de sua vida no trabalho. Ele havia recebido um

chamado que informava a ocorrência de um foco de incêndio em uma vila extremamente


158

miserável nos arredores de Porto Alegre. Lá chegando com a sua guarnição, constatou

que o incêndio se alastrava com muita velocidade pelos barracos construídos de madeira

e papelão. Imediatamente os policiais e bombeiros brigadianos ali presentes começaram

o trabalho de resgate e salvamento das vítimas. Conta-me que o que via era hediondo:

pessoas em estado de choque, outras completamente descaracterizadas pelas graves

queimaduras etc. Homens, mulheres e crianças gritavam de dor e de desespero. Seu relato

seguia recheado de detalhes comoventes e assustadores. Diz-me que o fogo já tinha

tomado conta de tudo e que havia pouco a fazer para tentar salvar os poucos bens que

aquelas famílias possuíam. Enquanto seguiam no dramático processo de resgate, uma

mulher visivelmente transtornada grita por socorro e agarra o meu confidente, dizendo

que seus dois filhos ainda se encontravam no interior do barraco. Imediatamente toda a

guarnição dirigiu os seus esforços para salvar as crianças. Fala emocionado que apesar de

todo o empenho e mobilização não foi possível “salvar a vida daqueles dois inocentes”.

Enquanto tentavam entrar no barraco, este já inteiramente incandescente começou a se

dissolver feito “um saco de papel”. Neste momento eles ouviam os gemidos das crianças

e, impotentes, observavam chorando os seus vultos em chama no meio dos destroços. Um

dos policiais entra em estado de choque, começa a gritar e vai ao encontro das chamas

sendo impedido pelo seu companheiro. A mãe e os demais familiares desesperados gritam

pelo nome das crianças. Revela-me que “todos viram as crianças pegando fogo e não

puderam fazer nada”. “Todos nós ouvimos os gemidos delas até o mais completo

silêncio”. Os familiares revoltados e, sob o impacto da tragédia, não paravam de acusar

os policiais de terem deixado os seus filhos morrerem. Conta-me que foi emocionalmente

doloroso segurar em seus braços aqueles corpos carbonizados, transfigurados pelo fogo e

pelo carvão. Fala-me que esta foi uma cena que os policiais ali presentes jamais

esqueceram. Encerra o seu relato dizendo-me que ao chegar em casa, abraçou sua mulher
159

e seus filhos – que tinham a mesma idade das vítimas – e permaneceu ali chorando e

rezando por um longo tempo.

Enquanto esse episódio infeliz ia sendo contado, pude observar que as pessoas que

estavam em mesas muito próximas à nossa, começaram a mudar o seu comportamento.

Apesar da discrição de nossa conversa, aqueles que conseguiam ouvi-la iam perdendo a

descontração, o paladar e o apetite. Uma moça que comia uma pizza começou a ter

reações de náusea e se encaminhou ao banheiro. Após esse triste relato fomos

espontaneamente compelidos a conversar sobre “coisas mais amenas”, como os últimos

shows a que tínhamos assistido.

Experimentações tão intensas como a que foi acima mencionada podem levar à lapidação

da perspicácia e do discernimento metódico – insumos indispensáveis ao trabalho policial

de ponta -, mas também produzem marcas profundas que se manifestam tanto pelas

demonstrações de compaixão, quanto pela explicitação de uma aparente frieza

emocionalmente protetora. Policiais de diversas polícias do mundo falam dos estados

emocionais abruptos que vivenciam no dia-a-dia das ruas, e de como a vivência recorrente

de situações dramáticas e muitas delas fatais, conduzem a uma espécie de

“embrutecimento” pessoal. 106


Assim como os psiquiatras e os médicos legistas

acostumam-se com os eventos decrépitos, os policiais acostumam-se com as mazelas

humanas e diante delas desenvolvem mecanismos de defesa emocional. A aquisição de

uma percepção ácida da realidade revela-se, por exemplo, no humor policial amargo que,

para aqueles que estão distantes da rotina de polícia, aparece, à primeira vista, como mais

uma variação horripilante das piadas do famoso “humor negro”.

106
Uma seleta de depoimentos de policiais ingleses encontra-se em: Graef (1989).
160

As mais distintas realidades visitadas pelos policiais durante a sua jornada de trabalho

conformam um saber que procura se equilibrar nos extremos, que se capacita a lidar com

o desproporcional, com o disparate, enfim, com toda sorte de episódios despropositados.

Um PM, com algum tempo de polícia ostensiva, logo aprende que as situações que

parecem ser menos perigosas são precisamente aquelas que explodem com um alto grau

de violência. Os conflitos domésticos e interpessoais, que a princípio não envolvem atores

propriamente delinqüentes e dinâmicas criminosas profissionais, trazem uma alta carga

emocional, suficiente para multiplicar as oportunidades reais de risco para os litigantes e

para o próprio policial que foi chamado a atuar.

Outra lição aprendida nas ruas é aquela que informa que os mais trágicos resultados

também estão vinculados a “motivos fúteis”, pequenos incidentes, e eventos não

intencionais como, por exemplo, os acidentes de trânsito que quase sempre produzem

muitas vítimas. A constatação de que as coisas da vida seguem cursos mais complexos

do que a lógica simplória que determina uma falsa proporcionalidade entre causas e

efeitos - algo do tipo eventos pequenos geram pequenos problemas - contribui para a

corroboração de um saber que se curva às evidências porque ele deve se apresentar como

um guia, um tipo de ferramenta capaz de manobrar com a potência do acaso, capaz de

instrumentalizar ações seguras em ambientes de incerteza e risco. Esse é um saber que

precisa buscar um meio termo entre o exercício capilar da autoridade e a experimentação

do perigo, mesmo que na sua pura disponibilidade.

O saber construído pelos policiais, mergulhado na idiossincrasia das circunstâncias, das

situações voláteis e fugidias, prima pela sua adaptabilidade ou pela sua concessão ao
161

improviso. No cumprimento de sua escala de trabalho, o policial ostensivo ou o PM da

ordem pública é uma espécie de “faz-tudo”, um tipo de especialista que se generaliza nas

singularidades de cada ocorrência atendida. Ele faz o papel de parteiro, domador de

animais domésticos foragidos, mensageiro, assistente social, acompanhante, conciliador,

balcão de informações, psicólogo, motorista, conselheiro sentimental, educador e, por

tudo isso, agente da lei.

Mas, um conhecimento que se abre às possibilidades, que “dá o seu jeito” para responder

a qualquer demanda proveniente do cidadão, se constitui em um tipo de acervo que

adquire uma marca pessoal, que aparece como algo próprio, individualizado. Esse saber

confunde-se, em boa medida, com a trajetória individual de cada PM ou de cada

“executivo de quarteirão”. Por um lado, o percurso institucional pelos diversos tipos de

polícia “tiradas” (operações especiais, choque, radiopatrulha, trânsito, policiamento

ostensivo convencional, polícia montada etc.) e, por outro, o patrimônio de experiências

particulares construído a cada caso individualmente atendido, conformam um estoque de

percepções e “macetes” que estão distribuídos de forma heterogênea e particular entre os

policiais.

Há um outro ponto que favorece a personalização desse saber tecido nas ruas. Refiro-me

ao fato de que a prestação dos serviços ostensivos de polícia desloca o seu balcão de

atendimento para o PM que está na esquina ou circulando em uma viatura. O atendimento,

conforme já mencionei, caracteriza-se como um serviço ambulante e individualizado. Na

Polícia Militar, tem-se, portanto, uma espécie de “franquia ocupacional” que é exercida

por cada policial alocado nas atividades-fim. O enraizamento da autoridade pública na

vida cotidiana das pessoas - que condiciona, em boa medida, a própria natureza ostensiva
162

de uma polícia da ordem pública - impõe este tipo de constrangimento à realidade do

trabalho policial de ponta. Sob a presente condição, as informações (esculpidas no varejo

das interações com os cidadãos) e a instrumentalização do seu emprego (que se traduz em

habilidades acionadas de acordo com a demanda) são usualmente percebidas e

valorizadas como derivadas do “estilo pessoal de trabalho” de cada PM. Neste sentido, a

“forma de trabalhar” nas ruas, ainda que faça uso dos expedientes de preparo técnico

aprendido nas escolas, adquire, na prática, uma roupagem personalizada que leva em

consideração as características individuais como o “jeito do policial” ou a sua

personalidade, a sua vivência pessoal, o seu interesse, a sua disposição para o trabalho,

os seus talentos, os seus humores e mesmo a sua afinidade com o "tipo de polícia tirado".

A flexibilidade deste tipo de saber tão individualizado permite, por exemplo, que

alternativas díspares de ação possam simultaneamente conviver sem que umas se

imponham às outras ou sejam formuladas como superiores a priori. De fato, os PMs com

os quais eu tive contato, não se ocupam de advogar a propriedade e a utilidade universal

de seus próprios modos de atuação, e muito menos se mostram refratários a outras formas

alternativas de intervenção. Imbuídos de um realismo tirado das ruas, eles simplesmente

procuram aproximar a sua cota de conhecimentos formais e informais dos fragmentos de

realidade descontínuos e fugazes em que eles são chamados a intervir, como um assalto

em uma rua movimentada da cidade ou uma "briga de ponto" entre camelôs. 107 Porque os

PMs estão todos os dias nas ruas lidando com um elenco de situações supostamente

idênticas e, ao mesmo tempo, irredutíveis entre si, eles sabem que os fatores

107
A necessidade de uma maior sinergia entre o conhecimento formal e o saber informal dos policiais tem-
se apresentado como uma questão relevante mesmo para aquelas polícias que já conseguiram avanços
significativos no seu processo de formação e instrução, como é o caso das polícias inglesas e americanas.
Ver Bittner (1990); Morgan e Newburn (1997).
163

circunstanciais específicos de cada episódio enfrentado devem ser levados em conta, sob

pena de se multiplicar a oportunidade de efeitos indesejáveis na sua interação com os

cidadãos.

É evidente que esse tipo de visão não pretende negar que os procedimentos formais e

universais do tipo “de acordo com o manual” têm a sua utilidade e produzem resultados

conseqüentes. O que esse saber prático anuncia é que a negligência dos elementos

circunstanciais, em favor da aplicação exclusiva de princípios gerais, impõe graves

limitações à eficácia da ação escolhida. Face à complexidade da demanda pelos seus

serviços e a pressão dos acontecimentos, todo PM aprende rapidamente que as regras

universais de trabalho, quando desencarnadas das experiências concretas de

policiamento, tendem a ser de pouca serventia. Parece claro, portanto, que um saber de

ocasião, construído e recapitulado a cada atendimento, apresente uma forte propensão

para superestimar uma leitura particularizante e contextual dos eventos e dos seus cursos.

Talvez por isso, muito freqüentemente ouvimos um PM ponderar que, apesar da

existência de um certo procedimento geral, em “situações particulares” a norma acaba

sendo suspensa por conta das circunstâncias que conformaram uma dada ocorrência. Uma

vez que esse tipo de contextualização é freqüente na retórica policial de rua, fica

suficientemente claro que a norma opera como uma referência para a ação. Os desvios e

as divergências em relação à sua execução não são, portanto, exceções e nem muito

menos acidentes de percurso. Na rua, se “faz tudo diferente” porque a própria aplicação

da norma parece sempre envolver a sua necessária adequação aos valorizados fatores

circunstanciais. Dito de outra maneira, o "mundo da lei" precisa ser interpretado e, por

sua vez, ajustado as diversas realidades com compõem as "leis do mundo". Mesmo que

fosse possível imaginar que todo o pessoal da linha de frente da PM pudesse ser
164

regularmente treinado e reciclado dentro da doutrina e das técnicas de policiamento

adotadas, ainda assim persistiria o desafio colocado pelos fatores circunstanciais que

conformam uma dada ocorrência policial. Isso porque o curso de ação escolhido para

controlar um certo evento, criminoso ou não, resulta de um processo reflexivo que

minimamente pondera, de um lado, as alternativas de ação tecnicamente ofertadas pelo

modelo de abordagem policial adotado, a validação legal dessas mesmas alternativas

explicitadas em termos de procedimentos aceitos e, de outro, toda sorte de ruídos

provenientes da realidade como a percepção do risco embutido na ocorrência atendida e

nas iniciativas disponíveis, os diversos níveis de desvantagem tática presentes (por

exemplo, a geometria de engajamento, a curva de fadiga e estresse, o eixo de

aproximação, a dinâmica de armamento, a inferioridade numérica e o fator surpresa), os

graus de incerteza e o próprio encadeamento da ocorrência etc. Toda essa reflexão, é

claro, realiza-se em um curtíssimo intervalo de tempo ou seja, no tempo real da própria

ação.

Penso que é importante ressaltar que um saber generoso e atento a tudo aquilo que se

mostra contingente ou circunstancial não está assentado no pressuposto simplório e

redutor de que “a prática nega a teoria” ou vice-versa. Em verdade, esse saber é uma

espécie de híbrido reflexivo cujo desenvolvimento resulta do encontro cognitivo entre o

conhecimento formal adquirido pelo PM nos seus períodos de formação e as exigências

impostas pela vida prática, entre elas a instrumentalização desse mesmo conhecimento.

Quando os PMs dizem que nos seus primeiros dias de rua logo aprendem a lição "esqueça

o tempo na escola", isto não significa a negação da importância de uma metodologia

voltada para o trabalho de polícia. Reporta-se tão-somente ao que eles chamam de

“choque de realidade” e que se traduz em uma crítica velada ao modelo de "instrução"


165

praticado, que parece dialogar muito pouco com as situações concretas que aparecem nas

ruas. A ênfase excessiva sobre “o que não se pode fazer” deixa a cargo das habilidades

individuais do PM de ponta a configuração sobre o "que fazer", o "porque fazer", o "como

fazer" , o “quando fazer" e o “onde fazer” em um ambiente de intervenção no qual a

volatilidade, a emergência e até a aleatoriedade conformam as situações a serem

enfrentadas. Nesse sentido, questionar na prática o conhecimento formal adquirido na

escola não é negar a pertinência de ações tecnicamente orientadas. Ao contrário, é

evidenciar a necessidade concreta de uma sintonia entre o que é formalmente ensinado, a

metodologia desse ensino e os saberes necessários não apenas para sobreviver dentro da

organização policial militar, mas também para efetuar o trabalho de polícia de forma atual

e conseqüente.108

O que esse saber prático e informal construído pelos PMs faz é, em certa medida, tentar

recobrir as lacunas de formação, que vão sendo identificadas no decorrer da experiência

profissional. Esta é uma forma de saber que vai se experimentando, que vai sendo testada

a cada nova e específica situação e que procura sempre conciliar os procedimentos gerais

com as dinâmicas e os fluxos da realidade cotidiana. Esse saber, como qualquer outro,

não se furta à incorporação das normas e técnicas aprendidas. Entretanto, não se pode

perder de vista que ele precisa ser efetivamente útil. Na retórica policial de rua, o

“método” de trabalho saído desse saber não aparece na fala dos PMs como um artefato

dissociado do ato mesmo de agir. Inversamente, o "método" utilizado apresenta-se

dissolvido na condução do próprio evento, sendo parte integrante do fazer policial; um

108
Tal como ocorre em outros meios de força policiais, o predomínio da visão normativo-legal da polícia,
da qual deriva o papel institucional das agências policiais, obscurece, em boa medida, a realidade da
execução desse mesmo papel.
166

"fazer" aberto tanto as idiossincrasias próprias de cada "ocorrência assumida" quanto a

individualidade de cada policial.

Talvez se possa dizer que se trata de um saber-ato ou de um saber obreiro constrangido

ao seu constante pronto-emprego, voltado para produzir respostas imediatas para os

problemas também imediatos enfrentados no dia-a-dia. Este é um saber “presentista” que

é chamado a atuar na emergência dos eventos, no agora e já das pessoas, das coisas e das

situações. A profundidade da experimentação do presente, do que é iminente e inadiável

para os “outros”, posta para qualquer PM de ponta, contribui para um recorte singular da

cronologia dos acontecimentos. Parece indispensável a esse saber ser capaz de lidar com

a intensidade dos indivíduos, dos atos e dos fatos sobre os quais é chamado a intervir. O

desafio de administrar a intensidade não se dá apenas em relação à ameaça e ao emprego

do uso da força; ele se mostra necessário em todos os aspectos que compõem a atividade

ostensiva de polícia, particularmente no processo de tomada de decisão policial e nos

encontros irregulares com os cidadãos. Inscrito, em boa medida, na urgência prescrita por

aqueles que mobilizam os serviços da polícia da ordem pública, esse saber deve se mostrar

apto a buscar soluções de contorno para as descontinuidades próprias de cada

acontecimento enfrentado.

Um tipo de saber invadido pelas exigências do presente, das circunstâncias, da

intensidade dos episódios vivenciados etc., parece não poder prescindir do afetivo, ou

melhor, de tudo aquilo que classificamos na vida ordinária como “emocional” e

"intuitivo". A fenomenologia da ação cotidiana, por vezes refratária à voz de comando da

racionalidade, reconhece o mundo das emoções como um importante recurso que deve

estar a seu serviço.


167

“Quando o lado racional falha e o lado militar falha também, a gente apela para a
emoção, a gente se apega à intuição que todo o polícia tem”. (Cabo PM, com 9 anos
de serviços prestados à PMERJ).

Na rotina ostensiva, os policiais experimentam de forma densa e irregular estados afetivos

díspares: caminha-se do mais monótono tédio ao mais agudo estágio de alerta e

apreensão, assistem-se desde reações emocionais contidas até agudas manifestações de

desespero. Nesse tipo de ocupação profissional, que lida principalmente com situações

que envolvem todo tipo de sentimento, como ódio, indignação, fúria, desprezo e medo,

é imprescindível alguma economia do afeto que se demonstre capaz de promover o

autocontrole e a administração dos estados emocionais dos outros atores envolvidos.

Espera-se, por exemplo, que o policial – um profissional qualificado para intervir em

ambientes de incerteza e risco – mostre-se habilitado a agir de uma forma superior ao

descontrole emocional típico das pessoas comuns em situações de crise. Na prática, isso

se traduz, por exemplo, em “não aceitar provocações”, ou melhor, em “não entrar no jogo

para não perder a razão”.

A “intuição policial” – expediente afetivo extremamente valorizado nas ruas – ora se

apresenta como um impulso decisivo rumo à tomada de decisão, ora como uma poderosa

justificativa face à ação empreendida e seus possíveis resultados. Diante de situações

pouco evidentes ou de difícil categorização, os pressentimentos ou o sexto sentido do

policial assumem um papel decisivo no curso dos eventos.

Nota-se que os PMs se sentem mais confortáveis e seguros naquelas situações cuja

atuação se constrói em oposição a um criminoso claramente configurado como tal, ainda


168

que nestas ocorrências a possibilidade de resistência violenta esteja colocada desde o seu

início. De fato, os policiais militares mostram-se mais confiantes em seus próprios

métodos e performances naqueles episódios que são previamente identificados como um

crime em andamento. Nestas ocorrências, “a polícia sabe o que a espera”, porque policiais

conseguem minimamente presumir o comportamento típico dos seus costumeiros

oponentes: “de arma na mão eles [os criminosos] são todos valentões; é só desarmar que

eles se comportam como adolescentes rebeldes”.

O mesmo não procede quando se trata daquelas situações conflituosas, indefinidas do

ponto de vista penal, e que envolvem, sobretudo, querelas entre pessoas comuns ou

“cidadãos de bem”. A ambigüidade e, mesmo, o andamento desses conflitos interativos

dificulta a classificação prévia das partes envolvidas em termos de “agressores” e

“vítimas”. É, por excelência, neste último grupo de ocorrências que a dupla exigência de

legalidade e legitimidade da ação policial e, por conseguinte, a discricionariedade policial

são postas em questão. No mundo dos conflitos domésticos e interpessoais, o chamado

“fator surpresa”, que se faz presente tanto no comportamento dos envolvidos, quanto no

desenrolar da ocorrência, adquire, do ponto de vista policial, proporções extremamente

elevadas, dificultando a elaboração antecipada de padrões uniformes de conduta esperada

e, por sua vez, o acionamento de reações policiais típicas. Isto se traduz em um problema

real da ação de polícia: enquanto nas colisões com os delinqüentes a preocupação maior

do PM é a possibilidade de inação (“fiz menos do que devia e podia”), nas interações com

os “cidadãos ordeiros” a sua questão é a possibilidade do excesso de iniciativa (“fiz mais

do que devia e podia”). Esse é, certamente, um dos clássicos dilemas morais vividos no

dia-a-dia pelos policiais, cujas repercussões são igualmente complexas e problemáticas.

É precisamente no último cenário mencionado que a intuição policial é chamada a


169

contribuir de forma decisiva não apenas para reduzir a insegurança quanto à forma de

intervenção adequada, mas também para justificar o procedimento utilizado frente a um

futuro questionamento da decisão policial adotada. Diante da precariedade das instruções

relativas às técnicas de gestão de crise e de mediação de conflitos, os PMs apelam

intuitivamente para o que eles interpretam como sendo o amplo e nem sempre harmônico

universo do “bom senso”.

Um outro aspecto interessante do saber policial de rua é a sua comunhão, ou melhor, são

os seus planos de contigüidade com outros saberes que orientam certas personagens que

vivem das ruas ou estão freqüentemente nas ruas das cidades. O conhecimento de área

desenvolvido sobretudo pelas figuras que transitam na noite, como os boêmios, os

porteiros, as prostitutas, os travestis, a população de rua, os jornaleiros, os taxistas etc.,

aproxima-se bastante daquele elaborado pelos PMs. O mapeamento da territorialidade

urbana, dos seus fluxos, das suas personagens, dos seus códigos informais, das suas regras

de tolerância e convivência faz parte do empreendimento daqueles que redefinem a cidade

através de suas inserções, e que disputam os seus espaços, inscrevendo neles a sua própria

forma de estar no mundo. De certa maneira, esses personagens estão – como os policiais

– atentos ao seu próprio “pedaço”, observando e “vigiando” a cidade cada um ao seu

modo. Todos eles, invariavelmente, sabem o que acontece ao seu redor, quem entra e

quem sai dos seus territórios, “quem está fazendo o quê” e “o que está procurando”. 109

É fato que esse acervo de informações tem sido tradicionalmente cobiçado pelos PMs que

se encontram na linha da obrigação. As interações amistosas com os atores que estão nas

109
Para uma apreciação acerca dos códigos de tolerância e da construção de uma sintaxe ampliada das
ruas ver: Silva, 1995.
170

ruas e as “colaborações forçadas com a autoridade policial” extraídas dos indivíduos que

se encontram no limiar da clandestinidade (como os flanelinhas, os camelôs e os

apontadores do bicho), que são colocados à margem da vida social (como os “sem-teto”

e os mendigos) ou que apresentam uma identidade social estigmatizada (como os “jovens

drogados” e os “profissionais do sexo”) constituem uma regra não escrita do trabalho

cotidiano de polícia. 110 Isso porque o sentido de observação e de vigília está posto, em

algum nível, para todos aqueles que ingressam de uma forma ilegal, clandestina ou

informal na gramática ampliada das ruas. Creio ser possível dizer que a horda de urbanitas

que vaga pela cidade e conquista os seus “pontos” realiza, no limite do seu próprio

território, uma variante do controle social difuso empreendido profissionalmente pela PM

em todo o espaço urbano. Assim, os distintos discursos falados, as diversas cidades

recortadas por cada tribo ou grupo urbano são, via de regra, visitados pelos PMs durante

as suas rondas. O trabalho ostensivo de preservar a ordem pública compele os policiais a

cruzarem as fronteiras simbólicas, a visitarem outros mundos morais e a minimamente

decifrarem outras linguagens citadinas.

Mas a afinidade do saber policial com esses outros saberes informais põe em evidência

uma importante característica comum a todos eles. Refiro-me à baixa visibilidade das

sintaxes produzidas nas ruas. O estoque de informações qualitativas construídas nas

esquinas e calçadas da cidade pelos PMs, e pelo “povo das ruas”, configura um tipo de

conhecimento silencioso e inaudito, objeto de emprego e circulação restrita entre aqueles

que, de alguma forma, perderam a sua inocência experimentando e decifrando as derivas

110
Sobre os obstáculos e as facilidades encontradas pelos PMs do programa de policiamento comunitário
no trabalho de confecção de parcerias de ponta, ver Musumeci (1996).
171

da cidade. Ele resulta das dinâmicas de interação e observação de atores cujos discursos

normalmente não são ouvidos ou não se transformam em agenda política.

Para alguns estudiosos de polícia, uma das razões pelas quais o processo discricionário

de tomada de decisão – um dos elementos mais sensíveis e relevantes do trabalho de

polícia ostensiva – sofre de pouca visibilidade, reporta-se à evidência de que ele se centra

principalmente em torno da vida de pessoas cujas vozes contam muito pouco no fórum

da opinião pública.111 De fato, é extremamente raro que um PM tome alguma decisão que

afete as condições de vida dos membros das classes média e alta. Na rotina do trabalho

ostensivo, a polícia da ordem pública mobiliza naturalmente os seus esforços para a

administração dos crimes, conflitos e desordens ocorridos nos espaços públicos. Por conta

disso, os segmentos sociais mais bem posicionados no mercado da cidadania, que

normalmente dispõem de outros recursos estratégicos além da polícia, costumam

experimentar a sua interferência, ou melhor, a sua presença contínua sobretudo na forma

do controle do tráfego, nos conflitos e acidentes de trânsito. Contudo, para o resto dos

cidadãos comuns – em particular, os pobres e a classe média baixa - o policial se destaca

como uma personagem investida de uma grande importância e de um expressivo poder

de intervenção. O que um PM faz ou deixa de fazer altera de forma mais direta e

substantiva as suas vidas. Os atendimentos assistenciais (que respondem por uma parcela

significativa das ocorrências registradas pela PM na cidade e Estado do Rio de Janeiro,

nos últimos quinze anos), as atividades informais de mediação de conflitos e de resolução

de litígios civis e as atuações em episódios propriamente criminais têm envolvido

111
Para um discussão sobre a dimensão política dos processos decisórios policiais e seus impactos na vida
dos cidadãos comuns ver, Bittner (1990); Skolnick (1994); Muir Jr. (1977).
172

sistematicamente os segmentos sociais menos favorecidos que, via de regra, utilizam de

uma forma mais universal os serviços ofertados pela polícia.

Há ainda uma outra marca distintiva desse saber que se mostra afim e interessado nos

outros saberes tecidos na vida ordinária. As informações, as técnicas e as atitudes que

configuram o patrimônio intelectual dos PMs designados para o trabalho de rua, são o

produto do apego desmedido à minúcia, elas resultam de uma espécie de obsessão pelo

pormenor. O saber confeccionado pelos “executivos da esquina” pode ser apresentado

como um saber detalhista que se ocupa, até as últimas conseqüências, dos mais

desapercebidos detalhes. Um traço físico – qualquer um – adquire um significativa

importância para o PM da blue line que diariamente interage com os inúmeros anônimos

que compõem a massa urbana. Um bigode, uma voz, um cheiro, uma cicatriz, um cabelo

pintado, uns óculos com lentes azuis, uma pantomima, um cacoete etc. fazem parte do

escopo de atenção de um tipo de saber que não só personaliza quem o detém, mas que

também procura individualizar, até o limite, as pessoas sobre as quais debruça a sua

vigilante e suspeitosa observação. Salvo exceções, todo policial acha que já conheceu,

conhece ou conhecerá aquelas pessoas que porventura se tornam objeto do seu olhar

vigilante. Expressões do tipo “eu acho que te conheço”, “eu já te vi em algum lugar” ou

“você parece com (ou está me lembrando) alguém que eu conheço” fazem parte da típica

sociabilidade policial.

Não se trata de um "conhecimento de fato” tal como definido pelos cânones científicos,

mas de um "conhecimento dos fatos"; um tipo de saber empirista sensivelmente

compromissado com as dimensões mais irredutíveis das experiências por ele passadas em

revista. Esta é, certamente, uma forma de apreensão do mundo que necessita de uma
173

memória prodigiosa para armazenar uma coleção de pessoas, coisas e situações já

mapeadas. As estórias contadas pelos PMs são invariavelmente narradas de uma forma

muito precisa e descrevem, com uma enorme riqueza de detalhes, os indivíduos, os seus

nomes e vulgos, os locais, os objetos, as horas, a “mecânica dos eventos” etc. Este é um

saber que prima pela oralidade. Quando rompido o receio de comentar sobre o seu próprio

meio, os policiais abandonam o usual comportamento lacônico e monossilábico e

desandam a falar animados, sempre em grande profusão, sobre o que sabem, o que viram

e o que participaram. É preciso insistir, os eventos e seus mais discretos efeitos são

dissecados com sutilezas consideráveis. Em adição a isso, os PMs costumam ter

mentalmente mapeados as biroscas, os motéis, as boates, escolas e outros locais públicos

de seu setor; e isto de tal modo que eles organizam e reconhecem, em um simples relance,

se o que está ao seu redor se encontra ou não dentro da “normalidade” desejada.

É claro que o conhecimento factual das áreas de patrulhamento, mesmo que

suficientemente discriminado, não encompassa mais do uma fração ou um recorte da

realidade visitada. Trata-se, portanto, de um olhar entre tantos outros olhares que

capturam a vida cotidiana, ainda que o pragmático “olho técnico policial” guarde a

pretensão do controle efetivo dos territórios físicos e simbólicos que compõem o seu

campo de observação.

De todo modo, o que parece pertinente para este saber, produzido no calor dos

acontecimentos, não é o desejo de alcançar uma compreensão teórica e abstrata, mas a

acumulação cada vez maior de informações que sejam passíveis de classificação e que

possam vir a ser fundamentalmente úteis para a ação. O conhecimento factual da área de

patrulhamento opera como um poderoso esquema de interpretação. Através de analogias


174

e extrapolações, o PM procura conectar aquilo que ainda se apresenta como desconhecido

ou “suspeito” com as informações já mapeadas e classificadas. Por esse percurso

cognitivo, os “executivos de quarteirão” estão sempre em condição de reduzir a variedade

de possibilidades de compreensão abertas pela infinidade de detalhes levantados a um

conjunto finito de chaves interpretativas que se mostrem capazes de seguir orientando o

seu campo de vigilância e a sua forma de atuação.

Guardadas as devidas precauções, pode-se dizer que o saber produzido pelos policiais de

ponta preocupa-se em possuir um bom domínio etnográfico do campo de observação a

que ele, por ora, se dedica. Não muito diferente do que fazem os antropólogos sociais em

seus trabalhos de campo (realizados quase sempre dentro de um período de tempo

limitado), os PMs, em razão do seu ofício, encontram-se constantemente “suspeitando”

dos fenômenos humanos, realizando “observações participantes” e, em muitos casos,

propiciando “participações observantes”. De uma forma ininterrupta, os PMs estão dia

após dia cobrindo a sua área, convivendo com os seus “índios” e tomando decisões que

alteram negativa ou positivamente o curso de suas vidas. 112

A proximidade existente entre o saber policial e o conhecimento etnográfico é também

evidenciada no modo pelo qual a informação primária é valorizada e trabalhada. Ambas

as formas de ordenamento do real, preocupam-se em construir e empregar tipificações

sem, contudo, sacrificar as singularidades, ou melhor, as variações individuais

encontradas no universo observado. Neste modo de enquadramento, todos os fatos

recortados tendem a ser apreendidos como uma instância particular de uma classe de

112
Em diversos textos, Roberto Kant de Lima chama a atenção para os planos de contiguidade existentes
entre o lugar do pesquisador que observa e investiga, e o papel do policial que se utiliza dos mesmos
expedientes para intervir, pela ótica do controle social, na realidade que observa. Ver Lima (1995).
175

eventos, não sendo categorizados nem como episódios únicos e incomparáveis, nem

como encarnações de um tipo ideal conceitualmente elaborado.

É bem verdade que o conhecimento etnográfico da área de patrulha tem sido elaborado a

partir de uma base de observação contínua que possibilita ao observador checar e

acompanhar as transformações ocorridas ao longo do tempo; um tipo de oportunidade, é

importante frisar, raramente franqueada aos cientistas sociais no desenvolvimento de seus

trabalhos de campo. Entretanto, este saber serve a propósitos radicalmente distintos

daqueles que motivam os antropólogos a conviverem, por algum período de tempo, com

um determinado grupo social. A etnografia policial, quase sempre confinada à oralidade

dos seus autores, tem uma finalidade prática que, em boa medida, endereça o seu modo

de olhar para a realidade: o ato de “policiar” constrói uma perspectiva diversa daquela

que informa a confecção do olhar propriamente antropológico. Enquanto a abordagem

antropológica limita-se a descrever e a refletir sobre a realidade dos fatos, a perspectiva

do saber policial traz a pretensão de "descobrir e provar a suposta verdade dos atos". A

elaboração da etnografia policial resulta, portanto, da preocupação pontual em distinguir

o comportamento “tolerável”, “aceito” e “normal”, das formas de conduta interpretadas

como “desviantes”, “suspeitas” e “criminosas” com uma finalidade prática – “policiar”,

imprimir algum controle mesmo que difuso e indireto. Restrita ao seu universo de

aplicação, a densa etnografia policial consiste em uma ferramenta importante para o

cumprimento da missão e das atribuições policiais. É a partir dela que o PM que patrulha

o nosso quarteirão define as suas formas de inserção e de intervenção. De fato, o

conhecimento de área não transforma os PMs em cientistas sociais, mas certamente os

projeta no rol dos argutos etnógrafos informais da vida urbana contemporânea.


176
177

2. Ação e Adrenalina: “ser policial é perigoso, divino e maravilhoso”

"A grande coisa de trabalhar na rua é que você não precisa ir para a guerra ou para a selva para ter aventuras.
Você tem muita adrenalina, muita excitação e ainda sai do trabalho e volta para a família".
(Soldado PM, com 5 anos de serviços prestados à PMERJ)

“O meu negócio é ação, eu sou muito operacional. Eu gosto mesmo de subir morro, de tirar polícia no
BOPE, no Choque, na PATAMO. É uma questão de temperamento. Eu quis ser policial porque eu gosto
do perigo e da aventura. Eu não sirvo para ficar atrás de uma mesa de escritório”.
(Soldado PM, com 4 anos de serviços prestados à PMERJ).

“Você quando começa a tirar polícia, você tem aquela agitação. Todo bicho novo quer está na frente do
negócio, quer trocar tiro, quer correr perigo, quer ficar com a adrenalina lá em cima. Eu agora estou
tranqüilo, quero completar o meu tempo de polícia mais relaxado. Eu deixo para os mais jovens esse
negócio de correr atrás de vagabundo”.
(Subtenente PM com 27 anos de serviços prestados à PMERJ)

Fazer trabalho de campo com a polícia ostensiva é, de alguma maneira, também aprender

a se valer do “princípio da oportunidade” amplamente utilizado pelos PMs,

particularmente aqueles que estão lotados nas diversas modalidades de patrulha. No dia-

a-dia de uma unidade operacional - pode ser um Batalhão, uma companhia independente

ou uma modesta fração de tropa destacada em algum posto de policiamento – as praças

estão sempre “empenhadas” nas tarefas de rua. Segundo os dados mais recentes do Estado

Maior Geral da PMERJ, eles correspondem a 95,3% do efetivo policial militar da cidade

do Rio de Janeiro, e seu índice de emprego nas atividades-fim apresenta uma média que

oscila em torno de 82,8% de sua capacidade de pronto emprego. Em uma frase, isto quer

dizer que nossos policiais ostensivos estão invariavelmente “de serviço” nas ruas,

deslocando-se de um lado a outro da cidade, fazendo o que no jargão policial corresponde

à necessidade de máxima cobertura ostensiva de suas áreas de patrulhamento. Assim, para

cavar uma brecha para conversar informalmente ou realizar uma entrevista estruturada

com esses assoberbados executivos das esquinas, ainda que por pouco tempo, foi preciso

me encaixar na dinâmica diuturna das suas atividades, mostrou-se indispensável colocar-

me em movimento e acompanhar o seu próprio ritmo.


178

Logo que comecei a superar a estranheza inicial causada pela presença de uma

pesquisadora no meio daqueles que estão freqüentemente nos observando e pouco

acostumados a ser observados com a mesma persistência, rapidamente constatei que eu

teria que ser mais efetiva aproveitando, na medida do possível, as possibilidades que aos

poucos iam se abrindo. Em verdade, eu reproduzia o sábio conselho de um sargento muito

experiente e também bastante brincalhão, que sempre repetia o seguinte provérbio

popular: “quem não se move, não muda de posição”.

Tomando a liberdade de brincar com a linguagem policial, eu comecei a adotar estratégias

antropológicas de aproximação não muito distantes daquelas que informam as

costumeiras práticas policiais. Eu precisei, portanto, me engajar na missão de observar

atentamente o meu alvo de vigilância, escolher o tipo de abordagem mais adequada ao

contexto da interação, não perder de vista o controle de contato administrando as

impressões recíprocas e, em alguns casos, “fazer um cerco” aos meus ocupados

interlocutores. De antemão eu sabia que teria de “abordá-los” no vaivém de suas

atividades: quando da apresentação ao oficial do dia; na retirada dos equipamentos de

trabalho; após a ordem unida; alguns minutos antes da divulgação da escala de serviço;

nos breves intervalos para refeição; ao final do expediente e mesmo durante as rondas

policiais. O privilégio de poder acompanhar os policiais durante o seu trabalho de patrulha

foi realmente decisivo para uma apreensão mais sensível do dia-a-dia policial. Por conta

dessas oportunidades, os bate-papos se tornaram freqüentes. Apesar de rápidos e

entrecortados, eles foram suficientes para fortalecer os elos de confiança e propiciar

aquele tipo de conversa fragmentada cujo desfecho vai se concluindo dia após dia.
179

Uma coisa era imediatamente perceptível na maioria dos PMs de ponta com os quais

convivi – a pressa de ir para as ruas, o gosto em vestir a farda e ir tomar conta do seu

pedaço da cidade. Toda essa disposição expressa circunstancialmente de diversas

maneiras (“proteger e servir”, “ajudar o próximo”, “defender a sociedade”, “combater o

crime”, “vencer o mal”, “acertar a conta com a bandidagem”, “aplicar a lei” etc.), tinha

como pano de fundo um certo amor pelo imprevisível, um certo prazer pela excitação de

especular e viver as possibilidades de “correr perigo”.

Muitos autores têm chamado atenção para alguns aspectos universais da cop culture,

dentre eles destaca-se o seu caráter hedonista (Muir Jr., 1977; Skolnick, 1994; Bittner,

1990; Reiner, 1992; Chan, 1997). Mesmo que a missão de policiar pareça invariavelmente

cansativa e muito desgastante, ela é posta na retórica das ruas como uma atribuição que,

em algum nível, precisa ter “o seu lado divertido e empolgante”. O esgotamento físico

proveniente das escalas e jornadas de trabalho adotadas e, principalmente, o estresse da

própria natureza do trabalho ostensivo, cujo bem produzido é difuso, indiviso e pouco

tangível, são contrabalançados pelo forte convite lúdico de “estar solto nas ruas” vagando

e interagindo com toda sorte de eventos, confrontando-se com o acaso, “dando uma volta”

na surpresa, enfim, experimentando a atraente liberdade (um tipo de licença especial

consentida aos que legalmente vigiam) de poder entrar e sair dos mais distintos mundos

– incluindo aí o mundo criminoso - que compõem a ampliada sintaxe urbana.

Lembro-me bem da felicidade juvenil dos policiais comunitários de Copacabana quando

receberam os seus rádios portáteis. Tratava-se de um importante signo de distinção em

relação ao resto da tropa do 19o BPM que, por escassez de recurso, não poderia dispor da

indispensável ferramenta. Podia se observar nesses policiais o prazer de manipular e


180

descobrir “as manhas do amigo do peito”. Durante as rondas a pé, eles acionavam com

freqüência o novo brinquedo mesmo sem haver muita necessidade. Parecia ser realmente

muito divertido brincar de “polícia do primeiro mundo”. Assim, eles estavam sempre

tentando contatar os seus colegas de turno: “Câmbio, aqui é o SD fulano do setor bravo,

tentando chamar o setor delta. Tudo tranqüilo aí? Aqui está tudo sob controle.” O mesmo

aspecto lúdico se fez presente quando foi implantado o sistema GPS nas viaturas. Várias

vezes fui convidada a ouvir explicações sobre o porque da “corcova” dos carros e a assistir

breves demonstrações das maravilhas que aquela engenhoca presa no painel da

radiopatrulha era capaz de fazer.

Certa vez um policial, absolutamente convicto de sua escolha de vida, disse-me que

“como bem mostrou o poeta, tirar polícia é perigoso, divino e maravilhoso”. Enquanto

falava-me com encantamento de sua profissão – um tipo de apresentação alegre e

apaixonada que contagiava toda a rodinha da conversa e contrastava com os aspectos mais

crus da vida policial – vinham à minha mente algumas frases de sua própria referência

poética e os possíveis significados que essa apropriação estética tão particular emprestava

à musica de Gil e Caetano...

Atenção ao dobrar uma esquina, uma alegria.


Atenção, precisa ter olhos firmes para este sol,
para esta escuridão.
Atenção para as janelas ao alto.
Atenção ao pisar o asfalto, o mangue.
Atenção para o sangue sobre o chão.
Atenção para o refrão:
É preciso está atento e forte.
Não temos tempo de temer a morte.
181

Creio que devo concordar com o meu filosófico interlocutor: tem algo de maravilhoso,

divino e perigoso no ato de lidar com a condição humana em todas as suas exasperações.

As ruas de uma grande cidade ofertam a certos atores – como o policial, por exemplo - a

oportunidade de participar intensamente das nossas manifestações mais cômicas e

dramáticas. Algumas delas chegam a ser ridículas, banais e monstruosas, mas todas elas

são inegavelmente verdadeiras, sentidas, reais. Os seus efeitos produzem ecos nas vidas

das pessoas e são, em muitos casos, fatais ou irreversíveis. Talvez, por conta dessa

exposição às exibições mais díspares das nossas paixões, o juramento de “proteger,

assistir e socorrer” se traduza nas ruas em um tipo de convocação que incita ao desafio,

ao arrojo, ao risco e, por tudo isso, à inscrição subjetiva em uma espécie de incansável

cruzada das virtudes do bem contra a tentação e os descaminhos do mal. Normalmente

apresentada como um nobre e gratificante empreendimento, a tarefa de “tirar polícia”

evoca traços de personalidade muito valorizados entre os PMs como a sagacidade, a

coragem, a ousadia, a intuição, a destreza e a obstinação. Essas características pessoais

são, de fato, emocionalmente muito fortes e possuem uma importância central na

subjetividade policial elaborada nas ruas, sobretudo entre os PMs mais jovens. Elas

contribuem para reforçar a valorização extremada do mundo da ação e do ambicionado

poder de intervenção que esse mesmo mundo possibilita. Note-se que este tipo de apelo

é de tal maneira sedutor que as demonstrações individuais de preguiça, medo,

“enrolação”, covardia, passividade ou receio, mesmo que prováveis e comuns na rotina

de polícia, costumam ser objetos de censura no meio policial e, evidentemente, não fazem

parte do elenco de qualificativos idealizados para o romântico - ainda que pouco

prestigiado - papel de centurião contemporâneo.


182

Um dos tipos ideais esculpidos pela cultura policial é aquele agente da lei impávido e

assertivo que é capaz de levar aos extremos os adjetivos acima mencionados, não se

deixando contaminar pelas fraquezas humanas que ele assiste, socorre, protege ou

reprime. A idéia de um paladino ou de um cavaleiro errante, no bom estilo Clint

Eastwood, que se utiliza de meios por vezes controvertidos e heterodoxos para produzir

o bem inquestionável, faz parte do elenco de perfis policiais teatralizados nas ruas. Não

importando a idade e o tempo de polícia tirado, todo PM de ponta tem ao menos uma

estória mirabolante ou uma aventura perigosa e arriscada para contar. O prazer de narrar

estas estórias consiste em uma forma vaidosa de anunciar o seu mundo para si mesmo e

para os outros mundos, traduz-se em um tipo de elogio ao “fazer” e ao “agir” da polícia,

à sua capacidade de intervir em dramas humanos tão complexos e de produzir resultados

imediatos. Neste sentido, parece pouco relevante se essas narrativas heróicas reproduzem

as conversas de pescador, ou se constituem uma estratégia para impressionar os PMs

novatos e os curiosos. O que importa é que elas consistem em um poderoso recurso

simbólico de reordenação das trajetórias individuais à luz dos ícones e dos valores que

informam a gramática policial das ruas.

Assim como aprendemos nas sagas heróicas e nas histórias em quadrinhos, a missão de

proteger na vida real os indefesos contra os predatórios tem igualmente um alto preço,

que prevê o propagandeado “risco da própria vida”. Mas dele também se pode tirar algum

prazer, algum proveito. Já mencionei que a profissão policial adquire uma roupagem

mística e um certo glamour que contagia e, em boa medida, contribui para a adesão

apaixonada dos seus integrantes. A crença de que a presença ostensiva justifica-se

moralmente no esforço de deter as forças sombrias e caóticas provenientes dos

subterrâneos da vida social, e de que esta presença deve poupar o resto dos mortais
183

comuns das confrontações diretas com o pavoroso, com o sinistro e com o repugnante de

nós mesmos, faz com que os policiais se percebam e sejam percebidos como proprietários

de poderes e segredos especiais. A internalização da elevada finalidade moral da polícia

da ordem pública – “salvaguardar a ordem, a tranqüilidade e o bem comum” – concorre

para a apreensão do papel do PM como uma espécie de fiel depositário do superego social

e, por conseguinte, como a principal linha de defesa da sociedade contra os seus próprios

males. Neste sentido, apesar das ondas de descrédito e desconfiança populares, a atividade

de polícia não é percebida por aqueles que integram a thin blue line como um trabalho

qualquer que pode ser realizado por qualquer um, mas, inversamente, como uma honrada

e difícil atribuição que requer qualidades especiais e que, por isso mesmo, deve ser

desempenhada por alguns eleitos que se mostrem capazes de experimentar a paradoxal

situação de ver a notabilidade silenciosa dos seus atos dissolvida no anonimato e no

esquecimento da vida ordinária.

De fato, o trabalho policial ostensivo e tudo aquilo que se pode vivenciar através dele,

como, por exemplo, o exercício capilar da autoridade, o emprego legal e legítimo da força,

a experimentação do perigo e da incerteza, o poder para compelir à obediência, a

autorização para deter alguém, o “respeito forçado” dos criminosos de rua e, mesmo, a

fragilidade do cidadão comum quando vê o seu drama particular converter-se em um

vexame público, ou quando se vê exposto a situações esdrúxulas e constrangedoras,

exercem um grande fascínio sobre aqueles que, por alguma razão, ingressam nos quadros

da organização policial militar. Todo PM sabe que, na condição de agente da lei e da

ordem pública, ele dispõe de uma infinidade de recursos que não estão disponíveis a todos

os indivíduos, e que o faz mais qualificado e mais “poderoso” do que um cidadão comum.

Isto é mais evidente no que diz respeito às suas decisões que podem alterar sensivelmente
184

o curso da vida das pessoas com as quais colide ou é chamado a interagir. Mesmo que em

uma versão menos grandiosa e mais ordinária do que a odisséia anunciada pelo imponente

Jano, os indivíduos que se tornam policiais estão, como o deus romano das transições e

das passagens, em busca das aventuras e das peripécias resultantes da atribuição de

guardar os territórios físicos e simbólicos da cidade, ou melhor, de velar as entradas, as

saídas e os fluxos da vida em comum.

Por razões óbvias, as motivações que levam jovens, em sua maioria, provenientes da

classe média baixa, com apenas o primeiro grau concluído e residentes nas regiões pobres

e periféricas da cidade, a ingressar como soldados nas fileiras da PMERJ são

prioritariamente de natureza instrumental. Do universo de praças entrevistados a

“estabilidade proporcionada por um emprego público”, a “falta de oportunidade para

continuar os estudos”, as “dificuldades materiais”, a “falta de opção na vida” e o “medo

de ficar desempregado” apareceram como as principais alegações para o ingresso na

carreira policial militar, em detrimento da “vocação” e da “tradição familiar”, que

também foram mencionadas apesar de subordinadas ao imperativo da “necessidade de

sobrevivência”. Mas, se no momento da escolha da profissão teria pesado “mais a comida

do que a ideologia” ou a oportunidade de “ter um trabalho seguro e construir uma

família”, as explicações para continuar sendo policial, encontram o seu paraíso no amor

adquirido pela profissão, confirmado no exercício diário das atividades policiais, a

despeito das preocupações familiares com a natureza arriscada do trabalho de polícia, dos

baixos salários, das dificuldades de ascensão profissional e do pouco prestígio social. A

afirmação de que na lida se “pega gosto pelo serviço”, ou de que é na prática que se

percebe o policial autêntico, aparece, via de regra, contextualizada na descoberta de uma

tímida vocação para “resolver rápido os problemas da população”, para “topar qualquer
185

parada” ou para “segurar qualquer tranco” que, de uma forma escondida, já se fazia

presente desde o início. Não muito diferente da conversão evangélica que constrange os

seus inscritos à confirmação diária de sua adesão e de seu real pertencimento, o

“nascimento para a nova vida” policial, mesmo que conduzindo à perda da inocência

original, reproduz o mesmo tipo de demanda subjetiva para aqueles que pretendem

professar o seu credo. De certa maneira, a vinculação efetiva ao mundo policial requer

que a tarefa de policiamento seja internalizada não apenas como uma atividade

profissional entre outras, mas como uma relevante causa a ser defendida após a conversão.

De fato, a devoção emocional aos apelos da cultura policial de rua é vivida de uma forma

mais intensa pelos policiais mais jovens e, por conseguinte, com menos tempo de serviço

prestado à corporação. Fica evidente que não só as qualidades pessoais mencionadas nas

falas dos PMs de ponta como imprescindíveis ao policial ideal, como também a natureza

concreta de boa parte das atividades ostensivas de polícia, guardam uma afinidade estreita

com as expectativas, os valores e os próprios clichês atribuídos ao universo masculino da

juventude. Muito próximo do que ocorre em outras profissões que necessitam, em parte

ou integralmente, do preparo e do condicionamento físicos de seus integrantes, a profissão

policial também empresta um elevado grau de importância aos atributos físicos e

simbólicos associados aos indivíduos jovens, como a saúde, o vigor, a disposição, a boa

forma física, a audácia etc. A necessidade constante das organizações policiais ostensivas

de completar o seu efetivo através do ingresso de policiais mais novos reflete a

preocupação institucional de dispor de recursos humanos razoavelmente adequados ao

desgaste natural do trabalho feito nas ruas. A composição etária atual dos policiais

militares lotados nas atividades-fim da PMERJ apresenta o seguinte cenário:


186

Como se pode notar, mais da metade dos PMs que são empregados nas atividades

ostensivas no Estado do Rio de Janeiro (59% do efetivo de pronto-emprego) possui idade

inferior a 35 anos. Acompanhando a distribuição pelos grupos etários, observa-se ainda

que 24% deles encontram-se na faixa de 30 a 34 anos e que nada menos do que 35% dos

agentes de ponta têm entre 20 e 29 anos de idade.

Pelos dados acima dispostos, não resta dúvida de que a PMERJ apresenta um perfil de

idade que contribui para reforçar a importância conferida aos atributos da juventude.

Talvez se possa dizer que a juventude aparece no mundo policial como um valor em si

mesmo. Não se trata apenas de um constrangimento trazido pela estrutura etária da

organização, mas antes de uma evocação aos atributos físicos e morais da jovialidade que

tanto influencia essa estrutura quanto se encaixa perfeitamente no ethos policial

construído a partir do trabalho nas ruas. O espírito aventureiro, o dinamismo, a

canalização das energias pessoais para a ação, o encantamento pela superioridade


187

adquirida através dos recursos técnicos da força física, o manuseio profissional da arma

de fogo e a disponibilidade para enfrentar situações de perigo e risco, são sintetizados nas

falas dos PMs pela expressão “ser operacional” cujos significados apontam, entre outras

coisas, para a pretensão de que o espírito jovial ultrapasse o seu próprio tempo. Na cultura

policial das ruas uma das fantasias expressas é a de que ser policial é, em alguma medida,

permanecer “sempre jovem” e, por isso mesmo, “mostrar-se um [homem] forte”, potente

e viril diante dos desafios a serem enfrentados. O imaginário policial tecido nas ruas pede

que seus integrantes absorvam os acontecimentos pela intensidade dos atos. A fixação e

a espacialização da temporalidade no presente é uma espécie de desdobramento simbólico

da constante experimentação da realidade naquilo que ela tem de urgente, fragmentado,

descontínuo e provisório (Cf. Maffesoli, 1984 e 1987). Uma das estratégias subjetivas

plausíveis para contornar a potência do acaso e das contingências posta na vida ordinária

é a projeção afetiva dos qualificativos da juventude a uma dimensão ampliada, isto é,

atemporal.

Um PM que siga à risca o receituário saído das ruas não se contenta apenas em ver e ser

visto durante o seu trabalho. Ele guarda a expectativa juvenil de ser efetivamente notado,

ele deseja ter algum destaque. Este é um problema peculiar das atividades cotidianas de

policiamento. Como emprestar tangibilidade a episódios que se desfazem pela passagem

oportuna da radiopatrulha, pela simples chegada do policial ou pela sua intervenção?

Um dos aspectos mais perturbadores da rotina policial é, precisamente, o fato de que a

maior parte dos resultados da presença ostensiva da PM nas ruas se desfaz como um

ozônio e tem permanecido imaterial e incontável. Toda essa dimensão invisível do grande

iceberg que é o policiamento ostensivo convencional, consiste no “não-acontecimento”,


188

isto é, reporta-se a uma infinidade de eventos de rua conflituosos e criminais que

simplesmente deixaram de acontecer, que sequer existiram em razão da presença policial

ostensiva ou de sua crença.

Penso que o caráter difuso do serviço ostensivo de polícia, associado à ausência de

ferramentas de mensuração adequadas à natureza das atividades de patrulhamento,

introduz mais um estímulo para que os PMs que estão na linha da obrigação não consigam

visualizar o produto diário e real do seu trabalho e ambicionem um mundo fictício da

plena operacionalidade, com resultados palpáveis e, por sua vez, passíveis de

contabilização. Nesta ordem de expectativas, “ser ostensivo” corresponderia a “aparecer”,

a procurar oportunidades para ser esplêndido, ostentatório e reconhecido. Esta é,

certamente, uma das razões pelas quais as perseguições, as capturas, os confrontos

armados, as operações especiais, as ações de resgate, assim como as ações extraordinárias

de força-tarefa, exercem na tropa um alto poder de sedução. Além de “subir a adrenalina”

e de ofertar a possibilidade de encenar as fantasias radicais da juventude, os resultados

dessas atividades excepcionais apresentam um grau maior de materialidade que o grosso

do trabalho ostensivo. Soma-se a isso o fato de que tanto o sistema criminal quanto a

opinião pública validam como o produto prioritário do serviço de polícia o que resulta da

contabilidade dos corpos e das coisas: os bens ilegais apreendidos, os criminosos presos,

mortos ou feridos “em nome da lei” etc. 113

113
A comunhão entre a “invisibilidade” das atividades ostensivas convencionais e a cobrança por resultados
tangíveis que alimentem a lógica do sistema criminal, constitui uma mistura em si mesma explosiva, uma
vez que alimenta, ainda que de forma indesejada ou não prevista, o controvertido “produtivismo policial”.
Levando em consideração os estímulos saídos da cultura policial das ruas, fica evidente que para multiplicar
resultados desastrosos e irreversíveis das ações ostensivas basta, por exemplo, a introdução de mecanismos
de avaliação e premiação que reforcem e valorizem as ações ostensivas excepcionais como os confrontos
armados, os enfrentamentos etc. Alguns departamentos americanos de polícia experimentaram o
crescimento da letalidade da ação policial e a fabricação ilegal de flagrantes e provas por conta da cobrança
exagerada de produtividade. No caso carioca, a “premiação por bravura” - apelidada pelos policiais de
“premiação faroeste” – parece ter sido suficiente para exponenciar as arbitrariedades praticadas e o poder
letal das organizações policiais. Ver Skolnick e Fyfe (1993); Cano (1997).
189

Há, ainda, um outro ponto a ser mencionado sobre a concepção juvenil de que a vida

policial é feita principalmente de fortes emoções. Se consideramos os aspectos mais

substanciais do real trabalho de polícia ostensiva, a visão mitológica de um mundo

policial constituído de muito sangue, suor, ação e adrenalina, além de preocupante e

perigoso para os propósitos reais do policiamento, tende a mascarar o dia-a-dia das

atividades de patrulha que também costuma ser enfadonho, trivial e, em alguns casos,

insignificante. As operações e iniciativas de alto risco, embora propiciem momentos de

grande excitação, não conformam a verdadeira rotina de patrulhamento, que é composta,

em sua maioria, de iniciativas pequenas, discretas, isoladas e desconexas.

De certa maneira, essa versão espetacular da vida policial procura também contornar o

tédio e a monotonia que se fazem presentes nas alternâncias de ritmo próprias de uma

ronda convencional em uma dada área da cidade. Quem ao menos já parou ao lado de

uma radiopatrulha em um sinal de trânsito, pôde perceber o estado fastidioso dos seus

tripulantes “desocupados” pela falta de um chamado emergencial ou pela ausência de

uma ocorrência a ser assumida. Os PMs têm razão quando afirmam orgulhosos que na

rua acontece de tudo. Mas é igualmente verdade que esse “tudo” contém, inclusive, o

torturante vazio de ocorrências e a insuportável constatação de que “nada está

acontecendo”. Esses estágios de baixa freqüência e, as vezes, de puro estado de alerta,

são proporcionalmente tão estressantes e corrosivos quanto os breves momentos em que

é possível vivenciar situações incertas e violentas. Nada pior para atores que se definem

pela presteza do pronto-emprego do que a suposta ausência de acontecimentos. E nada é

mais desastroso para a preservação democrática da ordem pública do que o policial


190

ostensivo concluir que nada aconteceu em todo o seu dia de trabalho pela falta de

confrontos armados ou de crimes em andamento. Pode-se dizer que a experimentação do

tempo de uma forma presentista e interveniente conduz os PMs a lidarem de um jeito

dramático com a espera ou com os estados de prontidão prolongados, sobretudo quando

se tem a certeza universal que alguma coisa está acontecendo em algum lugar e neste

exato momento, só que longe de suas vistas. 114

A força do acaso tem o mau hábito de sempre pregar as suas peças. A contrapartida da

imersão na ordem das contingências é a indelével constatação de que o caráter

imprevisível e insurreto dos eventos - que não avisam antecipadamente onde e quando

vão acontecer - possibilita que a polícia ostensiva, através do planejamento estratégico da

sua política de policiamento, colida com os problemas que cabe a ela resolver, mas

também sabota a oportunidade de encontros consecutivos com esses mesmos problemas.

Os PMs sabem que no seu plano de ronda eles podem ter passado segundos antes de um

certo fato acontecer ou minutos depois de um outro episódio ter acontecido. Faz parte do

seu trabalho lidar com o descompasso de estar em todos os lugares e de não se encontrar

em um lugar específico onde a presença da polícia mostrou-se, em um dado momento,

provisoriamente indispensável. Faz parte ainda do seu trabalho conviver com um certo

nível de frustração extraído da sensação de que a polícia pode não estar na hora que

alguma pessoa precisa dela porque, de forma difusa, ela se encontra servindo a todos e

em todos os lugares.

114
Os policiais alemães parecem ter uma outra forma de entendimento do trabalho ostensivo que realizam.
Segundo as descrições do “diário de campo” do Ten Cel PM Ubiratan, que realizou diversas visitas técnicas
à Polícia Alemã, um dia de trabalho produtivo é, exatamente, aquele em que “nada aconteceu” na área de
cobertura do patrulheiro por conta de sua presença ostensiva. Ver Relatório de Visita à Alemanha, PMERJ,
1990.
191

Um outro aspecto interessante do processo de tornar-se nas ruas um “policial de verdade”

reporta-se à descoberta, na ordem prática, do lugar reservado à autoridade policial.

Excluindo os PMs de ponta que possuem ou tiveram familiares dentro da PMERJ, os

demais policiais com os quais convivi disseram-me que, antes de entrarem para o Curso

de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), não gostavam da polícia e que, na

medida do possível, procuravam evitar qualquer contato com policiais. Creio que essas

percepções iniciais não causam nenhuma surpresa ou qualquer espanto. Não se pode

esquecer que, até há bem pouco tempo, as Cartas Constitucionais, bem como as políticas

de segurança adotadas nas unidades federativas, foram explicitamente orientadas por uma

visão de ordem pública restritiva e antidemocrática que excluía os segmentos pobres e

subalternos da população, “tecnicamente” rotulados como “classes perigosas” à paz e à

tranqüilidade dos cidadãos de bem. Para aqueles atores saídos dos chamados “balões de

ensaio do crime e da desordem” e inscritos de uma forma desvantajosa no mercado da

cidadania, virar um policial tem um significado muito maior do que a conquista de uma

profissão ou de um emprego seguro e estável. Tem efetivamente significado o acesso a

uma das formas privilegiadas do exercício de poder.

Apreender a manobrar no dia-a-dia com os recursos de controle e coerção

disponibilizados ao agente policial não é uma experiência que pode ser classificada como

trivial, sobretudo para sujeitos cuja origem social não os credenciava politicamente como

cidadãos plenos. Cumpre notar que o abstrato “poder de polícia” ganha de fato concreção

quando exercido na ponta da linha, ou melhor, quando executado por cada PM ao dobrar

uma esquina e colidir com um crime em andamento, ao ser destacado para um evento de

massa, ao desviar o trânsito para a passagem de uma ambulância, ao solicitar os

documentos de um transeunte, ao fazer uso da força letal contra um oponente armado, ao


192

compelir um desordeiro a se retirar do boteco, ao dispersar um grupo de torcedores

exaltados etc.

A construção diária da autoridade policial respaldada pelo recurso legal e legítimo do uso

e da ameaça de emprego da força, não se restringe ao aprendizado de todos os insumos

doutrinários e técnicos que embasam o seu exercício. Além das informações sobre as

legislações criminal, civil e militar e suas formas de execução, dos saberes relativos ao

manuseio e ao emprego do armamento urbano, do conhecimento do ciclo completo de

abordagem policial ostensiva e dos processos de intervenção preventiva, dissuasiva e

repressiva, o PM necessita fundamentalmente aprender a se inserir nos mais distintos

ambientes onde ele realmente atua. Ele precisa aprender “na marra”, on the job, como

fazer uso individualizado da discricionariedade e da autoexecutoriedade que conformam

as suas ações nos cenários mais heteróclitos com os quais ele se depara. Ele precisa

aprender a tomar decisões e a confiar na alternativa profissional escolhida. Em uma frase,

ele precisa descobrir, também on the job, como exercer a autoridade sem ser arbitrário ou

autoritário.

Como a fronteira entre o arbítrio e a arbitrariedade é muito tênue, os PMs rapidamente

percebem que precisam “ter jogo de cintura” para lidar com a volatilidade dos eventos

sobre os quais atuam e com as vantagens e as desvantagens do papel coercitivo, sobretudo

porque a oferta aos cidadãos de alternativas de obediência às leis, mesmo que legais e

legítimas, pode encontrar sempre algum grau de resistência e de descontentamento.

Assim, tão logo as praças ingressam no trabalho de rua, constatam que não é suficiente a

envergadura legal do seu mandato; percebem, pela força da prática, que não basta o

aparato jurídico formal que os qualifica como agentes da lei. Mostra-se indispensável a
193

elaboração cotidiana da autoridade, a busca de sua credibilidade e do consentimento para

o seu exercício.

Fazer convergir os princípios nem sempre harmônicos da legalidade e da legitimidade em

cada situação particular não é um empreendimento fácil, muito menos ausente de tensões

e equívocos. Isto porque a aplicação rigorosa e precisa das leis não corresponde ao amplo

espectro da ordem pública, assim como não está previamente garantido que o movimento

no sentido inverso produza os resultados desejados. Os policiais, sobretudo aqueles que

estão na linha da obrigação (the thin blue line), são investidos de um considerável poder

formal (de direito) e de um poder físico (de fato) por eles administrados em um amplo e

diversificado conjunto de situações complexas, insólitas e emergenciais, que nem sempre

encontram uma tradução legal possível. No dia-a-dia, os PMs são chamados a atuar

sempre que ocorre "algo-que-não-devia-estar-acontencendo-e-sobre-o-qual-alguém-tem-

que-fazer-alguma-coisa-agora-e-bem” (Bittner, 1990).

Note-se que a demanda contemporânea por serviços policiais recobre o vasto mundo da

"preservação da paz e moralidade públicas" no qual qualquer evento, além das violações

previstas na lei e na jurisprudência, pode vir a ser considerado um legítimo “assunto de

polícia”. Em quaisquer desses assuntos, espera-se que a atuação policial ostensiva esteja

sempre subordinada aos limites impostos pelo ordenamento legal. Na sua rotina, os

policiais fazem, então, uso do poder discricionário para equilibrar-se na tênue fronteira

entre a legalidade e a legitimidade exigidas em suas intervenções. Suas referências

seriam, simultânea e paradoxalmente, "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que

encontra-se no mundo e não está na lei". A obrigação de atender, a um só tempo, aos

imperativos nem sempre conciliáveis do "mundo da lei", das suas formas práticas de
194

execução (law enforcement) e das "leis do mundo" revela que as organizações policiais,

nas sociedades democráticas, apresentam-se como o produto de uma série de

compromissos entre princípios conflitantes: das agências do estado democrático, as

polícias talvez sejam aquelas que melhor exemplifiquem as descontinuidades existentes

entre Lei e Ordem e os efeitos indesejáveis daí resultantes (Skolnick, 1994).

Esta é certamente uma das razões pelas quais a empresa de enraizar o princípio da

autoridade pública na vida diária das pessoas tem sido um dos grandes desafios

civilizatórios dos Estados contemporâneos. No fluxo da vida ordinária, cabe ao policial

da ordem pública a missão de garantir o estado de direito empregando o recurso da força

ou de sua ameaça caso seja necessário. Eis, aqui, anunciada, uma contradição bastante

perturbadora do trabalho de polícia: alcançar fins legais através de meios coercitivos.

Este dilema estrutural, experimentado pelas organizações policiais em todos os países

ocidentais com tradição liberal, adquiriu conteúdos particulares entre nós. Por um lado,

os longos períodos em que o Estado brasileiro ambicionou monopolizar a ordem pública,

excluindo os cidadãos do legítimo processo de sua produção e, por outro, as constantes

ondas de “legalismo moral” derivadas, em boa medida, da perversa sobreposição dos

assuntos da defesa nacional e da segurança interna com os problemas da segurança

pública contribuíram, de uma forma decisiva, para a percepção – viva ainda hoje naqueles

setores populares que foram, em um passado recente, rotulados como “perigosos e

insurgentes” - de que a presença do Estado na vida das pessoas tem sido ora clientelista,

ora invasiva, desrespeitosa e arbitrária. Não sem razões, esta forma de entendimento foi

personificada na autoridade policial, cuja presença ostensiva é capilar e, principalmente,

por causa dos seus procedimentos de interação com as camadas menos favorecidas da
195

população que nem sempre primaram pela sustentação das garantias individuais e pela

transparência de propósitos. Essa memória conflituosa reforçada por episódios de

brutalidade policial amplamente cobertos pelos meios de comunicação, colabora para a

cristalização de reações previamente hostis, temerosas e desconfiadas em relação à

autoridade policial. É neste ambiente social suscetível às ondas de agravamento do temor

coletivo do crime e às oscilações da credibilidade institucional da PMERJ, que a praça

realiza suas atividades de rua.

Uma das sensações mais evidentes para o PM que inicia as suas tarefas de policiamento

é a de que “as pessoas só gostam da autoridade policial quando precisam”, ou melhor,

quando a resolução do problema que motivou a presença policial foi “vantajosa” para o

demandante.115 O sentimento de que “ninguém quer a autoridade policial muito perto” é

formalizada na constatação de que “as pessoas querem a polícia para os outros”, ou

melhor, para aqueles que elas acham que “precisam de polícia” como os delinqüentes, a

população de rua, as minorias sociais, os “favelados” etc. No papel de um Streetcorner

Politician (Muir Jr., 1977) ou na condição de uma válvula equilibrante das relações de

poder no microcosmo social, o PM rapidamente percebe que ele precisa manobrar com a

espinhosa questão de não permitir que a sua própria autoridade seja leiloada, de não deixar

que ela se transforme em um objeto de barganha e de reforço de poder para um ou vários

litigantes que participam da ocorrência atendida. Ele também sabe que, no fundo,

“ninguém gosta de perder” e que, para produzir uma solução satisfatória nas dinâmicas

115
A maior parte dos policiais comunitários do programa de Copacabana reclamava do comportamento dos
“moradores da zona sul” que, do seu ponto de vista, não reconheciam devidamente o papel da autoridade
policial. O tratamento impositivo era dispensado aos comunitários sobretudo pelos comerciantes e síndicos
que “tinham o rei na barriga” e achavam que podiam “dar ordens no PM”. Alguns PMs foram mais enfáticos
em suas críticas à “falta de educação” de alguns membros da comunidade que, só “vendo o seu lado”,
queriam que o policial ficasse vigiando o seu patrimônio.
196

desordeiras e conflituosas, é necessário compelir os envolvidos a cederem, negociando

sensatamente suas posições.

Este é um dos muitos aspectos sensíveis da produção da autoridade policial no cotidiano.

As lições extraídas das ruas advertem para uma infinidade de riscos e tentações aos quais

o policial está freqüentemente suscetível. O encantamento natural dos PMs com a

descoberta de que quando vestem suas fardas se transformam em uma “outra pessoa”,

dotada de poderes especiais, necessita ser contrabalançado com o “juízo e a maturidade”.

Mostra-se indispensável “ter cabeça fria” e não se deixar levar pelo deslumbramento

trazido, por exemplo, pelo poder de parar, deter ou questionar alguém. É preciso, ainda,

“ter a cabeça no lugar” para enfrentar toda a sorte de testes colocados nas interações com

os cidadãos. Os PMs aprendem on the job, que a sua autoridade encontra-se regularmente

sendo “vigiada” e “questionada”, inclusive nos eventos mais triviais. O simples ato de

tomar um cafezinho no bar leva os outros fregueses a indagarem “será que ele vai pagar?”

O atendimento ao chamado de uma prostituta que reclama que sofrera ameaça de um

turista, faz os curiosos imaginarem “olha lá, o PM está faturando a puta de graça”. Quando

se observa à distância um PM conversando com um apontador do bicho ou um flanelinha,

pode-se imaginar que se trata tanto de um trabalho de fiscalização quanto de um “acerto

de contas” ou um “recolhimento de comissões”. 116

116
Estas situações mencionadas estão reunidas na “Cartilha de Humanização e Qualidade na Prestação de
Serviços Policiais”, Vol. I e Vol II, de autoria do Psicólogo e Ten Cel PM Luiz Fernando Santos de
Azevedo, publicada pela APOM/PMERJ, em 1994. O propósito deste rico material didático era, a partir de
episódios reais do dia-a-dia policial, sensibilizar os policiais militares de ponta para a qualidade do serviço
policial prestado, ofertando alternativas concretas de ação elaboradas em sintonia com a prática ostensiva.
Face aos resultados positivos obtidos, este material passou a compor o “Módulo Profissionalizante” do
Telecurso 2000, um projeto voltado para as praças que possuem apenas o primeiro grau, implantado em
março de 1999 através de um convênio entre a PMERJ, o Movimento Viva Rio e a Fundação Roberto
Marinho.
197

Após algum tempo passado nas ruas, o PM sabe que pode “ser mal interpretado” e que o

seu “poder de polícia” está, na maioria do eventos, sendo colocado a prova. Certa vez um

sargento PM explicou-me que a “experiência” ensina como lidar com essa difícil questão.

Do seu ponto de vista, basta “saber interpretar a lei” à luz das circunstâncias (o que em si

mesmo configura uma tarefa complexa e sutil) e, fundamentalmente, nunca deixar

transparecer insegurança ou dúvida quanto ao curso de ação escolhido. Mesmo naquelas

ocorrências em que o policial não está muito certo de sua decisão, seria necessário

executá-la com convicção para transmitir “respeito e segurança” e evitar a ampliação do

problema em tela. Meu interlocutor conclui sua explicação dizendo-me que, no dia-a-dia,

as ocorrências mais complicadas são precisamente aquelas que envolvem cidadãos

comuns que, em sua maioria, possuem “desconhecimento de causa” dos seus próprios

conflitos. Sob esta ótica, a falta generalizada de informações sobre os direitos e deveres

que conformam o exercício da cidadania seria um dos fatores que mais contribuem para

que um conjunto significativo de ocorrências de baixo teor ofensivo se transforme em

“desacato a autoridade” ou em “abuso de autoridade”.

Como se vê, administrar, em cada ocorrência atendida ou no curso de uma ação escolhida,

a tensão entre a subordinação ao império da lei e as necessidades operacionais derivadas

da missão de preservar a ordem pública (eficácia, eficiência e efetividade), corresponde

à complexa arte de exercer a autoridade policial no estado democrático. Isso fica mais

evidente se consideramos que o emprego necessário e cotidiano do poder discricionário

pelos PMs tem correspondido a uma zona cinzenta, de "baixa visibilidade" do trabalho

policial (cf. Elliston e Feldberg, 1985; Kleinig, 1996). Não é demais enfatizar que o

processo de tomada de decisão nas diversas tarefas de polícia, em especial aquelas

desenvolvidas nas ruas, tem permanecido pouco visível para as próprias organizações
198

policiais ostensivas e para a opinião pública, comprometendo não só a transparência do

sistema interno de controle, como também a possibilidade de um monitoramento externo

eficaz. Se isto procede, cabe advertir que as iniciativas de prevenção e dissuasão bem-

sucedidas realizadas pelos policiais tendem a se tornar tão incomensuráveis quanto

aquelas decisões que resultaram na extrapolação da autoridade policial.


199

3. O Caçador de Ações: suspeita, perigo e decepção

“Todo mundo tem alguma coisa para esconder da polícia. Quem não cometeu um erro na vida? A gente
nunca pode garantir o que está por trás das pessoas. Tem gente que chama a polícia por um motivo fútil só
para tentar prejudicar um antigo desafeto. O policial tem que estar esperto para isso.”
(Sargento PM, com 23 anos de serviços prestados à PMERJ)

“Todos mentem para a polícia, até o inocente mente para a polícia. É da psicologia das pessoas. ”
(Cabo PM, com 16 anos de serviços prestados à PMERJ)

“A polícia é o termômetro do grau de civilização de um povo.”


(Sargento PM, com 19 anos de serviços prestados à PMERJ)

“Um dia é da caça, outro do caçador”. Este é um dos muitos provérbios da sabedoria

popular que costuma advertir sobre os mistérios e as surpresas associados ao perigo e à

sedução que circunscrevem o processo de conquista e sustentação do território

conquistado. Todas as culturas de que se tem notícia tematizam, através do simbolismo

da caça e do caçador, os dilemas da construção civilizatória do que consideram o lugar

do “humano” (Chevalier e Gheerbrant, 1990). Grosso modo, a saga do caçador-herói -

que nas narrativas míticas não pode prescindir de uma força física incomum, de uma

destreza extraordinária e de uma coragem a toda prova – retrata o desafio de alcançar o

autodomínio e os esforços para controlar as forças naturais e a sua “selvajaria”

ameaçadora. Em uma ordem metafórica, caçar corresponde, de um lado, a fazer recuar os

limites do caos que, identificado com as feras indomáveis ou insurretas, subsiste nos

confins e nos subterrâneos do mundo organizado. Significa, de outro lado, a luta

civilizatória contra tudo aquilo que associamos à animalidade e que nos faz contíguos a

ela como os “instintos”, a “violência”, “a brutalidade” etc. Trata-se, portanto, de uma

caçada simbólica que investe não apenas contra as bestas reais e imaginárias, mas,

sobretudo, contra a bestialidade, a ignorância e as tendências nefastas que também fazem

parte do admirável mundo humano. Através de formas culturalmente variadas, a caçada

parece ritualizar a vitória da vida em sociedade sobre o estado de natureza, anunciando


200

que essa vitória é construída a partir de um instigante paradoxo. A supremacia do bem

comum sobre as forças identificadas como negativas e malfeitoras, se faz por intermédio

de expedientes coercitivos e, em boa medida, com o concurso do emprego da força em

todas as suas manifestações. Ávido em melhorar o mundo em que vivemos, o arcanjo São

Miguel, patrono dos cavaleiros, não poupou a sua espada quando venceu o demônio e pôs

em debandada os Exércitos do mal. A proeza miliciana de São Miguel é também encenada

pelo popular São Jorge, cuja trajetória como cavaleiro converte-se na cristalização da

perpétua luta do bem contra o mal.

No nosso sincretismo religioso, a figura de São Jorge aparece vinculada ao Orixá Ogun.

Este último é descrito como um ancestral africano destemido, justo e, também, muito

emotivo que dominava tanto a arte de caçador quanto a de ferreiro. Suas epopéias falam

de um Deus que elogia a vida comunitária e inaugura a era civilizada representada pela

transformação dos metais em instrumentos de cultivo, de caça e de guerra. Capaz de

suplantar o pânico da morte e a finitude que ela enseja, Ogun é apresentado, em muitas

de suas lendas, como uma divindade zelosa de seu reino e sempre disposto a enfrentar os

perigos provenientes da malevolência e das trevas. Dizem as línguas populares que

aqueles que são “protegidos” ou “filhos” de Ogun trazem um talento especial para as

atividades de polícia. Entre os habitats prediletos desse orixá guardião estão as ruas, as

esquinas, os cruzamentos, as avenidas asfaltadas etc.

Devotos ou não de São Miguel, integrantes ou não da Companhia de São Jorge, filhos ou

não de Ogun, os PMs da thin blue line encontram-se também inscritos em uma espécie

de corrente moral do bem contra as manifestações hediondas do mal. A moralização do

mandato de policiamento constitui um fato inevitável e corriqueiro no meio policial que


201

é, salvo raras exceções, respaldado pelo senso comum. Se para os policiais que estão na

ponta da linha, a moralização se apresenta como uma interpretação indissociável da

prática de “proteger e servir”, para o senso comum ela se traduz em uma expectativa

sedimentada e, por sua vez, em uma demanda subjetiva a ser atendida. Espera-se, por

exemplo, que a autoridade policial seja o exemplo de uma conduta impecável e

compatível com a atribuição de fiscalizar o comportamento dos outros cidadãos no espaço

público. De nossa parte, estamos sempre observando e “vigiando” o comportamento da

polícia. Prestamos atenção se os PMs de uma radiopatrulha estão utilizando o cinto de

segurança, se a viatura policial atravessou o sinal de trânsito, se ela se encontra

estacionada em local proibido, se os policiais pagaram a conta do lanche, etc.

Na gestão cotidiana da ordem pública, os PMs e os cidadãos que se definem e são

igualmente identificados como “ordeiros e pacíficos”, fazem aparecer a grande

“comunidade do bem” - um tipo de entidade afetiva, inorgânica e sem unidade fixa de

lugar, que se cristaliza ao sabor das fronteiras morais e simbólicas acionadas, de uma

forma oportuna e provisória, segundo a percepção de risco e insegurança daqueles que

nela estão ou se sentem incluídos. Como um subproduto de uma perspectiva moralizante,

a “comunidade do bem” adquire concreção pela delimitação do seu território moral, isto

é, pela demarcação de linhas divisórias que distingam e separem os “tipos bons” dos

“tipos maus”. Isto ocorre não apenas em relação aos episódios torpes, venais e

degradantes, mas também, e principalmente, quando do encontro rotineiro com eventos

conflituosos difusos ou quando da colisão com comportamentos pouco convencionais.

Aos seus próprios olhos, os PMs de ponta são invariavelmente os “mocinhos” da história,

ou melhor, a turma “sangue bom” que está aí pelas ruas, esquinas e avenidas da cidade
202

“defendendo e protegendo a sociedade”, sua “boa moral”, seus “bons costumes” e seus

valiosos bens. Esses “cavaleiros” da ordem pública, distantes da imagem techno-legal do

robocop, não são, portanto, atores neutros e muito menos alienados dos contextos sociais

nos quais atuam. De um lado, os PMs partilham da ampla grade valorativa que informa

os juízos, as mentalidades e os preconceitos que circulam na vida ordinária. De outro,

eles experimentam, no calor dos acontecimentos diários, as assimetrias embutidas no

percurso para alcançar os fins justos através de meios não só escassos mas, em muitos

casos, polêmicos do ponto de vista legal, adequados do ponto de vista técnico e toleráveis

de um certo ponto de vista moral. Em virtude dos constrangimentos trazidos pelas

circunstâncias de cada episódio atendido, o curso de ação escolhido nem sempre resulta

do encontro feliz entre os vários níveis de exigências estabelecidos para a intervenção

policial ostensiva. Na prática, nem sempre é possível fazer coincidir a “letra da lei”, a sua

tradução em termos de enforcement, os expedientes de emprego tático, a validação moral

da decisão adotada e a produção de resultados tangíveis. 117 A rotina de polícia evidencia

que esses imperativos, ainda que necessários e legítimos, conformam ordens distintas de

cobrança que são, por vezes, contraditórias e, até mesmo, excludentes. Conforme

demonstra o gráfico abaixo, uma parte expressiva das ocorrências registradas pela

PMERJ - em torno de 59,5% das notificações - reporta-se a eventos que não se

configuram como infrações penais e sequer encontram uma tradução propriamente legal.

Esses episódios “não criminosos” referem-se à prestação de serviços assistenciais, a

conflitos interpessoais e a desordens de toda sorte:

117
O descompasso existente entre os diversos níveis de contrangimentos mencionados é parte indissociável
da própria natureza do trabalho de polícia e do seu escopo de atuação nas sociedades de tradição liberal-
democrática. Ver Bittner (1990); Skolnick (1994).
203

Em parte por essa razão, os PMs da blue line estão sempre fazendo uso do “bom senso”

como uma espécie de moeda, isto é, como uma ferramenta de equivalência entre os níveis

de exigências mencionados. Acionar com regularidade o “bom senso” é, em alguma

medida, procurar atender à economia prática do trabalho policial (produzir, com presteza,

resultados satisfatórios em situações de incerteza e risco), sem perder de vista as variáveis

políticas e morais que instruem os ambientes sociais onde esse trabalho se desenvolve.

Por conta disso, o “bom senso” policial, resultante da síntese das experiências vividas nas

ruas e dos saberes ordinários extraídos do mundo cotidiano, se presta como um poderoso

recurso cognitivo, mobilizado pelos PMs de uma forma heterogênea, para conter os

possíveis arroubos derivados dos riscos de se buscar, através das atividades de

policiamento, uma “conformidade moral” idealizada para a vida em sociedade.

De fato, a forte carga moral intrínseca à complexa missão de policiar a ordem pública

propicia, na prática, leituras ambivalentes e personalizadas do alto chamamento do dever

de “proteger e servir”. Quando se leva até as últimas conseqüências a empresa de produzir


204

o bem a todo custo, uma das leituras possíveis é, exatamente, aquela que interpreta os

problemas da criminalidade, da violência e da desordem como um “acerto pessoal de

contas”. Neste recorte interpretativo, tudo se passa como se os “vilões” da paz e da

tranqüilidade pública tivessem uma rixa particular com os policiais. O comportamento

criminoso, em seu sentido genérico, seria entendido como uma “provocação” ou uma

“injusta agressão” dirigida aos agentes da lei, de uma forma deliberada e proposital. A

imagem afetiva de que os criminosos estariam cometendo crimes só para “desafiar” e

“testar” os policiais, tende a ser perversamente alimentada pela intensidade com que o

isolamento social é sentido por esses atores. O grau da sensação de afastamento percebido

pelo policial em relação à sua comunidade de origem e as demais comunidades

“policiadas”, contribui para radicalizar a distinção funcional posta pela cultura das ruas

de que o mundo social se divide em um “nós contra eles” e, em uma forma mais dramática

e desastrosa, em um isolado “eu contra todos”.

O tipo policial “justiceiro” e solitário na defesa extremada do bem maior, encarna a

percepção paranóica de que cada ocorrência criminosa ou potencialmente criminosa seria

uma espécie de juízo final entre polícia e “bandido”. Note-se que, para aqueles PMs que

se mostram emocionalmente vulneráveis a essa caricatura, as apreensões, as detenções

para revista, os confrontos armados etc., deixam de figurar como um meio para se atingir

um fim e se transformam em um “fim em si mesmo”. Esse círculo vicioso se dá de tal

maneira que, os flagrantes e as prisões, em vez de serem tratados como um serviço público

prestado aos cidadãos em conformidade com o estado de direito e com os procedimentos

de ação policial, passam a ser enquadrados tão-somente como mais uma “vitória pessoal”

contabilizada em uma ampla lista de conquistas que tanto reforça a predisposição


205

individual belicosa, quanto cria a ilusão de que as perseguições aos supostos criminosos

constituem o “verdadeiro trabalho de polícia”.

Há, ainda, um outro elemento relacionado à ambivalência moral experimentada pelos

policiais de ponta, que se faz presente nas mais distintas polícias pesquisadas. Estou me

referindo à profunda ambigüidade moral derivada do fato inevitável de que as

organizações policiais, meios de força comedida, se interpõem entre indivíduos em

conflito (Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Skolnick e Fyfe, 1993; Reiner, 1992). Pelo menos

em princípio, a polícia estaria somente oposta a interesses considerados legalmente

repreensíveis ou a interesses que carecem de justificação apropriada. Entretanto, quando

se analisa a natureza do trabalho policial sob essa ótica ideal, salta aos olhos a evidência

de que os policiais, mesmo que jamais errem ao fazer uso do seu poder discricionário,

estariam, ainda assim, mergulhados, salvo raras exceções, na paradoxal situação de

alcançar alguma coisa para alguém somente porque também agiram contra alguém.

Os constrangimentos impostos pelos termos de seu mandato e pelo caráter emergencial

dos eventos sobre os quais atua, impedem que os “executivos de quarteirão” possam

refletir, em ato, sobre os aspectos mais essenciais das demandas conflituosas que

mobilizam a sua presença. Os históricos e os contextos dos problemas que chegam até os

policiais, assim como as histórias de vida dos envolvidos ficam, evidentemente,

empobrecidos por força da dimensão contingente que deflagrou a chamada à policia, e

também pela própria natureza oportuna da intervenção policial. Assim, embora seja

esperado que os Streetcorner Politicians ou os mediadores dos jogos conflituosos no

microcosmo social, sejam judiciosos no exercício do seu poder de polícia, por conta

inclusive das habilidades pessoais desenvolvidas pela experiência adquirida nas ruas,
206

seria extremamente ingênuo supor que, a um só tempo, eles possam ser rápidos, oportunos

e sutis. Mesmo naquelas situações nas quais é possível manobrar os níveis de resistência

apresentados através dos mais baixos gradientes de força como, por exemplo, os

comandos verbais e outras técnicas de aproximação e interação, não é razoável esperar

uma apreciação sofisticada da complexidade dos problemas em curso. Uma vez que os

meios de força policiais não podem prescindir da presteza que qualifica a sua performance

e motiva o seu acionamento, as suas iniciativas e os seus desempenhos estão, pela sua

própria natureza, fadados a ser sempre interpretados como "injustos", "ofensivos",

“inoportunos” e excessivamente “diretos” com alguém. A pressão exercida sobre os

policiais para, simultaneamente, "serem corretos" e "fazerem alguma coisa" no "agora e

já" das pessoas e dos eventos restringe, de forma drástica, a oportunidade de se emprestar

algum grau de sofisticação às alternativas disponíveis para a ação. O fato do policial da

ordem pública tratar rotineiramente com assuntos que envolvem conflitos humanos

complexos e com questões morais e legais espinhosas, sem ter o tempo necessário e a

competência especializada para emprestar a sutileza e a profundidade reflexiva que esses

dramas exigem, sobretudo quando tratados nos seus fóruns específicos, faz com que o seu

trabalho seja externamente percebido como marcado pela “insensibilidade” e pela

“crueza” de atitudes.

Uma das queixas mais freqüentes entre os PMs de ponta, resulta do sentimento

generalizado de que, via de regra, eles não são devidamente compreendidos pelos

cidadãos. Além de serem chamados de “Seu Guarda”, nada desagrada mais aos

“executivos das esquinas” do que ouvir alegações do tipo “vocês não tem o que fazer,

não?” ou “vocês deviam estar subindo morro e correndo atrás dos bandidos em vez de

importunar o cidadão de bem”, que são constantemente acionadas por aqueles litigantes
207

que, no processo decisório, não se sentiram beneficiados pelo encaminhamento dado a

uma simples ocorrência como, por exemplo, um conflito no trânsito ou uma querela de

vizinhança.

A dolorosa sensação de que “não importa o que fazemos estaremos sempre sendo mal

interpretados”, põe em evidência um dilema moral em parte motivado pela falsa oposição

“polícia-força versus polícia-serviço” que tem sido exaustivamente explorada por visões

equivocadas sobre o provimento democrático de ordem pública, as quais ainda se fazem


118
sentir entre nós em plena virada do milênio. A confusão estabelecida pela

sedimentação dessa falsa dicotomia tem-se convertido, na prática, em um drama real de

orientação vivido pelos PMs cariocas da blue line e expresso na costumeira e

desconfortável indagação “como fica a cabeça do PM ?”

O desconhecimento por parte do senso comum ilustrado (incluindo aí alguns setores das

próprias organizações policiais) de que o emprego da força e a presteza dele resultante

constituem expedientes indispensáveis à ação ostensiva de polícia, tem propiciado a

conformação de uma perspectiva ingênua e perigosa porque incapaz de distinguir, de

forma criteriosa e consistente, o uso da violência (um impulso arbitrário, ilegal, ilegítimo

e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e profissional). O ônus

dessa indistinção é imenso tanto para Polícia Militar quanto para a sociedade. No que diz

respeito aos PMs que estão na linha da obrigação, essa indistinção tem contribuído para

fomentar manifestações de receio e insegurança durante os processos individuais de

tomada de decisão desencadeados, na maior parte dos casos, em ambientes de incerteza e

risco. Os resultados deste tipo de imprecisão tem sido, evidentemente, os mais

118
Para um discussão sobre os limites de uma concepção tradicional do papel da Polícia Militar e as
resistências a uma perspectiva voltada para a proteção social, ver Azevedo (1998).
208

desfavoráveis possíveis. Eles vão desde a debilidade crescente dos métodos e

procedimentos profissionais de emprego legal e legítimo da força até o seu uso “bem

intencionado”, porém inadequado e, em muitos casos, excessivo e arbitrário por parte dos

policiais.

Indo um pouco mais longe, a equivocada polarização “polícia-força versus polícia-

serviço”, que se traduz na falsa antinomia “proteger versus servir”, mascara a

especificidade originária das polícias ostensivas como organizações de força comedida

voltadas para a “proteção social”. Desdobra-se daí, o pressuposto (não demonstrado na

realidade do trabalho policial) de que o recurso à força corresponderia ao seu extremo

letal, só se fazendo presente, portanto, naqueles episódios propriamente repressivos como

os “confrontos armados”, os “crimes “violentos” em andamento etc.

Note-se que este tipo de enquadramento, perde de vista um elemento básico do estado da

arte de polícia: no momento da interação dos policiais com a sua clientela, a perspectiva

do uso da força está posta por antecipação. Ela é parte indissociável da autoridade policial.

É porque o policial está legalmente autorizado a usar a força para respaldar a sua

autoridade que ele é acionado e pode intervir nos conflitos, abrindo possibilidades para a

sua resolução que vão, desde a negociação até a imposição de alternativas pacíficas de

obediência àqueles indivíduos que se mostram recalcitrantes. Por outro lado, a

possibilidade de compelir, se necessário, viabiliza a oportunidade mesma dos

atendimentos assistenciais e auxiliares. Há momentos, exatamente nessas situações, em

que o policial assume o papel de um coordenador que orienta o que será feito, comanda

as ações e determina os comportamentos. Este é o caso, por exemplo, de um socorro à

vítimas de acidente de trânsito: iniciativas como parar o trânsito, cercar a área, afastar os

transeuntes, chamar a ambulância, assegurar o seu acesso, lidar com parentes e vítimas,
209

respaldar as decisões médicas dos atendentes, coordenar o apoio para um deslocamento

rápido até o hospital, seriam muito pouco eficazes sem a perspectiva de compelir, o que

pressupõe, uma vez mais, a possibilidade do uso de força consentida à autoridade policial.

Conforme salienta Bittner (1990), não se pode ignorar que a presteza policial está

diretamente relacionada ao requisito da força que envolve, não apenas os diversos níveis

de seu emprego efetivo e explícito, mas também a sua própria possibilidade, que está

colocada previamente em qualquer atividade ostensiva de polícia. Isso fica evidente nas

ocorrências mais triviais como “conter e encaminhar um alienado mental”, “conduzir uma

parturiente e garantir a sua internação em um hospital público” , “substituir um sinal de

trânsito quebrado”, “auxiliar um oficial de justiça na entrega de uma convocação judicial”

etc.

A essa altura, creio que fica perceptível como a força que respalda a autoridade de polícia

é inseparável de todas as suas ações, ainda que, é importante frisar, ela permaneça como

um elemento potencial em boa parte dos casos, incluindo nesse rol de eventos uma parcela

significativa das ocorrências propriamente criminais. Certamente, esta é uma das muitas

evidências de que a polícia consiste em um meio de força comedida. Neste sentido, os

esforços, mesmo que bem intencionados, de dissociar o elemento de força do ciclo

completo das atividades ostensivas de polícia tanto podem contribuir para sua utilização

amadora e desregrada na ponta da linha, quanto ajudam a projetar o seu emprego em uma

dimensão obscura e nebulosa.

É em um cenário povoado por orientações ambíguas e falsos pressupostos, que realmente

não se pode saber “como fica a cabeça do PM”. Parece inevitável a abertura de

oportunidades para que o uso concreto da força pelos policiais seja pontuado por exageros
210

ou imprecisões. Isto é mais grave ainda, naquelas interações cotidianas entre policiais e

cidadãos – situações de baixa visibilidade e que não envolvem o emprego da arma de

fogo. Normalmente inscritos no universo difuso e volátil dos conflitos e das desordens,

esses episódios tendem a camuflar o amplo uso inadequado da força, sobretudo porque

uma boa parte deles sequer se transforma em registros de ocorrência. 119

Mas, além dos problemas relacionados aos entendimentos equivocados quanto ao uso da

força nas ações ostensivas de polícia, a estética da suspeita - também intrínseca ao

trabalho policial – tem-se apresentado como mais um ingrediente a estimular dubiedades

e leituras morais divergentes associadas à tarefa de policiamento. Os PMs de ponta estão

bastante cientes de que o seu trabalho nas ruas desenvolveu neles uma postura de

constante suspeição que, em graus diferenciados, altera não somente as suas formas de

interação com os atores externos, mas também a sociabilidade desenvolvida com os seus

próprios pares. São inúmeros os depoimentos de policiais que retratam o expediente da

suspeição como um “mecanismo de sobrevivência”, a um só tempo útil e existencialmente

sofrido. A suspeita apresenta-se como uma forma dramática de olhar o mundo social que

não pode ser literalmente suprimida da rotina de polícia, e cujo preço individual é a perda

da inocência original e da gratuidade prévia. Como uma das variáveis estruturantes da

subjetividade policial, a suspeita não se restringe ao âmbito do trabalho de polícia

propagando-se por todas as esferas de convívio social. Ela está presente na forma

amistosa com que os PMs estabelecem os seus vínculos de companheirismo e amizade,

na postura sempre vigilante quando eles escolhem e freqüentam espaços de lazer, no

119

Conforme já foi mencionado, esses eventos, quando registrados, tendem a aparecer na contabilidade das
ocorrências policiais militares ora como “desacato à autoridade”, ora como “abuso de autoridade”.
211

receio de que alguém que se aproxima pode guardar o objetivo de “tirar vantagem” da

sua condição de policial, etc.

Várias vezes observei que os PMs, durante suas rondas a pé em Copacabana, seguiam

conversando por longos períodos sem dirigir o olhar um ao outro. Tudo parecia indicar

que eles estavam mais preocupados em permanecer atentos ao que poderia vir até eles.

Muitos deles diziam que as ocorrências vêm sempre ao encontro do policial de uma forma

rápida e inesperada, sendo necessário manter-se alerta ao menor sinal de sua

aproximação, antecipando, através do olhar suspeitoso, o seu prenúncio ou a sua

imperceptível anunciação.

No dia-a-dia das atividades ostensivas, a suspeita aparece como um produto da

necessidade de manter um olhar cuidadoso e atento a qualquer signo de desordem, a

qualquer vestígio de problemas, de risco potencial ou de agressões fortuitas. Ela se

anuncia como um resultado do aguçado senso de missão, como um tipo de resposta

pragmática para os elementos de perigo, autoridade e eficácia que conformam a realidade

de polícia (cf. Skolnick, 1994). A exigência moral de que os PMs da ordem pública

procedam contra todos os prenúncios do que classificam como transgressões, desdobra-

se na expectativa de que eles sejam capazes de ultrapassar o mundo das aparências,

desvendando as artimanhas escondidas atrás dos mantos da pureza, da inocência e das

“boas intenções”. Neste sentido, a disposição para a suspeita é, não só constantemente

refinada pelas condições intrínsecas do trabalho policial nas ruas, mas também encorajada

durante a formação e a capacitação das praças. O desenvolvimento de um “faro fino” para

identificar pessoas que estiveram ou estão fazendo “coisas erradas” e, até mesmo, aquelas

que, no futuro, poderiam se encontrar “fora do seu devido lugar” ou “desalinhadas”, é


212

parte integrante do preparo daqueles que têm a atribuição de garantir a “paz e a

tranqüilidade públicas”. Invariavelmente, os manuais de polícia ofertam um guia para

identificação de situações e pessoas suspeitas. No capítulo relativo às “Técnicas de

Patrulhamento”, o “Manual de Instrução Militar e seus Regulamentos” que foi, durante

um longo período, adotado pelo Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças

(CFAP), exemplifica alguns “incidentes que justificam investigações” por envolverem

“pessoas suspeitas”:
213

XV – PESSOAS SUSPEITAS

A. Incidentes que justificam investigações:

1. Um automóvel estacionado em um beco (nem sempre é ilegal), porém pode indicar que um roubo está sendo
cometido ou alguém está a espreita de algo ou alguém.

2. Quadrilha de rapazes, 2, 3 ou 4 (ladrões de bolsas, arruaceiros).

3. Uma pessoa passando de um carro para outro (pequeno roubo ou roubo de automóvel).

4. Uma pessoa em pé, perto de uma registradora e o caixa está amedrontado. (Um assalto está se processando).

5. Uma pessoa caminhando para um lado e para o outro em frente a um posto de gasolina, mercearia, bar, agência
telegráfica etc. ( Fazendo observações para agir mais tarde).

6. A pessoa que fica nervosa ou amedrontada quando vê um policial.

7. Um veículo que está sendo dirigido sem licença ( roubo, infração de trânsito).

8. Um veículo avariado (atropelamento e fuga).

9. Uma pessoa que se retarda em um local à noite ou à hora de fechar (assalto).

10. Uma pessoa andando apressadamente à noite (pode estar atrasada para o serviço ou pode ser um criminoso).

11. Cães latindo.

12. Desocupados rondando guichês de estrada de ferro, terminais de ônibus, caixas de bancos etc.

13. Pessoas usando roupas pesadas quando as condições climáticas não recomendam.

14. Pessoas usando sapatos macios, silenciosos, à noite.

15. Pessoas transportando embrulhos tarde da noite.

16. Pessoas com os bolsos da roupa muito cheios (ladroes de lojas).

17. Uma pessoa no banco dianteiro que passa para o banco traseiro de um veículo.

18. Um carro indo e vindo na mesma rua.

19. Uma pessoa usando óculos escuros à noite (maconheiro).

20. Uma pessoa que deseja manter uma conversação consigo (distraindo sua atenção enquanto um cúmplice está
cometendo um crime por perto).

21. Uma pessoa pobremente vestida carregando uma mala bastante cara.

22. Desconhecimento de um veículo.

23. Homens rondando escolas, play-grounds, parques infantis etc. (Pervertidos sexuais).

24. Homens rondando toiletes públicos, piscinas etc. (Homossexuais).

25. Homens rondando à noite a entrada de agência de empregos femininos, hospitais, companhia telefônica.
(Assaltos).

26. Jovens indo de casa em casa em áreas residenciais, agindo como se fossem vendedores. (Ladrões de casas)

27. Homens rondando bares a hora de fechar (assaltantes de bêbados).

28. Mendigos indo de porta em porta (roubam mais do que pedem).


Fonte: Manual de Instrução Militar e seus Regulamentos. Polícia Militar do Estado da Guanabara – PMEG,
1972; pp: 229 –230.
214

É claro que essa lista de situações e de “elementos suspeitos” (categoria presente no atual

sistema de classificação das ocorrências), encontra-se defasada e sequer tem sido

integralmente adotada pela atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Contudo,

ela serve para indicar as principais variáveis que concorrem para a construção pedagógica

da suspeita no meio policial ostensivo. Dentre elas destacam-se, as necessidades

operacionais do trabalho policial (prevenção, dissuasão e repressão do crime e da

desordem); a demanda por resultados tangíveis; as visões comunitárias de ordem social e

seus níveis de tolerância para com a alteridade e; por fim, o “modus operandi” dos

indivíduos “vigiados” e a percepção do perigo construídos à luz dos padrões culturais que

conformam a moralidade ordinária ou convencional.

Do ponto de vista pragmático da cultura policial das ruas, suspeitar consiste em “uma

atitude saudável" de todo policial. Isto significa que, na ordem prática, os PMs da blue

line necessitam desenvolver mapas do mundo social, de modo que eles possam

identificar, monitorar e se antecipar à conduta potencialmente criminosa e desordeira dos

atores que circulam nos mais diferentes contextos da vida urbana. Os clássicos

indicadores sociológicos, tais como sexo, idade, raça, origem social e nível de renda,

assim como os comportamentos sociais e os estilos de vida, encontram-se a serviço de

uma “sociologia policial” voltada para a elaboração funcional de tipos sociais, cuja

aplicação considera os fatores contingentes circunscritos pelos horários e lugares onde os

eventos sob vigília ocorrem. Especialmente talhados para agir diante da menor alteração

que indique a possibilidade de crime e desordem, os PMs conferem à sua sociologia nativa

uma dimensão extremamente finalística e instrumental. Os tipos e estereótipos dela

resultantes orientam procedimentos e formas concretas de atuação no varejo das

interações cotidianas com os cidadãos.


215

Inescapável ao trabalho policial, a elaboração de estereótipos sobre indivíduos

“suspeitos” tem sido, não sem fundamento, objeto de críticas sistemáticas por parte da

comunidade científica e das representações das chamadas minorias sociais e políticas.

Consiste em uma espécie de lugar comum acadêmico, demonstrar que as categorias

policiais acionadas para identificar atores em “atividade suspeita” ou com

“comportamentos duvidosos e ameaçadores” refletem, em boa medida, as estruturas de

poder e as desigualdades sociais existentes na sociedade mais ampla. Sob esse recorte, os

mecanismos cognitivos da suspeição policial trariam uma motivação implícita voltada

para a discriminação daqueles atores que não se encontram bem posicionados no mercado

da cidadania. Segue que, aqueles que se situam na “periferia” da vida social ou que se

encontram inscritos ora na fronteira da informalidade, ora no limiar da clandestinidade,

tendem a ser elevados à condição de alvos principais da vigilância policial. Assim, muito

próximo do que ocorria nos primórdios das organizações policiais, a contabilidade da

vigilância do espaço público ainda dedica uma atenção especial às “classes de risco” que

incluem, evidentemente, os pobres, os jovens negros, os excêntricos e as minorias sexuais.

Na ordem dos eventos, a pedagogia da suspeita tem-se apresentado como uma questão de

difícil equacionamento, principalmente porque o campo da suspeição é, por sua própria

natureza e pela realidade à qual se aplica – a ordem pública, passível de ser contagiada

pelos juízos de valor que habitam o senso comum, mostrando-se vulnerável às diversas

expectativas morais dirigidas às atividades de policiamento. Os estereótipos dos supostos

“perturbadores” da “paz e tranqüilidade públicas” são, na economia prática policial,

facilmente convertidos em profecias que se autocumprem. Note-se que as pessoas que

apresentam os signos que informam esses clichês tendem a ser freqüentemente


216

questionadas e detidas para averiguação, o que certamente conduz à ampliação e ao

reforço dos comportamentos sociais classificados como “desviantes”. 120 Não muito

diferente do que anuncia a célebre frase pronunciada no filme Casablanca, os policiais,

enredados nesse círculo vicioso, estariam sempre propícios a “prender os suspeitos de

sempre”.

Mas, se a estereotipia constitui uma inevitável ferramenta derivada do caráter endêmico

da suspeita no trabalho policial – sobretudo, quando o campo de atuação da polícia

ostensiva é a ordem pública em seu sentido extenso - a questão crucial não é, portanto, a

sua existência; isto porque algum sistema de tipificação dos comportamentos sociais será

inevitavelmente concebido e acionado pela sociologia policial das ruas. Parece-me, então,

que o problema fundamental é se esse sistema está baseado na realidade dos eventos

conflituosos, desordeiros e delituosos, ou se ele tão-somente reproduz, em uma ordem

sensível e instrumental, categorias discriminatórias e entendimentos amadores das

técnicas de abordagem policial, de certo, muito pouco úteis às necessidades operacionais

da polícia, no que concerne às tarefas legais e legítimas de prevenção, dissuasão e

repressão.121 Uma vez constatada a última opção, percebe-se o quanto os estereótipos

policiais, informados apenas por juízos de valor, podem ser não apenas injustos com uma

120
A produção acadêmica relativa à construção social de identidades desviantes é extremamente rica e
ocupa um papel reflexivo importante nos estudos de antropologia e sociologia urbanas. Ver Goffman
(1978); Becker (1977); Velho (1981).
121
Hoje, dispomos de uma rica produção científica internacional sobre o universo da abordagem policial
que considera, por exemplo, os processos discricionários de tomada de decisão e de emprego da força
comedida. Contudo, este é um campo reflexivo que continua a estimular os estudiosos de polícia, sobretudo
porque boa parte dos estudos produzidos, dirigiu sua atenção para os grupamentos policiais especializados
e as forças-tarefa, deixando em segundo plano a realidade do policiamento ostensivo cotidiano que mobiliza
a maior parte dos recursos policiais. Para uma discussão sobre o tema ver: Fyfe e Greene (1996), Fyfe
(1982) Swanson (1998). Um dos modelos de uso de força empregados pelas polícias, em particular pela
PMERJ, foi desenvolvido pela Illinois University em parceria com o Federal Law Enforcement Training
Center. Este modelo é estruturado a partir do uso da força progressivo e proporcional ao nível de resistência
apresentado pelo oponente. Em anexo encontra-se o diagrama que explicita a dinâmica do modelo FLECT.
217

parcela expressiva de cidadãos, mas também contraprodutivos para os próprios propósitos

de uma polícia ostensiva, cuja missão constitucional é “preservar a ordem pública”

democrática com eficiência, eficácia e efetividade.

Há, ainda, um outro aspecto decisivo para o entendimento da pedagogia da suspeita no

meio policial. Para melhor contextualizá-la, é preciso considerar a alta dose de acaso e

incerteza inerente à realidade do trabalho de polícia, particularmente na sua versão

ostensiva. A dimensão volátil e descontínua dos eventos sobre os quais a PM atua, tanto

restringe a possibilidade de uma precisão cartesiana das decisões e ações policiais (já que

não se pode antecipar, com elevado grau de certeza, se será ou não necessário usar o

recurso efetivo da força e o seu nível adequado de emprego), quanto modula as

percepções dirigidas e difusas do perigo associadas à realidade da prática policial. Na

realização rotineira do seu trabalho, todo PM de ponta experimenta situações – inclusive

nas ocorrências “não criminais” – que ameaçam se tornar arriscadas para todos que estão

envolvidos. O cálculo ordinário do risco potencial ou efetivo em cada ocorrência

“assumida” e a preocupação em administrá-lo, faz parte do dia-a-dia do policial da ordem

pública que, em parte por conta disso, ocupa-se de educar a sua sensibilidade para a

suspeita. Nesse processo pedagógico, não é preciso ter passado por uma situação

efetivamente perigosa para construir o olhar suspeitoso. Isto porque o que está em jogo

na subjetividade policial são, antes, as expectativas do perigo e a apreensão do teor de sua

ameaça.

Robert Reiner (1992) chama atenção para a especificidade do elemento de perigo na

realidade policial. Para o criminólogo inglês, o perigo no meio policial não está

suficientemente representado pelas estimativas estatísticas do risco de lesões físicas e


218

fatais. Salienta que, enquanto outros profissionais como os mineiros e os técnicos que

convivem com elementos tóxicos, podem se encontrar expostos a níveis elevados de risco

de vida, os policiais são os únicos profissionais dos quais é exigido o convívio constante

com situações cujos riscos vinculam-se ao seu encontro com outras pessoas. Se em boa

parte das profissões consideradas arriscadas, as possibilidades de acidente de trabalho

resultam, principalmente, das falhas técnicas e dos azares ambientais, no caso da polícia,

os riscos derivam, por excelência, das interações com os cidadãos, as quais

inevitavelmente apresentam uma significativa margem de imprevisibilidade. O fato de

que a oportunidade do risco nas atividades ostensivas de polícia resulte de encontros

circunstanciais, faz com que os policiais alimentem uma percepção ampliada da ameaça

que pode, por exemplo, se fazer presente quando ele dobra uma esquina, atrás de uma

porta entreaberta, no comportamento de uma inocente criança que brinca com uma arma

de fogo, na pele de uma distinta senhora mentalmente transtornada, ou simplesmente na

expectativa de que alguma coisa está fugindo ao seu vigilante controle.

Essa percepção do perigo e de sua ameaça está, acrescenta Skolnick (1994), diretamente

associada à natureza do trabalho policial que compele os seus profissionais a permanecer

constantemente ocupados com a violência potencial. Segundo o sociólogo americano,

esse tipo de imperativo propicia o desenvolvimento de uma sensibilidade taquigráfica

para identificar certos tipos de pessoas como “agressores simbólicos”, isto é, como atores

cujos gestual, linguagem, atitudes etc. são, do ponto de vista do imaginário policial,

identificados a priori como um prelúdio ou um ensaio para a violência.

É importante ressaltar, que a gramática da ameaça exponencia as potencialidades do

perigo intrínseco às atividades policiais, sobretudo porque também multiplica o leque dos
219

atores sociais que, pela sua própria existência singular no cenário urbano, supostamente

atentariam contra a “boa ordem pública”. Nesse tipo de sintaxe, não é necessário que o

indivíduo, percebido como um “agressor simbólico”, tenha efetivamente cometido um

crime ou feito uso de recursos violentos. É suficiente que ele apenas contrarie o

desesperado amor pelo convencional que tanto comove a cultura policial das ruas. O

desordeiro, o desalinhado, o comportamento pouco usual apresentam-se como

manifestações ameaçadoras à regularidade ambicionada para a vida em comum. Parece

ser um traço transcultural, o profundo desgosto que os policiais de ponta sentem pelas

pessoas que matam o tempo nas ruas, que se vestem de forma extravagante, que falam

com acentos exóticos, que se comportam de forma expansiva, que apresentam um estilo

incomum etc. (cf. Skolnick, 1994; Graef, 1989; Chan, 1997; Reiner, 1992). Dependendo

da maior ou menor onda de legalismo moral – quase sempre motivada pelas pressões

políticas por resultados policiais tangíveis e pelos períodos de agravamento coletivo do

temor - as percepções sobre o perigo e as suas manifestações, em termos de realidades

sociais “ameaçadoras”, tendem a ser ainda mais exacerbadas, não só ampliando cada vez

mais o espectro de comportamentos e atitudes interpretadas como “suspeitas”, como

também reiterando demandas populares e autoritárias por ordem (cf. Soares et alli, 1996).

A esta altura, vê-se como a experimentação do perigo e da suspeita que ele ajuda a

alimentar, produz conseqüências ambíguas na cultura policial de rua. Soma-se a essa

ambigüidade, a íntima conexão entre o elemento de perigo e o exercício capilar da

autoridade policial. De forma apropriada, Skolnick (1994) argumenta que uma vez que o

policial representa, invariavelmente, a autoridade respaldada pelo uso da força legal e

legítima, ele está motivado a perceber e a enfrentar aqueles que, de algum modo, são

percebidos como atores que ameaçam essa mesma autoridade.


220

Diferentemente de outras organizações policiais ocidentais, a famosa Polícia Britânica

tem procurado controlar os efeitos indesejáveis da interdependência entre perigo e

autoridade, minimizando a importância conferida ao uso da força através da

transformação do Police Officer em um símbolo de uma lei impessoal e universalmente

aceita pelos ingleses. Todavia, apesar da pertinência desse esforço, cabe ponderar que

essa propositada representação do agente da lei costuma, na ordem prática das interações

entre policiais e cidadãos, ser objeto de questionamento, principalmente quando a sua

autoridade tem que ser exercida sobre alguém. 122 Nota-se que, mesmo nessa perspectiva,

o exercício discricionário consentido à autoridade policial permanece como uma

complexa questão a desafiar os estudiosos e os executivos de polícia. As decisões

policiais negociadas a cada ocorrência (ainda que adequadas, legítimas e legais),

encontram-se sujeitas a leituras valorativas ambivalentes, sobretudo para aqueles que não

se sentiram devidamente contemplados por elas. A baixa visibilidade desses processos

parece contribuir para a percepção generalizada de que a autoridade policial, uma

ferramenta de controle social, traria consigo o vício natural do “autoritarismo” que a

tornaria inevitavelmente “injusta” e “insensível” com uma parte de sua clientela.

A contrapartida de um mundo subjetivo estruturado pela suspeita, pela iminência do

perigo e por uma expectativa ampliada da ameaça social, é a elaboração de uma economia

afetiva da decepção que, ao longo da carreira policial, vai cristalizando uma visão

desencantadora e desapaixonada da vida urbana contemporânea. Os PMs da ponta da

linha, no empenho cotidiano de preservar uma ordem pública complexa, fragmentada e

122
Para uma apreciação das políticas de policiamento no mundo inglês, ver McLaughlin e Muncie (1996);
Morgan e Newburn (1997).
221

multicultural, percebem-se em uma espécie de “estado de natureza” social, cujo caminho,

apesar dos seus esforços para sustentar a thin blue line, apontaria para o caos entre os

homens e a desagregação crescente dos vínculos sociais. Este tipo de sociologia nativa

desapontada com os “rumos da vida em sociedade”, na prática reforçada pela

descontinuidade e pela crueza dos eventos experimentados no dia-a-dia, parece orientar-

se pela imagem de que, em um passado não muito distante, teria existido um “paraíso

social” ou um mítico “estado de sociedade” no qual não ocorriam crimes, assimetrias,

conflitos e interesses divergentes. 123 Trata-se, pois, de uma visão romântica de

communitas onde não havia a necessidade de arranjos institucionais de controle e

vigilância como as polícias, porque a humanidade, inocente, desconhecendo o poderio da

consciência e da vontade, ainda não havia se deixado sangrar pela invenção da política.

Nessa fantasia sociológica, as ondas de insegurança coletiva e as demandas crescentes

por “mais polícia nas ruas” aparecem como uma espécie de confirmação dramática de um

prognóstico que anuncia a realização do pior dos mundos sociais possíveis. Um tipo de

mundo destituído da “inocência original” da alma humana e corrompido pelo egoísmo,

pelo oportunismo e pela mentira. Aqui, a idealização da “barbárie social” está projetada

em um futuro que, no momento presente, já daria uma amostra de sua força moral

corrosiva: uma vez que “polícia muito perto é sujeira”, todos se veriam motivados a

123
Segundo depoimentos de vários policiais militares, tem crescido, nos últimos anos, o número de PMs
que se converteram as mais distintas denominações evangélicas, sobretudo entre as praças. Este tem sido
um fenômeno comum em várias polícias militares. Em algumas PMs que visitei, conheci grupos de policiais
"convertidos" que se autodenominavam "PMs de Cristo". Muitos são os elementos de natureza biográfica
que desencadeiam o processo de conversão. Dentre eles destaco as decepções sofridas e as dolorosas
experiências de se encontrar "entre a vida e a morte", situações tão comuns no mundo policial. Talvez a
realização de pesquisas sobre a religiosidade no meio policial, possa confirmar a suspeita de que exista uma
afinidade entre a desencantada sociologia policial e a forma pela qual os conversos reportam-se ao seu
"novo nascimento". Refiro-me aqui a um tipo de narrativa corrente que informa que os verdadeiros
convertidos "estão no mundo, mas não pertencem ao mundo".
222

“mentir para a polícia”, inclusive o “cidadão de bem”, que, intencionalmente, só contaria

“meias verdades” para o policial.

A sociologia policial do desapontamento mostra-se, portanto, muito pouco confiante na

natureza humana. O seu vaticínio sobre o que os homens e as mulheres fazem com o seu

arbítrio não é nem um pouco animador. Desse ponto de vista desgostoso e

desesperançado, bastaria uma simples oportunidade para o cometimento do crime, da

desordem e da violência. Conforme relatam os policiais, "a polícia atua na oportunidade

e não na vontade dos homens" . Tudo se passa como se houvesse uma predisposição

emocional dos indivíduos para praticarem toda sorte de erros e desatinos. O sentimento

de que, via de regra, “a ocasião faz o ladrão”, projeta os “cavaleiros da ordem pública”

na dolorosa situação existencial de se perceberem sozinhos na cruzada de resgatar o

“paraíso social” a muito tempo esquecido pelos atores que compõem a vida urbana

contemporânea. Nas ruas, isso se traduz na percepção de que eles estão sempre “em

desvantagem”, não importando a natureza e as circunstâncias que configuram cada

ocorrência “assumida”. Sob esta ótica, os PMs entrariam em cena “derrotados pela

hipocrisia e pelo oportunismo da sociedade”, cabendo a eles “correr atrás do prejuízo”,

buscando o resultado menos pior.

Somam-se aos sentimentos de frustração que os PMs de ponta nutrem em relação à

invisibilidade institucional e pública a que está confinada a maior parte das atividades

ostensivas convencionais, a sofrida e preocupante percepção de que nem mesmo a justiça

criminal parece ser capaz de "fazer justiça" ao seu árduo e arriscado trabalho. A máxima

"a polícia prende e a justiça solta" além de animar os seriados de TV, visita os diversos

meios policiais brasileiros e internacionais (cf. Graef, 1989; Skolnick, 1994; Kleinig,
223

1997). Em verdade, ela põe em evidência um dilema concreto experimentado pelos

policiais e que se traduz na necessária descontinuidade entre a "culpa factual", construída

a partir do saber policial de rua e das interações cotidianas com atores suspeitos e

criminosos, e a "culpa legal", formada a partir da validação jurídica dos elementos e

provas de culpabilidade encaminhados ou não pela polícia. Esta é uma tensão

indispensável nos Estados democráticos que ocupam-se de dissociar o mundo racional-

legal da justiça das práticas apaixonadas e ilegítimas de justiçamento. Entretanto,

administrar essa tensão no cotidiano de polícia consiste em uma tarefa emocionalmente

desgastante. A temporalidade da ação ostensiva orientada pelo agora-já das pessoas e dos

acontecimentos que, em sua maioria, configuram eventos dramáticos, contrasta

radicalmente com a temporalidade do mundo jurídico que não se encontra subordinado

às pressões produzidas pela ocorrência de incidentes criminosos e violentos. Em outras

palavras, o tempo jurídico penal concebido pós fato não é contíguo ao tempo policial que,

constituído em ato, está constrangido a perseguir e a se antecipar á emergência dos

eventos criminais, conflituosos e desordeiros.

De fato, os policiais encontram-se mais próximos da "realidade" dos comportamentos

torpes e degradantes e, paradoxalmente, muito distantes da sua "verdade jurídica", isto é,

daquela "realidade" que legalmente conta para o sistema criminal. Os PMs de ponta

sabem que os "vagabundos e malandros" que praticam delitos em sua área de

policiamento e que, por sua vez, não "assinaram na justiça" os seus crimes, voltam para

as ruas para "ameaçar o cidadão ordeiro e se vingar do policial" que o prendeu. Sabem

ainda que os cidadãos "acuados pela audácia dos bandidos só cobram [soluções] da

polícia" e não da justiça. Do ponto de vista policial, tudo isso se traduz na desiludida

sensação de que os operadores do judiciário, protegidos em suas torres de marfim dos


224

horrores e perigos das ruas, vividos pelos policiais e cidadãos comuns, conspiram contra

os méritos da polícia, dificultando, sempre que possível, o trabalho policial. Nessa

perspectiva ressentida e desencantada, os policiais fariam "o trabalho pesado" tão-

somente para enaltecer juízes, promotores, defensores e advogados que, apesar de "bem

vistos pela sociedade", jamais teriam arriscado suas vidas "em nome da lei". 124

Um dos artifícios que servem de consolação à suposta experimentação solitária da defesa

da sociedade contra o crime e a desordem é a crença no caráter indispensável da polícia

na vida dos cidadãos. A despeito do fato de que a polícia pode também vir a produzir a

desordem e o temor, a visão de que o mundo social seria ainda pior sem o seu abnegado

trabalho é central para a cultura policial das ruas. Não muito diferente dos cops

americanos e dos bobbies ingleses, os PMs cariocas aprenderam a se pensar como a thin

blue line, isto é, como a única linha de defesa da sociedade contra os criminosos e outros

malfeitores. De certo, nossos soldados, cabos e sargentos PMs necessitam,

emocionalmente, seguir, ao menos em parte, acreditando que, mesmo desprovidos do

merecido reconhecimento social, eles desempenham um papel essencial na salvaguarda

de uma vida em comum pacífica e ordeira. A extinção de sua presença é vista, portanto,

como produzindo conseqüências por demais desastrosas para ser efetivamente tentada na

prática. A profecia é bastante explícita: em um mundo sem polícia, assistiríamos

indefesos e apáticos ao domínio absoluto da barbárie, à proliferação da anarquia e à

consolidação definitiva do caos.

124
No artigo "O problema da polícia", Antonio Luiz Paixão chama atenção para as “suspeitas coletivas” e
o “baixo prestígio atribuído quase universalmente à profissão policial”, vista como um serviço “sujo”, em
contraste com a “pureza” que o Judiciário reivindica para seu trabalho de “aplicação imparcial e
desinteressada da lei por meio do ritual do procedimento”. Ver Paixão (1995:11).
225

É evidente que há nisso um fundo de constatação sociológica. No caso brasileiro, basta

chamar à memória as cenas reais de temor coletivo resultantes da greve das PMs, ocorrida

em várias capitais, no ano de 1997. A suspensão temporária da presença ostensiva nas

ruas e mesmo da sua expectativa propiciou o ambiente necessário não apenas para a

organização de grupos privados de vigilância e de autoproteção, como também a

oportunidade para ações coletivas predatórias como saques e invasões a residências e

estabelecimentos comerciais. Contudo, o que importa enfatizar aqui é a forma pela qual

o pessimismo sociológico é experimentado no cotidiano dos policiais militares com os

quais convivi.

Conforme já mencionei, a dura pele de amargura desenvolvida pelos PMs ao longo de

sua trajetória nas ruas contribui para a cristalização de uma visão apocalíptica da evolução

do mundo social contemporâneo. Na condição de uma "minoria" consciente de seu

solitário papel e cercada por todos os lados pelas forças crescentes da barbárie humana,

os policiais da ponta da linha anunciam, na contramão das tendências da vida política

democrática, a convicção de que seria necessário e oportuno ampliar a sua autoridade e,

por conseguinte, o seu "poder de polícia". 125 Tudo isso, é claro, para fazer frente às graves

ameaças à paz e à tranqüilidade públicas. As justificativas morais para esta "imperiosa

necessidade" encontram seu fundamento em um tipo de sociologia de senso comum que

define e explica a complexa realidade social unicamente através dos seus vínculos

primários. Nesse tipo de visão funcional das interações sociais, a própria existência de

outras formas de sociabilidade e agregação social, além das clássicas instituições

familiares, educacionais e religiosas se apresentaria como uma demonstração cabal das

125
Para uma reflexão crítica acerca da retórica policial sobre a necessidade de ampliação do "poder de
polícia" em outras polícias ver Rico e Salas (1992); Bayley (1994); Morgan e Newburn (1997).
226

disfunções sociais, ou melhor, como uma espécie de "sintoma do adoecimento do

organismo social". Desse ponto de vista, as dinâmicas contemporâneas de produção

identitária, as experimentações transversais das temporalidades sociais, os processos

multiculturais de territorialização e desterritorialização comuns à vida metropolitana, a

proliferação de comunidades sem unidade fixa de lugar como, por exemplo, as diversas

redes formadas por internautas, não seriam outra coisa que uma prova infeliz da crescente

deterioração dos pilares sociais responsáveis pela construção da civilidade. Tudo se passa

como se os policiais da ordem pública tentassem "enquadrar" a vida urbana atual através

das velhas lentes sociológicas da metade do século já refutadas e colocadas em desuso

pelas ciências sociais.

Nesse universo policial em desencanto seriam muitos os estímulos contrários à moral

pública e aos bons costumes. Seriam inúmeras as "más influências" que invadem os lares,

comprometem os locais de trabalho e contaminam os espaços de lazer. Com veemência,

sua retórica fatalista adverte sobre "os desserviços prestados pela mídia", uma poderosa

ferramenta "de alienação da juventude” e de "desagregação dos laços sociais". Note-se

que quando instados a falar sobre o problema da criminalidade e da violência urbana, os

PMs da blue line acionam um tipo de seqüência argumentativa que começa com a ruptura

da primazia das estruturas familiares e educacionais no processo de socialização e termina

com uma crítica ao excesso de liberdade concedido aos meios de comunicação.

A demonização dos meios de comunicação de massa, particularmente a televisão, tem

sido uma moeda corrente nas queixosas narrativas policiais. Segundo esses discursos, as

TVs estariam diariamente divulgando os maus hábitos, elogiando os péssimos exemplos


227

de comportamento e, por conta disso, promovendo não só a "banalização da violência"

como também uma "destrutiva inversão dos valores da sociedade"...

"Daqui a pouco eu vou completar 27 anos de polícia tirada. Nesse tempo todo eu
nunca presenciei cenas de violência iguais aquelas que os meus filhos vêem nos
filmes passados na televisão. Outro dia eu cheguei em casa e eles estavam assistindo
um filme de ação que o mocinho grandalhão atirava para todos os lados, matando
todo mundo de uma vez só. Eu tento explicar, ensinar as coisas para eles. Mas eu
sinto que não adianta muito. Eles acham esses enlatados americanos uma curtição.
Para eles o careta sou eu."
(Sargento PM, com 27 anos de serviços prestados à PMERJ)

O poder sedutor das TVs é de tal maneira superestimado na sociologia policial que nem

mesmo os centuriões da ordem pública conseguem sair completamente ilesos das infinitas

provocações. De acordo com os próprios PMs, tem sido crescente o número de casos de

separação conjugal, alcoolismo e distúrbios mentais dentro da sua corporação. 126 Muitos

deles identificam a raiz do problema tanto na natureza do trabalho policial quanto na

capacidade que a mídia teria de "fazer a cabeça das pessoas para as coisas ruins". 127 O

diagnóstico saído da cultura policial das ruas é bem claro e direto: os avanços e a

"liberdade excessiva" propiciados pela vida moderna possuem uma importante parcela de

responsabilidade na fabricação da "desarmonia social", cada vez mais agravada pelo fato

do poder de polícia não ter sido ampliado na proporção do aumento da "liberação da moral

126
Segundo os dados do Hospital Central da Polícia Militar relativos ao ano de 1997, 16,9% dos Atestados
de Incapacidade Física Parcial (IFP) e 5,6% das Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) foram emitidos
pela Clínica de Psiquiatria.
127
Níveis elevados de divórcios, de alcoolismo e de suicídio têm sido, de longa data, uma fonte de grande
preocupação em diversas organizações policiais. O estudo sistemático da incidência e da gravidade destes
problemas no meio policial contribuiu para que vários departamentos americanos de polícia alterassem a
sua política de recursos humanos e de assistência social, introduzindo programas preventivos voltados para
a redução do estresse e para a melhoria da qualidade e segurança no trabalho. Ver Bittner (1975).
228

e dos costumes". Resulta dessa visão de mundo desesperançosa e, em boa medida,

conservadora uma certa nostalgia em relação a um período em que, supostamente, a

"polícia era mais respeitada pelo cidadão de bem e temida pelos marginais da lei".

Circulam entre os policiais de ponta inúmeras estórias de uma época na qual o policial

teria desfrutado de "melhores condições para trabalhar". A idade do ouro policial

corresponderia, portanto, a um tempo em que os cidadãos, ainda pacatos, não tinham

acesso irrestrito aos malefícios produzidos pela televisão e as organizações policiais

possuíam um grau maior de autonomia para detê-los e revistá-los.

Mas, a saudade de um período em que "até os criminosos tratavam o PM com

consideração" - e que certamente a maioria da jovem tropa policial sequer experimentou

- não só põe em evidência o apego extremado da cultura policial de rua a tudo aquilo que

se associa ao convencional e ao permanente, como também anuncia a frustração quanto

ao exercício do trabalho ostensivo no presente. A desencantadora percepção de que

apenas a polícia parece se preocupar em restaurar o maravilhoso mundo social de Alice,

é alimentada pela própria complexidade do cotidiano ostensivo de polícia assim como por

toda sorte de dificuldades estruturais, incluindo aí os históricos baixos salários da

PMERJ.128

Estes sentimentos de decepção vividos de forma mais aguda pelo mundo das praças

encontram solo fértil nos expedientes de ascensão e valorização profissionais da carreira

policial militar. O sistema de dupla entrada da PM prevê o ingresso na organização

policial militar pelo quadro de oficiais ou pelo quadro de praças. Para os candidatos que

128
A baixa remuneração da tropa policial parece ter sido um problema recorrente nas organizações policiais
brasileiras, desde a sua infância. Ver Holloway (1997).
229

iniciam a sua carreira policial como Oficial PM, está aberta a oportunidade para galgar

os postos mais elevados da corporação, que se traduzem nas prestigiadas posições

superiores de comando e planejamento quase sempre distantes do trabalho nas ruas. O

mesmo não ocorre com aqueles policiais que “vêm de baixo” da pirâmide hierárquica.

Conforme evidencia o quadro abaixo, ao final dos seus 30 anos de serviços prestados, os

soldados da PMERJ podem chegar, caso consigam encurtar os interstícios, no máximo à

patente intermediária de capitão:


230

Critérios de promoção e ascensão


Posto Tempo Qualificações
por patente Serviços Requisitos
Prestados
PRAÇAS129
Soldado a Cabo 8 anos 8 anos  Comportamento disciplinar
classificado, no mínimo, como "bom".
Cabo a 3º Sargento 7 anos 15 anos  Comportamento disciplinar
classificado, no mínimo, como "bom".
 Curso.
3º Sargento a 2º Sargento 5 anos 20 anos  Comportamento disciplinar
2º Sargento a 1º Sargento 5 anos 25 anos classificado como "excepcional".
1º Sargento a Subtenente 5 anos 30 anos  Curso.
Subtenente a 2º Tenente 5 anos 35 anos
OFICIAIS130
Asp. Oficial a 2º Tenente 6 meses 6 meses  Comportamento disciplinar
2º Tenente a 1º tenente 2 anos 2 anos classificado como "excepcional".
1º Tenente a Capitão 3 anos 5 anos  Curso.
Capitão a Major 4 anos 9 anos
Major a Tenente Coronel 3 anos 12 anos
Tenente Coronel a Coronel 3 anos 15 anos  Merecimento
 Curso
Uma vez tendo cumprido o interstício mínimo em seu posto e atendido às exigências de qualificação
para a patente pretendida, o policial ingressa no Quadro de Promoções que se pauta pelos seguintes
critérios:
 Antigüidade - precedência hierárquica de um graduado sobre os demais de igual graduação.
 Merecimento - conjunto de qualidades e atribuições que distinguem o graduado dentre seus pares.
 Bravura - atos não comuns, de coragem e audácia, que ultrapassando o os limites normais do
cumprimento do dever, representam feitos indispensáveis ou úteis às operações militares, pelos resultados
alcançados ou pelo exemplo positivo deles emanados.
 Promoção "Post-mortem" - reconhecimento do Estado ao graduado falecido no cumprimento do dever
ou em conseqüência disto.

A lição que fica para os já decepcionados PMs, é de que quanto mais próximos eles se

encontram das tarefas efetivamente policiais, menores são o prestígio e o status conferidos

pela organização. Isso significa que a expectativa de melhoria de posição e rendimento

pressupõe a mudança de patente e o afastamento gradativo das atividades concretas de

policiamento.131

129
O Regulamento de Promoção de Praças (RRP), aprovado em 28 de novembro de 1984, foi atualizado
pelos Decretos n.º 22.169 - maio de1996 e n.º 23.673 - novembro/1997.
130
O Decreto n.º 216, aprovado em 18 de julho de 1975, estabelece os critérios de Promoções de Oficiais
ainda adotados pela corporação.
131
Em uma entrevista concedida á revista Veja, em 3 de março de 1999, o Coronel José Vicente da Silva
Filho, chama atenção para o fato de que "aprende-se logo, nas PMs que, quanto mais longe do policiamento,
melhor para a carreira".
231

De fato, esse tem sido um problema enfrentado por todas as instituições policiais,

brasileiras e internacionais, que adotaram o modelo paramilitar de organização, incluindo

neste universo aquelas polícias que possuem um rank hierárquico mais enxuto e cuja

concepção de carreira pressupõe o ingresso único ou um estágio obrigatório pelas

atividades de rua.132 Em verdade, a questão de fundo é que a arquitetura organizacional

paramilitar mascara, em boa medida, o fato de que as polícias são (por exemplo, como o

magistério e a medicina), organizações “profissionais” inscritas no universo da prestação

de serviços (cf. Azevedo, 1998). Seus integrantes figuram como experts que desfrutam

de um alto poder decisório no desempenho de suas atribuições. Por conta disso, eles não

precisariam abandonar suas atividades na linha da obrigação para ascender

profissionalmente e alcançar níveis superiores de remuneração. Cabe salientar que, uma

das características fundamentais das organizações classificadas como “profissionais” é,

precisamente, a real valorização dos quadros que estão na linha de frente e que, por isso

mesmo, desfrutam de um elevado grau de discricionariedade.

No caso específico das PMs, apesar do “poder de polícia” ser concreto e amplo na base

da pirâmide paramilitar, isto é, no mundo das praças ou entre os executivos de quarteirão,

sua concessão não é coerente com os expedientes militares de reconhecimento

profissional que operam dentro da organização. Resulta daí, uma espécie de hiato entre o

oficialato e as praças que só contribui para reforçar os velados conflitos internos e as

desilusões relativas às expectativas de sobrevivência e de futuro dentro da corporação

daqueles que estão lotados nas atividades de policiamento.

132
Para uma apreciação das estruturas organizacionais de diversas polícias, ver: Bayley (1994).
232

Nesse tipo de cenário, os efeitos do desapontamento são inevitáveis ao longo da trajetória

policial de ponta. As decepções experimentadas dentro e fora dos quartéis vão, aos

poucos, minando o forte senso de missão que pontuou o ingresso e a permanência na

carreira policial. De uma forma mais dramática, cresce também o já comentado “cinismo

policial”, expresso, por exemplo, nas elaboradas encenações de presteza no cumprimento

de uma tarefa extra-policial, que quase sempre mascaram o real desinteresse pelo que

acontece nas ruas. De um modo geral, os PMs mais antigos e experientes, em boa parte

desiludidos com a sua dura opção de vida, tendem a economizar a confecção de

alternativas pró-ativas e criativas de intervenção, restringindo-se a realizar o que eles

próprios definem como “só cumprir as ordens do oficial superior” ou tão-somente “fazer

o arroz com feijão”. A sensação de que “se deu mais à corporação do recebeu” motiva

esses PMs a se ocuparem principalmente da contagem regressiva para a reserva e a

aposentadoria. Em boa medida, a contabilidade do tempo de polícia “tirada” leva os

profissionais de rua mais vividos a competir pelo “serviços mais leves”, tais como ser

motorista de algum oficial ou autoridade e demais rotinas administrativas alheias à

realidade efetiva de polícia.


233

4. "Um sujeito homem": Orgulho, preconceito e relativização

"Esse negócio de homossexual vai até contra a natureza. Mas, até aí tudo bem. O que não dá para aceitar é
o comportamento deles [os travestis]. É só o policial chegar na ocorrência que eles começam a tumultuar a
situação, eles começam fazer escândalo. Eles ficam gritando que o PM vai bater e tirar as coisas deles. Eles
criam confusão com eles mesmos. Eles gostam é de provocar. Eles querem mesmo é complicar o lado deles
com a polícia."
(Soldado PM com 6 anos de serviços prestados à PMERJ)

"Eu sou de origem humilde mas eu tive berço porque a minha família me deu educação. Eu tive uma família
para me dar uma orientação. Mas você pode observar que na minha raça tem muito mais gente que não
presta, que não tem jeito mesmo porque tem um sangue ruim. Eu que tenho que correr atrás de marginal,
vejo isso. Tem sempre mais bandido crioulo do que bandido branco."
(Soldado PM com 7 anos de serviços prestados à PMERJ)

"Quando eu entrei para PM não tinha concurso para mulher. Eu não sou contra mulher na polícia. Tem
muita mulher polícia que é mais "responsa" do que muito homem. Mas o serviço de rua é muito puxado e
perigoso. É coisa para sujeito homem mesmo."
(Sargento PM com 21 anos de serviços prestados à PMERJ)

Já mencionei que não foi uma tarefa fácil participar do dia-a-dia das atividades de

patrulhamento dos policiais. A presença constante de pesquisadores no 19º BPM

acompanhando toda rotina de uma unidade operacional ostensiva, particularmente o

trabalho nas ruas, não foi a única novidade perturbadora em um mundo acostumado à

ausência e mesmo a uma certa indiferença por parte dos atores externos. 133 Certamente,

outros elementos ajudariam a compor a estranheza inicial que uma modesta "guarnição"

de cientistas sociais provocava no meio da tropa. O fato de não sermos jornalistas -

personagens que, do ponto de vista policial, sempre "querem se promover às custas da

PM" - amenizou um pouco a presumível desconfiança sobre o nosso interesse em querer

"conhecer de perto"134 os policiais e monitorar o programa de policiamento comunitário

133
Creio que a fragilidade da imagem pública da Corporação Policial Militar e o isolamento social
experimentado pelos seus integrantes serviram de cenário para dúvidas e temores relativos à interação mais
estreita com personagens alheios ao mundo da polícia. Policiais Militares, tanto do oficialato quanto do
círculo das praças, reportam-se constantamente à existência de uma espécie de "medo da sociedade" que se
faria presente em parcelas significativas do efetivo policial. Alguns PMs mais críticos chegam a explicitar
em suas narrativas que eles "não estão devidamente preparados para lidar com a sociedade" porque ao longo
de décadas teriam sido "educados" para evitar o convívio com os cidadãos.
134
234

implantado no segundo semestre de 1994, nos bairros de Copacabana e Leme. Contudo,

a composição de nossa equipe parecia emprestar um toque singular à novidade. Além do

"gringo engraçado que falava bem português e tinha um [duvidoso?] brinco na orelha",

havia duas moças (uma que usava uns óculos azuis "diferentes" e a outra, aficionada por

chocolates) que também faziam questão de ir para o serviço de ronda, quando se esperava

que elas permanecessem "aquarteladas", isto é, ocupadas com as atividades internas do

Batalhão. Durante os onze meses da pesquisa de monitoramento, nenhum dos sessenta

PMs que compunham a Companhia de Policiamento Comunitário chegou a explicitar o

desconforto de ter "moças à paisana" como "parceiros de rua". Entretanto, podia se ler

nos subtextos das nossas primeiras interações o receio que uma companhia feminina

parecia causar entre eles. Apesar da suspeita coletiva de que a pesquisa consistia, à

primeira vista, em uma outra forma de vigilância e fiscalização concebida pelo alto

comando da PM, o pesquisador de nossa equipe não encontrou maiores dificuldades para

elaborar uma agenda de rondas com os "rapazes do policiamento comunitário". Mesmo

que não "entendesse nada de polícia" e necessitasse passar por alguns rituais de

batismo 135, a condição de representante do ethos masculino garantia, ao menos em parte,

o seu passaporte para a entrada no "duro meio policial". Inversamente, eu e minha

companheira de equipe - que, aliás, "mais parecia uma menina" - não encontramos o

mesmo grau de facilidade. A despeito da autorização vinda de cima, foi preciso conquistar

O processo amistoso de aproximação entre a nossa equipe de pesquisa e os policiais do 19º BPM foi
marcado por um ritual curioso: durante os três primeiros meses fomos sutilmente instados a repetir para os
PMs de ponta e dos escalões intermediários os propósitos de nosso trabalho e os motivos que nos levaram
a querer trabalhar com a polícia. Guardadas as devidas proporções, essas inquirições regulares lembravam
em muito aquelas técnicas policiais, nas quais o "elemento suspeito" é submetido a sucessivas interrogações
para confirmar a consistência e a veracidade de seu depoimento.
135
Na primeira fase de nosso convívio foram muitos os comentários jocosos que circulavam no interior da
tropa, sobretudo entre os PMs "tradicionais" que viam com restrição a implantação da filosofia comunitária
de polícia. De um modo geral, os PMs aproveitavam o espaço das rondas para testar a "masculinidade" de
nosso pesquisador através de sutis provocações sobre sua coragem e, por sua vez, sobre a sua capacidade
de agir como um "sujeito homem" nas situações de perigo e risco.
235

a confiança e o consentimento do pessoal da base. Os diversos pedágios introduzidos para

possibilitar o acesso "das moças do Viva Rio" 136 às atividades de ronda incluíam longas

homilias quase sempre recheadas por "sinceras advertências" sobre os inúmeros riscos de

se caminhar par e passo com PMs pelas ruas do bairro, incluindo aí a assimilação da

desprestigiada pecha de "amigas de PM". A retórica policial esforçava-se por responder

a indagações enunciadas sobretudo através de movimentos corporais que, via de regra,

revelavam o caráter inusitado da nossa "ingênua" disposição de ir para as ruas. As

preocupações mais comuns diziam respeito á crença no possível "comprometimento do

bom andamento do trabalho de patrulha": O que fazer com essas moças quando acontecer

um chamado emergencial? Como assumir uma ocorrência perigosa com elas ao lado?

Como garantir sua integridade física? E se acontecer um assalto, o que fazer? O que vão

dizer os PMs "tradicionais"? Será que o cidadão vai pensar que o PM está namorando em

serviço? Será que essas moças têm realmente idéia do que estão querendo?

O resultado da queda de braço entre a nossa inabalável persistência e as resistências

iniciais dos policiais, foi a típica saída masculina e cavalheira de não recusar um pedido

feminino mas de cumpri-lo com as devidas reservas e restrições: por fim, os policiais

comunitários decidiram levar as pesquisadoras somente para "conhecer e passear" nos

seus subsetores. Já nas ruas com os PMs nós, as "meninas" da pesquisa, logo aprendemos

136
O Movimento Viva Rio constitui um parceiro fundamental para a PMERJ não só na fase de elaboração
do projeto de polícia comunitária como também durante todo o processo da sua implantação. Coube, por
exemplo, ao Viva Rio o trabalho de sensibilização das comunidades, de organização dos seis Conselhos
Comunitários de Área (CCAs) e de articulação com a mídia. Para os PMs comunitários, o Movimento Viva
Rio era visto como um importante "padrinho" e um estratégico mediador junto á cúpula da PMERJ e ao
Governador. Tratava-se de um canal privilegiado através do qual se acreditava poder fazer escoar toda sorte
de demandas, reclamações e insatisfações que não necessariamente encontravam lugar na cadeia de
comando e controle da PM. Em parte por conta disso, os pesquisadores do Iser costumavam ser
interpretados como "mensageiros" e "representantes do Dr. Rubem César Fernandes", coordenador do
movimento. Assim, no interior do Batalhão nós fomos também frequentemente identificados como o
"pessoal do Viva Rio" que estava ali para "defender os PMs" e garantir os meios necessários para a
consolidação do programa.
236

que ante a menor suspeição de que algum episódio muito arriscado ou "impróprio para

mulheres" poderia vir a acontecer, deveríamos sempre guardar uma significativa distância

de nossos parceiros e, na oportunidade de situações extremas, esquecer nossas

curiosidades, abandonando definitivamente a patrulha a pé.

O impacto que a despretensiosa presença de mulheres na equipe de pesquisa provocou no

interior do Batalhão acabou por se traduzir em uma sinalização importante sobre o

propagandeado "machismo policial". Diversos autores que se dedicam ao estudo dos

meios de força comedida reportam-se ao "machismo" como um traço cultural expressivo

e comum nas mais distintas organizações policiais (cf. Muir,1977; Graef, 1989; Reiner;

1992; Bittner, 1990; Skolnick, 1994; Chan, 1997). Constata-se, na literatura acadêmica

mais recente sobre polícia, a existência de um consenso acerca do caráter sexista da cop

culture. Alguns pesquisadores associam a proeminência do sexismo policial à forte

influência que a visão de mundo puritana exerce sobre as organizações policiais

americanas e inglesas. Tudo se passa como se o imaginário puritano servisse como uma

espécie de terreno próspero para o florescimento de uma mentalidade cujos insumos

simbólicos trariam uma marca conservadora e extremamente normativa. Mas, face à

evidência de que o fenômeno do machismo policial se faz presente também naquelas

sociedades de tradição católica - como a nossa, por exemplo -, outros estudiosos preferem

enfatizar sua correlação com o histórico ethos masculino da força e, por sua vez, com o

tardio ingresso de mulheres nas agências policiais.

As inúmeras resistências corporativas ao acesso de mulheres nos meios de força tanto da

defesa nacional quanto da ordem pública, tem sido um problema recorrente em vários

países de tradição democrática. Restringindo-me á problemática no interior das


237

organizações policiais, é interessante notar que mesmo a polícia inglesa, matriz das

modernas burocracias policiais, só possibilitou o ingresso de policiais femininas em seus

quadros na década de oitenta, isto é, 150 anos após a sua criação por Robert Peel. Em

outras polícias européias, como é o caso da polícia austríaca, a democratização do acesso

a carreira ocorreu somente nestes últimos anos. 137

Na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, o atual contingente policial feminino não

ultrapassa a tímida cifra de 1,2% de toda a tropa e o seu ingresso data do início dos anos

80, ou melhor, 175 anos após a fundação da primeira força policial ostensiva brasileira. 138

Certamente, quase dois séculos de restrição à presença feminina no interior da polícia da

ordem pública não é uma constatação trivial. De um lado, esse fato está inscrito em nosso

processo histórico de conquista e ampliação dos direitos civis. De outro, anuncia que o

simbolismo vinculado não só ao emprego amador e profissional da força, como também

à gramática da criminalidade e violência urbanas, possui uma explícita clivagem de

gênero cuja ênfase é eminentemente masculina. A virilidade e os valores que a ela

atribuímos foram e ainda têm sido uma característica cultural predominante na auto-

imagem dos organismos policiais e, por sua vez, na sua forma de "estar no mundo". Na

linguagem cotidiana de polícia, isso pode ser traduzido da seguinte maneira: tudo aquilo

137
Em recente entrevista concedida, o Diretor do Ministério do Interior da Austria, Dr. Franz Brenner,
ressaltou que um dos importantes esforços políticos tem sido o de ampliar o efetivo policial feminino, sendo
a meta do atual governo social democrata elevar o percentual de mulheres nas polícias de 12,5% para 30%
nos próximos dois anos.
138
A portaria nº 27-EME, de 16 de junho de 1977, que estabelece as Normas para a organização das Polícias
Militares e Corpos de Bombeiros Militares define a oportunidade para a criação da “Polícia Feminina”,
assim como os propósitos de seu emprego. O Capítulo III determina que: “Nas atividades normais de
policiamento ostensivo verificando-se acentuadas dificuldades para a efetiva ação no trato com menores
delinqüentes ou abandonados e com mulheres envolvidas em ilícitos penais. Para atender a esse campo da
atividade policial e também a certos tipos de relações com determinado público, no interesse da
corporação,caso julgado conveniente, é possível dotar as Polícias Militares de elementos de Polícia
Feminina. Após a adoção de instrumentos legais, poderão ser criadas organizações de Polícia Feminina
com determinados graus hierárquicos, assemelhados ao da hierarquia militar”.
238

que guarda alguma afinidade com o atributo físico da força, a oportunidade de seu uso e

excesso, seria, por definição, "coisa de sujeito homem".

Talvez seja oportuno fazer aqui um breve parênteses apenas para ressaltar que a abertura

de concursos mistos dentro da PMERJ ocorreu no bojo do processo de redemocratização

política. No ano de 1982 tem-se, em todo país, o retorno às eleições diretas para

governador. A vitória eleitoral, no Rio de Janeiro, do chamado "socialismo moreno"

possibilitou o ambiente necessário para que mudanças significativas tomassem lugar

dentro da força policial ostensiva. Logo ao assumir o governo do Estado, o então

governador Leonel Brizola fez publicar um ato importante que determinava que somente

policiais militares da mais alta patente poderiam ocupar o cargo de comandante geral da

Polícia Militar.139 Essa medida executiva inaugurou um novo momento identitário para a

PMERJ porque marcou o rompimento com um estranho costume que havia se arrastado

por mais de 170 anos da história política carioca: a tradição de se nomear para o posto

máximo da PM militares indicados pelo Exército brasileiro. 140 É em um cenário de

reconstrução da identidade institucional da força policial ostensiva e, por conseguinte, de

adequação de sua doutrina e missão às demandas contemporâneas por uma ordem pública

democrática, que o debate acerca da igualdade de direitos no acesso à carreira policial

militar ganha força e lugar. A partir de 1984, as mulheres ingressam nas fileiras da

organização, entretanto na condição restritiva de um "quadro especial", cujo grau máximo

139
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, promulgada em 5 de outubro de 1988, regulamenta a
proposta do executivo no seu artigo 189, parágrafo 2: "As corporações militares do Estado serão
comandadas por ofical combatente da ativa, do último posto dos respectivos quadros, salvo no caso de
mobilização nacional".
140
De acordo com os depoimentos de oficiais mais antigos da PMERJ, até 1982 o nome do comandante da
PM saía de uma lista tríplice produzida pelo Comando do Leste e acatada pelos governadores.
239

de ascensão profissional estava limitado ao posto de capitão.141 As pressões pelo acesso

universal para homens e mulheres policiais dentro da corporação redundaram na recente

unificação dos quadros e dos mecanismos de acesso. Todavia, apesar dessa relevante

conquista formal, a sutil discriminação nos expedientes de recrutamento, promoção e

lotação, ainda constitui uma realidade que se reflete no pequeno efetivo feminino e que

só contribui para reforçar o sexismo da cultura policial. 142

Não muito diferente do que ocorre em outros universos profissionais marcadamente

masculinos, como a construção civil, o transporte de carga, o sistema rodoviário, etc., a

bazófia sexual e as conhecidas piadinhas de mau gosto - hoje já classificadas como

"politicamente incorretas" - também fazem parte da gestão cotidiana das interações de

gênero no ambiente de trabalho policial. No interior da força ostensiva, os comentários

jocosos, os deboches e as pequenas provocações permeiam o repertório discursivo

sobretudo daqueles policiais que se definem como "operacionais" e que estão

freqüentemente policiando as ruas.

141
O Decreto-lei nº 2.106, de 06 de fevereiro de 1984, que alterou o conteúdo do Decreto-lei nº 667, de 2
de julho de 69, no que concerne a organização das Polícias Militares, esclarece, no seu artigo 8, parágrafo
2, a “conveniência” de policiais femininas da seguinte forma: “Os Estados, Territórios e o Distrito Federal
poderão, se convier às Polícias Militares: a) admitir o ingresso de pessoal feminino em seus efetivos de
Oficiais e Praças, para atender necessidades da respectiva Corporação em atividades específicas, mediante
prévia autorização do Ministério do Exército”. Este decreto possibilitou a regulamentação da Lei estadual
nº 476, de 11 de novembro de 1981, que criou a Companhia Independente de Polícia Militar Feminina da
PMERJ e determinou a doutrina de seu emprego. A condição de Companhia estabelecia como posto
máximo a ser atingido pelas oficiais femininas a patente intermediária de Capitão.
142
A Lei estadual nº 476, ainda em vigor, determina, no seu artigo 4, o emprego do efetivo feminino. O
texto é bastante claro quanto as limitações da “condição” feminina para o trabalho policial: “As Policiais
Militares integrantes da Cia PM Fem. serão empregadas precipuamente em missões de policiamento
ostensivo cabendo-lhes as seguintes atribuições, além de outras que sejam estabelecidas pelo Comandante-
Geral: I - Policiamento de Trânsito, em locais e horários em que as mesmas tenham melhores condições
de segurança, a critério do Comandante-Geral; II- Nas operações policiais-militares no trato com mulheres
e menores em geral; III - Nos terminais marítimos, ferroviários, rodoviários e aeroviários e nos demais
serviços de policiamento cujos riscos ou encargos sejam, a critério do Comandante-Geral, exclusivamente
compatíveis com suas condições de mulheres.”
240

Idealizado pelos PMs da ponta da linha como uma espécie de "terra de machos", o mundo

das ruas é descrito como um tipo de realidade que não se deixa comover pelas virtudes

culturais atribuídas ao signo feminino. Nesse território simbólico interpretado como

sórdido, violento, insensível e, por tudo isso, masculino, parece só haver lugar para a

disputa entre os destemidos "mocinhos" que integram o "bonde do bem" e os "bandidos"

e desregrados, que compõem o "bonde do mal". Esse tipo de gramática dos papéis de

gênero, em boa medida conservadora e estereotipada, encontra-se disseminada no interior

da tropa. Dela resulta o discurso que pressupõe a inadequação das mulheres para as tarefas

de policiamento e prescreve para elas outros tipos de serviços quase sempre burocráticos

e muito distantes das atividades de rua.

De fato, a socialização no meio policial possui requisitos de entrada e permanência muito

severos para os próprios PMs. A contabilidade dos talentos considerados indispensáveis

ao mito romântico do policial-herói, reforçada pelo senso comum extraído das ruas,

ancora-se em uma espécie de elogio tão extremado dos atributos associados à virilidade

que este culto parece não poder prescindir de expedientes diretos e indiretos de vigília do

comportamento masculino idealizado. Em parte por conta disso, a fragilidade, o receio, a

sensibilidade, o medo, etc. são, via de regra, interpretados como "coisa de mulher" cuja

menor manifestação no interior da tropa já anunciaria o perigo simbólico de

"feminilização" da força. Nada é mais delicado para os "sujeitos homens" da polícia

ostensiva do que se verem convertidos em atores "apassivados" e "inoperantes". Nesse

sentido, tudo aquilo que na vida ordinária encontra-se associado à noção de passividade

costuma ser traduzido pelo imaginário policial como um grave "fator de risco" moral

para os PMs da ponta da linha. O recado da cultura policial de rua é muito claro: todo

cuidado é pouco quando se trata de evitar que os centuriões da conformidade moral e dos
241

bons costumes se tornem "alvos fáceis [não só] nas mãos da bandidagem" como também

das dinâmicas sociais clandestinas, ambíguas e anticonvencionais que se fazem presentes

no cenário urbano.

Realmente não deve ser uma tarefa existencial muito fácil para os PMs da thin blue line

afirmar, diante dos olhos sempre vigilantes de seus pares, a ambicionada “condição de

sujeito homem” em cada pequeno ato, em cada interação, em cada circunstância saída do

trabalho nas ruas. A desejada “macheza” e sua convincente demonstração para uma

platéia policial vaidosa e exigente de seus dotes, operam como um tipo de termômetro

capaz de mensurar o grau de respeito e companheirismo obtido dos colegas de ofício. Esta

pressão moral é de tal maneira evidente no cotidiano ostensivo de polícia que os jovens

policiais comunitários de Copacabana costumavam ser freqüentemente questionados

acerca da suposta “boiolice” de “servir de babá para a comunidade” (cf. Musumeci,

1996).

Uma das lendas mais corriqueiras no meio policial de rua é aquela que exalta a

indiscutível competência sexual dos policiais. Os seus grandes rivais no mercado erótico

são naturalmente os mesmos que os desafiam no exercício do seu trabalho - os

“malandros”, “boys” e “bandidos”. Além das costumeiras estórias de ações espetaculares,

as conversas fiadas das rodinhas policiais incluem narrativas epopeicas sobre as

conquistas sexuais. Os rapazes fardados da polícia ostensiva têm sempre uma peripécia

amorosa para contar. Gabam-se do fascínio sexual que exercem sobre as inúmeras “peças

sobressalentes” disponíveis nas ruas e, como não poderia deixar de ser, orgulham-se da

facilidade com que “conseguem” mulheres. Não é incomum ouvir os PMs contando que

a “mulherada dá mole” e “corre atrás”, chegando mesmo a simular chamadas


242

emergenciais e “ocorrências frustradas” só para poder “trocar uma idéia” com aqueles

“homens de verdade” que “não negam fogo” e sempre “dão no couro”. Acerca do

propagandeado produtivismo sexual dos policiais, um experiente oficial relatou-me, em

tom jocoso, que os PMs da linha da obrigação se sentem como “os verdadeiros reis das

empregadas domésticas, das mulheres solitárias, desquitadas ou insatisfeitas” com seus

parceiros. Note-se que pouco importa se essa "realeza" é exagerada ou mentirosa, o fato

é que ela faz parte da forma como os PMs de ponta recortam e interpretam o mundo no

qual atuam, sendo portanto tão real quanto as gloriosas narrativas relacionadas ao controle

do crime.

Para alguns estudiosos, a disponibilidade e a indulgência sexuais presentes na work

personality policial está, por um lado, associada ao ethos masculino da força e, por outro,

às tensões existenciais derivadas do trabalho de polícia (cf. Chan, 1997; Reiner, 1992;

Skolnick, 1993). A gerência cotidiana da suspeita e do risco, a experimentação da própria

possibilidade de encontros violentos, somadas às jornadas e escalas de trabalho que

comprometem sobremaneira o convívio familiar, 143 parecem operar como reforços

subjetivos para os estímulos saídos do mundo das ruas.

De fato, para esses personagens que vagam diuturnamente pela cidade patrulhando seus

territórios físicos e simbólicos, a deriva urbana e seus fluxos apresentam-se como uma

forma convidativa de experimentar os lugares do masculino e suas potencialidades. Nesse

jogo de experimentações, o fascínio erótico que o poder e a autoridade policiais exercem

143
A PMERJ não dispõe de estatísticas sobre a incidência de separações formais e informais no interior da
corporação. Entretanto é voz corrente dentro da organização que os conflitos conjugais são extremamante
elevados. Parece ser uma prática comum entre as esposas dos PMs de ponta a solicitação do arbítrio dos
superiores hierárquicos para a resolução dos problemas familiares.
243

no cotidiano das interações é ritualizado, por exemplo, no uso e no trato vaidoso com o

fardamento. O capricho com a farda não apenas atende as exigências formais do

regulamento disciplinar, mas também responde a preocupação de se apresentar ao mundo

das ruas de uma forma garbosa e atraente. Na dura vida policial há, portanto, tempo para

o cuidado detalhado e até mesmo fútil com a aparência. Tudo indica que nossos PMs de

ponta ambicionam ser tão ostentatórios quanto ostensivos. A segunda arma, os óculos de

sol ray ban espelhado, o uniforme justo evidenciando propositadamente os músculos, o

bigode acidental no rosto limpo conformam a “moda PM”, um tipo de estética que,

acredita-se “marca ponto” e faz sucesso sexual nas ruas e esquinas da cidade.

Talvez se possa dizer que o “machismo” e suas enunciações plasmam o mundo policial,

servindo como um dos lugares de diálogo conflituoso com outros mundos sociais

elaborados na ampla sintaxe das ruas. Se os PMs da blue line são conhecidos pela sua

adesão incondicional às atividades heterossexuais consideradas ilícitas e informais, eles

também são retratados pela sua deliberada aversão às práticas sexuais alternativas, como

o homossexualismo. De um modo geral, o desprezo e mesmo a intolerância com os

comportamentos sexuais categorizados como “desviantes” costumam ser anunciados

tanto na ordem discursiva quanto na forma de abordagem e tratamento dispensados

àqueles atores, cuja opção sexual soa como destoante e, por sua vez, "naturalmente"

provocativa. No dia-a-dia das atividades ostensivas, os casos de humilhação, desrespeito,

“abuso de autoridade” e “exercício arbitrário das próprias razões” contra gays, lésbicas e

afins, eventos freqüentemente subnotificados nas estatísticas criminais, fazem parte da

versão trágica do folclore policial das mais distintas organizações policiais (cf. Graef,

1989; Reiner, 1992; Chan, 1997). Talvez seja oportuno dizer que a paixão desmesurada

da cultura policial de rua por tudo aquilo que possa ser enquadrado dentro do
244

convencional e da normalidade, assim como o seu compromisso moral em policiar uma

suposta “ordem natural” das coisas, eventos e pessoas, contribuem para exagerar os

preconceitos que alimentam o senso comum, emprestando-lhes uma coloração mais

dramática, sobretudo porque acionados em um plano operativo e funcional - as atividades

ostensivas de policiamento.

Em outros momentos, chamei atenção para o fato de que, nas atividades convencionais

de polícia ostensiva, os riscos simbólicos tendem a ser mais expressivos do que os perigos

propriamente físicos, ainda que estes últimos sejam exaltados na retórica policial como

uma precondição para a existência dos primeiros. Mesmo fazendo parte do horizonte das

expectativas, as oportunidades de situações concretas de violência física contra os

policiais estão efetivamente bem aquém da gravidade a que o imaginário policial supõe.

Por ora, esta consideração é suficiente para ressaltar que a administração do risco

potencial, assim como as atitudes policiais dirigidas às minorias sexuais e étnicas, estão

intimamente ligadas ao processo cognitivo de construção da suspeita e de identificação

dos eventos, comportamentos e atitudes percebidos pela ótica policial como sendo

ameaçadores.

A matéria-prima da cultura policial para a definição dos fatores de suspeição e risco é a

grade valorativa que estrutura o senso comum. Isto significa dizer que a distribuição

heterogênea e, em boa medida, desigual da estima, do crédito e do respeito sociais

conferidos aos indivíduos e grupos, no interior da sociedade, serve como a base

sociológica para as percepções e atitudes policiais. Na prática, isso se traduz no fato de

que aqueles atores ou grupos que se encontram mal posicionados no mercado da cidadania

fazem parte do que se costuma chamar de "propriedade" da polícia (cf. Bittner, 1990;
245

Reiner, 1992). Aqui, o círculo vicioso policial de reforço das "classes perigosas" adquire

concreção, contribuindo para a explicitação e o acirramento dos padrões mais amplos de

desigualdade social.

Se é correto ponderar que as organizações policiais não criam os preconceitos sociais, é

também verdade que a sua instrumentalização na rotina de polícia produz problemas por

vezes incontornáveis. Cabe lembrar que, no dia-a-dia do policiamento, o cálculo do risco

incorpora os atores sociais de uma forma assimétrica. Grosso modo, o risco associado a

episódios que envolvem personagens "acima de qualquer suspeita" refere-se ao elevado

custo das ações policiais injustificadas; já no caso das situações relativas aos "agressores

simbólicos", atores sobre os quais paira uma suspeita estrutural, o risco reporta-se

fundamentalmente à ausência de ação policial ou à sua baixa intensidade. Tudo isso pode

ser resumido na seguinte constatação: os PMs de ponta acreditam, para a indignação dos

segmentos sociais estigmatizados, que estariam sendo negligentes e ineficazes no

exercício do seu trabalho se não suspeitassem das "classes perigosas" e se, diante delas,

não esboçassem alguma reação. Esse tipo de convicção, evidentemente, encontra eco no

empenho dos recursos policiais, ou melhor, na distribuição seletiva da vigilância e das

intervenções policiais repressivas. A lógica tradicional de dirigir a polícia "para quem

precisa de polícia" ou de despachar a "polícia para os outros" evidencia o caráter delicado

da operacionalização dos preconceitos nas atividades policiais ostensivas. Por um lado,

as correlações entre injustiças sociais, criminalidade e violência ultrapassam a esfera de

competência das polícias que, via de regra, estão compelidas a atuar nas contingências e

a produzir soluções provisórias para problemas humanos complexos. Por outro, as

intervenções policiais, em boa medida fundamentadas na pedagogia da suspeita e do

risco, estão constrangidas a produzir resultados, cujas leituras sociais são ambivalentes e
246

até mesmo paradoxais. Na prática policial, esses níveis de constrangimentos adquirem

uma configuração tensa e peculiar: o PM da blue line tende a avaliar de forma

preconceituosa os eventos e pessoas sobre os quais dirige sua intervenção, mesmo quando

ele, pessoalmente, não partilha dos preconceitos que se mostram "úteis" na rotina do seu

trabalho. Isso ocorre de tal maneira que até aqueles policiais que se consideram

"profissionais" e que se ocupam de levar em conta, em suas avaliações as estatísticas

criminais, cujo conteúdo sobrerepresenta os "elementos suspeitos", sentir-se-ão

razoavelmente justificados em dirigir, por exemplo, muito mais o seu olhar suspeitoso

para um pobre-jovem-negro do que para um rico-jovem-branco.

Certamente, nossos PMs de ponta não estão sozinhos, quando adotam essas distinções;

afinal, na administração cotidiana dos conflitos e desordens, nada desagrada mais o

"cidadão decente e ordeiro" do que constatar que a sua palavra pode vir a ter o mesmo

valor que a de um "zé ninguém". Entretanto, o resultado de suas ações discriminatórias

adquire cores mais radicais, em razão da natureza mesma do seu trabalho e da realidade

social, sobre a qual esse trabalho se aplica. Os policiais possuem mais "poderes" do que

o cidadão comum e os seus serviços são freqüentemente mais utilizados por aqueles atores

sociais que aparecem para o imaginário policial, simultaneamente, como as vítimas

preferenciais e os produtores privilegiados da violência.

A despeito de sua relevância, a problemática das práticas policiais

discriminatórias não tem sido satisfatoriamente trabalhada no interior das agências

policiais. Penso que isso ocorre em parte, por conta da predominância da abordagem

normativo-legal no tratamento dos assuntos de polícia. Conforme salienta Bittner (1990),

a perspectiva legalista não considera o fato de que a polícia pode, concretamente, não ser
247

apenas orientada pelos princípios legais que conformam sua missão, doutrina e mandato.

Em razão disso, uma leitura unicamente formal tende a mascarar a complexidade do

ambiente de atuação das polícias, interpretando suas práticas tão-somente a partir do rigor

e da suposta "neutralidade", no cumprimento dos regulamentos e expedientes formais

instituídos.

Como temos visto, existe uma enorme camada informal que não é derivada dos

ideais normativos, mas que estrutura o trabalho policial cotidiano e suas demandas,

orientando o que a polícia realmente faz, no seu dia-a-dia. É evidente que os PMs guiam-

se pela "letra da lei". Contudo, "aplicar a lei" na rotina ostensiva significa muito mais do

que simplesmente buscar, ingenuamente, adequar uma realidade descontínua, informe e

contingente à racionalidade criminal. Como bem colocou Skolnick (1994), trata-se antes

de um engenhoso "empreendimento", que envolve capacidades diferenciadas de

mediação, barganha e interpretação dos agentes da lei, quando dos seus encontros

fortuitos com os cidadãos. "Aplicar a lei" aparece então, no trabalho convencional de

polícia, como um dos muitos recursos estratégicos disponíveis. Em boa parte dos casos,

reporta-se apenas a uma figura da fala, ou melhor, a uma ferramenta da abordagem

policial que desencadeia o processo de tomada de decisão, mas que não necessariamente

impede as escolhas sobre como conduzir a ocorrência "assumida". Isso significa dizer

que, em cada episódio singular no qual a presença da polícia ostensiva foi solicitada,

existe um espaço discricionário indispensável para se buscar algum grau de convergência

entre a idiossincrasia do evento em questão e sua possível tradução, nos termos do que se

considera legal e legítimo. Para o PM que está ali na esquina, trata-se, pontualmente, de

acionar o "bom senso" e procurar saber "o que fazer" e "como agir" em uma dada situação

particular. Trata-se, portanto, de resgatar, na economia prática policial, qual é o curso de


248

ação mais adequado: aplicar uma multa ou uma advertência ao infrator de trânsito?;

"encerrar no local" a contenda entre vizinhos ou tipificá-la como "rixa"?; mediar o

conflito doméstico ou enquadrar a ocorrência como "ameaça"?; dispersar o bêbado

inconveniente ou registrar o fato como "desacato a autoridade"? Certamente, qualquer

percurso escolhido terá o "mundo da lei" como uma indispensável referência, uma meta

que, para ser atingida, pressupõe a sua articulação concreta com as "leis do mundo", que

conformam os eventos sob intervenção policial.

Se essas considerações procedem, parece oportuno ressaltar que a filosofia da cultura

policial de rua, ainda que em muitos aspectos apresente uma ênfase conservadora, deixa

espaços para o florescimento de comportamentos policiais relativizadores. A chave para

essa abertura está na própria rotina ostensiva de polícia. Vagar diuturnamente pelas ruas,

entrando e saindo dos diversos mundos sociais que compõem o mapa citadino

contemporâneo, compele os PMs da ordem pública a estabelecerem, a despeito de suas

convicções pessoais, algum nível de proximidade e conhecimento, alguma forma sensível

de interação com aqueles personagens que estão colocados do "outro lado" da blue line

ou situados fora do que é "convencional", "aceitável", "natural" e "correto". O trabalho

de patrulhamento dos territórios físicos e morais da cidade incita os policiais à

experimentação dramática do que a reflexão antropológica costuma chamar processo de

"estranhamento" do "outro" e de si mesmo. Esse convite estrutural, imposto pela

gramática das ruas, pode ser compreendido como um caminho de mão dupla que pode

tanto sinbalizar para a consolidação quanto para a quebra das arraigadas resistências

etnocêntricas. De todo modo, pode-se dizer que a constância e a intensidade das colisões

com realidades diversas possibilita a disjunção entre valores preconceituosos e

comportamentos discriminatórios, reforçando, na ordem prática, a oportunidade de níveis


249

de tolerância negociada com aqueles personagens que não gostam da polícia e que, por

ela, pouco são queridos. Assim, mesmo que zelosos de sua visão de mundo os PMs

aprendem, pela força das necessidades de seu trabalho, a interagir com o que detestam,

reprovam ou não aceitam. O contato rotineiro com a suposta face "indecente",

"desregrada" e "marginal" da vida coletiva faz com que os policiais partilhem

minimamente das linguagens dos outsiders, faz com que eles conheçam "de perto" os

demais atores que circulam e recortam os seus "pedaços", na cidade. Note-se que se é um

imperativo operacional falar as línguas das ruas, então os guardiães das fronteiras sociais

encontram estímulos para, com alguma competência e disposição, transitar no interior da

"escória humana", barganhando onde "colocam a cerca" e conferindo tratamentos

amistosos aos "maconheiros", "putas", "crioulos", "viados", "mendigos", "notívagos",

"vadios" etc.144

Na rotina do trabalho policial os processos disjuntivos são, portanto, tão prováveis quanto

as atitudes policiais deliberadamente preconceituosas. Até porquê em um cenário político

de consolidação das garantias individuais e coletivas, os executivos de quarteirão são

constantemente postos a prova. Um dia sim e outro também, os streetcorner politicians

são chamados a se confrontar com os seus próprios pontos de vista. Isso se dá, por

exemplo, quando atendem, no Leme, uma prostituta que reivindica o justo pagamento de

seu "encrenqueiro" cliente alemão; quando dão voz de prisão a um simpático velhinho

que servia de "avião" para o tráfico, em Copacabana; quando negociam informações

144
O deslocamento do preconceito relativo a certas categorias sociais, aparece como um recurso estratégico
utilizado pelos atores na arena interativa. A individualização de alguém vinculado a um grupo
estigmatizado, pemite distanciá-lo das marcas simbólicas negativas atribuídas ao seu meio social. Isso
acontece, no cotidiano, de uma forma que permite conciliar o preconceito genérico e atitudes ausentes de
discriminação dirigidas uma determinada pessoa com a qual se convive: por um lado, "todos os viados são
desprezíveis", por outro, "aquele viado que eu conheço é um cara legal". O mesmo ocorre em relação aos
próprios policiais que quando individualizados são "absolvidos" das imagens negativas a eles associados.
250

valiosas com os travestis da Lapa; quando são prestigiados pela rodinha de pagode que

incomoda a vizinhança na Tijuca, quando abordam um "bacana" espancando sua mulher

por um "motivo fútil"; ou mesmo quando impedem que os "boiolas do baixo gay" sejam

gratuitamente agredidos pelos pittbuls da classe média.

Parece óbvio que a riqueza e a complexidade dos problemas que desaguam nas mãos dos

policiais da ordem pública abrem a oportunidade para o questionamento em ato dos

estereótipos correntes. A isso se acrescenta a importante pressão externa por mudanças

no comportamento tradicional da polícia. De fato, as críticas públicas dirigidas às

intervenções policiais arbitrárias têm forçado a implementação de reformas das normas e

procedimentos de ação policial ostensiva, o que, certamente, tem favorecido não só um

controle mais efetivo das atitudes policiais discriminatórias, como também sua

manifestação através de formas mais sutis e pouco visíveis.


251

5. O que os "outros" dizem de nós

" Os nossos acertos são escritos na areia e nossos erros são gravados em bronze".
(Máxima utilizada pelos Policiais Militares)

(*) Figura de autoria anônima obtida na internet.


252

Administrar a identidade profissional de polícia no embate das relações cotidianas não

tem sido uma tarefa existencialmente tranqüila para os PMs da ordem pública. A

negociação das impressões e expectativas do outro e de si mesmo, comum em qualquer

ordem de sociabilidade é, no caso da polícia, um empreendimento delicado, custoso e,

em muitos casos, extremamente sofrido. As freqüentes notícias de brutalidade, corrupção

e arbítrio envolvendo os agentes da lei invadem o nosso dia-a-dia e parecem servir para

confirmar, no plano da subjetividade coletiva, um tipo de suspeita estrutural projetada

sobre aqueles aos quais delegamos a complexa e difícil missão de fazer convergir, na

ordem prática dos eventos, os princípios democráticos da legalidade e da legitimidade.

De certa forma a "desconfiança" depositada sobre os policiais - personagens que

desfrutam de poderes e mandatos superiores aos concedidos aos comuns dos mortais -

tem sido uma característica recorrente na realidade de polícia em qualquer época e lugar.

É fato que os ordenamentos políticos tirânicos e autoritários contribuíram de forma

decisiva para a cristalização histórica de memórias negativas e resistências tanto da

polícia em relação aos cidadãos quanto do seu inverso. Entretanto, mesmo nos atuais

arranjos políticos democráticos as polícias permanecem como algo que suscita

percepções ambíguas por parte não só de sua clientela como também do próprio Estado.

Pode-se dizer que desde a sua infância até os dias de hoje, as organizações policiais e seus

integrantes sempre estiveram sob a mira dos olhares atentos e vigilantes da população.

Note-se que o caráter paradoxal da agência policial contemporânea está dado pelo lugar

no qual ela está inscrita - um meio de força comedida cuja atuação se insere entre "o está

na lei e se encontra no mundo" e "o que se encontra no mundo e não está na lei". A

contrapartida externa desta forma de inscrição na vida pública é a inevitável necessidade


253

de se "vigiar aqueles que [nos] vigiam". Em parte por conta disso, a economia da suspeita,

aspecto indissociável do lugar de polícia, anuncia um doloso caminho de mão dupla

construído por uma sociabilidade conflituosa que, via de regra, manifesta-se através de

sentimentos recíprocos de antipatia, desconfiança e frustração. Os encontros ordinários

entre PMs e cidadãos costumam ser marcados pelo receio mútuo e pela incerteza acerca

do que realmente "pode acontecer". Tudo se passa como se policiais e cidadãos

constituíssem dois mundos radicalmente distintos e impenetráveis, e que a interação entre

eles não devesse jamais ocorrer, permanecendo apenas como uma possibilidade remota.

Note-se que isto se dá de tal maneira que durante a "indesejada" e "temida" colisão os

dois lados (PMs e "Civis") apresentam-se como se estivessem sempre posicionados no

lugar e momento errados. Nesses termos, cruzar acidentalmente com a polícia em alguma

esquina da cidade consistiria em um golpe de azar, seria um claro sinal de que a priori

"algo estaria errado" ainda que não se saiba exatamente o que.

Do ponto de vista dos streetcorner politicians isso se traduz na triste percepção de que

eles não são queridos por ninguém e em lugar algum, servindo apenas para realizar em

nosso lugar o "serviço sujo" de retirar as ervas daninhas que brotam no interior da

sociedade (cf. Punch, 1983; Paixão, 1982; Musumeci,1996). Sustentar a thin blue line,

ou melhor, policiar as entradas, fluxos e saídas do mundo social tem um preço moral

elevado para os PMs, o drama de conviver com a sua imagem pública sob constante

suspeição.

Tal como ocorre com outras profissões que lidam com os interstícios e as câmaras ocultas

da vida em comum, os policiais são, por contágio simbólico, moralmente confundidos

com tudo aquilo que previnem, dissuadem ou reprimem (Douglas, 1976; Paixão, 1982;
254

Skolnick, 1994; Bittner, 1990). Uma vez associados ao absurdo e ao pior de nós mesmos

que assistem de uma forma nua e crua no cotidiano, os PMs aparecem aos nossos olhos

como criaturas ambivalentes, contaminadas pelo risco e perigo que diariamente convivem

e administram. Aqueles que, por ossos do ofício, exercitam posições liminares e de

fronteira, transitando em todos os universos sociais, clandestinos ou não, lícitos ou ilegais,

decentes ou imorais, etc., parecem então fadados a assimilar todas as impurezas

simbólicas daí resultantes (Douglas, 1976). Certamente, este é um custo emocionalmente

amargo para quem recebeu uma licença especial, ou melhor, para quem adquiriu um tipo

de franquia moral para interagir com todos os "lados feios e desagradáveis da vida".

Assim, a despeito da incidência real de comportamentos policiais arbitrários e violentos,

as expectativas coletivas em relação aos agentes da lei e seus "místicos poderes"

incorporam a oportunidade sempre aberta da iminência desses eventos. Na ordem do dia,

essas expectativas aparecem recheadas de inquietações que expressam, a um só tempo,

fascínio, dúvida e temor: um policial pode realmente sair incólume das suas visitas

regulares aos esgotos da vida coletiva?; é mesmo possível para o "guardião da ordem

pública" não se deixar contagiar pelas tentações e manifestações ordinárias do ridículo,

violento, cruel e degradante que compõem o universo das ocorrências policiais?

Bittner (1990) observa que em função da natureza do trabalho de polícia e das realidades

sobre as quais esse trabalho se conforma, a profissão policial tende a ser percebida pelos

cidadãos comuns como uma atividade “manchada” ou moralmente comprometida. A

corriqueira moralização das atividades de policiamento, traduzida na clássica dicotomia

“o bem versus o mal”, é instrumentalizada nas ruas tanto pelos policiais quanto pelo

público, e tem sido uma das chaves simbólicas estruturantes das percepções ordinárias

relativas ao mundo da polícia. Por um lado, como incontestáveis "defensores do bem", os


255

PMs de ponta necessitam se misturar com o mal, falar a sua linguagem e domesticá-lo.

Por outro, devem encenar o papel de superego social apresentando-se como uma espécie

de "unidade de medida" das atitudes dos cidadãos ou como uma vivificação do modelo

exemplar de cumprimento das regras que constituem o pacto social civilizado.

Os estudos sociológicos que se dedicam à reflexão sobre o estigma social, ofertam pistas

interessantes sobre as chamadas "identidades sociais deterioradas" e as dinâmicas de sua

negociação na realidade (Cf. Goffman, 1978; Misse, 1981; Velho, 1985). Um ponto

importante a ser destacado, é o elevado grau de manipulação das impressões

experimentado nas interações intragrupo e extragrupo. Note-se que as estratégias

individuais de encobrimento e compensação das marcas sociais desprestigiadas são

comuns entre os personagens que possuem identidades socialmente "desacreditadas". No

caso específico dos PMs da ponta da linha, o processo de socialização no mundo policial

de rua os compele a elaborar mecanismos emocionais de sobrevivência e autoproteção

capazes de conter as pressões externas e intramuros derivadas dos seus papéis de agente

da lei e de "fita métrica moral" de si mesmos e dos outros. O distanciamento cínico em

relação as cobranças institucionais e públicas, assim como o uso teatralizado da

dissimulação, fazem parte do estoque de recursos estratégicos ao alcance daqueles de

quem esperamos que sejam a incorporação ambulante do "cidadão ideal" e que "policiem"

tudo e todos igualmente, incluindo aí a sua própria conduta social e pública.

No dia-a-dia dos encontros intencionais e das colisões inesperadas com o "outro", os PMs

cariocas da blue line rapidamente aprendem que não basta ocultar apenas da

"bandidagem" a sua identidade de policial, por exemplo, quando pegam o ônibus para

voltar para casa, quando resolvem tomar uma cerveja com amigos durante a folga, quando
256

vão com a esposa ao supermercado fazer compras ou simplesmente quando retornam para

o seu local de moradia, lugar por vezes "controlado pelo pessoal do tráfico". 145 É preciso,

ainda, administrar a sua "condição de PM" nos seus espaços privados e informais de

sociabilidade.

Assim como os bobbies ingleses e os cops americanos, os PMs do Rio também sentem

na pele as dificuldades de se constituírem como "uma raça à parte" de todos os mundos

sociais. Eles vivenciam o dilema existencial de se verem inscritos como uma legião de

almas estrangeiras em quaisquer realidades que visitam ora por obrigação do ofício, ora

porque com elas espontaneamente se identificam (Muir, 1977; Graef, 1989; Skolnick,

1994; Musumeci, 1996).

Não são poucas as narrativas que relatam, em tons sempre queixosos, o isolamento social

no qual se vêem confinados. Nessas falas tornam-se nítidos os diversos obstáculos

encontrados para estabelecer laços cordiais para além do próprio meio policial. Sustentar

antigas amizades, fazer novos amigos, estreitar vínculos com a vizinhança são tarefas

cotidianas que exigem um esforço a mais por parte dos PMs. Nos espaços de convívio

social, alguns policiais chegam a optar pelo disfarce, omitindo sempre que possível a

profissão que exercem. Este tipo de expediente também se estende aos familiares que,

dependendo da situação em tela, preferem não comentar que alguém da família "é da

polícia" ou "entrou para a polícia". Afinal, pode ser extremamente constrangedor

apresentar-se como um policial militar ou como um parente muito próximo de um PM

145
É comum ouvir dos policiais militares que a administração do risco pessoal inclui expedientes de
ocultação da identidade policial. São inúmeros os relatos que retratam a real preocupação em disfarçar a
arma pessoal e a identidade profissional quando saem do trabalho em direção a suas casas. Muitos PMs
falam que guardam a carteira profissional no fundo do sapato, outros mencionam que a escondem dentro
das roupas íntimas.
257

quando se busca tão-somente estabelecer contatos com os novos vizinhos do bairro, ser

convidado para as festinhas infantis de aniversário, participar dos eventos comunitários

confraternização, preencher uma ficha cadastral para abrir um crediário, tomar uma

cerveja descontraído e despreocupado no bar da esquina, fazer amigos na escola, etc. O

receio de uma possível exclusão ou de um simples reforço das barreiras sociais por conta

da "condição policial", parece fazer parte da gestão cotidiana dos PMs de ponta e de seus

familiares nos espaços de convivência mais ordinários e triviais.

Leitores assíduos das páginas policiais, os PMs da "ponta da linha" estão sempre

monitorando os noticiários relativos ao envolvimento de um ou outro membro da

corporação em práticas ilegais. Eles, talvez de uma forma mais intensa que qualquer um

de nós, sentem e sabem a importância que tem "tudo" que é pensado e dito a seu respeito.

Os policiais comunitários de Copacabana, por exemplo, não se cansavam de comentar

que a divulgação de qualquer matéria sobre crimes praticados por policiais comprometia

o delicado trabalho de construção de parcerias com a comunidade local, obrigando-os a

retomar do início o amistoso processo aproximação. Nos seus próprios termos a "idéia

que é passada para sociedade" pelos meios de comunicação, ainda que em muitos casos

compreensível, não faria justiça aos "pais de família honestos e trabalhadores" que

integram a PMERJ:

"É só abrir o jornal que está lá: tem lá uma nota falando de um companheiro que
praticou um desvio de conduta. A situação está de um jeito que a população fica
mesmo desacreditada. As coisas estão invertidas para o lado da PM. Agora a gente
tem que provar todo dia que é honesto."

"Alguns companheiros da PM não agem corretamente. São corruptos e passam uma


sensação muito desagradável para a população. Mas são 30 mil homens. Mil até
podem fazer besteira. E o resto vai pagar pelo que não fez?"
258

"Existem questões políticas por trás de tudo isso. Alguns policiais erram mas são
uma minoria. A mídia manipula tudo e a melhor forma de atacar o governo é através
da Polícia Militar que é ostensiva, fardada e aparece com facilidade. A mídia só passa
distorções, tem até Mister PM."

Mas não é só o impacto provocado pela percepção coletiva, quase sempre difusa e

ampliada do lugar suspeitoso da polícia, que se pode apreender dos reclames policiais

acima ilustrados. Os breves depoimentos anunciam que nas relações com os chamados

"cidadãos ordeiros e pacíficos", parceiros naturais da polícia por que invariavelmente

integrantes da inorgânica "comunidade do bem", é preciso contornar exaustivamente toda

sorte de resistências, administrando em cada despretensiosa interação não só os

sentimentos de vergonha, revolta e inferioridade, mas sobretudo a própria escassez de

capitais simbólicos positivos associados a profissão policial.

"No meu entendimento tem muito de preconceito e revolta da população. A polícia


hoje é uma turma de desesperados. Ninguém quer saber do lado do PM, as pessoas
já chegam perto do PM para criticar, para fazer cobrança. Sabem que você é policial
e já chegam para falar mal da corporação. Muita gente só tem acusação contra a
polícia. Se eu gostasse de briga todo dia eu arrumava uma confusão. Ninguém quer
ver a nossa humilhação".

"A maioria dos PMs é pobre, favelado. É um problema de classe social. A pessoa já
chega para o policial oferecendo dinheiro. Olha, eu vou ser sincero: antes de entrar
na PM eu passava longe de policial."

"Eu fico imaginando o meu filho em casa vendo televisão: olha lá os colegas do
papai roubando, matando. A gente sente muita vergonha. Eu não quero que o meu
filho entre para a PM. Nem pensar ! Mas se ele quiser mesmo, não tem jeito eu vou
ter que apoiar."
259

Nas artérias da cidade a oportunidade de relações menos instáveis se dá portanto com

aqueles personagens que, como os próprios PMs, são percebidos como desterrados e

forasteiros nos territórios urbanos por onde circulam e definem seus pontos. Flanelinhas,

camelôs, mendigos, porteiros, seguranças e demais atores que compõem o "povo das

ruas" fazem parte do universo regular de interações dos PMs da blue line (Musumeci,

1996). Esse é certamente um mundo com baixa visibilidade social, que também não

desfruta de legitimidade pública e cuja voz, por sua vez, costuma ser muito pouco ouvida.

Observe que a profissão policial não é a única atividade profissional que lida com os

aspectos mais sensíveis e terminais da condição humana. Contudo, as falhas e mesmo os

desvios de conduta ocorridos na sua esfera de atuação assumem proporções mais

dramáticas e incontornáveis do que os erros praticados por médicos, educadores, etc. É

evidente o contraste entre a baixa visibilidade do trabalho ordinário da polícia ostensiva

e a elevada exposição pública dos comportamentos policiais equivocados. Isso pode ser

em parte compreendido pelo fato do trabalho policial, além de interferir de uma forma

mais direta na vida das pessoas, representar o espaço da autoridade capilarizada, uma

espécie de caminho privilegiado para o enraizamento das garantias civis no cotidiano dos

cidadãos. Desse ponto de vista, a atividade policial encarna o lugar concreto de onde se

pode confirmar ou não as regras postas pelo jogo democrático. Talvez por conta disso,

as suas possíveis falhas sejam percebidas como extremamente onerosas para a

indispensável crença coletiva no estado de direito. De qualquer forma, a vivência

continuada da condição sutil e peculiar da autoridade policial faz com que os PMs

rapidamente aprendam uma importante lição: o contraponto dos poderes a eles


260

concedidos tem sido a sensação de solidão assim como o desprezo e o afastamento por

parte daqueles a quem devem, a despeito de qualquer pretexto, continuar a "servir e

proteger".
261

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O "poder de polícia", a sua adequada extensão, os efeitos esperados e indesejáveis de seu

emprego, assim como os expedientes internos e externos voltados para a implantação de

um controle eficaz e transparente, têm constituído um dos pontos centrais das reflexões

acadêmicas internacionais sobre os meios de força comedida. Têm-se apresentado,

também, como uma questão complexa, recorrente e de difícil enfrentamento, que vem

ocupando, desde há muito tempo, um lugar estratégico na agenda política dos países com

uma longa tradição democrática como a Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá. Nesses

países, os avanços em termos da ampliação dos direitos civis, do reconhecimento dos

direitos difusos e emergentes se fizeram acompanhar de intervenções no ordenamento

jurídico e de significativas reformas nas agências policiais. Nos últimos cinqüenta anos,

mudaram-se as doutrinas, mandatos, missões, procedimentos normativos, tecnologias e

modelos de uso da força das polícias. Tudo isso ocorreu ao mesmo tempo em que

importantes centros de pesquisa como as Universidades de Oxford e Chicago, construíam

um rico e volumoso acervo de produções científicas relacionadas ao tema.

No caso do Brasil, só bem recentemente o debate em torno das polícias alcançou um

lugar de destaque, mobilizando a comunidade científica, a sociedade civil e os tomadores

de decisão. Durante um bom tempo, os assuntos relativos à construção de uma segurança

pública democrática e, por sua vez, a redefinição do papel das agências policiais

permaneceram, curiosamente, à margem do processo de consolidação da democracia

vivido no país. Foi, precisamente, nesta década que a "crise da segurança" ganhou

relevância pública. A "revolta das praças", ocorrida em vários estados, no ano de 97,

contribuiu, ainda que por uma via traumática, para emprestar uma maior visibilidade ao
262

problema das polícias brasileiras, evidenciando os enormes riscos a que está exposta a

sustentação do estado de direito, quando se tem uma debilidade crescente dos organismos

policiais aliada ao discreto conhecimento sobre a sua realidade.

Não sem fundamento, os estudos contemporâneos sobre as organizações policiais

identificam os processos individuais de tomada de decisão - essencialmente

discricionários e, ao mesmo tempo, indispensáveis a qualquer ação policial - como o

estado da arte das teorias de polícia. A partir deles pode-se melhor compreender, por

exemplo, as especificidades das ferramentas de controle social difuso, os modos pelos

quais essas ferramentas pacíficas produzem obediência por meios também pacíficos e,

principalmente, as formas concretas de exercício do abstrato poder de polícia e as

prováveis razões de suas externalidades em ambientes sóciopolíticos singulares.

Vimos que, na polícia militar, o recurso ao arbítrio e a regularidade da sua utilização se

ampliam na razão inversa da estrutura hierárquica. Isto significa dizer que o "fazer

ostensivo" requer, por exigências de ordem prática, um significativo espaço de manobra

decisória dos agentes de ponta, invariavelmente profissionais que ocupam os escalões

inferiores da corporação. Os PMs, sobretudo aqueles que estão alocados nas atividades

de policiamento, são concretamente investidos de um considerável poder formal (de

direito) e de um poder físico (de fato), por eles administrados num amplo e diversificado

conjunto de situações insólitas, descontínuas, contingentes e emergenciais, que nem

sempre encontram tradutibilidade nos sistemas de regras formais disponíveis. No dia-a-

dia, os PMs da blue line são chamados a intervir em qualquer evento, ou melhor, eles são

chamados atuar sempre que ocorre "algo-que-não-devia-estar-acontencendo-e-sobre-o-

qual-alguém-tem-que-fazer-alguma-coisa-agora-e-bem”.
263

Note-se que a amplitude de suas atribuições não é alguma coisa que pode ser definida

como trivial. No fluxo da vida ordinária, ela abarca toda sorte de acidentes, dramas,

conflitos, fatos criminais, incidentes graves e pequenos, experimentados pelos cidadãos

quer nos espaços públicos, quer nos seus domínios privados. Em uma frase, toda essa

demanda por serviços policiais recobre o vasto mundo da "preservação da ordem pública"

onde qualquer episódio, além das violações previstas nas leis, pode vir a ser considerado

um legítimo "assunto de polícia".

Por outro lado, é esperado que a atuação policial, em quaisquer desses assuntos, seja, a

um só tempo, satisfatória, adequada e subordinada aos limites impostos pelo ordenamento

legal. Em virtude dessas múltiplas exigências, os PMs necessitam, na rotina do seu

trabalho, procurar equilibrar-se entre as esferas da legalidade e legitimidade exigidas em

suas atuações. Os marcos referenciais para sua intervenção são, simultânea e

paradoxalmente, "o que está na lei e encontra-se no mundo" e "o que encontra-se no

mundo e não está na lei"; pouco importando se o que motivou a sua presença foi a

ocorrência de um crime, um conflito interpessoal, uma criança abandonada ou um grave

acidente de trânsito.

Observe que o compromisso de atuar em ambientes estruturados pelo acaso, incerteza e

risco, atendendo aos imperativos nem sempre conciliáveis do "mundo da lei" e das suas

formas práticas de execução (law enforcement), das "leis do mundo" (incluindo aí, as

distintas visões comunitárias de ordem e seus critérios também diversos de tolerância), e

das cobranças por resultados tangíveis, põe em tela a real complexidade do papel da

polícia nas sociedades democráticas.


264

Administrar, em cada ocorrência atendida ou no curso de uma ação escolhida, a

validação moral dessa ação, a subordinação ao império da lei e as necessidades

operacionais derivadas da missão de preservar a ordem pública (eficácia, eficiência e

efetividade), constitui o principal desafio da polícia ostensiva. Isso fica mais evidente se

consideramos que o seu balcão de atendimento é capilarizado, individualizado e

ambulante, sendo concretamente exercido por cada um dos 10 mil PMs que patrulham

nas ruas da nossa cidade.

A esta altura, parece oportuno enfatizar que no mundo policial ostensivo a oportunidade

de agir no agora-já das coisas, pessoas e acontecimentos requer, por excelência, a

construção individualizada e singular de termos possíveis de conciliação entre as várias

ordens do que é "prescrito" e as diversas dinâmicas informais que conformam o

"praticado". O emprego cotidiano e pervasivo do recurso discricionário, num cenário

fluido marcado pela necessidade imperiosa de presteza e pelo caráter irredutível das

contingências, exige dos agentes da lei o famoso "jogo de cintura" expresso na aquisição

on the job de habilidades diferenciadas de interpretação da realidade. Aqui, o que parece

está em questão é uma espécie de hipertrofia do lugar social de intérprete posto para

qualquer ator na administração da vida ordinária. Em função do próprio campo de atuação

ostensiva da polícia, os processos interpretativos acionados pelos policiais encontram-se,

eles mesmos, subordinados aos caprichos das circunstâncias que estruturam os eventos.

A formulação de juízos em "estado prático" é, nesse caso, levada até as últimas

conseqüências. Na condução das ocorrências, mesmo aquelas mais banais, mostra-se

necessário extrair dos próprios fatos as chaves interpretativas através das quais eles

possam ser lidos. O saber-ato policial sintetiza esse processo da seguinte maneira: "cada
265

ocorrência é sempre uma ocorrência diferente". Tudo isso se volta para construir, ao nível

prático, algum grau de convergência das idiossincrasias dos episódios "assumidos" e suas

possíveis traduções, nos termos do que se considera produtivo, adequado, satisfatório,

legal e legítimo. Para o PM que está agora ali na esquina, trata-se, portanto, de acionar a

arquitetura reflexiva do "bom senso" e identificar "o que fazer" e "como agir" em cada

situação, em cada fato particular. Talvez por conta disso, o "saber policial de rua" se

qualifique a lidar com o improviso, confundindo-se, em boa medida, com as experiências

e valores pessoais acumulados por cada policial.

Orientada pelo "bom senso", essa economia prática policial evidencia que a fragilidade e,

mesmo, a ausência de regras formais objetivas e úteis, não projeta o uso cotidiano da

discricionariedade em uma espécie de terra de ninguém. Inversamente, revela que a

produção de alternativas para a obediência também lança mão das subjetividades e dos

conhecimentos informais que modelam o senso comum. Isto significa dizer que, na ordem

dos eventos, a negociação da autoridade policial e suas formas de imposição resulta de

um mosaico composto de elementos racionais, carismáticos e tradicionais, capaz de

ofertar um guia para a ação efetiva. Nesse contexto, os processos decisórios acionados

pelos PMs da ordem pública, reiteram a advertência weberiana acerca da impropriedade

de se buscar reconhecer na realidade tipos puros de dominação.

Um aspecto importante relacionado aos processos decisórios nas atividades rotineiras de

polícia ostensiva é a sua "baixa visibilidade". No dia-a-dia do patrulhamento, inúmeras

decisões que afetam diretamente a vida das pessoas são tomadas pelos policiais de ponta.

Todas elas têm correspondido a uma grande área cinzenta do trabalho policial. Nas ruas,

o contraste entre a ostensividade formal da presença uniformizada do PM e a baixa


266

visibilidade das suas iniciativas é gritante, em particular no âmbito das ações preventivas

e dissuasivas. Esse é um ponto crítico da realidade policial militar, uma vez que possibilita

o mascaramento do uso inadequado da força, sobretudo naquelas interações fortuitas entre

policiais e cidadãos comuns - situações normalmente indefinidas e de menor poder

ofensivo, que não envolvem o emprego da arma de fogo. Apesar de corresponderem a

uma parcela expressiva do atendimento policial, esses episódios difusos e voláteis não se

transformam em registros de ocorrência, dissolvendo-se no durante o próprio atendimento

realizado.

Concorre para agravar a pouca visibilidade das iniciativas policiais ordinárias, a falsa

idéia de que as ações da PM reportam-se tão-somente ao combate ao crime. Uma vez que

as conseqüências e o impacto do policiamento ostensivo na realidade criminal não são

mensuráveis em boa parte dos casos, a cobrança por resultados tangíveis tende a ser

dirigida para aquelas intervenções propriamente repressivas. Afinal, como registrar um

assalto abortado porque havia policiais próximos? Como notificar um homicídio que não

ocorreu porque a patrulha passava naquele exato momento no local? Como contabilizar

um estupro que não chegou a acontecer porque alguém gritou que a polícia estava

chegando?

De fato, o que parece mais imediatamente perceptível no âmbito da segurança pública

são aqueles eventos que podem vir a ser objeto de ação legal, tais como os flagrantes, as

prisões, as detenções, as apreensões, etc. É evidente que esse tipo de enquadramento

ajuda a obscurecer o amplo espectro do trabalho ostensivo em favor das atividades

reativas e repressivas que, num ciclo vicioso, tendem a ser novamente reforçadas dentro

e fora da corporação policial. Como resultado, o policiamento ostensivo convencional


267

passa a ser subvalorizado diante da contabilidade dos "saldos" das operações repressivas

e ocorrências que constituem infração penal. O que prejudica o trabalho preventivo,

subvertendo a destinação constitucional da polícia da ordem pública.

Este não é um problema trivial, sobretudo quando a opinião pública e os tomadores de

decisão cobram uma maior “produtividade” das organizações policiais, e ponderam os

recursos a serem destinados a essas agências pelos resultados que elas deveriam produzir.

A avaliação quando restrita apenas àquelas ações que produzem registros conduz a uma

distorção evidente: a contabilidade das prisões efetuadas, por exemplo, pode induzir

comportamentos que vão desde o desvirtuamento da própria função preventiva (“deixa

começar senão não conta ponto”) até o estímulo à produção espúria de resultados

(“prende, mesmo que depois tenha que soltar”). Cabe salientar que a inexistência de

instrumentos de mensuração adequados à complexa realidade do trabalho ostensivo deixa

as PMs na desconfortável situação de, se atenderem bem ao seu trabalho, serem

consideradas ociosas, improdutivas, onerosas e, no limite, desnecessárias.

Um outro ponto que contribui para reforçar a baixa visibilidade das ações policiais

ostensivas é a rígida disciplina militar. A confusão estabelecida entre os expedientes

disciplinares do mundo militar (apropriados à vida na caserna) e as ferramentas de

controle das atividades propriamente policiais desenvolvidas nas ruas, tem

comprometido, sobremaneira, a oportunidade de um monitoramento eficaz da rotina

ostensiva de polícia. Conforme foi mencionado, o apego excessivo á conduta militar

exemplar conduz inevitavelmente a organização policial a duvidar do emprego

qualificado do “poder de polícia” pelos seus integrantes, criando paradoxalmente brechas

para a possibilidade do exercício intolerável e subterrâneo do “poder da polícia”. Vale


268

ressaltar que a rígida disciplina militar concorre de forma contraproducente com as

práticas policiais profissionais. Isto se dá porque ela procura restringir, ao máximo, os

espaços de tomada de decisão. Em outras palavras ela tende a desautorizar o recurso à

discricionariedade e à autoexecutoriedade - elementos essenciais da ação de polícia que,

concretamente, só podem ser exercidos pelos indivíduos. É nesse contexto que se pode

assistir às reações de receio e insegurança por parte dos policiais de ponta no que se refere

à gestão ordinária da autoridade a eles delegada, sobretudo nas interações difusas com os

cidadãos.

Somam-se às espinhosas questões derivadas da disciplina militar, algumas sobrevivências

relativas ao período de criação e institucionalização das polícias no Rio de Janeiro, que

parecem permanecer como um desafio a ser encarado nos dias de hoje. A perspectiva

militarizada das forças policiais ostensivas continua a seduzir executivos de segurança

pública e setores do senso comum ilustrado, sobretudo quando os problemas em foco são

a "a guerra contra o crime", o “lado operacional da polícia” e o necessário “controle dos

homens armados” que fazem cumprir a lei. A despeito das mudanças do regime político

e das alterações do sistema policial brasileiro, outros anacronismos ainda se fazem

presentes próximo a virada do milênio, comprometendo a indispensável

profissionalização dos assuntos de polícia: a visão de que a segurança pública

corresponde a uma caçada dos inimigos da “boa ordem e da paz pública”; a perversa

associação das questões de ordem pública com aquelas relativas à soberania do Estado;

as demandas para que o Exército atue nos assuntos de ordem pública, imprimiram a sua

marca em nosso passado e ainda têm configurado uma sombria realidade na vida

democrática brasileira.
269
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279

ANEXOS
280
281

ORGANOGRAMA DA PMERJ - SIGLAS


ÓRGÃOS DE EXECUÇÃO
GCG Gabinete do Comando Geral
AjG Ajudância Geral  Suporte logístico às unidades
aquarteladas no quartel general.
Estado Maior
PM-1 Recursos Humanos  Elabora legislação sobre pessoal.
 Encaminha efetivo para as OPMs.
PM-2 Polícia Investigativa  Investiga ocorrências criminais

(Serviço reservado) envolvendo PMs e civis.

PM-3 Ensino e Instrução  Elabora as Notas de Instrução (Nis)


PM-4 Logística  Controla a aquisição e distriubuição dos
equipamentos (viaturas, armamentos, munição,
combustível, etc)
PM-5 Comunicação Social (Relações Públicas)
Cia MUS Companhia de Música  Vinculada à PM-5

APOM Assessoria de Planejamento  Elabora propostas de orçamento

Operacional e Modernização  Confecciona as estatísticas das


ocorrências atendidas
NU/CCPMERJ Centro de Criminalística
CECOPOM Centro de Comunicação da Polícia Militar
ÓRGÃOS SETORIAIS
DEI Direção de Ensino e Instrução  Define o currículo.
 Coordena os cursos
 Confecciona os "cadernos de instrução"
ESPM Escola Superior da PMERJ
ESFO Escola de Formação de Oficiais
CFAP Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças
CER Centro de Especialização e Recompletamento
DGS Direção Geral de Saúde
HCPM Hospital Central da Polícia Militar
HPM Nit. Hospital da PM - Niterói
PPM Cas. Policlínica da PM - Cascadura
PPM SJM Policlínica da PM - São João de Meriti
PPM Ola. Policlínica da PM - Olaria  Funciona como Centro de Reabilitação
da PMERJ.
LIF Laboratório Industrial Farmacêutico
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