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A LIBERDADE EM VERMELHO:

OS LANCEIROS NEGROS NA FICÇÃO


HISTÓRICA DE TABAJARA RUAS
EM NETTO PERDE SUA ALMA
Marina Haizenreder Ertzogue
Marcelo Santos Rodrigues

Resumo: o artigo analisa a participação dos lanceiros negros na


ficção histórica ‘Netto perde sua alma’. Esse filme foi dirigido pelo escri-
tor e jornalista Tabajara Ruas. O texto pretende fazer uma reflexão sobre
o sentido da liberdade por meio do diálogo entre três personagens: o ge-
neral Netto, um dos principais líderes da Revolução Farroupilha, o escravo
Milonga e o sargento Caldeira, militar de carreira, e ex-escravo. Tam-
bém é objetivo deste artigo estabelecer a relação entre a história e o cinema
como fonte de produção de conhecimento.

Palavras-chave: Revolução Farroupilha, escravos, história e cinema

A ficção histórica Netto perde sua alma foi inspirada na obra homônima
do escritor e jornalista Tabajara Ruas e retrata trinta anos da vida do
general Antônio de Souza Netto, um dos heróis do Rio Grande do Sul,
protagonista da Revolução Farroupilha (1835-1845) e combatente da Guerra
do Paraguai (1864-1870)1.
Tabajara recria no filme o conflito da personagem com sua própria
consciência, rememorando o período da República rio-grandense, em 1836,
seu exílio no Uruguai e sua última participação como militar na batalha de
Tuiuti, em 1866, durante a Guerra do Paraguai.
O filme mescla ficção com fatos históricos. Neste texto, propomos
analisá-lo com base no confronto historiográfico, para destacar a atuação
dos lanceiros negros no movimento revolucionário do Rio Grande do Sul e
o sentido de liberdade para os escravos que lutaram na Revolução Farroupilha.

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O filme Netto perde sua alma, como objeto de estudo, na perspectiva
da ficção histórica, permite, além da construção histórica baseada nas fontes
escritas, uma análise do discurso sobre o passado.
Toda imagem é histórica, na medida em que ela é produto do seu tem-
po e emprega consigo, mesmo que de forma indireta e inconsciente na percep-
ção de seu produtor, as ideologias, as mentalidades, os costumes, os rituais e
os universos simbólicos do período em que foi produzida (NÓVOA, 1998).
Duas temáticas abordadas no filme são objetos de revisão histó-
rica na historiografia gaúcha: a participação dos negros na Revolução
Farroupilha e a obscuridade do general Antônio de Souza Netto, cita-
do pelos historiadores tradicionais como um líder revolucionário, sem-
pre à sombra de Bento Gonçalves. O filme reabilita, sem exageros épicos,
a trajetória de um herói agonizante, com sentimentos e angústias, em
momentos decisivos de sua trajetória militar.
A biografia de Netto nos permite identificar o trabalho cuidadoso de
Tabajara Ruas na construção de um personagem envolto em mistérios,
homem generoso e destemido, mas em conflito com sua consciência.
Filho de estancieiros, Antônio de Souza Netto nasceu no Povo Novo,
município de Rio Grande, em 11 de fevereiro de 1801 (URBIM, 2001)2.
Iniciou sua carreira nas armas na Guerra da Cisplatina, em 1828, quando
ocupou o posto de capitão de 2a Linha. Durante a Revolução dos Farrapos,
Netto foi comandante do Corpo da Guarda Nacional do Piratini (ROSA,
1935).
Uma das passagens épicas do filme é a cena da proclamação da Repú-
blica rio-grandense, em 11 de setembro de 1836, em Piratini. Nessa cena,
Netto é representado como o herói revolucionário, ao proclamar o discurso
da criação da Nova República, diante das forças militares que o acompanha-
ram durante dez anos de revolução. Sua última grande atuação como militar
ocorreu na batalha campal, em 24 de maio de 1866, em Tuiuti, em um dos
conflitos mais sangrentos da América do Sul. Faleceu vítima de malária em
um hospital de Corrientes, em 1866.
No filme, fica claro que o autor está preocupado, também, em mostrar
o homem, além da carreira das armas, suas ocupações diárias e seu relaciona-
mento amoroso com Maria, aliás, a única mulher em destaque nesse filme.
O general Netto está identificado com a aristocracia rural do Rio
Grande do Sul. Além de militar de carreira, ele era criador de cavalos e co-
merciante de gado. Ao longo de sua vida, adquiriu estâncias no Uruguai.
Essas eram suas principais ocupações, razão pela qual transitou por todo o
Rio Grande e pela região do Prata.

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Amigo das festas e das carreiras de cavalo, foi definido por seus bió-
grafos como um sujeito bon vivant, misterioso e galanteador. Netto casou-
se aos 57 anos com uma dama da aristocracia uruguaia, Maria Media Escayola,
e com ela teve duas filhas: Teotônia Netto e Maria Antônia.
Na trama do filme, cenas de batalhas sangrentas são compartilha-
das com cenas de lirismo, na concepção do amor cortez tão típico do sé-
culo XIX. Em uma dessas passagens, aparece, em primeiro plano, uma casa
de campo. Maria está sentada em frente ao alpendre, bordando em um
lenço de linho branco a letra A, inicial do primeiro nome do amado. O ato
de bordar é o tempo da espera para Maria, assim como para as atenienses
que ‘bordavam’ pela volta de seus bravos guerreiros. No reencontro dos
amantes, existem características discursivas que demarcam, de forma pre-
cisa, as fronteiras entre o universo masculino e feminino no século XIX.
Citamos o diálogo entre Maria e Netto:
“Netto: – Passei minha vida toda entre cavalos e homens.
Maria: – Passei a minha entre rendas e novenas” (RUAS et al.,1999, p. 74)3.
O amor como experiência interior vai ganhar campo e adeptos, como
lembra Gay (1989, p. 92): o “amor era um raro luxo emocional” para as
moças educadas nas primeiras décadas do século XIX. Todavia, o amor não
era tão essencial como o casamento, este, sim, de suprema importância.
A estabilidade emocional para Netto, general das sangrentas revolu-
ções, estava em Maria, como ele confessa:
“Netto: – Vosmecê estimula minha coragem. Me dá força para dizer
palavras que nunca disse [...]” (RUAS, 1999, p.74). O casamento com uma
aristocrata lhe rendeu, além do aconchego do lar, um refúgio político. Nas
lembranças de Netto, as cenas de guerra e de sofrimentos pelos companhei-
ros mortos e mutilados em campos de batalha eram amenizadas pela presen-
ça de Maria, que aparece em sonhos para lhe abrandar o coração.
Quanto ao argumento do filme, a história do general Netto é apresen-
tada com episódios descontínuos, mesclando-se delírios e memórias revolu-
cionárias com a realidade do Hospital de Sangue em Corrientes que inspira a
repugnância pela imagem dos corpos ensangüentados no leito e pelas ampu-
tações cirúrgicas realizadas pelo doutor Bloond (a alcunha não é mero acaso,
mas uma forma de representar a vulnerabilidade de um soldado moribundo).
As memórias de Netto transportam a platéia para o cenário épico da guerra.
O autor dá visibilidade à presença negra no cenário da revolução, uma vez que
esse argumento aborda a temática da liberdade, ora em conflito, ora negociada,
e, nessa construção, Netto aparece como um ponto de equilíbrio entre as tenções
libertárias. Esse é o diferencial entre o filme e a versão tradicional construída.

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A trajetória do general, relembrada por ele mesmo no sombrio e infecto
hospital de Corrientes, ganha uma conotação sobrenatural quando Netto
dialoga com o fantasma de seu intrépido amigo, o sargento Caldeira, fale-
cido durante os combates na Guerra do Paraguai. Em seu delírio febril,
causado pela malária, o general compartilha com o sargento as lembranças
dos trinta anos em que lutaram, lado a lado, em sangrentas batalhas até o seu
exílio no Uruguai.
O general, em suas lembranças, carrega dores, frustrações e derrotas:
a República rio-grandense proclamada em Piratini não mais existia; passa-
das três décadas, eram apenas nebulosas recordações. Embora Netto não fosse
um abolicionista convicto, ele foi um comandante preocupado com o des-
tino de seu exército. Atormentava sua memória o destino dos escravos apri-
sionados na guerra pelos imperiais e os gritos estridentes dos lanceiros negros
massacrados no serro de Porongos4.

Eu matei índios. Matei negros. E matei brancos. Mais do que tudo, matei
castelhanos: uruguaios, argentinos, paraguaios, chilenos. Matei portu-
gueses. Matei galegos. Eu ficava matutando comigo mesmo nessa gente
toda que matei e me dava um peso enorme no coração. Não me lembro
mais das grandes palavras, das grandes idéias, só me lembro dos mortos,
um a um, da interminável procissão de mortos nessas guerras do pampa
(RUAS et al., 1999, p. 81).

No leito do hospital, agonizante, Netto é tomado pelas lembranças


dos mortos na revolução. A intenção do autor é revelar a fragilidade humana
na pessoa do general, quando diligencia redimir seus mortos, uma cena nada
convencional para os filmes épicos de capa e espada.
É emblemática a cena da morte. Netto ouve um leve rumor de água
agitada na escuridão da noite. Começa a surgir, lento e silencioso, o perfil de
uma canoa que é conduzida por um vulto coberto por uma capa negra. Netto
encara num instante de terror o fantasma do sargento Caldeira e se encolhe,
horrorizado, e começa a se dobrar, até ficar de joelhos. Depois, ele apruma
o corpo e caminha na direção da canoa. O vulto vestindo a capa preta é o
espectro da morte que vem buscar a alma do general.
Em Netto perde sua alma, o herói, ao reviver os mortos, um a um, amigos
e inimigos, sobretudo, carregava consigo a frustração e o desespero daqueles
que lutaram ao seu lado e, ao final, não obtiveram a liberdade esperada.
Aqui nos separamos do general Netto para nos aproximarmos dos
outros protagonistas da ficção histórica de Tabajara Ruas: Milonga, Palometa,

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Quero-Quero e o sargento Caldeira. Escravos e libertos imprimiram refle-
xões sobre a humanidade defendida pelos republicanos e reinventaram es-
tratégias para conquistar a liberdade na tensão do conflito, recriando, assim,
um mundo temporariamente livre.
A conquista da liberdade para Milonga começa na estância dos Gui-
marães, região da campanha sulina. Duas mulheres, com armas nas mãos,
defendiam suas propriedades dos salteadores e ladrões que circulavam na
região de fronteiras entre o Brasil e as três repúblicas vizinhas. Os homens
da estância se encontravam nas fileiras de voluntários republicanos rio-
grandenses, lutando contra a interferência do Império brasileiro em suas
atividades econômicas.
Na companhia das mulheres, viviam uma preta velha e um escravo
chamado Milonga, magro, muito novo, mas que, na pouca idade, manejava
com habilidade um velho rifle. A história de Milonga se confunde com a de
muitos outros homens de condição escrava espalhados no Brasil. Ele viveu
no tempo das revoluções que abalariam gradativamente a estrutura escravista.
Para Milonga, em seu isolado mundo, restava-lhe acreditar nas histórias
contadas a respeito dos homens que marchavam por todos os lugares, de
armas em punho, lutando pela liberdade.
Na trama narrativa do filme, Milonga se encontra com Gavião, o
libertador. Era assim que o escravo se referia ao capitão Joaquim Teixeira
Nunes, comandante do 1º Corpo de Lanceiros Negros. O escravo foge da
estância onde vivia para alistar-se no exército a fim de conquistar a liberda-
de. Entretanto, o capitão Teixeira tenta dissuadi-lo, afirmando que ele de-
veria voltar para sua casa. Milonga, por sua vez, afirmou não ter casa por ser
um escravo. Na seqüência do diálogo, o capitão Teixeira sentencia:
“ – Tu és muito novo para ser soldado, Milonga.
[O soldado responde:]
– Não para ser escravo, capitão” (RUAS et al., 1999, p. 31).
A revolta de Milonga contra a escravidão é visível e, para subtrair-se
a esta condição, era necessário o reconhecimento da humanidade de todos
os cativos existentes no Brasil.
Restituir, para Milonga, o sentido da liberdade é um exercício
seguro para romancistas e cineastas. Porém, não existe tanta segurança
quando o historiador se sente instigado a fazer o mesmo no campo do
seu conhecimento: incertezas e suposições ainda são desafios a serem
vencidos.
A sensibilidade e a história se entrelaçam para dar um novo significa-
do ao objetivismo da historiografia tradicional. Pensar a história de outra

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forma ou circundar nossos objetos com nossas inquietudes emotivas não é
uma tarefa menos árdua do que reconstituí-los em suas nuanças e durações.
Inquietude que não passou desapercebida para Febvre (1986, p. 217): “Como
reconstituir a vida afetiva de outrora?”
O sentido histórico, neste texto, não abarca a sensibilidade além do
limite daquilo que nos permite, ou seja, analisar a visão de liberdade para o
destino de três personagens: o general Netto, estancieiro, letrado, da elite e
militar; o sargento Caldeira, ex-escravo, homem maduro, militar de carrei-
ra, supostamente um refugiado de quilombo; e o jovem Milonga, escravo,
idealista e que representa o universo de homens negros, cativos e libertos,
aliciados nas guerras e resistentes ao cativeiro. O que unia esses três perso-
nagens eram o campo de batalha e o sentido da liberdade.
Sobre os personagens desse filme, podemos afirmar, na perspectiva
de uma reconstituição histórica, que um deles era real e aparece citado na
historiografia gaúcha que trata da Guerra dos Farrapos e da Guerra do
Paraguai: o general Antônio de Souza Netto. O sargento Caldeira e o capi-
tão Teixeira Nunes aparecem como personagens adaptados pelo autor.
Quanto ao Milonga, não foi possível identificar se ele existiu realmente;
sabemos apenas que seu nome era uma alusão ao ritmo folclórico da fron-
teira, do sul do Brasil, Uruguai e Argentina. A construção desse personagem
cabe supostamente na representação coletiva de escravos anônimos, jovens
mortos ou mutilados nos campos de batalhas, idealistas, fujões e resistentes
à imposição do cativeiro.
Milonga é uma ficção? Não sabemos, mas muitos Milongas certamente
existiram, senão como justificar a criação de um Corpo de Lanceiros Negros?
Por que um escravo seguiria para a guerra, senão para conquistar a sua liberdade?

A FORMAÇÃO DOS LANCEIROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Durante a Guerra Civil dos Farrapos, a República rio-grandense


utilizou-se de negros nos corpos de linha. O primeiro Corpo de Lanceiros
Negros já existia desde novembro de 1836 e era integrado por homens de
cor libertos pela Revolução. Lutavam para conquistar a liberdade, após a
proclamação da República rio-grandense. Os lanceiros, em sua maioria,
foram recrutados entre os negros campeiros e domadores de animais que
viviam na atual zona sul do estado e entre tropeiros das charqueadas. É
possível que escravos refugiados em quilombos também aderissem à causa
republicana como forma de reconhecimento da liberdade.

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A indumentária usada era a típica dos pampas gaúchos: sandálias de
couro cru, chiripá de pano grosseiro, um colete recobrindo o tronco e, na
cabeça, uma vincha vermelha, símbolo de República.
A participação dos lanceiros em dez anos de revolta farroupilha
foi decisiva para garantir a defesa das forças revolucionárias de Netto.
A historiografia gaúcha, hoje, debruça-se para esclarecer o massacre de
Porongos, em que centenas de lanceiros e soldados negros da Infanta-
ria foram mortos ou capturados pelos imperiais para serem escravos
no Rio de Janeiro.
Ao final do conflito para negociar a paz, entre outras reivindicações,
os líderes farrapos exigiram da corte a anistia para os rebeldes que lutaram
na Revolução. Bento Gonçalves estabeleceu, como condição ao governo
imperial para firmar o acordo de paz, a concessão da liberdade para os negros
que lutaram nas fileiras republicanas. No entanto, o presidente da provín-
cia, Francisco Álvares Machado, mediador das negociações, não aceitou
firmar o acordo: os negros continuariam como escravos da nação. A anistia
não contemplava os soldados negros porque não eram cidadãos do Império
ou da extinta República rio-grandense. Duque de Caxias afasta Bento Gon-
çalves das negociações de paz entre rebeldes farroupilhas e o Império e co-
loca em seu lugar David Canabarro. Caxias, então, concedeu anistia aos chefes
farroupilhas que ocultaram essa concessão e negociaram, com a ata do falso
tratado de paz de Ponche Verde, a entrega dos soldados negros ao Império
no Rio de Janeiro (FLORES, 2004).
O massacre de Porongos não aparece no filme, mas, sutilmente, o autor
consegue estabelecer uma provável relação com esse evento histórico, quan-
do Milonga profetiza o seu destino e o de seus companheiros, na cena da
deserção, no momento em que é questionado, pelo sargento Caldeira, sobre
a fuga dos soldados negros para as Encantadas. Palometa e Milonga expres-
sam seus motivos afirmando que, se fossem capturados, seriam entregues
como escravos aos imperiais.
A negociação para anistiar os revoltosos resultou em um acordo entre
o Duque de Caxias e o chefe farroupilha David Canabarro que, avisado
antecipadamente do ataque dos imperiais no Serro dos Porongos, desarmou
a Infantaria. Durante o ataque ao acampamento, os imperiais aprisionaram
280 homens da Infantaria, levados como escravos para o Rio de Janeiro,
enquanto, no campo de batalha, o saldo do ataque era de mais de
cem lanceiros mortos.

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RITUAIS DE PASSAGEM PARA A LIBERDADE

Milonga é conduzido pelo general Netto e pelo comandante dos lanceiros


negros, o capitão Teixeira, o Gavião, ao acampamento dos Farroupilhas. Na sua
chegada, Netto o apresenta ao sargento Caldeira: “este guri veio como voluntá-
rio pra se incorporar ao Corpo de Lanceiros. O senhor tome conta dele, provi-
dencie uniforme e armamento, e lhe determine uma posição na coluna” (RUAS
et al., 1999, p. 50).
Como em um ritual de iniciação, Milonga é conduzido por um ho-
mem velho e de cor para conhecer os lanceiros negros. Oferecia, assim, a
liberdade por meio da guerra. Caminhando pelo acampamento, guiado por
Caldeira, encontra seu povo. Nesse momento, crescem a batucada e o som
das guitarras. Muito movimento e ritmo caracterizam a reunião de tantos
homens de cor, separados dos acampamentos de brancos. Quero-Quero,
Palometa e Chupim estão se preparando para a guerra que travariam no dia
seguinte. Batucada, dança, chula, violão, tudo aos olhos assustados do menino
Milonga que tem como única referência o sargento Caldeira que o acompa-
nhará em todas as cenas do filme.
Em meio ao ritual para o combate, os soldados preparavam suas ar-
mas, rezavam, riam e escreviam cartas de despedidas. Um grupo de negros
dançava com suas fardas vermelhas ao redor da fogueira. Aqui é onde um
mundo novo se descortina para um jovem que não conhecera antes agrupa-
mentos de negros reunidos em torno de um projeto maior do que a simples
fuga da escravidão.
Milonga recebe das mãos de Caldeira a farda vermelha do 1o Corpo
de Lanceiros, cuidadosamente dobrada. Vestir a farda dos lanceiros signifi-
cava vestir-se da liberdade. Finalmente ele estava iniciado. E, em um gesto
discreto e lento, o sargento Caldeira estende a lança para o aprendiz que
apanha a arma e começa a dançar ao ritmo do batuque com os outros lanceiros.
Na farda vermelha, surge a referência simbólica da cor da liberdade
para Milonga. Uma cor tão cheia de significado, historicamente descrito
pela literatura, e fortemente associada às guerras comandadas por caudi-
lhos na região platina. Essa cor foi usada por Artigas, símbolo da liberdade
herdada da Revolução Francesa, depois adotado pelos federalistas de Rosas.
Em 1835, o uruguaio Rivera criava o partido colorado. Os Farroupilhas o
adotaram em lenços e camisas, além da faixa na bandeira republicana. Vol-
taria para a Europa com Garibaldi, e a unificação italiana se daria sob o sig-
no da camicia rossa. Seja como for, a cor vermelha imprimiu idéias
revolucionárias na estética da guerra.

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A LIBERDADE ENTRE O CONFLITO E A NEGOCIAÇÃO

A idéia de livrar-se do cativeiro era, quase sempre, o pensamento do


escravizado. Ele podia buscar a sua liberdade, sozinho ou acompanhado de
parceiros da mesma condição, com a esperança de viverem tranqüilamente
como pessoas de condição livre. Nesse raciocínio, percebe-se que o quilombo,
na historiografia brasileira, converteu-se, tradicionalmente, no local onde
cativos poderiam forjar a sua liberdade: a unidade básica de resistência escra-
va era a prática da fuga.
O caminho da negociação entre senhores e escravos também foi sig-
nificativo, pois a violência, muitas vezes, era substituída, no espaço social,
por barganhas na estrutura escravista, o que não significou que a negociação
tenha se constituído na possibilidade de convivência harmoniosa, sendo
muitos os aspectos invisíveis mais profundos que compõem uma ampla
resistência cultural (REIS; SILVA, 1989).
Em geral, as tropas farroupilhas eram constituídas de fazendeiros
gaúchos que voltavam aos seus afazeres após os combates e, nesse momento,
a República necessitava de tropas permanentes. O alistamento de ex-cativos
se deveu também à necessidade farroupilha de formar uma infantaria de
lanceiros, corpo utilizado com sucesso pelos imperiais. O homem livre sulino
considerava indigno lutar a pé. Ao contrário, muitos dos africanos escravi-
zados provinham de regiões onde praticamente se desconhecia o cavalo
(MAESTRI, 2004).
No filme, no Corpo de Lanceiros Negros, dois personagens
instigantes e contraditórios se encontram e escrevem suas histórias. O sar-
gento Caldeira e o jovem soldado Milonga; um liberto e um escravo fugi-
do, respectivamente, dois pretos que sabiam o significado da escravidão,
escolheram caminhos semelhantes para alcançar a liberdade, embora ti-
vessem idéias diferentes de como conquistá-la.
No enredo do filme, Caldeira integra o pelotão dos lanceiros negros e, na
carreira das armas, transcendeu ao próprio Milonga que morreu logo que fin-
dou a Revolução Farroupilha. Caldeira ressurge no cenário do filme, trinta anos
depois, como combatente na Guerra do Paraguai. O sargento, na guerra dos
farrapos, aparece identificado com os negros que abandonaram a mitológica Serra
das Encantadas, santuário dos escravos fugidos, para juntar-se aos farroupilhas
e fundar um país, pois este era o sentido da liberdade que ele procurava.

Para Caldeira: – Ninguém é livre sendo perseguido o tempo todo. Nossa


oportunidade de ser livres de verdade é continuar ao lado dos republica-

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nos. Juntar nossas forças. Não importa que a guerra tenha terminado. As idéias
continuam. Precisamos de fatos políticos e não de andar vagando pelas serras
sem eira nem beira (RUAS et al., 1999, p. 57).

Por que não ficar nas Encantadas, onde se encontravam tantos outros
negros fujões? Não eram livres por lá? Não estavam seguros? A fuga era a
possibilidade de escapar do cativeiro, mas, para Caldeira, a sua confiança na
revolução imprimiu um entendimento mais amplo do significado da liber-
dade, reconhecendo ser necessário para a construção de uma nação o direito
à igualdade. Continua Caldeira:

Quando ouvimos falar da revolução, que a revolução queria a repúbli-


ca, o fim da escravidão, nós resolvemos descer. Sem armas, sozinhos, não
podíamos desafiar o Império. Mas junto com os republicanos somos fortes
(RUAS et al., 1999, p. 67).

E reconhecendo os limites impostos pela sociedade e pela posição que


ocupava, encerra seu argumento: “na minha pobreza, eu precisava acreditar
em alguma coisa. Em qualquer coisa. Pra bem ou pra mal, passei a vida toda
atrás dum fato político (RUAS et al., 1999, p. 22).
Certamente, em sua posição conciliadora, o sargento procurava asse-
gurar um espaço para a sua gente na República que se pretendia igualitária.
Contudo, o movimento farroupilha nunca acenou com a emancipação dos
cativos. Além disso, os negros que lutaram na guerra não participaram da
revolução em condições de igualdade com os homens livres e não gozaram
das vantagens no conflito. As terras confiscadas foram vendidas, arrendadas
e entregues a estancieiros republicanos, sem cogitar a sua distribuição entre
os escravos e gaúchos pobres.
A sorte daqueles que fizeram a guerra estava lançada, e o jovem Milonga
não pode contar com a proteção dos deuses africanos, durante toda a Cam-
panha. Em conseqüência de ferimentos, perdeu a perna, engrossando as fi-
leiras dos inválidos. Descrente da república proclamada, porque os líderes
da revolução haviam aceitado um acordo com os representantes do Império,
preferiu seguir a sorte de Quero-Quero e de seus irmãos de cor: chegar às
Encantadas e continuar a resistência.
Era muito freqüente a deserção ocorrida entre os lanceiros negros,
em razão do recrutamento ser praticado à revelia e, ainda, pelo prolonga-
mento da revolução, que provocou a falta de armamentos, munição, arreios
e fardamento. Mas, no final da República, faltavam, também, os ideais de

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liberdade que foram substituídos pela negociação de um acordo que favo-
recia as elites estancieiras.
Milonga, Quero-Quero e outros lanceiros resolvem abandonar as
fileiras do exército e, em sua fuga, pedem ao sargento Caldeira que os con-
duza até a Serra das Encantadas. Mas Caldeira insiste em sua posição con-
ciliadora e afirma: “vosmecê pode escolher entre ser um negro ignorante e
bruto e viver sozinho na serra ou se aliar com gente que quer transformar as
coisas” (RUAS et al., 1999, p. 58).
Milonga contesta: “– Quem quer transformar o quê, Sargento? O que
hoje eu sei é que se alguém quer acabar com a escravidão é porque tira pro-
veito disso” (RUAS et al., 1999, p. 59).
Caldeira: “ – Há muita gente boa que quer acabar com a escravidão
sem tirar proveito e vosmecês sabem muito bem disso. Muita gente boa que
deu seu sangue, que deu sua vida” (RUAS et al., 1999, p. 59).
O Decreto de 16 de maio de 1839 determinava que

todo homem de cor ao soldo da República que fugar para o inimigo,


volverá à condição de escravo, sempre que cair prisioneiro das Forças
Republicanas, pois; que tendo sido liberto da escravidão com a condição
tácita de servi-la, justo é que fique recendido aquele trato condicional
(O POVO apud FLORES, 2004a, p. 16).

Assim, o homem que tinha conquistado a liberdade por meio da guerra


retornava à condição de escravo.
A libertação dos cativos pelos senhores farroupilhas não era desinte-
ressada, pois os proprietários de escravos cobravam pelos serviços prestados
à República. Os negros que lutaram nas tropas farrapas jamais o fizeram em
pé de igualdade com os homens livres, pois até mesmo os oficiais do Corpo
de Lanceiros Negros foram sempre homens brancos. Nas tropas rebeldes,
negros e brancos marchavam, comiam e dormiam separados.
Erguendo a muleta, Milonga expõe o que restou da perna direita
decepada e, dirigindo-se a Caldeira, afirma:

esperanças amargas Sargento, quem foi que um dia me disse: Milonga


vosmecê não vai ser mais um negro ignorante que nem eu, que só sabe
matar pra se sentir livre. Quando a guerra acabar vosmecê vai estudar,
vai aprender a pensar, vai entrar na política, vai ser advogado. Isto foi
tudo que eu ganhei, Sargento (RUAS et al., 1999, p. 58).

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As razões que levaram Milonga a descontentar-se com a causa revo-
lucionária rio-grandense são pertinentes, pois as lideranças farroupilhas não
cumpriram o acordo firmado com os escravos capturados dos imperiais, que
condicionava o ingresso nas fileiras dos revolucionários à liberdade. A anis-
tia aos revoltosos implicava a entrega dos escravos que lutaram a favor dos
republicanos, o que se converteu em traição para os homens de cor que
participavam da Revolução.
A liberdade desejada por Milonga e outros escravos não foi a preten-
dida pelos rio-grandenses rebelados contra o Império. Arregimentando es-
cravos, os farroupilhas formariam uma tropa capaz de rivalizar contra o
exército imperial, assegurando o enfrentamento militar contra as forças ofi-
ciais, mas, para os negros que ingressaram no Corpo de Lanceiros, foi um
caminho que não permitiu alcançar a liberdade.
Para os desertores, o retorno à Serra das Encantadas converteu-se na
última tentativa de conquistar a liberdade. O que restaria ao soldado Milonga,
mutilado e inválido, se atendesse ao convite de Caldeira, de voltar para o
exército? O escravo ressentido previa o seu fim e o dos demais negros do
Corpo de Lanceiros: o retorno à escravidão.
Em Netto perde sua alma, fica evidente a desilusão de Quero-Quero, o
medo de Palometa, de ser reconduzido à escravidão, e o ressentimento do jovem
Milonga. O sentimento de liberdade experimentado durante a Guerra
Farroupilha por escravos, libertos e negros empobrecidos não foi suficiente
para que estes acreditassem no país desejado pelo sargento Caldeira.
O comandante Gavião, figura simbólica da liberdade e que habitou
o imaginário dos negros, estava morto. O sargento Caldeira e o general Netto
tombaram na mesma batalha travada na Guerra do Paraguai. O destino para
Milonga era incerto... O desfecho do personagem no filme representa a li-
berdade traída pelos revoltosos farroupilhas, mesmo considerando-se que
Netto se retira do cenário da guerra por não concordar com o desfecho da
revolução. O destino de Milonga foi o mesmo de todos aqueles que não
aceitaram a liberdade assegurada pela fuga, desceram a Serra das Encantadas
para morrer junto aos irmãos de cor massacrados em Porongos.
No último diálogo com o general Netto, Milonga redime as vozes
silenciadas dos escravos que lutaram por um sonho de liberdade.
“Netto: A guerra terminou, Milonga.
Milonga: A guerra terminou e eu continuo escravo” (RUAS et al.,
1999, p. 63).

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Notas
1
O livro de autoria de Tabajara Ruas homônimo ao filme Netto perde sua alma recebeu o prêmio
Açorianos de Literatura, na categoria Romance Narração Longa, em 1996. Segundo os diretores Beto
Souza e Tabajara Ruas, o filme pretende ser um resgate da memória de um líder rio-grandense que
historicamente é quase desconhecido do grande público. A obra de Tabajara Ruas, não é, em abso-
luto, um romance de caráter estritamente histórico ou, mesmo, regionalista. É, antes, conforme o
próprio autor, uma ficção histórica sobre um tempo histórico. A produção foi rodada em três etapas:
setembro de 1999, maio de 2000 e janeiro de 2001. O filme foi rodado em Porto Alegre, Uruguaiana,
Gravataí, Triunfo e Camaquã, no Rio Grande do Sul, Piedra Sola e Rivera, no Uruguai.
2
Existem controvérsias em relação à data de nascimento do general Antonio de Souza Netto; segundo
Carlos Urbim, os registros confirmam seu nascimento em 25 de maio de 1803.
3
Para reprodução dos diálogos na ficção histórica Netto perde sua alma, foi utilizado o roteiro impresso
do filme, 1999, Tabajara Ruas é escritor, jornalista e diretor do filme. Participam da elaboração do
roteiro: Tabajara Ruas, Fernando Marés de Sousa, Rogério Brasil Ferrari e Ligia Walper.
4
O Massacre dos Porongos, como ficou conhecido o episódio que dizimou centenas de lanceiros e
resultou no aprisionamento de soldados negros da Infantaria rio-grandense, em um confronto entre
o exército imperial e os revolucionários farroupilhas, atualmente, está sendo objeto de revisão histó-
rica no Rio Grande do Sul. Sobre a participação do negro no movimento revolucionário dos farrapos,
ver Flores (2004a; 2004b).

Referências
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DAC/SSEC, 1976.
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FLORES, M. Traição em Porongos. Correio Rio-Grandense, Caxias do Sul, 15 set. 2004b.
GAY, P. A educação dos sentidos: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo: Cia. das
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LANGER, J. Metodologia para analise de estereótipos em filmes históricos. Revista Historia Hoje. São
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RUAS, T. et al. Netto perde sua alma. [S. l.: s. n.], 1999. [Roteiro impresso]. URBIM, C.
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FLORES, M. Negros na Revolução Farroupilha. In: O POVO. Jornal de Capaçavas. Porto Alegre: EST, 2004.

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Abstract: this article analizes the participation of Black Lancers in the
historical fiction: Netto Loses His Soul. This motion picture was directed by writer
and journalist Tabajaras Ruas. The text aims at a reflection about the sense of
freedom through the dialogue of three characters: general Netto,one of the main
leaders of the Farroupilha Revolution, the slave Milonga and sergeant Caldeira,
member of the Army and ex-slave. It is also the objective of this article to establish
a relationship between history and film making as a source of knowledge
production.

Key words: Farroupilha Revolution, slaves, history and cinema

MARINA HAIZENREDER ERTZOGUE


Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora/Pesquisadora na Uni-
versidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: frtzogue@terra.com.br

MARCELO SANTOS RODRIGUES


Doutorando em História Social na USP. Professor na UFT. E-mail: marcelorodrigues@uft.edu.br

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