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AS MARAVILHAS DA DÚVIDA

“Qual é a coisa certa?”, me perguntou o Velho, como carinhosamente


chamávamos o monge mais antigo da Ordem, como fazia Sócrates, o filósofo
grego, que devolvia uma pergunta com outra como método de raciocínio.
Estávamos sentados na cantina do mosteiro diante de uma caneca de café e um
pedaço de bolo de aveia. Desde sempre eu me sentia desconfortável com uma
série de dilemas do cotidiano. De questões políticas e sociais que, de alguma
maneira, atingem a todos até incertezas quanto à minha vida pessoal, como
trocar de namorada, trabalho, cidade ou estilo de vida. Argumentei que a todo
instante nos deparamos com dúvidas que nos incomodam em diferentes escalas,
algumas são banais, outras muito sérias. O ruim é que as dúvidas causam
enorme desconforto. Para piorar, em face das minhas incertezas eu me deparava
com pessoas de opiniões divergentes, contra ou a favor, ambas convictas de
suas posições e apresentando fortes argumentos. Falei que queria me livrar do
incômodo da dúvida e saber sempre a coisa certa a fazer. Então, veio a pergunta
do Velho sobre qual era a coisa certa. Respondi que se eu perguntei era porque
não sabia e precisava de uma resposta. O monge bebeu um gole de café e disse:
“A minha resposta desenha a minha verdade, não necessariamente a sua. É
necessário que você se esforce para encontrar aquela que irá lhe completar, por
isto o desconforto. Bendita seja a dúvida!”.
Irritado, falei que ele não estava me ajudando. O monge manteve o tom tranquilo
da voz para me trazer de volta à agradável ambiência do mosteiro: “As dúvidas
trazem os questionamentos; estes se aprofundam e nos levam a procurar a parte
que nos falta; apenas no exercício desta busca encontraremos a verdade”.
Argumentei que ele estava errado, pois muitas das verdades que me eram
absolutas no passado hoje já não se sustentam. O Velho sorriu e disse: “Perfeito
e maravilhoso. Tudo muda. Sabe o que isto significa? Evolução”. Pedi para ele
explicar melhor e o monge foi paciente: “As verdades se modificam à medida em
que alteramos os níveis de consciência e de amor. O entendimento se transforma
com o florescimento das virtudes no indivíduo. De flor em flor construímos os
jardins da humanidade; de verdade em verdade encontraremos a Verdade”.
Pedi para ele exemplificar. O Velho foi didático: “Voltemos aos anos 1800.
Duzentos anos no contexto histórico é um segundo na História, tão pouco tempo
que os reflexos daquele período ainda são claramente sentidos nos dias de hoje.
Nessa época boa parte do mundo, mormente as Américas, enfrentava o grande
dilema pelo fim da escravidão. A escravidão é um assunto resolvido na
modernidade, não existindo qualquer dúvida sobre o absurdo de uma pessoa ser
proprietária de outra. Claro que você pode questionar que ainda há cativeiros
oriundos de relações trabalhistas precárias ou de dependências emocionais.
Porém, me refiro à insensatez de a lei permitir o comércio de pessoas como se
fossem coisas, sem qualquer manifestação de vontade daqueles que eram
cativos. Mas houve tempos em que as pessoas achavam isso normal, entendiam
ter esse direito e que, sim, poderiam ser donas de outras. Havia escritura de
compra e venda e os escravos eram considerados bens passíveis de herança.
Acredite, embora tortuosos, não lhes faltavam argumentos e eram acompanhados
por muitos que viveram naquele período. Essa era a verdade de uma parte
significativa da população naquele momento”. Deu uma pequena pausa para
mordiscar um pedaço de bolo e seguiu: “No compassado processo de evolução
da humanidade foi preciso que alguém levantasse dúvidas sobre aquelas
verdades e direitos; aos poucos outras pessoas foram aderindo e ampliando os
questionamentos, apresentando a possibilidade da existência de uma verdade
diferente, onde era possível uma coexistência mais luminosa. Este novo jeito de
ser e viver foi se expandido até que vieram as inevitáveis mudanças”.
“As dúvidas de hoje estarão superadas amanhã na perfeita régua da evolução
individual que aos poucos se espraia para toda a humanidade, quando,
inevitavelmente, surgirão novas dúvidas para que outras verdades possam se
revelar. Assim caminhamos”.
O Velho ficou com os olhos perdidos como se falasse consigo mesmo e
sussurrou: “Me assusta as pessoas que não têm nenhuma dúvida, sobre qualquer
assunto. Daí, não raro, costumam surgir alguns absurdos, quando não,
atrocidades. A História está cheia de exemplos”.
Falei que entendia toda a explicação do monge, no entanto, não sabia como me
posicionar quanto às dúvidas que eu tinha, todas atuais e influentes no meu dia a
dia. Ele me sugeriu de modo enigmático: “Pense na árvore e no fruto”. O ponto de
interrogação que surgiu na minha testa fez com que ele aprofundasse o
raciocínio: “Conhecemos uma árvore pelos seus frutos. Você é a árvore; suas
escolhas são os frutos. Perceba se eles alimentam e alegram quem está a sua
volta; se a cada decisão que tomar o mundo se aproximará ou se distanciará dos
seus sonhos. Costuma ser um método eficiente para sanear dúvidas
momentâneas, quebrar paradigmas, inventar novos padrões e iluminar as ruas
escuras pelas quais andamos”.
“Não estranhe se nesse momento uma voz interna venha lhe dizer que o mundo
está perdido, que não tem jeito, que as pessoas não vão mudar, que as suas
atitudes isoladas serão insignificantes e que você está perdendo tempo. São os
conselhos das suas sombras atreladas ao comodismo, ao egoísmo e ao
inconsciente coletivo ainda nebuloso e vinculado a experiências sofredoras do
passado que não conseguem superar. As suas escolhas, por mais isoladas que
sejam, farão toda a diferença. Lembre que o Universo sempre conspira a favor da
Luz; logo, nenhum movimento nesse sentido, embora aparentemente
imperceptível, será desprezado. Ainda que as mudanças demorem muito tempo
para se concretizar, um belo jardim nasce de uma única árvore e da força de seus
frutos. Haverá outras pessoas que também têm as mesmas dúvidas e
questionamentos, sonhos e verdades; nesse momento a sua atitude será angular
para eles se animarem a prosseguir. Cada escolha é um fruto e todo fruto é
repleto de sementes. Então, que sejam de Luz!”.
“A dúvida é a semente da transformação da realidade. A verdade é o seu fruto
que quando maduro tem o sabor da liberdade”.
Deu uma pausa e acrescentou: “Apenas não esqueça o compromisso que
devemos ter com a mansidão e a paz. Mudanças violentas ou impostas na marra
não se sustentam por muito tempo, pois são de fora para dentro. A transformação
tem que ocorrer de dentro para fora; a verdade tem que estar entranhada no ser
ou não será transformação, mas mera maquiagem que desmanchará na primeira
chuva”.
Perguntei se as dúvidas apenas traziam benefícios. O Velho franziu as
sobrancelhas e disse: “Claro que não. Em tudo na vida existe um ponto de
mutação. Se você não souber usar a dúvida como mola propulsora para
descortinar o véu que impede um olhar mais apurado e, com ele, alterar a própria
realidade, a dúvida o aprisionará na agonia da inércia. A dúvida precisa de
enfrentamento e resolução. A verdade nasce do movimento interno pela
libertação do ser”.
“A verdade precisa da dúvida para germinar. A sua consciência se alimenta das
suas verdades; elas se ampliam até o último dos limites, então se transformam
em outras. O nome disso é transmutação, é o que Canção Estrelada, o sábio
xamã do Arizona, chama de medicina da cobra: trocar de pele para crescer; ser o
mesmo, mas ser diferente e melhor”.
Pediu para eu colocar mais café na sua caneca, bebeu um gole e lembrou: “Por
isso a tentativa de convencer os outros quanto às próprias verdades é o exercício
dos tolos. Nem sempre a pessoa está pronta para entender a mudança. Cada
qual traz uma bagagem de experiências ainda mal resolvidas que precisa
decodificar, harmonizar e, posteriormente, extrair as verdades ali contidas. Assim
expandimos a consciência. É preciso respeitar e ter paciência com as dificuldades
pessoais e o tempo que cada um necessita para completar cada ciclo de
conhecimento. Quando expomos a nossa verdade, não raro, encontramos no
outro um questionamento aquém ou além do nosso”. Deu uma pausa e concluiu:
“Não pense que pelo simples fato de você se sentir acordado, todos os demais
que não pensam igual a você ainda estão dormindo; alguns acordaram mais
cedo”.
Perguntei o que fazer quando não houver convergência de opiniões: “Exponha os
seus argumentos de maneira clara e aceite serenamente o posicionamento
alheio. A boa semente não se perde. Isto demonstra respeito por si e sabedoria
em relação à vida. O mais importante, viva as suas ideias como modo de animar
as próprias palavras. As verdades pessoais nos definem e elas não são os
discursos, mas as escolhas que colocamos em prática”.
Eu quis saber o que ele fazia diante de uma dúvida. O Velho arqueou os lábios
em leve sorriso e disse: “Quando tenho que tomar uma decisão e a dúvida faz
com que uma bifurcação surja no caminho, tenho sempre o amor como estrela-
guia a orientar os meus passos. Orgulho ou humildade; vaidade ou simplicidade;
egoísmo ou compaixão; desejo ou necessidade; vingança ou justiça; subterfúgio
ou pureza. Somente o amor me dirá se a verdade que me aconselha se origina
das sombras ou da Luz”.

O SER INTEIRO

Tinha feito calor o dia inteiro. A brisa que descia das montanhas tornava o final da
tarde bastante agradável no mosteiro. Encontrei o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sentado em uma confortável
poltrona situada em uma das varandas que permite uma belíssima vista dos vales
que se avizinham abaixo de nossa sede. Pedi para sentar ao seu lado e ele
concordou com um movimento de cabeça. Por me conhecer há algum tempo, foi
direto ao ponto: “O que lhe aflige”? Expliquei que muitas vezes, mesmo na
certeza de tomar a decisão correta, algum desconforto se instalava em mim, o
que era uma contradição. Ele pediu para que eu fosse mais específico e
acrescentou: “Vamos ao caso concreto”.
Expliquei que um grande amigo tinha me pedido dinheiro emprestado. Era um
valor considerável. Embora eu tivesse a quantia, que estava guardada para
outros fins, neguei o empréstimo. Isto furtara a minha paz nos últimos dias.
Ponderei que estranhava os meus próprios sentimentos, uma vez que a
convicção da minha escolha deveria pacificar o meu coração. Com os olhos
vagando no horizonte, o Velho falou: “O espírito, a verdadeira identidade eterna
de todos nós, em sua infância, nosso atual estágio, tem o ego distante da alma
como se estivéssemos divididos em dois. Por um lado, o ego se empenha pelas
conquistas materiais e os prazeres sensoriais, os aplausos e o brilho social. Pelo
outro, a alma se alegra com as vitórias dos sentimentos sobre os instintos, com a
superação das dificuldades, com a transmutação das próprias sombras em luz. O
ego quer o reconhecimento do mundo; a alma quer que o melhor de si brote para
o mundo. O ego está ligado às paixões; a alma ao amor. O ego está no âmbito do
eu; a alma pensa em nós. Na viagem do aperfeiçoamento o Caminho nos impõe
escolhas. Com o ser dividido em dois as decisões criam conflitos internos. Estes
conflitos geram desequilíbrio em todos os níveis”. Deu uma pausa antes de
acrescentar: “Temos que alinhar o ego à alma, no sentido de que os desejos
daquele estejam em harmonia com as buscas desta. Da mesma maneira temos
que trabalhar o ‘eu’ sem esquecer o ‘nós’, sendo que a recíproca também se
aplica. Ou seja, cuidar do mundo sem esquecer de si. São partes da mesma arte.
Assim o ser se torna uno, se liberta das angústias mundanas, conhece a
plenitude e a paz”.

Perguntei se o ego deveria ser aniquilado. O monge negou: “O ego é


importantíssimo, apenas precisa ser educado. Ele apresenta os exercícios para o
fortalecimento da alma; são as exatas etapas de superação do ser. Embora em
seu estágio inicial o ego esteja ligado mais à aparência do que à essência, é ele
quem se preocupa com o corpo e o bem-estar físico, fundamentais a manutenção
da vida. Precisamos do interesse do ego pelo mundano para que ali o sagrado
que habita na alma se manifeste, nunca para suprimir um pelo outro, mas para
harmonizar ambos. Para o bom andarilho todas as dificuldades materiais acabam
por fortalecer as musculaturas emocional, mental e espiritual de que necessita
para seguir em frente. As lutas, as dúvidas, os conflitos, os problemas e as
angústias acabam sendo importantes para desenterrar a percepção sobre si
ainda adormecida no fundo do ser. Ao entender a si próprio o indivíduo ganha a
sabedoria do mundo, potencializa o seu dom e descobre a magia das virtudes. O
amor floresce. O ego, quando primário, é muito suscetível às sombras da inveja,
do orgulho, da vaidade, da mágoa, da ganância e do ciúme. São terríveis prisões
sem grades. O primeiro passo é aceitar as sombras para mais adiante transmutá-
las em luz na jornada de libertação do ser. Assim a vida se mostra perfeita graças
às suas imperfeições”.

Eu quis saber se toda vez que pensasse em mim em detrimento do outro estaria
sendo egoísta. O Velho franziu as sobrancelhas e falou sério: “Claro que não.
Cada qual é responsável pela fonte da própria vida e deve cuidar para que ela
nunca seque. Saciar a sede alheia com a água que brota em si nos torna
sagrados. Mas pensar que é obrigação do outro nos permitir beber em sua fonte é
a raiz dos conflitos”. Virou o rosto para mim e perguntou: “Qual lição é o eixo do
Sermão da Montanha”? Respondi que é ‘amar o próximo como a si mesmo’. O
monge moveu as mãos como se as palavras não fossem suficientes para me
explicar o óbvio e disse: “Então? Se você não ama a si mesmo não será capaz de
amar ninguém”. Fez um breve silêncio para a minha reflexão e questionou de
maneira retórica: “Como será possível alimentar o outro se não trazemos pão na
bagagem? Como dar o que não se possui? Temos que colocar a alma para
mostrar ao ego a alegria de semear os campos do mundo para abastecer o
celeiro do coração; colher o trigo, transformar em pão; comer do pão e repartir o
pão com toda a gente”. Sem esperar pela minha resposta, continuou: “Só
conseguimos compartilhar o que temos. E o que temos, de verdade, é tão
somente aquilo que já conseguimos compartilhar. Este é o único e verdadeiro
patrimônio”. Franziu as sobrancelhas e falou com seriedade: “No entanto, a real
necessidade do outro, algumas vezes, pode não ser exatamente o que ele pede.
Por isto existe o sim e há o não”.

Falei que a necessidade do meu amigo era o que ele tinha me pedido e eu tinha
negado. O monge sugeriu: “Ofereça a outra face”. Falei que não tinha entendido.
Ele explicou: “Se coloque no lugar dele”. Pensei por alguns instantes e respondi
envergonhado que errei em não atender ao pedido de socorro de uma pessoa
querida.

“Talvez sim, talvez não”, o Velho me surpreendeu.

Aquelas palavras me trouxeram alguma irritação e falei que ele estava


complicando. O monge deu uma gostosa gargalhada e disse: “Eis um exercício
cheio de armadilhas”. Interrompi para dizer que não tinha entendido. O Velho
prosseguiu tranquilo: “Enfrentar o problema com os olhos do outro não significa
entregar exatamente o que ele deseja. Além de amor e generosidade, há que se
ter sabedoria e sensatez; virtudes poderosas que se completam. Elas te darão a
exata medida se o outro, naquele momento, precisa ser carregado nos braços ou
estimulado a andar com as próprias pernas. Existe hora de fazer uma coisa e há
vezes de realizar a outra. Pode significar a diferença entre alimentar um fraco ou
criar um fraco; a fronteira é tênue”.

Falei que não entendia a importância do ego nesse processo. O monge explicou:
“É a força do ego que nos move às conquistas materiais, pois ele está ligado às
questões referentes à aparência e à sobrevivência. Isto tem valor, pois são
nessas batalhas que os valores espirituais afloram, mostram a sua importância e
movem as transformações essenciais. A vitória consiste em fazer com que o ego
siga a sua marcha, porém, a cada dia mais apaixonado pelos valores iluminados
da alma e tendo as nobres virtudes como armas de luta. As conquistas materiais
não precisam ser desprezadas, ao contrário, apenas têm que estar em compasso
com as conquistas espirituais. Então, descobrimos que o ego pode ser um vilão
cruel ou um valioso aliado. O ego se torna um guerreiro poderoso se prestarmos
atenção em quais sentimentos movimentam as suas escolhas. Isto é de
fundamental importância. Quando o ego passa a dançar embalado pelas canções
de amor da alma as angústias se pacificam, as batalhas se tornam sagradas e as
vitórias se consagram em pura luz”.

Insisti que ainda tinha dificuldade em entender como o ego se mostraria útil. O
Velho foi didático: “Como lhe disse, o ego está mais ligado ao ‘eu’ e a alma mais
preocupada com o ‘nós’. Imagine a situação de atravessar um deserto, estar no
limite da sede e encontrar um pote d’água fresca. Beber todo o pote é
desamparar os demais; não beber da água é morrer de sede; beber uma parte e
deixar a outra para quem vem atrás o torna sagrado. É a perfeita integração do
ser; é amar o outro como a si mesmo”.

Calei-me por alguns minutos. Depois, confessei que me arrependia de no


passado ter ignorado mãos que me solicitavam ajuda. Não queria incorrer no
mesmo erro. O monge me corrigiu: “Você não deve sentir culpa por não ter
atendido aos pedidos. Aceite que fez o seu melhor dentro dos níveis de
consciência e amor que possuía na época. O importante é ter responsabilidade
com a evolução. Um compromisso que cada um assume consigo de não incorrer
nas atitudes que já entende como equivocadas. Siga sem a culpa que paralisa,
mas com a responsabilidade que transforma. Lembre que as mais belas histórias
são as de superação. No mais, não se preocupe, o Caminho sempre oferecerá
uma nova oportunidade para que você corrija a rota. Depois mais e mais, em
infinitas possibilidades de aperfeiçoamento. Tente aproveitar cada uma delas,
embora aceite que é normal que algumas sejam desperdiçadas. As oportunidades
sempre tornarão a surgir, embora em graus distintos, de acordo com a
necessidade de aprendizado do andarilho”. “

“‘Sempre fazer diferente e melhor’. Isto é um mantra e uma prece”.

“A expansão do Universo é constante e infinita. Somos parte dele. Logo, ele está
contido em nós. Desse modo as nossas chances vão além da imaginação vulgar.
Se você não crescer, o todo estanca. Isto nos permite entender porque somos
essenciais e nunca seremos abandonados pelo Universo, embora muitas vezes
não compreendamos a sua pedagogia e determinação em nos fazer avançar.
Como ainda não temos a sensibilidade para sentir o seu infinito amor e entender
a sua incomensurável sabedoria, muitas vezes duvidamos desta interação.
Porém, preste atenção, pois a recíproca também se aplica: embora caminhemos
individualmente temos um inegável compromisso com a obra ou com o todo,
como queira denominar. Neste estágio de existência as nossas lições se
apresentam através dos relacionamentos pessoais, com as dificuldades e
oportunidades que eles nos oferecem. Em cada conflito você pode encontrar um
problema ou um mestre; depende apenas do seu olhar”.

“O Caminho é solitário e solidário. Independente e acompanhado. Em absoluta


sincronia”.

“Somos ego e alma; somos a parte e o todo. Este é o poder, a grandeza e a


beleza da unificação do ser; consigo mesmo e com a mais longínqua das
estrelas”. Tornou a olhar para as montanhas que nos abraçavam, aquietou o
coração e a mente por segundos, para em seguida finalizar com uma pergunta:
“Yoskhaz, se você traz toda a força do Universo em si, já imaginou do que é
capaz”?
EQUILÍBRIO IMPROVÁVEL

Eu caminhava pelas montanhas do Arizona ao lado de Canção Estrelada, o xamã


que possuía o dom de transmitir a sabedoria dos seus ancestrais através da
palavra, cantada ou não. Ele queria me mostrar o seu Lugar de Poder, como se
denomina na mitologia nativa o local onde cada qual se sente mais à vontade
para se conectar com a inteligência cósmica. “De todos os lugares do planeta é
possível abrir um canal ou uma ponte, no entanto, há locais, por razões diversas,
onde a ligação é mais intensa. O mar é um santuário; a montanha, uma catedral;
a sua casa, um templo. Seja pela quietude, pelo som das estrelas, pela
integração com a Mãe-Terra. Por alguma razão pessoal ou por ser um lugar onde
as pessoas vão há séculos rezar, como nas igrejas, ancorando a forte vibração do
universo, cada indivíduo deve encontrar o local onde sinta a força dessa
conexão”, explicou o xamã. Ao chegar ao Lugar de Poder de Canção Estrelada,
um pequeno platô bem próximo ao cume, não tinha como deixar de perceber uma
árvore, presa pelas pontas da raiz, resistindo bravamente na beira de um
penhasco, de maneira elegante e impensável, contra o vento, a chuva, o sol, a
neve e a gravidade. Comentei que ela não conseguiria aguentar muito tempo. O
xamã sorriu e disse com seu rosto vincado por dezenas de invernos: “Ela está
nessa mesma condição desde que eu era menino e vinha passear nesta
montanha com o meu avô. Provavelmente continuará depois que eu realizar a
grande viagem”. Fez uma pequena pausa e continuou: “Uma raiz forte é
indispensável para enfrentar as tormentas que existem na vida. Não é diferente
com ninguém”. De pronto, perguntei o que era necessário para eu ter uma raiz tão
poderosa capaz de me manter inabalável às piores tempestades.

“As raízes de cada um são o conjunto de três coisas: saber exatamente quem
você é e não fugir ao combate do aperfeiçoamento pessoal”. Falei que faltava
uma última coisa. Ele olhou para a árvore-equilibrista antes de concluir: “A
terceira parte da raiz consiste em dominar a arte do equilíbrio improvável.
Lembrar-me disto foi a função desta árvore por toda a minha vida. Isto a torna
sagrada para mim”.

Falei que não fazia a mínima ideia do que era o tal equilíbrio improvável. Ele não
disse palavra. Com toda a calma, abriu a sua manta no chão para que
sentássemos, pediu que eu recolhesse gravetos secos para uma pequena
fogueira e acendeu o seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha.
Depois cantou uma sentida e ritmada canção acompanhada pelo seu tambor de
duas faces, agradecendo ao Grande Mistério pela oportunidade de estar ali e por
todas as “mensagens, visões e sonhos” que seriam concedidos. Quando abriu os
olhos, falou: “O equilíbrio improvável é a capacidade desenvolvida para não
permitir que as dificuldades inerentes ao Caminho o tirem da rota ou furtem a sua
paz. Para isso, tem de saber lhe dar com as sutilezas da estrada, do tempo, da
paisagem e de outros viajantes. Estes são os ingredientes da magia. O caldeirão
é o próprio Caminho”.

Ansioso, falei que não tinha entendido. O xamã explicou com paciência: “O bom
andarilho tem na paz uma premissa inseparável. Faz da não-violência a sua força
de transformação. Ele sabe que somente na medida das modificações que realiza
em si próprio, conseguirá alterar o mundo. Assim, não perde tempo e energia
tentando convencer ao outro sobre as suas razões, pois sabe que da mesma
maneira que ainda não está pronto para entender muitas coisas, muitos ainda não
enxergam aquilo que ele já consegue ver. Apenas espelha em suas atitudes
serenas a sabedoria que lhe habita. Ele sabe que se o argumento convence, o
exemplo tem o poder de contagiar corações”.

Argumentei que a explicação estava muito vaga. O xamã anuiu com a cabeça e
falou: “A vida contém sutilezas cujas linhas que separam as sombras da luz
podem parecer tênues, embora não sejam. O sutil, por definição, muitas vezes
passa por nós sem o notarmos. Daí, a necessidade de afinarmos cada vez mais a
nossa percepção. No entanto, há situações mais corriqueiras que permitem um
entendimento mais fácil”. E me mostrou alguns momentos em que, não raro,
perdemos o melhor equilíbrio.

“O grande conflito entre o legal e o justo; entre legalidade e legitimidade, é um


bom exemplo. Sabemos que as leis são as linhas divisórias entre a civilização e a
barbárie. Em nosso atual estágio de evolução é impossível a vida em sociedade
sem um conjunto de regras que estabeleçam direitos e deveres, o que é muito
bom, pois traz tranquilidade e segurança social. No entanto, assim como tudo no
universo, a nossa consciência está em constante mutação e existe a necessidade
de que as leis acompanhem essa evolução, o que nem sempre acontece na
velocidade desejada. Por outro lado, sempre é possível fazer mau uso de uma
coisa boa: há regras estabelecidas com base no falso moralismo ou para
defender interesses escusos, prejudicando setores ou mesmo a grande maioria
de um povo. Não podemos esquecer que a escravidão e a segregação racial ou
de gênero, apenas para citar algumas possibilidades, foram praticadas no vigor
de odiosas legislações”.

“Há que se ter atenção para que a lei não seja usada indevidamente para
alimentar preconceitos, vinganças ou sustentar atrasos. O primeiro passo é
perceber quando a fronteira entre a luz e as sombras foi ultrapassada, quando
uma coisa boa é deturpada para ser usada para fins inescrupulosos, quando se
usa um instrumento legal para dar vazão a manifestações de ódio e intolerância.
Quando a inflexibilidade do moralismo destrói a beleza da moral. Manter-se justo
e pacífico quando a lei caminha em sentido contrário à justiça é um importante
equilíbrio improvável”.

“Ter o cuidado para não se deixar contaminar pelas enormes sombras coletivas
que se formam em alguns momentos, no desejo por punições severas e por
encontrar culpados a arcar com as insatisfações particulares que se pulverizam
no conjunto social de maneira difusa e confusa, faz toda a diferença. Nessas
horas é preciso se posicionar como um farol a iluminar a noite escura. Sem a
pretensão de ser o dono da verdade e sempre abdicando por completo de
qualquer forma de violência. O equilíbrio improvável se faz necessário para agir
de maneira contrária a turba cega, que na ilusão de afastar a sombra, termina por
alimentar as trevas, sedenta pelo apedrejamento moral de um indivíduo qualquer.
O andarilho percebe o movimento coletivo contrário à luz e sabe que, nesse
momento, a vingança se disfarça com as vestes da justiça para punir sem a
indispensável dose de amor que uma decisão verdadeiramente justa traz em seu
bojo. Então, nega-se em seguir as vozes do mundo, por contrárias ao que lhe diz
o silêncio do seu coração e se posiciona com atitudes, ao mesmo tempo, firmes e
serenas, em total acordo com as ideias arejadas que conduzem pelas trilhas da
tolerância, união, compaixão, harmonia e bondade, a se manter no lado
ensolarado da estrada. O equilíbrio improvável exige gentileza; gentileza exige
coragem”.

Canção Estrelada deu uma baforada no cachimbo e começou a abordar uma


outra situação: “Igualmente sutil é o momento de decidir entre o individual e o
coletivo. Claro que o todo é mais importante que a parte, porém o pedaço,
quando incompleto, compromete a integridade”. O xamã continuou: “O equilíbrio
improvável se apresenta toda vez que priorizamos o pessoal em detrimento ao
coletivo, em desacordo com o correto princípio geral. Entender que existem
limites de interferência da sociedade sobre o indivíduo é importante para
estabelecer condições indispensáveis que resguardem a ampla liberdade
pessoal, sem nunca esquecer às respectivas responsabilidades. Um povo pode
muito, mas não pode tudo”, deu uma pausa, ficou olhando para a árvore-
equilibrista e seguiu: “Vejo outra sutileza derivada desta questão. Ela reside em
perceber que o exercício do melhor direito exclui qualquer privilégio. Os ventos
que impulsionam o avanço da humanidade mostram que todo privilégio é
contrário ao bom direito. Privilégios nada mais são do que resquícios dos
sentimentos ancestrais de dominação, desigualdade e separatividade, ainda
presentes. Se você sustenta um privilégio é porque ainda não tem a justiça dentro
de si”.

“Outro equilíbrio improvável, ainda mais crítico, pois é de ordem interna, aborda a
delicada questão do egoísmo. Qual o momento em que deixo de cuidar de mim
para cuidar do outro? E se eu não estiver bem para cuidar de alguém? Até que
ponto devo ajudar para não enfraquecer o outro? São perguntas que não calam”.
Ele me mirou nos olhos por instantes e continuou: “É fundamental estabelecer, de
maneira clara, o limite do outro sobre a sua vida, para que não exista abusos ou
excessos, sem, no entanto, esquecer que é impossível manter a alma em paz
sem amparar a quem clama por ajuda. Eis outro equilíbrio improvável. A eterna
harmonia em cuidar de si sem esquecer do outro. Aceitar que só se pode dar o
que já integra o ser e perceber que na matemática da vida apenas multiplicamos
o que sabemos dividir, são os dois lados de uma mesma moeda e o entendimento
de um dos mais preciosos ensinamentos do Caminho”.

Canção Estrelada me ofereceu um belo sorriso e finalizou: “Fazer pelo outro o


que eu gostaria que ele fizesse por mim, caso as posições estivessem invertidas,
é a resposta sagrada, a lição maior e, portanto, a mais difícil de executar. O
equilíbrio improvável entre a fina sabedoria de entender a situação, com todas as
sutilezas, e a disposição amorosa em compartilhar o seu melhor, sem qualquer
medo, é a sua grande obra arte no maravilhoso show da vida”.
O DESEQUILÍBRIO É FUNDAMENTAL

A vida é uma infinita e fantástica viagem a caminho da luz. Esta vida é apenas um
trecho da estrada. Viajar significa evoluir; evoluir exige transformação. Ninguém
nasce pronto. Entender que o que trouxemos na mochila até aqui nos foi útil, mas
pode não nos servir mais, é sinal de sabedoria. Se faz necessário deixar algumas
coisas para trás para dar lugar a outras. Reinventar-se todos os dias. Nada nos
atrasa tanto quanto o trem perdido do preconceito, o voo cancelado das ideias
obsoletas e o beco sem saída da atitudes ultrapassadas. Orgulho, vaidade e
teimosia são pedras pesadas que, não raro, guardamos escondidas no fundo da
mala, debaixo da blusa do ciúme e da calça do egoísmo. Precisamos de leveza
para andar. É fundamental abrirmos espaço para o novo, trocarmos a bagagem.

Analise a sua mochila com carinho. O amor é o melhor manual para te indicar o
conteúdo essencial.

Queiramos ou não, temos que caminhar. Quando nos negamos, seja por inércia,
preguiça ou conforto, a vida nos desequilibra. Nos presenteia com novas e, a
princípio, indesejáveis situações para nos obrigar a caminhar. Desequilibrado,
para não cair, você dá um passo a frente em busca do equilíbrio e depois outro
por ansiar uma nova estabilidade, que cedo ou tarde, a depender da sua
capacidade de perceber e entender o momento, virá. Então, olhará para trás e
verá que já não está no mesmo lugar. Você andou e foi para buscar um novo
equilíbrio que isto aconteceu. Houve transformações, você evoluiu.

Olhe para trás e analise quem você era a cinco, dez ou vinte anos e quem é hoje.
Percebe a evolução? Entende as transformações que operou em si próprio? Não
falo das mudanças em relação a situação material ou financeira, mas da clareza
do pensamento e da amplitude dos sentimentos. Estes são os instrumentos da
plenitude que todos buscamos. A serenidade diante das tempestades é um
desses sinais que indicam um bom progresso, afinal nem sempre foi assim,
lembra?

Se passado todo esse tempo, você ainda está sentado na beira do caminho,
prepare-se. Caminhamos por vontade ou por imposição. Esta escolha define as
flores que irão colorir a paisagem.

Preste muita atenção às suas escolhas. Fazemos dezenas ou centenas delas


todos os dias. Das mais banais às mais complexas. De sorrir e cumprimentar um
estranho na rua a mudar de emprego, cidade ou casamento. O somatório dessas
escolhas definem quem cada um de nós é. Define quantas transformações você
se permitiu. O quanto evoluiu.

O budismo ensina que devemos caminhar sempre, ficar atento à paisagem sem
nos ater a ela. Diferenciar o eterno do que é transitório significa estar pronto para
participar da grande sinfonia do universo. Ter uma boa casa e uma vida
confortável são coisas maravilhosas, mas são bens passageiros. Ser um bom
filho, um pai atencioso, trocar abraços e sorrisos sinceros, criar laços amorosos
com quer que seja, construir uma ambiência harmônica onde estiver são bens
imperecíveis.
A viagem não tem fim e o que carimba o passaporte na próxima estação é o
conteúdo da nossa bagagem. Ela define o guichê que nos dará a passagem para
o próximo trecho da travessia. A vida, como um pai amoroso que ralha com o filho
porque deseja que ele chegue ao destino, vai lhe desequilibrar se você apenas
quer ficar sentado assistindo ao trem passar. Portanto, levante-se e reveja a
bagagem. Mochila nas costas e boa viagem!!!

MARAVILHOSOS VILÕES

Na pequena e secular cidade, situada no sopé da montanha que abriga o


mosteiro, tem um antigo e charmoso cinema em frente à praça da igreja que eu
frequentava sempre que os afazeres da Ordem permitiam. Nessa noite, ao final
da sessão, encontrei com Loureiro, meu amigo artesão, amante dos livros e dos
vinhos. Filosofia e tinto eram as suas preferências. Consertar sapatos era o seu
ofício; remendar almas, sua arte. Ele logo me convidou para uma taça em uma
silenciosa taberna próxima. A conversa versou sobre o filme que acabáramos de
assistir. Eu disse que o que mais me chamava a atenção era o fato de o vilão ter
“roubado” a cena, face o excelente trabalho do ator na composição do
personagem. O elegante artesão bebeu um gole antes de falar: “Quanto melhor o
vilão, mais interessante é o herói. O vilão é essencial na vida do herói, por ajudar
no seu aprimoramento. Assim na arte como na vida”.

Discordei de maneira veemente. Eu conhecia pessoas insuportáveis e o meu


desejo era simplesmente fazê-las desaparecer como que em um passe de
mágica. Loureiro riu e disse: “Se todos nós tivéssemos esse poder, perderíamos
as melhores oportunidades de aprendizado e, consequentemente, de evolução.
Os vilões têm um importante papel em nossas vidas, assim como nas telas. São
os conflitos que movimentam as histórias tanto na realidade quanto na ficção e,
para tanto, é indispensável que o antagonista provoque o protagonista a descobrir
o melhor de si”.

Com o maniqueísmo que me era comum à época, falei que mocinhos eram bons;
bandidos eram maus. Simples assim. O sapateiro discordou: “Você já pensou que
em vários momentos da vida interpretamos o papel dos vilões? Isso acontecerá
todas as vezes que contrariamos o desejo de alguém. Para tanto, não é
necessário que sejamos maus. Basta um simples ‘não’. Ao negar o desejo alheio,
o prejudicado, por vezes, nos elege o vilão da vez”. Calei-me por nunca ter
pensado sob esse prisma. Ele disse que tentaria explicar melhor: “Partindo do
princípio de que cada um é o protagonista da própria história, o vilão será sempre
aquele que se opuser aos seus objetivos, nobres ou não”. Deu uma pequena
pausa para um gole e continuou: “O importante é que o vilão surge para forçar o
herói a exercitar o melhor de si; a se superar para vencer a dificuldade que lhe foi
imposta. Seja para ultrapassar a dificuldade ou entender que não pode se arvorar
em direito inexistente. Assim, os vilões nos fortalecem, aperfeiçoam e alavancam
a nossa evolução. O oponente é de vital importância nas telas e na vida de
todos”.

Tornei a retrucar, eu apenas queria viver em paz com o mundo, sem a


necessidade de qualquer conflito. “Sim, esse é o sonho comum, para o qual ainda
não estamos prontos. Em nosso atual nível de consciência os vilões têm a função
de nos arrancar da inércia e nos obrigar a caminhar; a entender a necessidade
das transformações pessoais indispensáveis para o prosseguimento da jornada.
Nos filmes, os heróis vão aperfeiçoar o manejo da espada; na vida real, deixamos
florescer a clara sabedoria e o puro amor. O vilão acaba por fazer o papel de um
mestre oculto, por impor inevitável avanço”, explicou.

Loureiro seguiu com o seu raciocínio: “Vale ressaltar que os vilões se apresentam
com diversas roupagens e não apenas como uma pessoa destinada a nos
azucrinar. Dificuldades financeiras e afetivas, problemas de saúde, desastres
naturais, são alguns exemplos de valiosos antagonistas a nos dar uma rasteira e
impor a busca por um novo ponto de equilíbrio. O golpe nos obriga ao
movimento”. Antes que eu me manifestasse, acrescentou: “E tem o mais
importante”, deu uma pausa quase teatral para aguçar a minha mente e seguiu:
“O mais terrível dos vilões é aquele que mora nas entranhas do herói”.

Confessei que não tinha entendido. Loureiro me observou por alguns instantes,
satisfeito com o efeito que tinha causado e falou: “Assim como um desafeto nos
aprimora ao impor a lapidação em nossas virtudes para que possamos
ultrapassar as adversidades, nossas sombras nos forçam, cedo ou tarde, a
acender e alimentar a Luz que nos habita. Ou seremos devorados pelo outro de
nós mesmos. Não raro, preferimos não acreditar onde mora o dragão que precisa
ser domado. Atrasamos a viagem na tentativa de justificar os nossos sentimentos
obscuros ao invés de transmutá-los. Historicamente fomos condicionados a nos
proteger do inimigo ‘lá de fora’. Subimos os muros de nossas casas e vidas;
vestimos máscaras do que não somos no desejo de aparentar força; nos
impomos escudos contra tudo e todos, na ilusão de estarmos protegidos contra
mal. Ficamos tão preocupados com os outros que esquecemos de vigiar e
entender a nós mesmos. Se prestarmos atenção e formos sinceros, admitiremos
que ninguém atrapalha tanto a marcha da vida como cada qual a si mesmo, toda
a vez que escolhe em alimentar ou ignorar a própria face sombria, sem perceber
que nesse momento o vilão se apropria da nossa vontade e nos aprisiona em
uma cela sem grades. Até o dia que decidimos reagir. Esta é a história de toda a
gente, esta é a verdadeira jornada do herói”.

“Na medida que o vilão aperfeiçoa o herói na ficção, na realidade as sombras


quando bem percebidas, buriladas e iluminadas, tornam-se importante fator de
crescimento pessoal, a nos obrigar às indispensáveis metamorfoses evolutivas.
Lembre-se, as maiores batalhas são travadas dentro de nós. Nada mais são do
que a real necessidade de superação na busca por iluminação nos porões
escuros do ser. Assim nos tornamos heróis da própria história, o vilão cumpre o
seu destino de mestre e deixa de ser o bode expiatório para justificarmos
eventuais insucessos”.

Voltei a contestar, agora mais por teimosia do que por convicção. Para mim a
ficção era bem diferente da realidade. “Sim e não. O importante é que há
preciosos pontos em comum”, ele falou. “Na verdade, a ficção trabalha com
arquétipos que estão adormecidos no inconsciente a espera de serem
decodificados. Por isto gostamos tanto de determinados filmes e personagens,
pois eles têm o poder de acordar algo que existe em nós, mas ainda não
tínhamos entendido, embora de alguma estranha maneira já sentíssemos a sua
falta, como uma nova virtude, até então desconhecida, mas pronta para se
manifestar. Ao nos identificarmos com os propósitos do personagem, percebemos
alguma coisa nele que também existe em nós, mesmo que ainda em estado
embrionário. Conheço um prestigiado psicanalista que inicia a análise do paciente
perguntando pelo filme que ele mais gostou de assistir na vida”.

A teoria do sábio artesão tinha desconcertado as minhas antigas e arraigadas


certezas. Eu não sabia o que pensar. As ideias, quando novas, causam
estranheza e precisam de tempo para amadurecer. Ele percebeu e deu o golpe
final: “Os vilões maltratam, desafiam, enganam, porém, despertam o herói que há
em nós toda vez que impulsionam à decisão de derrubar o muro invisível do
cárcere imposto pelas limitações pessoais. Dessa maneira, acabam por nos
ajudar a desenvolver habilidades adormecidas e até mesmo desconhecidas. Eles
conduzem além das fronteiras que até então nos permitíamos. Nos obrigam a
iluminar as próprias sombras. Terminam por ensinar a usar as asas. Despertar
isto, em essência, é a força da arte em nossas vidas”.

Deu uma breve pausa, levantou a taça, me mirou nos olhos e brincou com a
devida seriedade ao fundo: “Um brinde aos vilões. Eles são tão importantes que
merecem uma bonita e justa homenagem pelo crescimento que proporcionaram.
Sem eles não teríamos chegado até aqui”.

O MELHOR DOS MUNDOS

No mosteiro é fabricado, apenas em alguns meses do ano, uma pequena e


apreciada quantidade de chocolate em barras. Confeccionado de maneira
artesanal, com as melhores sementes de cacau oriundas de países tropicais,
baunilha e mel fornecidos por cuidadosos produtores da região, segue à risca
uma receita secular, apenas conhecida entre os monges. O chocolate é famoso
entre aficionados e tem toda a sua produção imediatamente vendida, mesmo
limitando a quantidade individual de compra. O valor arrecadado ajuda a custear
boa parte das despesas da Ordem. Não toda.

Certa vez, o Velho, como carinhosamente chamamos o decano da Ordem, teve


que viajar em razão de compromissos e me deixou como assistente do Lucca, um
tranquilo monge que há décadas era responsável pela produção do chocolate.
Nada parecia ser tão importante ou dar tanta alegria ao monge. Meticuloso, não
permitia que nada fugisse à receita ou alterasse o sabor da iguaria. Histórias
contadas como lendas, de um período anterior ao meu ingresso na Ordem,
relatam que, certa vez, ele proibiu a venda quando um auxiliar alterou, em
quantidades mínimas, a exata proporção dos ingredientes. Manteve-se irredutível,
mesmo com todos no mosteiro elogiando o sabor, com diferença quase
imperceptível em relação à receita original. Em outra ocasião, se negou a produzir
o chocolate ao recusar as sementes de cacau recebidas, que, segundo o seu
entendimento, não tinham a qualidade indispensável. Foram anos em que o
mosteiro enfrentou dificuldades financeiras, face à ausência da renda proveniente
da venda do chocolate.

Neste ano tudo parecia correr bem. Os ingredientes já tinham chegado e Lucca
os aprovara. O problema era outro. O forno da pequeníssima fábrica de chocolate
do mosteiro era alimentado com a lenha colhida na floresta dos arredores e, por
óbvios motivos ambientais, há muito tempo só permitíamos os galhos secos que
se desprendiam naturalmente das árvores. O corte era proibido. Por outro lado, a
natureza não vinha colaborando. Tradicional e fiel à receita, Lucca resolvera
diminuir de maneira drástica a produção, conforme a quantidade da lenha colhida.
Prevendo nova crise financeira, avaliei a troca dos fornos de lenha pelos de gás
ou mesmo que, excepcionalmente naquele ano, se utilizasse a cozinha do
mosteiro, que já era servida a gás. O monge não permitiu. Sugeri, então, que
comprássemos lenha de replantio, oriunda de madeira com o devido selo
ecológico. Lucca se negou a autorizar. A receita falava de forno a lenha e, por
séculos, era usada a madeira selvagem fornecida gentilmente pela natureza. O
carvalho era a árvore predominante naquela floresta e o aroma da queima dos
seus galhos era indispensável. Cada detalhe, por menor que fosse, segundo o
cuidadoso monge, alteraria o sabor final do chocolate.

Discutimos. Acusei-o de estar sendo romântico em excesso, agindo fora da


realidade. Ele devolveu dizendo que eu era irresponsável e volúvel por ceder
facilmente às dificuldades. Lucca disse que apenas queria o melhor para a Ordem
ao se manter fiel à receita; argumentei que eu também desejava o melhor ao
buscar soluções para o problema. Expliquei os meus argumentos e ele, os dele.
Logo os fatos correram todo o mosteiro. Monges e discípulos se dividiram em
opiniões e os ânimos se exaltaram. A discórdia estava instalada. A produção
seguia a passos lentos no limite da lenha conseguida na floresta, seguindo a
fórmula original e, em breve, os ingredientes, não utilizados, perderiam, em razão
do tempo que passava, a qualidade necessária para serem utilizados. Um ano
difícil se avizinhava.

Então, o Velho chegou de viagem. De imediato, muitos correram para contar o


ocorrido. Ele ouviu a todos com a sua enorme paciência e doçura, inclusive a mim
e ao Lucca. A ninguém disse palavra. Sem perder a tranquilidade falou que
estava cansado e iria dormir. Conversaríamos pela manhã.

No dia seguinte, quando chegamos ao refeitório, o Velho estava já nos esperava.


Estava bem-disposto e nos recebeu com o seu melhor sorriso. Seu bom humor
era quase uma constante. Ele costumava falar que a alegria serena era uma
característica dos espíritos iluminados. “Não há lugar para os ranzinzas nas
Terras Altas”, repetia. Esperou que todos tomassem café e pediu a palavra. Seu
tom de voz, sempre baixo, precisou do silêncio absoluto dos demais para que se
fizesse ouvir: “Já soube do conflito que se instalou aqui. De menor importância é
a crise financeira ou o sabor final do chocolate. Posso enfrentar qualquer um
destes problemas, com maior ou menor dificuldade. Mas não posso viver sem
paz”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Não me importa quem tem razão. O valor
está em encontrar os bons motivos para restaurar a harmonia. E eles são fartos e
conhecidos, basta que se permita ouvir o coração. A lição que resta desta
situação é que, como podem perceber, o mal raramente vem de fora. Em geral,
ele vem de dentro. Pelos vãos do ego brotam as sombras que alimentam as
trevas. Oferecemos mais perigo a nós mesmos do que os outros a nós”.

“Contudo, como ensinou em versos o poeta português, ‘tudo vale a pena quando
a alma não é pequena’. Aprendamos a lição com humildade e alegria”, parou por
instantes e cochichou como se falasse consigo: “Este meu conterrâneo era um
sábio alquimista disfarçado de escritor”. Em seguida, pediu para que eu e o Lucca
fôssemos à biblioteca continuar àquela conversa, em particular, com ele.

Acomodados em confortáveis poltronas ao lado de uma grande janela que nos


oferecia a bela paisagem das montanhas, o Velho, após encher a sua caneca
com café, disse: “Sei que cada qual tem as suas razões e motivos para sustentar
a opinião que defende. Quem está certo? Provavelmente os dois, a depender da
ótica em que se observa o mundo. No entanto, repito, não me importa quem tem
razão, nem é esse o motivo que nos reúne aqui. Entendo o Lucca por seguir às
tradições e ter cuidado com a qualidade do produto que vendemos; assim como
compreendo o Yoskhaz por se encantar com a modernidade e ter preocupações
com uma possível dificuldade financeira da Ordem. No entanto, ambos acabaram
se apegando tanto aos seus conceitos que os levaram ao extremo. Ao radicalizar
esqueceram o bom conselho do mestre Buda: ‘a virtude está no meio’. Envolvidos
emocionalmente, deixaram que os egos se inflassem de orgulho e não se
permitiram o olhar livre das névoas da vaidade”.

Tanto eu quanto o Lucca insistimos que ele deveria avaliar os fundamentos de


cada um e decidir quem tinha razão, pois o prazo final para encerrar a produção
se aproximava. Os olhos do Velho transbordavam compaixão quando ele falou:
“Abdico da espada que querem me entregar. Julgar quem tem razão seria fácil e
alimentaria o meu ego com o exercício do poder sobre a vida do mosteiro. Os
monges estão divididos e, qualquer decisão, vai sustentar uma grande
insatisfação. Sei que há casos em que não há jeito. No entanto, no nosso caso,
será que não existe uma alternativa? Um caminho do meio em que todos possam
trilhar com alegria? Lembrem que é a radicalização da boa moral que cria o
intragável moralismo; quando as nobres virtudes são apoderadas pelas sombras
nos deparamos com a nefasta intolerância”. Deu uma pequena pausa e
perguntou: “Percebem que a terrível discórdia que se abate sobre o mosteiro
nasceu das boas intenções dos dois? Entendem que, em algum momento, na
busca pelo bem permitiram que o próprio bem se perdesse? Algo comum quando
teimamos em impor aos outros as nossas razões”. Tornou a se calar por instantes
e fez uma singela pergunta: “Podemos fazer diferente e melhor”?

Abaixamos os olhos, eu e o Lucca. Estávamos envergonhados por permitirmos


que a situação chegasse ao ponto que chegou. Sim, possuíamos a capacidade
de fazer diferente e melhor; no entanto, tínhamos perdido o rumo, iludidos pelos
truques da vaidade, da teimosia e do orgulho. Ficamos um bom tempo em
silêncio até que o Lucca disse que há muitos anos, quando ele ainda era
aprendiz, havíamos passado por um problema semelhante de falta de madeira
para lenha e, naquela época, se usou folhas secas de carvalho como combustível
para os fornos. O sabor do chocolate tinha se mantido inalterado. No entanto,
alertou, achava que naquele momento seria difícil fazer o mesmo, pois precisaria
de uma quantidade que os monges não poderiam carregar e suprir. Eu falei que
poderia ajudar, pois conhecia o dono de uma pequena construtora na cidadezinha
no sopé da montanha e tentaria conseguir um caminhão emprestado para
otimizar o carregamento. O Velho apenas sorriu como resposta.

Enquanto eu fui buscar o caminhão, que nos foi gentilmente cedido, Lucca
mobilizou todos os monges que pode para arregaçar as mangas e se
enfronharem na floresta. O mais importante: todos se uniram pelo mesmo
propósito. Isto nos tornou mais fortes e, claro, o resultado foi um sucesso. A
produção foi levada à termo e o chocolate manteve o sabor que conquistara
paladares há séculos. Enquanto nós, no mosteiro, mantivemos o gosto de viver
com alegria.

Passados alguns dias, encontrei o Velho cuidando das flores do jardim interno do
mosteiro. Comentei como todos estavam felizes. O monge parou o que estava
fazendo, guardou o alicate no bolso na túnica e me convidou para sentar ao seu
lado em um banco de pedra, à sombra. Depois disse com serenidade: “O mundo
perfeito não é um mundo sem problemas. O mundo perfeito é o mundo possível”.
Piscou o olho, como fazia todas as vezes que me confidenciaria um segredo e
finalizou: “O mundo perfeito é aquele em que você se esforça para encontrar as
melhores soluções em harmonia e paz”.

O MELHOR MANTRA

Eram os meus primeiros dias no mosteiro, quando nem pensava em me tornar um


discípulo da Ordem. O convite era para que me hospedasse por curto período.
Minha vida passava por momentos de grandes turbulências, eram problemas
sobre problemas. Como se não bastassem, dúvidas existenciais me assolavam.
Eu estava ali na procura da fórmula que me levasse à solução dos conflitos. A
figura do Velho, como carinhosamente chamávamos o decano do mosteiro, era o
que mais me chamava atenção, seja pelo seu jeito cativante ou pela visão
desconcertante em relação à vida. Naquela manhã, ele fizera uma reflexão para
todos os presentes sobre o poder transformador do amor. Suas palavras
suscitaram muitos questionamentos em mim, porém não ouvi nada que me
ajudasse de modo objetivo. Logo em seguida, o encontrei no refeitório tomando
café. Aproveitei a oportunidade para relatar um recente conflito com um parente
sobre questões de herança, fato gerador de uma escalada crescente de
confusões em minha família. Falei que não sabia como pacificar a briga. O monge
disse com a voz serena: “Entenda que cada qual só consegue viajar até a
fronteira da própria consciência. Perceber a sombra alheia é passo importante
para iluminar a sua. No entanto, para transmutá-la será necessário que suas
escolhas passem a ser diferentes e melhores do que foram até agora”. De pronto
perguntei como deveria agir. O Velho arqueou os lábios em belo sorriso e falou:
“Está ruim? Polvilhe com amor”.

Por um lado, achei interessante, por outro, enigmático.

Na manhã seguinte, o encontrei no jardim interno do mosteiro a podar as roseiras.


Perguntei se poderíamos conversar um pouco. Ele assentiu com a cabeça e
sorriso nos olhos. Contei de como o término de um namoro antigo ainda me
atormentava. O monge franziu as sobrancelhas e falou: “Agradeça pela saudade,
pois ela só existe onde há amor. Fora disto resta apenas o vazio. O mel da vida
está em se encantar com o voo, não em construir jaulas”. Aflito, confessei que
não sabia como fazer para aliviar meu sofrimento. O Velho disse apenas: “Está
ruim? Polvilhe com amor”.

Por um lado, achei poético; por outro, pouco prático.

Naquela noite, surgiu uma nova oportunidade de ficar a sós com o Velho, logo
após o jantar. Reclamei da minha insatisfação quanto à atividade profissional que
exercia. Falei da dificuldade cada vez maior em trabalhar com o que não gostava.
Ele arqueou os lábios em leve sorriso e falou: “Todos temos um dom que nos
diferencia. É o uso do seu dom que dá asas aos seus sonhos, seja através de um
ofício ou arte. O exercício do dom, por mais simples que seja, transcende ao
mundano e nos conecta ao sagrado. O dom é o talento pessoal ligado ao dharma,
ao seu propósito de vida. Abandonar o dom enferruja a essência do ser” e antes
que eu fizesse qualquer comentário, o Velho finalizou: “Ficou ruim? Polvilhe com
amor”.

Por um lado, achei elegante; por outro, patético.

Irritadíssimo, falei que estava perdendo o meu tempo ali dentro enquanto a minha
vida virava um inferno lá fora. Agradeci com sarcasmo e avisei que partiria
imediatamente. O Velho apenas cerrou as pálpebras de modo suave, como fazia
toda vez que ouvia algo lamentável. Não disse palavra.

Arrumei minhas coisas e saí. No pátio externo do mosteiro, utilizado como


estacionamento pelos visitantes, um homem franzino estava à beira de um ataque
histérico pelo fato de um outro carro estar parado fora da faixa, o que dificultava
bastante a sua manobra, sem, no entanto, impossibilitá-la. Era o meu carro. Ao
perceber, o pequeno homem se dirigiu a mim de maneira agressiva, me acusando
de todos os males do mundo. Também irritado, fui rapidamente levado à fúria e
cogitei seriamente em silenciá-lo com um soco, o que não seria difícil face a
desproporção de nossos tamanhos. Neste exato instante, aos gritos, ele disse
que não suportava ficar nem mais um minuto naquele lugar. Tinha vindo em
busca de ajuda e apenas ouvira um bocado de asneiras. Aquelas palavras
travaram o meu punho e eu o percebi como um perfeito espelho. O descontrole e
a visão enevoada eram sensações parecidas com as minhas. “Polvilhe com um
pouco de amor”, ouvi a voz suave do monge soprando em meu coração. Naquele
instante me ocorreu que toda a raiva daquele homem, embora dirigida a mim, não
eram para mim. Revelava apenas a sua agonia diante da incapacidade em
solucionar os próprios problemas. Mortes? Falências? Doenças? Separações?
Frustrações? Eu não sabia o motivo, mas percebia, pela primeira vez, de maneira
cristalina, o sofrimento e a confusão nos olhos de alguém. Emoções densas que,
misturadas, explodiam em ódio e precisavam ser transferidas para alguém. Me vi
espelhado naquele homem desesperado e entendi que eu não queria ser assim.
Naquele instante, aprendi a importância do outro na minha vida e, também, o
significado e a beleza do amor, ali se manifestando através da compaixão. Senti
compaixão por ele e por mim. Tudo mudou dentro de mim em frações de
segundos.

Pedi desculpas, o que de pouco adiantou. O frágil homem continuou atirando


impropérios e absurdas acusações. Mas tudo aquilo tinha perdido o poder de me
ferir ou me irritar. O amor me protegia. Dele e de mim mesmo, vez que a ofensa
só nos atinge se nos permitimos estar na mesma frequência vibracional do outro.
Todavia, algo tinha mudado. Toda a minha ira acabara de se transformar em
compreensão e paciência. Eu estava em um lugar onde as ofensas não
conseguiam chegar. Entendi que o amor funciona como um escudo. Mais ainda,
começava a perceber a fantástica força transformadora do amor. Logo que eu
manobrei o carro, ele partiu. Não sem antes abrir o vidro e gritar a última ofensa.
Sorri e agradeci a ele pela maravilhosa lição.

Girei nos calcanhares e retornei ao mosteiro.

Fui informado que o Velho lia na biblioteca. Subi as escadas aos saltos. Ele
estava só e me recebeu com um sorriso que jamais esquecerei. Sentei-me ao seu
lado, relatei o fato ocorrido no pátio. Confessei que estava encantado ao perceber
que o Universo sempre conspira a nosso favor. O monge deu uma risada gostosa
e emendou: “Sim, é verdade. O Universo insiste em nos ajudar, pena que nós
teimamos em atrapalhar. Até mesmo quando os planos dão errado, não tenha
dúvida, é a vida nos corrigindo a rota, adequando os desejos do ego às
necessidades da alma”.

Roguei para que aprofundasse mais um pouco sobre o poder transformador do


amor. O bom monge falou com a sua enorme paciência: “Estamos neste planeta
unicamente para evoluir. Nada mais. É uma viagem infinita composta de inúmeros
trechos. São os ciclos evolutivos. Cada um deles possui quatro momentos
distintos: Aprender, Transmutar, Compartilhar e Seguir. Assim seguimos, estação
a estação, a jornada rumo às Terras Altas. Evoluir é expandir o nível de
consciência. Isto apenas é possível quando, concomitantemente, ampliamos a
capacidade do coração. A sabedoria precisa de doses cavalares de amor para
atingir o seu real valor e melhor sentido. Somente assim alavancamos a nossa
evolução. Sabedoria sem amor apenas agiganta as sombras que nos habitam.
Sem amor a mais fina sabedoria é incapaz de descortinar o véu que encobre a
essência da vida. O amor é o caminho da luz e o perfeito destino. Nada fora dele
nos trará alegria ou paz”.

Ficamos sem dizer palavra por um tempo que não sei precisar. Comecei a refletir
sobre todos os conflitos que me furtavam a tranquilidade e me levaram até ali.
Olhando pelas lentes do amor, apresentavam soluções simples. Ao mesmo
tempo, desconcertantes, ousadas e fora do meu padrão de comportamento até
aquele dia. Os singelos conselhos do Velho, absurdos até o momento,
começavam a se tornar absolutamente geniais. Na medida que avançava com as
minhas reflexões, tudo ganhava cores que eu desconhecia, oferecendo escolhas
impensadas. Pura Luz. Eu ria e chorava ao mesmo.

Falei para o monge que tudo parecia se resolver como que por mágica. Ele sorriu
e disse: “Pela primeira vez você está se dando conta de viver um milagre.
Milagres nada mais são do que transformações movidas pelo infinito poder do
amor. Eles são muito comuns, pena que a maioria das pessoas não consegue
perceber por sempre esperar pelas situações cinematográficas”. Deu uma
pequena pausa e concluiu: “Todo o encantamento deste momento se explica pelo
início de encerramento de um ciclo. Hoje você aprendeu uma valiosa lição através
de uma situação corriqueira e aparentemente comum que já deve ter acontecido
inúmeras vezes na sua vida, mas você não conseguia perceber a oportunidade se
apresentando. A lição foi aprendida. Agora você passará um tempo transmutando
ideias, conceitos e atitudes. Enfim, se transformando. Depois irá compartilhar com
toda a gente esse seu novo jeito de ser. O amor e a sabedoria não podem
descansar na teoria, precisam que você os vivencie nas menores questões do dia
a dia. Então, estará pronto para seguir”.

Tornamos a ficar um bom tempo sem dizer palavra, até que o Velho quebrou o
silêncio: “Vou lhe ensinar um poderoso mantra”, falou. Ele me observou por
instantes. Seus olhos pareciam já ter visto de tudo um pouco nesta vida. Depois
sorriu, piscou um dos olhos, com jeito maroto, como sempre fazia quando contava
um segredo e disse: “Está ruim? Polvilhe com amor”. Rimos.

Então, finalizou: “O amor é o sal da Terra, o tempero da vida. Sem ele tudo é
insosso e intragável”.

ARMADILHAS CONTRA A PAZ

“Todas as vezes que você pensa, fala ou age movido pelas paixões densas e
pesadas, alimentará o poder das sombras. Dentro e fora de você”, falou o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Em seguida,
concluiu: “Por mais absurdo que possa parecer, acredite, ninguém lhe prejudica
mais do que você a si mesmo. Isto serve para todos”.

Estávamos sentados no refeitório do mosteiro, apenas os dois, apreciando o


saboroso chá que o Velho preparava com uma mistura de ervas que colhia na
floresta do arredor, enquanto admirávamos o por do sol por entre as montanhas.
Ele tinha me chamado para conversar por perceber a minha alteração de
comportamento após um aborrecido telefonema. O monge me ofereceu uma
xícara acompanhada de uma pergunta: “Qual é o único preceito do Código de
Ética da Ordem”? Como me calei, ele mesmo respondeu: “Nunca alimentar as
sombras”. Deu uma pequena pausa para que eu fosse, aos poucos, alinhando a
ideia e prosseguiu: “ Simples, não? Afinal somos todos do bem e, a princípio, não
queremos compromisso com o mal”. O monge esperou eu concordar antes de
corrigir: “Errado, não é nada fácil. Temos uma enorme dificuldade em identificar
as próprias sombras e tudo que as estimula, dentro e fora de nós”. Tornou a calar
por instantes e disse: “O grande truque das sombras são seus mil disfarces, a
ponto de você pensar que elas não se escondem em suas entranhas”.

De imediato, fiz a óbvia pergunta de como identificar as sombras. Ele arqueou as


sobrancelhas como sempre fazia quando queria me pedir para ir com calma e
falou: “Aceitar a existência das sombras que existem em nós é o primeiro passo
para não permitir ser dominado por elas. Quando as negamos ou as ignoramos,
autorizamos que elas se movimentem sorrateiramente em nosso inconsciente,
ficando à vontade para manipular ideias e emoções que refletirão em nossas
escolhas. Admitir que somos espíritos na terceira dimensão, ou seja, estamos
com as vestes de um corpo físico provisório, ainda nos fixa em escala evolutiva
onde sentimentos sem leveza nos habitam e precisam ser iluminados e
transmutados”. O monge me mirou fundo nos olhos e disse com seriedade: “Esta
é a grande batalha desta existência” e complementou: “Repetirei isto tantas vezes
quantas forem necessárias, por ser fundamental à conquista da plenitude”.

“Portanto, o discurso de que ciúme, raiva, inveja, orgulho, medo e outros


sentimentos pesados não lhe pertencem, é fazer o papel do tolo a abraçar uma
sombra mais perigosa, em estágio ainda mais primitivo, a ignorância”. Tomou um
gole de chá e continuou: “Mas as sombras possuem outros truques:

– Emprestam uma das suas inúmeras máscaras e nos fazem crer que somos o
que ainda não alcançamos;

– Convencem a aceitarmos o papel da vítima, ao acreditar que o mundo conspira


contra nós;

– Oferecem passagens de fuga da realidade para as planícies enevoadas da


ilusão, na tentativa de evitar o enfrentamento da verdade, sem o qual não haverá
cura, transformação e evolução”.

Tornou a ficar em silêncio por instantes e disse: “Há muitos mais, no entanto, a
manobra mais cruel é quando as sombras conseguem convencer que apenas
querem proteger e insuflam a dar vazão às suas emoções mais obscuras, nos
conduzindo à preferência pelos primitivos instintos de sobrevivência ao invés dos
sentimentos nobres de convivência. Esta é a armadilha. Você acaba por confundir
vingança com justiça; ciúme com amor; crítica com conselho; ignorância com
verdade. E, pior, não percebe o equívoco”.

Eu ainda não tinha entendido como fazer para identificar as sombras. O Velho foi
didático: “Prestar atenção em qual sentimento verdadeiramente move a cada uma
das suas decisões. Depois questionar se na próxima vez pode ser diferente e
melhor. Não tenha dúvida, sempre é possível. Só existe evolução quando há
transformação. Se você é exatamente o mesmo há muito tempo, desconfie de si
próprio, existe algo que precisa ser mudado. Assim mergulhamos em processo de
autoconhecimento, para em seguida, pouco a pouco, identificar as sombras que
interferem no nosso discernimento. Todo ser com reduzida capacidade de
discernimento é ainda um prisioneiro de si mesmo”.

“Então, podemos dar o próximo passo que consiste em iluminar e transmutar


essas sombras. O que era mágoa vira perdão; a inveja se altera para a sincera
admiração; o ciúme se modifica para a compreensão de que o amor revela as
asas, nunca as algemas”. Bebeu um gole de chá e prosseguiu: “O trabalho é
pesado, exige sabedoria e vontade, além de muito amor, é claro. Todavia, não
tenha dúvida de que você possui todos esses atributos adormecidos na alma.
Basta ter coragem de acordá-los para a batalha. Nessa fase passamos a
entender que enquanto as sombras trazem a negação, as prisões e as agonias, a
Luz tem compromisso com a verdade, a liberdade e a alegria. Só assim
transformamos sofrimento em paz. Esta é a cura”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. O monge tinha o olhar perdido nas
montanhas que avistava através da janela, enquanto eu tentava encaixar todas as
palavras na mente. Ele quebrou o silêncio: “A cada decisão somos lanterna a
iluminar os passos de toda a gente ou nevoeiro a impor aos outros as nossas
próprias tempestades. Daí a importância do coração puro e de uma mente
desperta, características de um espírito livre, no momento de cada uma das
infinitas escolhas que fazemos”.

Em seguida, o monge abordou outro aspecto da mesma questão: “Em


contrapartida ficamos sujeitos a captar a energia liberada por outras fontes. Boas
ou ruins, individuais ou coletivas, estamos expostos a todo tipo de carga
vibratória. A Física Quântica já provou o que os alquimistas perceberam desde o
início dos tempos. Tudo é energia no universo. Até o que denominamos como
matéria, nada mais é do que energia condensada. Somos centros geradores e
receptores de energia, queiramos ou não. Geramos energia com nossos
sentimentos, pensamentos e atitudes. Assim atingimos a todos que estão a nossa
volta, fazendo com que se sintam bem ou mal, na variação do tipo de carga
vibratória que emanamos, sutil ou densa, a depender do amor ou da mágoa, do
nível de consciência envolvido em cada emoção, ideia, palavra ou ação”.

Fiquei curioso em saber como me proteger das cargas energéticas alheias que
tanto incomodam e prejudicam. O Velho disse de pronto: “Quem caminha direito
não precisa ter medo do escuro”. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e
complementou: “Antes de se preocupar com os outros é preciso prestar muita
atenção a si mesmo. É muito importante que vigie cada sentimento e pensamento
que lhe ocorre, pois, em algum momento, se materialização em palavras e
atitudes. Quando nos movemos no sentido de pacificar e iluminar a tudo o que
nos envolve é criado um campo de força a nossa volta que nos fortalece e
protege. Este é o melhor escudo”.

“No mais, aceite os outros com as imperfeições que lhe são inerentes, com a
serenidade de saber que você ainda não possui a perfeição para oferecer.
Disponibilize sempre o seu melhor sem cobrar tributos por isto. As virtudes são
sementes do jardim do universo e, portanto, não são passíveis de negócio.
Quanto mais as dividimos, mais elas se multiplicam. Seja sincero consigo e se
esforce para que as suas escolhas reflitam o mundo maravilhoso dos seus
sonhos, assim estará sendo verdadeiro com todos. Não acredite em tudo o que
ouvir, tanto os elogios quanto as críticas, pois as palavras costumam projetar o
coração confuso do interlocutor”.

“O mais importante, não menospreze as suas pequenas ações, aquelas que


parecem não ter importância. Elas têm grande poder em alimentar as sombras
que, aos poucos, se espraiam, contaminam e se instalam no inconsciente de
quem está desguarnecido, gerando desequilíbrio, desesperança, agonia,
depressão ou violência. É necessário cuidado para não prepararmos as
armadilhas que aprisionam. A nós e aos outros. A vida é uma viagem fantástica,
desde que você seja capaz de ver a beleza que existe em tudo e todos. Vale
relembrar a lição do Mestre: ‘Quando o seu olho é bom, todo o universo é luz”.

Perguntei se toda essa movimentação energética ficava sujeita a Lei da Ação e


Reação. O Velho sorriu satisfeito e concordou com o balanço da cabeça. Entendi
que atrairia para mim a mesma carga e qualidade energética que emitisse.

“Protegendo aos outros de nossas próprias sombras, acabamos por nos proteger
das sombras, individuais ou coletivas, do mundo. Ao harmonizar a emoção densa
que me invade, impedindo a contaminação das minhas escolhas, inicio o
processo de iluminação e transmutação, a desmontar as cruéis armadilhas contra
a paz. O segredo é sempre oferecer o seu melhor e não adiar o importante
encontro que cada qual terá consigo mesmo, etapa essencial para o
aprimoramento do ser. Trazer o inconsciente para o consciente é fundamental
para decodificar a vida”.

Aqui eu tomo a liberdade de abrir um pequeno apêndice. Nessa época, logo após
essa conversa, o Velho me sugeriu o seguinte exercício: ficar sete dias
consecutivos sem me lamentar de algo ou criticar alguém. Para tanto, era preciso
domar os meus impulsos mais densos. A cada falha reiniciaria a contagem ao
primeiro dia. Demorei vários meses para conseguir completar a prova,
aparentemente simples. Confesso, não foi fácil, mas foi uma belíssima e
inesquecível lição de autoconhecimento e plenitude. Entendi que toda vez que
você toca no mal, aumenta o seu poder. Porém, o contrário também é verdadeiro
e transformador. É pura Luz.

SER LIVRE É SIMPLESMENTA SER

O Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem, era sempre


convidado a dar palestras em universidades e colégios mundo afora. Em geral,
essas instituições se situam em grandes metrópoles, onde ficávamos hospedados
por dois ou três dias. Nessa época, já acostumado ao silêncio do mosteiro, teve
um período que, confesso, logo me sentia incomodado com a mudança de
ambiente, ao contrário do monge, que possuía uma fantástica capacidade de
adaptação. Ele flanava pelas largas avenidas admirando o movimento das lojas, a
correria das pessoas ou mesmo o barulho urbano com a mesma leveza e
encantamento com que trilhava a montanha, em silêncio, observando as flores
silvestres e colhendo cogumelos para as sopas de que tanto gostava. Quando me
via irritado com toda aquela zoeira e pressa, ele me lembrava: “A paz habita em ti.
Não conceda a permissão para que nada nem ninguém a abale”. Depois
arqueava os lábios em breve sorriso e dizia: “Esse poder é seu, aprenda a usá-
lo”.
Certa vez, comentei da minha dificuldade em estar em ambiente tão diferente
daquele em que me sentia acolhido. O monge rebateu de imediato: “Nem sempre
é possível estarmos cercados por todas as condições externas ideais de conforto
e satisfação. A lamentação em nada ajuda a superação das dificuldades. Ao
contrário, apenas adia o entendimento e o movimento necessários à construção
da paz e a semeadura da alegria, fundamentais ao nosso equilíbrio. O melhor
lugar do mundo é aqui e agora. Qualquer local é bom para a alma sincera que
deseja mergulhar fundo nos mares revoltos do próprio aprimoramento, em
conexão sagrada, para ficar diante de si mesmo e se banhar nas águas plácidas
da plenitude. O bom jardineiro acredita que qualquer cantinho é perfeito para se
plantar flores e se adequa à formação de um belo jardim”.

Acabei por confessar uma dificuldade ainda maior: conviver com pessoas muito
diferentes de mim. O Velho sorriu e disse: “Estar ao lado daqueles que pensam e
agem de acordo com os nossos gostos e opiniões é muito fácil. Embora seja
agradável e deva ser aproveitado, não há qualquer mérito nisso. Somente as
dificuldades dos relacionamentos oferecem o exercício indispensável ao
crescimento pessoal. As diferenças são enriquecedoras porque a busca pelo
equilíbrio te induz a importantes transformações. A vida acontece durante os
encontros, o amor se manifesta apenas no convívio social. Do mesmo modo, todo
o conhecimento do eremita acaba por inútil quando ele se nega a sair da caverna.
Sabedoria e amor, por definição, precisam ser vividos e repartidos para virar luz
ou se perderão na escuridão do abandono”.

Deu uma pequena pausa e seguiu: “Quem espera que todas as situações
aparentes estejam propícias para iniciar a viagem, perderá valioso tempo sentado
na beira da estrada à espera deste momento, pois não acontecerá. O anseio
íntimo é que te moverá aos primeiros passos. Basta apenas entender que a
condições externas sempre estarão de acordo com a sua necessidade e
capacidade de aprendizado naquele momento. Nem mais nem menos. As
condições internas, por sua vez, serão criadas por você mesmo”.

“A adaptabilidade e a simplicidade são valiosas virtudes, indispensáveis ao


andarilho. A adaptabilidade ensina que todo o momento é perfeito, pois traz as
lições que lhe permitirão aperfeiçoar as suas habilidades. Lembre, também, de
não exigir a perfeição alheia por saber que você ainda não possui tal perfeição
para oferecer. Isto lhe ajudará a manter o equilíbrio e a serenidade durante as
tempestades. A simplicidade, por sua vez, lhe dará o entendimento de que nos
tornamos cada vez mais na medida que precisamos de cada vez menos. Esta é a
chave que abre a prisão”.

Falei que ainda tinha dúvidas e até brinquei dizendo que a simplicidade não era
simples. O Velho seguiu na explicação: “Os condicionamentos sociais e culturais
que atuam sobre todos, desde o berço, são poderosas prisões que nos
encarceram de maneira cruel, que por não terem grades, não nos deixa perceber
presos. Assim, nos desviam do compromisso com a liberdade ao adiar o
inevitável encontro consigo mesmo e as consequentes transformações”. Pedi
para que ele fosse mais claro, pois cada vez entendia menos. O monge sorriu e
prosseguiu: “Em algum momento da vida, todos sentimos fome de luz. É a alma
desesperada no vazio da existência. Transferimos o encontro mais importante da
vida, aquele que teremos conosco, iludidos pelas sombras que nos convence a
priorizar o sucesso profissional, a estabilidade financeira ou qualquer outra
desculpa alimentada pelos desejos do ego. Custamos a entender que uma coisa
não elimina a outra. O maior dos enganos é não perceber que o bom combate é
travado dentro de si. Ou seja, que a busca por iluminação é concomitante com as
tarefas e lutas do dia a dia, as brigas e os amores do cotidiano. A vida acontece
entre o escritório e a cozinha, tanto no ônibus quanto na praia, na fila do banco ou
engarrafado no trânsito, desde a reunião com o cliente para fechar um grande
contrato até pegar o filho na escola e levá-lo para treinar futebol ou natação. Este
é o tempo disponível, o momento perfeito para transformar decepções em
entendimento e ser livre. Não há outro. Na verdade, cedo ou tarde, em algum
momento você terá que estar consigo mesmo. Este é o encontro que mudará a
sua vida. Para isto a hora é agora, o lugar é aqui.”.

“E para tanto, do que você precisa? Absolutamente nada, salvo um coração puro
e uma mente desperta. Cada vez mais entendemos que as coisas realmente
importantes têm a grife do coração, não sendo encontradas nas prateleiras das
lojas; a alma anseia por um mergulho bem mais profundo do que a piscina no
quintal da casa poderá oferecer; o mais sofisticado dos automóveis não terá
potência para levar às inimagináveis Terras Altas, onde só chega quem é capaz
de usar as próprias asas; o melhor e mais moderno design é ser simplesmente
você, pois o que nunca saiu de moda é ser autêntico, único; é ser gente de
verdade”.

Eu quis saber o que era ser gente de verdade. O Velho franziu as sobrancelhas
como se falasse com um garoto: “É estar sempre disposto a se despir das velhas
formas; abdicar dos gestos automáticos de autodefesa; usar a própria vida como
matéria-prima para a grande obra de arte que lhe cabe fazer; trocar as cores
sombrias dos sofrimentos pelas tintas vibrantes do perdão; oferecer compreensão
da luz quando todos clamam pela sentença que condena à escuridão; mostrar
que a coragem é possível quando aqueles a sua volta só conhecem o medo;
entender que o milagre da vida acontece na simplicidade dos pequenos grandes
gestos, aqueles em que colocamos o próprio coração para curar a dor do outro”.

“Entender que para ser feliz é indispensável perdoar sem tributos e amar sem
condições; que aquela pessoa com quem você vive as turras é quem irá
despertar o melhor que ainda adormece em sua alma; que o seu maior inimigo
não está nas ruas, mas se movimenta sorrateiro nos porões ainda escuros da sua
alma a espera de luz. É perceber que esta é a grande batalha da vida”.

“A verdadeira vitória reside na sedimentação de bons valores morais despido de


qualquer moralismo; na eterna alegria do encontro; na generosidade em ser uma
árvore frondosa com doces frutos; em pronunciar a palavra que selará a paz; de
semear um sorriso em rosto alheio; de sempre oferecer o seu melhor; de se
permitir que cada escolha seja orientada por puro amor”. O Velho deu uma
pequena pausa e disse: “Percebe que nada disso você pode comprar para
colocar na sua bagagem”?

“A ironia é que vendem a ilusão da sofisticação como algo elaborado por poucos
e complexo para muitos. No entanto, a elegância consiste em ser mais com
menos. Isto está ao alcance de todos e de qualquer um, na simples escolha pela
incomensurável beleza de ser simples”.
Mirou no fundo dos meus olhos e finalizou: “Tudo que é valioso não tem peso. Ser
leve é ser livre; ser livre é simplesmente ser”.

A OUTRA FACE, OUTRA VEZ

A biblioteca do mosteiro é encantadora. Uma enorme variedade de títulos em um


ambiente de silêncio e conforto, além da vista espetacular das montanhas
permitida por suas enormes janelas, em estimulante convite à reflexão. Ali era
comum encontrar o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, nos finais de tarde, sentado em uma das poltronas, com os
olhos perdidos entre letras e paisagem. Lembro de certa vez, ainda nos meus
dias de iniciação, que me aproximei e, ávido por conhecimento, pedi a ele uma
relação de livros para aprofundar os meus estudos. Ele me observou com
bondade e disse: “Comece por ler qualquer dos livros, o importante é iniciar. Aos
poucos o seu próprio interesse vai direcionar a leitura na medida da sua
necessidade”. Argumentei que a explicação era falha, pois não poderia deixar ao
acaso o direcionamento dos meus estudos. O monge arqueou os lábios em leve
sorriso e falou: “O acaso não existe. O importante é que você esteja por inteiro
em cada página lida e que o seu gosto lhe sustente para que não haja abandono.
De alguma estranha maneira, todos os caminhos levam ao destino”. Recusei a
resposta. Então, perguntei a ele se, hipoteticamente, apenas fosse permitido ler
um único livro em toda a sua a vida, qual escolheria. A nova resposta veio rápida
e objetiva: “O Sermão da Montanha”.

Repliquei que não é exatamente um livro, mas um pequeno texto de não mais de
cinco páginas, podendo ser lido em poucos minutos. O Velho tentou explicar:
“Toda a sabedoria da vida consiste em ‘tratar o outro da maneira em como quero
ser tratado’, como resumiu o professor. No entanto, poucos conseguem viver de
acordo com esta simples frase”. Eu quis saber o que mais havia no Sermão da
Montanha que tanto o encantava. Ele disse: “Ali você encontrará a estrada para a
plenitude e construirá a casa da paz dentro de si, caso consiga entender toda a
amplitude e viver de acordo com aquelas palavras. Todos os bons livros são
apenas releituras de parte dessa pequena grande obra. Nada do que precisa ler
está fora desse texto, nada do que precisa ser está fora você”.

Deu uma pequena pausa e comentou: “Eu o leio todos os dias há anos. As
descobertas ainda não cessaram”. Confessei que já tinha lido o referido texto e,
embora tivesse achado interessante, o encantamento não foi além disto. O
monge deu de ombros e voltou à leitura. Claro que no mesmo instante me
acomodei em um canto da biblioteca para ler as linhas tão incensadas pelo
monge. Em menos de uma hora eu já tinha lido o texto várias vezes. Tornei a
interromper o Velho para falar sobre uma parte que dizia que ‘quando atingindo
em uma das faces, deveríamos oferecer a outra’. Argumentei que aquela situação
era tão irreal que se tornava uma enorme bobagem. E mais, que ninguém era
saco de pancada e aquilo era um hino à covardia. O Velho fechou o livro que o
entretinha e se virou para mim. Seus olhos transbordavam compaixão: “Não é
isso que o texto aconselha”, falou. “É necessário aprofundar em suas filigranas
para entender as entrelinhas, único jeito para decodificar todo o seu belo
conteúdo”.

Contestei. Sustentei que se aquela sabedoria era para o bem da humanidade, por
qual motivo não se expunha, desde sempre, toda a sua verdade de forma clara e
objetiva. O monge respondeu com a sua enorme paciência: “O texto é simples,
mas profundo ao mesmo tempo. Lembre que são palavras proferidas para
atravessar o tempo e operar transformações em infinitas almas em diferentes
estágios evolutivos. Assim, as interpretações são pessoais, na exata medida da
expansão de consciência de cada um. Por isto a necessidade de sempre retornar
ao texto, pois são palavras vivas que se alteram na medida da transformação do
leitor”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Acho que eu conseguiria escrever
um livro apenas na divagação e reflexão dessa minúscula frase que você
destacou do precioso texto. Aliás, posso afirmar que muitos romances e filmes
maravilhosos já foram realizados com histórias sobre o tema específico da ‘outra
face’ e suas muitas variações e inúmeros comentários. No entanto, talvez pouco
tenham se dado conta da fonte original”.

A irritação com toda a divagação começou a tomar conta de mim, então, eu quis
saber todo o entendimento contido no simples verso daquele texto que o monge
enxergava e me era negado. Havia sarcasmo no meu pedido. O Velho percebeu
e sorriu. Seus olhos, emoldurados pela pele vincada, já tinham visto muitas coisas
e não se permitiam mais perder a luz da vida. Ele disse com enorme paciência:
“Dos muitos aspectos, vou abordar apenas alguns que me parecem mais
relevantes no momento”.

Deu uma pequena pausa e iniciou: “O primeiro deles é não usar o mal para
combater o mal. Isto apenas alimenta as forças da escuridão que habitam em
ambos os lados, fortalecendo as sombras e justificando os malfeitores. Todas as
vezes que você fala, pensa ou age movido pelas suas paixões densas e pesadas,
estará fomentando as sombras que existem dentro e fora de você”.

“Como pode alguém reclamar do mal se também o pratica? Temos que modificar
essa experiência se desejamos resultados diferentes do que temos alcançado até
agora. Não que você deva ser conivente com o mal e o malfeitor, eles devem ser
estancados. Mas a maneira pela qual fará isto traz toda a diferença. Uma sombra
não tem poder para iluminar outra. Lembre-se do que diz o mestre em outra
passagem do Sermão da Montanha: ´Você é a luz do mundo’. Portanto, deixe-a
brilhar para iluminar os passos de toda a gente. Ofereça a sua outra face, a face
de luz ”.

“Outra interpretação, igualmente valiosa, que podemos extrair dessa parte do


texto é que ‘oferecer a outra face’ também significa se colocar no lugar do outro,
ver a situação e o mundo com as dores, olhares e, principalmente, limitações
dessa pessoa. Um sujeito feliz não pratica deliberadamente o mal. A
agressividade é fruto de todo aquele que ainda não encontrou a paz. Toda
violência é fruto do descontrole que tem raiz na agonia, no desequilíbrio e no
sofrimento. Não que isto justifique qualquer loucura ou crime. Claro que não.
Todavia, na verdade, inconscientemente, aquele que praticou o mal está
desesperado consigo mesmo, ele está pedindo ajuda. Assim, ao oferecer a outra
face, permitimos que a compaixão ocupe o lugar do ódio em nossos corações,
modificando o entendimento, a reação e a solução que daremos ao caso.
Teremos sempre a escolha entre a justiça e a vingança. A diferença entre elas
está no amor contido em cada decisão. A vingança tem por objetivo o castigo; a
verdadeira justiça está preocupada com a evolução”. Mirou fundo em meus olhos
e disse com bondade: “Em outra passagem no Sermão que Ele ensina: ‘Quando
seu olho é bom, todo o seu universo é luz’. Indispensável é encontrar a beleza em
todas as coisas e pessoas. Seja pelas lições ocultas nos conflitos, seja como
régua para entender até aonde já somos capazes de andar”.

“Não podemos esquecer de mais um grande ensinamento contido na pequenina


frase que aconselha a ‘oferecer a outra face’: a não-violência. Abraçar este
comportamento como estilo de vida é permitido apenas aos corajosos. Toda
agressão é uma reação típica daqueles que têm medo, são inseguros e atacam
como mecanismo de defesa. A violência em qualquer das suas possibilidades
(física, verbal ou em pensamento), faz o jogo das trevas, onde as suas sombras
ganham força para apagar o brilho da sua própria luz. Ao reagirmos com o que
temos de pior apenas alimentamos as sombras. Como reclamar da violência se a
praticamos de alguma maneira, mesmo em retribuição ou menor intensidade?
Não sejamos hipócritas. É indispensável entender que a paz, como todas as
demais conquistas, nasce de uma escolha. É uma decisão individual que tem o
poder de contaminar e transformar, aos poucos, toda a humanidade. Ser um
sujeito pacífico é elegante, útil e necessário”. Piscou o olho de jeito maroto e
brincou: “Ser da paz nunca sai de moda”. Deu uma pequena pausa e concluiu:
“Você lembra de um trecho no Sermão da Montanha que o mestre diz que mais
importante do que ir à missa e rezar é procurar as pessoas com quem temos
problemas para tentar resolvê-los? Esta é uma bela oração. Amor e sabedoria
não podem ser inerciais, temos que movimentá-los para que cumpram as suas
finalidades. Percebe que ao invés de lamentar os desencontros e exigir a
perfeição dos outros devemos buscá-los para oferecer o nosso melhor? Como
conseguir isto sem oferecer a outra face”? Se calou por segundos e concluiu: “A
face da Luz”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Os olhos do monge pareciam


perdidos por além das montanhas. Quebrei o silêncio para dizer que não era fácil
seguir aqueles conselhos. O Velho voltou o seu rosto para mim e disse: “Ninguém
disse que era fácil. Apenas que é necessário. Entender onde se quer chegar
motiva o andarilho, direciona as suas escolhas e revela o Caminho. Esta é a parte
que ninguém pode realizar pelo outro, é a que antecede as asas, é a
transmutação do ser. Depois é compartilhar semeando flores para quem vem
atrás e conquistar a permissão para seguir”.
JAMAIS

Estávamos no trem. Eu e o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge


mais antigo do mosteiro, seguíamos em uma demorada viagem a uma cidade
onde ele ministraria uma palestra em renomada universidade. Aproveitei a
oportunidade para questionar sobre as dificuldades do aperfeiçoamento pessoal.
Sugeri a existência de um manual mais simples para nos orientar no Caminho,
vez que os textos sagrados são por demais complexos e, não raro, possuem
interpretações herméticas e codificadas. O Velho balançou os ombros e disse:
“Não faça a ninguém o que você não quer que façam a você”, deu uma pequena
pausa para que eu pensasse um pouco no que ele acabara de falar e concluiu:
“Todo aperfeiçoamento do ser consiste em viver esse ensinamento maior. Quer
algo mais simples do que isso”?

Falei que achava tudo muito complicado, pois sempre há um exercício de


possibilidades entre luz e sombras. O Velho rebateu: “Por isso todas as escolhas
são sagradas. Elas definem quem somos. Portanto, preste sempre atenção: cada
gesto ou palavra é semente de discórdia ou paz”. Eu disse que entendia, mas
confessei que tinha dificuldade e precisava de ajuda. O monge ficou em silêncio
por algum tempo e falou: “Existe o Manual do Andarilho”, deu uma pequena
pausa e complementou em tom gaiato, evidenciando o bom humor e a evidente
brincadeira: “Ele é destinado às crianças”. Rimos. Claro que tal livro não existe.
Todavia, eu o provoquei e pedi para que ele facilitasse as coisas para mim. O
Velho, sempre generoso, foi em frente: “Preste atenção à Regra do Jamais. São
como placas de sinalização para proteger o motorista na estrada”:

“Jamais desesperar ou lamentar. Problemas, conflitos ou tragédias devem


sempre ser vistos como valiosas lições, necessárias para alavancar o avanço de
todos os envolvidos. Um olhar mais apurado e sincero lembrará que houve, no
passado, um convite suave ao aprendizado e você recusou. O universo não
deseja o sofrimento, pois você é parte dele. Ele precisa da sua evolução.
Sabemos que alunos mais displicentes necessitam de professores mais rigorosos
para ajudá-los a subir de turma. Basta que você se movimente no sentido da vida
para que toda a paisagem se modifique. A vida caminha rumo à luz e ao amor.
Sem a escuridão do casulo a lagarta não entenderia as próprias asas”.

“Jamais reclamar dos outros. Como exigir a perfeição alheia se não a temos para
oferecer? Somos aprendizes. Cada qual com as suas virtudes já adquiridas e as
suas dificuldades a serem vencidas. Todos, sem exceção. Cada um com a sua
bela história, repleta de conquistas e frustrações. Dores e delícias. O planeta,
como uma perfeita sala de aula, nos coloca juntos para que possamos ensinar a
uns e aprender com outros, em exata sincronia e interdependência entre os
seres. A tolerância com o outro demonstra a humildade em relação às suas
próprias dificuldades. A Lei das Infinitas Possibilidades permitirá a todos sempre
uma nova chance, nas perfeitas condições para o seu amadurecimento. Nem
mais nem menos. Ao invés de reclamar, ajude. É uma mudança de postura que
traz consigo amor e luz em forma de paciência, compaixão e perdão. Traz
serenidade ao coração”. Deu uma breve pausa e concluiu: “Quem reclama dos
outros ainda não sabe quem realmente é”.
“Jamais se permitir o mau humor e a tristeza. Todo espírito iluminado é alegre.
Não há lugar para os ranzinzas nas Terras Altas. Aceitar os problemas como
desafios à evolução, é agir como um estudante repleto de gratidão à universidade
por permitir que as suas habilidades se desenvolvam e o melhor de si floresça. O
sujeito triste e mal-humorado está fora de sintonia com as melhores vibrações
que movem o universo e acaba por perder o mel da vida, que nunca se modificará
para se adequar aos desejos do ego. A vida está conectada às necessidades da
alma. Estar em evolução torna a pessoa feliz e bem-humorada. A estagnação cria
o efeito contrário”.

“Jamais aceitar um privilégio. Todo privilégio nasce do conceito ancestral de


dominação e superioridade. É a ultrapassada ideia de que há pessoas melhores
ou mais importantes do que outras. O exercício da igualdade traz consigo o
verdadeiro sentimento de justiça, aquela que tem por objetivo maior a pacificação
social através da paz individual. Enquanto existirem privilégios haverá diferenças.
Onde há diferença ocorrerá discórdia e conflito. Todas as mazelas, de diferentes
tamanhos e origens, têm em sua raiz o germe do privilégio a contaminar a árvore
e seus frutos”.

Ficou um tempo em silêncio a olhar a paisagem pela janela do trem e falou: “Todo
andarilho é um nagual”. Estranhei o termo, eu nunca o tinha ouvido. O monge
explicou: “Na mitologia tolteca o nagual é o ‘guerreiro impecável’. É a pessoa que
não mede esforços ou inventa desculpas para adiar a lapidação do ser. Ele está
sempre disposto a oferecer o seu melhor. O nagual sabe que o mais sábio dos
discursos será sempre o próprio exemplo. A atitude fala em tom acima do verbo.
Nisto reside a sua força inquebrantável”.

Percebi que ele tinha chegado ao final. Como não poderia ser diferente, torci o
nariz e reclamei. Aleguei que o referido ‘manual do jamais’ era muito limitador,
pois trazia muitas proibições. O Velho, antes de falar, me olhou com uma mistura
de curiosidade e bondade, como quem percebe uma criança que insiste em
colocar o dedo na tomada apesar dos avisos de choque: “Você é livre para fazer
absolutamente tudo que quiser. Luz e sombras estarão sempre à sua disposição.
Esta é a infinita generosidade do Universo. No entanto, tenha a maturidade em
aceitar as justas consequências de suas escolhas. Esta é a enorme sabedoria do
Caminho. A Lei da Ação e Reação é implacável e não poderia ser diferente. Não
pela função de punir, porém com a finalidade de ensinar. A vida tem compromisso
inexorável com a evolução”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. O Velho quebrou o silêncio: “O


‘manual’ tem a função de ajudar aqueles que querem seguir a viagem, mas por
algum motivo perderam o rumo. Ele serve para que o andarilho não saia da
estrada até que torne a encontrar o seu destino”. Deu uma pausa e finalizou:
“Deixar de alimentar as sombras é bom, mas não basta. No entanto, é
fundamental para começar o alinhamento com a luz”.
O JOGO DAS SOMBRAS

O dia ainda não tinha amanhecido quando entrei na cozinha do mosteiro. Eu tinha
dormido mal, sono intermitente e com as ideias em turbilhão. Quando a mente
não consegue descansar é o corpo quem paga a conta pela desarmonia que
invade e ocupa, corrompendo o ser como um todo. O cansaço, por potencializar a
irritação e a mágoa, sempre será um péssimo conselheiro. Era a minha exata
situação naquele momento. Há alguns dias eu vinha em crescente discórdia com
outro discípulo da Ordem. Tudo começara por um motivo bobo, uma pequena
crítica que ele fizera ao trabalho filantrópico que eu coordenava. Retribuí
apontando falhas de conduta em relação àquele que me censurou. Ele replicou
subindo o tom da crítica. A troca de farpas foi ganhando dimensões inesperadas
e, na tarde anterior, em discussão ríspida, quase chegamos às vias de fato. Ou
seja, por pouco não trocamos chutes e socos. As ofensas verbais não
conseguimos evitar.

Quando peguei o bule para passar o café, percebi que estava cheio e quente.
Alguém chegara ali antes de mim. Só quando virei para trás foi que vi o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, sentado
em absoluto silêncio e reflexão, com uma caneca fumegante à frente. Ele me
ofereceu um sorriso sincero quando nossos olhares se cruzaram. Com um gesto
sutil do queixo, me convidou para sentar ao seu lado. Enchi uma xícara com café
e fui ao seu encontro. Antes que ele pudesse articular qualquer palavra, abri o
verbo, disse que precisava desabafar e narrei todo o conflito. O monge me ouviu
com sua enorme paciência e quando encerrei, ele falou com a voz baixa e
tranquila: “Você veio em busca de conselhos ou de cumplicidade? De alguém que
lhe diga a verdade ou de alguém que lhe dê razão”? Mostrei-me indignado, pois
não havia qualquer dúvida de que eu estava certo e que o outro discípulo deveria,
no mínimo, ser advertido. Sem se alterar, o Velho disse: “Para todo fato há no
mínimo duas versões, além da verdade”.

Argumentei que fora o outro discípulo quem começara tudo. O monge respondeu
de imediato: “Isto não tem importância, assim como não me interessa quem tem
razão”. Ele bebericou o café e prosseguiu: “Entretanto, todo aprendizado merece
atenção. Salvo engano, temos uma bela lição que, se bem aproveitada, pode
fortalecer, além de trazer crescimento espiritual a todos os envolvidos”. Perguntei
se ele falava sobre o perdão. O monge respondeu de imediato: “Claro que o
perdão terá que ser trabalhado não apenas neste caso. O perdão será sempre
necessário, pois é impossível ser feliz sem perdoar. Porém, há outra preciosa
experiência a nos oferecer valiosa sabedoria: entender o jogo das sombras”.

“O mal é o alimento das sombras, é o que concede poder às trevas. E somos nós,
que tanto rejeitamos o mal, por mais contraditório que possa parecer, quem
acabamos por alimentá-lo. A violência é uma iguaria muito apreciada; a ofensa
um belo jantar; a fofoca um aperitivo muito aplaudido; a vingança o prato
predileto; o sarcasmo uma sobremesa requintada. Os sofisticados ingredientes
desse banquete sombrio são o orgulho, a vaidade, o egoísmo, o ciúme e o medo.
Todos oferecidos por nós. Tudo temperado pela ignorância de não perceber que
nessa refeição o cozinheiro somos nós e, pior, ela nos custará muito caro. O
preço? O próprio e inevitável sofrimento”.
“Quando fazemos o jogo das sombras abdicamos de ser andarilhos do Caminho,
por nos afastar Dele. Ao permitir que se apague o fogo da tocha dos guerreiros da
luz, fomentamos a escuridão. Na infância do espírito deixamos nos conduzir, até
em razão de condicionamentos sociais, culturais e ancestrais, pela lei de talião,
onde se cobra o dente do outro pelo seu dente perdido, o olho furado do outro
pelo seu olho cego. Claro que o dente e o olho são figuras meramente simbólicas.
Na maioria das vezes, por achar que temos o direito, impomos um sofrimento ao
outro pelo fato de ele ter nos causado alguma dor, em primitiva filosofia muito
aplaudida pelas sombras. Afinal, esta é a motivação do seu jogo.

Não raro, inconscientemente, clamamos por justiça quando na verdade apenas


desejamos vingança. As sombras se interessam apenas pela punição, em ver o
outro sofrer pelo simples fato de que ele, supostamente, também nos fez sofrer.
Uma absurda mentalidade de acreditar que ao espalhar o nosso sofrimento ele se
tornará menor. A luz trabalha em favor do aprendizado. A justiça está ligada à
educação, à evolução e, sobretudo, ao amor. Por sua vez, a vingança se
interessa tão somente em impor um sofrimento ao outro. As sombras, habilidosas
conselheiras do ego, fazem-nos acreditar que precisamos nos proteger, preservar
a nossa imagem, resguardar os nossos direitos, como se ofender, revidar, acuar e
dominar fosse a maneira mais sábia de manter a integridade e retidão. Assim, as
nossas escolhas acabam corrompidas; os sentimentos mais sutis são substituídos
pelos mais densos, refletindo-se em reações desmedidas. O pior é que, sem
perceber, mantemos o mal vivo à nossa volta. O mais estranho é que nessa
matemática a conta nunca zera. Um dente quebrado não substitui o outro, mas
passamos a ter dois dentes imprestáveis, em progressão geométrica, no meio de
uma multidão de olhos furados e egos cegos”.

Argumentei que ser um andarilho significa não compactuar com o mal. Logo, se
vejo algo errado tenho que me opor à situação. O Velho franziu a sobrancelha e
disse com seriedade, sem perder a doçura da voz: “Com certeza, Yoskhaz! No
entanto, a maneira como fazemos isso é a diferença entre a luz e as trevas. Este
é o jogo do mal: nos iludir para darmos passagem às sombras acreditando que
estamos a serviço do bem”.

“Evidente que há casos graves em que temos que intervir com firmeza e
determinação para estancar o mal. Porém, posso garantir que tais situações
ocorrem poucas vezes na vida de cada um de nós. Na grande maioria das vezes,
fazemos o jogo das sombras movido por situações de nenhuma importância, que
poderiam ser resolvidas com um olhar de compaixão ao entender o nível de
consciência do outro, a dificuldade dele em se relacionar com as próprias
sombras. Afinal, as palavras e atitudes de cada um revelam a bagagem do
coração. Como esperar flores de quem apenas tem espinhos? Há que se ter
paciência e compaixão, até porque não podemos exigir a perfeição que nós
próprios não temos para dar. Em alguns momentos cabe uma conversa revestida
com amor e sinceridade; noutros, um silêncio misericordioso é mais do que
suficiente”. Bebeu um gole de café e disse: “Não devolver a agressão não fará de
ninguém um fraco, porém mostrará a coragem do andarilho em dominar o próprio
ego e a sua sabedoria em negar o alimento das trevas e deixar que o mal pereça
por inanição. Permitir, todos os dias, que a voz sagrada da sua alma seja cada
vez mais ouvida e seu valioso segredo, exercitado: oferecer sempre o seu melhor
sem esperar nada em troca. Isto é iluminar os próprios passos. No dia seguinte
ofereça ainda mais do amor que há em você e espere ainda menos de volta. Esta
é a batalha da liberdade do ser, este é o bom e inevitável combate”.

“É necessário cuidado com o jogo das sombras. Ele começa devagarzinho, quase
imperceptível, para ir ganhando vulto aos poucos, ocupando terreno dentro de
nós, até dominar os nossos sentimentos e manipular os nossos pensamentos. É
nesta hora que acabamos por escolher o sofrimento. O mal é ardiloso e
sorrateiro, seu melhor truque é iludir que não ele não existe em nós. Assim, por
descuido e engano, complica-se o próprio destino”.

“Quase sempre o jogo das sombras começa com um motivo fútil, um breve
comentário ou uma atitude impensada do outro em relação a nós. As sombras do
egoísmo, do orgulho ou da vaidade, a depender do caso, despertam para nos
alertar que o ego foi maculado e nos transforma em suposta vítima. Elas, as
sombras, aumentam a grandeza da suposta agressão, acrescentam fermento à
ofensa para que a raiva cresça dentro da gente até transbordar em
ressentimento. A resposta acaba por ser desproporcional e desnecessária, pois
visa, principalmente, ferir o sentimento do outro em igual ou maior intensidade do
que a mágoa que sentimos”.

“Por sua vez, o outro, se for um andarilho experimentado, perceberá claramente o


jogo das sombras e o estancará, reagindo com amor e paciência. Caso contrário,
dobrará a aposta para devolver a ofensa em intensidade ainda maior, o que nos
moverá ao revide em sequência sem fim de violência e sofrimento. Assim,
jogando esse nefasto jogo, construímos o próprio inferno”. Deu uma pequena
pausa e complementou: “O pior é teimamos em culpar os outros ou a vida por
tamanha infelicidade, sem perceber a responsabilidade e as consequências das
escolhas que fazemos. Basta entender que para encerrar o sofrimento basta
apenas modificar a maneira como reagimos a tudo o que nos incomoda. Eis a
chave da prisão. Fazer, a cada dia, que o ego se torne a imagem e semelhança
da alma é o exercício indispensável para a integralidade do ser, encerrando
definitivamente a dualidade que nos divide e rouba o equilíbrio necessário.
Apenas assim a agonia dará passagem à paz. Transmutar, pouco a pouco, as
sombras que nos habitam e terminar com o seu jogo é o que nos permite iniciar o
Caminho. É o que nos concede as asas para o fantástico voo rumo às Terras
Altas”.

“Perceba que neste caso não se trata de um conflito do mundo, mas de uma
batalha pessoal, por isto tanto sofrimento pela falta de harmonia. Podemos
enfrentar dificuldades materiais com tranquilidade, doenças com serenidade, as
guerras do planeta com sábia resignação ao aceitar e entender a lição que nos
cabe. Porém, não conseguiremos jamais a felicidade sem a paz que nos habita”.

Pediu para que eu completasse a sua caneca com café. Quando voltei, ele
prosseguiu: “Apenas através do ego podemos ser ofendidos ou humilhados.
Quanto maior o ego, mais seremos suscetíveis ao sofrimento. Ego poderoso,
indivíduo frágil. Esta é a simples equação”. Deu uma pequena pausa e concluiu
com uma pergunta: “Entende a razão e a força pela qual a humildade é o primeiro
portal do Caminho”?
Abaixei os olhos e perguntei o que ele me aconselhava fazer. O monge, desta
vez, foi sucinto: “Nada”, respondeu. Intrigado, eu quis saber se ele achava que eu
devia deixar quieta a inflamada discórdia. O Velho disse: “Não falei isto. Quis me
referir que não lhe direi objetivamente para fazer desse ou daquele jeito. Busque
no silêncio e na quietude se afastar por instantes do seu frágil ego que veste
pesadas armaduras na ilusão de proteção e poder. Então, poderá ouvir as
palavras sussurradas da sua alma e usar as asas que ela guarda para você, pois
na essência, somos tão somente ela, a alma, com toda a sua liberdade e leveza”.

Naquele mesmo dia, logo após a meditação, procurei o outro discípulo para
conversar. Não para lhe expor as minhas razões, pois entendi que elas não
tinham nenhuma importância. Mas para oferecer as minhas desculpas pelas
ofensas que proferi e a dor que lhe impus. Quanto ao sofrimento que ele me
causou? Só aconteceu porque eu permiti que a ofensa me atingisse. A sabedoria
é o perfeito escudo; o coração guarda um antídoto infalível para o sofrimento:
amor. Não resolveu? Tome mais uma dose. É de graça e também a própria
graça. É o poder que me faltava aprender a usar e ainda estava tão distante de
mim. Em silêncio, admiti que eu poderia ter feito diferente e melhor. Prometi a
mim mesmo que tentaria da próxima vez. E agradeci ao Universo por sempre me
conceder uma nova oportunidade.

Hoje, além de monges, somos grandes e leais amigos.

A MAGIA DE ENCONTRAR CONSIGO MISMO

Canção Estrelada estava sentado à porta de sua tenda. Baforava seu indefectível
cachimbo com fornilho de pedra. Era aquela hora em que o dia vira noite. O sol já
tinha ido e a lua ainda não havia chegado. Eu me sentia cansado, tinha acabado
de chegar da cidade e estava bastante aborrecido com uma série de problemas
pessoais. Há dias andava mal-humorado. “Tem horas que dá vontade de
desparecer”, lamentei a sorte quando passei pelo xamã. “Fugir do mundo não te
fará escapar da vida”, ele respondeu com um sorriso irônico. Calei-me e tentei
seguir. Eu apenas queria me banhar e dormir, mas ele me mandou sentar. “Hoje
vou te ensinar sobre o Porta do Sul”, falou e em seguida me passou o cachimbo
para que eu fumasse junto com ele, sinal de confiança e respeito. Pegou seu
tambor de duas faces para ritmar uma sentida canção nativa. Fechei os olhos e
me deixei envolver naquela ambiência de paz. “Na Tradição do Caminho
Vermelho, a Roda da Vida – ou Roda de Cura, vez que a vida nada mais é do que
um infinito processo de cura do espírito na exata medida da sua evolução –
possui quatro portais, representados pelas direções magnéticas do planeta. Em
geral gosto de começar pelo Leste, onde moram os antepassados que
aprenderam a cavalgar com o vento. Porém, contigo vou começar pelo Sul”,
explicou. Antes que desse tempo de eu perguntar o motivo, ele disse. “Existe uma
necessidade urgente de você se despir do personagem que criou na vã ilusão de
se proteger de tudo e de todos. Onde tenta enganar que é forte, habita a sua
fraqueza. Isto fez com que tenha abandonado a sua verdadeira força. Tudo que
não faz parte de nós, atrapalha por inadequação”.

Aleguei, quase magoado, que eu era um sujeito autêntico e generoso. Canção


Estrelada me ofereceu um sorriso misericordioso e boas palavras: “Se você não
encontrar a essência que habita em ti, nunca exercerá todos os dons e talentos
que a vida lhe concedeu. Se podemos ser inteiros, por que se contentar com a
metade?”. Abaixei a cabeça e ele continuou: “Ser uma pessoa boa é muitíssimo
importante, mas não basta. É necessário dar um passo adiante para fazer
florescer o melhor de nós. Para tanto você precisa encontrar com alguém muito
importante”. Meus olhos curiosos indagaram de imediato com quem seria tal
encontro. “Consigo mesmo”, respondeu com seu jeito sereno de falar.

Sem nenhuma pressa, pegou o cachimbo, soltou fumaça ao vento, fechou os


olhos para prosseguir. “Destrua a ilusão da imagem que você criou para se
proteger do mundo e ser admirado por todos. Em geral, o que mais enfeita, mais
esconde. Na maioria das vezes o essencial não está no que as pessoas mostram,
mas no que ocultam. Uma pena”. Ele deve ter percebido meu olhar de espanto e,
com sua enorme paciência, se fez mais claro. “É necessário soltar as amarras
dos modelos pré-estabelecidos de comportamento. Todo ser é único e nisto
reside a sua beleza”.

Disse-lhe que entendia as suas palavras, mas que se fosse o caso de eu ter que
me libertar de posturas e conceitos, que de tão antigos, estariam entranhados à
alma e, não raro, me fariam pensar e agir por puro automatismo e sem perceber.
Com certeza, não seria nada fácil. O xamã me respondeu com sua voz rouca:
“Ninguém falou que é fácil, apenas que é necessário. Para isso você precisa
percorrer a Jornada dos Pequenos, através das trilhas da alegria, humildade,
confiança, criatividade e pureza”.

Nos dias que se seguiram participei de vários rituais com diferentes pessoas da
tribo que me ofereceram as experiências e o verdadeiro entendimento dessas
quatro virtudes típicas das crianças. Ao final de cada etapa me encaminhavam
para conversar com Canção Estrelada.

– A alegria me falou da leveza que um menino tem para rir de si mesmo; da


descontração para não me levar tão a sério e deixar de me preocupar à toa com
situações que, de fato, não têm nenhuma importância. A capacidade de caçoar
dos próprios defeitos e dificuldades é um bom exercício para, além de
desmistificá-los, ver como são ridículos o orgulho e a vaidade que, no fundo,
todos usam como escudos de papel na falsa sensação de proteção. “Isto faz cair
todas as máscaras que você criou há anos e, de tão velhas, passou até mesmo
aceitá-las como verdadeiras. Encontre consigo mesmo e encante-se. Só assim
encontrará o melhor do mundo”.

– A humildade me lembrou a simplicidade de um menino que sabe não ser ainda


capaz de fazer as mesmas coisas do que um adulto, mas poderá chegar a
qualquer lugar se estiver disposto a aprender sempre. A humildade é a virtude do
eterno aprendiz que precisa habitar em ti. Aprender, Transformar, Compartilhar e
Seguir. Sempre e sempre. A humildade está nos genes das suas melhores
escolhas e cada qual escreve a sua história através delas. “Preste atenção às
suas escolhas, elas podem ferir ou curar. A cada decisão você revela o que traz
em sua sacola sagrada, o coração. Quando o brilho acenar, agradeça, mas
recuse o convite. Escolha sempre por amor. Entenda, com humidade, que
somente o amor te aperfeiçoa e fortalece, torna sagrada a escolha, abrindo o
portal da sabedoria e para novos dons”.

– Uma criança confia na proteção que seus pais oferecem, na medida que
acreditamos na Inteligência Cósmica a oferecer a cada pessoa as condições
indispensáveis para aquele momento da vida. “É impossível ser feliz sem confiar.
Embora não abdique de educar o filho e lhe corrigir os passos, com maior ou
menor rigor, a depender da teimosia, um pai ou uma mãe amam
incondicionalmente o seu filho e nunca entregarão uma pedra quando ele precisar
de pão. Da mesma maneira o Grande Mistério, com sua sabedoria e amor
infinitos, entrega a cada um o perfeito instrumento capaz de fazê-lo participar da
Grande Sinfonia do Universo e, desta maneira, alavancar a sua evolução. Aceite
que as dificuldades são mestres disfarçados a te oferecer valiosas lições. Isto é
entender o Caminho, não desistir dele se chama Fé”.

– Sabe a criança que destrói um brinquedo para com os pedaços construir outro
diferente, com o qual vai se permitir novas possibilidades de diversão? Ela está
apenas deixando que a sua criatividade venha à tona e abra o leque da sua
alegria. Quebrar velhos padrões e reinventar a vida é uma atitude saudável que
devemos exercitar todos os dias. Só assim abriremos espaço para que o novo se
instale e nos encante com suas infinitas e fantásticas aventuras. “A criatividade
nada mais é do que a magia ligada à criação e transformação de nossas vidas e,
por consequência, do mundo. Todos somos Filhos da Criação. Logo, você tem
este poder na raiz da alma. Use e encante-se!”.

– Como naquela famosa história infantil, é justamente um menino que revela que
o rei está nu. Somente com a pureza de um menino, sem malícia e sem maldade,
conseguiremos alcançar o âmago do ser e ver através dos véus do mundo. “O dia
mais importante da vida é quando você se encontra consigo mesmo. Apenas
quando tivermos a mente e o coração puros poderemos encarar os contornos do
nosso ser sem a fumaça da ilusão mundana. Assim, iremos nos deparar com a
distância que separa as partes do todo. Então, terá chegado a hora de exercitar
os dons que nos torna absolutamente capaz de alinhar o ego à alma na plenitude
do ser integral. O encontro com a sua essência é o que denominamos Cura
através da Verdade”.

No último dia houve um belo cerimonial mágico de encerramento com a


participação de toda a tribo. Já tarde da noite encontrei Canção Estrelada sentado
em frente à fogueira, com as labaredas estampadas nos olhos. Em seu tambor de
duas faces ritmava uma bonita e lenta melodia em seu dialeto nativo, cantada
como se buscasse a poesia no fundo do coração. “Canto em homenagem aos
que já partiram para o lado de lá e aviso a eles que um dia nos encontraremos.
Será uma bela festa”, disse ao me perceber sentando ao seu lado. Agradeci com
sinceridade a todas as oportunidades e ensinamentos que ele e seu povo
amorosamente me concediam. Brinquei dizendo que a Jornada dos Pequenos
tinha me feito grande. O xamã riu com vontade e caçou da minha falta de
humildade, mas adorou a piada. “Bom sinal, acho que você começou a aprender,
gosto dessa irreverência. Espíritos iluminados têm compromisso com o bom
humor”, disse. “Talvez daqui a alguns séculos você chegue lá”, devolveu a troça.
Rimos juntos. Comentei que sentia uma estranha leveza. “Você movimentou um
aro da Roda da Vida, Yoskhaz. Ao encontrar consigo houve o entendimento de
como funciona a Cura pela Verdade. Agora, o mais importante, é não esquecer
de exercê-la eternamente em si”.

Não falamos palavra por um tempo que não sei contar e o dia amanheceu.

O SOFRIMENTO É UMA ESCOLHA

Eu tinha chegado cedo à pequena e charmosa cidade situada no sopé da


montanha que acolhe o mosteiro. Tudo parecia ainda adormecido em suas ruas
seculares de pedra, quando, para a minha surpresa, ou quase, vejo a antiga
bicicleta de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e vinhos, encostada no poste
em frente à sua oficina. O horário de funcionamento da sua loja era imprevisível e
improvável. Nunca sabíamos quando a encontraríamos aberta. Fui recebido com
alegria e um sorriso sincero. O meu amigo tinha acabado de passar o café e nos
sentamos ao balcão com duas xícaras fumegantes para uma conversa vadia. O
elegante artesão tinha no remendo do couro o seu ofício; a costura da vida pelas
linhas da sua estranha filosofia, uma arte. Naquele dia não foi diferente, mais uma
vez ele me desconcertou com o imponderável. O sapateiro comentou que uma de
suas sobrinhas, filha de sua irmã, tinha acabado de sair da oficina. Ela estava
muito abalada, pois o seu marido resolvera dissolver o casamento. Tinha vindo
em busca de uma palavra de consolo, de uma ideia que servisse de lanterna para
iluminar os seus passos. Perguntei se a moça tinha saído melhor depois da
conversa com o tio. Então, Loureiro começou a me surpreender: “Acho que não.
Na verdade, saiu daqui pior do que entrou. Mas com o tempo ela irá entender o
que eu tentei explicar”. Eu quis saber o que ele havia dito para aliviar a aflição da
moça que gerou o efeito contrário. O sapateiro respondeu com naturalidade:
“Todo sofrimento é uma escolha”.

Pudera! Questionei se meu sábio amigo tinha enlouquecido. Isso era conselho
que se ofereça? Quem de sã consciência escolheria pelo sofrimento? O artesão,
sem se abalar, bebericou um gole de café e falou: “Todos aqueles que ainda não
conseguem ver além das névoas da ilusão”.

Deu uma pequena pausa e fez um parêntesis: “Apenas quero fazer uma
distinção. Não falo da dor física, aquela oriunda de uma perna quebrada, por
exemplo. Me refiro ao sofrimento que surge das fraturas emocionais, aquelas que
abalam e afogam a alma em mar de lágrimas desnecessárias”.

“Entenda que a finalidade do Caminho é aperfeiçoar o andarilho, ensiná-lo a ser


feliz, em perfeito equilíbrio interior, em plena harmonia com o mundo, porém sem
qualquer tipo de dependência externa. Solidário e independente ao mesmo
tempo. Independente por não permitir que nada, nem ninguém, tenha o poder de
abalar a sua paz. Enquanto a sua serenidade estiver sendo esbulhada significa
que ele ainda não aprendeu as lições indispensáveis para seguir adiante. Por
outro lado, solidário por entender a necessidade de sempre compartilhar o seu
melhor sem esperar nada em troca. No dia seguinte, com a consciência em plena
expansão, oferecerá um pouco mais e esperará ainda menos. Esta prática cura e
transforma. Esta é a Lei do Amor, uma das que compõe o Código Não-Escrito. Os
conflitos são as lições; as escolhas são as canetas com que escrevemos as
provas”.

Falei que ele estava delirando. Exemplifiquei com as muitas situações que
surgem na vida de todos, alheias a nossa vontade e que trazem sofrimento. A
morte de um parente querido, doenças, desemprego, separações afetivas, entre
outras variantes. Loureiro não se abalou: “As situações surgem na exata medida
do indispensável aprendizado, cabível naquele momento, para a evolução
pessoal. A questão não é o problema em si, mas como você reagirá diante dele.
Isto pode encerrar um ciclo de lições ou fazer com que o repita. Para tanto, lhe
resta tão somente as suas escolhas. Nada mais. Elas definem quem somos e as
condições do próximo trecho do Caminho”.

Argumentei que a teoria é sempre perfeita. No entanto, a prática costuma ser bem
complicada. O sapateiro balançou a cabeça e disse: “A dificuldade do problema
na verdade diz muito sobre você mesmo. O primeiro passo é entender que cada
qual enfrenta os exatos conflitos na medida das necessidades do seu
aprendizado. A vida é perfeita nas suas imperfeições. Esse é o seu método de
aprimoramento. Aprender que a maneira como reagimos aos problemas
determina as condições da viagem, quem nos fará companhia, as pontes, os
abismos e a paisagem que encontraremos na jornada é o segundo passo.
Perceber que as escolhas são as únicas ferramentas disponíveis é fazer uso da
sua magia pessoal. Magia é transformação. Este é o terceiro passo e traz o poder
alquímico de transmutar chumbo em ouro, ou seja, de substituir a agonia pela
paz”.

Achei um pouco confuso. Pedi para que ele fosse mais específico. Loureiro não
se fez de rogado: “Não importa qual é o seu problema. Todos serão sempre
sérios e enormes. No caso da minha sobrinha, por exemplo, ela teima em
acreditar que apenas será feliz ao lado do ex-marido, em comportamento de
completa dependência afetiva. Não percebe que este comportamento cria um
peso no casamento que o torna insustentável. Ao entender que ninguém pode
conceder a ninguém o poder sobre a sua felicidade, irá buscar a alegria no lugar
certo: dentro de si. Tão somente. Então poderá compartilhar com o outro, na
indispensável leveza do amor. Percebe que é uma escolha”?

“Com a morte não é diferente. Muitos sofrem pela ignorância de acreditar que ali
se coloca um ponto final na história, quando na verdade é apenas uma mudança
de capítulo. Outros, apesar de entenderem que a morte não é fim, insistem em
confrontá-la como uma perda, em apego à presença física, em atitude repleta de
egoísmo por não levar em conta o aprendizado pessoal e os interesses espirituais
de quem partiu. A famosa teimosia em ser o centro do universo alheio ao invés de
focar na beleza das próprias lições inevitavelmente trará sofrimento. Entende que
a ótica com que escolhe encarar a situação determina suas dores ou delícias”?
Sustentei que muitas vezes sofremos por saudade. Loureiro abriu um largo
sorrido e falou: “A saudade é algo maravilhoso, pois é o registro do amor naquele
convívio. Apenas existe saudade onde há amor. O amor não precisa da presença
física para existir, pois está muito além do que se pode tocar. Agradeça por sentir
saudade, pois demonstra que a vida não foi em vão. O que não deixa saudades
se perde no vazio da existência. Portanto, toda vez que a saudade lhe invadir,
você deve sorrir e comemorar”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Claro, você
pode escolher sentir-se vítima das circunstâncias, um abandonado pela vida e se
afogar na tristeza. A decisão é sua”.

Lembrei que muitas pessoas sofrem pelo fato de ficarem desempregadas e


passarem sérias necessidades materiais. O bom artesão enfrentou a questão:
“Claro que todos devem ter o necessário para uma vida digna. No entanto,
embora o dinheiro possa proporcionar muitas coisas boas, quando se tem uma
relação saudável com ele, nem de longe consegue ser fator determinante para a
felicidade. Canso de ver milionários em crises de depressão em suas mansões,
enquanto me deparo com operários em plena alegria nas favelas. Claro, que a
recíproca também ocorre, o que comprova que tudo depende, mais uma vez das
escolhas que o indivíduo faz”. Deu uma pequena pausa e acrescentou: “Quantas
vezes já vivenciamos que a desgraça, na verdade, é uma graça disfarçada?
Sempre ouvimos histórias de pessoas que ficaram melhores depois de uma
situação adversa, pois, somente assim, despertaram dons e talentos
adormecidos. Não tenha dúvida, isto apenas foi possível porque escolheram
enfrentar o problema com sabedoria e coragem ao invés de se afogarem em mar
de lamentações”.

Bebeu mais um gole de café e aprofundou a questão: “As doenças, muitas vezes
terminais, podem ser arrasadoras ou transformadoras, a depender da maneira
que o paciente vai encarar o momento. Certa vez, fui visitar um amigo no hospital
em tratamento contra um câncer. Embora fosse uma ótima pessoa, tinha certa
tendência ao pessimismo e ao mau-humor. Fui preparado para o pior e fui
surpreendido. Embora estivesse debilitado em razão da quimioterapia, com
olheiras fundas e sem cabelo, o encontrei no melhor momento da sua vida. Me
recebeu com um sorriso sincero, seus olhos transbordavam serenidade e suas
palavras semeavam alegria. Ele disse que na doença encontrara a farmácia da
alma e, somente por estar vivendo aquela situação, entendera toda a beleza do
Caminho. Estava muito agradecido por tudo que estava vivendo, pela
oportunidade de um novo e transformador olhar”. Deu uma pequena pausa e
prosseguiu: “O mais interessante é que, dividindo o quarto com ele, havia um
outro homem completamente arrasado, se sentindo o sujeito mais infeliz do
mundo e se perguntando porque aquela tragédia acontecera com ele, embora o
seu quadro clínico não fosse tão grave como do meu amigo. Percebe que cada
qual fez a sua escolha? Como diz o mestre, ‘quando o seu olho é bom, todo o seu
universo é luz’”.

“Costumamos perder tanto tempo para reclamar do sapato que nos foi oferecido,
que julgamos inadequado para aquele tipo de estrada, que não reparamos em
andarilhos que seguem sem uma das pernas, com leveza e desenvoltura maior
do que a nossa. Fazem mais com, aparentemente, menos. Na verdade, o poder
deles está nas escolhas. Em saber que tudo pode ser diferente e melhor,
revelando o espelho de um ser já em harmonia consigo mesmo e, por
consequência, com o universo. Esta força está adormecida dentro de cada um.
Ao escolhermos o olhar que enxerga os defeitos do mundo perdemos a
oportunidade de ver as suas maravilhas. Toda vez que permitimos o sofrimento
significa que acabamos por negar uma chance para a alegria em razão de uma
escolha equivocada. Lamentamos o leite derramado ao invés de abençoar a lição
de manuseá-lo corretamente”.

“Nada atrapalha mais o andarilho do que os lamentos. Quando reclamamos, no


fundo, tentamos justificar para nós mesmos a nossa pouca disposição em permitir
uma escolha diferente, capaz de transformar a realidade. Esperar que o mundo
se adeque às nossas necessidades e desejos é bem mais cômodo do que lutar
pelos mais belos sonhos, certo? No entanto, não é assim que toca a grande
orquestra da vida e acabamos envoltos em esfera de amargura por perdermos o
baile. Em ciclo vicioso, continuamos a reclamar e a esquecer que tudo foi
consequência das escolhas que fizemos ontem, repetimos hoje e projetamos para
o dia de amanhã”.

“O ciclo se torna virtuoso a partir do momento em que aceitamos que a colheita


sempre está de acordo com a semeadura. A história de cada pessoa nada mais é
do que o somatório das escolhas que fez durante a viagem. Nesta e em estações
anteriores. Definir os próximos destinos significa fazer escolhas concernentes a
eles. Alterar futuras rotas exige modificar as escolhas de agora. Por isto a
importância do mergulho profundo nos confins do ser, para entender e aceitar o
que o trouxe até aqui e, então, transformar a realidade. Para tanto, é preciso
sinceridade e coragem para consigo mesmo. Entender quem fomos e quem
somos, para redesenhar quem queremos ser. De verdade”.

“Por medo, escolhemos a gaiola ao invés das asas; por egoísmo, escolhemos
possuir no lugar de compartilhar; por ignorância, escolhemos o ter em detrimento
do ser; por ciúme, escolhemos nos distanciar do amor; pelo brilho do desejo,
escolhemos apagar a luz dos sonhos; por teimosia, escolhemos a estagnação,
impedindo o germinar da sabedoria; por comodidade, travamos o movimento da
vida; por orgulho, escolhemos a ilusão na tentativa de esquecer a verdade.
Assim, inconscientemente, acabamos por escolher a doença ao não permitir a
cura”.

Falei que todo conceito novo é um pouco confuso até encontrar o devido lugar
dentro da gente. Porém, confessei que havia razão em seus argumentos. Loureiro
disse com seriedade: “Todo conflito externo é reflexo da bagunça interna. A
maneira como reagimos às dificuldades demonstra o maior ou menor poder das
sombras que ainda nos habitam. Todas as desavenças, dos problemas sociais
aos relacionamentos pessoais, revelam o grau de predominância do ego sobre a
alma daquele grupo ou indivíduo. O sofrimento de um indivíduo é diretamente
proporcional às sombras que o habitam. Iluminá-las é uma escolha”.

O artesão me observou por instantes, ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “A


escolha é o único instrumento que possuímos para exercitar a nossa
espiritualidade. Não há outro. As sombras podem tornar a existência um pesado
ofício. Por sua vez, seguir pelos meandros da luz, com sabedoria e amor,
transforma a vida em fina arte. Somente as escolhas lhe darão a leveza, ou não,
para se sustentar no ar”.

A BAGAGEM

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem,


tinha sido convidado a ministrar uma série de palestras sobre os mais variados
temas em outro mosteiro, bem distante do nosso, onde funciona uma irmandade
com preceitos distintos da qual pertenço. Na essência, as diferenças mais
aproximam do que afastam. Naquela época, eu era o discípulo designado para
acompanhar o monge. Todos ficaram encantados com o Velho. Uma imagem
serena, sempre com um sorriso discreto no rosto, o olhar que espelhava
paciência, as palavras sábias pronunciadas em voz mansa e, principalmente, com
atitudes, mesmo nos pequenos gestos, que transbordavam o mais puro amor. Ele
dizia que servir como exemplo é o argumento mais poderoso que alguém pode
oferecer; é a “verdade viva”. Por duas vezes, nessa viagem, o monge pediu para
que eu abrisse a palestra do dia com introduções rápidas sobre o tema que seria
abordado em seguida por ele, fato que me rendeu alguns elogios, muito mais
como reflexo das aulas do Velho do que por mérito meu. No entanto, eu estava
mal. Um aluno daquele mosteiro que me cedera uma vaga em seu quarto durante
os dias que ali ficamos vinha me perturbando com uma saraivada de críticas, seja
em relação ao breve discurso que iniciava as palestras, seja por causa de algum
outro comportamento meu que ele indicava como inadequado. Em tudo ele
apontava defeito. Quando o Velho entrou no quarto para saber se eu já estava
pronto para viajarmos de volta, me encontrou arrumando a mala tal e qual se
encontrava o meu coração: em total bagunça e desalinho.

Questionado, relatei os motivos da minha irritação. O Velho pediu para que eu


parasse de arrumar a mala e fôssemos caminhar um pouco. Lembrei que
tínhamos que partir, e ele disse: “É necessário entender o que levamos na
bagagem para prosseguir a viagem”. Falei que colocava na mala apenas as
minhas roupas e pertences pessoais. O bom monge apontou a mala sobre a
cama com o queixo e me corrigiu: “Não falo dessa mala”, colocou a mão no
próprio peito e complementou: “Me refiro à bagagem sagrada, aquela que
levamos no coração”.

Enquanto passeávamos no belo jardim daquele mosteiro, contei toda a


implicância do outro discípulo para comigo. Falei e falei até esgotarem as minhas
queixas. O Velho, que tinha escutado a tudo com enorme paciência, disse: “Buda
ensinava que ‘sempre que eu permitir que a raiva faça a sua morada em mim,
perderei a batalha’”. Deu uma pequena pausa e continuou: “O maior combate é
aquele que travamos dentro de nós. É iluminar as sombras que nos habitam. E
elas são muitas e diversas. A raiva, a irritação e a mágoa são apenas algumas
das suas muitas espécies. O convívio social traz os aliados, aquelas pessoas que
nos ajudam e fortalecem a manter acesa a chama da luz a iluminar os nossos
passos. Traz, também, os adversários, que parecem ter como missão a função de
alimentar as sombras que se escondem em nós. Uns são tão importantes quanto
os outros. Enquanto os aliados colaboram de maneira explícita ao ajudar, os
adversários o fazem de modo implícito ao atrapalhar. Os antagonistas funcionam,
a nível do inconsciente, como mestres ocultos a nos ministrar, através do conflito,
a exata lição, aquela para a qual já estamos prontos”. Interrompi para dizer que
não entendia. O Velho explicou: “Ao permitir a manifestação da minha sombra,
tomo consciência, não só de sua existência, mas do quanto ela me atrapalha e
ilude. Assim, caso esteja com a mente desperta, posso iniciar o processo de
aperfeiçoamento dessa faceta do meu ser”.

Falei que não estava entendendo. O Velho foi mais didático: “É como em um
filme. O mocinho precisa do bandido para exercitar as suas capacidades. Caso
contrário, viverá uma vida de estagnação e uma história sem encanto ou
interesse. Desse modo, quanto mais sofisticado for o vilão melhor será a história,
pois permitirá ao herói desenvolver poderes que ele mesmo desconhece, para,
então, se superar. Percebe que é o conflito que move a narrativa? Na vida não é
diferente. Cada qual é o herói da própria história e, por consequência, termina por
ser o vilão da história alheia, pois, de um modo ou outro, sendo justos ou não, em
algum momento agimos em desacordo com as expectativas de alguém. Para
desempenhar o seu papel, o herói precisa do vilão para entender como reage
diante das dificuldades que surgem. Como reagimos diante das adversidades?
Esta é a perfeita régua a nos medir. Aproveite a oportunidade para aprender
sobre si mesmo; lapidar as arestas que cortam, a você e aos outros; oferecer o
seu melhor e avançar, sempre em busca da integralidade e da plenitude do ser”.

Perguntei se o conflito é, de fato, necessário. O Velho explicou com paciência:


“Vivemos em plano de existência onde os conflitos ainda são importantes como
instrumentos para a conquista da harmonia pessoal. A maior prova disto é a
existência das sombras pessoais. Enquanto você acreditar que as suas
frustrações são motivadas pelo o outro, haverá conflitos e estagnação. Perceber
as sombras significa um convite ao enorme e fundamental trabalho a realizar
consigo. Nos relacionamentos, de qualquer nível, os interlocutores desagradáveis
têm a sagrada missão de fazer com que as sombras se manifestem através da
adversidade e da contrariedade. Agradeça a eles por isto. Assim, é possível
identificar e iluminar o que precisa ser transmutado dentro de você. Se prestar
atenção e houver sinceridade na jornada de autoconhecimento, verá que o
adversário nunca é o outro, mas você mesmo. Como um guardião do limiar, ele
apenas mostrou a você, ainda que de maneira grosseira, onde será travada a luta
para que o próximo portal do Caminho seja ultrapassado”, apontou para o meu
peito e disse: “Dentro de si mesmo”.

“Entende a importância de cada pessoa na sua vida”? O Velho perguntou.


Respondi que não via nenhum valor em um sujeito que parecia me perseguir com
a única finalidade de perturbar. Disse que gostaria de viver em paz com todos. O
monge sorriu e disse: “Exato! E é por ainda não conseguir que está nesta
estação. Todos querem viver em paz, mas poucos estão prontos para assumir as
próprias responsabilidades evolutivas. Ainda preferem o conforto de distribuir
culpas a esmo. Entende que o comportamento dele, embora inadequado, traz
valiosas lições”? Confessei que não conseguia ver nada de bom em toda aquela
aporrinhação. O Velho arqueou os lábios em lindo sorriso e as enumerou:
“Percebe que algo em você também incomoda a esse outro discípulo?
Provavelmente é uma qualidade ou um dom que ele muito admira, mas por não
conseguir administrar com humildade as virtudes que ainda não domina, permite
que a vaidade ou a inveja se manifestem através de atitudes agressivas. Pode,
também, ser ao contrário: ele enxerga em você uma dificuldade que também
existe nele e que, inconscientemente, não consegue admitir. Acaba por reagir
com críticas duras a você para fantasiar a si mesmo com a perfeição que não
consegue alcançar”. Perguntei por que tinha que ser assim. O Velho me ofereceu
um olhar repleto de compaixão e disse: “É assim com todos. Como as sombras
têm a função de camuflar as dificuldades ao próprio ego, elas vão apontar a
artilharia para as características de outra pessoa, ora colorindo os defeitos com
cores fortes, ora colocando eventuais falhas sob poderosa lente de aumento. O
que incomoda a esse aluno não são os equívocos do Yoskhaz, mas as
dificuldades dele próprio, com as quais ainda não consegue lidar ou patamares
evolutivos que não consegue atingir. Percebe o truque das sombras? Na ilusão
de proteger, elas impedem o melhor olhar. Assim cada qual se torna a principal
vítima das próprias sombras e, pior, sem perceber. Então, surge o vilão na
tentativa de despertar o herói adormecido em cada um e em todos. Enquanto não
entender a si mesmo, não conseguirá se aperfeiçoar. Portanto, há que se ter
paciência para com o outro e muita atenção para consigo mesmo”.

“Por sua vez, você mostrou uma enorme dificuldade com as críticas. Esta é a
segunda lição”, continuou o monge. Contestei de imediato e argumentei que as
críticas eram injustas. O Velho franziu a sobrancelha e disse com a voz doce,
porém repleta de seriedade: “Não vi você questionando os elogios quando os
recebeu. Seriam todos devidos? Se nem todas as críticas são justas nem todos
os elogios são merecidos. Se por um lado não podemos permitir que nenhuma
crítica nos derrote, mas seja apenas elemento de reflexão e transformação, por
outro lado a sabedoria impõe que o mel dos elogios não lambuze todo o ego a
impedir os próximos movimentos rumo à evolução. E mais uma vez lembro de
Buda a nos ensinar a trilhar a estrada do meio como ponto de equilíbrio, para que
um extremo não elimine o outro e, assim, não impeça a conquista da
integralidade do ser”.

Abaixei os olhos e não disse palavra, pois sabia do que o monge falava, mas
tinha dificuldades para viver de acordo com aquele conhecimento, não permitindo
que as lições se transformassem em sabedoria, como um pão que apodrece
esquecido na vitrine. O Velho continuou: “É justamente para encontrar essa
harmonia interna que voltamos ao início da conversa: aprender a fazer a mala. O
que levamos na bagagem define a maneira como percorremos o Caminho. É
preciso leveza caso queira usar as asas. Portanto, a mala não pode carregar o
chumbo da raiva, da mágoa, da inveja, do ciúme, da insegurança e outras tantas
sombras, sob o risco de não conseguir se mover por causa de tanto peso. São os
ventos do perdão, da tolerância, do respeito e do amor que te impulsionam para o
alto”. Deu uma pequena pausa para eu concatenar as ideias e concluiu: “Nada
em ninguém pode nos incomodar. Quando isto acontece, não tenha dúvida, há
algo de errado na própria bagagem. É o momento de abrir e modificar o seu
conteúdo”.

“Não perca tempo nem desperdice energia se lamentado ou tentando mudar os


outros. Só os tolos fazem isto. Ofereça sempre o seu melhor e manifeste a sua
verdade de maneira mansa e clara. Depois, siga. Cada qual tem a própria jornada
para percorrer”.

“A plenitude é a sagrada arte de manter a paz interna acima dos inevitáveis


conflitos externos. O fato de permitir que o outro discípulo abalasse a sua paz
revelou as muitas fragilidades que ainda precisam se aperfeiçoadas em você.
Não esqueça de agradecer a ele antes de partir”. Tornei a ficar em silêncio,
balancei a cabeça em concordância e, antes que pudesse falar, o Velho finalizou:
“Está na nossa hora ou perderemos o trem. Vá pegar a sua mala no quarto”.
Piscou olho com jeito maroto e perguntou: “Já sabe o que vai levar na bagagem
na volta para a casa”?

ABRAÇANDO AS SOMBRAS

Todos os discípulos da Ordem tinham sido avisados que um de nós, em breve,


seria consagrado monge em cerimônia permitida apenas aos iniciados. Não tive
dúvidas de que eu seria o escolhido. Embora não fosse o aluno mais antigo, era o
mais próximo do Velho, como carinhosamente chamávamos o decano do
mosteiro. A ansiedade tomou conta de mim, me senti orgulhoso e fiquei algumas
noites em claro imaginando como seria o ritual de passagem, tão comentado
entre paredes, de discípulo para monge. Até que veio a notícia de que outro
aprendiz era quem seria consagrado. O que parecia dia se tornou noite. A brisa
agradável, que me acariciava o ego, se tornou uma violenta tempestade, capaz
de varrer os meus melhores sentimentos para um lugar tão distante que tive a
sensação de nunca mais encontrá-los.

O ciúme me convenceu de que aquela decisão era injusta. A inveja chegou para
me avisar que a vida era assim, injusta por natureza. Para piorar, o escolhido
para se tornar monge tinha sido o aprendiz com quem eu mais debatia e combatia
nas aulas de filosofia e de metafísica. A mágoa me cobriu com um espesso véu
para segredar que bons sentimentos são frutos da árvore da ingenuidade: um
carneiro não sobrevive no meio de lobos. Sim, eu era a perfeita vítima.

Passei alguns dias ponderando sobre a possibilidade de me desligar da Ordem.


Estava convencido da perda de tempo em insistir em um sonho que não
encontrava respaldo nem entre aqueles em quem eu mais confiava. Amuado
pelos cantos, avaliava se deveria fazer um discurso para desmascarar a farsa ou
se saía em silêncio, sem aviso, em velado protesto. Até que ao atravessar o
jardim interno do mosteiro, vi o Velho cuidando das flores. Contornei na tentativa
de evitá-lo. Não adiantou. Ao perceber a minha presença, sem se virar, pediu que
eu me aproximasse. Guardou as pequenas ferramentas no bolso da túnica e
pediu para que eu o acompanhasse até a sua pequena sala de trabalho. A sós,
me serviu uma xícara de chá e disse: “Yoskhaz, abra o seu coração”.
Respondi, secamente, que estava bem. Não, eu não daria o meu braço a torcer.
Minha indignação seria silenciosa e, se ele tivesse alguma consideração por mim,
que decifrasse as minhas emoções. Ele me olhou com doçura e disse: “O ciúme,
a inveja e o ódio nunca serão bons conselheiros”. Argumentei que ele estava
enganado, pois tais sentimentos não faziam parte da minha personalidade e, há
muito, tinham sido superados. O Velho, manteve a paciência, e falou: “Pelas
nossas entranhas correm todos os sentimentos. Os melhores e os piores. Faz
parte da natureza humana, não existe exceção. No entanto, o que fazemos com
eles define quem somos e o destino próximo”.

Insisti que ele estava errado quanto a mim, pois tais sombras não me habitavam;
embora, eu as reconhecesse nos outros e, confessei, muito me incomodavam. O
monge respondeu: “Incomodam pelo simples fato de identificá-las,
inconscientemente, em si. Quando passam para o estágio do consciente a
postura passa a ser de humildade e compaixão para com todos”.

Lamentei o fato de ele não ter me conhecido melhor, apesar do longo período de
convivência. O Velho respondeu sem alterar a tranquilidade que lhe era
característica: “Percebe que a sua reação demonstra o quanto você desconhece
de si mesmo? O processo de autoconhecimento é o primeiro degrau para
alcançar a harmonia e o equilíbrio do ser. O primeiro portal do Caminho é o
encontro consigo mesmo. Quando já conseguimos nos conhecer, de verdade, nos
tornamos íntimos de nossas sombras. Esta cumplicidade serve, não para
alimentá-las, mas ao contrário, para identificar a manifestação delas cada vez
mais cedo, para que seja possível iluminá-las. Assim, face a rápida intervenção,
aos poucos, as sombras perderão a força de influenciar as nossas escolhas”.

“Fingir que as sombras não nos habitam é muito perigoso. Ao negar as sombras,
você concede a elas total permissão para se movimentar e se apoderar do seu
ego, agigantando-o, em rota equivocada quanto a verdade. Você será dominado
sem perceber, de maneira sorrateira, pois o melhor truque delas é convencer que
existem apenas nos outros. Elas iludem: nos fazem confundir amor com ciúme;
justiça com vingança; direito com egoísmo; humildade com humilhação; sucesso
com ganância; vitória com dominação. Pensar que estamos imunes às suas
artimanhas, fora do alcance de suas garras? Ledo engano. Então,
invariavelmente, somos levados às escolhas erradas e adiamos o processo
evolutivo. Por outro lado, ao perceber tudo isto, iniciamos a grande batalha da
vida: iluminar as próprias sombras para, depois, transmutá-las”.

Eu quis saber como funcionava esse processo de iluminar e transmutar as


sombras. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e explicou: “Digamos que
alguém tenha recebido um prêmio que você imaginou ser o merecedor. A primeira
reação é se sentir injustiçado e ficar estagnado em lamúrias e reclamações. O
andarilho que já iniciou o processo de autoconhecimento faz uma análise sincera,
isenta de emoções, para avaliar se, de fato, o seu trabalho era superior ao
premiado. Se não era, entende em quais atributos precisa melhorar para que em
outro momento lhe seja oferecido o reconhecimento e, mesmo que este não
venha, ele aprendeu e avançou. Assim, torna-se um sujeito melhor. Este é o
grande prêmio”. Deu uma pausa e prosseguiu: “Por outro lado, se tiver convicção
de que o seu trabalho era o merecedor, simplesmente atribui o erro às
imperfeições humanas de julgamento e no seu íntimo segue em paz consigo
mesmo, pois o andarilho não precisa dos aplausos do mundo para se sentir
pleno”.

Falei que o exemplo era muito parecido com o meu caso e, por isto, estava
contaminado. O Velho foi paciente: “Imagine a situação em que uma namorada
tenha atitudes que provoque ciúme em você. Aconselhado pelas sombras, a
reação mais primitiva é a tentativa de controlar, reprimir ou modificar a moça para
que ela tenha um comportamento dento dos parâmetros que você ache
adequado. Então, surgem os conflitos e o sofrimento, pois ninguém tem o poder
ou o direito de modificar ninguém. Insistir nesse comportamento é alimentar as
sombras e a dor. Ao identificar o ciúme, a primeira atitude do andarilho é
mergulhar em si para analisar se o que sente está amplificado por situações
traumáticas do passado, feridas abertas de outras relações que sangram
silenciosamente refletindo em reações desproporcionais e inadequadas. Ou
mesmo por mera imaturidade. Percebe que o que lhe faz sofrer está muito mais
dentro do que fora dele. Então, é hora de iniciar um processo de cura para que
possa ter uma vida mais serena e justa. Por outro lado, se o comportamento da
namorada estiver na contramão do convívio saudável, o andarilho sabe que as
transformações apenas ocorrem pela ampliação do nível de consciência, não por
vontade alheia. Assim, deseja, de coração, toda a felicidade do mundo para ela e
segue em frente. Livre e em paz”.

O Velho deu uma pausa e prosseguiu: “Seria possível inúmeros outros exemplos.
Embora expostos de maneira simples, percebe que em ambos casos o andarilho
não alimentou nem permitiu que as sombras o manipulassem. Ao contrário, as
sombras serviram de indicador do aperfeiçoamento que lhe falta ou, por outro
lado, permitiram que oferecesse o melhor se si nas lições já aprendidas”.

“Nunca esqueça: o que nos define é tão somente a maneira como reagimos
diante dos conflitos”.

Tornou a pausar e concluiu: “Acredite, sempre temos escolhas entre o sofrimento


e a paz; sempre podemos fazer diferente e melhor”.

Fui tomado por uma raiva incontrolável. Falei que sabia quem eu era, que
ninguém me conhecia melhor do que eu a mim mesmo. Despejei todas as minhas
mágoas pelo fato de não ter sido o escolhido para a próxima iniciação da Ordem.
Sustentei a tese da injustiça. Falei por minutos a fio. Depois repeti as mesmas
lamentações várias vezes. Falar me ajudava a exorcizar o meu sofrimento, pois,
na medida que eu ouvia e ouvia as minhas próprias palavras, começava a
entender que elas revelavam para mim mesmo quem eu era de verdade. Eram
palavras pesadas como os sentimentos que as revestia. Aos poucos, a minha
consciência dizia que não era aquilo que eu desejava para mim. A minha alma
soprava que aquele discurso era incoerente com a minha busca. Eu precisava
que florescesse a verdade em mim.

Não foi fácil admitir. O Velho me escutava em profundo silêncio e seus olhos
transbordavam uma involuntária misericórdia, o que, no início, aumentou ainda
mais o meu ódio, fazendo com que eu subisse o volume da voz. Ele se manteve
impassível. Na medida em que eu falava os desatinos que vinham à mente, fui
me dando conta que toda aquela piedade no olhar do monge não era com o
intuito de me humilhar ou fazer com que eu me sentisse menor. Era amor. Um
amor puro e incondicional por me ver sofrer, por desejar o meu bem, por entender
que eu sentia. O seu olhar era humilde, me contava que ele já tinha passado por
aquela situação.

Naquele instante, percebi que não precisava ter vergonha ou culpa pelo que
sentia. Todos, cedo ou tarde, atravessam essa porta. Percebi que eu dificultava a
cura na medida que escondia a minha dor. Entendi, também, o quanto ainda
estava distante de onde pensava já ter chegado. Aquela catarse revelara a minha
alma nua diante do perfeito espelho: estava rasgada a fantasia do ego. A
máscara que mostrava um personagem ao mundo, uma pessoa que eu nunca fui,
com virtudes que ainda não dominava, tinha caído. Tudo aquilo não se sustentava
mais. Mostrar à sociedade uma força, um poder e capacidades que não faziam
parte de mim, apenas demonstravam toda a minha fraqueza e medo. Estava na
hora de construir quem eu sempre desejei ser, sem ilusões, longe da farsa que eu
mesmo montara por toda uma vida para enganar a mim mesmo. Chorei até as
lágrimas secarem.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para admitir que
todos no mosteiro tinham razão: eu ainda não estava pronto para o próximo
passo. A minha reação mostrava isto. Falei também que me empenharia ao
máximo, não com o intuito de me tornar um monge, mas para construir, de fato,
quem eu queria ser. Tudo é causa e consequência.

O Velho sorriu e revelou: “Neste momento, você acaba de colocar o pé no


Caminho. Seja bem-vindo”!

Ele me deu um forte abraço. Agradeci ao Velho por me fazer entender o momento
pelo qual passava. Ele ofereceu um lindo sorriso e falou: “Não agradeça a mim,
mas às sombras. Ao invés de brigar com elas, abrace-as. Nunca as perca de vista
para que possam ser vigiadas e educadas. Elas são o contraponto, a sinalização
dos obstáculos a serem superados. São a exata medida do que nos falta para a
integralidade, a liberdade, a plenitude e a paz”.

A SEMENTE

Eu caminhava pelas montanhas do Arizona ao lado de Canção Estrelada, o xamã


que tinha o dom de usar a música para perpetuar a sabedoria do seu povo,
quando paramos em um pequeno platô com uma vista encantadora. Ele estendeu
o seu manto colorido no chão, acendeu o inconfundível cachimbo com fornilho de
pedra vermelha e me pediu para preparar uma fogueira. Depois ritmou com o seu
tambor de duas faces uma sentida cantiga ancestral na qual pedia proteção para
nunca abandonar ‘o lado ensolarado da estrada’. Ficamos um tempo que não sei
precisar sem dizer palavra, como viajantes no mundo das ideias, até que o xamã
rompeu o silêncio: “Há muitos elementos na natureza que considero sagrados
pelo simbolismo que representam. O nascer do sol pela importância da luz em
nossas vidas; o voo da águia por me ensinar a ver todas as coisas do alto; as
estrelas para lembrar que existem outros mundos além deste; a mudança das
estações pela lição da renovação dos ciclos; a borboleta para me lembrar que a
lagarta pode ter asas; o rio para não me deixar esquecer que todas as águas um
dia chegam ao mar. No entanto, nada me encanta tanto quanto a semente”. Deu
uma baforada e prosseguiu: “Enfim, há lições por todos os lados. O sagrado está
misturado ao mundano a espera de ser revelado”. Quando eu iria interromper
para perguntar sobre a semente, a conversa mudou de curso. Ele falou: “Assim
como a magia aguarda o momento do feiticeiro”.

Comentei que tinha certa dificuldade de entender o que era essa magia, tão
celebrada por magos e xamãs. Revelei que na cultura na qual fui criado tal poder
era tido, pela maioria, como lenda oriunda de antigas crenças ou histórias de
ficção. Confessei, ainda, que, como todos, sempre desejei possuir tamanho
poder. Canção Estrelada fechou os olhos, como fazia todas as vezes em que
sabia que a conversa seria longa e explicou com a sua voz rouca: “Esse poder
está ao alcance de qualquer um, somos todos filhos do Criador, sem qualquer
distinção ou privilégio. O poder é de todos, basta aprender a usar”. Deu uma
pausa e disse: “Magia é alteração de um estado de realidade. Preste atenção
como há situações, pessoas e lugares que nos deixam nervosos, agressivos ou
tristes; outras que nos trazem a sensação de calma, leveza e alegria. Não é
assim”? Balancei a cabeça em concordância. Ele continuou: “Esse é um tipo
muito usual de magia. A palavra, por exemplo, pode espalhar a discórdia ou
semear a paz. Isto nos torna feiticeiros pelo poder de modificar o ambiente.
Então, quando essa mudança nos ilumina e acolhe, se torna sagrada. Definir o
sentimento que nos move influencia a palavra e determina a magia, sutil ou
densa, acelerada ou lenta, que nos envolverá”. Deu uma pausa e concluiu:
“Portanto, preste muita atenção todas as vezes em que abrir a boca: as suas
palavras envolvem o poder da transformação e, por consequência, definem que
tipo de feiticeiro você é”.

“No universo tudo é fusão e expansão”, falou. Ao perceber uma grande


interrogação em minhas feições, Canção Estrelada se adiantou em explicar:
“Tudo que acontece no universo se repete em nós. Como todos somos um, as
leis que regem as estrelas também se aplicam a mim e a você”. Falei que não
tinha entendido e ele explicou com paciência: “Por exemplo, as estrelas
magnetizam as energias que as rondam, ganham força e, em agradecimento,
retribuem em brilho de diversas potências. Por sua vez, das energias que nos
envolvem, atraímos aquelas com que temos afinidade, metabolizamos e, em
seguida, a depender do nível de consciência e capacidade amorosa,
compartilhamos em luz ou sombras”.

Em sombras? Estranhei. O xamã foi categórico: “Cada qual oferece o que pode”.
Interrompi para saber como eu seria capaz de determinar as energias que me
imantam e refletir apenas luz. Canção Estrelada arqueou os lábios em sorriso sutil
e disse: “Através das suas escolhas, apenas elas têm tamanho poder. Há estrelas
que conseguem iluminar e manter a vida de toda uma galáxia. Outras são
buracos negros que sugam tudo à sua volta”.
O xamã deu uma baforada no cachimbo e disse: “Você não pode esquecer que a
luz, em resumo, é a coesão de muitas virtudes que não existem isoladamente.
Por exemplo, a sabedoria precisa do amor para que fique a serviço do bem; o
amor necessita da sabedoria para se espraiar, em toda a sua amplitude, com
inteligência e justiça. A coragem se faz indispensável na superação da inércia e
dificuldades no intuito de que o amor-sabedoria não seja apenas contemplativo.
Por fim, o bem precisa ser experimentado até restar fundido à alma. Ao iluminar a
si mesmo você cumpre a função de trazer a luz ao mundo no reflexo das suas
escolhas”. Olhou no fundo dos meus olhos e disse: “Os melhores feiticeiros são
aqueles que se concentram na magia de transformar a si próprio”. Comentei que
me parecia egoísmo. Canção Estrelada sacudiu a cabeça e disse: “Não, ao
contrário, eles sabem que apenas assim, com o aprimoramento do próprio jeito de
ser, conseguirão iluminar os passos de toda a gente. Estes verdadeiros magos,
aos poucos, em gestos humildes, alteram toda a realidade à sua volta em ondas
que se propagam até os confins do universo”.

“Todo feiticeiro entende a importância do cerimonial mágico, que na verdade é


todo e qualquer ritual de transformação do ser. Muitos se perdem na fantasia das
cerimônias secretas em noites de lua cheia, ao redor de grandes fogueiras na
invocação de espíritos poderosos. Sim, estes rituais existem e têm o seu valor.
No entanto, igualmente poderosos são os pequenos e quase imperceptíveis
cerimoniais do cotidiano em que, não raro, desperdiçamos a oportunidade para
semear a melhor magia: um abraço apertado na hora da agonia, um sorriso
sincero para apagar a incerteza, uma gentileza fácil na hora difícil, uma
delicadeza em momento conflituoso, uma palavra de esperança diante da dor, o
perdão verdadeiro, o pacificar de uma briga, uma escolha por amor. Enfim, tudo
aquilo que seja capaz de manter em si a chama forte da luz e, se possível, alterar
o ânimo de outra pessoa. Isto servirá de alavanca para que ambos possam
expandir a mente e fortalecer o coração. Então, ocorre a transformação pessoal.
Não se engane, isso é magia pura”. Deu uma pausa e concluiu: “São alguns
exemplos simples que apenas os melhores feiticeiros aproveitam para modificar a
realidade”.

O silêncio tornou a imperar. Fiquei um tempo que não sei dizer pensando na
simplicidade do poder e da magia, ao alcance de qualquer um, enquanto muitos,
na busca pelo entendimento alquímico da vida, aquele que transforma o chumbo
da sombra no ouro da luz, se perdem por não descortinarem as névoas da ilusão.
Foi quando lembrei que Canção Estrelada tinha dito, no início daquela conversa,
que para ele nada era mais emblemático do que a semente. Questionado, o xamã
apanhou no chão uma pequena semente de um enorme carvalho, que, impávido
ao nosso lado, parecia abençoar a lição. O xamã explicou: “Repare o minúsculo
tamanho dessa semente se comparado à grandeza da árvore e veja como os
formatos se modificam durante o processo de transformação. Imagine a semente
de uma maçã e lembre das formas, cores e sabor da fruta; faça o mesmo com o
perfume e a beleza das flores. Consegue entender o poder da luz em você”?
Apontou o secular carvalho com o tronco que parecia uma pilastra, depois
mostrou a frágil semente e disse: “A árvore mais alta, a fruta mais doce ou a mais
bela flor nada mais são do que uma minúscula semente que se permitiu as
devidas transformações. Assim é com luz que nos habita. Como filhos do Criador,
trazemos a Sua semente no âmago. Em essência, somos luz”.
“Uma semente de luz nunca se perde. Ela pode demorar milênios para germinar,
mas o seu verdadeiro destino será, inexoravelmente, o da árvore que arrefece o
calor dos dias, da flor que enfeita e perfuma a vida, da fruta que alimenta a
humanidade”.

Canção Estrelada pitou o cachimbo e observou a fumaça dançar diante dos


nossos olhos. Arqueou os lábios em leve sorriso e finalizou: “A luz que se
manifesta em você através das infinitas transformações define o tamanho das
suas asas, a altura do seu voo e a distância da sua viagem. É a única bagagem
que poderá levar em sua sacola sagrada, o coração”.

“Permitir que a semente de luz cumpra todo o ciclo de árvore, flor, fruto e, de
novo, semente é a magia mais importante que cabe a todo e qualquer feiticeiro”.

O CAMPO DE BATALHA
O céu tinha amanhecido azul após dias cinzentos de muita chuva. Todos
pareciam alegres no mosteiro, menos eu. Um dilema pessoal me corroía e furtava
a minha paz. Sentado na cantina divagava a minha dúvida diante de uma xícara
de café e um pedaço de bolo de aveia quando tive os pensamentos interrompidos
pelo Velho, como chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Ele me convidou
para ajudá-lo a colher cogumelos na floresta no arredor do mosteiro. Explicou que
o sol forte após os dias chuvosos era perfeito para a germinação dessas iguarias
aos pés dos carvalhos da montanha. Acrescentou que pretendia fazer a sua
famosa sopa de cogumelos no jantar. Logo que entramos em uma trilha o monge
disse perceber a minha agonia e perguntou qual era o motivo. Expliquei que um
grande amigo tinha me convidado para acompanhá-lo durante as férias em um
acampamento de refugiados na África. Ele fazia parte de uma organização
internacional de médicos que prestava atendimento em várias regiões do planeta
onde havia carência de cuidados pela manutenção da vida. O Velho se virou para
mim enquanto andava com seus passos lentos, porém firmes, e disse: “É um
serviço maravilhoso e indispensável prestado por esses homens e mulheres,
médicos ou não, no esforço de levar um pouco de conforto e muita cura em
lugares onde há ausência de condições básicas de sobrevivência. Eu estive em
um desses acampamentos anos atrás, durante uma insensata guerra local e me
confesso encantado com a compaixão, a misericórdia e a generosidade
depositada em forma de amor incondicional. Apesar de tanta dor e sofrimento,
você entende a grandeza da vida e as maravilhas da superação no esforço de
fazer diferente e melhor”.
Expliquei que esse era o meu dilema. Eu entendia a beleza desse trabalho, no
entanto, me confessei sem vontade de ir. Essa divisão interna me agoniava.
Perguntei se eu estava errado em recusar o convite e a oportunidade. O Velho
parou, me olhou com doçura. procurou uma pedra banhada em sol, pois a manhã
ainda estava fria e se sentou. Depois, disse: “De jeito nenhum. Se afaste da
dualidade aparente entre o certo e o errado. Cada um elege as escolhas de
acordo com aprimoramento das virtudes que já lhe são inerentes. Essas decisões
também sofrem influências do dom, do carma e do darma. Há que se ter
entendimento e respeito por si e por todos; cada qual tem o seu campo de
batalha. Para cada coração uma viagem está reservada”.
Falei que não tinha entendido. O monge explicou com paciência: “Todos temos
carma e darma pessoais. Carma é o aprendizado; darma é o propósito de vida”.
Interrompi para dizer que agora entendia ainda menos. Ele sorriu e continuou:
“Estamos aqui para evoluir. Para tanto, temos que aperfeiçoar no âmago do ser
cada uma das virtudes que compõem a Luz a ponto de se tornarem inseparáveis
às escolhas. Em cada ciclo evolutivo passamos por quatro diferentes etapas:
aprender, transmutar, compartilhar e seguir. Atravessamos inúmeros ciclos
enquanto travamos no íntimo a grande batalha da vida ao iluminar as sombras
que nos habitam, em aproximar o eu-aparência, chamado de ego, ao eu-
essência, conhecido como alma, às conquistas da liberdade e da paz pessoais,
sempre com alegria, semeando a beleza do convívio consigo e com toda a gente.
Assim, pouco a pouco, despertamos todo o amor ainda adormecido em nós”.
“A cada existência trazemos as exatas lições que nos cabem naquele momento
da escala evolutiva. É o famoso carma. O carma está ligado ao entendimento do
valor das virtudes, à importância de cada uma delas para o aperfeiçoamento do
ser. Claro que podemos nos recusar ao aprendizado, afinal as escolhas são
livres. Aliás, é muito comum isto acontecer. Então, o carma se torna um educador
mais severo e o sofrimento acaba por inevitável. Não como forma de castigo
como muitos acreditam. Afaste a ideia de que carma é punição, isto atrapalha.
Sofremos por teimar em nos manter na ignorância, em ficar na escuridão, ao não
levar o ego para se encontrar com a alma, ao insistir nas escolhas vis e
inapropriadas. Uma parte de nós se mantém aprisionada a conceitos obsoletos e
conquistas de adoração social, enquanto a outra parte anseia por liberdade e
renovação. Então surge o conflito interno em razão dos interesses dissonantes ao
mesmo tempo em que a vida lhe frustra as ambições de sucesso e poder
calcadas nas conquistas materiais e prazeres primários, que mesmo quando
alcançadas não se traduzem em plenitude e felicidade. Acordamos no vazio;
como se perdidos no front sombrio da existência. Nos fechamos em esfera de dor
por não permitir a transmutação do ser na disposição de fazer diferente e melhor.
Mau-humor, irritação, impaciência, fuga da realidade por meio de ilusões e
diversões baratas, depressão, agonia, pânico e até outras doenças somatizadas
ao corpo são os sintomas mais comuns quando estamos desorientados no meio
da batalha. Onde há sofrimento significa a existência de olhares equivocados
sobre si mesmo e a vida. Isto leva às consequentes escolhas inadequadas
gerando a repetição dos ciclos educacionais. Aprender a lição oculta que o
conflito traz consigo, transmutar este aprendizado, dividir com o mundo o novo
ser que floresceu e seguir a viagem ao encontro da Luz é um método eficiente de
transformar o sofrimento em pó de estrelas, na beleza de cada ciclo de
aprimoramento. Lição internalizada, carma extinto por desnecessidade. Eis a
batalha a ser travada amorosamente com o desenvolvimento das virtudes, as
verdadeiras armas da Luz”.
“Os aprendizados são oferecidos através das relações e do convívio; o outro será
sempre o melhor espelho. Para atravessarmos a existência nos é permitido um
instrumento: são as sandálias do andarilho, a espada do guerreiro, o ancinho do
jardineiro. Essa ferramenta se chama dom. Trata-se daquela habilidade especial
que o torna único. Cada qual tem o seu, sem exceção. Esse dom tem que ser
usado tanto em prol do aperfeiçoamento pessoal como para semear a alegria e o
bem-estar no mundo. A começar dentro de si, depois, em casa, na família, no
trabalho, nas ruas, na aldeia e no mundo como ondas concêntricas que se
expandem em um lago até os confins do universo. Essas ondas são geradas não
apenas no convívio e nas relações pessoais, mas também através do seu ofício
ou arte. Aqui está o seu darma; é o seu outro campo de batalha; é a sua jornada
nesta existência no planeta, a incumbência de fazer germinar flores em um
pequeno pedaço do deserto”.
Interrompi o Monge. Pelo que eu tinha entendido havia dois campos de batalha. O
Velho arqueou os lábios em leve sorriso e concordou: “Sim, um interno e outro
externo. São pessoais e interpessoais ao mesmo tempo, em constante
comunicação. O burilamento do indivíduo se reflete na transformação do coletivo.
A sua batalha pessoal é a exata parte que lhe cabe na evolução da humanidade.
Não há outro método de avanço. O seu sofrimento ou alegria são as ondas que
você produz no lago cósmico. É a energia pessoal gerada a permear e atingir a
toda gente. Esta vibração pode ser leve e sutil ou densa e pesada, a depender
dos seus sentimentos, pensamentos e escolhas”.
Falei que achava tudo muito complicado. O Velho deu uma risada gostosa e
esclareceu: “Não, Yoskhaz. É tudo por demais simples e talvez por isto tenhamos
dificuldade em perceber. O dom se manifesta através de inúmeras possibilidades:
cuidar, curar, prover, abastecer, aplicar a lei com justiça, limpar, embelezar,
encantar, ensinar, administrar, cantar, escrever, construir, além de outras muitas
habilidades. O dom, seja ofício ou arte, é um instrumento de aperfeiçoamento
pessoal, além de uma ferramenta ao serviço do planeta. Todos são
indispensáveis e de igual importância, seja padeiro ou médico; governante de
uma nação ou professor do jardim de infância. A falta de um único parafuso é
capaz de enguiçar a máquina mais sofisticada. Tudo que é simples costuma ser
essencial”.
Comentei que a conversa era boa, mas não entendia como podia me ajudar
diante do dilema sobre acompanhar o meu amigo na sua viagem ao
acampamento de refugiados. O Velho explicou com paciência: “A viagem é dele;
embora grandiosa, não significa que seja a sua também. Embora a missão a que
se proponha seja das mais belas e necessárias, existem muitos outros problemas
carentes de mãos e sentimentos. Fome, epidemias, guerras, desmatamento,
injustiças sociais, extinção de espécies, demagogia, opressões e massacres de
toda ordem. Há sérias questões por todos os lados, frutos da ignorância, raiz de
uma enorme sombra coletiva e precisam de enfrentamento e solução. Convém
lembrar que os grandes problemas nascem de pequenos dilemas; crises globais
têm origem em conflitos pessoais. Precisamos de gente para cuidar das questões
individuais com o mesmo carinho e atenção com que nos dedicamos a solucionar
problemas planetários. O indivíduo não mais fragmentado em si, harmonizado em
sua essência, sabe que não existe felicidade pessoal gerada através do uso da
maldade e de seus subterfúgios. Ao ter atenção com a parte para que se
desenvolva em harmonia, preservamos o equilíbrio do todo. Assim, é de extremo
valor o trabalho comum do dia a dia, digno e honesto que sustenta e movimenta a
civilização. Em todos os lugares precisamos de gente disposta e compromissada
no exercício de suas capacidades e possibilidades. Uns complementam outros,
como um conjunto de vigas necessárias para manter erguida uma construção”.
“O exercício do darma pode ser local ou global. Cuidar da parte é curar o todo;
apagar um incêndio em uma família é tão valioso como costurar o tratado de paz
entre nações, apesar de não ter a mesma repercussão. Um problema pode evitar
o outro. O micro produz o macro”. Deu uma pequena pausa e disse: “É preciso
entender onde está o seu campo de batalha. Por todos cantos, seja dentro da sua
casa, onde os moradores abandonaram uns aos outros, ou nas ruas da cidade,
na qual a população resta esquecida pelos mandatários, os guerreiros do bom
combate serão sempre indispensáveis. Ser mãe e cuidar de um lar com carinho
pode ser tão complexo e importante como ser prefeito e administrar com cuidado
uma metrópole. Ambos são valiosos campos de batalha; cada um de nós com o
seu dom, carma e darma”.
Confessei-me perdido. Eu não sabia qual era o meu dom nem onde estava o meu
campo de batalha no mundo. O monge tentou esclarecer: “Escute o seu coração;
o seu dom habita no seu sonho”. Ao ouvir aquela frase não me contive. Falei que
essa expressão me irritava, pois dizia tudo e nada ao mesmo tempo. O Velho
manteve a serenidade: “Embora seja um dos ensinamentos mais valiosos,
tentarei de outra maneira: procure entender onde está a sua alegria, a atividade
que lhe enche de vitalidade, onde o desânimo parece incapaz de lhe alcançar.
Apenas não confunda o prazer do ego com a satisfação da alma. O dom são as
sandálias; o campo de batalha é a estrada. O amor será sempre o melhor jeito de
andar e a Luz é o destino final. Ao fazer assim, enquanto cuida de si estará
cuidando do mundo”.
Ele me olhou fundo nos olhos e finalizou: “Nunca deixe de oferecer o seu coração
ao campo de batalha. Lá também estará o coração do mundo. Cedo ou tarde
você os sentirá rufando como um único tambor. É a canção da vitória!”.

A PORTA ESTREITA

O Sermão da Montanha é o eixo central dos estudos da Ordem, todos os demais


textos, oriundos das mais diversas tradições filosóficas e metafísicas, são
variantes a aprofundar e colorir esse valioso pensamento. Eu estava sentado em
uma confortável poltrona na biblioteca do mosteiro, com o olhar perdido na bela
paisagem oferecida por suas janelas, refletindo sobre as palavras proferidas nas
colinas de Kurun Hattin, quando fui surpreendido pelo Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Ele trouxe da
cantina duas canecas com café, colocou uma delas na pequena mesa ao meu
lado e foi escolher um livro nas prateleiras. Sorri em agradecimento à gentileza e
o convidei para sentar na poltrona à minha frente. Aproveitaria que estávamos a
sós para conversarmos um pouco. Ele aceitou, se acomodou, bebeu um gole de
café e quis saber o que eu estava lendo. Respondi que lia esse precioso legado
filosófico, mais precisamente a parte em que falava sobre a porta estreita. “Entrai
pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçosa é a estrada que conduz à
perdição e numerosos são os que por aí entram. Estreita, porém, é a porta e difícil
o caminho da vida e raro são os que o encontram”, li o pequeníssimo trecho.
Comentei que o texto poderia ser um pouco mais extenso para fornecer mais
detalhes e explicações quanto ao seu conteúdo. O Velho balançou a cabeça e
disse: “O texto está perfeito em sua concisão. Lembre que ele foi elaborado não
para alguns, mas para todos. É preciso que, ao seu modo, atinja os mais diversos
níveis de consciência. Cada qual encontrará a profundidade a que estiver
disposto a mergulhar. O Sermão da Montanha é o Código do Caminho, porém
respeito quem o veja como uma grande bobagem”.

Perguntei por que a porta era estreita. O monge arqueou os lábios em leve sorriso
e disse: “A porta é estreita porque o ego é enorme; muitas são as
desnecessidades e inutilidades que ego insiste em carregar consigo, tornando a
viagem lenta, dolorosa e pesada”. Pedi para explicar melhor e o Velho foi
atencioso: “A raiz de todos os sofrimentos é a separação entre o ego e a alma.
Quanto mais distante um do outro, maior é a divisão do ser, numerosos serão os
conflitos e as agonias. A completa integração entre as partes é a plenitude
traduzida na paz de espírito que o manterá inatingível aos golpes e venenos do
mundo”.

“De um lado, temos a valorização das aparências que tanto encantam o ego; o
empoderamento das sombras, a alimentar o egoísmo, a vaidade, a arrogância, o
orgulho, o ciúme, a ganância, a inveja, os prazeres efêmeros e o desejo de
dominação sobre os outros. Todas essas emoções são frutos do medo e da
ignorância”.

“Do outro lado, temos a importância da essência do ser trabalhada pela alma, a
verdadeira identidade de todos nós; o amor como estrela-guia, a evolução como
objetivo, as virtudes como método de cura e libertação do espírito. São as flores
da luz”.

Eu quis saber como aplicar aquelas palavras ao cotidiano. O monge explicou:


“Fazemos inúmeras escolhas todos os dias, desde as mais corriqueiras como, por
exemplo, se vamos sorrir para o vizinho ou virar o rosto fingindo que não o vimos,
até as mais complexas como mudar de emprego, de país ou de estilo de vida. A
cada escolha ouviremos as orientações do ego ou os conselhos da alma. Assim,
a todo momento estamos definindo a porta pela qual entraremos”.

Questionei sobre a dificuldade da estrada sobre a qual o texto se refere. A


paciência do Velho parecia sem fim: “A dificuldade está em percorrê-la levando na
bagagem o enorme volume produzido pelos valores a que fomos condicionados,
nos quais as buscas espirituais, que devem ocorrer sem detrimento das
conquistas materiais no âmbito da sensatez, da necessidade e da ética, restaram
em segundo plano. Para viajar pela via da luz é preciso leveza. Não é fácil
percorrer a estrada de uma existência terrena disposto abrir mão do supérfluo, do
excesso, da fama vazia, do poder mundano de dominação, da ostentação que
tantos aplausos e reverências proporcionam. O brilho que aparenta ainda traz
mais admiração do que a luz que sustenta. Inverter os valores culturais nos quais
o perdão entre no lugar do ressentimento; a humildade dissolva o orgulho; a
justiça se torne um instrumento de educação e não mais de vingança; os
princípios seculares do Iluminismo, tais como igualdade e fraternidade,
substituam os teimosos privilégios ancestrais, são apenas alguns exemplos que
fazem o individuo bailar no ritmo do universo, mas na contramão dos costumes
sociais. Não haverá mais tapinhas nas costas nem paparico; no entanto, existirá
respeito e compaixão. Há uma enorme dificuldade em dizer para si mesmo que ‘o
rei está nu’; ou seja, que os valores que o orientaram até aqui são ilusórios e que
a verdade é diferente: a riqueza, o poder e a magia estão dentro, não fora de si.
Devemos privilegiar a bagagem que cabe no coração, como a alegria, a
dignidade, a liberdade e a paz”.

“A porta estreita é a passagem permitida apenas àqueles que escolhem caminhar


com o cajado das virtudes. Por necessidade evolutiva, o refinamento das virtudes
no ser é a jornada de aproximação e integração entre o ego e a alma, como
exercício de superação. A absoluta unidade entre o ego e a alma, indispensável à
plenitude, somente será possível para quem se dispõe à jornada do
autoconhecimento. Esta é a verdadeira batalha, assim iniciamos e seguimos no
Caminho”.

Comentei que eu era capaz de enumerar muitas virtudes: o amor, a justiça, a


pacificação, a mansidão, a generosidade, a gratidão, a dignidade, a sinceridade, a
honestidade, a compaixão, a misericórdia, a delicadeza, a doçura, a paciência, o
respeito, a harmonia, a pureza, a coragem, a alegria, ânimo, a firmeza, o bom-
humor, a humildade, a simplicidade, a esperança, a fé, entre outras que eu
pudesse ter esquecido naquele momento. O Velho deu de ombros e perguntou:
“Responda, não para mim, mas para você mesmo, quais delas você já traz
sedimentadas em si?”.

Abaixei os olhos e confessei que muitas vezes encontro desculpas para abdicar
das virtudes em minhas escolhas. O monge concordou: “O mundo sempre
oferece uma linha de raciocínio tortuosa para justificar os desejos do ego em
detrimento das necessidades da alma. Este é o trabalho incansável das nossas
sombras: os inúmeros truques para nos iludir quanto à verdade e nos afastar da
luz. Então, brigamos e sofremos. No entanto, temos o poder e a magia da vida”.
Interrompi para dizer que não acreditava em magos e magias. O Velho deu uma
gostosa gargalhada e disse: “Todos somos feiticeiros; magia é transformação.
Alteramos a realidade na medida em que aceitamos as transformações internas
orientadas pelos valores da luz que nos habita”.

Tornei a interromper para questionar sobre tais valores. O monge explicou:


“Aperfeiçoar em si cada uma das virtudes que você acabou de elencar é iluminar
e transmutar as sombras. Ao invés de brigar com as suas sombras, abrace-as
com carinho, reconheça as suas dificuldades e, como um pai amoroso que se
dedica à educação do filho, mostre que elas podem e devem evoluir, pois o ser
precisa se tornar uno por imperativo de evolução. Assim, aos poucos, afinamos
cada uma das virtudes, até que todas estejam alinhadas na consciência e no
coração. Este é o processo para o encontro da verdadeira paz e da autêntica
liberdade. Então, perceba como tudo se altera ao seu redor. Isto é pura magia”.
Falei que eu era uma pessoa pragmática e empírica. Pedi para ele explicar como
as virtudes, na prática, poderiam alavancar a minha evolução e fazer a diferença
no mundo.

O Velho não se fez de rogado: “A vida é farta em oportunidades. As virtudes


estão à espera do nosso comando, sempre dispostas a iniciar a jornada de cura e
libertação. Os exemplos são inúmeros:
Todas as vezes que o mundo acusar alguém, podemos avolumar a condenação,
afundando o infeliz em tristeza e culpa; ou resgatá-lo para a luz, mostrando a ele
a possibilidade e a responsabilidade de fazer diferente e melhor da próxima vez;

Quando estiver diante de um dilema entre a lei e a justiça, no qual o direito te


protege na medida que a justiça se afasta, renuncie aos privilégios concedidos
como exemplo sagrado de equidade;

Ter firmeza para estancar o mal, sem esquecer da compaixão e da misericórdia


em relação ao infrator. Precisamos nos afastar do terrível risco da vingança,
estágio de equiparação nas trevas. A justiça é uma virtude que se completa com
a educação e não com a mera punição;

Diante da ofensa, nunca esqueça que a humilhação é uma flecha de curto


alcance e não atinge quem voa com as asas da humildade e da compaixão.
Perdoe e siga em frente;

Diante das exigências das inevitáveis reformas sociais, traga sempre consigo a
mansidão. É aliada inseparável dos argumentos cristalinos. Não esqueça que as
transformações apenas se efetivam de dentro para fora do indivíduo, nunca ao
contrário. E acima de tudo, se o argumento é forte, lembre que o exemplo é o
definitivo de mudança;

O mundo precisa de mais diplomacia e menos julgamentos. Ao se deparar com


um conflito entre terceiros dispa-se do tentador papel de juiz; aceite a difícil
incumbência do diplomata a costurar a paz e o entendimento. Não raro, quando
duas pessoas discutem ambas têm razão, cada qual dentro do seu nível de
consciência, capacidade amorosa e esfera de interesses e dificuldades;

Nunca seja um muro na estrada alheia. Torne-se a ponte pela qual todos farão a
travessia sobre os abismos da existência terrena. Embora o Caminho seja
solitário, a viagem é solidária. Ninguém cumpre a jornada sem ajuda;

A alegria é a melhor maneira de agradecer por todas as flores que enfeitam a


vida. Por mais que você se recuse a vê-las, acredite, a beleza está por toda parte.
Possibilitar o sorriso de alguém é a mais poderosa das orações de gratidão e uma
valiosa magia; o bom-humor é uma constante nos espíritos iluminados. Não há
vaga para os ranzinzas no trem que leva às Terras Altas.

Jamais se lamente ou imponha aos outros a sua vontade. Apenas se transforme.


As virtudes estão aí para isto”.

O monge deu uma pequena pausa e concluiu: “Os bons exemplos não cessam
aqui, são infinitas as aplicações das virtudes como ferramentas da Luz a
transmutar as sombras individuais e coletivas. O aprimoramento das virtudes é
um eficiente método de evolução”. Comentei que era tudo muito difícil. O Velho
rebateu de pronto: “Por isso a porta é estreita e o a estrada exige esforço”.

Ficamos um bom tempo sem dizer palavra. Rompi o silêncio para me confessar
surpreso com a longa interpretação do monge em relação a um pequeno
parágrafo de tão poucas linhas. Ele deu de ombros e comentou: “O mergulho não
foi tão profundo. Podemos ir muito mais longe”. Acrescentei que toda essa teoria
era nova. O Velho me ofereceu um belo sorriso e a devida correção: “Não,
Yoskhaz! Toda a sabedoria é muito antiga e nasceu em tempos imemoriais. Ao
lado do amor, a sabedoria tem cultivado as sementes da luz e da verdade nos
campos da humanidade desde sempre. Nós é que teimamos em não aprender.
Repare que Jesus proferiu o discurso há dois milênios com a autoridade de quem
oferece a si mesmo como exemplo das suas palavras. Embora a porta seja
estreita, ela é a única entrada para o Caminho. A porta está à disposição de
todos, a qualquer momento; basta apenas uma escolha”. Deu uma pequena
pausa antes de fazer a observação final: “Repare a preocupação do universo para
conosco. Um pouco mais de mil anos depois do Sermão da Montanha, o mestre
pediu para que um dos seus mais valorosos apóstolos retornasse, para nos
lembrar não apenas sobre o poder do amor, a virtude maior, mas também para
mostrar a sabedoria transformadora das demais virtudes e sinalizar o Caminho”.
Interrompi para dizer que não sabia do que e de quem ele se referia. O Velho
fechou os olhos e cantarolou a oração ensinada por Francisco:

“...

Onde houver erro, que eu leve a verdade

Onde houver desespero, que eu leve a esperança

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria

Onde houver trevas, que eu leve a luz.

...”.

AS FERRAMENTAS DO AMOR

Quando o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da


Ordem, entrou na agradável biblioteca do mosteiro, eu estava imerso na reflexão
de um trecho do livro de parábolas de Rami. O monge retirou um livro da estante
e se acomodou em uma confortável poltrona ao meu lado. Reparei que era o
milenar Tao Te Ching ou o Livro do Caminho e da Virtude, de Lao Zi. Como
estávamos apenas os dois na biblioteca, ousei puxar assunto. Falei que, por
acaso, lia um livro que também abordava o valor das virtudes e, além de
enaltecer a coragem como uma delas, sentenciava que ‘o amor é para os fortes’.
O monge, com a sua voz sempre suave, foi lacônico em seu comentário: “Sim, é
verdade”. Discordei sob o argumento de que o amor, por toda a sua importância,
estava à disposição de todos, indiscriminadamente. O Velho me olhou com a sua
enorme paciência e disse: “Sim, também é verdade”. Balancei a cabeça e mexi as
mãos, como se esses movimentos pudessem amplificar as minhas razões, para
acrescentar que ele estava sendo incoerente: o amor era para todos ou apenas
para os fortes. Pedi para ele se decidir. O monge arqueou os lábios em leve
sorriso e começou a explicar: “Você confunde tudo, Yoskhaz. Não percebe que se
trata de coisas diferentes? Ou melhor, de situações em que o amor se apresenta
de maneiras distintas”?

“Sim, o amor está ao dispor de cada pessoa, pois, por ser a força que rege o
universo, repousa na essência de todos. O amor é a estrada e o destino. É a
virtude maior por estar presente em todas as demais virtudes ou elas deixam de
existir. No entanto, para viver o amor, ao menos em toda a sua extensão,
precisamos dessas outras virtudes como instrumentos de disseminação do bem.
Assim, permitimos, não apenas o desenvolvimento do próprio ser, mas a
propagação da luz por ele emanada até a mais distante das estrelas. O universo
agradece e nos retribui também em luz por gratidão e justiça”. Deu uma breve
pausa e prosseguiu: “O amor é a virtude indispensável nas transformações, logo,
sem ele não há evolução. No entanto, o amor adormecido em cada um de nós
precisa de trabalho para despertar e crescer nas adversidades. Amar quem nos
ama é fácil; amar quando as situações são favoráveis, muitos conseguem; amar
nas adversidades é permitido apenas aos fortes”.

Falei que não tinha entendido. O monge fechou os olhos, como se procurasse a
melhor palavra, e disse: “O amor é o alimento da alma; é o sagrado que nos
habita. Cada qual, em essência, é tão somente a centelha de amor que o
movimenta. Nada mais. No entanto, o amor que existe em cada um de nós é
como uma semente que precisa florescer para embelezar a si e frutificar para
alimentar ao mundo”, deu uma breve pausa e concluiu: “Não esqueça que
conhecemos a árvore pelos seus frutos”, lembrou de uma valiosa passagem do
Sermão da Montanha.

Comentei que como cada um oferece apenas o que possui, o indivíduo ama na
exata medida da sua capacidade de amar. O Velho concordou: “Não tenha
dúvida. Por isso a importância do desenvolvimento das virtudes, elas são as
ferramentas do amor. Evoluímos na medida que que aprendemos a utilizar esses
instrumentos. As virtudes se apresentam, desenvolvem e sedimentam no ser de
acordo não apenas do seu nível de consciência, mas, também, da sua
capacidade amorosa”.

De pronto, pedi para ele falar mais das virtudes. O Velho disse: “São muitas as
virtudes e o andarilho precisa aperfeiçoar todas em si. O amor, a sabedoria e a
coragem; a justiça, a honestidade, a compaixão, a misericórdia, a dignidade e a
sinceridade; a liberdade, a humildade, a simplicidade e a pureza; a paciência, o
respeito, a doçura, a delicadeza e a alegria são algumas dessas ferramentas
indispensáveis nos campos da evolução. Se você prestar atenção, perceberá que
as virtudes necessitam uma das outras para ganhar força e poder, fechando o
círculo de cura da vida. Embora cada qual pareça independente, elas se
completam em trabalho de indispensável solidariedade”.

Eu quis saber um pouco mais sobre o intercâmbio que integram as virtudes. O


Velho não se fez de rogado: “O principio básico ensina que o amor é a força que
deve orientar todas as nossas escolhas. Ou seja, nos movimentamos por amor ou
estaremos seguindo para o lado errado. Um pequeno exemplo: não raro,
assistimos a sabedoria sendo utilizada para enganar, manipular e conseguir
vantagens desonestas. Por sua vez, a coragem também está presente no ânimo
dos malfeitores quando da prática de muitos dos seus crimes absurdos. Estamos
acostumados a associar os heróis aos atos de bravura e inteligência nos filmes de
cinema, esquecendo que os bandidos também utilizam essas ferramentas para
executarem os seus planos terríveis. Qual a diferença entre eles? É que os heróis
se servem da sabedoria e a coragem para a prática do bem. Somente quando
revestidas de amor, a sabedoria e a coragem se tornam virtudes; sem amor,
sabedoria e coragem se desviam para as raias da esperteza e da brutalidade”.

Falei que estava achando o amor muito complicado. O monge deu uma gostosa
gargalhada e foi didático: “Para viver o amor precisamos entender o amor. É
indispensável desconstruir muitos dos conceitos que nos iludem quanto a esse
sentimento e começar a percebê-lo como ele é de verdade. Será necessário que
já tenha desenvolvido algumas virtudes como a sabedoria, o respeito, a
generosidade, a harmonia e a liberdade”. Pedi para ele citar alguns exemplos. O
Velho falou: “Entender de uma vez por todas que amor não é troca; que ninguém
sofre por amor; que ninguém pertence a ninguém; que ninguém tem a obrigação
de te fazer feliz, são apenas alguns dos condicionamentos que o impedem de
viver o amor em toda a sua amplitude. Para tanto, se faz imprescindível
descortinar o véu dos enganos proporcionado pelas sombras do medo, da
ignorância e da desesperança. Mas não basta perceber, é preciso enfrentar e
superar a si mesmo. E mais, é indispensável vivenciar e sentir tudo que se
aprendeu ou as lições não se completam. É necessário se despir das ideias
obsoletas e das reações automáticas que não servem mais. Se expor à rejeição e
às críticas daqueles que ainda não conseguem entender o que já é claro no seu
olhar. Deixar para trás muitas das coisas que até aqui se acreditou importantes,
mas que agora pesam por inutilidade. Encarar o espelho para enxergar as feridas
que sangram na alma e ter o firme propósito em se curar. Depois, oferecer o seu
melhor a toda a gente e, então, seguir em frente”.

Perguntei qual era a forma mais sublime de amor. O Velho respondeu de pronto:
“O perdão. O amor é para todos, mas apenas os fortes são capazes de perdoar
quem os ofendeu. Derramar um olhar de sincera compaixão sobre o seu agressor
e compreender que ele não foi capaz de fazer diferente e melhor. Não é fácil.
Sem esquecer que o perdão tem que ser um ato de sincera humildade, pois
temos as nossas próprias dificuldades e imperfeições; diferentes, talvez, daquelas
do oponente, mas mesmo assim, dificuldades e imperfeições. Em seguida,
envolver o ofensor em um manto de divina misericórdia por entender que todo
agressor é profundamente infeliz por se distanciar do bem e de todas as demais
energias derivadas do amor. É ainda mais difícil. Será preciso que você já tenha
travado algumas batalhas com as suas próprias sombras e transmutado boa parte
delas em luz. Trata-se de um ponto angular na transformação do ser. Isto torna o
perdão sagrado e libertador. Os fracos ainda estão à serviço das ideias sombrias
de revanche e sofrimento, vingança e dor; aprisionados, ao lado de quem os
magoou, em um canto escuro de si mesmo”. Então, perguntou fechando o círculo
com o início da conversa: “Entende por que o amor é destinado aos fortes?
Percebeu que para viver o perdão foram necessárias outras virtudes como a
compaixão, a humildade e a misericórdia? Além do amor, é claro”. Apenas
balancei a cabeça como resposta.
Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para agradecer e
dizer que eu começava a entender o valor e o poder das virtudes como
ferramentas evolutivas. Em seguida o Velho falou: “As virtudes são as armas
usadas pelo guerreiro do amor na grande batalha do universo, aquela que ele
trava todos os dias dentro de si. Este é o seu compromisso; vencer a si mesmo é
a vitória maior. A transmutação das próprias sombras se traduz em pura luz”,
piscou o olho como fazia ao contar um segredo e finalizou: “Todas as virtudes
estão adormecidas dentro de ti. Desperte-as e sinta a magia da vida nas tuas
mãos através de infinitas transformações”!

O DIA DA INDEPENDENCIA

Fiquei feliz ao ver a clássica bicicleta de Loureiro, o elegante sapateiro amante


dos vinhos e dos livros, encostada no poste em frente a sua oficina. Eu estava
mal. Uma série de acontecimentos, com diferentes pessoas, me faziam sentir em
um caldeirão de emoções que variavam entre a irritação e a tristeza. Fui recebido
com um forte abraço e alegria sincera. O artesão pediu para eu me acomodar
enquanto passaria um café fresco para animar a nossa conversa. Falei que
precisava desabafar e trocar ideias, pois parecia que o mundo havia criado um
complô contra mim. De uma hora para outra, muitas das minhas relações se
tornaram problemáticas ou frustrantes. Relatei alguns desentendimentos e
decepções que ocorreram há dias com diversas pessoas que eu muito presava.
Acrescentei que tudo acontecera ao mesmo tempo e arrisquei a brincar dizendo
que parecia karma. Loureiro repousou duas canecas cheias de café sobre o
balcão e disse: “Karma é aprendizado. Todo karma é um mestre que vai
aprimorar e fortalecer o aprendiz. Entendidas as lições o karma desaparece,
assim como aquele tipo de situação, até então recorrente, por não haver mais
razão de ela existir. Por outro lado, o Karma se prolonga, e até endurece, na
medida que nos recusamos a evoluir. Se a vida é uma universidade, o karma se
resume nas matérias que devemos cursar”.

“Quando o mundo inteiro parece se opor a nós, não raro o problema está dentro
da gente”. Fiquei indignado. Falei que as pessoas estavam me maltratando e ele
dizia que o erro era meu? O sapateiro não se alterou. Com a voz sempre suave
explicou: “Não se trata de saber quem está certo ou errado, isto não tem
importância, pois fala apenas ao ego, jamais a alma. Trata-se de uma mudança
de olhar sobre a vida, de se permitir uma nova postura em relação a todas as
coisas, de não autorizar qualquer pessoa a ter nenhum poder sobre você,
principalmente o direito de lhe fazer sofrer”, deu uma pausa e acrescentou: “Está
na hora de você dar seu grito de independência”.

Cheguei a balançar na cadeira entre o desconforto e o interesse. Pedi para ele


prosseguir o raciocínio. Loureiro arqueou os lábios em leve sorriso e disse:
“Todos querem ser amados e aceitos. A maneira mais fácil e, também, a mais
rasa é que concordem conosco, nos aplaudam e nos digam o quanto somos
maravilhosos e importantes. Mas ainda bem que a vida não é assim, caso
contrário viveríamos em estado de completa estagnação e total hipocrisia. Um ser
atento à evolução trata a contrariedade e a decepção como ferramentas de
aperfeiçoamento e provas de maturidade, nunca como causas de tristeza ou
ressentimento”.

Pedi para ele explicar melhor. O meu bom amigo foi didático: “A origem de tanto
sofrimento é o simples fato dos outros não corresponderem as nossas
expectativas. Esperamos algo de alguém e essa pessoa nos entrega uma coisa
bem aquém do desejado”. Me mostrou um olhar firme e perguntou: “Não é
assim”? Sacudi a cabeça em concordância. Argumentei que as pessoas devem
se relacionar com a mesma sinceridade e amor que oferecemos a elas. Loureiro
arqueou as sobrancelhas e disse: “Esse é o grande equívoco. Cada qual apenas
entregará na exata medida das suas possibilidades, de acordo com o grau de
entendimento e grandeza dos sentimentos. Nem mais nem menos. Você
esperava flores de alguém que lhe entregou pedras? Ora, era o que ele tinha em
seu coração naquele momento. Como esperar flores de um jardim deserto em
amor? Esse é o momento para você agir com sabedoria e retribuir com uma
suave chuva de compaixão. Caso contrário, você restará algemado a uma
corrente energética estéril de virtudes e luz”. Deu uma pausa e concluiu o
argumento sobre ótica diversa: “Por outro lado, muitas vezes desejamos flores
que não merecemos. Nunca esqueça de pensar diferente e agir melhor na
próxima vez. É a parte que nos cabe em todas as relações. Sempre é possível e
é um excelente exercício da escalada evolutiva”.

“Exigimos o melhor dos outros e desejamos ser compreendidos pelas nossas


limitações e justificativas. Esta é a raiz dos conflitos. A estrada da paz é inverter a
equação: oferecer o nosso melhor e ter boa dose de tolerância com a dificuldade
alheia”.

Falei que a teoria era boa, porém não explicava tudo. O artesão concordou: “Você
tem razão, falta outra questão: a independência emocional”. Tornei a interromper
para dizer que não tinha compreendido. Ele falou: “Se você não for dono de si,
das suas emoções, nunca terá qualquer controle sobre a própria felicidade. Quem
não é senhor de si será escravo da aprovação alheia. Quando recusamos a
entender quem somos, não conseguimos harmonizar as emoções mais densas
que nos habitam. Sem transmutá-las nunca conheceremos a paz. Aceitar o
desafio de enfrentar as tempestades de si mesmo é recuperar o leme da vida ou
continuará um barco à deriva, a mercê dos rochedos do desespero”.

“Todas as vezes que ficamos irritados ou tristes significa que começamos a


perder a batalha para as sombras, individuais ou coletivas. Não podemos exigir
do mundo a perfeição que não temos para oferecer. A paciência nem sempre é
apenas um ato de generosidade, mas, principalmente, de humildade. O indivíduo
desperto aproveitará desde logo toda contrariedade existente dentro de si como
adubo para cultivar as flores que ainda não existem em seu jardim. São os
jardineiros da luz”.

“Somos condicionados a transferir aos outros a responsabilidade que nos cabe


por eventual insucesso. Se somos infelizes a culpa é do mundo, não é assim?
Tentamos explicar a própria imperfeição na imperfeição alheia. Negamos o
espelho para não ver as incompletudes que sangram como feridas abertas.
Então, criamos as dependências emocionais como antídotos para retardar a dor
da insegurança e do medo que envenenam a verdade. Quando o mundo nos
deixa em abstinência, sem suas doses de aprovação, tudo escurece e a vida
ganha um sabor amargo”. Deu uma pausa e concluiu: “O resultado desse
comportamento é nos tornarmos viciados pelo ‘sim’ e pelos aplausos daqueles
que nos cercam. Claro que tem uma hora que a droga perde o efeito ou some do
mercado. O efeito colateral inevitável é a melancolia ou a mágoa. Assim a
humanidade adia as lições contidas em todas as suas relações e se torna chata
por tantas lamentações”.

Perguntei se ele achava que eu estava chato nos últimos tempos. Loureiro deu
uma gostosa gargalhada e respondeu com honestidade: “Muito”! Diante da
fisionomia contrariada que logo mostrei, o artesão acrescentou: “Você anda
reclamando de tudo ultimamente. Quando achamos que o mundo está fora de
lugar é porque ainda não encontramos o nosso lugar no mundo. Este lugar existe
de acordo com a sua capacidade de equilibrar ideias e emoções em si mesmo.
Quando tudo parece incomodar, não tenha dúvida, há algo de errado dentro da
gente. É hora de alinhar o que resta embolado. Ou não conseguiremos seguir”.
Teimei em sustentar que eu era um homem feliz. Ele me olhou com compaixão e
disse: “Quem traz a felicidade em si não perde tempo nem energia reclamando da
vida, pois está ocupado com as próprias asas, empenhado em aproveitar a
viagem”.

Admiti que ele poderia estar certo, mas confessei não saber por onde começar.
Loureiro me observou como quem olha a um filho e disse de jeito doce: “Siga a
cartilha básica: um bom início é parar de se lamentar; deixe de apontar os
defeitos alheios; abandone a tolice de modificar alguém; nunca transfira a
responsabilidade pelas suas frustrações. Estes são os degraus da maturidade,
pressuposto fundamental para liberdade”. Bebericou um gole de café antes de
concluir: “Caso contrário você abdicará do controle que tem sobre a própria paz e
o entregará aos outros. Este é o motivo da serenidade ter se tornado artigo raro
nas ruas”.

“Ser livre é ter autonomia sobre as suas ideias e emoções. Ser pleno é entender
que ninguém depende de ninguém para viver a felicidade”.

Comentei que todos anseiam os aplausos do mundo pela dificuldade em lidar


com os próprios erros. O sapateiro argumentou: “Apenas quando falta humildade
e simplicidade para reconhecer a condição de aprendiz. Seja justo consigo diante
do erro, tenha a responsabilidade de reparar no que for possível e assuma o
compromisso perante a si mesmo de agir de outra maneira na próxima
oportunidade. Sem sofrimento ou tortura, pois estes são instrumentos das
sombras que paralisam e descontrolam. Siga em paz, o universo, em seu infinito
amor, lhe permitirá a oportunidade de mostrar, em algum momento, que a lição foi
aprendida”.

Loureiro se levantou para colocar mais café em nossas canecas. Insisti que não
sabia como começar as mudanças. Ele, de pé, sentenciou: “Transforme as velhas
formas”! Falei que não entendia exatamente o que significava aquela expressão.
O artesão, tornou a sentar e explicou: “Ao invés de lamentar o desencontro,
aproveite o conflito para construir a paz. Isto é fonte de luz. No lugar de atribuir
culpa aos outros, aceite a responsabilidade pela própria evolução e as lições
inerentes à vida. Isto é parte do Caminho. Somente os tolos desejam mudar o
mundo, os sábios transformam a si mesmo na certeza de que tudo mais virá por
afinidade. Por fim, nunca conceda a ninguém o poder sobre a sua paz. Esta é
uma das muitas escolhas que lhe pertencem. Nas escolhas residem o seu poder,
no aperfeiçoamento das virtudes você conhecerá as suas asas”.

Loureiro me ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “Não esqueça que não é o


mundo que define a beleza da sua viagem, mas a força que você traz no coração.
Esta força cresce na medida em que você depura, pouco a pouco, todas as
virtudes em si; no mais, restam apenas os comentários, incapazes de impedir a
sua jornada”. Me olhou nos olhos e disse: “Não é preciso autorização nem há
limites para quem voa impulsionado pelos ventos das próprias virtudes”.

EU E O OUTRO

O garçom abriu a garrafa e gentilmente completou as nossas taças. Eu estava em


um daqueles dias em que sentimos vontade de conversar sobre a vida e ouvir a
opinião de quem respeitamos. Um tio muito querido, que passara recentemente
por situações difíceis e que não estava sabendo equacionar o seu lado
emocional, me trazia preocupações. Aproveitei que tinha ido à pequena e secular
cidade situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro e convidei o Loureiro,
o elegante sapateiro, amante dos vinhos e dos livros, para uma conversa. Os
tintos e os de filosofia eram as suas predileções. Remendar o couro era o seu
ofício; costurar a vida, a sua arte. A taberna estava vazia e silenciosa, bem ao
fundo podia-se ouvir uma rádio que tocava jazz, nada que nos fizesse aumentar o
volume baixo da voz. Relatei ao bom artesão os fatos que se sucederam com
esse tio, de quem eu muito gostava e que fora bem próximo de mim na infância e
na adolescência. Ele perdera o único filho em um acidente e, em seguida e em
razão disto, o seu casamento entrara em crise, culminando no divórcio. Eu tinha
estado com ele e o encontrara bastante depressivo, com a clara expectativa de
que eu tirasse férias das minhas atividades profissionais e largasse o meu serviço
na Ordem para ir ampará-lo. Se por um lado eu sentia vontade de ajudar, por
outro não queria modificar a minha vida a tal ponto. Enfim, eu estava dividido.

Loureiro bebeu um gole de vinho e soltou um suspiro de aprovação. Era uma boa
safra. Depois me mirou nos olhos e falou sobre o meu tio: “Quando não sabemos
nos relacionar com as próprias emoções a razão costuma se perder na floresta
escura do desespero. A falta de maturidade em enfrentar os problemas que se
apresentam, apenas revelam o despreparo daquele espírito em aprender as
lições que lhe cabem”. Questionei quais os aprendizados poderiam caber nas
situações que o meu tio vivenciava. O sapateiro respondeu com tranquilidade:
“Não faço a mínima ideia. Eu estaria sendo leviano se pretendesse apontar as
lições alheias no Caminho ou arrogante ao tentar elencar as soluções objetivas
do mundo. Somente sei que conflitos surgem para alavancar a nossa evolução. É
como os mestres se disfarçam para oferecer os valiosos ensinamentos depois
que nos recusamos em aprendê-los de maneira mais suave. É o universo, em
profundo gesto de amor, revelando que não desistirá de nenhum de nós”.

Falei que vinha rezando para que ele tivesse a devida ajuda para enfrentar o
momento tão complicado. O artesão disse: “A oração é muito valiosa e, saiba,
nunca faltará ajuda das esferas invisíveis. Nunca. Apenas não esqueça que ela
não virá na medida dos desejos, mas das justas necessidades. Assim, como não
farão a parte que cabe ao indivíduo. É exatamente esta parte que trará a
transformação do olhar e do viver, permitindo o devido aprendizado, o necessário
fortalecimento e, por consequência, que ele atinja, aos poucos, o equilíbrio
indispensável à paz”.

Reiterei que eu tinha dúvidas quanto a que comportamento adotar. Por um lado, o
meu tio se afundava em uma tristeza cada vez mais profunda. Por outro, eu
queria viver a vida que havia escolhido para mim. Eu amava o meu tio, mas
também amava os meus sonhos. Cuidar dele, ao menos como ele desejava,
significava abdicar de uma parte importante de mim mesmo. Falei que entendia
que eu teria que fazer uma escolha. Loureiro franziu as sobrancelhas e disse com
seriedade: “Sempre temos que fazer escolhas, afinal esta é a única maneira de
aperfeiçoarmos o espírito. Nossas escolhas nos definem e o convívio social é
onde residem as grandes provas. Até aonde devo ir para atender o outro e qual o
ponto em que devo parar para cuidar de mim é uma questão que sempre trouxe
questionamentos e conflitos emocionais”. Bebericou mais um gole de vinho e
acrescentou: “No final dos anos 1960, Fritz Perls, um psiquiatra alemão, pioneiro
de uma terapia denominada Gestalt, cunhou a seguinte regra comportamental:
‘Eu sou eu, você é você. Eu faço as minhas coisas e você faz as suas coisas.
Não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas. E nem
você está para viver de acordo com as minhas. Se por acaso entrarmos em
sintonia, será lindo. Caso contrário, não há o que fazer’”.

De repente tudo pareceu clarear na minha mente. Perguntei se o sapateiro


acreditava ser válida aquela regra. Ele respondeu: “Claro”. Eu abri um enorme
sorriso e falei que agora a vida se tornava mais simples. Levantei a taça e brindei
dizendo que cada qual aprendesse a cuidar de si. Bebemos. Em seguida,
Loureiro disse: “Aí mora o problema”. Perguntei do que ele falava, pois tinha
achado genial e esclarecedor o ensinamento da Gestalt. O artesão explicou: “De
fato é uma excelente lição e nos ajuda na tomada de decisões. No entanto, a vida
não é cartesiana, de tamanha racionalidade que nos permita descartar os
sentimentos. Se o que nos define são as nossas escolhas, o que nos aperfeiçoa é
a dose de amor e sabedoria embutidas nelas. Equilibrar o cuidado que cada um
tem que ter consigo mesmo e o carinho necessário ao outro é a perfeita obra de
arte cuja a matéria-prima é tão somente a própria vida. É o que diferencia aqueles
que vagueiam em busca de brilho daqueles que caminham rumo à luz”.

“Imagine a sua vida como uma enorme pedra de granito. O amor e a sabedoria
são o martelo e o formão. Transformar a rocha disforme em uma bela escultura é
a arte maior que pode existir”.
Desanimado, repousei a taça na mesa. Tudo tornara a complicar. Perguntei, de
novo, se acreditava ou não na regra do terapeuta alemão. Loureiro arqueou os
lábios em leve sorriso e disse: “Sim, já te falei que é uma sólida base para se
posicionar quanto às relações pessoais. No entanto, deve ser usada com
sensibilidade para que não forje o efeito contrário”. Piscou um olho e disse com
jeito gaiato: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Pedi para ele explicar
melhor e o sapateiro não se fez de rogado: “A essência, por ser mais importante
do que a forma, pode desconstruí-la”. Protestei. Eu agora entendia menos ainda.

O bom artesão se esforçou para ser didático: “Todas as coisas boas podem ter
um mau uso. Eis a premissa básica nos relacionamentos: ninguém é responsável
pela felicidade de ninguém. Cada qual deve aprender a construir a paz e a
encontrar a alegria dentro de si mesmo, pois a plenitude não está em nenhum
outro lugar. Isto nos torna absolutamente independentes”. Deu uma pequena
pausa e prosseguiu: “Porém, é impossível desfrutar do mel da vida sem o
compartilhar, pois o outro é elemento fundamental na medida em que trará as
lições necessárias ao processo evolutivo, em constante troca de conhecimento e
afeto. É no trato dos relacionamentos, na maneira como reagimos ao que nos
fazem, que entendemos onde estamos e o que nos falta alcançar. Porém, para
seguir em frente, temos que compartilhar o que possuímos de melhor:
sentimentos puros e sabedoria despretensiosa, verdadeiramente humilde. As
nossas melhores virtudes. Todo o resto é efêmero. Sem o outro não podemos
exercitar o que temos de melhor; logo, não conseguiremos evoluir. Sem o outro
não conseguiremos sair do lugar. Isto nos torna necessariamente solidários”.

Independente e solidário, ao mesmo tempo. Esta á a complexidade e a maravilha


da vida. Ser ou não ser, lembrei do célebre bardo inglês. O artesão concordou:
“Esta é a questão; afinar a alma no diapasão do universo é a resposta. Se por um
lado abraçarmos a regra da Gestalt de modo indiscriminado, afundaremos em
nefasto egoísmo. Por outro, se nos dedicarmos a atender somente as
expectativas alheias, restaremos aprisionados em terrível relação de dependência
afetiva”.

Falei que agora entendia menos ainda. O sapateiro explicou: “O andarilho não
deve se recusar a atender quem lhe pede ajuda no Caminho. No entanto, não
deve se desviar da rota, assim como o auxílio não pode ir além da exata
necessidade do outro. Caso contrário, não o estará ajudando, mas
enfraquecendo. É como um filho que diz para mãe não saber como fazer o dever
da escola. Ela pode dizer que o problema é dele, pode fazer o dever para o
menino ou pode ensiná-lo a fazer. São três escolhas possíveis. Na primeira, o
filho pode se esforçar para cumprir com a sua obrigação em belo exemplo de
superação, mas pode, também, tomar desgosto pelos estudos em consequência
da sensação de abandono. Em qualquer das hipóteses restará uma lição de
egoísmo. Na segunda opção, a mãe estará alimentando as expectativas do
menino, que ganhará mais tempo para brincar, se sentirá protegido e amado, mas
se acostumará ao menor esforço para evoluir. Restará um fraco. Caso a mãe
escolha a terceira via, ensinará ao filho que todos, em algum momento, precisam
de ajuda e o auxílio deve existir no limite exato de cada necessidade para que
permita a cada qual as próprias asas, ou não será possível ir a lugar nenhum.
Aqui restará uma semente de amor para germinar um forte. Deu uma pausa e
concluiu: “É o caminho do meio a que Buda se referia”.

“A caridade, a compaixão e a misericórdia são indispensáveis a cada um e a


todos. Da mesma maneira, para que uma boa virtude não tenha mau uso, não se
pode permitir que o necessitado, após o atendimento da fase emergencial,
abdique da determinação e coragem para superar por si mesmo os inevitáveis
obstáculos do processo evolutivo. É a parte que cabe a ele. Ou o ciclo da ajuda
não se completará”.

Falei que começava a entender as fronteiras tênues dos relacionamentos. O


elegante artesão acrescentou: “Oferecer o melhor é a regra de ouro, sempre no
limite da sua capacidade, entendimento e vontade. Atento para que o auxílio não
descambe em dependência, na qual, algumas vezes, as boas ações se perdem.
A necessidade do outro em reagir positivamente ao problema, em fazer a parte
que lhe cabe, deve sempre ser exigida na esfera da sensibilidade do andarilho,
que não pode esquecer que todos os movimentos devem primar pela evolução”.

Confessei que sentia um pouco de culpa todas as vezes que considerava a


hipótese de limitar a minha ajuda. Loureiro balançou a cabeça, como quem diz
entender as minhas palavras e explicou: “Entender a diferença entre culpa e
responsabilidade é primordial. A culpa é uma poderosa sombra que aprisiona
ambas as partes em relação doentia que transforma afeto em vício e, portanto,
deve ser iluminada para se transformar em responsabilidade. A responsabilidade
é o perfeito equilíbrio entre a independência e a solidariedade que deve existir em
todos os relacionamentos, na clareza da percepção do andarilho em sentir a
beleza de compartilhar e o cuidado para que o outro faça a parte que lhe cabe
para que possa aprender, se transformar e, um dia, aquele que foi atendido irá
devolver em amor aquilo que já foi dor. A responsabilidade engrandece e liberta.
Só, então, poderá seguir. Cada qual ao seu tempo”.

Ficamos um tempo em silêncio que não sei precisar. O artesão levantou a taça
em brinde e finalizou aquela noite: “À riqueza que há em todas as nossas
relações. Consigo mesmo e com todos no mundo, que tanto aperfeiçoam e
ensinam a transformar lágrimas em sorrisos”!
A REVELAÇÃO

A minha primeira fase como discípulo na Ordem foi representada por muitas
perguntas a respeito dos mistérios que envolvem a vida. Algo que sempre
considerei positivo, pois me impulsionava a reflexão e também me ensinou muito
sobre paciência e serenidade, pois as respostas apenas são permitidas quando
estamos prontos para entendê-las. Não que elas sejam negadas, mas pelo motivo
de não conseguirmos vê-las, como se um manto de invisibilidade as envolvessem
até que mudem os nossos olhos. Eu tinha terminado de varrer o jardim e antes de
seguir para a biblioteca do mosteiro passei no refeitório para pegar uma caneca
de café. Livros e café é uma combinação que sempre adorei. Encontrei com o
Velho diante de um pedaço de bolo de aveia, com um olhar distante. Pedi licença
para interromper os seus pensamentos e me sentar ao lado para um pouco de
conversa. Ele me autorizou com um doce sorriso. Falei que tinha lido um poema
atribuído a um antigo alquimista persa que relatava a conversa entre um
caravaneiro e um grão de areia. Havia uma parte que muito me intrigava:

“Grão de Areia: Eu sou o deserto.

Caravaneiro: Não, você é apenas parte do deserto. Sem você, o deserto


continuará a ser o deserto.

Grão de Areia: Engano. Na minha falta o deserto restará incompleto e viajará à


minha procura.

Caravaneiro: Você devaneia entre a soberba e a loucura.

Grão de Areia: Entendo o seu julgamento. Cada qual o faz com os olhos que
possui no momento. Acredite, ver é uma arte.

Caravaneiro: Diga-me, o que não percebo?

Grão de Areia: A fonte em que bebo. Não há o todo sem a parte.

Caravaneiro: Simples assim?

Grão de Areia: A parte traz o todo em si; eu trago o deserto em mim.

Para conhecer o deserto há que se desvendar o grão.

Este é o poder e a revelação”.

Ao final, sob o olhar atencioso do monge, perguntei que revelação era essa a que
se referia o artista. O Velho deu de ombros e disse: “Posso explicar uma equação
matemática, nunca um poema. Ao contrário da exatidão da ciência, a arte fala a
linguagem do apreciador: pode dizer muito ou nada”. Emburrei. Comentei que ele
não estava me ajudando muito. Fiz menção de me retirar quando fui travado por
sua voz serena: “Faço o melhor que posso, não tenha dúvida. No entanto, o
Caminho exige que cada qual ande com as próprias pernas. Esta é a razão de ele
existir”. Discordei. Acrescentei que ficava bem mais simples se todas as
‘verdades’ e ‘revelações’ nos fossem entregues devidamente decodificadas, sem
quaisquer mistérios, como uma tabuada. Facilitaria a vida de todos. O Velho
sorriu e disse: “A verdade está disponível, à vista de todos e jorra em abundância.
Mas o que fazer diante de olhos desatentos ou que se negam a ver? O mistério é
apenas a verdade que ainda não conseguimos entender”. Interrompi para que ele
me dissesse o que me faltava aprender para que os mistérios se revelassem. O
monge, com sua enorme paciência, disse: “Entender é apenas o passo inicial”.
Pedi para ele aprofundar, fui atendido: “Existe uma grande diferença entre
conhecimento e sabedoria. O conhecimento é a verdade intelectualizada; a
sabedoria é a verdade sentida e vivida. Amo os livros e venero os professores,
eles são essenciais. Mas não bastam. A informação para deixar de ser pão de
vitrine e se transformar em alimento tem que passar dos olhos à boca. Ou uma
vida inteira que poderia ser nada será. É a parte que cabe ao aluno. Isto o
transforma em andarilho”.

Pedi para que ele me mostrasse a famosa ‘verdade’, pois eu tinha dificuldade em
encontrá-la. O Velho me olhou nos olhos e disse: “Assim como grão de areia traz
em si todo o deserto. Todo o universo habita em você”. Insisti que ele não estava
me ajudando. Argumentei que eu era povoado por dúvidas e não sabia como
saciá-las. O monge sorriu e falou: “Cada qual tem todas as respostas para as
suas perguntas. Basta amor e coragem para buscá-las. Você é parte do todo; o
todo habita em você”. Balancei a cabeça em negação e disse que aquilo era uma
piada de mau gosto. O Velho mordiscou mais um pedaço de bolo e pediu que lhe
servisse uma xícara de café. Depois explicou: “Toda a filosofia de Sócrates é
fundamentada na frase insculpida no pórtico de pedras da Ilha de Delfos:
‘Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade’”.

“O sábio grego sustentava que na medida que mergulharmos na viagem do


autoconhecimento encontraremos todas as imperfeições do mundo, que tanto nos
incomoda, escondidas em cantos escuros do próprio ser. Na sala de espelhos
veremos os inconfessáveis defeitos alheios sangrando em nossa pele.
Entenderemos que criticamos os outros apenas por ignorância quanto ao que
somos. Somente o entendimento de si permite o entendimento do outro, do
mundo e da vida. As mudanças que tanto desejamos quanto a tudo e todos que
nos cercam apenas serão efetuadas na medida das transformações pessoais que
tenhamos condições de oferecer. Perceber as próprias imperfeições permite não
apenas realizar as mudanças indispensáveis no próprio ser, mas concede,
também, um olhar amoroso em relação às dificuldades alheias. Entender quem
somos de verdade nos ensina a beleza do perdão, a arte da paciência e,
principalmente a sabedoria do amor, na fusão de todas as virtudes em
maravilhosa explosão de luz”.

Dei de ombros e argumentei que eu poderia simplesmente me negar em buscar a


verdade e a revelação dos mistérios.

O monge repetiu o mesmo gesto e também deu de ombros para falar: “Claro que
pode. Somos absolutamente livres para exercitar as nossas escolhas. Esta é a
infinita generosidade do universo. Apenas não esqueça que há um código não-
escrito que regula a vida em todos os planos de existência. A lei da ação e reação
é uma delas, para que vigore a perfeita justiça e permita a cada qual definir o
próprio destino com suas dores e delícias; méritos e responsabilidades. Portanto,
quando algo não estiver bem, não lamente. Transforme-se”.

“Negar a viagem é insistir na estagnação. Tudo que resta parado tende a


apodrecer. E quando falamos da alma nos referimos a agonia oriunda da falta de
entendimento sobre o mundo que o cerca, traduzida na ignorância de si mesmo.
Colorimos o mundo na medida que mudamos os nossos olhos; as transformações
planetárias acompanham os passos das metamorfoses individuais. Quando o
sofrimento transcende ao espírito pela demora na cura acaba por se revelar em
desajustes no corpo físico e mental. Todo desequilíbrio é um chamado do
Caminho. Aceitar o convite, uma escolha”.

“ ‘Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade’ é o princípio filosófico de Sócrates


a nos influenciar até os dias atuais. Como se não bastasse, cerca de mil anos
depois, um grande mestre conhecido pelo nome de Jesus, nas montanhas de
Kurun Hattin, profere o mais profundo discurso de que a humanidade tem notícia.
Entre muitas lições valiosas, complementa o antigo raciocínio: ‘Conhecei a
verdade e ela vos libertará’”.

Eu quis saber de qual liberdade se referia. O monge respondeu de pronto: “As


prisões sem grades, aquelas em que não nos percebemos cativos, o que as
tornam ainda mais cruéis por perenizarem o sofrimento que esgarça e maltrata. O
veneno, embora percebido nos frutos, tem a sua causa na raiz. É lá que deve ser
derramado o antídoto. Então, a necessidade do mergulho profundo no âmago do
ser para curar na essência a ferida que sangra. Isto é libertador, pois não apenas
sara, mas desperta a consciência e expande a capacidade amorosa; permite que
floresça o melhor que nos habita; modifica o olhar para que a vida se ofereça com
cores alegres e, até então, desconhecidas”.

“A verdade é a sua melhor parte; abraçá-la, a sua grande arte. É o lado oculto do
ser, que aguarda esse encontro para se revelar”.

“O encontro consigo mesmo é a reconciliação com a face esquecida, a parte que


será desperta e o reconciliará com o todo. É o poder do universo nas suas mãos”.
Fez uma pequena pausa antes de perguntar: “Consegue dimensionar tamanha
força”?

Ficamos um tempo sem dizer palavra. Eu precisava acoplar as ideias. Ainda um


tanto desconcertado, comentei que pelo que eu tinha entendido, me libertar de
todo o sofrimento era uma decisão íntima ao alcance de todos. O Velho sacudiu a
cabeça em anuência, ofereceu um belo sorriso e disse: “Percebe o infinito amor
que nos envolve? A perfeita justiça? A dimensão da liberdade? O universo
oferece a cada um de nós todo o seu poder, afinal se somos o grão, somos o
deserto. A sua força nos habita. Basta ouvir o ritmo de seus tambores para vibrar
na mesma sintonia. Aprenda a usá-la”!
A LEI DOS CICLOS

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro,


tinha sido convidado para ministrar uma palestra em prestigiosa universidade.
Nessa época, eu era o discípulo designado a acompanhá-lo. Ao final de seu
discurso, como de costume, respondia a uma infinidade de perguntas. Sua
abordagem sobre os vários aspectos da vida era sempre desconcertante. Dessa
vez, não foi diferente. Ele atendeu a todos com carinho e paciência. Já no metrô,
de volta ao hotel, uma mulher veio falar conosco. Explicou que tinha assistido à
palestra e nos chamou para almoçar. Brincou ao dizer que era uma maneira de
arrancar mais um pouquinho do monge. Aceitamos, e fomos para um restaurante
próximo. Já acomodados, ela falou um pouco sobre a sua vida e se lamentou que
determinada situação sempre se repetia, como uma história que insistia em ser
recontada infinitas vezes, algo que a entristecia e lamentou o próprio carma. O
Velho a olhou com bondade e disse: “Penso que há um equívoco em relação ao
entendimento do que os antigos denominaram como carma. Hoje em dia, falam
como se significasse uma punição. Não, de jeito nenhum. Carma é aprendizado”.

“Não faz sentido que o Universo, com toda generosidade e mestria, tenha
qualquer outra intenção, salvo a de nos aperfeiçoar. Muitas vezes a lição
endurece em razão da teimosia ou do embrutecimento do aluno. Lição aprendida,
carma extinto. Simples assim”.

“Isso explica as dificuldades do Caminho e nos permite entender que podemos


modificar o trajeto quando transformamos o nosso jeito de andar. As intempéries
do percurso apenas espelham as tempestades internas que cada qual carrega na
bagagem. Isto torna você responsável pela pacificação dos conflitos que surgem,
pois na verdade retratam apenas as suas próprias sombras que precisam ser
iluminadas. Este compromisso é pessoal e intransferível”.

A mulher falou que o vocabulário do monge era bastante peculiar e que não
conseguia entender o que ele queria dizer e onde tudo se aplicava ao caso dela.
O Velho bebericou um gole de água e disse: “Quando determinada situação
insiste em se repetir, de maneira igual ou parecida, significa que estamos sob a
influência da lei dos ciclos”.

A mulher disse que agora entendia menos ainda. O Velho sorriu e explicou com
paciência: “O Universo é regido por um código de leis não-escritas que baliza e
impulsiona a evolução de todos nós. Independente do plano que nos
encontramos, somos regidos por condições inexoráveis que estabelecem o
próximo conflito que vamos vivenciar. Tal problema, na verdade, nada mais é do
que a lição adequada naquele momento da vida. Viajamos em direção à luz, à
plenitude, à perfeição do espírito, a nossa real identidade. A evolução de cada um
de nós será alavancada, queiramos ou não. Claro que como em toda sala de
aula, há alunos dedicados e outros relapsos ou rebeldes. A lição que demora
pouco tempo para uns, para outros se prolonga por séculos, literalmente. Isso
explica o motivo pelo qual nem todos passam, neste exato instante, pelas
mesmas dificuldades e alegrias”.

Ansiosa, a mulher o interrompeu. Ela queria saber mais sobre a Lei que insistia
com que determinada situação fosse recorrente e se repetisse infinitamente como
um castigo sem fim. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso de compaixão e
lhe disse: “As penas eternas são um velho truque das trevas e não têm qualquer
ligação com a inteligência cósmica. O universo não está preocupado em punir,
mas em educar e, por isto, a necessidade pulsante do perdão e de todos os
demais nobres sentimentos derivados do amor. É impossível educar sem perdoar,
sem permitir novas oportunidades”.

“A vida é um grande ciclo formado por inúmeros pequenos ciclos. Cada um deles
abrange um conjunto de ensinamentos. Eles vão gerar indispensáveis
transformações em seu ser. Sempre vivenciamos o ciclo que contêm as exatas
lições para as quais estamos prontos. Nem mais nem menos”.

“Como um aluno que repete a série na escola quando não presta atenção ou se
recusa a aprender a lição, o ciclo se torna recorrente e, não raro, mais severo
para que o entendimento e, a consequente, modificação que alavancará a
evolução, ocorra. Assim caminhamos”. Fez uma pequena pausa e prosseguiu: “O
fim de um ciclo necessariamente será o início de outro. No entanto, dois ciclos
não coexistem. O novo nunca se inicia sem que o anterior esteja encerrado. A
repetição do Ciclo, como sofisticada prisão, nada mais é do que a sua negação
em evoluir”, pausou brevemente antes do concluir: “A metamorfose é
indispensável. Aprenda, se transforme e fique livre do problema”.

“O problema nunca é o problema em si, mas a sua reação equivocada diante


dele”.

A mulher disse que começava a entender e pediu para que ele se aprofundasse.
O Velho não se fez de rogado: “Toda a vez que temos a sensação de
estagnação, como se a vida estivesse atolada na mesmice, a oferecer incessante
repetições da mesma situação desagradável, significa hora de parar. Envolto pela
ambiência do silêncio e da quietude, busque no âmago do ser o que precisa ser
modificado na sua maneira de olhar e agir. Tudo pode ser diferente e melhor.
Aceite que as verdades que serviram até agora já não servem mais, ficaram
ultrapassadas. É hora de deixar o novo chegar. Em exercício de desapego
intelectual modifique seus conceitos, deixe a luz entrar e amplie a consciência.
Afinal, o universo está em franca expansão e você, como parte dele, tem que
acompanhar”.

“Na prática do desapego emocional, aceite definitivamente que ninguém tem


obrigação em lhe fazer feliz. No entanto, para a sua própria felicidade, ofereça o
seu melhor para a alegria e a paz de todos. Ame sem condições; perdoe sem
tributos”.

“Por sua vez, o desapego material lhe trará a leveza de compartilhar e carregar
tão somente o necessário. Lembre-se, ninguém precisa do supérfluo para viver. O
essencial não pesa e cabe por inteiro no coração. Ser é muito mais rico e
divertido do que ter”.

“Na plenitude do desapego espiritual, entenda que tudo em você deve ser
transformado. Mesmo o que lhe agrada pode ser diferente e melhor. Para tanto, é
indispensável aprimorar as suas escolhas a todo o instante. Aperfeiçoá-las é
evoluir. As escolhas definem quem somos e determinam o próximo trecho do
Caminho, suas curvas, acompanhantes e paisagens. Elas são o passaporte para
a próxima estação, muitas vezes, ainda nesta existência”.

“Por fim, enfrente os seus medos. Nada atrapalha mais as indispensáveis


transformações. A vida exige coragem para que possamos amar e seguir adiante.
Amar de verdade não é fácil e exige total superação das velhas formas. Amar não
se destina aos fracos e, ser forte é uma escolha, disponível a qualquer um, todos
os dias”.

“Assim fechamos um velho ciclo para iniciar um novo, trazendo movimento, cor e
beleza à vida”.

A mulher arqueou os lábios em sorriso sincero. Algo alterara o seu ânimo.


Perguntou ao monge se todo ciclo é um carma e vice-versa. O Velho aquiesceu
com a cabeça: “Sim, pois carrega consigo as lições de sabedoria e amor que
necessariamente devemos inserir no viver. Isto traz a fantástica libertação da
alma das sombrias prisões sem grades criadas pelos condicionamentos sociais,
pelas dívidas ancestrais e as desnecessidades sustentadas pelo ego em suas
ilusões de poder. Isto é iluminar-se, aos poucos, ciclo a ciclo, em infinitas
transformações rumo às Terras Altas”.

Vieram os pratos e a conversa versou sobre livros, filmes e outras amenidades.


Ao final, agradecemos e nos despedimos. A mulher deu um forte abraço no
monge e disse, com radiante sorriso, que aquela tarde seria angular em sua vida,
pois agora sabia o que tinha que fazer. O Velho a olhou com sua enorme doçura
e disse: “Saber onde está a porta, não significa exatamente atravessá-la. Todos
sabemos mais do que fazemos; alinhar a teoria com a prática requer
determinação e paciência”.

No trajeto para o hotel comentei com Velho que sempre poderia restar dúvida
quanto a porta certa a ser escolhida. O Velho me mirou com compaixão e disse:
“Sempre haverá bifurcações no Caminho para que as suas escolhas sejam
exercidas e aperfeiçoadas. Elas definirão entre permanecer aprisionado ao ciclo
ou a libertação dele. De um lado se abrirá um enorme portão, o das paixões.
Aquele que oferecerá os palanques do mundo, o incenso dos elogios rasos, o
perfume do luxo e as delícias dos aplausos fáceis. Do outro, estará sempre a sua
espera a portinhola do amor, sinalizando a montanha da vida, que para atingir o
cume exigirá a sua reinvenção absoluta, um pouquinho a cada dia. No final, não
haverá fortuna nem fama. Apenas a paz, um singelo tesouro, merecido ao
andarilho que ousou lapidar o ser com o buril das escolhas”. Calou-se por
instantes, me ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “Toda vez que tiver dúvidas,
escolha por amor, Yoskhaz. Ou escolherá errado”.
JARDINEIRO DA ALMA

“Somos herdeiros de nós mesmos”, disse o Velho, como carinhosamente


chamávamos o mais antigo monge da Ordem. Subíamos uma pequena montanha
próxima ao mosteiro por uma estreita trilha em uma manhã ainda fria da
primavera. Éramos recepcionados por pequenas e coloridas flores silvestres que
já mostravam todo o esplendor da estação e, subliminarmente, nos ensinavam a
lição das fases da vida: após o rigor do inverno, que é indispensável para
fortalecer a determinação do espírito, chegará a doçura da primavera a acalentar
o coração. Todos os ciclos pessoais – o Caminho é um grande ciclo formado por
inúmeros ciclos menores – têm a sua razão de ser e encerram valiosos
ensinamentos ocultos e indispensáveis à evolução. Situações conflitantes e
recorrentes a ponto de nos perguntarmos a razão da aparente repetição, revela
nada mais do que a recusa em mudar a nossa maneira de olhar e agir, de
entender e fazer diferente, enfim, de evoluir. Aprendida a lição, encerra-se aquele
ciclo e, inexoravelmente, um novo se apresentará com outros momentos, livre dos
velhos problemas. “Quem reclama do Caminho é porque não quer mudar o seu
jeito de caminhar”, comentou com seu jeito peculiar de falar.

O sol nos lambia carinhosamente, como se soubesse que os mantos de lã não


davam conta de nos aquecer por completo. Na medida que subíamos a flora se
tornava mais rica e atraia para si uma enorme variedade de passarinhos e
borboletas. Por perceber todo o meu encanto, o velho monge me olhou com seus
olhos sempre serenos. “O cheiro das flores são como as energias que
emanamos, cujas fontes são nossos sentimentos e pensamentos. Os bons
perfumes atraem pássaros e borboletas, da mesma forma o odor azedo do esgoto
chama para si as baratas, ratos e mosquitos”. Deu uma pequena pausa e
finalizou. “Assim, o que atraímos para nós é de nossa inteira responsabilidade”.
Comentei sobre a sua estranha insistência em procurar lições escondidas por
toda parte. “O sagrado reside disfarçado no profano e, assim, está em todo lugar.
Deste jeito, a vida nos orienta por sinais e nos oferece a sua sabedoria através
das suas coisas mais simples, accessível a qualquer um, basta buscar”. Olhou-
me nos olhos e percebi uma bonita luz que emanava no fundo de uma fonte que
quanto mais se dava, mais forte ficava, apesar de emoldurada em um rosto
enrugado e desgastado pelo tempo. “Todo amor que você precisa para viver pode
estar contido em um único abraço”, comentou.

Argumentei de que ele tinha me falado, em outra ocasião, de que todo amor
necessário habita em mim na medida do exercício deste próprio amor. “Sim, é
verdade. Esse é o ponto mais alto do entendimento, no entanto, há pessoas que
nos cruzam a vida que estão, naquele momento, sedentas por atravessar a aridez
no deserto do amor e precisam de um singelo gesto para voltarem a acreditar na
magia infinita do Universo e, então, tornar a germinar. Um zeloso jardineiro
entende ser responsável por todas as flores do jardim”.

O Velho sentou na relva ainda úmida do orvalho e permitiu que as costas


descansassem no amparo de uma grande pedra. Seu corpo já dava sinais do
peso da idade, no entanto, o espírito, cada vez mais, se mostrava alegre e jovial.
“Delicie-se com todas as nuances da natureza, depois leve a beleza para dentro
de si”, disse para minutos depois fechar os olhos em silêncio. Fiz o mesmo e
ficamos assim por um tempo que não sei contar. Quando abri os olhos vi o mestre
um pouco distante, a observar uma abelha que polinizava um lírio enquanto
furtava o doce que em breve devolveria em mel. “Esta simbiose é a síntese da
existência. Aprender, transformar, compartilhar e seguir”, recitou em voz baixa
como se falasse apenas consigo, em sua incansável busca de ver a beleza que
existe em tudo e em todos. Esta era a sua Luz. Ao perceber a minha aproximação
apontou para uma pequena orquídea selvagem que brotava no tronco de uma
enorme árvore e pediu para que eu afastasse uma erva daninha que logo a
sufocaria. “Tenho muito respeito e admiração pelos jardineiros, são a perfeita
metáfora da vida”, comentou. Ao ver em meus olhos um enorme ponto de
interrogação em busca do sentido daquele verso, explicou com sua quase infinita
paciência. “Um jardineiro cuida de uma planta com extremo cuidado, como
devemos cuidar de nossa alma. Poda as folhas e galhos que atrapalham o
crescimento, assim como devemos abdicar de coisas e conceitos que, por
obsoletos, não nos servem mais e apenas atrapalham a nossa evolução; sacia
diariamente a flor com o frescor da água para que ela não seque à mingua, da
mesma maneira que precisamos regar nossos gestos com amor em abundância,
por ser esta a fonte e o mel da vida, sob pena de secarmos na inanição da
amargura; afasta as pragas agressivas como devemos nos proteger das ervas
daninhas nascidas em nossos próprios pensamentos e sentimentos nocivos;
procura expor-lhe ao sol por ser essencial a luz no desenvolvimento de todas as
formas de vida, assim como é indispensável iluminar as nossas próprias sombras
para dissipar a névoa que impede o perfeito olhar; semeia incansavelmente o
pequeno e ínfimo grão na certeza de que a magia da vida o transformará, no
devido tempo, em uma vigorosa árvore, onde muitos poderão descansar à
sombra e se deliciar com seus frutos. Mesmo diante de um cenário acinzentado, a
sabedoria do jardineiro aponta que as cores vibrantes de uma única flor têm o
poder de, pouco a pouco, irradiar a beleza por todo o jardim. Pequenos gestos
fazem grande diferença. Perceber que nossa fortuna é tão somente as flores que
plantamos no caminho para encantar a vida de quem vem atrás, é entender a
milenar e sábia parábola de que conhecemos a árvore através de seus frutos.
Somos o jardineiro de nossa própria alma e a maneira como cuidamos dela
alimentará, ou não, todo o universo em suas ceias espirituais”.

AS FERRAMENTAS DA LUZ

O sol ainda não tinha nascido quando cheguei à pequena e charmosa cidade que
fica no sopé da montanha que abriga o mosteiro. Eu tinha aproveitado uma
carona em um caminhão de entrega e vagava a esmo pelas ruas estreitas e
sinuosas enfeitadas com o seu belo piso de pedras. A umidade do orvalho refletia
a luz bruxuleante dos lampiões públicos, compondo um bonito cenário. O barulho
dos meus passos maculava o império do silêncio naquela hora da madrugada.
Decidi arriscar e caminhei até a oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos
vinhos e dos livros; os tintos e os de filosofia eram os preferidos. Remendar o
couro era o seu ofício; costurar ideias, a sua arte. A loja do artesão era famosa
pelos horários improváveis e inconstantes de funcionamento. Quando virei a
esquina, à distância avistei a sua clássica bicicleta encostada no poste. Percebi
que aquele seria um bom dia. Fui recebido com a alegria habitual e logo
estávamos sentados com duas canecas fumegantes de café sobre o balcão. Falei
que precisava desabafar e conversar um pouco, pois me via diante de uma
delicada questão: em recente viagem a uma grande metrópole onde fui
acompanhar o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo
da Ordem, em um ciclo de palestras que ele ministrou dentro de uma
universidade, vi a esposa de um primo em situação clara de extraconjugalidade.
Ela, ao perceber que eu presenciara a cena, me procurou para que eu nada
revelasse. Contou que era um caso antigo e mal resolvido que precisava de uma
resolução dentro dela. Acrescentou que amava o meu primo e não queria destruir
a família que havia construído com ele e com os dois filhos do casal. Disse, ainda,
que ao solucionar o enigma do coração em si, tinha certeza que seria uma
esposa ainda melhor. Me pareceu que falava com sinceridade. De fato, ela e meu
primo, com os filhos, pareciam formar uma família feliz. No entanto, a omissão,
por vezes, é quase uma mentira. Contar ou não contar, eis o meu dilema, uma
vez que eu tinha um compromisso comigo mesmo de ser sempre honesto, não
abandonar a verdade e nunca me distanciar da boa moral.

Loureiro ouviu sem dizer palavra, ao final, bebericou o café e comentou: “Não
vejo nenhum dilema”. Como não? Me surpreendi. Falei que toda boa pessoa deve
nortear as suas escolhas pela boa moral, formada pelas virtudes que enobrecem
o caráter humano. O artesão concordou com a cabeça. Acrescentei que ser fiel
com a verdade era uma dessas virtudes cardeais. Desta vez o sapateiro negou
com a cabeça e disse: “Nem sempre”.

Falei que não estava entendendo. Loureiro explicou: “O exercício das virtudes
tem a finalidade de encaminhar o ser para o bem. A humildade, a justiça, a
coragem, a compaixão, entre outras, além do amor, é claro, são algumas das
virtudes essenciais que têm por função orientar o andarilho no Caminho. Por
lógica, existe a necessidade de adequá-las dentro de si de maneira harmoniosa
para que não haja choques de interesses entre elas. Caso em que o bem, por
ironia ou tragédia, acabaria por se perder pelo uso inadequado da virtude na
tentativa de alcançar o próprio bem. Por isto, o bom senso é outra virtude
igualmente preciosa, pois tem por função criar uma ordem de prioridades
adequadas caso a caso”. Argumentei que ficaria mais fácil de entender se ele
explicasse através de um exemplo. O artesão não se fez de rogado: “Vamos focar
no importante e inegável compromisso que temos com a virtude da honestidade,
aquela que nos impulsiona a sempre dizer a verdade”. Bebeu um gole de café e,
em seguida exemplificou: “Imagine que um assassino entre na sua casa à procura
de um amigo seu que está escondido em outro cômodo. O malfeitor pergunta se
você sabe onde está o seu amigo. Você diz a verdade ou mente para salvar uma
vida”?

Abaixei os olhos. Eu estava começando a entender o valor do equilíbrio entre as


virtudes. Loureiro prosseguiu: “Qualquer atitude que não tiver compromisso com a
luz, em fazer o bem, não é uma virtude, ainda que se fantasie como tal. Qualquer
ação que não tiver o amor como meta deixa de ser virtuosa. É exatamente neste
ponto que reside a diferença entre a moral e o moralismo. A moral é a finalidade
da virtude. A moral, assim como a virtude, precisa de flexibilidade para se
adequar ao caso concreto, de leveza para se adaptar à realidade e de amor para
fazer o bem. A intransigência e a intolerância aprisionam a moral e a desfiguram
em moralismo. Então a luz se apaga e as sombras tornam a reinar”. Eu quis
saber qual era a diferença entre a moral e as virtudes. Ele não se fez de rogado:
“A moral comanda; as virtudes instrumentalizam. A luz mapeia a moral; as
virtudes permitem chegar até lá. A moral é a tela; as virtudes, as tintas”. Acho que
Loureiro percebeu um grande ponto de interrogação em meu rosto e aprofundou
um pouco mais: “O bem é a morada da boa moral que buscamos construir; as
virtudes são os tijolos. Saber alinhá-los requer sabedoria para que a casa não
desabe”. Deu uma pequena pausa e ofereceu outro exemplo: “Uma mãe amar um
filho é de preciosa moral e fundamental importância. É uma base maravilhosa e
essencial para uma vida. Porém, não basta. É necessário entender a sabedoria
do não e do sim. Ela precisa das virtudes para educá-lo na diferença entre as
sombras e a luz. Valores como dignidade, paciência, generosidade, pureza, entre
outros, são imprescindíveis na formação do caráter que ela ajudará a moldar,
mormente na infância do filho”.

“Assim como as virtudes são as ferramentas da moral, a sabedoria é necessária


para que possamos exercer o amor em toda a sua amplitude”. Bebeu mais um
gole de café e disse: “No exemplo da boa mãe, o amor sem sabedoria pode
enfraquecer a si mesmo, impedindo o filho de avançar, oferecendo espaço para o
narcisismo, mimos e fraquezas. Por outro lado, sabedoria sem amor pode ser por
demais perigoso por afastar o menino do lado ensolarado da estrada ao torná-lo
excessivamente bruto, insensível ou severo. Assim, como moral e virtudes se
completam; amor e sabedoria, nesse caso, fecham o círculo de luz”.

Falei que entendia, na teoria, os fundamentos expostos pelo artesão. No entanto,


na prática, a situação do meu primo ainda me trazia agonia e dúvidas. Então, usei
um raciocínio muito valioso, mas igualmente perigoso: disse que se estivesse no
lugar do meu primo, gostaria que me contassem o segredo. Loureiro arqueou as
sobrancelhas e rebateu com seriedade: “Ao se colocar no lugar daquele
assassino, no exemplo que usamos há pouco, você gostaria que revelassem
onde a vítima estava escondida, certo? No lugar do amigo procurado, o que
gostaria que fizessem”?

Envergonhado, tornei a abaixar os olhos. O sapateiro deu uma pausa e concluiu:


“Se colocar no lugar do outro é um exercício extremamente importante. No
entanto, não basta. Não existe apenas o outro, mas os outros, cada qual com os
seus interesses e valores nem sempre em sintonia com o seu. A escolha não é
sua? É necessário ter o discernimento para entender qual o verdadeiro
sentimento que a move e qual das virtudes deve instrumentalizar a sua decisão
para que a luz se faça naquele momento”.

“Se você está agoniado com as suas dúvidas, não deve esquecer que todo
sofrimento é fruto do desequilíbrio entre conceitos e emoções; ideias novas e
ultrapassadas ainda em conflito; sentimentos confusos em colisão. Tudo porque
você está pensando apenas em você”. Perguntei se ele estava alegando que eu
estava sendo egoísta. Ele piscou um olho e disse de jeito maroto: “De certa
maneira, sim”. Em seguida, falou sério: “Ao se colocar no lugar do outro você
deve apenas objetivar o bem daquela pessoa. O que é ótimo. Todavia, muitas
vezes deixamos que as nossas próprias sombras tragam as mágoas e as
lembranças do nosso passado que ainda nos corroem e, por descuido, acabam
por contaminar a nossa decisão e, por consequência, a vida dos outros. Então,
terminamos por levar trevas ao invés de luz à questão. O que é péssimo. Luz e
sombras à disposição de uma simples palavra. Percebe a delicadeza e o valor de
uma escolha”?

“No mais, quem conhece a intimidade do casamento do seu primo, suas dores e
delícias? E se ao invés de se colocar no lugar do seu primo, você se colocasse no
lugar da esposa dele? Quais as histórias que ela traz consigo? Quais as suas
feridas, traumas e decepções que ainda não foi capaz de curar? Quanto de ajuda
ela precisa e qual a melhor maneira de ajudar? Sabemos tão pouco sobre nós
mesmos, como se arvorar em senhores da verdade e do destino alheio? Você
não disse que eles parecem formar uma família feliz? Na verdade, você até agora
se preocupou apenas consigo e o que fazer com a verdade que lhe foi revelada a
despeito de qualquer vontade. O sentimento que move a sua intenção é de
construir ou destruir? Isto definirá se a virtude está em falar ou calar”.

Aproveitei a deixa e falei que nada é por acaso. Se o segredo, de alguma


maneira, me foi revelado era porque eu deveria fazer algo de bom com ele. O
artesão concordou com a cabeça e complementou: “Sim, é claro que deve fazer
algo de bom não só com o segredo, mas com toda a situação que envolve a
questão e extrair a melhor lição. O segredo é um mero objeto desta aula que a
vida generosamente lhe oferece. O que fazer com o segredo revelará muito mais
de você do que sobre a esposa do seu primo. Será que o bem está na revelação
do segredo ou na lição de aprender a lidar melhor com as próprias virtudes em
preciosa oportunidade de aperfeiçoamento pessoal”?

Deu uma pausa e retornou aos questionamentos: “Se a agonia ainda lhe invade
será que não sinaliza algo? Será que uma alma plena se permitiria ser invadida
pela dor da inadequação da moral e das virtudes em si? O que falta ser
transformado para que a dúvida seja sempre um fator de crescimento, jamais de
desequilíbrio”?

Tornei a baixar os olhos. Sim, eu sofria. ‘Se existe sofrimento é porque resta uma
lição a ser aprendida, algo a ser transformado dentro de si’, lembrei que o Velho
sempre insistia nesta valiosa tecla.

A vida é extremamente generosa, mas tem um jeito muito estranho de ensinar.


No entanto, inegavelmente eficaz. Ficamos um longo tempo em silêncio. Aos
poucos, as ideias iam se adequando em minha mente e os sentimentos
encontravam lugar no meu coração. Entendi que as virtudes, apesar de sua
inegável importância, não são um fim em si mesmo, mas apenas ferramentas que
precisam ser usadas com sabedoria para que se faça a luz. A moral, por sua vez,
só terá valor se revestida em amor, sem o qual nada fará sentido. Mais um véu
tinha se descortinado. Sorri.

Loureiro percebeu, me devolveu um belo sorriso e finalizou: “O amor será sempre


a travessia e o destino. A sabedoria, por sua vez, cumpre o papel de guardiã do
Caminho”.

PEQUENAS GRANDES COISAS


Acordei antes do sol e fui até a varanda da casa de Canção Estrelada, o xamã
que tinha o dom de semear a sabedoria do seu povo através da palavra e da
música, onde eu estava hospedado. Ele estava sentado em uma cadeira de
balanço e tinha os olhos fixos no Leste, “a casa da águia”, como costumava falar,
à espera do amanhecer. Me serviu uma xícara de café e continuou a colocar fumo
no fornilho de pedra vermelha do seu indefectível cachimbo. Baforou algumas
vezes e, em seguida, pegou o seu tambor de duas faces para entoar uma sentida
canção no dialeto nativo que, em tradução não-literal, significa “Os ciclos da vida”,
na qual agradece ao Grande Espírito as infinitas oportunidades oferecidas a cada
dia para se renovar e prosseguir na Longa Estrada Dourada. Não muito tempo
depois, ainda envolvidos em nossas preces e reflexões, fomos interrompidos pela
irmã do xamã, acompanhada por seu filho caçula, que acabara de entrar na vida
adulta. Ela veio pedir que o irmão aconselhasse o jovem, que embora muito
inteligente, andava desinteressado pelos afazeres simples do cotidiano por se
considerar predestinado a realizar algo grandioso. Isto também o tornara relapso
no trato com os outros, pois, no seu entendimento, as pessoas não eram capazes
de compreender a sua enorme capacidade e o seu brilhante destino. Canção
Estrelada apenas fechou os olhos e balançou de leve a cabeça como maneira de
dizer que entendia e estava disposto a atender ao pedido. A irmã sorriu em
agradecimento e se retirou. Eu quis saber se também deveria sair, mas ele fez
um gesto com a mão de que não era necessário. O xamã fechou os olhos e se
manteve em silêncio. Impaciente, o jovem não parava de se mexer na cadeira,
até que disse que aquilo era pura perda de tempo. Canção Estrelada olhou o
sobrinho com doçura e começou a contar uma história:

“Há muitos invernos atrás, quando os bisões ainda eram comuns nas planícies,
em uma pequena e próspera aldeia que vivia em harmonia e paz, havia um jovem
índio inconformado e desiludido. Desde criança ouvira histórias de valentes
guerreiros que foram eternizados como verdadeiras lendas. Sonhara desde
pequeno em se tornar um deles, acreditava que tinha nascido para realizar
grandes façanhas e a se tornar um herói famoso. Aprendera a lutar, a usar as
armas, montar a cavalo, rastrear e todas as demais habilidades necessárias para
a guerra. Ocorre que a aldeia era liderada por um sábio e amoroso ancião que
cultivava um ótimo relacionamento com as tribos próximas, afastando qualquer
possibilidade de conflito. Isto fez com que a aldeia prosperasse e todos vivessem
satisfeitos, salvo esse jovem índio, que, por aguardar o clímax da vida e se
considerar um guerreiro nato, não se interessava por mais nada que se referisse
à vida em comum da tribo. Achava as crianças irritantes e barulhentas, não se
permitindo contagiar com a alegria delas. Embora não falasse, sentia desprezo
pelos anciãos, pois eles não mais serviam para a guerra. Não tinha a devida
consideração por todos aqueles envolvidos em outras atividades de manutenção
do bem-estar da aldeia, as quais considerava serviços menores. Embora vestisse
as roupas confecionadas pelas artesãs e comesse o pão que ali era fabricado
todos os dias, apenas para ficar com alguns exemplos, não lhes prestava a
merecida importância, pois os tinha como meros suportes para o grande
acontecimento da sua vida, aquele que o cobriria de glórias”.

“Os dias se passavam e a guerra que o imortalizaria na memória ancestral do seu


povo não se avizinhava, fato que o tornava a cada dia mais impaciente e
descuidado com tudo e com todos. Até que certa manhã, quando acordou, estava
sozinho na aldeia. Todos tinham partido. Uma carta, deixada pelo ancião que
chefiava o Conselho dos Sábios, explicava que foram avisados pelas aldeias
próximas sobre um homem mau e poderoso vindo de longe que ateava fogo e
dizimava todas as tribos que encontrava. Pelas informações recebidas, aquela
era a próxima aldeia a ser atacada e, rezava a tradição, somente o melhor dos
guerreiros poderia vencê-lo. Tal batalha deveria ser travada mano a mano.
Cuidadosos, os aldeões deixaram todas as armas disponíveis, além de comida
suficiente para muitos dias. O rapaz se alegrou, tratou de afiar as armas, se
pintou para o combate, traçou uma estratégia de luta e ficou à espera do
agressor. Porém, o inimigo não apareceu naquele dia. Nem nos dias seguintes.
As luas se alternavam no céu e o malfeitor não dava as caras. O jovem guerreiro
começou a racionar a comida que chegava ao fim. As suas vestes começaram a
ficar sujas. Passado mais algumas luas, ele estava esfomeado e maltrapilho.
Como não podia ir à floresta colher frutas e caçar para não desguarnecer a
aldeia, passou a se alimentar da captura de pequenos roedores que porventura
atravessassem o perímetro da tribo. Chegou a cogitar em ir para uma aldeia
próxima em busca de mantimento e roupa, mas se abandonasse a aldeia seria
lembrado como fraco e covarde, não como o intrépido guerreiro que era. Pensou
em fazer o próprio pão, porém não bastava colher, era preciso debulhar o trigo,
transformar em farinha, preparar a massa para assar, conhecer a temperatura do
forno e o tempo de cozimento. Ele não sabia como fazer; nunca se interessara
por um serviço tão simples. Cogitou em pegar o couro de uma barraca para
costurar uma nova roupa, contudo não dominava o ofício menor do corte e da
costura. As necessidades básicas que não conseguia manter, somadas a uma
espera sem fim, foram pouco a pouco enfraquecendo o físico e esmorecendo o
emocional do grande guerreiro. O seu espírito, aquele destinado às grandes
façanhas, estava desequilibrado e debilitado pela falta das pequenas coisas, tão
simples, corriqueiras e insignificantes. Enfraquecido, nos últimos dias se limitou a
ficar deitado, com todas as armas ao seu lado, observando o portão de entrada a
espera do violento invasor. Até que chegou o inverno; o frio agravou ainda mais a
situação e até os pequenos roedores sumiram. O último animal que viu antes de
dormir naquela noite foi um corvo, o mensageiro das dimensões, pousado sobre o
totem da aldeia. Sentiu um desagradável frio na espinha”.

“Foi acordado no dia seguinte pela ponta de uma lança espetando de leve o seu
peito; era o chamado para o aguardado combate. Para a sua enorme surpresa, o
invasor era um pequeno adolescente, quase um menino, que mal alcançara os
doze anos de idade, vestido e pintado para guerra. O guerreiro e guardião da tribo
sorriu e chegou a achar engraçado que o temível malfeitor não fosse mais do que
uma criança fantasiada. Tinha habilidade para dominar o oponente com apenas
uma das mãos e tinha a certeza da brevidade da luta. Contudo, quando tentou se
levantar, faltaram as forças indispensáveis; o corpo enfraquecido se negava a
obedecer ao comando da mente. Fez um esforço incomensurável para ficar de
pé, como se escalasse uma montanha. Quando conseguiu, cambaleante, tentou
atacar. O adolescente sorriu, fez uma leve esquiva e o golpe do guerreiro foi ao
vento. As tentativas seguintes foram meras repetições da mesma cena. Cansado
e desequilibrado pelos ataques infrutíferos, o poderoso guerreiro desabou no
chão sem ao menos ter sido tocado pelo invasor. O pequeno malfeitor estocou,
sem rasgar a pele, e manteve a ponta da lança fincada no pescoço do guerreiro.
A vida dele estava nas mãos de um adversário improvável diante de um destino
impensável e traiçoeiro. Naquele instante, como um relâmpago que ilumina todo o
céu em frações de segundo, se deu conta da grandeza das pequenas coisas,
percebeu a importância de cada parte para a harmonia do todo. Misericordioso, o
algoz disse ao guerreiro que ele podia fazer uma derradeira oração. Olhou para o
céu, murmurou um sincero pedido de desculpas ao Grande Espírito por ter sido
tão injusto para com toda a sua tribo; pelo olhar turvo e comportamento
equivocado com todos aqueles que na simplicidade de seus ofícios e artes
mantinham o essencial e belo funcionamento da vida. Se tivesse uma chance,
com certeza, faria diferente e melhor. Sentiu uma desconhecida sensação de paz
e fechou os olhos a espera do golpe final”.

“Estranhou quando ouviu uma voz lhe dizendo que todos merecem novas e
infinitas oportunidades, caso contrário o Grande Espírito não seria o puro amor e
o Seu jardim não estaria enfeitado com a flores da plenitude. Pensou que tivesse
morrido e estivesse diante dos portões do Grande Mistério. No entanto, aquela
tonalidade não era de um adolescente nem a voz lhe era desconhecida.
Temeroso, abriu lentamente os olhos e quem estava diante dele era o sábio
ancião, líder da aldeia. O pequeno invasor estava ao lado e tinha recolhido a
lança. O guerreiro chorou e se confessou arrependido. O ancião disse para ele
não sentir vergonha nem culpa. Ele tinha pedido uma nova chance e fora
atendido. Agora era agir com responsabilidade para não tornar a desperdiçá-la.
Neste instante, toda a tribo entrou na aldeia e imediatamente iniciaram as
reformas e arrumações necessárias após tanto tempo de abandono. Não havia
condenação em nenhum olhar. Começaram, também, a cuidar do guerreiro
combalido. Quando melhorou começou a estudar a filosofia e a mitologia de seu
povo para transmitir às crianças. Se encantou ao se dar conta que aprendia
enquanto ensinava. Como nenhum conhecimento é em vão, como ele conhecia a
arte do combate e trazia em si esta energia, então, passou também a se revezar,
à noite, com outros guardiões nos muros da aldeia para evitar o ataque de
animais selvagens. Muitos e muitos invernos depois esse guerreiro se tornou um
ancião à frente do Conselho dos Sábios e é lembrado com carinho pelas
gerações posteriores, mesmo sem nunca ter travado uma batalha. Ao menos, não
da maneira que imaginava lutar quando ainda jovem”.

O xamã tornou a ficar em silêncio e reacendeu o cachimbo. O sobrinho disse que


nunca tinha ouvido uma história mais idiota. Confessou que quando a mãe o
levou para conversar com o tio desconfiava que seria perda de tempo. Agora
tinha certeza. Perguntou se havia mais alguma coisa a ser dita. Canção Estrelada
ofereceu um sorriso doce e balançou levemente a cabeça. O rapaz se foi. A sós,
procurei nas feições do xamã os traços da contrariedade pelo comportamento do
sobrinho, mas encontrei apenas serenidade. Questionei se ele estava chateado
com o que tinha acontecido. O xamã negou: “Uma semente de sabedoria, ao
menos como eu a entendo, foi lançada com amor em seu coração; se for boa,
cedo ou tarde surgirá as condições de germinação. O tempo e a paciência fazem
parte de um processo comum a todas as coisas, o amadurecimento. É a jornada
da maturidade do espírito, da semente ao caroço do fruto, quando de novo
semente. Cada qual em seu momento, com o enfrentamento das batalhas que lhe
são devidas e justas, não daquelas que deseja”.

Canção Estrelada arqueou os lábios em doce sorriso e comentou: “Quem não dá


valor às pequenas coisas nunca estará pronto para viver os grandes momentos
da vida; ser pequeno é um degrau indispensável para se tornar grande. Ao não
reconhecer a importância de toda a gente nos distanciamos da própria essência
por ignorar quem somos de verdade. A espera pelo momento ideal para ser pleno
nos faz perder a chance de viver o dom e o sonho; ao lamentar o imperfeito amor
oferecido pelo mundo desperdiçamos a oportunidade de torná-lo perfeito em nós”.
Olhou nos meus olhos e segredou: “Não espere que os oceanos se levantem. A
beleza da vida está nos detalhes, nas quase imperceptíveis transformações
oferecidas pelos dias comuns”.

A ARTE DA RENÚNCIA

Eu tinha descido a montanha onde se localiza o mosteiro da Ordem e caminhava


através das ruas estreitas e antigas da secular cidadezinha mais próxima. Chovia
muito e estava mais escuro do que a hora determinava. Era muito cedo e o
comércio começava a abrir as suas portas. De longe vi a bicicleta do Loureiro
estacionada em frente à sua pequena loja. Por décadas tinha sido o único meio
de transporte que aquele ancião se permitiu usar. Sorri comigo pela alegria de
passar alguns instantes com pessoa tão ilustre. Assim que entrei, Loureiro me
olhou por cima dos óculos, largou o alicate, arqueou os lábios e se levantou de
braços abertos para me receber. Como sempre, o homem alto e magro estava
impecavelmente vestido. A calça preta de pregas bem cintada, sustentada por
suspensórios, fazia uma boa combinação com sua elegante camisa branca
abotoada até o pescoço, com as mangas arregaças na altura do cotovelo para
não atrapalhar o ofício. Seus cabelos, da mesma cor da blusa, embora ainda
fartos e bem penteados, sinalizavam a idade avançada. Loureiro era sapateiro
desde sempre. Nas horas vagas gostava de um bom vinho e amava os livros. Os
seus prediletos eram os tintos e os de filosofia.

Tinha ido por causa das minhas sandálias, cujas tiras de couro, cansadas do uso,
tinham arrebentado. Apesar de velhas, eu gostava do conforto que me
proporcionavam, como se elas e meus pés já tivessem selado a paz há tempos.
Depois dos cumprimentos e uma caneca de café bem quente para afastar o frio,
perguntei se as sandálias teriam reparo ou me restaria procurar por novas.
“Penso que as pessoas estão perdendo o bom hábito de consertar as coisas, o
que pode acabar por refletir em suas relações. É necessário a sensibilidade para
perceber o que não serve mais e o que merece remendo. Se a vida, e tudo nela
se tornarem descartáveis, em breve minha profissão, assim como a razão do meu
existir, perderão o sentido”, disse, entre graça e razão, enquanto levava as
sandálias para a sua bancada de trabalho. “Sente-se. Trocaremos uma prosa
enquanto faço o reparo”.

Aproveitei a deixa para provocá-lo e perguntei qual o momento de consertar e


qual a hora de abrir mão de algo. “É indispensável entender a diferença entre
cada uma das escolhas. Esta é a arte”. Acomodei-me em um pequeno banco,
pois senti que aquela manhã ainda seria de sol.
“Preferir o silêncio como resposta quando a injúria nos atinge, é renúncia.
Recusar em atender uma mão aflita que roga auxílio, é abandono. Abdicar de um
bem material para evitar briga familiar de consequências impensáveis, é renúncia.
Usar as imperfeições do mundo para encher uma tarde com lamentações ao
invés de trabalhar, é desistência. Somente o que transforma a alma tem
importância, isto é sabedoria”, disse o sapateiro enquanto cortava novas tiras de
couro. Argumentei que tinha entendido os exemplos, mas a essência da diferença
havia me escapado. “A escolha pelo abandono significa a incompreensão diante
das Leis da Vida; a desistência evidencia fraqueza diante das dificuldades que se
apresentam para alavancar a nossa evolução. No entanto, a renúncia ocorre
quando trocamos conscientemente a aparência do mundo pela essência da vida”.
Falei que, por vezes, a diferença poderia ser por demais tênue. Loureiro
prosseguiu a explicação. “O âmago da questão está quando abrimos mão da
paixão para abraçar o amor. O ego gerou a palavra egoísmo, sentimento movido
pelas paixões mundanas de muito brilho e pouca sustentação. Assim, cria
conflitos movidos por interesses menores e efêmeros, até que, cedo ou tarde, se
percebe um grande vazio existencial. Valores que até então dirigiam a sua vida
não podem preencher a escuridão que, agora, a envolve e angustia. Sedento por
um facho de luz, você começa a entender o poder do amor. O amor é a alegria de
compartilhar a vida com o outro, de aprender e ensinar, de entender as limitações
e buscar as superações. É a matéria-prima de todas as transformações do ser.
Você caminha por amor ou não terá ocorrido nenhuma evolução”. Deu uma pausa
enquanto martelava pequenos cravos para fixar as correias na sandália, em
seguida, revelou:

“A renúncia é a fronteira entre a paixão e o amor. É preciso tirar o olhar do seu


umbigo para repousar no coração do outro”, disse o elegante sapateiro quando eu
pedi que fosse mais claro. “A vida é regida por um Código de Leis não escritas e
o fio que as conecta é o amor”. O nobre sapateiro falava sem desviar os olhos do
ofício. “A ânsia da paixão encobre a verdade com um véu que somente a
serenidade do amor consegue descortinar”. Eu sabia que ele se referia sobre as
Leis do Caminho, mas queria um exemplo mais palpável sobre as diferenças de
que falava. Protestei e disse para o meu bondoso amigo que todo aquele discurso
era por demais bonito, mas carecia de melhor definição. Ele me mirou nos olhos e
sorriu, sabia que eu o provocava. Repousou as ferramentas sobre a bancada e
ajeitou a cadeira em minha direção. Colocou um pouco de café em nossas
canecas e em seguida disse.

“Certa vez perguntaram a um sábio qual a diferença entre a paixão e o amor. O


sábio pediu para imaginar uma pessoa andando há dias no deserto, sob calor
escaldante, que encontra um pote de água fresca. Ela bebe toda a água para
saciar a sua sede. Isto é paixão. No entanto, se essa mesma pessoa, nas
mesmas condições, com o mesmo calor e sede, beber metade do pote e, no
entanto, se preocupar em deixar o restante da água para quem vem atrás”, fez
uma pausa propositalmente dramática e finalizou: “Isto é amor”.

O meu amigo sapateiro era um nobre. Não que possuísse títulos aristocráticos.
Sua realeza vinha da gentileza no trato com toda a gente e a elegância de
traduzir os sentimentos em palavras para serem usados da melhor maneira por
qualquer um. Consertar sapatos era o seu ofício. Remendar olhares, sua arte.
Calcei minhas sandálias e lhe dei um forte abraço. “Assim como não se pode
transformar sem amor, é impossível amar sem renunciar”, confessei. Ele apenas
sorriu em resposta como dizendo que eu tinha aprendido a lição.

Quando tornei a andar pelas ruas de pedras da antiga cidade, ainda chovia forte
sob um manto espesso de nuvens cinzas, mas não estava escuro. Acima, a luz
do sol me indicava o Caminho.

O PROBLEMA NÃO É O PROBLEMA

O problema não é o problema, mas a incapacidade de prosseguir diante da


adversidade. É a perda da possibilidade de transformação, uma decisão
puramente interna, que depende apenas de si próprio. Você terá dois
interlocutores durante esse processo: o ego que o fará sentir injustiçado, pois tem
a certeza que não era merecedor dos difíceis acontecimentos e lhe aplicará a
mais insalubre prisão, a vitimização. Do outro lado temos a alma, o espírito eterno
que somos, que anseia por evolução e sabe que a covardia não muda a
realidade.

A dificuldade é grave? Morte, doenças com sequelas irreversíveis, amores que se


vão, falências dolorosas… E daí?… Impossível reverter externamente? Pode ser
a Vida sinalizando que as mudanças devem ser dentro de nós.

Não, não é fácil e ninguém falou ao contrário.

Você fala assim porque não foi contigo, gritarão muitos. Não foi, não desta vez.
Todos, sem exceção, enfrentam suas batalhas.

Cada um tem os problemas na exata razão da necessidade da sua evolução. O


ego do sofredor tem uma dificuldade enorme de entender isto. Afinal somos todos
do bem e quase perfeitos, não é assim? Sim e não. Todos caminhamos para a
plenitude, porém a estrada é longa e se torna esburacada na medida que o
andarilho teima em pisar torto. A falta de entendimento da maneira correta de
andar torna a viagem mais difícil e demorada. Quer mudar o Caminho? Basta
mudar o seu jeito de caminhar. Entenda que você pode se arrastar ou voar
durante a travessia e esta escolha é toda sua. Patas ou asas? Basta que
entenda, evolua e transforme a si próprio. As tradições xamânicas, que buscam a
sabedoria na natureza, ensinam que essa é a lição da borboleta. O poder é seu.

Simples assim? Sim e não.

Durante algum tempo vivenciei a rotina de um hospital especializado no combate


ao câncer. Encontrei pessoas sinceramente felizes, como nunca tinham se
sentido antes, por terem contraído a doença. Estranho? Não. A proximidade da
morte trouxe um novo sentido à vida, lhes deu clareza no olhar e, então, o motivo
para viver. Mudaram os valores, o olhar e a importância de todas as coisas.

Uma amiga querida viu o grande amor de sua vida partir. Após momentos de
muita tristeza e revolta, percebeu que a verdadeira felicidade está somente dentro
de cada um e rigorosamente em nenhum outro lugar ou pessoa, pois ninguém
tem a força e a obrigação de fazer o outro feliz. Só quando nos bastamos,
entendemos e amamos a nossa própria companhia, sem qualquer traço de
dependência emocional, estaremos prontos para compartilhar a pureza e, mais
importante, a verdadeira liberdade do amor com alguém. Sim, só quando
entendemos que embora seja maravilhoso estar ao lado de quem amamos, isto
não pode ser indispensável para a nossa felicidade. Indispensável para ser feliz é
o encontro de você com você mesmo. Essa amiga decidiu aceitar o desafio de
desenvolver um outro olhar sobre todas as coisas e sobre si própria, e, só então,
viveu a sua verdadeira e grande história de amor. Consigo e com o outro.

Uma família conhecida muito rica foi levada a falência em pouco tempo por
diversas decisões erradas e conjunturas macroeconômicas. Alguns membros
afundaram em depressão e houve até mesmo caso de suicídio. Outros
integrantes descobriram a força de se reinventar e a alegria de descobrir que as
melhores histórias são as de superação. Cada um fez a sua escolha. Diante da
mesma matéria prima cada artista escreveu a sua obra. O que para uns foi um
drama de final triste, para outros foi a mais incrível aventura de suas vidas.

Sim, tudo se resume as escolhas e, preste atenção, fazemos muitas delas no


decorrer de um único dia. Por mais absurdo que possa parecer, diante de
qualquer dificuldade, procure serenar a mente e o coração. Desespero, medo e
raiva são os piores conselheiros. Com calma, coragem e ousadia você em pouco
tempo perceberá que tem à disposição todas as ferramentas para enfrentar o
problema.

Procure manter o espírito forte aguçando e elevando sempre o seu nível de


consciência para enfrentar as dificuldades quando elas surgirem. É bom lembrar
que várias situações que já lhe tiraram o sono em passado recente, hoje são
irrelevantes em sua memória.

O verdadeiro guerreiro é forte no mental e no espírito. Pois ele é o seu próprio e


maior aliado nos grandes embates, assim como é também o seu adversário
capital. As principais batalhas são travadas dentro de nós.

O importante é entender que as dificuldades fazem parte da vida, as melhores


soluções são as que operamos dentro de nós, pois sinalizam evidentes
transformações. Viver é evoluir. Problemas ensinam valiosas lições. São mestres
disfarçados.

O ESPELHO DA MINHA ALMA É VOCÊ

“O perfeito olhar é aquele capaz de encontrar beleza onde todos apenas


enxergam desastre”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o mais
antigo monge da Ordem, quando, de tão irritado que eu estava, passei por ele e
não o notei. Seu olhar maduro percebeu que o meu coração estava em
tempestade. Virei-me e desabafei toda a insatisfação com acontecimentos
recentes. Em discurso longo, narrei ao Velho toda a minha indignação em relação
à ignorância que ainda campeia solta no mundo. Ele me ouviu pacientemente até
que eu desanuviasse o último resquício de intolerância, depois comentou com
seu jeito manso: “O que mais nos incomoda nos outros é reflexo dos nossos mais
graves defeitos”.

Discordei veementemente, pois certos comportamentos eram, por absolutos,


incompatíveis com os meus. “A maioria, com certeza, sim. Alguns, não. E são
justamente estes que sua alma, manifestada através do inconsciente, reconhece
as próprias dificuldades e o seu ego, na ilusão de lhe proteger, repudia a sombra
alheia, pois teme que o mundo veja outra igual em você”. Deu uma pequena
pausa, me observou por alguns instantes e concluiu: “Percebe que o que tira o
prumo e rasga a serenidade é ter que conviver com o erro que existe no outro,
justo aquele que lhe faz lembrar a existência de dificuldade bem parecida e
familiar? Exatamente aquela que você quer esquecer ou se enganar que não é
parte da sua personalidade. Esta afinidade funciona como um espelho e o narciso
não quer se ver feio. Mas o que o ego esconde, a alma sinaliza para que possa
ser transformado”. Abaixei os olhos e não disse palavra.

O monge me convidou para um passeio por uma das trilhas da montanha que
acolhe o mosteiro. Caminhamos por um longo tempo em silêncio e aos poucos a
calma ocupava o lugar da irritação. O Velho tornou ao assunto: “Já prestou
atenção por qual motivo temos a imensa facilidade de criticar os outros?”. A
pergunta do Velho era apenas retórica, ele não esperou a minha resposta: “Ao
ressaltar os erros alheios vivemos a ilusão de que as nossas falhas
desaparecerão, no exercício absurdo de negá-las a nós mesmos. Porém, em
análise mais profunda, apenas mostra a nossa covardia em não enfrentar
questões de vital importância que falam à estrutura do próprio ser. Falhas de
ordem moral ou emocional nos desafiam e fingimos não perceber a existência
delas em nós.

No entanto, elas alimentam as nossas sombras e se escondem. Como um animal


sorrateiro, que nem percebemos a presença, arma uma tocaia e espreita para o
bote nos momentos mais delicados do convívio social. Em geral, ocorre nas
situações que nos sentimos fragilizados por motivos que, muitas vezes, ainda
nem conseguimos decodificar, provocando em nós as piores e mais primitivas
reações de defesa em forma de irritação e intolerância. Resquício de um
ancestral instinto de defesa que ainda não conseguimos transmutar. Na infância
da alma, idade em que todos nós estamos, nos enganamos ao pensar que
podemos driblar as próprias dificuldades e os erros. Mas não. Ninguém se
esquivará do enfrentamento e a nossa evolução está a espera de iluminarmos as
sombras que nos habitam”. Eu e o Velho já tínhamos conversado bastante sobre
as sombras e que o primeiro passo era, em viagem de autoconhecimento,
reconhecer a sua existência. Depois, aceitar a grande tarefa de iluminá-las nos
porões do ser.

Esta é a grande batalha, aquela que travamos dentro de nós. Porém, desta vez a
abordagem era um pouco distinta, por mais específica. “As críticas que fazemos
ao comportamento do outro é um truque do nosso ego para nos enganar de que
somos melhores e que está tudo bem conosco. Não, não somos. É exatamente
nesse ponto que revelamos o quanto a casa está desarrumada, ao trazer à tona
os sentimentos que ainda assombram o nosso coração”, o monge falava de
maneira tão suave quanto a brisa que me acariciava o rosto.

Argumentei que, em parte, ele tinha razão, mas existia inconveniente das
pessoas maldosas por todo o lado, sempre animadas a depreciar virtudes e
dispostas às farpas verbais. “Mas o contrário também é verdadeiro, sendo
possível encontrar pessoas bacanas e generosas em qualquer lugar, capazes de
iluminar os passos e serenar os corações por onde andam”, ponderou o Velho.
De maneira sarcástica e amarga perguntei onde estavam os bons, pois os maus
eu sabia onde encontrar. O velho monge me mirou por alguns segundos com
seus olhos repletos de compaixão, como faróis a irradiar luz nas trevas e falou
quase em tom de segredo: “São as mesmas pessoas, Yoskhaz”.
Deu uma pequena pausa para concluir: “Somos todos bons e ruins, alguns mais
outros menos, na eterna busca pela lapidação do ser, entre erros e acertos a
sinalizar o Caminho”. Um tanto desconcertado, quis confirmar se o que ele
tentava me dizer é que as pessoas ruins eram também as boas. “Assim como o
sagrado está oculto no profano, a semente do bem aguarda em solo desértico a
chegada das chuvas de luz para germinar”, o velho monge respondeu de pronto e
em seguida prosseguiu: “Há que ajudar a emergir o melhor do outro ao tirar o foco
dos defeitos e desviar para as virtudes e talentos que ele possui”. Deixou-se
encantar, por alguns instantes, com algumas flores silvestres que brotavam, de
maneira improvável, na fenda de uma pedra e continuou: “Só existe beleza em
nós quando sabemos ver a beleza do outro.
Todos somos seres em busca de transformações que nos permitam evoluir. Nos
entendemos melhor à medida que entendemos os outros. Esse é o inevitável
processo de aprimoramento, que irá exigir firmeza para suplantar as etapas
específicas da evolução individual, a se refletir no desenvolvimento do todo e de
todos. Ninguém se furtará das dificuldades inerentes à vida, pois há que se
entender as maneiras pelas quais mestres disfarçados ministram as lições
concernentes a cada curva do Caminho. Quanto mais difícil a situação, mais
valioso o aprendizado”.
Andamos mais algum tempo sem dizer palavra. Eu ainda tentava metabolizar
toda a conversa, quando ele concluiu: “Preste atenção e perceba se o que mais
lhe irrita no outro não é a sua própria falha lhe desafiando à superação. Damos
muita importância aos erros alheios na tentativa de ocultar os nossos. Devemos
ser tolerantes com os outros na exata medida que somos conosco”. Paramos
para descansar em um mirante natural que nos permite uma vista espetacular de
todo o vale daquela majestosa montanha.
Agradeci sinceramente ao Velho por suas palavras e comentei que gostaria de
um novo momento para arriscar uma reação menos instintiva. Ele se acomodou
em uma enorme pedra, arqueou os lábios em sorriso e finalizou com sua voz
mansa: “O Universo, em sua infinita generosidade, não permite que as
oportunidades deixem de existir, como um personagem de uma velha novela,
sempre retornando em outra cena com inimagináveis figurinos, a nos permitir
reescrever uma nova aventura, diferente e melhor a cada capítulo, até que a
história de cada um se transmute em pura Luz. Este é o grande milagre da Vida
e, o mais incrível, está à disposição de todos”.
OS LABIRINTOS DA VIDA

Todo sábado, pela manhã, tem uma deliciosa feira na praça principal da
pequenina cidade próxima a montanha que acolhe o mosteiro. As ruas são
sinuosas e estreitas, ainda estão calçadas por pedras para não lhe negar a
origem medieval. Guloseimas, artesanatos, embutidos, queijos, frutas e hortaliças
frescas são vendidas pelos moradores e agricultores das proximidades. A música
alegre tocada por jovens e anciões no centro da praça colore o estado de espírito
que predomina no rosto de todos. Naquele dia, o sol agradável da primavera
aquecia o frio das primeiras horas da manhã e oferecia as cores típicas da
estação. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da
Ordem, tinha me convidado para acompanhá-lo à feira com a desculpa de que
precisava comprar mel para a receita de um bolo apreciado por todos os monges.
Na verdade, ele admirava muito a troca espiritual entre toda a gente, seja dentro
ou fora do mosteiro. Com seu sorriso franco, olhos brilhantes e fala mansa,
conversava com todos que lhe cruzavam os passos lentos, porém firmes.
Impressionante perceber como ele era querido, apesar de não possuir um níquel
para oferecer. Em determinado momento, encontrou uma jovem mulher, muito
bonita e bem vestida, cuja família, proprietária de vasta extensão de terras nos
arredores, remontava a uma aristocracia que tende a desaparecer. Suas feições
eram tristes, seus olhos pareciam sem vida. Ela pareceu contente por encontrar o
Velho e nos convidou para sentar em uma cafeteria próxima.

Com xícaras fumegantes à frente, a mulher começou a desfilar sua enorme


tristeza em relação aos infortúnios do destino. Apesar da enorme herança que lhe
tinha sido destinada e ter acesso ao que o mundo tinha de mais caro, não
conseguia ser feliz nem ver encanto nas coisas. Nada lhe dava contentamento. O
velho monge lhe ouviu com sincero interesse por longos minutos, sem dizer
palavra. Ao final, com os olhos mareados, uma lágrima escorreu no belo rosto da
jovem. Ele lhe ofereceu um sorriso confortador e perguntou: “Você sabe o que é
um labirinto?”. A moça fez que sim com a cabeça e respondeu que era um
emaranhado de corredores que parece não levar a lugar nenhum, cuja saída é
difícil de encontrar. “A vida, por vezes, apresenta-se como um labirinto”, o Velho
falou ainda enigmático a construir o seu raciocínio. A mulher quis saber mais. Ele
a mirou nos olhos com doçura antes de completar: “Quem não sabe aonde
precisa ir estará sempre perdido”.

“O viajante procura a saída pelas paredes externas dos corredores, quando, na


verdade, a porta está em seu interior. Este é o segredo do mais sofisticado
labirinto que já existiu, a vida”.

A bela mulher lamentava o insucesso na carreira cinematográfica que tanto


almejava. Tinha estudado canto e dança; recebia elogios de professores das
artes dramáticas por seu desempenho; no entanto, na hora dos testes, era
reprovada, e com críticas duras, por parte de diretores e produtores. Acrescentou
que estava tão triste que nem tinha mais coragem de assistir a qualquer filme. O
Velho sorveu um gole de café, mirou-a com os olhos mansos emoldurados em
sua pele vincada, medalhas de toda uma existência, e disse: “Nem todo elogio é
sincero nem toda crítica é justa”.

A jovem quis entender que ele lhe aconselhava a insistir na carreira frustrada. O
monge foi veemente: “Não digo para persistir, tampouco para desistir. Qualquer
palavra neste sentido seria leviandade e arrogância de minha parte. É necessário
que cada qual saiba ler as letras do próprio livro, que perceba para aonde o fluxo
do destino quer te levar. Algumas vezes o Universo quer que você insista,
enfrente os desafios que são inerentes ao seu aperfeiçoamento e fortalecimento;
noutras é preciso desistir dos desejos, pois eles não fazem parte da necessidade
de evolução do seu ser, que precisa seguir em outra direção, atrás do seu
verdadeiro sentido. Entender isto é decodificar a Vida”.

“Todos nós desejamos ser lindos, ricos, famosos e amados. O ego, motivado por
convenções sociais ainda primitivas, nos impulsiona neste sentido. Mas quais são
as reais necessidades da sua alma? Apenas evoluir”. O velho monge tornou a
beber um gole de café antes de prosseguir: “Ainda nos preocuparmos mais com a
aparência do que com a essência, como se o melhor da fruta fosse a cor da
casca ao invés da doçura do sumo. Temos que entender a nossa imortalidade
através do espírito que somos e cada qual recebe a lição que lhe cabe nesse
momento do Caminho para realinhar os desejos do ego aos interesses da alma,
em viagem com infinitas escalas. A dificuldade financeira de alguns pode explicar
a necessidade do valor pelo trabalho; a abastança financeira de outros pode ser
um duro teste de compaixão na realização de obras preciosas no exercício da
apurada sabedoria do amor; a doença do corpo pode ser um remédio milagroso
para o espírito.

Assim como a ausência de beleza estética pode significar a experiência na


construção do encantamento geral através de gestos nobres a mostrar que luz
que melhor seduz é o que brilha de dentro para fora. Diferenciar o eterno daquilo
que inexoravelmente será devorado pelo tempo”. Deu uma pequena pausa e
brincou: “Este velhinho enrugado na sua frente já foi um lindo rapaz que
despertou paixão em muitas moças. No entanto, era um atormentado e nem de
longe, tinha a paz que possui hoje. No fundo o que importa é a bagagem que
podemos levar no colete da alma, o coração”.

A jovem mulher perguntou se ele tentava lhe aconselhar a fazer algo. O Velho
respondeu de pronto: “Em absoluto. Não falo de maneira a estabelecer regras,
apenas tento exemplificar a Inteligência Cósmica a ajustar o aprendizado
individual. Por vezes, ela cria dificuldades para aperfeiçoar o viajante; noutras,
oferece pontes para permitir a evolução sobre abismos na infinita viagem rumo à
Luz. São infinitas possibilidades e cada qual tem que entender o seu próprio
processo com sabedoria, amor, alegria e humildade”.

A bela mulher tentava metabolizar tudo que o Velho falava e receosa que ele se
retirasse sem lhe falar o que considerava mais importante: como saber se era
hora de insistir ou desistir? O monge tomou o último gole da xícara antes de
comentar: “Há três maneiras. A primeira é aprender a ouvir a sua intuição. A
intuição se faz presente quando a sua alma aconselha o seu ego ou, ainda,
quando a voz dos anjos se faz ouvida. O risco, bem comum nesses casos, é
confundirmos nossos medos e desejos com a verdadeira intuição”.

Ele continuou com seu jeito calmo: “A segunda é prestar atenção aos sinais e
saber interpretá-los. A vida nos fala através deles, tornando-os um poderoso
aliado para a melhor percepção do fluxo da vida. No entanto, é importante
lembrar que mesmo quando trilhamos o lado ensolarado da estrada, haverá
momentos de dificuldades e desafios que lhe exigirão esforço e paciência;
coragem e mansidão. O risco, neste caso, é enxergar sinais inexistentes. É
preciso aprender a ver. Saiba que não é fácil, porém indispensável” e silenciou
como se os pensamentos navegassem pelo Infinito.

Ansiosa, a moça o trouxe de volta ao lembrar que ele ainda não havia indicado a
terceira maneira. O monge sorriu e disse: “Toda vez que o Caminho lhe
apresentar uma bifurcação, onde de um lado apontar a avenida do brilho, no outro
indicar a rua do amor, dobre nesta última. Andamos por amor ou estaremos
adiando a viagem”. A mulher quis saber qual o risco neste caso. “Ser feliz”,
respondeu o Velho.

A bela mulher tinha os olhos mareados. Estava sinceramente tocada. Sorriu e


agradeceu com um beijo estalado na bochecha do monge. Ele lhe segurou as
mãos de forma fraternal e finalizou: “Todos imaginam que a fuga está através das
paredes externas, pois querem conquistar o mundo, quando, na verdade, o
segredo é seguir para o centro do labirinto onde encontrará a verdadeira porta. A
chave para abri-la é o seu coração e o destino final é o encontro consigo mesma.
Então, o mundo será seu!”.

OS PILARES DA PAZ

A pequena cidade, no sopé da montanha que abriga o mosteiro, despertava.


Suas ruas seculares, estreitas e tortas, ainda estavam molhadas do orvalho da
noite. Como eu tinha chegado cedo para os meus afazeres, segui até a pequena
loja de Loureiro a fim de convidá-lo para um café. De longe pude avistar sua
antiga bicicleta encostada junto ao poste, em frente à porta já descerrada. Fui
recebido com a alegria costumeira pelo amigo, sempre elegante nas vestes e nas
atitudes. Alto e magro, sua vasta cabeleira branca não escondia a idade
avançada. Calça bem cintada de cor preta a contrastar com a camisa de branco
imaculado, ambas de fina alfaiataria.

O sapateiro repousou as ferramentas sobre a bancada de trabalho e saímos os


dois, como bons meninos, a rir pelas ruas em direção à padaria. Sentados, com
as canecas quentes à frente, a espera do pão fresco, não pude deixar de notar
algo que sempre me chamava a atenção: a paz permanente que irradiava do
olhar e das palavras daquele sapateiro. Sempre me indagava sobre tal poder.
Porém, nossa conversa versou, como sempre, para a filosofia, a paixão de
Loureiro, a devorar todos os livros que lhe chegavam às mãos. “Apesar de todos
os avanços, e estes são incontestáveis, os meus preferidos ainda são os gregos.
Tudo que precisamos aprender já sabíamos há três mil anos”, comentou.
Perguntei se essa era a fonte de que ele bebia para exalar a serenidade tão
admirada por mim. “Toda a paz de que você precisa nasce do entendimento de
que nenhum acontecimento no mundo, por mais trágico que possa parecer,
poderá abalar os alicerces da sua alma sem a sua permissão”.

Eu quis saber se havia algum filósofo ou personagem histórico que lhe inspirava.
De pronto me disse: “Cada qual com a sua magnitude, muitos fizeram da própria
vida a perfeita obra de arte a iluminar o mundo. Foram faróis vivos a clarear as
noites tempestuosas da humanidade, mostrando que nossas escolhas, quando
revestidas de sabedoria, coragem, humildade e, acima de tudo, amor, insculpem
na alma a paz invencível, fruto da plenitude alcançada pelo ser. O mais incrível é
que está disposição de todos e qualquer um”, silenciou por alguns momentos
para me surpreender em seguida: “Tenho profunda admiração por todos, mas
meu favorito é Sócrates, claro”, concluiu com um sorriso maroto.

Loureiro contou uma passagem pouco conhecida, mas muito rica do famoso
julgamento do filósofo grego: “Todos sabem que Sócrates foi condenado à morte
pelas autoridades da época sob acusação de corromper a juventude, quando, na
verdade, aqueles que detinham o poder temiam o pensamento libertador que
contagiava a todos, embora suas ideais fossem absolutamente pacíficas”, deu
uma pequena pausa e continuou a narrar: “Ainda preso e antes do julgamento,
alguns amigos, sabendo que o processo era uma farsa e a sentença já estava
decidida antes mesmo da defesa, conseguiram engendrar uma fuga do cárcere
para o filósofo. No entanto, ele se negou a fugir. Aos companheiros atônitos
esclareceu que a fuga é incompatível com a verdadeira liberdade”.

Encantado, eu ouvia a história sem dizer palavra. “Sócrates foi condenado, como
era esperado, à pena capital por envenenamento. Na véspera da execução,
permitiram que sua esposa o visitasse e, para total surpresa, ela o encontrou
sereno na cela. Aflita e nervosa, lhe perguntou como ele poderia aparentar
tamanha tranquilidade diante de uma condenação absolutamente injusta. O
filósofo grego a olhou com os olhos repletos de compaixão, arqueou levemente os
lábios no esbouço de um sorriso doce e respondeu: ‘Ainda bem que a sentença é
injusta e nisto reside a minha paz’ ”.

Impactado com o que eu acabara de ouvir, fiquei longo tempo em silêncio. Ali
tinha elementos para se refletir por toda uma existência.

Notei que o elegante sapateiro me observava a tentar decifrar as reações da


minha mente, até que me trouxe ao âmago do que queria: “Percebe que toda a
paz de que necessitamos independe dos acontecimentos externos? ”.

Apesar da bela história, discordei ao lembrar de fatos desagradáveis e tristes que


nos acontecem, sendo muito difícil manter a paz diante deles. Loureiro rebateu:
“Sim, a vida está repleta de situações indesejáveis que refletem as imperfeições
de todos nós, como as confusões movidas por nossas sombras a se manifestar
pelo ciúme, inveja e medo; ou pelo transcurso natural da vida transitória no
planeta, como a morte e as doenças. No entanto, não duvide, cada qual delas
tem a sua razão de existir. Se por um lado a finitude física é apenas passagem
para a imortalidade do espírito que seguirá inexoravelmente sua jornada de
aprendizado rumo à Luz; por outro, os conflitos são resultantes das dificuldades a
serem aprimoradas e transformadas, sendo importante não esquecer que todos
os problemas são mestres disfarçados a nos aperfeiçoar e exercitar o nosso
melhor. É nessas horas que você adquire um novo olhar, se transforma e permite
que uma nova pessoa saia da casca”.

Comentei que a ambiência em torno de algumas pessoas ou lugares me eram


desagradáveis, seja por transbordarem agressividade, vício ou dor. Quis saber se
ele também sentia assim. “Sem dúvida. Entretanto, se você traz a paz dentro de
si, não haverá chance melhor para que seja exercitada. A flama de uma simples
vela é capaz de iluminar o fundo do porão escuro. Muita gente não tem ideia do
poder de uma palavra carinhosa ou de um abraço sincero em momentos de
absolutas trevas. Ser bom onde todos são bons não exige esforço. A virtude
reside em florescer no deserto”.

Tínhamos esvaziado as canecas e era hora de voltar aos afazeres. Quando


pensei que fôssemos levantar, ele surpreendeu e começou a falar. Seus olhos
pareciam viajar ao Infinito: “São quatro os pilares que sustentam a paz”. Deu uma
pequena pausa e disse: “O primeiro é a lealdade ao seu próprio código de
dignidade. A dignidade é o fino equilíbrio de atuar na esfera do bem e do justo,
sem esquecer, no entanto, a compaixão por aqueles ainda aprisionados nas
próprias sombras, para não descambar na viela limitada do moralismo, reduto da
intolerância e do medo”.

“O segundo pilar é a imortalidade do espírito. Entender que você é mais do que o


seu corpo, porém a alma que o habita transitoriamente. Não só pela verdade que
traz, mas por tornar a vida muita mais rica sob o aspecto filosófico. O prisma do
olhar se modifica ao transferir a finitude da existência, que nos leva à dor e ao
nada, pela evolução infinita do ser em processo contínuo de aprendizado e luz. A
morte deixa de ser o abismo para se transformar em ponte”.

Eu ainda tentava arrumar todos os pensamentos em minha mente, agora em


ebulição, mas ele não deu pausa: “A terceira pilastra a sustentar a paz é aprender
a abrir mão de ganhar sempre ou convencer o outro sobre a sua razão. Entender
que cada qual reage de acordo com o seu nível de consciência é agir com
misericórdia com os distintos graus evolutivos que coabitam o planeta. Falamos
as nossas verdades de maneira clara e tranquila e ouvimos a dos outros com
serenidade e respeito. Cada qual tem a sua verdade, mas o tempo se
encarregará de germinar a de melhor fruto. E, pode apostar, nem sempre será a
sua. Assim, por vezes, perder pode ser melhor que ganhar”.

“Preste muita atenção ao quarto alicerce da paz. A verdadeira paz nunca é


concedida, pois o que é dado pode ser tomado. A infinita paz a iluminar a nossa
alma – aquela a permitir o mar sereno apesar da tempestade intensa – é
construída com as ferramentas disponibilizadas pela sabedoria e pelo amor. As
conquistas imateriais são eternas e inabaláveis. A paz é uma conquista e você
não a encontrará em nenhum lugar, salvo dentro de si”.

“Sendo assim, fique em paz sempre, pois tudo, absolutamente tudo, que acontece
em nossas vidas é para o nosso bem. Ainda que no primeiro momento possamos
não compreender a mestria do Caminho, em razão de suas trilhas mágicas e
subliminares. Só algum tempo depois, após muitos passos, costumamos entender
a beleza das situações que lá trás pensávamos injustas, desnecessárias ou
incoerentes. Se ainda não a entendemos é porque ainda não caminhamos o
suficiente. Portanto, tenha paciência, esteja sempre disposto a aceitar as lições
com humildade e a fazer o seu melhor com a mais pura alegria”.

Deu uma pausa, se levantou, pegou o casaco e finalizou: “Ao sustentar os quatro
pilares ninguém ou coisa nenhuma será capaz de abalar a sua preciosa paz, pelo
simples fato dela ter se tornado inerente ao seu ser”.

O PODER DAS ESCOLHAS

“Ser forte é uma escolha. Ninguém nasce corajoso ou covarde, no entanto, todos
os dias, a toda hora, fazemos a escolha por fugir ou enfrentar a batalha que se
apresenta dentro e fora de nós”, falou Canção Estrelada, o xamã que através da
palavra, cantada ou não, narrava a sabedoria ancestral do seu povo. Estávamos
apenas os dois, sentados em torno de uma pequena fogueira sob o manto de
estrelas a inspirar a conversa. Naquele dia tinha ocorrido um cerimonial destinado
aos jovens da tribo que selava a passagem da adolescência para a vida adulta.
Lembrei das palavras ditas pelo xamã ao encerrar o ritual: “O entendimento de
que você é capaz de resolver os problemas que surgem, a aceitação da
responsabilidade que lhe cabe e a coragem para a luta, desenham a maturidade
formada no guerreiro, que somente após ser lapidado em muitas batalhas estará
pronto para se sentar entre os sábios”.

Comentei que admirava a valentia de determinadas pessoas que se mostravam


obstinadas em seus objetivos e verdades. Por fim, confessei, não sem uma ponta
de vergonha, que eu gostaria de ser um desses. O xamã deu uma longa baforada
em seu cachimbo de fornilho de pedra, me observou por instantes e disse: “Todos
os heróis que conheci navegaram os mares da dúvida e trilharam as florestas do
medo. São tempos sombrios, de incertezas internas, mas necessários. Buscaram
na quietude e no silêncio as respostas que precisavam. As dificuldades
aperfeiçoam o caráter e fortalecem o espírito. Só assim alicerçamos a força em
nós e aprimoramos as nossas escolhas”. De pronto falei que não tinha
compreendido todo o alcance de suas palavras. Canção Estrelada me mirou nos
olhos e falou: “As escolhas são as únicas ferramentas que temos para exercitar a
espiritualidade. Não há outra, daí o seu valor. Através delas você aprende
absolutamente tudo que precisa: a diferenciar o bem do mal; a essência da
aparência; a justiça das leis; que para ser grande é necessário ser
verdadeiramente humilde; que os verdadeiros revolucionários são mansos, pois
sabem que as transformações que mudam o mundo são interiores; que sem
pureza no coração não existe vitória; que é impossível ser feliz sem perdoar; que
sem compaixão não existe vida em comum; que sem renúncia não se pode amar
e, por fim, que sempre é possível escolher diferente e melhor”. Deu uma longa
pausa, com os olhos perdidos nas labaredas, e voltou ao assunto: “Gostamos de
pensar que somos o discurso que narramos sobre nós mesmos ao nos
apresentar aos outros. Mas não, na verdade, somos o somatório das escolhas
que fazemos no decorrer da existência. Elas nos fizeram chegar até aqui, entre
erros e acertos, dores ou delícias. As escolhas nos definem e indicam o futuro
próximo, pois estão inexoravelmente atreladas a Lei da Ação e Reação. As
escolhas mostram como você atravessa o Caminho, seus percalços ou
suavidade”.

Comentei que só naquele instante tinha me dado conta das centenas de escolhas
que fazemos durante um único dia. Das mais simples, mas não menos
importantes, como sorrir ao nos dirigirmos a alguém, até as mais complexas como
terminar um relacionamento ou mudar de emprego. “Tudo são escolhas. E por
mais opressora que seja a situação, sempre temos possibilidades de escolher.
Ficar ou partir, aceitar ou lutar, falar ou calar. As escolhas são as sementes
imortais da liberdade que nos habita e diferencia”, concluiu o xamã. Aproveitei e
falei que passava por um momento muito difícil, pois tinha que decidir sobre
questões pessoais e profissionais para que pudesse dar um rumo à minha vida.
As muitas chances que se apresentavam, diante das incertezas que tinha,
acabavam por se tornar em possibilidade nenhuma.

“Nossas escolhas são a espada do guerreiro ou a lanterna do sábio a desbravar e


iluminar a estrada da vida”, explicou. Ele deu uma pequena pausa e eu aproveitei
para perguntar ao Canção Estrelada por qual direção eu deveria seguir. O xamã
sorriu com bondade e falou: “Ninguém poderá lhe dar essa resposta, salvo você
mesmo. A sua escolha é fruto de todos os elementos que germinam dentro de
você. É o instrumento que afinará a melodia da sua alma. É a expressão do seu
nível de consciência e da pureza que traz no coração. Permita-se ficar a sós
consigo e entender que cada escolha definirá as condições próximas do
Caminho, pontes ou abismos, jardins ou desertos”.

Falei que muitas vezes hesitei em seguir por algumas trilhas por pensá-las por
demais arriscadas, noutras por não saber onde terminavam. Canção Estrelada
explicou com paciência: “Há caminhos mais seguros, que te levam a curta
distância, em paisagens previsíveis; trilhas mais perigosas, que podem te
apresentar um universo inimaginável. Para fazer a escolha preste atenção em
qual sentimento lhe move: a busca pelo aplauso fácil imposto pelas convenções
sociais ou o mergulho profundo na viagem ao aperfeiçoamento no exercício do
ser? Quando o seu movimento é impulsionado por nobres sentimentos o poder do
mundo passa para as suas mãos. Esta é a magia da vida”.

Canção Estrelada me olhou com severidade e disse: “Cada uma das escolhas
tem que vir revestida de dignidade, coragem, humildade, alegria e amor para que
o palco se descortine diante do fantástico espetáculo das possibilidades ainda
desconhecidas, a permitir que desperte o sagrado que adormece em ti”.
O sagrado em mim, como assim? Estranhei o termo. O xamã explicou: “Suas
escolhas movimentam as suas asas ou te impedem de voar. Elas são o sal da
vida, o sorriso no rosto, o encantamento por si e pelo outro, além da conexão com
a pulsante esfera invisível. Assim, as escolhas têm o poder de transformar o
mundano em sagrado pelo conteúdo e valor da transformação que irá gerar. Cada
escolha pode ser um ato vulgar ou ter a força transformadora do milagre”.

Insisti dizendo que não tinha entendido. Canção Estrelada me olhou diferente,
como um pai observa um filho e finalizou com a velha e boa lição: “A todo
momento o Caminho nos apresenta bifurcações. Por um lado, a atraente estrada
dos desejos, repletas de holofotes, privilégios e homenagens; do outro a discreta
trilha das necessidades de metamorfoses da alma, cujas as únicas luzes apenas
se acendem nos corações”. O xamã ficou algum tempo sem dizer palavra, como
se buscasse lembranças ancestrais, até que finalizou: “Nem tudo que reluz é luz.
Apenas a chama que brota nos corações puros pode iluminar os passos. O amor
tem o poder de sacralizar todos os atos e de transformar o mundo quando é a
força motriz das escolhas. O maior segredo da vida é muito simples, Yoskhaz:
escolhemos por puro amor ou escolheremos errado”.

O ESCUDO CONTRA O MAL

“Solicitar ajuda das forças luminosas do Universo em prol de uma dificuldade da


qual não se tem nenhum controle é louvável, pois demonstra humildade”, disse o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, a um
homem que veio ao mosteiro suscitar auxílio em uma situação que lhe afligia. Em
seguida alertou: “No entanto, pedir auxílio para que façam o trabalho que lhe
cabe, apenas revela a falta de entendimento das Leis, pois não acontecerá. A
vida não endurece para maltratar, mas para ensinar. Não há privilégios, apenas
lições”

Como uma tempestade que chega sem anunciar, a vida desse homem parecia,
de uma hora para outra, virada ao avesso. Brigas familiares insensatas e
complicações profissionais que levaram à dificuldade financeira inesperada, eram
as consequências imediatas e visíveis do inferno que ele vivia em solo terreno.
Com os olhos mareados, se confessou desorientado para continuar na luta.
Estávamos no refeitório, os três, e eu lhes servia café com bolo de milho. O
homem, de ótima aparência e muito culto, narrou que até há poucas semanas
navegava em águas tranquilas pelos mares da vida. Uma família aparentemente
bem estruturada; sócio de uma empresa que gerava lucros suficientes para
sustentar condição material bem acima da média. Até que, em algum momento,
tudo desandou.
“A vida exige movimento. Assim, te fará caminhar por gosto ou imposição. A
inércia e o comodismo são ferramentas das sombras a atolar o viajante. Aos que
buscam incessantemente o aperfeiçoamento do próprio ser, a vida há de ser
generosa, a fornecer todas as condições necessárias para o prosseguimento de
uma viagem serena”, explicou o Velho. Deu uma pequena pausa, sorveu um gole
de café e prosseguiu: “Aos que se iludem eleitos dos deuses, alheios a tudo e a
todos, aos que se imaginam ‘escolhidos’, não tardará o desequilíbrio sobre as
situações que o sustentam. A Lei do Serviço é parte do Código Não Escrito e
obriga ao trabalho e ao progresso espiritual. Crises emocionais, brigas afetivas,
desavenças familiares, dificuldades econômicas ou doenças, são alguns dos
instrumentos de instabilidade utilizados pelo Universo para impor novo momento
de adaptabilidade diante da realidade alterada. Agora a criatura caminhará por
necessidade”.

“O Caminho é muito generoso em te permitir escolher as rotas da viagem,


entretanto, muito justo em elaborar as dificuldades inerentes ao trajeto. O Mestre
ensinou há milênios que devemos atravessar a porta estreita das virtudes. No
entanto, muitos ainda escolhem seguir pela estrada larga das vantagens
indevidas. Afagam o ego em prejuízo a alma. O resultado? Após os prazeres
imediatos e transitórios, anda-se em círculos por trilhas cada vez mais escuras e
esburacadas. Agonia e tristeza se apresentam como companheiras de viagem”. O
homem, muito sensibilizado, confessou que, de fato, não vinha oferecendo o
melhor de si. Aflito, perguntou ao Velho como poderia mudar a própria vida, pois
não sabia para onde seguir. O monge arqueou os lábios em um sorriso repleto de
compaixão e disse: “Quer um novo Caminho? Basta mudar o seu jeito de
caminhar”.

“Problemas sinalizam a necessidade de mudanças. Entenda o que você precisa


transformar em si e se dedique a isto com sinceridade. Só então chegará a ajuda
da esfera invisível”.

O homem argumentou que sofria muito, não imaginava como fazer e, mais, a
atual situação se mostrava tão nebulosa que não acreditava ser capaz de
solucionar todos os problemas sem a ajuda das forças superiores. O Velho
respondeu com a voz bondosa: “O Universo não quer que você sofra, porém
exige que você evolua para chegar a próxima estação. Aprender, se transformar,
compartilhar e seguir são momentos distintos de cada etapa nas inúmeras
existências permitidas, como escolas de sabedoria e amor”.

O homem disse que precisava também de muita proteção, pois tudo de ruim
parecia acontecer a ele naquele momento. O monge mordiscou um pedaço do
bolo e falou: “Estamos sujeitos à inexorável Lei da Ação e Reação, uma das que
compõe o Código Não Escrito. Ela atrai para a sua vida pessoas e situações que
lhe são adequadas, não por punição, mas de acordo com o rigor necessário para
o aprendizado do aluno, no mesmo diapasão de suas atitudes. O perfume da flor
atrai pássaros e borboletas; o odor do esgoto chama para si os ratos e as
baratas. Assim, escolhemos os que nos acompanham e definimos o destino
próximo”.

“Ninguém está fora do alcance das Leis. Os guardiões ou anjos do Universo ficam
impedidos de interferir em razão da situação conflitante ser parte da lição que
cabe a você. Assim, você precisa se ajudar para ser ajudado. É uma grande
ilusão achar que a casa do mal é o mundo. A sua raiz está em cada um de nós,
em maior ou menor intensidade, a depender da expansão de consciência
individual. Acredite, ninguém lhe prejudica mais do que você mesmo. Equalizar
emoções e pensamentos nas ondas de Luz, envolvendo-os com amor, para que
possam se materializar em boas atitudes é a defesa mais eficaz contra o mal.
Pois, cria uma abóbada de proteção energética a sua volta, a permitir a
aproximação de seus exércitos com maior rapidez, permissão e poder. Como
pode ver, o melhor escudo contra o mal é um coração puro”.

“Nunca lhe faltará o auxílio. Entretanto, cada qual terá a ajuda na exata medida
das suas necessidades de desenvolvimento, da vontade sincera de se
transformar, de semear flores para quem vem atrás. Não podemos esquecer que
as dificuldades nos trazem as lições indispensáveis para o aprimoramento da
alma, muitas vezes ainda bem embrutecida, necessitando de métodos rigorosos
de aprendizado”.

“Reflexões e meditações no encontro consigo próprio são ferramentas poderosas


para a ampliação de consciência. Leituras auxiliam na criação de ideias e
sustentação filosófica. As preces germinadas no coração são de extremo valor,
pois auxiliam no equilíbrio emocional e o auxílio rogado, de algum jeito, nunca
faltará, no entanto, não esqueça que santo nenhum dará os passos que cabem a
você. A ajuda jamais chegará em forma de carroças repletas de ouro ou que a
pessoa amada se dobre aos seus desejos. O auxílio vem através de sinais que
indicam um novo sentido e aos ‘acasos’ que criam situações inimagináveis a fim
de nos proteger. Ou por intermédio de intuições luminosas que indicam as
indispensáveis metamorfoses da alma, as mudanças em seu sentir, pensar e
agir”.

“Esta é a alquimia da vida: a transformação de sombras em luz, de dor em amor.


Este é o mais precioso dos milagres e muitos nem se dão conta de que os têm na
mão”.

Como um vício moderno, o homem reclamou da situação do planeta, que está


tudo errado em todo lugar e do mal que parece campear sem rédeas. O monge
mirou em seus olhos com doçura e falou: “Quando lamentamos o mundo,
criticamos a nossa própria situação interna. O mal é fruto das sombras que
habitam cada um de nós, nossas imperfeições e dificuldades, a formar um
coletivo de iniquidades. Do contrário é também verdadeiro afirmar que somos a
Luz na construção do bem e na manutenção da Obra. Através dos séculos o
mundo sempre foi a exata fotografia de nossos corações. Do meu e do seu. Quer
mudar o mundo? Transforme a si próprio. Como? Aperfeiçoe as suas escolhas”.
O homem acenou com a cabeça em concordância, mais por desconcerto do que
por satisfação.

Em seguida, tornou a lamentar a própria situação e insistiu que lhe fosse dito
como, de forma objetiva, poderia reverter as atuais dificuldades. “Não faço a
menor ideia”, disse o Velho. Diante do olhar atônito do homem, pediu para que eu
lhe servisse mais um pouco de café e explicou: “Administrar a vida alheia é muito
fácil e tentador, entretanto também demonstra leviandade e arrogância. O
exercício da vida, com suas dores e delícias, é a ferramenta pessoal e
intransferível de que dispomos para desenvolver as asas da alma, alavancar a
nossa evolução. Entenda, aceite e use adequadamente a liberdade de buscar e
decidir”.

“Apesar de nunca lhe faltar ajuda – e que sejamos claros, não para um desfecho
mágico dos seus problemas, pois o auxílio não será na medida dos desejos do
seu ego, mas das necessidades de sua alma, ou seja, por intermédio de
condições para alterar, por si e através de si, a realidade – a parte mais
importante do processo terá que ser feita por você, na ampliação de sua
consciência, no burilar do coração, no desapego dos velhos conceitos. Medidas
que refletirão no aprimoramento das suas escolhas”.

Observou o homem por alguns instantes e aconselhou: “Procure o silêncio e a


quietude para ficar a sós consigo. Mergulhe fundo, conhecer a si próprio é a
estrada para a plenitude. Estabeleça para si mesmo cláusulas invioláveis de amor
e dignidade. Perceba o que precisa ser modificado em sua vida. Absolutamente
tudo pode ser diferente e melhor. Todos os sábios já fizeram isso para romper a
dureza do casulo e sentir as asas da liberdade”.

O Velho pediu para unirmos as mãos e fez uma prece sentida por amor e Luz. O
homem agradeceu educadamente a conversa, a oração e partiu. A sós com o
Velho, falei que tinha a impressão de que o visitante tinha ficado um tanto
decepcionado. “Poucos aceitam os encargos e o trabalho que lhes cabem.
Todavia, se as minhas palavras forem uma boa semente, cedo ou tarde
germinará”, disse o monge. Deu uma pequena pausa e finalizou: “Na verdade, as
transformações exigem grandes esforços que nem todos parecem dispostos a
operar. Pensam ser mais fácil rogar por um milagre, que nunca virá, pois o bom
educador não faz o dever do aluno. Roga-se por socorro para que se materialize
um castelo de muros altos a garantir privilégios e mordomia, quando, na
realidade, a ajuda sempre chegará em forma de ponte, toda vez que existir a
vontade sincera do andarilho em caminhar e atravessar o abismo”.

PELO PRISMA DA LUZ

“O que nos faz bom ou mau não é o que nos acontece, mas como reagimos ao
fato”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do
mosteiro, provocando uma grande discussão na universidade de uma grande
metrópole, onde fora convidado para uma mesa de debates com filósofos,
professores, cientistas e artistas. Um dos participantes, homem culto e gentil,
discordou frontalmente, argumentando que as pessoas são frutos do meio em
que vivem. Articulado com as palavras e ótima retórica, sustentou que as
experiências do convívio social obrigam e aprisionam as escolhas, através de
seus sucessos e traumas. O Velho tornou a discordar: “Atribuir ao mundo a
responsabilidade por nossos erros é vestir a fantasia da pobre vítima. Isto não
ajuda ninguém em nada. É fundamental que se dispa do personagem para
entender que se pode fazer diferente. Seguir sem a culpa que limita, mas com a
responsabilidade de que agora em diante fará melhor, pois terá compromisso com
a Luz”.

O debate ficou acalorado e todos se manifestaram. A maioria pensava como o


professor e alguns outros como o monge, que manteve a postura serena, mesmo
diante de uma historiadora que atacou duramente o seu posicionamento. Ela
pediu que ele definisse o que era “compromisso com a Luz”. O olhar do Velho me
encontrou sentado na plateia e pude perceber o quanto ele achava tudo aquilo
interessante. Tomou um gole de água e respondeu: “Compromisso com a Luz é
um código de dignidade que cada um de nós tem que escrever na alma para
nortear a conduta, com leis próprias baseadas no melhor que existe em si.
Princípios do mais puro amor e da mais clara sabedoria devem iluminar as suas
linhas e ações. Porém, como passamos por infinitas transformações, esse código
de conduta não é definitivo. Ele sofrerá mudanças na medida que aquela alma
evoluir. Aos poucos, seus conceitos se modificarão por outros mais iluminados. O
instrumento que permitirá tal evolução será as escolhas que o aperfeiçoará
através das dificuldades, inerentes à vida, a lhe ensinar valiosas lições
indispensáveis à evolução. Para tanto, se faz indispensável estarmos em
movimento constante, na eterna busca pela Luz. Este é o compromisso, este é o
Caminho”. Deu uma pequena pausa antes de concluir: “Cada qual é o herói do
próprio filme e todo herói, por princípio, acaba, cedo ou tarde, por buscar o lado
Ensolarado da Estrada”.

Os ânimos se exaltaram ainda mais e nem de longe houve qualquer consenso.


Mais tarde, naquele mesmo dia, comentei que me espantava vê-lo tão tranquilo
diante de tanta discórdia e ataques: “Tentar convencer os outros é inútil; durante
uma discussão é tolice. Devemos ouvir com respeito e falar as nossas verdades
com serenidade e clareza. No silêncio da alma a boa semente um dia há de
germinar. Aqui ou ali. As ideias precisam do adubo da quietude para florescer”.

Falei, também, que concordava com a maioria dos debatedores. Achava que o
ambiente social é determinante para a formação das pessoas, atenua e justifica
as suas fraquezas. O Velho coçou a barba e disse: “Claro que tudo que nos
acontece nos influencia, pois é fonte de aprendizado e, não raro, demoramos a
entender. O que não quer dizer que se te acontece algo ruim, isto vá justificar
uma má atitude. São essas escolhas que nos definem”. Tornei a discordar e o
acusei de estar sendo muito ingênuo diante da vida. Ele apenas me observou e
não disse palavra.

No dia seguinte, quando regressaríamos ao mosteiro, o Velho me entregou um


pequeno pacote e me pediu o favor de deixá-lo com uma amiga que morava no
subúrbio daquela grande cidade. Ele cuidaria de outros compromissos e nos
encontraríamos à noite para viajar. De posse da encomenda e do endereço,
peguei o metrô e desci na última estação. Depois enveredei por uma malha de
becos e vielas que seguia através de informações que conseguia com um e outro.
Na medida que avançava, as casas ficavam cada vez mais humildes e eu tive a
sensação de que jamais conseguiria sair daquela teia. Comecei a sentir medo.
Em determinado momento, sem saber em qual direção seguir, ouvi uma bela voz,
ao longe, a cantar uma canção que de tão bonita parecia encantada e reverteu o
sentimento que começava a tomar o meu coração. De imediato lembrei da
Odisseia de Ulisses e do perigo que o protagonista enfrentou diante do canto das
sereias. De início interpretei como um mau presságio. Entretanto, lembrei que o
Velho sempre me ensinou a respeitar e interpretar os sinais. Enchi o coração de
esperança, vez que perdido eu já estava e deixei que a melodia me guiasse até
uma casa simples e muito velha, porém bem cuidada. No quintal, algumas
crianças brincavam com evidente alegria. Aproximei-me da janela e uma mulher,
que não consegui precisar a idade, cantava enquanto costurava. Quando me viu,
sorriu e disse: “ Eu estava lhe esperando”. Largou a agulha e se levantou para
abrir a porta. Fui recebido com alegria e tomado por uma indescritível sensação
de bem-estar. Ela vestia um vestido simples, porém com um belo estampado em
cores fortes. Uma rosa vermelha lhe prendia os cabelos negros. Fez uma mesura
e, sem que eu precisasse perguntar, falou: “Meu nome é Mercedes. Sim, eu sou
uma cigana”. Levou-me até a cozinha e tirou um bolo cheiroso do forno. Chamou
as crianças, eram seis, que comeram em alegre algazarra e rapidamente
voltaram para brincar no quintal.

Perguntei se eram seus filhos, pois achei-os muito diferentes entre si. “Sim, são
todos meus filhos. Todas as crianças que passam pela porta desta casa e
desejam ficar, se tornam meus filhos”, explicou. “O primeiro surgiu não sei de
onde, simplesmente apareceu. Não devia ter mais de quatro anos. Disse que vivia
na rua desde sempre, não tinha família e estava com fome. Convidei-o para ficar,
coloquei-o na escola, cuidei dele. Ninguém veio reclamar. Depois ele trouxe outro
que encontrou abandonado na rua, em condições parecidas. Também ficou. De
igual modo chegaram os demais. São todos filhos; são todos irmãos. O coração
tem o poder de alargar as próprias fronteiras até o infinito, na exata medida do
amor que temos”, seus olhos tinham um brilho que eu nunca vira igual.

Não resisti a curiosidade e indaguei se era casada ou se possuía uma família.


“Perdi meus pais ainda na infância, fui criada pelos cantos, ora aqui noutra ali.
Sofri o preconceito da pobreza e da minha etnia, mas desde logo resolvi fazer
disto a minha força. Tornei-me uma moça vistosa, não tanto pela beleza física,
mas por uma alegria que sempre fez parte de mim. Penso que esta é a causa do
brilho e da atenção que sempre chamei. Casei cedo, mas meu marido logo me
trocou por outra mulher que poderia lhe proporcionar uma vida mais confortável.
A casa era dele. Peguei tudo que tinha, que mal enchia uma sacola, desejei-lhe
boa sorte e segui em frente”, falou com a tranquilidade de quem tem a vida bem
equacionada dentro de si. Eu quis saber se tudo isso tinha lhe causado revolta.
“Não há espaço para mágoa, apenas para o entendimento de que cada um age
de acordo com amplitude da sua alma. Sentir-se vítima é chamar para si o papel
do fraco. Lamentações nos tornam chatos e em nada ajudam. Percebi que as
trombadas tinham o poder de me fortalecer, como a mão de um estivador que fica
calejada e melhor afeita ao trabalho depois de tanto peso”.

Perguntei como conseguia alimentar, vestir e educar aquelas crianças, que


pareciam bem cuidadas e felizes. “Vivo do meu ofício de costureira. Por vezes,
exerço a arte do meu povo de jogar cartas a falar do destino; da parte que não
cabe o arbítrio; das permissões e compromissos que assumimos antes desta
existência. Embora não cobre a consulta, as pessoas, quando satisfeitas, fazem
alguma doação, que aceito com grado e acaba por ajudar nas despesas. Nunca
nos faltou nada”. Ela me serviu uma xícara de chá com um generoso pedaço de
bolo, depois falou: “Aprendi que o importante é sempre oferecer o seu melhor,
colocar a maior dose de amor possível em tudo que fizermos. Depois é deixar que
a magia da vida cuide do que é necessário”. A cigana me mirou nos olhos e disse
em tom baixo, como quem revela um segredo: “E cantar. Cantar sempre. A
música espanta os maus espíritos” e sorriu.

Depois, Mercedes abriu o pequeno pacote enviado pelo Velho. Dentro além de
um belo pregador de cabelos em forma de flor, que ela adorou, tinha um outro
embrulho menor destinado a mim. Surpreso, abri e encontrei um par óculos sem
lentes. À parte, vários jogos de lentes de muitas cores. Atônito, olhei para cigana
sem entender o que aquilo significava. Ela jogou os cabelos para trás e deu uma
risada gostosa e disse: “É uma antiga mensagem codificada entre os esotéricos.
Consegue entender?”. Falei que não e pedi para que fosse mais clara. “Diz que
podemos escolher as lentes pelas quais vemos o mundo. As do drama ou as da
alegria; as da tragédia ou as das lições. O seu olhar será determinante para que o
fato defina a sua reação. Olhos de drama costumam enterrar os sonhos; olhos de
aprendiz alavancam a evolução”. Rimos juntos dos truques do Velho, como um
mágico a nos encantar com o imprevisível. Por fim, a bela cigana me disse: “ Tem
uma frase dita pelo Mestre há milênios que define a maneira como
atravessaremos o Caminho: ‘Se o seu olho é bom, todo o seu corpo é Luz’”.

A VOZ DO CORAÇÃO

Encontrei Canção Estrelada – o xamã recebera este nome por causa do seu dom
de preservar e semear a tradição do seu povo através da palavra, cantada ou não
– trocando o couro do seu tambor de duas faces em frente à sua tenda. Eu tinha
resolvido sair da cidade por um tempo, andava chateado com as duras críticas
que os originais do meu último romance tinham recebido, a ponto de me levar a
duvidar do meu próprio talento como escritor. Até tinha recebido alguns elogios,
no entanto as críticas foram ferozes e a tristeza me corroía as entranhas. Assim
que o vi, derramei todas as minhas queixas. Do jeito que ele estava trabalhando,
continuou e sem levantar os olhos, falou: “Você não está sabendo dar a exata
medida às opiniões alheias. Nem todo elogio é sincero nem toda crítica é justa”.
Ele parou de encordoar o tambor por alguns instantes, me mirou nos olhos e falou
com sua voz mansa e rouca: “Já lhe ensinei sobre o Portal Sul, penso que chegou
a hora de falar sobre o Portal Oeste, onde mora o urso na Roda de Cura”.
Mandou-me descansar e que fosse ao seu encontro quando “o Grande Mistério
agasalhasse a Terra com seu manto de estrelas”.

À noite encontrei o xamã sentado, sozinho, em frente a uma pequena fogueira.


Convidou-me para fumarmos juntos o seu inseparável cachimbo de fornilho de
pedra. Após algumas baforadas em silêncio, falou: “A Roda de Cura é o símbolo
sagrado que representa a vida de cada um nesta existência. A vida é o
tratamento de cura do espírito. A cada lição aprendida ou ferida cicatrizada
avançamos um aro na Roda”. Deu uma pausa e prosseguiu: “No lado Oeste da
Roda, onde o sol se põe, fica o espaço sagrado do Urso, a sua caverna, onde ele
se retira para o sono invernal depois de experimentar todos os alimentos das
demais estações”. Aguardei sem dizer palavra, pois não estava entendendo onde
Canção Estrelada queria chegar. “O urso procura o silêncio da caverna para se
aquietar e ficar um longo período a digerir tudo que comeu. Com a chegada da
primavera, ele acorda mais forte para enfrentar e viver a vida. Esta é a lição e o
poder do urso. Conosco não é diferente”. Insisti que continuava sem entender. Ele
me olhou com sua enorme paciência e disse: “Cada vez mais as pessoas ouvem
todas as vozes em detrimento às palavras do próprio coração. Escutam muito,
mas entendem pouco. Percebo uma enorme busca por distração e divertimento,
não que isto seja ruim, mas estão desaprendendo a ouvir a sua própria verdade,
pois têm cada vez mais dificuldades em ficar apenas consigo, como se não
entendessem que a solidão é um exercício necessário para escutar a voz do
coração. Ou será que estão fugindo de encontrar consigo próprias? Por que
temem tanto esse encontro?”.

Argumentei que ouvir é importante, pois aprendemos muito com os outros. “Sem
dúvida, porém só você poderá escolher em qual direção seguir”, ele respondeu e
continuou: “Para tanto, é necessário filtrar, depurar e contextualizar as vozes do
mundo, sem esquecer que apenas você sabe e pode decidir sobre a própria vida.
Não pode temer as suas escolhas, pois são os únicos apetrechos de que dispõe
para o seu aperfeiçoamento, o que lhe diferencia e o torna único a exercer os
dons que lhe pertencem. Seguir a manada não te fará escapar das
responsabilidades que lhe cabem, apenas impedirá que floresça o que existe de
melhor em você. Aqueles que Caminham em Beleza não podem abdicar da
valiosa lição do urso, a busca por si próprio e o encontro com a sua verdade”.

Perguntei-lhe como poderia vivenciar os ensinamentos do Portal Oeste. O xamã


deu uma longa baforada, seus olhos pareciam perdidos nas estrelas. Ele falou:
“São três passos. O primeiro é a introspecção. Na quietude e no silêncio, penetre
no seu espaço sagrado em um mergulho profundo nas águas tranquilas da
essência do seu ser. Estar apenas consigo é maravilhoso”. Observou-me por
alguns instantes e perguntou: “Gosto de confraternizar com o meu povo, mas
você consegue perceber a importância da solidão?”. A pergunta era apenas
retórica, pois ele não esperou resposta e continuou a falar: “O segundo passo é
ter a sabedoria de ouvir a própria voz para saber discernir entre voz do ego e a
voz da alma. Somente esta última te falará a verdade sobre o Caminho. Pois
enquanto o ego te diz sobre as paixões, a alma te revelará todo o amor
necessário. Acalme o ego, permita que a alma brilhe em toda a sua luz e encante-
se!”.

Eu quis saber sobre o terceiro passo. Canção Estrelada falou: “Depois é


estruturar toda a sua vida em função da verdade revelada. Não pense que será
fácil, pois precisará de coragem e desapego para abandonar as velhas formas
contidas em conceitos e comportamentos que não mais lhe servem, pois foram
impostos por padrões culturais e sociais ou pelas expectativas que os outros têm
sobre você. Ou, pior ainda, são limites impostos por quem não acredita em sua
capacidade de criar e transformar o próprio ser e, por consequência, a vida. No
entanto, ao final da introspecção invernal o urso está pronto para sair da caverna,
ele se aperfeiçoou e afinou as suas escolhas no diapasão da própria verdade. Ele
está consciente de sua capacidade e talento. Nenhuma tempestade o impedirá de
seguir em frente, pois ele traz consigo a força do Caminho. É o momento de
revelar todo o seu poder e magia!”.

Ficamos a olhar para o infinito sem dizer palavra por um tempo que não sei
contar, até que Canção Estrelada rompeu o silêncio: “Entender os ciclos em que
cada um de nós está sujeito é fundamental para viver com serenidade. Cada ciclo
só se encerrará na medida que estivermos aperfeiçoados e fortalecidos para o
novo momento, assim como a borboleta só rompe o casulo quando suas asas
estão maduras para alçar voo”. Quis saber como poderia aplicar todas aquelas
palavras em meu atual momento profissional. “Você pode aprender com os
outros, mas nunca permitir quem quer que seja de lhe abalar e furtar a paz. Se
isto ainda acontece, é porque você ainda não encontrou consigo nem
amadureceu as asas para voar”.

Comentei que desconfiava que este era o meu caso. Canção Estrelada sorriu
com os olhos e finalizou: “É hora de vestir a pele do urso, entrar na caverna para
ter um importante encontro consigo próprio e buscar o precioso diamante que lhe
aguarda”, antes que eu perguntasse do que se tratava, ele concluiu: “ As vozes
do mundo sempre comparam uns com os outros. Aprender a ouvir a voz do
coração é descobrir a beleza de ser único”.

SABEMOS MAIS DO QUE FAZEMOS

Mais um dia de trabalho se encerrava na pequena e secular cidade próxima à


montanha que acolhe o mosteiro da Ordem. Apressei o passo na esperança de
conseguir encontrar a oficina de Loureiro ainda aberta. Não que eu tivesse
qualquer conserto a fazer, mas queria conversar um pouco com aquele amigo
querido. Ao longe pude perceber a sua bicicleta ainda encostada ao poste de
iluminação, sinal de que eu estava com sorte. O sapateiro, elegante como sempre
no vestir e no agir, me recebeu com alegria e, para minha surpresa, estava com
Sara, a Moreneta, como carinhosamente chamava a filha, uma belíssima e jovem
mulher com longos cabelos negros, razão do apelido. Ela, que agora morava na
capital, onde trabalhava e cursava o doutorado em prestigiosa universidade, tinha
vindo passar uns dias com o pai. Muito meiga e educada disse que nos deixaria a
sós para conversarmos e que o aguardaria mais tarde em casa. Loureiro me
mostrou os novos livros de filosofia que a filha lhe trouxera de presente. A filosofia
era a outra paixão do bom sapateiro. Ele me convidou para uma taça de vinho em
uma silenciosa taverna próxima dali. Fomos a pé e antes mesmo de chegarmos,
lhe indaguei de como foi a experiência de educar sozinho uma filha. “Sabemos
mais do que somos. Todos temos conhecimentos que não conseguimos exercer.
Então, a vida, em sua infinita inteligência, nos impõe conflitos e dificuldades para
que entendamos a sua beleza e nos obrigue a vivenciá-los. Cabe a nós aproveitar
as preciosas lições com alegre resignação”, falou de maneira a mostrar os
alicerces do raciocínio que construiria.

Sentados à mesa com duas taças de tinto, voltamos ao assunto. “Não somos o
que pensamos ou o que falamos, mas o que fazemos. Nossas escolhas nos
definem”. Deu uma pequena pausa antes de prosseguir: “Quando a mãe da Sara
partiu em busca do seu sonho de ser atriz e me deixou com responsabilidade de
cuidar e educar uma menina ainda na infância, em um primeiro momento fiquei
muito revoltado por me sentir traído e abandonado com a minha filha. O mais
engraçado é que na época eu já tinha consolidado em minha mente todos os
conceitos de respeito à liberdade alheia”. Interrompi sob o argumento de que toda
liberdade traz a reboque uma dose exata de responsabilidade e a mãe tinha o
dever de também cuidar da Sara. “Sem dúvida”, respondeu o elegante sapateiro.
“No entanto, não podemos ficar lamentosos, chatos, atados e dependentes das
escolhas de ninguém. Eu já não tinha mesmo a responsabilidade sobre a criação
da minha filha antes de ela partir? Era apenas uma questão de mudar o olhar, de
adaptabilidade, de aprender a me adequar a uma situação diferente, de me
obrigar a fechar um ciclo já ultrapassado e permitir que um novo se iniciasse”.
Contestei dizendo que dividir a tarefa torna-a mais leve. “Mas não tão forte e
sábio”, ele retrucou e logo explicou: “Sempre há ganhos, pode apostar. Aprendi
tanto ou mais que nos livros de filosofia, ou melhor, fui levado a colocar em
prática todo aquele conhecimento adquirido em milhares de páginas. Só assim
fizeram sentido e permiti que o conhecimento se transformasse em sabedoria.
Este talvez tenha sido o maior deles”.

Eu quis que ele fosse mais específico. Loureiro bebeu um gole de vinho e disse:
“Orientar um filho sobre o valor das boas virtudes é importantíssimo; dar o
exemplo é indispensável. Assim é no convívio social quando o discurso se
divorcia da prática, a boa palavra termina por perder o seu poder, como água
pura a se derramar no chão para juntar lama”. Ficou alguns momentos em
silêncio, me mirou nos olhos e prosseguiu: “De que adianta toda uma teoria de
respeito à liberdade de opinião e escolhas dos outros, se a minha filha podia
perceber a minha mágoa pela decisão da mãe em partir?”. O sapateiro estava
visivelmente emocionado, talvez por lembranças de toda uma existência. Pensei
em mudar de assunto, porém a sua voz estava serena como de costume. Ele
continuou com seu jeito doce: “Entendi que evoluir nada mais é do que iluminar
as próprias sombras. A mágoa pelo abandono precisava ser transmutada em
respeito pelo sonho da mãe da Sara em decidir o que lhe cabia sobre a própria
vida, ainda que eu discordasse totalmente.
Minha filha poderia crescer em uma casa em que ouviria que sua mãe era louca e
irresponsável ou em um lar harmonioso onde entendesse a mãe por abdicar de
coisas importantes em busca do seu sonho e a respeitasse por isto. Havia pelo
menos dois olhares sobre a questão: o que alimentaria as sombras ou o que
iluminaria o amanhã de nós três. Percebe que a gente sempre tem uma escolha?
Apenas assim foi possível para a minha filha entender o verdadeiro valor e
respeito pela liberdade que está contido na escolha do outro, crescendo sem
ressentimentos ou distribuição de culpas a esmo. E por isto, e graças a isto, eu
aprendi o quanto a vida é sagrada, ao nos impulsionar ao exercício do amor mais
puro e da sabedoria mais límpida através de trilhas que muitas vezes só vamos
entender muito tempo depois. Foram lições valiosas sobre bom senso, tolerância
e paciência, a esperar pelo doce fruto da árdua semeadura, pois a vida tem o seu
próprio tempo de amadurecimento sobre todas as coisas. Os nossos
relacionamentos e o convívio social são os adubos do jardim a fomentar a prática
da teoria que sabemos e ainda não praticamos, como a semente que precisa da
pressão da terra para estourar e germinar. Assim, Sara se tornou uma bela e
preciosa flor”.

Concordei com ele sobre o valor de termos as melhores atitudes a corroborar as


boas palavras, pois do contrário teremos uma sociedade de descrentes nas
virtudes humanas, justo aquelas que elevam e dão sentido à existência. Ele me
observava em total silêncio e quando me calei, falou: “Sim, mas vamos com
calma. Toda tribo tem a fama na justa medida do comportamento dos seus
habitantes, o que apenas nos mostra o atual estágio e ensina que apenas haverá
evolução no compasso das transformações íntimas de cada cidadão. Não existe
outra maneira de mudar a realidade de um povo”, bebeu o último gole de vinho,
concordamos em pedir mais uma taça para cada um e ele continuou: “Como lhe
disse, sabemos mais do que somos” e passou à conclusão da premissa do início
da conversa: “Penso que esse processo é natural, mas precisa ser consciente. Na
teoria, todos somos bons e do bem; na prática, nem tanto. Seja eu ou você. A
mente vai sedimentando os valores que precisamos aprender e, aos poucos,
insiste para que o coração os vivencie. Começamos aos poucos, abdicando de
certos vícios comportamentais por concordar que eles estão distantes do bem;
assim praticamos as boas ações em obediência à consciência, por imposição do
raciocínio. Aos poucos começamos a modificar as nossas atitudes por mergulhar
em novo padrão vibracional modificados pela luz do novo jeito de agir. As
virtudes, então, passam aos poucos a se tornar inerentes e indissociáveis do
nosso novo ser, a integrar definitivamente a alma. O bem não precisa mais do
‘pensar’ por, agora, fazer parte do ‘sentir’. A sabedoria se transformou em amor e
migrou da mente para o coração”.

O garçom trouxe novas taças cheias de vinho. Ele propôs um brinde: “A todas as
transformações oferecidas pelas generosas lições do Caminho! ”. Com os olhos
mareados, finalizou em tom muito baixo, quase como segredasse consigo
mesmo: “As dificuldades são as ferramentas que nos obrigam e ensinam a
construir as pontes sobre os abismos da existência. Só então nos habilitamos a
prosseguir a viagem”.

Continuamos a conversar sobre a magia da vida e suas fantásticas revelações,


por um tempo que não sei precisar, até que fomos gentilmente convidados a ir
embora. A taberna precisava fechar.
A GRANDE AVENTURA

Eu caminhava pelas ruas medievais da pequenina cidade que fica no sopé da


montanha que acolhe o mosteiro. Era acossado pelos ventos frios de outono que
obrigavam a me proteger entre os vãos e muradas das antigas construções.
Alegrei-me ao ver a clássica e bem conservada bicicleta de Loureiro encostada
no poste em frente a sua oficina. Encontrei o bom sapateiro elegantemente
vestido, como de costume, a trabalhar em uma cara bolsa de uma belíssima
mulher, que aguardava o conserto. Fomos apresentados e o hábil artesão
explicou que a jovem tinha sido amiga de escola da sua filha, portanto, a conhecia
desde criança. Contente em me ver, ele pediu para que eu esperasse um pouco,
pois queria me falar sobre um novo livro de filosofia enquanto tomávamos um
café. Trabalhar sobre o couro era o ofício de Loureiro; prosear sobre filosofia, a
sua arte. Nem tinha me aquietado em um canto, a bela mulher continuou a falar
das viagens por lugares exóticos que já tinha feito. Passeios de balão sobre
vulcões, saltos de paraquedas em queda livre, perigosas corredeiras em frágil
caiaque, entre outras façanhas. Arrematou afirmando seu enorme gosto pela
aventura. O sábio artesão, imerso no trabalho, não disse palavra. Logo em
seguida, como se sentisse dificuldade na quietude e no silêncio, a jovem falou
que não via a hora de iniciar a escalada ao Everest que programara para o
próximo verão e começou a discorrer sobre os preparativos e riscos da nova
empreitada. Até que em determinado momento da narrativa, disse que esse gosto
pela aventura adquiriu do ex-marido. Nesse momento, o sapateiro sem levantar a
cabeça, apenas me olhou por sobre os óculos que lhe corrigiam a vista cansada,
permaneceu calado e voltou ao trabalho. Como em uma ópera previsível, logo em
seguida, ela contou de como tinha sido feliz naqueles anos, mas fez questão de
ressaltar, sem parecer muito sincera, que não gostaria de encontrá-lo em uma
dessas viagens. Logo em seguida, deixou transparecer certa mágoa pelo fim do
casamento, que evidentemente ocorrera contra a sua vontade. Loureiro levantou
a cabeça, mirou a bela moça nos olhos e disse com bondade: “O mais
interessante nas pessoas não é o que elas mostram, mas o que escondem”.

“Já parou para pensar que todo esse seu interesse por viagens pode estar
apenas adiando a grande aventura da sua vida?”, perguntou para a moça, que de
início pareceu curiosa, querendo saber ao que se referia o sapateiro. Ele explicou:
“O que você tem que questionar é se viaja em busca de simples divertimento ou
por fuga, na ilusão de retornar a um momento de sua vida que não existe mais.
Pense bem”, pediu o sábio sapateiro.

Levemente irritada e com uma voz em um tom acima, disse acreditar que a
história do seu casamento ainda estava longe de acabar, pois família do seu
antigo marido a adorava e todos lhe afirmavam que ele jamais encontraria uma
esposa melhor. O velho artesão, mantendo a voz baixa e doce, falou: “Você
entende que todos esses passeios perigosos apenas ocultam a mais fantástica de
todas as viagens que você algum dia ousou a realizar?”. A moça quis saber de
qual viagem ele falava. “A da libertação”, concluiu o sapateiro.

A bela mulher retrucou dizendo que ele estava enganado, pois era uma pessoa
absolutamente livre. Ia e voltava a qualquer canto do planeta na hora que
quisesse. “Flanar solto pelas ruas não significa liberdade. Os perdidos e
desorientados também assim o fazem”, ele tentou diferenciar. A moça
argumentou que era dona de si mesmo e das suas escolhas, portanto, uma
pessoa livre. O artesão tentou esclarecer: “A questão é saber qual a real
amplitude das suas escolhas. Entender o quanto elas podem estar amarradas a
desejos inconfessáveis, a pesadelos que insistem em maltratá-la por se
fantasiarem de sonhos e, por consequência, a dificuldade em se livrar deles. As
frustrações escondidas no inconsciente, prontas a nos enganar, são difíceis de
identificar e se tornam o passo inicial para um sofrimento que pode atravessar
tempos imemoriais. Padrões de pensamentos endurecidos e automatizados,
comportamentos obsessivos, ou ideias e conceitos que nos recusamos a
transformar, terminam por aprisionar e limitar as escolhas, como se, por absurdo,
a vida não permitisse um novo olhar”. Deu uma pequena pausa e diante das
feições da moça, um misto entre a surpresa e a raiva, ele prosseguiu sereno: “A
consequência mais comum é insistirmos em manter o passado atrelado ao
presente, sem entender que após o amadurecimento a fruta é aproveitada ou
apodrece. Depois vira adubo ou semente. Devemos permitir o fechamento do
ciclo que findou para que o novo se inicie”.

A jovem retrucou com convicção de que ela e o ex-marido nasceram para formar
uma família. Reiterou que todos que os conheciam na intimidade corroboravam
essa certeza. Loureiro, com a calma que lhe era peculiar, tentou oferecer outra
ótica: “As almas são afins, ou seja, mantêm-se juntas enquanto existir afinidade
energética ou de propósitos, pelo tempo em que estivem no mesmo degrau
evolutivo. Isto pode durar um dia ou muitos séculos. Todos somos espíritos livres
e, por princípio, devemos partir ou deixar ir, quando o ciclo se fechar”. Deitou as
ferramentas sobre o balcão de trabalho, se acomodou na cadeira e prosseguiu:
“Por experiência própria, sei o quanto é difícil aceitar que as fases da vida
mudam, quando, muitas vezes, queremos que elas se eternizem. O Universo
exige movimento. Para tanto, transformação”.

A jovem lhe disse que não via sentido em abdicar do passado se este lhe parecia
melhor que o presente. Com olhos que revelavam compaixão, Loureiro tentou
explicar: “A vida não está preocupada com os seus desejos, mas com a sua
necessidade de evolução. A cada ciclo, uma lição. Celebre, pois chegada a hora
de abrir as asas para iniciar um voo além das fronteiras do conhecido e já vivido”.

Impaciente, por contrariada, a bela mulher se esforçava para não perder o


controle. Então, perguntou ao artesão se ele estava lhe aconselhando a
abandonar um sonho. De pronto, ele respondeu: “De jeito nenhum, sonhos são
sagrados e parte primordial dos encantos da vida. No entanto, é preciso entender
que os sonhos estão estritamente ligados aos nossos dons, aos talentos que
devemos exercer para que o melhor em nós floresça. São as metamorfoses da
evolução; as transmutações que operamos no âmago do ser a se refletir através
de um novo jeito de pensar e agir. Assim vivemos o sonho; todo o resto é apenas
desejo”.

A jovem reclamou que ele parecia um louco em afirmar que todo desejo era ruim.
“Eu não falei isso”, protestou Loureiro: “Apenas tento lhe dizer que os desejos,
quando mal interpretados ou assimilados em fontes escusas, alimentam as
nossas sombras. Estas, as sombras, comumente se tornam um cruel carcereiro
por não nos permitir entender que estamos presos ao nos iludir livres”. A mulher
pediu que ele fosse mais específico e perguntou o que eram as tais sombras a
que se referia. “As sombras se manifestam através dos sentimentos de baixa
vibração como ciúme, inveja, mágoa, entre outros, e também por alguns
comportamentos, como por exemplo, a fuga da realidade”, o sapateiro elencou
apenas algumas atuações do largo espectro das sombras, comuns a todos nós.
Em seguida abordou o aspecto tênue de outro tipo de sombra e tocou na delicada
esfera pessoal da jovem: “Ter como pedra fundamental da vida a vã esperança
de que o outro algum dia pense e aja de acordo com a nossa vontade é
abandonar-se na masmorra da ilusão e da dor”. Deu uma pequena pausa, mirou
a bela jovem nos olhos e tentou concluir: “Não raro criamos um ideal de vida sem
perceber o quanto isto nos maltrata, pelo absurdo de criarmos um elo de
dependência entre nossas escolhas e as escolhas alheias, imaginando que ali
reside a felicidade. Este é o elo que aprisiona. Como não há, nem pode haver,
imposição sobre a livre vontade do outro, o erro de conceito nos empurra para o
abismo do sofrimento”.

A jovem, agora bastante irritada, disse que aquela oficina não era um divã,
Loureiro não era terapeuta, tampouco sabia do que falava e, com certeza, era
melhor ele parar de ler livros que não fosse capaz de entender. “Sim, sou apenas
um velho sapateiro, amante dos livros, a pensar na vida e, provavelmente, a falar,
de vez em quando, coisas que não devesse. Peço-lhe desculpas por ter me
intrometido onde não devia”. Neste instante tinha finalizado o reparo na bolsa e a
entregou a jovem. Ela perguntou o preço do serviço. Ele respondeu com seu jeito
elegante e de maneira sincera: “Você não me deve nada. Acho que já lhe causei
inconvenientes demais por hoje. Peço desculpas por ter me comportado como um
pai aconselhando uma filha. Sei que não fui convidado para esse papel. Este
talvez seja o meu erro, mas apenas este”. A moça se despediu com as feições
fechadas e saiu, não sem tempo de ouvir o bom artesão desejar: “Que a paz seja
convosco”. Ela parou, mirou os sapateiros nos olhos, girou nos calcanhares e
partiu.

Loureiro passou um bule de café fresco sem dizer palavra. Com uma xícara
fumegante nas mãos, puxei conversa enquanto ele se acomodava à minha frente.
Falei que concordava sobre a necessidade de romper com os velhos padrões,
ideias que não têm mais lugar nas prateleiras do coração nem nas gavetas da
mente, de atitudes que não levam a lugar nenhum por nada acrescentar ou
transformar. Enfim, desamarrar as asas. Ele tomou um gole de café, me observou
por algum tempo e disse: “A viagem de libertação da alma sobre os
condicionamentos impostos pelo ego e pelos conceitos do mundo é a grande
aventura da vida de todos nós. Ela nos leva às Terras Altas do Ser”. Deu uma
pequena pausa e finalizou com um muxoxo, como se falasse consigo: “Ocorre
que muitos ainda temem as alturas”.
O AMOR NÃO PRECISA SER PERFEITO

Quando entrei eles já estavam conversando. Loureiro, o sapateiro amante dos


vinhos e livros, escutava as lamúrias de um sobrinho sobre as dificuldades que
tinha nos relacionamentos afetivos. Fomos apresentados. O jovem, bastante
educado, disse que não se incomodava de eu participar da conversa. Na verdade,
achava muito bom, pois seria mais uma opinião a clarear o seu entendimento. O
elegante artesão foi passar um bule de café enquanto o rapaz me explicava que,
em suma, quanto mais ele conhecia uma pessoa maior era a sua decepção.
Sentenciou que as máscaras não se sustentam no convívio pessoal e, o que se
revela, definitivamente nunca o agradou.

Loureiro, que enchia as nossas canecas sobre o balcão com café fresco,
aproveitou a deixa e disse: “Todos desejamos ser amados e admirados. É a
vontade latente do nosso ego: os holofotes e os aplausos. Então,
inconscientemente criamos personagens que acreditamos serem reais para
interpretar os papéis que atinjam tal objetivo”. O sobrinho interrompeu para
acrescentar que era exatamente isso que não gostava nas pessoas. Buscava por
aqueles que fossem autênticos. “Mas, de certa maneira, eles são”, corrigiu o tio.
O rapaz disse que o sapateiro estava sendo contraditório. Loureiro iniciou a sua
explicação ao estilo socrático, com uma pergunta: “Quando você se interessa por
uma moça costuma se aproximar mostrando o quanto é vaidoso, orgulhoso,
teimoso e egoísta”?

Contrariado, o rapaz sustentou que sabia que não era uma pessoa perfeita, no
entanto, havia aspectos na sua personalidade bem mais interessantes a serem
conhecidos pelo mundo. O sapateiro concordou e, em seguida, se aprofundou:
“Sim, sem dúvida. Todos pensamos que nossas virtudes são mais relevantes que
nossas dificuldades. E são. Por sua vez, as dificuldades nada mais são do que as
sementes das novas virtudes a procura de um pouco de sol para que consigam
germinar”, tomou um gole de café e prosseguiu: “Projetamos o ideal da pessoa
que queremos ser antes de sê-la. Não há nenhum problema nisto, é o processo
natural, pois já temos o entendimento, falta a força para vivenciá-lo. Entretanto,
nem sempre é fácil, pois nos obriga a deixar para trás hábitos já tão velhos que
produziram raízes profundas. Porém, é indispensável ou não haverá avanço. É
como a cobra que troca de pele para seguir maior e mais forte. É a mesma cobra,
mas é outra cobra”.

“Na maioria das vezes, em um primeiro encontro, antes que as dificuldades se


apresentem, abrimos uma incrível caixa de lápis de cor para enfeitar as nossas
virtudes. Em maior ou menor dose, cada qual em seu estilo, uns mais
extrovertidos, outros com sutileza; grosseiros ou sofisticados, nos esforçamos
para mostrar, em resumo, o quanto somos inteligentes e sensíveis. E não se
iluda: com ninguém é diferente”. Diante do olhar atento do sobrinho, Loureiro o
desconcertou: “E você sabe qual a face do seu ser que quer mostrar a todos as
suas melhores virtudes”? A pergunta era apenas retórica e o próprio artesão
respondeu: “As suas próprias sombras”.

“Não esqueça que são as sombras que buscam pelas aprovações sociais, pelos
elogios e condecorações. A alma apenas quer aprender com tudo o que acontece
a sua volta, transmutar a escuridão dos porões do ser em luz, compartilhar o
melhor que floresce em si, não apenas em discurso, mas em atitude e depois
seguir a viagem sem fim”.

“Todas as vezes que estamos na esfera das palavras devemos nos questionar:
eu já consigo vivenciar, de maneira ampla, toda a minha excelente teoria? Se a
resposta for ‘sim’ significa que você ainda tem dificuldade em ser sincero consigo
mesmo. As suas sombras ainda conseguem lhe enganar. Se a resposta for ‘não’
representa que você está a um passo da transformação, pois já consegue se
conhecer melhor. E por quê”?

Como todos se calaram, Loureiro concluiu: “Porque a alma sabe que o poder está
no exemplo da ação silenciosa e não na beleza do discurso fácil. Vale ressaltar
que a ação realizada para o encanto da plateia a torna equivalente às palavras
escandalosas e se perde no ralo das vaidades”.

“Todas as vezes que estiver tecendo uma crítica, se questione: eu já consigo ser
o exemplo de perfeição que reclamo faltar ao mundo? Este é o importante passo
para o primeiro portal do Caminho, a humildade. Entender que por mais que se
imagine uma pessoa maravilhosa ainda está bem longe da perfeição. Então,
como exigir do outro o que você ainda não tem para oferecer? Ninguém,
absolutamente ninguém, é mais do que um ser em evolução, um espírito a
caminho da Luz”.

O jovem lamentou que algumas pessoas exageram na interpretação dos seus


papéis. O artesão deu um sorriso doce e falou: “Os excessos devem, na medida
do possível, ser desculpáveis, pois apenas retratam a dimensão da ansiedade e
da carência em ser aceito e amado. Com ninguém é diferente. Compreender isto
é exercitar valiosas virtudes: a compaixão em relação ao outro, a sinceridade em
relação a si mesmo. Perceber os personagens alheios é essencial, não para
desnudá-los, mas para ajudar a transformar os nossos em realidade, fundindo as
virtudes que admiramos e modificando as características que não mais
desejamos em nosso jeito de ser e viver. Definitivamente. Somente assim
ganhamos força e poder. Isso é pura Luz”.

“Essa é a beleza e a importância dos relacionamentos. A dificuldade do outro me


ajuda a entender as minhas próprias sombras. O que incomoda no trato pessoal
costuma ser a exata medida do meu aprendizado. O outro será sempre um bom
espelho, pois a maneira como reajo a cada contrariedade, impedimento ou
oposição define quem eu já consigo ser”.

O rapaz falou que procurava para os seus relacionamentos pessoas que


pudessem completá-lo. O bom tio ponderou: “Não raro procuramos no outro o que
ainda não temos em nós. Vivemos a procura de alguém para nos completar na
ilusão de que assim a felicidade se manifestará. Ledo engano. Desejamos
infantilmente que nos ofereçam a felicidade pela via da facilidade ao invés de
construí-la através do aprendizado e da transformação. Em outras palavras,
queremos de presente o que deve ser conquistado. Este é o cerne de todos os
conflitos, pois ao se deparar com as dificuldades alheias as nossas se revelam.
Ninguém terá o poder da felicidade ou da paz sobre ninguém, uma vez que esta
batalha é pessoal e intrasferível. Então, surgem as sombras para nos convencer
que é melhor procurar o mel da vida em outro lugar. Saímos à cata de outras
pessoas esquecendo que o mapa do tesouro aponta para o próprio coração.
Estagnamos todas as vezes que acreditamos que o problema está nos outros..
Negar as dificuldades é recusar o próprio aperfeiçoamento”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Quando a convivência é ocasional fica


mais fácil ser encantador porque, não raro, conseguimos oferecer apenas o nosso
melhor. Estamos mentindo quando fazemos isto? Claro que não. As dificuldades
nem sempre anulam as virtudes, caso contrário ninguém teria qualquer
característica positiva. Nisto reside a magia do convívio mais intenso e duradouro.
Pois é na constância do dia a dia que somos levados a mostrar a faceta mais
sombria, o que também temos de ruim. Saímos do raso para mergulhar na
profundidade do ser. É a oportunidade de as sombras revelarem a sua existência
e tamanho. Todavia, não raro, os relacionamentos terminam e as pessoas se
afastam. E, muitas vezes, perdemos a oportunidade de vivenciar o florescimento
de belas virtudes e bonitas transformações”.

“O convívio intenso desnuda o ser. Não apenas o outro, mas a você também. O
dia a dia arranca as máscaras, mostra os vícios, revela as feridas. Enfim, mostra
o que temos de pior. É ruim? Não necessariamente. Isto pode esgarçar a relação
ou aproximar mentes e corações que tenham a percepção e a vontade de se
ajudar”. O rapaz quis saber se o tio o aconselhava a ficar ao lado de quem não
tinha vontade. O sapateiro balançou a cabeça e disse: “Claro que não. Não
somos obrigados a nada, muito menos a conviver com quem nos incomoda e
chateia. Apenas quero lembrar que para existir o amor não precisa ser perfeito”.

Eu interrompi para argumentar que, por vezes, as pessoas têm interesses tão
distintos que as frequências vibracionais não permitem a convivência, ao menos
naquele momento. O artesão concordou, em parte: “Sim, é verdade. Sem dúvida
há relacionamentos que precisam ser estancados tamanha se torna a disparidade
de interesses e valores entre as partes. Cada qual deve sempre seguir na direção
da própria verdade em compasso com as suas afinidades. Entretanto, não pode
haver banalização. É preciso atentar que as afinidades também se revelam nas
dificuldades em comum”. Bebeu um gole de café e acrescentou: “Outro aspecto
que temos que prestar atenção: discordar do jeito de ser de uma pessoa não
significa, necessariamente, eliminá-la da sua vida. Claro que acabamos por
escolher em estar perto daqueles que nos trazem conforto e alegria. No entanto,
todos, sem exceção, são fontes de aprendizado. Não precisamos de ninguém
para ser feliz, mas precisamos de todos para nos tornar melhores”.

“A conivência ao lado das dificuldades, dos erros e das faltas do outro jamais
deve ser visto como penitência, acho este conceito ultrapassado e cruel. Porém,
na medida do possível de cada um, deve ser encarada como uma poderosa
alavanca de evolução. Só existe amor e sabedoria onde a paciência, o respeito, a
humildade e a compaixão já fincaram raízes. Demonstra a sensibilidade do olhar
que é capaz de ressaltar as virtudes já existentes e, principalmente, a percepção
de que as dificuldades são as virtudes ainda latentes, prontas para despertar. As
suas e as do outro. A conquista só se completa quando os dois lados ganham”,
deu uma pausa e finalizou: “Entender isso é perceber a beleza da vida. O amor
precisa ser imperfeito para que seja manuseado, aperfeiçoado. Só assim haverá
um pedaço da gente quando revelado em perfeição”.

O rapaz abaixou a cabeça. Agradeceu ao artesão com palavras sinceras e disse


que estava com uma estranha vontade de encontrar com a ex-namorada. Quando
se despediu percebi que havia um bonito brilho em seu olhar.

O MUNDO É O ESPELHO DA SUA ALMA

A angústia me dominava quando entrei na biblioteca do mosteiro em busca de


alguma leitura que aliviasse a aflição da minha alma. Sentado em uma confortável
poltrona, com um livro repousado no colo, o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, olhava para as montanhas através
de uma das janelas, quando teve a sua atenção desviada para mim. Ao perceber
pelo meu semblante a desordem interna que imperava, franziu as sobrancelhas
como maneira de perguntar o que havia acontecido. Reclamei do descaso das
pessoas no trato pessoal, de como eram insensíveis, materialistas e
individualistas. Relatei várias situações para exemplificar a razão do meu
sentimento. Falei de como esse comportamento provocava tragédias
desnecessárias. Eu me sentia abandonado e deslocado. Definitivamente, concluí,
a humanidade estava perdida e o mundo não era um bom lugar para se viver. O
monge sorriu, como quem se diverte com uma criança que reclama porque não
ganhou um doce, se levantou e guardou o livro na estante apropriada, foi até
outra prateleira em busca de um título diferente. Procurou por algo em suas
páginas por breves instantes, guardou-o no bolso da túnica, segurou meu braço e
me encaminhou para fora da biblioteca. Depois falou: “Vamos conversar no
refeitório; preciso de uma xicara de café”. Alguns minutos depois, diante de duas
canecas fumegantes, ele iniciou a conversa: “Se você está bem consigo estará
bem com o mundo. O olhar que cada qual tem sobre si mesmo será a lente pela
qual enxergará a vida. Isto definirá a clareza, as cores e a extensão do universo
que é o mesmo para todos, mas diferente para cada um de nós. O mundo, feio ou
bonito, será sempre o espelho da sua alma”.

Discordei veementemente. O mundo era injusto; alguns com muito, enquanto


muitos nada possuíam; uns doentes, outros esbanjando saúde. Pior, ninguém
parecia preocupado com ninguém. O meu discurso foi subindo de tom até beirar a
revolta. Ele me ouviu com enorme paciência e ao final me lembrou de uma
passagem célebre contida no Sermão da Montanha: “Quando o seu olho é bom
todo o universo é luz”. Em seguida concluiu: “O mundo é perfeito”. Questionei se
aquilo era uma brincadeira ou se ele estava louco. O Velho sorriu antes de
explicar: “A vida neste planeta é uma universidade exigente, formadora de
excelentes mestres. O mundo é a sua sala de aula e apresentará a cada aprendiz
as lições cabíveis para o exato aperfeiçoamento e a devida evolução. A sua maior
dificuldade é o seu melhor professor. Quem está no Caminho agradece por cada
problema oferecido, pois percebe a oportunidade de superação e fortalecimento
do próprio ser. As lamentações apenas se manifestam nos lábios dos maus
alunos”.

Pegou o livro que trouxera no bolso. Eram os Poemas Místicos de Rumi, o sábio
dervixe. Folheou as páginas, escolheu uma e leu:

“Saia do círculo do tempo

e entre na esfera do amor.

Se queres a visão secreta,

fecha teus olhos.

Se desejas um abraço,

abre o teu peito.

Se anseias por uma face com vida,

rompe o teu rosto de pedra.

Por que insiste em matar a vida

justo onde deva nascer?

Prova a doçura em tua boca,

de onde brota a flor, a abelha e o mel.

Aceite esta oferta:

Ofereça uma única vida, a sua.

E receba em troca, ao nada pedir, mais de mil”.

Ficamos um logo tempo sem dizer palavra. Era necessário deixar a poesia
assentar na mente e no coração. O Velho rompeu o silêncio: “Você tem oferecido
ao mundo o tratamento que deseja para si? Você age em perfeito acordo com o
mundo ideal dos seus sonhos?”

Abaixei os olhos, respondi negativamente. A voz do monge revelava gentileza:


“Não fique encabulado. Todos sabemos mais do que fazemos. O conhecimento é
a parte inicial da transformação. O passo seguinte é exercitar o novo conceito
para que ele fique entranhado ao ser, integrando as suas escolhas e atitudes até
que seja impossível viver sem aplicar esse saber. Assim avançamos”. Bebeu um
gole de café e prosseguiu: “Cada qual é responsável pela própria felicidade. Ela é
uma construção interna de entendimento e aperfeiçoamento. Introspecção,
silêncio e quietude. Neste aspecto o Caminho é solitário”.

“Mas não basta. Depois de aprender e se transformar é vital que compartilhemos


com toda gente a beleza do que trazemos em nossa bagagem sagrada. Oferecer
o nosso melhor é fundamental para que possamos avançar. É a hora de romper a
casca do ‘eu’ para viver o âmbito do ‘nós’. Movimento, palavras e abraços. É o
momento de sermos solidários no Caminho”.

Com o olhar distante, o bom monge divagou em metáforas: “Somos filhos do


universo, as leis que regem as estrelas se aplicam a nós. Uma galáxia se funde a
outra para se expandir. Uma estrela mistura em si as energias cósmicas que a
envolve para transmutar em luz, aumentando de magnitude na medida que
intensifica essa troca. No entanto, há também os buracos negros, que a tudo
sugam sem nada oferecer, até que sucumbem em si mesmo. Conosco não é
diferente; o mundo está repleto de variadas correntes energéticas de diferentes
tons. O amor é a mais poderosa delas. A cada escolha definimos as energias que
passarão a integrar o nosso ser, aumentando ou perdendo poder pessoal;
intensificando ou apagando a própria luz”. Deu uma pequena pausa para explicar:
“A Luz é uma flor composta de muitas pétalas. Cada pétala é uma virtude; são
partes indispensáveis que aprendemos a semear no íntimo para que possam
germinar em infinitas flores”. Tomou mais um gole de chá e me lembrou: “Mas
não esqueça do amor, a matéria-prima de todas as transformações. Ele é o miolo
da flor a dar sustentação às pétalas, é a seiva que alimenta e anima, ao mesmo
tempo em que acabará por se tornar o fruto quando mudar a estação”.

“Ao permitir que o seu coração se funda a milhares de outros você multiplica a
força do amor no universo. Este poder também será seu. Esta é a magia do
Caminho”.

Lamentei que as pessoas não colaboravam e quase nunca entendiam ou


devolviam na mesma intensidade o amor oferecido. O Velho fez um gesto com as
mãos como quem diz para eu deixar de bobagem. Em seguida, explicou: “As
pessoas sofrem porque insistem em tratar o amor como mercadoria a ser
negociada na base da troca. O mundo não é um balcão de sentimentos, mas um
belíssimo jardim inacabado onde cada qual deve se comportar como aquele
jardineiro que se encanta com as flores que plantou, suas cores e perfumes, com
o sorriso e alegria de alguém que as viu, na pura intenção de apenas embelezar a
vida”.

“Na verdade e na essência, somente possuímos aquilo que entregamos. Se não


entregamos é porque ainda não temos. Apenas o exercício do amor ensina isso”.

“O ser desperto, na busca por expansão de consciência e ampliação da


capacidade amorosa, sabe que toda palavra, pensamento, sentimento ou atitude
é um cerimonial mágico; um ritual de transformação por absorver as energias
afins que envolvem cada movimento, concedendo peso ou leveza aos seus
passos, definindo o próprio destino e as próximas lições, sempre em compasso
com as leis universais, que orientam a evolução de todos, fazendo com que cada
qual seja herdeiro de si mesmo no momento seguinte”.

Falei que tinha a sensação de que o mundo me oprimia. Eu queria saber o que
fazer. O monge foi didático: “Se o mundo lhe é desagradável está na hora de
entender o que precisa ser transformado em você. A compatibilidade que cada
um tem com a vida está diretamente ligada à harmonia que traz em si. Quando
sabemos quem somos, entendemos o mundo. A percepção sincera do ‘eu’
permite a compreensão verdadeira do ‘nós’ e tudo ao redor. Quanto mais me
conheço e reconheço as minhas dificuldades e arestas, maior a paciência e a
compreensão para com o comportamento alheio. Isto se torna uma importante
ponte na qual as virtudes pessoais poderão trafegar instaurando o equilíbrio que
não apenas proporcionará a verdadeira paz, mas fortalecerá as bases da
felicidade: oferecer ao mundo o exato tratamento que desejamos ter sem exigir
absolutamente nada em troca”.

Comentei, de modo imaturo, que às vezes tinha vontade de cavar um buraco na


terra para não precisar ver tantas iniquidades que acontecem no planeta. O
monge franziu as sobrancelhas, como fazia quando aumentava a seriedade da
fala, e disse: “Se for para se enterrar que seja para virar semente e renascer.
Então, na primavera se tornar flor a colorir o mundo e, no outono, se transmutar
em doce fruto a alimentar a humanidade”.

O meu discurso envolvia a ideia de desperdício da oportunidade em frequentar


uma excelente escola. Me senti envergonhado. O Velho, ao perceber, não
permitiu que eu me sentisse assim. Ele me olhou com a generosidade de um avô
e disse: “O mundo é apenas o exato reflexo do universo que cada qual traz em si.
É possível mudar a qualquer momento. Feio ou bonito; escuro ou brilhante;
pequeno ou infinito, tudo se resume a uma escolha; basta um olhar diferente”.
Esvaziou a xícara de café antes de concluir: “Entende que na medida das suas
transformações pessoais tudo a sua volta evolui e transcende? Por que insiste em
se arrastar como a lagarta se tens as asas da borboleta”?

Não havia palavra em mim que pudesse expressar a minha gratidão por aquela
conversa. Fechei os olhos e agradeci em silêncio. Tive a estranha sensação de
que o Velho flutuava no ar.

BELEZA OCULTA

Pelas manhãs era comum encontrar o Velho, como carinhosamente chamávamos


o monge mais antigo da Ordem, no jardim do pátio interno do mosteiro, cuidando
das plantas. Tinha predileção pelas rosas, às quais ele dedicava horas a fio.
Sempre que possível, eu gostava de acompanhá-lo, não pelo gosto à jardinagem,
mas pelas conversas proporcionadas. Nesse dia, ele foi procurado por uma
jovem. A moça se declarou desencantada pela vida. Tudo lhe parecia sem graça,
os dias eram cinzentos e as pessoas desprovidas de encanto. Confessou que a
alegria a irritava por parecer idiotice. Os dias não passavam de uma sucessão de
erros e frustrações. Não existia razão para sorrir. Ao final dos seus lamentos
perguntou se o Velho era feliz. O monge que a tudo ouviu com paciência e
atenção enquanto cuidava do jardim, mostrou na palma da mão uma pequena
lagarta que tinha tirado das flores, guardou-a no bolso da túnica para depois
soltá-la na floresta e disse: “Sempre haverá motivos para sorrir; a alegria é uma
semente possível de germinar até mesmo no deserto. A alegria é uma escolha da
sabedoria e do amor”.

A moça interrompeu para dizer que tudo era muito poético e pouco prático. Não
fazia sentido a alegria ser uma escolha. Muito menos ligada à sabedoria e ao
amor. O Velho explicou: “O sofrimento é uma escolha. A alegria é a alternativa”. A
jovem se irritou. Acusou a insensibilidade do monge em relação aos problemas
alheios, alguns muito sérios. O Velho, sem perder a serenidade prosseguiu: “O
problema nunca será o verdadeiro problema. O problema é a maneira como cada
um escolhe enfrentar as inevitáveis adversidades. Você pode percebê-lo como
uma barreira intransponível e restar frustrada. Então, você tem um problema.
Porém, pode entender que ali reside uma lição para aprendizado e superação.
Nesse caso, você está diante de um mestre. A cada curva podemos estagnar ou
evoluir. A decisão é pessoal; cada qual viaja sob condições próprias, como
herdeiro de suas escolhas”.

A moça tornou a discordar. Sustentou que o sofrimento tinha como fonte razões
externas, alheias à vontade das pessoas. Não havia como evitar isso. O monge,
com muita calma, tentou explicar: “Penso que não. O que determina a alegria ou
a tristeza é o olhar”. Deu uma pausa e começou a falar como se pensasse em voz
alta: “Dinheiro? Já encontrei gente feliz em favelas enquanto conhecia pessoas
deprimidas morando em mansões à beira-mar. Saúde? Certa vez fui visitar um
amigo, internado para tratamento de um câncer severo. Nunca eu o vi tão feliz.
Ele me disse que a doença foi a melhor coisa que lhe aconteceu, pois permitiu um
novo sentido sobre valores e interesses. Agradecia por aquele momento angular
em sua vida. A enfermeira que cuidava daquele setor estava mal-humorada e
lamentava a sorte por ter torcido o pé”. A moça revelou que tinha sido demitida do
emprego e, como se não bastasse, o namorado havia terminado o romance,
abruptamente, por se descobrir apaixonado por outra mulher. O monge se
esforçou para mostrar um infinito leque de possibilidades: “São situações que
podem parecer o fim do mundo ou surgirem como uma oportunidade de
renovação para que o seu dom pessoal ou a magia da vida se revelem. Quantas
vezes o que pensamos ser uma tragédia não passa do universo, em sua infinita
bondade e inteligência, tentando corrigir uma trajetória errática, conspirando a
nosso favor, enquanto insistimos em atrapalhar”. Tornou a se calar por instantes e
falou: “Um erro muito comum reside em confundir os desejos como se fossem
degraus evolutivos. Nem sempre uma coisa tem a ver com a outra. Então,
precisamos fracassar para aprender a fazer certo. Demoramos a entender por
achar que já sabemos. Como o ego costuma gritar ao fazer as suas exigências,
temos dificuldade em ouvir os conselhos na voz suave da alma. Por isto é tão
importante o silêncio, a quietude e o encontro consigo mesmo”.

“Em resumo, alegria ou tristeza, definem o olhar que cada qual oferece a si
mesmo. Orgulho ou humildade; vaidade ou simplicidade; ilusão ou verdade;
maquiagem ou cura. O que você busca quando se observa no espelho? Isto
define se o mundo continuará a ser um lugar desconfortável. Ou não”.
A jovem deu uma gargalhada. Sarcástica, disse que aquele discurso era bonito,
mas distante da realidade. Falou que gostaria de encontrar um único motivo para
sorrir. Declarou que a sua vida era uma tragédia. O Velho se manteve impassível
e falou com doçura: “Dificuldades financeiras, problemas de saúde, a morte de
pessoas queridas, relacionamentos afetivos frustrados, sonhos negados, muitos
são os motivos de tristeza quando você se observa prisioneira da situação; ou de
alegria, quando percebe a ferramenta oferecida para aprender a viver diferente e
melhor. A vida precisa das decepções para provocar a mudança na maneira de
olhar; das dificuldades para aperfeiçoar o jeito de andar. Assim, ao seu modo
estranho, a vida se faz perfeita através das imperfeições”.

A moça disse que perdia o seu tempo naquela conversa. Tinha mais o que fazer.
Antes de sair, acusou o monge de manter aquele belo discurso pelo fato de levar
uma vida mansa, cuidando das flores, sem nunca ter enfrentado um revés. Girou
nos calcanhares e partiu. Eu fiquei abalado; toda aquela grosseria tinha me
incomodado bastante. O monge se virou, pegou o alicate e, com enorme
tranquilidade, voltou a cuidar das flores. Fiquei observando e vi que havia paz em
suas feições. Uma calma verdadeira e inatacável. Cheguei a olhar para ver se os
seus pés tocavam o chão, pois tive a sensação de que ele flutuava no ar. Quando
começou a assoviar uma antiga canção, achei demais e, eu que havia assistido a
tudo sem dizer palavra, resolvi me intrometer. Perguntei se ele não estava
ofendido com a situação. O Velho me olhou surpreso e respondeu: “De maneira
nenhuma. A deselegância foi dela, eu a tratei com atenção e amor. Ofereci o meu
melhor com sinceridade. Apenas não posso permitir que a desarmonia de
ninguém abale a minha paz. Permito que a luz alheia me contagie; a sombra,
jamais”.

“Todo conflito ou decepção pode ser um problema paralisante ou um desafio à


evolução. Este é o poder das escolhas. O diferencial reside no quanto de luz está
embutido na sua vontade, quais virtudes você já possui sedimentadas no ser.
Assim cada qual narra verdadeiramente a própria história. Queiramos ou não, o
filme da vida de qualquer pessoa conta uma trajetória de superação. Toda vitória
está misturada a fracassos, erros, decepções, além do compromisso em tentar de
novo. E depois outra vez. Claro que você pode fazer isso com tristeza, mas acho
mais leve e inteligente usar a alegria”.

Argumentei que algumas pessoas tinham uma vida mais difícil do que outras.
Para minha surpresa, o monge parou de podar as rosas, guardou o alicate e se
sentou em banco de pedra à sombra de uma árvore. Quando olhou para mim
seus olhos estavam mareados. Perguntei se ele estava bem, ele disse que sim
com a cabeça. Depois falou: “Cada qual enfrenta as perfeitas lições que lhe
cabem. A vida entrega os instrumentos necessários e as condições adequadas
para o ser iluminar as sombras que o habitam. Nem mais nem menos. Em
essência, temos que exercitar o amor através das várias virtudes existentes. As
virtudes são as ferramentas da Luz, o amor é a mais importante delas”. Olhou no
fundo dos meus olhos e disse: “Viver o amor e a alegria ao lado de quem
amamos, em perfeitas condições de convívio e sem problemas, é maravilhoso,
mas é para os fracos. Aos fortes é destinado o desafio de fazer florescer o amor e
a alegria diante das adversidades”.
Perguntei se a vida tinha sido dura com ele. Uma lágrima escapuliu pela pele
vincada do monge. Pedi desculpas por ter provocado, sem querer, aquela
emoção. Ele sorriu e disse com o seu jeito doce: “Está tudo bem. Só há saudade
onde existe amor. Eu sou grato a isto”. Depois falou: “Quando jovem, meus
sonhos eram outros, nunca me imaginei fazendo parte de uma ordem esotérica e
morando em um mosteiro. Eu queria uma vida confortável e uma família feliz,
ideal bonito de vida, que nada tem de errado. Estudei muito, consegui um
excelente emprego, casei com uma bela mulher e cheguei ao topo da carreira ao
conquistar a cadeira de presidente de uma famosa empresa multinacional. Logo
em seguida a minha esposa engravidou e meus melhores sonhos estavam na
palma da minha mão. Lembro que pensei: ‘cheguei no alto da montanha’. No
entanto, houve complicações no parto e em um só instante perdi a mulher amada
e o filho desejado”.

Interrompi para dizer que ele não precisava continuar, caso não estivesse à
vontade. Ele me ofereceu um sorriso doce e balançou a cabeça dizendo que não
tinha problema. Depois contou: “Como se não bastasse, uma crise financeira de
âmbito mundial fez com que a empresa em que eu trabalhava fosse absorvida por
outra. Agradeceram os meus serviços, mas eu não era mais necessário ali.
Namorei várias pessoas, algumas bem interessantes; tive outros excelentes
empregos, mas aquela realidade não mais se adequava a mim. Conheço histórias
de muitos que conseguiram, mas comigo foi diferente. Achei que fosse ficar triste,
mas algo havia mudado. Aos poucos percebi que o meu sucesso, apesar de
proporcionar conforto e admiração, era fonte de ansiedade, insônia e nervosismo.
No casamento, embora amasse a minha esposa, as discussões eram uma rotina.
Com o passar do tempo, por algum motivo, no auge da vida profissional e afetiva
eu estava sempre desconfortável. Eu vivia um sonho bonito e desejado pela
maioria das pessoas, porém, não era feliz. Sim, atrás da bela aparência de um
homem forte e eficiente que conquistou o mundo, na essência eu era frágil e
incapaz de conquistar a própria paz. O motivo era simples: aquele não era o meu
sonho, e eu começava a entender isto. Outro era o meu campo de batalha. Ao
menos nesta existência. Era preciso me reinventar. Vieram novos estudos, outros
interesses, pessoas com novos valores, a Ordem. Foi uma longa caminhada até
aqui, com as dificuldades e alegrias inerentes a todo percurso, mas
diametralmente oposta aos sonhos inicias. Todos os problemas, conflitos e
frustrações se mostraram imprescindíveis para que o verdadeiro sonho se
apresentasse e acontecesse. O olhar se modificou e diferente se tornaram as
escolhas. Então, conheci a felicidade de uma maneira inimaginável em outros
tempos”.

O Velho me olhou como um pai e disse: “É preciso ver a beleza oculta da vida. O
amor e a sabedoria escondidos em cada curva fechada do Caminho. Os desejos
precisam se frustrar para que os sonhos se revelem; a vida precisa derrapar para
corrigirmos a rota; o errado é o mapa para o certo. A necessidade abençoa a
evolução; o problema, quando bem aproveitado, se torna o esmeril da virtude. Do
contrário, continuaremos a confundir paixão com amor; conhecimento com
sabedoria; fogos de artifício com a verdadeira Luz”. Deu uma pequena pausa
antes de finalizar: “Entender a beleza oculta da vida significa a capacidade de ver
a face de Deus em todas as coisas”.
O ESCONDERIJO DO MAL

Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de transmitir a sabedoria ancestral do


seu povo através das músicas e das histórias que contava, acendeu o fornilho de
pedra vermelha do seu indefectível cachimbo e deu uma baforada. Era um final
de tarde de outono, estávamos sentados na varanda da sua casa e nos
cobríamos com mantas coloridas para afastar o frio típico das montanhas do
Arizona nessa época do ano. Eu tinha acabado de chegar de viagem e a primeira
coisa que o xamã me perguntou, logo após aos cumprimentos, foi o motivo pelo
qual eu “parecia carregar tanto peso nas costas”. Sim, era verdade, eu estava
mal. Dei um sorriso amarelo como quem é visto sem as roupas do personagem
que criamos para interpretar quem não somos nos palcos da vida e declarei que o
mundo não era um bom lugar para se viver. Em seguida narrei alguns problemas
que enfrentava em razão do posicionamento absurdo de algumas pessoas
contrários aos meus. Sentenciei que, sem dúvida, o planeta é habitado por gente
atrasada, insensível e ruim.

Canção Estrelada ouviu tudo em silêncio, quando terminei de falar ele perguntou:
“Há uma bela lenda do meu povo que talvez o ajude a entender o momento pelo
qual atravessa. Quer ouvi-la?”. Respondi que seria uma honra, afinal esse era o
talento de Canção Estrelada. Ele sorriu e narrou a história compassadamente:
“Havia uma aldeia próspera e tranquila que estava na expectativa de saber qual
dos seus habitantes seria escolhido para preencher uma vaga no Conselho dos
Sábios que governava a tribo. Já havia tido várias reuniões sem que o Conselho
se definisse pelo novo membro. Até que um dos seus integrantes mais antigos, o
sensato e bondoso feiticeiro da tribo, teve um sonho no qual o Grande Mistério
avisava que a aldeia estava prestes a ser atacada por um monstro desconhecido.
Alertou que somente após a captura da fera o Conselho teria condições de decidir
pelo novo membro. Por coincidência, uma das avós da tribo, uma anciã generosa
e muito querida, teve o mesmo sonho naquela noite. Era o Grande Mistério
confirmando os sinais. Não restou dúvida que o predador deveria ser caçado.
Como era uma tarefa extremamente perigosa, entenderam que estaria a cargo de
quem se voluntariasse a tamanho risco. De pronto, um dos guerreiros mais
bravos da tribo, um caçador habilidoso, conhecido por sua beleza, destreza,
coragem e admirado por todos, se candidatou. Como ninguém conhecia as
feições do monstro, foi preciso que o feiticeiro da tribo, pedisse ao Grande
Mistério que as revelasse através dos sonhos. Naquela mesma noite o pedido foi
atendido e na manhã seguinte o poderoso xamã descreveu os traços
assustadores da criatura maligna. Disse, também, que o Grande Mistério
antecipara que apenas se o bem fosse persistente seria capaz de vencer o mal.
Diante da comoção geral o intrépido guerreiro se despediu da esposa e do filho
amados e prometeu à tribo que só retornaria trazendo em sua sacola a cabeça
demoníaca do animal desconhecido. Cavalgou por dias sem conta usando toda a
sua enorme habilidade para rastrear o monstro. Por vezes, parecia chegar bem
próximo do predador, a ponto de quase se encontrarem, mas o animal parecia
escapar por alguma fresta misteriosa da floresta. Em muitas noites, deitado e
aquecido pelo calor de uma fogueira, sentiu vontade de retornar por causa da
saudade da família e da aldeia, mas lembrava da promessa que fizera, do
compromisso em defender aqueles que tanto amava. Era um guerreiro e isto o
animava a prosseguir. Até que um dia, com as forças quase esgotadas,
desanimado porque as suas preces ao Grande Mistério não eram atendidas,
corroído pelo desgaste físico e emocional, desapeou do cavalo na beira de um
enorme lago de águas plácidas, pois, sentia sede. Quando aproximou o seu rosto
no perfeito espelho d`água, para a sua enorme surpresa, viu refletida a face do
monstro que perseguia”.

Canção Estrelada, como um bom contador de histórias, deu uma proposital pausa
dramática, baforou o cachimbo e continuou a contar a lenda: “Ao contrário do que
se possa imaginar, o monstro não estava atrás ou ao lado do guerreiro, mas era
ele próprio. Viu nos contornos da sua face os traços da fera descrita pelo
feiticeiro. Apenas na solidão e na entrega da busca pode se permitir o verdadeiro
encontro, o de estar frente a frente consigo mesmo, sem máscaras, truques,
mentiras e ilusões para desvendar a verdade”.

“Ficou muito assustado. Sempre acreditara ser um bom homem, um guerreiro que
alimentava a aldeia com a sua caça, amava a sua esposa e o seu filho, era leal
aos seus amigos. Chegou a pensar que enlouquecera ao ver a face do monstro
em seu próprio rosto. Resolveu montar acampamento na beira do lago até que
entendesse tudo que acontecia. Nos primeiros dias foi tomado por um misto de
decepção, desânimo e raiva ao descobrir que não era exatamente quem sempre
se imaginou. Chegou a cogitar o absurdo suicídio como maneira eficiente de
exterminar com o monstro. Foi demovido da ideia ao lembrar as palavras do sábio
feiticeiro de que, se fosse persistente, o bem se sobreporia ao mal. Passado o
impacto inicial, percebeu ter criado uma imagem de si próprio que, se não era
verdadeira, também não era de toda mentirosa. Admitiu mágoas recorrentes,
frustrações ainda não superadas, escamoteamentos da realidade na tentativa de
fugir ao enfrentamento com as suas emoções conflitantes, logo ele, um guerreiro
famoso pela bravura. Reconheceu que, muitas vezes, confundiu o sentimento de
justiça com o desejo de vingança. Percebeu que as essenciais virtudes da
compaixão e da humildade eram anuladas pelas sombras da vaidade e do
orgulho, fazendo com que se irritasse com facilidade e culpasse os outros por
suas decepções. Não raro usava a impetuosidade sob o manto da coragem.
Lembrou de momentos em que usou inadequadamente a sua força de guerreiro
para prevalecer em pequenas questões com os mais fracos. Entendeu também
que, embora a coragem fosse uma nobre virtude, parte dessa bravura servia para
desviar a sua própria atenção, e a de todos, quanto às fragilidades que
sangravam no seu íntimo, justo aquelas que ele não tinha coragem em revelar e
enfrentar. Aos poucos entendeu a necessidade de inverter o olhar que tinha para
consigo, de encontrar o que havia perdido dentro, ao invés de apenas lutar contra
o que existia fora; de aprender que o mundo só desaba quando a alma se
desequilibra. Diante de tanta desarmonia a sua famosa coragem poderia ser mal
direcionada e prejudicar, além de si mesmo, toda a aldeia. Era preciso aceitar e
abraçar as suas sombras; o lado mais obscuro, justo aquele cuja existência nunca
quis admitir. Somente assim poderia tirar da caverna escura a sua outra face para
oferecer a claridade e a beleza da luz. Era oportunidade de ser pleno; ao fazer
com que o ego se encantasse pelas virtudes da alma, uniria todas as partes de si
mesmo, se transformando em um indivíduo mais forte, consciente e amoroso”.

“Muitos meses se passaram até que pudesse se conhecer por inteiro. Os


viajantes que passavam pelo lago e viam aquele homem solitário, maltrapilho,
sentado debaixo de uma árvore, com um estranho sorriso no rosto, seguiam
adiante pensando se tratar de um louco. Até que o guerreiro percebeu que
conseguira iluminar muitas das fendas sombrias do seu ser. O suficiente para
saber quem era, onde morava o monstro, o alcance dos seus tentáculos, a
influência dos seus conselhos e enganos. O mais importante: ele entendeu que
matar o monstro seria matar uma parte de si mesmo; era preciso abraçá-lo.
Estavam ligados como criador e criatura. O monstro não era um inimigo; ao
contrário, todo o seu enorme poder poderia ser usado em favor do bem. Para se
conseguir a cura, o tratamento escolhido é fundamental: o monstro precisava
conhecer e se encantar com o poder do amor, pois todo o mal tem a sua origem
na falta de amor. A cura se traduz em liberdade; nunca pela morte do carcereiro,
mas por sua transformação”.

“Chegara o momento de retornar para compartilhar com a tribo a riqueza que


amealhara. Era possível seguir com leveza e simplicidade sem o peso
insuportável do orgulho e da vaidade. As virtudes estavam livres para florescer.
Havia um novo conceito e jeito de ser e viver. Este entendimento define as dores
e as delícias da vida, a guerra ou a paz, no mundo, na aldeia e em si mesmo”.

“Porém, não queria voltar de mãos vazias, levando apenas palavras. Viu um
pedaço de tronco e teve uma ideia. Com o seu punhal começou a esculpir um
totem. Ao final, retornou para casa. Quando atravessou o portão da aldeia, houve
uma grande comoção. Muitos o tinham como morto, vencido pelo monstro ou pela
floresta. A sua esposa o abraçou emocionada; o seu filho, ainda de colo quando
partira, correu para se aninhar e sentir os braços do pai. O guerreiro estava muito
magro, as roupas em farrapos, sujo, com fome, mas tinha uma luz indescritível
em seu olhar e uma doçura desconhecida em seu sorriso. Vários se apressaram
em preparar uma festa pelo retorno do valoroso guerreiro, outros queriam ouvir as
histórias que ele tinha para contar, até que o bom feiticeiro da tribo se colocou
diante do guerreiro e perguntou pela promessa feita: apenas voltar se trouxesse
em sua bagagem a cabeça do monstro. Lembrou que uma pessoa vale pela sua
palavra. Neste instante todo o clima de alegria pela volta do guerreiro se
modificou para um ambiente de grande tensão; afinal, havia um compromisso a
ser honrado. Alguns segundos de silêncio pareceram demorar uma eternidade.
Diante do questionamento do sábio feiticeiro, todos os olhares se voltaram para o
guerreiro, que manteve as feições serenas e inabaláveis; aquele corpo
alquebrado e faminto, que nem de longe lembrava o homem musculoso de
outrora, transmitia uma força descomunal. O guerreiro abriu a sacola e retirou o
totem que esculpira em seus últimos dias no lago. Era a estátua do seu próprio
rosto modelada à perfeição’”.

“Diante da tribo assustada, o guerreiro disse: ‘A vós ofereço a cabeça do monstro


que existia em mim, mas deu lugar a um novo ser, embora ele mesmo, diferentes
em si. Não é uma imagem para ser adorada em nenhum altar, mas para ser
transmutada na fogueira desta noite, em lembrança a um homem que fez a
travessia pelas profundezas abissais do próprio âmago e retornou à luz, trazendo
todas as partes que o compõe devidamente alinhadas, harmonizadas e em paz’.
O feiticeiro quis saber se além da cabeça da criatura, o que mais o guerreiro
trazia na bagagem. Ele respondeu: ‘O amor por mim e, por consequência, por
toda a gente. O amor adormecido é a cura ainda não revelada de todo o
sofrimento. Este é o verdadeiro encontro da vida, esta é a essência, todo o resto
é apenas aparência’”.

“Em seguida, o guerreiro concluiu: ‘Não sei se o Conselho considerará a


promessa como cumprida, mas acatarei com resignação qualquer decisão’.
Naquela aldeia a pena pela palavra desonrada era o banimento. Houve um
grande murmurinho. Em seguida, o feiticeiro esticou o braço, entregou ao
guerreiro o bastão sagrado do Conselho dos Sábios e disse: ‘Você se
transformou no guerreiro de si mesmo, no herói da própria história e venceu a
grande batalha. Assim nascem os sábios. Você está pronto. Não queremos
perder a sua melhor parte. Seja bem-vindo!’”.

Ficamos em silêncio por longo tempo. Era o momento de refletir sobre tudo o que
tinha sido dito e encontrar o devido lugar para aquelas ideias. Quando o xamã me
passou o cachimbo eu estava com um olhar distante. Ele sorriu por perceber que
as suas palavras fizeram semeadura em meu coração. Perguntei se ele tentava
me dizer que todo o mal do mundo se escondia em mim. Canção Estrelada me
olhou com compaixão e humildade e falou: “Todo, não. Apenas o mal que lhe faz
mal. O monstro que atormenta e devora está dentro e não fora da gente. Ninguém
pode nos prejudicar mais do que cada qual a si mesmo”. Tornou a pegar o
cachimbo de minhas mãos e baforou antes de finalizar: “Observe o mundo,
aproveite a vida, ofereça o seu melhor e eduque o monstro que habita em suas
entranhas. Enquanto isso, seja feliz”.

DE VOLTA PARA A CASA

Quando virei a esquina e não vi a clássica bicicleta de Loureiro, o sapateiro


amante dos livros e dos vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina,
pensei que não estava com sorte naquele dia. Os horários improváveis e
inusitados de funcionamento da sapataria já tinham virado lenda na pequena e
charmosa cidade que fica ao sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Eu estava
triste. Desde sempre, o meu relacionamento com a minha mãe tinha sido
complicado, como se amor e mágoa se alternassem no palco da vida, gerando
memórias que acabavam por atrapalhar os dias a serem vividos. Tínhamos tido
mais uma discussão e eu queria encontrar com o bom artesão. Eu precisava falar
para lembrar o que já sabia e ouvir para aprender o que ainda não sabia. Era a
hora do almoço e decidi ir a uma agradável cantina perto dali. Como se o acaso
existisse, quando entro no restaurante me deparo com o sapateiro sentado à
mesa com uma mulher mais jovem que ele. Eu não a conhecia. Quando me
aproximei percebi que eles estavam de mãos dadas e tinham as faces molhadas
em lágrimas. Recuei, mas ele me viu, abriu um sincero sorriso e me chamou. Me
presenteou com um forte abraço e me apresentou a moça. Era a sua filha mais
nova. Ela tinha saído muito cedo de casa, após muitas brigas com o pai,
abandonara a universidade sem a devida conclusão e ficara anos sem dar
notícias. Eu conhecia a história e sabia que Loureiro a procurara por muito tempo
sem sucesso. Ela acabara de voltar. A alegria pelo reencontro transbordava em
ambos.

Fomos apresentados e a jovem foi muito amável. Eles tinham terminado de


almoçar, ela pediu a chave da casa para o pai; precisava de um banho e algum
descanso. Feliz, se despediu. Loureiro disse para eu sentar e comer. Pediria mais
uma taça de tinto para me acompanhar. A sós, o artesão me contou que a filha
retornou após constantes decepções e frustrações pelas quais passara; vinha à
procura de aconchego e auxílio. Comentei a excelente oportunidade para terem
uma séria conversa e ele a enquadrar de maneira rigorosa, pois ela só o
procurara porque o mundo lhe fora hostil. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e
disse: “Não, Yoskhaz. A vida já aplicou as lições mais duras, é a oportunidade de
eu fazer a diferença, de mostrar a outra face. Ela precisa de compreensão e
carinho. E de muito amor”.

Ele bebeu um gole de vinho e acrescentou: “Todos, na incompreensão de si


mesmo, partem rumo a um país distante à procura de se encontrar, até
entenderem que aquilo que buscam está em casa. Então, cedo ou tarde,
retornamos”. Interrompi para dizer que não tinha entendido esta última parte. Ele
explicou: “É uma viagem que todos, sem exceção, fazem. Alguns sentem a
necessidade de viajar com o corpo; no entanto, todos a realizam em espírito,
dentro de si”. Insisti que não compreendia. O sapateiro foi didático:

“A insatisfação e angústia têm raiz na fragmentação do ser. Divido entre os


desejos do ego e as necessidades da alma, o ser alimenta dúvidas que
dependendo do ponto em que já se conhece, de como consegue lidar consigo
mesmo, com as suas próprias emoções, do refinamento das percepções e, por
consequência, com a situação presente, será fator de paralisação, fuga ou de
evolução. O fato desagradável pode gerar uma insegurança capaz de levá-lo à
completa estagnação por se deixar dominar pelo medo; uma fuga pela dificuldade
em equilibrar os instintos primários aos desejos mais nobres; ou a usar o
momento para melhor entender a busca pela essência que o ilumina, na jornada
pela superação das dificuldades, ora impeditivas”.

“Todos trazemos heranças sociais, culturais e ancestrais que compõem os


arquivos tanto do ego quanto da alma. O ego está ligado aos prazeres imediatos
e sensoriais, aos instintos impulsionados pelas sombras, aos aplausos, à
segurança da vida pelo controle da vontade alheia, à dominação, à posse, ao
brilho social. A alma é a parte do ser preocupada com o desenvolvimento das
virtudes, aos sentimentos fraternos, a evolução, ao encanto da vida pela liberdade
dos outros e de si próprio, ao desapego, a Luz pessoal. A cada escolha
separamos ainda mais as partes ou aproximamos uma à outra, em processo de
harmonização e, posterior, plenitude”.

“Em diferentes níveis, todos percebem essa divisão interna. Quanto maior o
abismo, mais dolorosa a ferida. Uns preferem ignorar a cisão e concedem total
poder às próprias sombras. São os que desejam dominar os outros, as situações
que os cercam ou vivem em função de amealhar bens materiais; medo, egoísmo,
vaidade e ganância são as sombras que dominam esses indivíduos; costumam
estar rodeados por pessoas com iguais interesses em simulações de afeto e,
embora neguem ou tentem disfarçar as aparências, são profundamente infelizes e
amargos. Preste atenção, eles aparentam possuir grande força externa, se
sustentam no orgulho da ilusão de se acreditar melhores, na arrogância de se
sentirem poderosos, mas, no fundo, são frágeis e gostariam de pedir auxílio para
sair do porão escuro em que se encontram. Nunca admitem os seus erros, restam
estagnados. Caso em que o ego viajou para um país distante, longe de casa e
não admite voltar. A alma é a verdadeira casa do ego, que insiste em negá-la, na
busca pela felicidade em lugar longínquo, fora de si mesmo. Nesse momento,
eles se tornam escravos das próprias sombras”.

“Outros, um pouco mais conscientes, optam por sufocar os instintos primários e


as lembranças traumáticas em verdadeira guerra contra si próprios, na ilusão de
esconder as sombras, com o risco de permitir a sua movimentação sorrateira e a
perda inesperada de controle. Não raro as sombras se manifestam como
explosões nervosas ou decisões incabíveis de pessoas aparentemente calmas e
sensatas. ‘Não acredito que fulano fez isso, ele sempre pareceu tão equilibrado’,
é a frase que costumamos ouvir nesses casos. Aprisionar as sombras é uma
guerra inglória que acabará levando o individuo ao descontrole, a acessos
repentinos de fúria ou a seguir para o outro lado, igualmente ruim, o da
depressão, do desânimo ou do pânico. Intuem que precisam voltar para casa,
mas ainda não sabem como. O ego está perdido na floresta das sombras.
Desesperados, tentam fugir de si mesmo. Restam aprisionados, tendo as
sombras como carcereiras”.

Alguns, no entanto, conseguem se olhar no espelho com sinceridade; estão


dispostos ao mergulho profundo do autoconhecimento. Aceitam a existência das
suas sombras e as abraçam com amor. A cada conselho oriundo do ego para o
ser, a alma convida o ego para uma conversa carinhosa a fim de mostrar que
sempre existem diferentes possibilidades. Como uma criança que precisa ser
educada, sempre com amor, para se tornar um adulto melhor. Qualquer memória
desagradável que traga culpa ou trauma, como nunca será esquecida, não deve
ser castigada ou repelida quando se apresenta. Ao contrário, é uma excelente
oportunidade para ser tratada com sabedoria, compaixão, humildade, equilíbrio,
perdão e, principalmente amor, no trabalho incansável de mostrar que cada um
agiu na medida exata da capacidade da mente e do coração naquele momento do
processo evolutivo. Tanto você quanto o outro. Ao entender que o erro é
permitido a todos na escola da perfeição, deixamos de nos envolver pela mágoa,
que tanto corrói, ou nos abater pela culpa, que tanto paralisa, para assumir a
responsabilidade de fazer diferente e melhor daqui por diante. Assim, iniciamos o
trajeto de volta para a casa. No exercício de afinar o ego à alma para se tornarem
uno, sempre tendo as virtudes como guia, a Luz acaba por dissipar, em definitivo,
as sombras. Isto integraliza o ser e o liberta”.

“Quando desorientado, o ego parte para um país distante no anseio por encontrar
o mel da vida. As experiências vividas, somadas à ampliação da consciência e à
capacidade amorosa, o fazem perceber que a busca pelos bens valiosos e
imperecíveis tem como destino o outro lado de si mesmo, a alma. Então, nesse
dia, retorna à casa e acontece o grande encontro”.

“Este grau de equilíbrio se chama maturidade e se reflete na melhoria de todas as


nossas relações. É a sedimentação da virtude da harmonia no ser e a
possibilidade de viver em paz.” Acrescentou que a sua filha começava a viver
esse último entendimento e concluiu: “O movimento interno sempre se reflete na
atitude exteriorizada”.

Argumentei que era muito fácil se arrepender depois de ‘quebrar a cara’. Loureiro
franziu as sobrancelhas e fez uma pergunta retórica: “Não é assim com todos?”,
em seguida prosseguiu o raciocínio: “Como na parábola do filho pródigo,
abandonamos a casa a procura do melhor que a vida tem a oferecer, iludidos
quanto a essas riquezas e prazeres. As tempestades nos forçam a procurar um
porto seguro. A volta para a casa marca a sedimentação da humildade no ser:
apenas terá espaço para crescer aquele que se admite pequeno e se coloca ao
dispor das lições. Ao entender que a conquista do tesouro é o desenvolvimento
das próprias virtudes, o andarilho admite o rumo equivocado, faz meia volta e traz
o ego para se afinar com a alma. Esta virtude, a humildade, permite iniciar o
Caminho e será indispensável para atravessar o primeiro portal”. Tornando a se
referir à filha, falou: “Tratá-la de maneia severa é fazer igual ao mundo. Estas
lições ela já aprendeu. Recebê-la com amor é fazer diferente e melhor. É entregar
o que ela precisa”.

Encerrou a taça de vinho e pediu licença para ir embora. Queria muito estar ao
lado da filha. Me deu outro abraço e o vi sair da cantina, estava saltitante de
alegria. Pedi uma torta de chocolate de sobremesa e me dei conta de como tudo
aquilo se aplicava ao meu relacionamento com a minha mãe. Mesmo sem
conversar sobre isso com sapateiro, ele havia me fornecido todas as respostas
que eu necessitava. Já tínhamos sido muito rigorosos um com o outro; muitas
cobranças e exigências, nenhuma paciência e pouco respeito em aceitar as
diferenças e os limites do outro. Era hora de inverter aquele jogo e me permitir
fazer diferente para que eu pudesse descobrir o melhor de nós dois. Corri para
estação e comprei uma passagem no próximo trem. Iria almoçar com a minha
mãe no domingo. Eu estava, de vários modos, voltando para casa.

A MATURIDADE TRÁZ EM SI A VERDADEIRA LIBERDADE

“A maturidade nada mais é do que o entendimento de si e a disposição de se


transformar. Isto é libertador”, disse o Velho enquanto procurávamos cogumelos
em uma floresta próxima ao mosteiro depois de uma noite de chuva. O sol
brilhava por entre as folhas, lambia nossos rostos e aquecia na manhã ainda fria.
“Entender quem somos, nossas dificuldades e belezas, permite que deixemos
para trás o que em nós não serve mais e abre a perspectiva de inventar o que
queremos ser. Este é o poder do Caminho”, complementou. Um belo rouxinol
pousou em um galho de uma árvore próxima e nos presenteou com uma pequena
sinfonia, só encontrada nas matas. Depois alçou voo. Comentei que todos
gostariam de ter asas como os pássaros para alcançar as alturas. Ele retrucou de
plano: “Pássaros voam por determinismo biológico. As asas da liberdade são
metafóricas, fruto da sabedoria e do amor, flor das escolhas que se faz a cada
passo do Caminho”.

Falei que Mahatma Gandhi certa vez, quando preso, comentou que há homens
mais livres nas celas no que vagando pelas ruas. O velho retrucou: “Gandhi era
um iniciado, uma alma antiga e iluminada. Claro que não falava das mentes
sombrias que enveredaram pelas raias da criminalidade e da ignorância. Ele se
referia à liberdade do pensar desperto dos preconceitos e condicionamentos
culturais e sociais. A liberdade de pensar além; de perceber que as mais cruéis
prisões são aquelas que não têm grades”. Parou um pouco e concluiu: “Liberdade
é muito mais do que o direito de vagar a esmo pelas ruas ou levar uma vida
completamente descompromissada. Isto, em geral, caracteriza os foragidos da
vida. Estes costumam estar aprisionados no pior dos cárceres, a própria
consciência. A verdadeira liberdade traz em si a responsabilidade. A
responsabilidade por suas escolhas e compromissos. Temos compromisso com
tudo que amamos e na medida que ampliamos a nossa esfera amorosa crescem
as nossas asas, nos permitindo voos cada vez mais altos. Nossas asas têm o
tamanho de nossos corações. As nossas escolhas, por sua vez, geram
consequências e temos que nos responsabilizar por elas. A serenidade deste
entendimento, ainda que isto signifique mais esforço e trabalho, pois cada qual
terá os desafios próprios ao seu aprendizado, chama-se maturidade”.

O Velho se calou, estava encantado com alguns cogumelos que havia encontrado
ao pé de um enorme carvalho. Eu ainda metabolizava as suas palavras, quando
ele tornou à carga: “A liberdade é uma poderosa ferramenta evolutiva, pois está
diretamente ligada às suas escolhas, que, por sua vez, definem e aprimoram a
alma do viajante. Não esqueça, entretanto, a evolução exige esforço,
determinação e coragem para enfrentar os desafios e semear o bem nos
territórios áridos da existência. A responsabilidade com todos que nos cercam é o
próprio compromisso com o Caminho, sem o qual não haverá liberdade nem
evolução. Viver este conceito com alegria se chama maturidade”.

À noite jantamos no mosteiro uma saborosa sopa feita com os cogumelos


colhidos pela manhã. Depois, me afastei, absorto em minhas reflexões, quando o
Velho se aproximou e quis saber o que me ocupava os pensamentos. Disse-lhe
que pensava nas consequências de cada escolha que fazemos pela vida e dos
compromissos que acabamos por assumir. Quis saber qual o limite da
responsabilidade. Ele me convidou para caminhar e comentou: “Disse o poeta
que temos o sentimento do mundo e duas mãos. Façamos o nosso melhor a cada
dia nos limites da nossa capacidade de amar e do nível de consciência que
temos. E que no dia seguinte nos seja permitido amar, entender e fazer um
pouquinho mais. Assim é o Caminho. Você perceberá que ele muda na medida
que transforma a sua maneira de andar”.

Questionei sobre aquelas pessoas que se negam aos compromissos. “Coitado


daquele que não tem com quem se preocupar. Isto apenas revela o indivíduo que
vive a ilusão de pensar que liberdade é descompromisso, que vaga desorientado
pelo deserto do desamor, perdido no vale da solidão.”. Fez uma pequena pausa e
prosseguiu: “Esse indivíduo espiritualmente ainda está na infância, se nega a
crescer e deseja viver apenas pelo prazer. Ainda não entende a amplitude e o
poder do amor. O sofrimento será inevitável, pois em algum momento perceberá
que se tornou refém do seu egoísmo e encarcerado na própria solidão. Só amor
cria vínculos eternos e atribui sentido à vida. Portanto, como se vê, amar em toda
a sua amplitude não é um exercício destinado aos fracos”.

Com calma, explicou que no universo há Leis Não Escritas, inexoráveis na


regência da conduta de tudo e todos. Uma delas é a que a vida reage na exata
medida das atitudes de cada um. Não por punição, mas por lição. A dor não é a
única maneira de se aprender, mas o último recurso do Caminho para corrigir
uma rota que leva ao abismo. Com certeza todas as sinalizações anteriores foram
ignoradas por esse viajante. Como um pai zeloso que não abdica da melhor
educação para o filho, a Vida encontrará um jeito de fazer o sujeito refletir e,
então, Entender (a sabedoria da lição), Transformar (a si próprio), Compartilhar
(amar incondicionalmente) e Seguir (a infinita viagem). É indispensável dulcificar
o ser. Desta maneira, cedo ou tarde, a depender das escolhas pessoais, todos
conseguem fechar seus ciclos de aprendizado e evolução.

Perguntei-lhe qual o limite da liberdade. O velho monge sorriu como se esperasse


a pergunta e falou com seu jeito doce: “A verdadeira fronteira é a dignidade. Sem
honestidade no trato com os outros, e conosco, todas as demais virtudes
apodrecem por envenenar a árvore. O florescimento da dignidade aperfeiçoa as
escolhas, ferramenta no qual cada um exercerá a sua liberdade. Você se define a
cada escolha que faz”.

Insisti em como saber a melhor escolha. O Velho fechou os olhos e disse: “ Você
escolhe por amor ou fará a escolha errada. Entender isto é ter maturidade para
prosseguir no Caminho”. Pensou um pouco e finalizou: “O amor é a fita que
entrelaça os corações livres e despertos. O amor é o verdadeiro compromisso e a
única ponte para a felicidade. Não há outra”.

SER É MUITO ALÉM DE ESTAR

Todo texto ou palavra é sagrada se tem a força de iluminar o caminho. Dos


muitos livros que nos servem de lanterna em auxílio nessa infinita e fantástica
viagem, a Bíblia se mantêm como fonte inesgotável de sabedoria e amor,
elementos indispensáveis para a nossa transmutação pessoal. Assim, aos
poucos, transformamos o mundo.
Narram os evangelistas, em várias passagens dos quatro livros, que Jesus ao
entrar em qualquer casa ou repartição saudava a todos com seu jeito sereno,
“que a paz seja convosco”!

Por algum tempo acreditei se tratar de erro de tradução, vez que a Escritura foi
escrita em aramaico para posteriormente ser traduzida para o grego e somente
depois levada aos demais idiomas. Todos sabemos da dificuldade de trasladar
uma língua em outra. Achava que o verbo correto seria esteja no lugar de seja.
“Que a paz esteja convosco” me parecia a construção correta e, pelo visto, para
muitos outros, pois já vi textos e sacerdotes assim se referindo a palavra do
mestre. Eu estava errado.

Acredito que não há letra equivocada, em falta ou excesso naquelas páginas,


face iluminada inspiração de seus escritores, depois reunidos em um único livro,
em sucesso editorial atemporal e sem precedentes para o bem de toda a
humanidade.

Jesus era o ourives da palavra e confeccionava seus discursos e parábolas com


riqueza que permite até os dias de hoje novas e belas interpretações de acordo
com o andar de toda a gente. Não tenho dúvida que “a paz seja convosco” é a
correta e mais sábia tradução.

Todos almejamos o paraíso, lugar onde não se conheça o sofrimento e a


felicidade seja bastante. Quando perguntado onde se localizava esse santuário,
Ele ensinou que não iríamos encontrar em nenhuma província ou país, até porque
sempre levaremos nossa dor por onde andarmos, ao menos enquanto
permitirmos que ela exista. Explicou que o amor e sabedoria são mapa e bússola
a indicar a mais bela de todas as catedrais que pulsa viva dentro de você. A vida
é tratamento e cura. É o encontro do divino que habita em ti.

O Reino dos Céus está situado no centro do seu coração. Seus tijolos são feitos
com a paz indispensável que buscamos para atravessar a longa estrada da vida.
A serenidade e a alegria necessárias a colorir a beleza que há em tudo e em
todos. Inclusive em nós.

A paz é pessoal e compartilhada sem qualquer esforço por quem já a alcançou,


construída internamente no âmago da alma pela engenharia do entendimento e
da tolerância.

Estar é diferente de ser. Muito diferente.

O estar é uma estação, ser é a própria viagem.

Estar é transitório, momento passageiro e condicional por permissão de uma ou


outra situação ocasional, que por ter estas bases, é frágil. O ser é permanente,
erguido através de experiências e percepções que ao se mostrarem iluminadas
tornam-se inabaláveis, sendo incorporadas ao seu jeito de olhar e agir. Sabedoria
entremeada com amor que se sedimenta por si e através de si, tal catedral de
pedra sob pedra, indestrutível às piores tempestades em razão da solidez de
seus alicerces. Riqueza imaterial que nenhum rei ou juiz será capaz de confiscar,
tampouco um ladrão de lhe roubar. É parte infinita de sua alma, verdadeiro e
eterno tesouro. Estará contigo por onde andar.

Ser é muito além de estar.

“Que paz seja convosco” é uma bonita benção e um ensinamento de valor


inestimável do mestre.

O CAOS É DO BEM

Usualmente usamos a palavra caos para nos referir a uma situação de desordem
e confusão no mundo ou em nossas vidas. Em diversas tradições mitológicas o
caos significa um vazio sem forma e ilimitado que propiciou o surgimento do
universo. Na tradição platônica é um estado de desarmonia que precede uma
nova ordem. O I Ching ensina que o caos traz a tempestade que permite a vida
de novo florir. Na Física o termo é utilizado para explicar um sistema dinâmico
que evolui de acordo com lei determinista, sensível a pequenas alterações
iniciais. De certa maneira todas as definições se encaixam.

O caos é uma alavanca para a evolução. Pessoal e de toda a humanidade.

A lei da evolução é inexorável. Avançamos por gosto ou imposição, o que vai


determinar o grau de dificuldade e o tempo do processo. O entendimento e as
escolhas determinam a cada um as dores e as delícias da travessia.

A vida avança em ciclos. Ela é um grande ciclo composto de inúmeros outros


ciclos menores, que se comportam como escalas de aprendizado na infinita
travessia rumo a Luz. Se olharmos para trás e prestarmos um pouco de atenção
não teremos dificuldade em identificar diversos ciclos que já vivemos. A casa dos
pais, acadêmicos, profissionais, afetivos, paternidade ou maternidade, lugares
diferentes que moramos, são exemplos fáceis de vislumbrar, sendo que cada um
destes ciclos pode se subdividir em diversos outros. Cada ciclo encerra uma lição
essencial para o novo trecho da jornada em que você precisa ser melhor e
diferente para enfrentar novos desafios. Quando nos recusamos a aprender a
lição o ciclo se repete infinitamente, como se o trem desse uma volta em círculo
para retornar à mesma estação. Quem já teve a sensação de uma mesma
situação se repetir muitas vezes, parecendo um livro já lido? E você se pega
perguntando o porque daquele conflito ser tão recorrente? São sinais de que você
está aprisionado àquele ciclo. A vida é antagônica a qualquer espécie de prisão.
Para que a página seja virada de maneira definitiva é necessário que percebamos
o que precisa ser aprendido e modificado. Então o ciclo será finalizado e um outro
se iniciará. O fim de um ciclo necessariamente é o início de um novo.
Ocorre que muitas vezes permanecemos estacionados em um ciclo por conforto
ou vício. Consciente ou inconscientemente sabemos o que precisa ser
modificado, mas nos falta força, vontade ou dignidade. Então surge a figura
maravilhosa do caos como que segurando um poderoso martelo a demolir as
velhas formas e conceitos. O velho mundo resta destruído para que o novo possa
ocupar o seu lugar nos empurrando para evolução.

No primeiro momento o desconhecido traz o medo instalando a desarmonia às


mentes ainda infantis com a falsa e ingênua sensação de fim do mundo, quando
na verdade é apenas a faxineira a arrumar a bagunça, jogar fora o lixo para
reordenar a casa de maneira diferente e melhor. Um novo universo começa a se
descortinar. Como os dedos do caos são longos, naquele momento não
conseguimos entender exatamente o que ele nos traz, fazendo com que a
insegurança domine as ações. Não raro as pessoas se desesperam.

No entanto, sabemos que graças à destruição provocada pelo caos


relacionamentos com bases viciadas são desfeitos para abrir oportunidade a
novos laços, construídos dentro de sentimentos e ideias mais nobres; empregos
desaparecem para forçar o resgate de dons e talentos adormecidos, que
despertado pelo barulho dos desmoronamentos, terminam por afastar a amargura
ao apresentar novas e, até então, desconhecidas tintas que passarão a colorir a
estrada do viajante; o convite feito pela morte traz o sentido da vida em mentes
distraídas; o horror da guerra mostra o valor da paz. Basta que se preste atenção,
as lições estão derramadas por toda a parte.

Entender e aceitar que tudo, absolutamente tudo, que acontece em nossas vidas
é para o nosso bem é um conceito extraído de quase todas as tradições e é uma
das lições embutidas no caos. Só o distanciamento propiciado pelo tempo e a
clareza do olhar nos permite entender e agradecer o que a fogueira do caos
incinerou em nossa vida.

A vida nunca vai compactuar com a estagnação.

O EGO DESEJA BRILHO, A ALMA ANSEIA POR LUZ

Somente a clareza de entender realmente quem se é poderá te transformar na


pessoa que buscas em ti. O ego, a parcela da consciência mais ligada às
sensações primárias e imediatas, repleto de condicionamentos sociais e
ancestrais, pensa te proteger ao criar um personagem moldado em modelo de
suposta aceitação e admiração que ilude sobre o sentido da existência. O ego
impulsiona o indivíduo a ser o mais belo, rico e importante, alimentando o vício do
aplauso fácil na esteira do brilho efêmero no show das ilusões terrestres de
prazeres baratos, resultados vazios e soluções improdutivas. As consequências,
imediatas ou não, mas que um dia virão, são o sofrimento e as dificuldades nas
relações pessoais. Além do desgosto consigo próprio. O ego, repleto de boas
intenções, inventa virtudes que ainda não exercemos, direitos que não possuímos
e, comumente nos vitimiza em relação aos movimentos do mundo, criando falsos
motivos de revolta. Ou, ainda, nos força a fugir da realidade quando
desagradável. Em qualquer dos casos leva à estagnação ao impedir de enfrentar
a situação com a maturidade necessária para entender, se transformar,
compartilhar e seguir adiante.

Diante da insegurança comum, fruto da ignorância, o mecanismo mais comum


que o ego dispara são as sombras, nossos sentimentos mais densos, frutos do,
como diz o nome, egoísmo. Ciúme, inveja, ganância e mágoa são os mais
conhecidos e presentes nas entranhas de todos, sem exceção. São inerentes à
natureza humana. No entanto, o que fazemos com eles define quem somos.

As sombras impedem o melhor olhar ao projetar a nossa vida dentro da vida


alheia, como se o outro fosse determinante e responsável pela nossa felicidade.
Transferir a terceiros a causa de inevitáveis frustrações não ajuda em
absolutamente nada. Entender que não encontrará paz em nenhum lugar, salvo
dentro de ti ou aceitar que cada decisão modela o próprio destino significa
maturidade, passos fundamentais para a plenitude.

Buda ensina que se alguém quer saber como será o seu amanhã basta prestar
atenção ao que faz hoje. O Cristianismo nos indica a atravessar pela estreita
porta da virtude. O Xamanismo lembra que somos herdeiros de nós mesmos.

Negar nossas sombras não é a melhor solução, ao contrário, somente permite


que ela continue a se movimentar sem qualquer controle até o momento em que
nos domine por completo. E toda vez que a sombra assume o comando
revelamos o pior de nós. Como um amigo que é mau conselheiro, ao tentar te
proteger a sombra apenas atrapalha a tua evolução. A sabedoria consiste em
fazer com que ela comece a trabalhar a nosso favor até se transmutar por
completo em luz. Por exemplo, existe quem, por sentir ciúme mate ou maltrate a
pessoa amada sem qualquer respeito pelo sagrado direito de escolha do outro.
Os jornais cansam de nos contar casos assim. No entanto, há aquele que ao
sentir ciúme busque seu violão para compor uma bela canção. Com a mesma
matéria-prima uns enveredam pelas raias da criminalidade e da loucura, enquanto
outros fazem da sombra uma aliada para produzir a mais fina obra de arte. Um
jeito iluminado de transformar o denso em sutil, um belo exercício de
espiritualidade e evolução.

A inveja pode se transmutar em força de trabalho e criatividade; a mágoa


transformada em entendimento de que o outro, assim como você, também está
na estrada e, por vezes, ainda não consegue ver a paisagem que já lhe é clara no
iluminado e perfumado jardim da compaixão. Importante entender o automatismo
de algumas de nossas reações, principalmente daquelas que nos deixa um gosto
amargo e modificá-lo. Perceber que tudo pode ser diferente e melhor torna as
possiblidades infinitas e expande o universo.

As sombras lançam um véu que nos impede de ver a realidade com a devida
clareza. Descortinar a névoa nos leva ao discernimento de que não competimos
contra ninguém e na verdade somos os únicos responsáveis pela nossa
felicidade. Entender quais sentimentos realmente movem as nossas atitudes é
passo importante na estrada da evolução. Vingança não é justiça; ciúme não é
amor. As maiores batalhas são travadas onde moram as sombras, ou seja, dentro
de nós.

Assim, pouco a pouco, vamos transmutando sombras em luz, identificando cada


vez mais cedo quando a emoção se apresenta para direcioná-la na Estrada do
Sol. Dominá-la com inteligência é imprescindível. E sem a vergonha ou medo de
admitir a sua existência, vamos aos poucos refinando nossas escolhas, estas
ferramentas poderosas a instrumentalizar infinitas transformações do ser em
busca da integralidade, onde reside a paz. Pouco a pouco a luz leve da sabedoria
e do amor dissipa a escuridão das emoções pesadas, cada vez mais próximo à
sua raiz, amansando sua selvageria. Trata-se de harmonizar os desejos do ego
às necessidades da alma. Enquanto o ego deseja brilho, a alma anseia por luz.
Somente a percepção apurada de quais sentimentos te movimentam e as
consequentes escolhas que faz permite adquirir o bilhete para a próxima estação.
Na essência, a vida é uma infinita e fantástica viagem rumo à Luz.

QUERIDO OSHO GOSTARIA QUE COMENTASSE O USO DE DROGAS

Isto não é nada novo, isto é tão antigo quanto o homem. Nunca existiu um tempo
onde o homem não esteve em busca de um escape. O mais antigo livro do
mundo é o Rig-Veda, e está cheio de uso de drogas. O nome da droga é soma.
Desde aqueles tempos antigos todas as religiões tentaram impedir que as
pessoas não usassem drogas. Todos os governos foram contra as drogas.
Contudo, as drogas provaram ser mais poderosas que governos e religiões,
porque ninguém olhou para dentro da verdadeira psicologia do consumidor de
drogas. O único meio de prevenir o uso de drogas será tornar o homem mais
prazenteiro, feliz, alegre.

(…)Também sou contra as drogas, não porque elas cortam as raízes das religiões
e dos políticos, mas porque destroem o seu crescimento interior em direcção à
espiritualidade. Impedem-no de atingir a terra prometida. Você permanece com as
alucinações, apesar de ser capaz de atingir o real. Dão-lhe um brinquedo.

Mas como as drogas não vão desaparecer; gostaria que todos os governos, todos
os laboratórios científicos, purificassem as drogas, para torná-las mais saudáveis,
sem nenhum efeito colateral, o que agora é possível. (…) Se não podemos tornar
todo o mundo Gautama Buda, não temos o direito de impedir que as pessoas
pelo menos tenham um vislumbre ilusório do estado estético que Gautama Buda
deve ter tido. Talvez estas pequenas experiências incentivem as pessoas a
explorar mais. Mais cedo ou mais tarde, aborrecer-se-á com as drogas, porque
continuará a repetir a mesma cena novamente e novamente. Por mais bela que
seja uma cena, a repetição torna-a chata.

Assim, primeiro, purifique a droga de todos os efeitos nefastos. Segundo, deixe as


pessoas, que querem desfrutar, desfrutarem. Tornar-se-âo entediadas com a
droga. E então o único caminho será procurar algum método de meditação para
encontrar o êxtase definitivo.

(…) O LSD pode ser utilizado como auxílio da meditação?

O LSD pode ser utilizado como uma ajuda, mas a ajuda é muito perigosa. Ela não
é fácil. Se você usa um mantra, mesmo isto pode tornar-se difícil de largar, mas
se usa ácido será ainda mais difícil de largar.

No momento em que está numa viagem sobre o efeito do LSD, você não tem o
controlo. A química tomou conta de si, você não é o mestre. E uma vez que não é
o mestre, é muito difícil reconquistar aquela posição. A química não é a escrava,
agora você é o escravo. Agora como controlá-la não será a sua escolha. Uma vez
que toma LSD como uma ajuda, você que é o mestre está tornar-se um escravo e
toda a sua química corporal será afectada por ele. O seu corpo começará a
implorar por LSD. Agora o anseio não será apenas da mente como acontece
quando se apega a um mantra. Quando usa um ácido como auxílio, o anseio
torna-se parte do seu corpo: o LSD vai para toas as células do corpo. Transforma-
as, a sua estrutura química interior torna-se diferente. Então todas as células do
corpo começam a implorar por ácido e será difícil abandona-lo.

O LSD só pode ser usado na meditação se o seu corpo foi preparado para isto.
Assim, se a pergunta se ele pode ser utilizado no Ocidente, direi que ele não é
para o Ocidente de modo nenhum. Só pode ser usado pelo Oriente – se o corpo é
totalmente preparado para isto. O Ioga usou-o, o Tantra usou-o – existem escolas
de tantra e ioga para usarem LSD como ajuda – mas aí preparam o seu corpo
primeiro. Existe um longo processo de purificação primeiro. O seu corpo torna-se
tão puro e torna-se um grande mestre dele que nem mesmo a química pode ser
sua mestra agora.

(…)No Ocidente não existe nenhuma prática para purificar o corpo ou aumentar a
sua consciência através da mudança da química do corpo. O ácido é tomado sem
nenhuma preparação no Ocidente. Não irá ajudar. Pelo contrário, pode destruir
toda a mente.

DO LIVRO DA CURA – OSHO

A meditação é a cura da outra extremidade do ser humano. Naturalmente, os


medicamentos dependem da matéria, seus constituintes químicos; a meditação
depende da consciência. Não existem remédios disponíveis para a meditação,
ainda que as pessoas tentem. LSD, mescalina, marijuana – milhares de coisas
estão a ser tentadas. Milhares de esforços estão a avançar para produzir pílulas
para a meditação. Mas nunca poderá haver pílulas para a meditação De facto
tentar fazer tais pílulas é a mesma velha teimosia de apenas tratar o nível do
corpo, de fazer todos os tratamentos somente a partir de fora. Mesmo sendo no
interior que a psique está afectada, ainda a iremos tratar a partir de fora, nunca a
partir de dentro. Drogas como mescalina e LSD apenas podem produzir uma
ilusão de saúde interna, não podem criá-la. Não podemos atingir o ser mais
interno do homem através de nenhum meio químico. Quando mais nos dirigimos
para dentro, menor será o efeito das substâncias químicas. Quando mais vamos
para dentro do homem, menos importante as abordagens físicas se tornam. Uma
abordagem não material, ou poderíamos dizer uma abordagem psíquica, faz
sentido.

OSHO - O livro da cura: da medicação à meditação.

OSHO você pode dizer algo sobre o problema das drogas? O que leva as
pessoas a usar drogas?

Isso não é algo novo; é tão antigo quanto o ser humano. Nunca houve uma época
em que o ser humano não estivesse em busca da fuga. O livro mais antigo do
mundo é o Rigveda, e ele está repleto de comentários sobre o uso de uma droga,
soma.

Desde aquela época todas as religiões tentaram fazer com que as pessoas não
se envolvessem com drogas, e todos os governos têm sido contrários às drogas.
Mesmo assim, elas provaram ser mais poderosas do que os governos e as
religiões, pois ninguém investigou a psicologia do usuário de drogas. O ser
humano está infeliz, vive ansioso, angustiado, frustrado, e parece não haver
escapatória, exceto pelas drogas.

A única maneira de prevenir o uso das drogas será tornar as pessoas alegres,
felizes e plenas.
Também sou contra as drogas, pela simples razão de que elas o ajudam a se
esquecer por um tempo de sua infelicidade. Elas não o preparam para lutar contra
a infelicidade e o sofrimento; pelo contrário, elas o enfraquecem.

Mas as razões das religiões e dos governos serem contrários às drogas e a


minha razão de ser contrário são totalmente diferentes. Eles querem que as
pessoas permaneçam infelizes e frustradas, pois os que sofrem nunca são
rebeldes; seus seres são torturados e estão se despedaçando e não podem
conceber uma sociedade melhor, uma cultura melhor, um ser humano melhor.

Por causa dessa infelicidade. qualquer um pode se tornar uma vítima fácil dos
sacerdotes, porque esses o consolarão e dirão: "Bem-aventurados são os pobres,
bem-aventurados são os mansos, bem-aventurados são os que sofrem, pois eles
herdarão o reino de Deus."

A humanidade sofredora também está nas mãos dos políticos, porque a


humanidade sofredora precisa de alguma esperança, a esperança de haver uma
sociedade sem divisão de classes em algum momento no futuro, a esperança de
haver urna sociedade onde não haja pobreza, nenhuma fome, nenhuma aflição.

Em resumo, se tiverem uma utopia no horizonte, as pessoas podem dar um jeito


e serem pacientes com os seus sofrimentos. E você deve registrar o significado
da palavra utopia. Ela significa aquilo que nunca acontece; é como o horizonte,
ele está tão próximo que você acha que pode correr e encontrar o lugar onde a
terra e o céu se encontram. Mas você pode continuar a correr por toda a vida e
nunca encontra o lugar, porque não há tal lugar. Trata-se de uma ilusão.

O político e o sacerdote vivem das promessas. Nos últimos dez mil anos ninguém
entregou o que disse que entregaria. A razão de serem contra as drogas é que
elas destroem todo o seu negócio. Se as pessoas começarem a tomar ópio,
haxixe ou LSD, não se importarão com o comunismo, com o que acontecerá
amanhã, com a vida após a morte, com Deus ou o paraíso. Elas ficarão
preenchidas no momento.

Minhas razões são diferentes. Também sou contrário às drogas, não porque elas
cortam as raízes das religiões e dos políticos, mas porque destroem seu
crescimento interior em direção à espiritualidade. Elas o impedem de atingir a
terra prometida; você fica perambulando em torno de alucinações, enquanto é
capaz de atingir o real. Elas lhe dão um brinquedo.

Mas já que as drogas não vão desaparecer, gostaria que todos os governos, por
meio de laboratórios científicos, purificassem as drogas para torná-las mais
saudáveis e sem nenhum efeito colateral, o que é possível agora. Podemos criar
uma droga como aquela que Aldous Huxley,em memória ao Rigveda, chamou de
"soma", uma droga que não tenha nenhum efeito negativo, que não vicie, que
seja uma alegria, uma felicidade, uma dança, uma canção.

Se não podemos tomar possível que cada um se tome um Gautama Buda, não
temos o direito de impedir que as pessoas tenham pelo menos vislumbres
ilusórios do estado estético que Gautama Buda deve ter tido.
Talvez essas pequenas experiências levem as pessoas a investigarem mais. Mais
cedo ou mais tarde elas ficarão saturadas da droga, pois ela repetirá
constantemente a mesma cena. Não importa quão bela seja a cena, a repetição a
deixará entediante.

Assim, primeiro purifique a droga de todos os efeitos nocivos e, em segundo


lugar, deixe que ela seja desfrutada por quem quiser desfrutá-la. As pessoas
ficarão entediadas... E então o único caminho será o de procurar algum método
de meditação para encontrar o estado de plenitude suprema.

A questão está basicamente relacionada com os jovens. O abismo entre gerações


é o fenômeno mais recente no mundo; ele nunca aconteceu dessa maneira antes.
No passado, os filhos de seis ou sete anos de idade começavam a aprender com
os pais a usar as mãos e a mente em sua profissão tradicional.

Quando eles chegavam aos catorze anos de idade, já eram artesãos,


trabalhadores... e se casavam e tinham responsabilidades. Quando eles tinham
vinte ou vinte e quatro anos de idade, tinham seus próprios filhos. Dessa maneira,
nunca havia um abismo entre as gerações. Cada geração se sobrepunha à outra.

Pela primeira vez na história da humanidade apareceu o abismo entre as


gerações. Ele é de uma importância imensa. Pela primeira vez, até a idade de
vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade, quando a pessoa sai da universidade,
ela não tem nenhuma responsabilidade, nenhum filho, nenhuma preocupação, e
tem o mundo inteiro diante de si para sonhar. Como melhorá-lo, como deixá-lo
mais rico, como criar uma raça de gênios.

Estes são os anos, entre catorze e vinte e quatro, em que a pessoa é uma
sonhadora, pois a sexualidade está amadurecendo e, com ela, os sonhos
amadurecem. A sexualidade do jovem é reprimida pelas escolas e colégios, então
toda a sua energia fica disponível para sonhar. Ele se torna um comunista, um
socialista ou um membro dessa ou daquela sociedade.

E essa é a época em que ele começa a se sentir frustrado com as maneiras como
o mundo funciona. A burocracia, o governo, os políticos, a sociedade, a religião...
não parece que ele será capaz de tornar seus sonhos uma realidade. Ele chega
em casa da universidade cheio de ideias, e cada ideia será esmagada pela
sociedade.

Logo ele se esquece do novo ser humano e da nova era, pois nem mesmo pode
encontrar emprego, nem mesmo pode se sustentar. Como ele pode pensar em
uma sociedade sem classes, onde não haverá rico nem pobre?

É nesse momento que ele se volta para as drogas. Elas lhe dão um alívio
temporário, mas logo ele perceberá que terá de aumentar a dose. E, como elas
são agora, são destrutivas para o corpo e para o cérebro; logo a pessoa ficará
absolutamente sem esperanças. Ela não pode viver sem as drogas, e com elas
não há espaço na vida para ela.

Mas não digo que os jovens são responsáveis por isso, e puni-los e prendê-los é
uma completa estupidez. Eles não são criminosos, mas vítimas.
Minha ideia é que a educação deveria ser dividida em duas partes: uma
intelectual e uma prática. Desde o começo a criança entra na escola não apenas
para aprender o que existe, mas também para aprender a criar algo, alguma arte,
alguma habilidade.

Metade do tempo deveria ser dada às suas atividades intelectuais, e a outra


metade às necessidades reais da vida, o que manterá um equilíbrio. E, quando a
pessoa sair da universidade, não será utópica e não precisará ser empregada
pelos outros. Ela será capaz de criar coisas por conta própria.

E para os alunos que sentem qualquer tipo de frustração, desde o começo as


coisas deveriam ser mudadas. Se eles estão frustrados, talvez não estejam
estudando as coisas certas, talvez o aluno queira ser carpinteiro, e pessoas estão
fazendo dele um médico, ou queira ser jardineiro, e pessoas estão fazendo dele
um engenheiro.

Será necessária uma grande compreensão psicológica, de tal modo que cada
criança seja enviada para a direção em que ela aprenda algo. E em cada escola,
em cada colégio, em cada universidade, pelo menos uma hora de meditação para
todos deveria ser obrigatória, para que, sempre que alguém se sentir frustrado ou
deprimido, tenha um espaço dentro de si mesmo em que possa entrar e
imediatamente se livrar de toda a frustração e depressão. Ele não precisa se
voltar para as drogas. A meditação é a resposta.

Mas, em vez de fazerem todas essas coisas, as pessoas no poder ficam fazendo
coisas idiotas, como proibição, punição... Elas sabem que por dez mil anos as
drogas foram proibidas e o sucesso não foi obtido. Se o álcool for proibido, mais
pessoas se tornarão alcoólatras, e um tipo perigoso de álcool estará disponível.
Milhares de pessoas morreriam de envenenamento, e quem seria responsável?

Jovens estão sendo punidos com anos de prisão sem nem mesmo haver o
entendimento de que, se uma pessoa toma uma droga ou se vicia na droga, ela
precisa de tratamento e não de punição. Ela deveria ser enviada a um lugar em
que cuidados possam ser dados a ela, onde possa aprender meditação e,
lentamente, possa ser afastada das drogas e direcionada a algo melhor.

Em vez disso, ela é forçada a entrar em prisões, permanecendo presa durante


anos! As pessoas absolutamente não valorizam a vida humana. Se um jovem de
vinte anos de idade for preso por dez anos, será desperdiçado seu tempo mais
precioso, e sem qualquer benefício, porque na prisão qualquer droga está mais
facilmente disponível do que em qualquer outro lugar.

Os prisioneiros são usuários de drogas altamente habilidosos e se tomam


mestres dos amadores. Após dez anos, a pessoa sairá perfeitamente treinada. As
prisões ensinam: qualquer coisa que você faça não está errada, a menos que
você seja pego; apenas não seja pego. E há mestres que podem ensinar como
não ser pego de novo. Assim, toda essa coisa é absolutamente absurda.

Também sou contrário às drogas, mas de uma maneira totalmente diferente.


Acho que você pode entender o ponto.

Osho, em "Alegria: A Felicidade Que Vem de Dentro".


Osho,

Quando eu fumo maconha, eu sei quem eu sou. Eu sinto Deus dentro de mim. Eu
o vejo em todo mundo. Eu converso com a grama, eu converso com as flores, e
elas me respondem. Eu me sinto feliz, completamente contente. Mas eu descobri
que quando fumo eu sinto uma pressão em minha cabeça, que me preocupa. Eu
não sei se eu devo fumar ou não, mas isto me dá uma grande esperança quanto
ao futuro. Ao fumar maconha, eu tenho visões de onde eu gostaria de estar.

OSHO: Mm mm. (uma pausa) Isto é apenas ilusório e não uma verdadeira
esperança. A coisa toda é uma ilusão química e a mudança química pode estar
lhe dando a pressão na cabeça, porque toda essa coisa acontece no seu sistema
nervoso. Isso pode lhe dar uma pressão, que é uma simples indicação para parar
com isto. Isto pode ser perigoso mais tarde: pode destruir alguns nervos
essenciais do cérebro. Isto é destrutivo, é um sonho de custo elevado. Ele é
bonito, mas, mesmo que um sonho seja bonito, ele é um sonho, e pela manhã
você estará de volta à realidade. E seu custo é muito alto.

Se você usar por muito tempo, isto fará a sua inteligência deteriorar. As
pessoas que usam maconha ou coisas semelhantes por longo tempo tornam-se
idiotas. A inteligência delas perde a argúcia, porque é danoso ter a pressão
química nos nervos todos os dias. E você não está alcançando nada! Eu não
estou preocupado com o custo. Se algo verdadeiro estivesse sendo alcançado,
então qualquer que fosse o custo valeria a pena. Mas você não está ganhando
coisa alguma em troca – apenas uma ilusão.

Se quando usa maconha você sabe quem você é, isto não tem qualquer
importância. Você tem que saber quem você é quando está alerta, consciente,
completamente natural, sem pressão alguma criando coisas em você. É aí que
você tem que saber quem você é.

Para tornar-se iluminado é preciso que seja de uma maneira muito comum, só
então a iluminação é verdadeira. Pode-se encontrar atalhos, mas todos os atalhos
são falsos. Não existem atalhos para a realização. Atalhos apenas criam
pequenos circuitos dentro de você e libera sonhos e imaginação. Isto não é bom
para você nem para ninguém. E esta pressão está indicando que isto está indo
profundamente nas suas células cerebrais. É melhor parar o mais rápido possível.

Criar uma experiência que não é seu estado natural, não tem qualquer
utilidade. Ela não lhe dá esperança. Ela simplesmente destrói sua vida e suas
oportunidades de se tornar alerta e consciente da realidade como ela é. Não há
qualquer necessidade de buscar Deus nas árvores. Se você puder ver as árvores
como elas são, já terá percebido tudo. Por que impor Deus? Você não precisa ver
Deus em quem quer que seja. Se você puder ver a pessoa real, ali de pé, isto é o
suficiente. Deus simplesmente significa realidade, a realidade comum que
circunda você.
Quando eu digo que Deus está nas árvores, eu não quero dizer que você tem
que ver Deus nas árvores, que uma cabeça vai florescer na árvore e então
aparecerá alguém que olhará para você e terá um encontro e um diálogo com
você, e lhe dirá. ‘Alô!’ Quando eu digo veja Deus nas árvores, eu simplesmente
quero dizer para ver as árvores como elas são, sem que você traga qualquer idéia
sua. Veja a verdade da árvore. Este é o Deus da árvore, a sua cor verde, a sua
flor, a sua alegria, o seu enraizamento, a sua força e fragilidade. Veja a verdade
dela sem trazer qualquer noção de sua cabeça.

Agora, Deus é sua noção. Em seu estado normal, você não consegue ver,
porque você não é tolo. Como você consegue fazer de si mesmo um tolo? Como
você consegue ver Deus na árvore? Uma árvore é uma árvore. Como você
consegue ver Deus nela? Você não consegue fazer de si um tolo, mas quando
você usa maconha, você se torna um tolo, aí fica muito fácil tornar-se um tolo.
Você consegue ver Deus, ou um búfalo, ou qualquer coisa na árvore. Você
simplesmente tem que manter essa noção em sua mente. Quando a maconha
começa a agir e mudar a sua química, você tem que estar constantemente se
lembrando de uma coisa – que a árvore é Deus... ou o Demônio... Um dia tente
procurar pelo demônio e você o verá.

Então isto não está na árvore; isto está na sua mente e você projetou na
árvore. A árvore começa a funcionar como uma tela. Agora, em seu estado
normal, você não vê a árvore, porque para ver a árvore você tem que estar muito
sensível, alerta, observador e completamente no aqui e agora. Porque a árvore
não está no passado nem no futuro. Se você estiver no passado ou no futuro
nunca irá encontrar a árvore. Você pode passar por ela, mas nunca a encontrará.
A árvore está sempre no aqui e agora. Para encontrá-la você tem que estar no
aquí e agora.

Greed - Osho Transformation Tarot

Agora, em seu estado normal, você não vê Deus. Isto está perfeito: o
problema não é que você não veja Deus. No seu estado normal, você também
não vê a árvore, você simplesmente passa por ela. Ela está ali e não existe
encontro algum. Daí, você usa a maconha e tem essas grandes idéias de que
Deus está em toda parte. Com essas idéias você entra nisso. É por isto que são
necessários guias para as viagens com ácido. Um guia pode lhe dar idéias.
Quando você está entrando na mudança química, o guia pode dizer, ‘Olhe, Deus
está em todo lugar. Ele está aqui...’ Qualquer idéia que ele sugerir vai começar a
funcionar e você começará a projetar.

Assim, aconteceu de pessoas que eram contra as drogas, fazerem uso delas
e só conhecerem o inferno e pessoas que eram a favor delas, usarem as mesmas
drogas e conhecerem o céu. Depende de você. A droga não lhe dá coisa alguma.
Ela simplesmente faz de você um tolo. Você entra num certo tipo de infantilidade,
numa imaginação, na sua faculdade de sonhar. É isto o que a droga faz. Agora
fica por sua conta liberar o sonho. Você consegue liberar qualquer sonho que
queira. Se você quiser ver monstros, dragões e demônios, todos pulando sobre
você e tentando matá-lo, você pode ter isto. A escolha é sua. Ou você pode ver
Deus e anjos dançando e cantanto, e Jesus com seus apóstolos sentados ao
lado. Isto fica por sua conta, é o seu sonho.

As drogas podem apenas ajudar a sua faculdade de sonhar para que ela
funcione totalmente. É como se você manuseasse um projetor. O filme tem que
ser fornecido por você. A eletricidade no projetor não consegue criar o filme. A
eletricidade no projetor só consegue fazer com que ele projete o filme que você
forneceu. O filme tem que ser fornecido por você e o projetor estar ali. Daí, ele
começa a projetar. Se você quiser ver o inferno, você terá que ter um filme de
inferno. Se você quiser um filme do céu, ele aparecerá na tela. Isto é exatamente
o que a droga faz. Ela simplesmente libera a sua capacidade de sonhar. O sonho
começa a funcionar. Mas isto é apenas desperdício de tempo... E a um custo
muito grande.

Saia fora disto. E não procure por Deus nas árvores nem nas pedras; isto é
estúpido. Simplesmente procure por árvores, nas árvores; e por pedras, nas
pedras. Simplesmente veja a verdade delas, a presença delas. Deixe que a
presença seja revelada e em tal revelação você verá que tudo é um.

E não é apenas através de drogas que ocorrem projeções. Você consegue


projetar sem drogas, mas você precisa de algo que possa drogá-lo. Por exemplo,
um grande desejo pode se tornar uma droga. Você pode desejar ver Deus numa
árvore. Você pode ficar olhando e olhando, e dizer, ‘Eu não comerei, eu não vou
me mover daqui, a não ser que eu veja Deus.’ Você pode forçar a sua vontade e
o que a droga faz, ela poderá fazer. Vai levar um pouco mais de tempo...

Assim, as pessoas nas cavernas do Himalaia ao ver Deus, estão fazendo o


mesmo. Não é muito diferente. Apenas elas não tomaram a química vinda de
fora, elas criaram uma química interna. Você pode criá-la através de posturas de
ioga, porque elas mudam a química de seu corpo. Você pode fazê-la através do
jejum, porque ele muda a química de seu corpo. Qualquer coisa que pode mudar
a química de seu corpo pode ser usada como droga.

Para ver a realidade, a pessoa tem que estar completamente normal, sem
usar coisa alguma, nenhuma vontade, nenhum jejum, nenhuma postura. Ela tem
que estar como ela é. Levará um longo tempo para ver a verdade da árvore, mas
esse tempo não é um desperdício. Assim não fique apressado, não queira
rapidez. Sim, as drogas dão rapidez, mas não seja rápido, não seja apressado.
Seja paciente e permita que as coisas cresçam devagar. Todas as coisas
verdadeiras crescem vagarosamente: elas têm o seu próprio tempo. Algo tem que
amadurecer em você.

E esteja satisfeito e contente com o que estiver disponível neste momento.


Não peça por mais. Eu sei que se você já fez uso de drogas, isto se torna muito
difícil porque a droga o atrai. Sem qualquer esforço de sua parte, alguma coisa
começa a acontecer. Assim, por que se preocupar com algo mais? Por que
meditar e por que estar consciente, se a droga pode desencadear o processo
imediatamente?

A droga tem sido usada ao longo do tempo. Ela não é algo novo. No ocidente
ela é algo novo, mas no oriente ela tem sido uma das práticas mais antigas. Mas
as pessoas que tomaram drogras por séculos não chegaram a lugar algum.
Se você quer realmente ver o que existe, você terá que parar com todo tipo de
projeção. Isso será enfadonho no começo, não será tão encantador, não terá
aquela sedução, aquele fascínio. Mas não há necessidade de fascínio, de
sedução. A pessoa deve satisfazer-se com a realidade comum. O que há de
errado com as árvores serem como árvores, e os homens como homens e as
mulheres como mulheres?

Se você puder fazer isto por seis meses, sem as drogas, simplesmente
vivendo com o comum, sem qualquer desejo pelo extraordinário, mais cedo ou
mais tarde você começará a ver a verdade das coisas comuns. E no muito
comum, o extraordinário está escondido. Mas você tem que chegar até ele
através do comum. O comum é a porta para o extraodinário. A minha sugestão é
que você pare com a droga, mm? Pare completamente com ela.

OSHO – The Open Secret – 29 de novembro.

"Siga a tua angústia, ela é o caminho rumo a ti mesmo." — Nietzsche.

"Crenças só existem na ignorância. Se você sabe, você sabe. E é bom que você não saiba,
perceba que você não sabe, as crenças podem enganar você. As crenas podem criar uma
atmósfera em sua mente onde, sem saber nada, você começa a pensar que você sabe alguma
coisa." - Osho.

" A Vida é aqui e agora!

A Vida é aqui e Deus é Agora!

Se você estiver buscando em seus devaneios, sua busca será em vão,, porque o paraíso nada
mais é que um profundo contentamento.

A mente prossegue dizendo a você: "Faça isso, seja aquilo. Possua isso, possua aquilo... Como
poderá ser feliz se não tiver isto?" (...)

Se a sua felicidade for condicionada a isso você continuará infeliz. Se não conseguir ser feliz
como é, não será feliz nunca.

A menos que seja feliz simplesmente feliz sem razão alguma, a menos que seja suficientemente
louco para ser feliz sem qualquer razão, não será feliz nunca.

Sempre encontrará algo destruindo a sua felicidade. Sempre achará que existe algo faltando, e
isso que está faltando se tornará novamente um devaneio da mente." – Osho
" A mente vive descontente – isso é intrínseco a ela.

A mente nunca pode estar satisfeita.

Quando você compreende isso, um milagre acontece, então você pode deixar a mente de lado,
pois ela nunca vai lhe trazer satisfação.

Se você compreender por que está insatisfeito, se não procurar desculpas lá fora, vai ver que o
motivo é a maquinação da mente, e essa maquinação pode ser abandonada.

É muito fácil. O importante é enxergar isso.

Não acredite só porque eu digo – você precisa enxergar.

Observe-a. Olhe para o passado.

Muitas vezes você achava que, se conseguisse determinada coisa, ficaria feliz, mas quando a
conseguiu não ficou. As pessoas vivem caindo sempre nas mesmas armadilhas.

Por isso, observe a mente e todas as peças que ela prega em você. Para haver transformação,
nada mais é necessário, apenas ficar alerta ao mecanismo da mente.

E, através dessa compreensão, as coisas começam a acontecer sozinhas, sem esforço, em


silêncio." – Osho

"A condição para o amor pelo real, é a desconstrução do amor pelo ideal"

"Qual é a chance do mundo ser exatamente como você idealiza? Nenhuma! Porque senão não
seria ideal, seria o mundo real. Portanto, aquele que espera que o real vire o ideal para poder
amar não amará nunca nada." - Clóvis de Barros.

" É bonito estar sozinho, também é lindo se apaixonar, estar com as pessoas. E são
complementares, não contraditórios." – Osho

"Um homem religioso não é reacionário nem revolucionário. Um homem religioso é,


simplesmente, desprendido e natural: não é a favor nem contra as coisas, é simplesmente ele
mesmo, não tem regras a seguir nem regras a repelir: não tem regras.

"Um homem religioso é livre em seu próprio ser; não está modelado por hábitos e
condicionamentos.

Não é culto - não que seja incivilizado e primitivo; ao contrário, é a mais alta expressão em
civilização e cultura; mas não é um ser culto.

Cresceu em sua percepção e não necessita de regras; transcendeu às regras. É verdadeiro, não
porque sua regra seja ser verdadeiro; sendo desprendido e natural ele é simplesmente
verdadeiro, acontece-lhe ser verdadeiro. Tem compaixão, não porque siga um preceito: sê
compassivo!

Não. Sendo desprendido e natural, sua compaixão fluindo naturalmente, nada precisa fazer, de
sua parte; a compaixão é um subproduto de seu progresso em percepção.
Não é contra a sociedade, nem pela sociedade - está, simplesmente, para além dela.

Tornou-se, de novo, uma criança, criança de um mundo inteiramente desconhecido, uma criança
em nova dimensão; em uma palavra renasceu." – Osho

“Não precisamos raspar a cabeça nem usar vestes especiais. Não precisamos sair de casa nem
dormir em uma cama de pedras. A prática espiritual não requer condições austeras — apenas
um bom coração e a maturidade de compreender a impermanência. Isso nos fará progredir." -
Chagdud Rinpoche

"Às vezes o silêncio é uma oração, às vezes a canção é uma oração. Depende de você...
depende do seu coração." – Osho

" Seja um senhor - o senhor do seu próprio eu - e não faça nenhum esforço para possuir coisa
alguma. Não quero dizer que você deva abandonar todas as coisas. Essa não é a questão. Use
todas as coisas, mas não pense em termos de posse. Use a casa, mas não seja o proprietário.
Use a riqueza, mas não seja o dono dela. Use o mundo todo, mas não pense que você o possui.
Você é apenas um viajante de passagem. Quando cansado, você descansa sob uma árvore.
Mas você não possui a árvore. E se você não a possuir, sentirá uma profunda gratidão pela
árvore.

Ao anoitecer, quando estiver de partida, você a agradecerá. Sentir-se-á agradecido porque,


quando estava cansado e a estrada estava quente, a árvore deu-lhe abrigo; a árvore estava
fresca. Mas não procure possuir a árvore, pois assim, você não se sentirá agradecido. Quando
você possui, não sente gratidão. Não possua a sua mulher, não possua o seu homem. Quando
estiver cansado, sua esposa lhe dará amor.

Sinta-se grato. A posse é impossível. Você pode apenas possuir a si mesmo; somente isso é
possível, tudo o mais é impossível." - Osho.

" Esteja pronto para tomar responsabilidade pela sua própria miséria, alegria, negatividade,
positividade, inferno ou paraíso.

Quando essa responsabilidade é entendida e aceita, mudanças começam a acontecer. Esteja


aberto a uma nova possibilidade." – Osho

"A sabedoria é um paradoxo. O homem que mais sabe é aquele que mais reconhece a vastidão
da sua ignorância." — Nietzsche.

" A meditação é necessária somente porque você não escolheu ser feliz. Se você tivesse
escolhido ser feliz, não haveria nenhuma necessidade de meditação. A meditação é medicinal:
se você está doente, então o medicamento é necessário. Os Budas não precisam de meditação.
Uma vez que você começou a escolher a felicidade, uma vez que você decidiu que você tem
que ser feliz, então nenhuma meditação é necessária. A meditação começará a acontecer
naturalmente, por ela mesma.
A meditação é uma função do estar feliz. A meditação segue o homem feliz como uma sombra:
em qualquer lugar que ele for, qualquer coisa que ele estiver fazendo, ele estará meditativo. Ele
estará intensamente centrado.

A palavra 'meditação' e a palavra 'medicação' têm a mesma raiz; e isso é muito significativo. A
meditação também é medicinal. Você não carrega vidros de remédios nem receitas médicas se
você estiver com saúde. Naturalmente, quando você não está com saúde, você tem que ir ao
médico. Ir ao médico não é uma grande coisa para ficar fazendo alarde. A pessoa deve se sentir
feliz se o médico não for necessário." -Osho-

" É por isso que as pessoas cometem suicídio. Se elas perderam o dinheiro, se elas faliram, elas
cometem suicídio. Porque elas cometem suicídio? Alguém pode pensar 'porque?' O dinheiro
pode ser ganho novamente... Mas olhe para dentro dessas pessoas. Aquela era a identidade
delas. Elas acreditaram por muito tempo que 'eu sou isso'. Agora, toda a minha conta bancária
se esgotou e de novo o problema surge: 'quem sou eu?' E elas desperdiçaram toda a vida
criando aquela conta bancária. Agora elas não estão preparadas para começar todo aquele
esforço de novo. Isso é demais. Elas fracassaram completamente.Na verdade, ao falirem, o
suicídio já havia ocorrido. A identidade delas já havia ido. Elas agora não sabem mais quem elas
são. A sua face desapareceu. Como elas podem viver sem uma face? A mulher que você tem
amado morre e você comete suicídio, ou começa a pensar em cometer suicídio, porque aquela
mulher era a sua identidade. Agora você foi deixado sozinho, vazio." - ( Osho )

" O principal não é o desapego, mas sim a compreensão.

Procure compreender toda esta loucura: o que fez a si mesmo, o que permitiu que lhe tivesse
acontecido, o tipo de contradições que tem vindo a acumular. Observe tudo isso sem juízos de
valor, sem condenações, sem tomar partidos.

Observe apenas.Não se esconda, não se ofenda, não julgue, não diga “Isto é bom, aquilo é
mau”.

Não avalie. Não seja juiz, mas apenas um observador imparcial, uma testemunha.

Observe-se. Permita-se conhecer-se.

Independentemente do caos e da fealdade, veja-se como é.

Subitamente, começa a compreender, e é essa compreensão que produz o desapego. Nesse


instante, consegue compreender que ser contra ou a favor é absolutamente inútil e impossível.

Perante a impossibilidade você movimenta-se. Não há lugar a uma escolha mental, a nenhum
esforço.

Sempre que existe compreensão, o esforço não está presente.

E a ausência de esforço é beleza pura, pois é inerente ao todo.

O esforço pressupõe a existência mais ou menos profunda de uma luta contra alguma coisa.

Uma pessoa totalmente íntegra é aquela que não tem inimigos

nem amigos, é aquela que não escolhe, nem possui inclinações por estes ou por aqueles, que
simplesmente se movimenta em cada momento com uma consciência liberta de escolhas,
aceitando tudo o que a vida lhe traz. Uma pessoa totalmente íntegra, flutua, não nada.
Não luta, mas flui. (…)

Quando apenas se é, surge a liberdade: a liberdade dos amigos, dos inimigos, das posses e da
ausência delas; a liberdade deste mundo e do outro, da matéria e da mente, de todas as
escolhas e divisões.

Quando se é, abandona-se o impossível.

Sem esforço." - ( Osho )

“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem
identificar o que os separa e não o que os une.” — Milton Santos.

“Se você está em profunda agonia – sofrendo, triste, deprimido – a existência inteira parece
estar deprimida. É você, não a existência. A existência permanece a mesma, mas os estados de
sua mente mudam. Num determinado estado, a existência parece estar em festa; em outro, ela
parece estar triste. Ela não está; a existência é sempre a mesma. Mas você está sempre
mudando e sua mente sempre sendo projetada. A existência atua como um espelho. Você se
reflete nele.

Se você pensar que tudo aquilo que interpretou é o fato e não apenas uma projeção, mergulhará
em ilusões cada vez mais profundas. Mas se puder entender que não se trata de um fato mas de
uma ficção da mente – que tudo depende de você e não da própria existência – então você pode
mudar. Pode passar por uma mutação, uma revolução interior por acontecer, porque agora
depende de você." - (Osho )

"Aceitando a vida como ela é, a tensão desaparece, o descontentamento desaparece;


aceitando-a como ela é, a pessoa começa a sentir -se muito alegre – sem nenhum motivo
aparente!

Quando a alegria tem um motivo, esta não vai durar muito tempo. Quando alegria é sem razão,
ela vai estar aí para sempre." – OSHO

" Para ser feliz é necessário uma enorme coragem. Ser infeliz qualquer um pode ser. Ver
negatividade nas coisas é fácil, mas para ver beleza e alegria nas coisas mais simples é
necessário uma grande alma."

(Osho)

"Quando há muita correria, correria pra lá e pra cá, o homem torna-se infeliz. Felicidade existe só
em repouso completo.

Você corre aqui e ali em busca da felicidade, mas sua aritmética está errada, seus cálculos
estão com defeito.

O resultado final de toda essa corrida é sobre infelicidade.

Quanto mais você corre, mais miserável você vai sentir-se.


A felicidade é um momento de descanso, quando não há mais correria, quando você está
apenas em repouso, quando você está simplesmente lá onde você estiver, quando você não se
mover até mesmo uma polegada.

Medite sobre isso.

A intensidade do seu movimento, da a medida do quanto você está privado da felicidade. E


quanto mais você continuar correndo, mais e mais infeliz você se torna.

A felicidade pode ser encontrada ao parar.

E parada é a meditação, oração, adoração. Parar significa não ter nenhuma ideia ou qualquer
pensamento do futuro. Enquanto você permanecer sonhando com o futuro a sua corrida vai
continuar.

E você é infeliz porque você está correndo.

Se você espera que a felicidade venha até você amanhã você não receberá nada além de
miséria.

Por que você não recebe a sua felicidade hoje? – Ele já está presente.

Por favor, pare por um tempo.

Está faltando a felicidade por causa de sua correria, e por disso você não tem tempo livre, sem
tempo livre para curtir a felicidade."

(Osho)

" Você não pode dar algo que não tem, só pode dar aquilo que já tem. Se a rosa interior não se
abre, todo seu amor nada mais é que palavras. Se a rosa interior se abre, não há necessidade
de dizer coisa alguma, nenhuma palavra é necessária. A fragrância em si basta para transmitir a
mensagem.

Não importa o lugar em que você esteja ou a pessoa que lhe faça companhia, o amor irradia,
pulsa, torna-se uma dança constante de energia ao redor. Mas, primeiro, a rosa do coração tem
de se abrir — e ela só pode se abrir se você suprir a necessidade básica, que é a bem-
aventurança.

As pessoas amam por desespero. Essa é a coisa mais impossível, não pode acontecer pela
própria natureza da existência, não é possível.

As pessoas amam porque estão tristes. Elas procuram o outro porque estão solitárias, e o amor
só é possível quando você é feliz. O amor só é possível quando você não se sente sozinho, e
sim quando está sozinho; quando você não está chateado consigo mesmo, mas encantado,
extasiado consigo.

A meditação ajuda você a ser bem-aventurado... E esta é a corrente: a meditação o deixa bem-
aventurado, a bem-aventurança ajuda a rosa do coração a se abrir, e o amor então vem
naturalmente, assim como a fragrância vem da rosa.

(Osho)
" Existem apenas dois tipos de pessoas: aquelas que fogem de sua solidão – a maioria, 99,99%
das pessoas fogem de si mesmas; e o restante – 0,01% são os meditadores, que dizem: “Se a
solidão é uma verdade, então é uma verdade; portanto não faz sentido fugir dela. É melhor
penetrar nela, encontra-la, encará-la como ela é."

(Osho)

“ Ao invés de tentar controlar a situação, controle sua reação diante dela. Então a situação
mudará” – OSHO

"Permita-me repetir: sem o esforço você nunca alcançará a iluminação. E apenas com esforço
ninguém jamais conseguiu atingi-la. Você necessitará fazer um grande esforço, somente então o
momento chega em que o esforço se torna completamente inútil.

O caminho da verdade, o Tao, é entrega... é ausência de esforço. Isso não quer dizer que ele –
o esforço – não seja necessário. Inicialmente o esforço é requerido. Você faz um grande esforço
para viver de acordo com a Verdade; então, aos poucos, entende que seu grande esforço ajuda
um pouco, mas dificulta bastante. Daí o esforço começa a ser abandonado.

Você tenta arduamente viver de acordo com o Tao e, pouco a pouco, começa a compreender
que nenhum esforço é necessário para viver de acordo com a natureza... do contrário o próprio
esforço continua caindo como um peso sobre você. Mas ele só se torna fútil apenas quando
você tiver chegado no auge, no pináculo de todo o seu empenho, nunca antes disso.

Quando você tiver atingido o topo de todos os seus esforços – quando tiver feito tudo o que era
possível fazer – então de repente não há mais a necessidade de fazer coisa alguma. Você
abandona o esforço."

(Osho)

”Se sua cabeça, seu coração e corpo estão em sintonia, encontrar seu Ser será a coisa mais
fácil do mundo. Sem dúvida havendo conflito entre instinto, intelecto e a intuição segue
desperdiçando toda sua vida.

A pessoa sábia é aquela que gera uma harmonia entre a cabeça, o coração e o corpo. Esta
harmonia leva a revelação da fonte da própria vida, ao centro, a alma.

Esse é o maior êxtase possível; não unicamente para os seres humanos, e sim para todo o
universo.

Você precisa descobrir a realidade dentro de si mesmo, não criá-la de forma imaginária;
Aprofunde-se no silêncio e observe; esteja alerta e consciente de modo que possa ver tudo o
que é real.

Aqueles que viram a realidade, experimentam um grande silêncio, uma imensa alegria, uma
bem-aventurança infinita, a imortalidade. Podemos chamá-la de consciência universal, ou de
divindade universal.”

(Osho)
Não é até que enfrentamos e aceitamos com coragem aquilo que nos aflige que realmente
somos livres. Quantos tratam de fugir da realidade? Quantos tratam de fugir da dor? buscam as
respostas em livros de auto-ajuda praticam disciplinas para contornar a realidade e convencer-se
de algo que não é.

Eles mascaram a verdade mas nunca encontram a resposta. Tem medo de cair e sem dar-se
conta, caem ainda mais.

Aquele que enfrenta a adversidade, aquele que não teme cair no poço, mas se joga
voluntariamente a este, é salvo.

Aquele que morreu em vida e voltou a nascer, aquele que tocou fundo, aquele que perdeu tudo e
agora não tem nada mais a perder, converte-se em herói. O herói não rejeita a lama, aceita-a e
se joga nele com um sorriso no rosto.

Enfrente sua adversidade, viva sua dor. Para desfrutar da luz, primeiro há que apreciar a
escuridão. Para alcançar a glória, primeiro há que descer fundo. depois disso, só existe
liberdade." OSHO

" Você pode se libertar do vício de estar sempre certo, e você pode perder o medo de estar
errado. Se você busca a verdade em si mesmo, então deve reconhecer que pode não estar certo
todas as vezes.

Para sua verdadeira natureza, estar certo ou errado não faz a menor diferença. Estar certo não
vai torná-lo melhor do que ninguém, e estar errado não vai torná-lo menos digno." ( Osho )

" Se a vida não estiver se tornando uma celebração, então alguma coisa está errada com você,
não com a vida em si." (Osho)

A FILOSOFIA DA HIPOCRISIA

A técnica de pensamento positivo não é uma técnica que o transforma. Ela está simplesmente
reprimindo os aspectos negativos da sua personalidade. É um método de escolha. Ela não pode
ajudar a consciência; ela vai contra a consciência. A consciência é sempre algo sem escolha.

O pensamento positivo simplesmente significa forçar o negativo para o inconsciente e


condicionar a mente consciente com pensamentos positivos. Mas o problema é: o inconsciente é
muito mais poderoso, nove vezes mais poderoso que a mente consciente. Então, uma vez que
uma coisa se torne inconsciente, se torna nove vezes mais poderosa do que antes. Ela pode não
ser mostrada da maneira antiga, mas irá encontrar novas maneiras de expressão...

E isso é danoso e perigoso também. As idéias negativas da sua mente precisam ser liberadas,
não reprimidas por idéias positivas. Você tem de criar uma consciência que não é nem positiva
nem negativa. Isso será a consciência pura. Neste puro estado de consciência, você viverá a
vida mais natural e plena de felicidade...

O pensamento positivo é simplesmente a filosofia da hipocrisia - para lhe dar o nome correto. -
Osho -
" Os essênios dizem que Deus é escuridão, e há algo nisso. Uma coisa: a escuridão é eterna. A
luz vem e vai e a escuridão permanece. De manhã, o sol surgirá e haverá luz; ao entardecer, o
sol se porá e haverá escuridão. Para a escuridão, nada surgirá – ela está sempre aí. Ela nunca
surge e nunca se põe. A luz vem e vai; a escuridão permanece. A luz tem sempre alguma fonte;
a escuridão existe sem fonte. Aquilo que tem alguma fonte não pode ser infinito; somente aquilo
que é sem fonte pode ser infinito e eterno. A luz traz certa perturbação: eis por que você não
pode dormir sob a luz. A luz cria tensão. A escuridão é relaxamento, total relaxamento.

Mas por que temos medo da escuridão? Porque a luz parece-nos com a vida – ela é; e a
escuridão parece-nos a morte – ela é. A vida vem através da luz e, quando você morre, parece
que você caiu na escuridão eterna. Eis por que pintamos a morte como negra; e o preto tornou-
se a cor do luto. Deus é luz, e a morte é negra. Mas esses são nossos medos projetados. De
fato, a escuridão tem infinitude; a luz é limitada. A escuridão parece ser o útero de onde tudo
surge e no qual tudo cai de volta.

Os essênios tomaram este ponto de vista. Ele é muito belo e de muito auxílio também, porque,
se você puder amar a escuridão, você ficará sem medo da morte. Se você puder entrar na
escuridão – e você pode entrar somente quando não há medo – você alcançará total
relaxamento. Se você se torna um com a escuridão, você se dissolve; isso é uma entrega.
Então, não há mais nenhum medo, porque você se tornou um com a escuridão, tornou-se um
com a morte. Você não pode morrer agora. Você se tornou imortal.

A escuridão é imortalidade. A luz nasce e morre; a escuridão simplesmente é. Ela é imortal."


(Osho) Em O Livro dos Segredos

"A vida mantém o equilíbrio entre os opostos.

Assim, uma pessoa que esteja pronta para aceitar a responsabilidade por ela mesma, com todas
as belezas, amarguras, alegrias e aflições, pode ser livre.

Só uma pessoa assim pode ser livre.

Então, viva isso com toda a sua agonia e em todo o seu êxtase – ambos são seus. O êxtase não
pode vir sem agonia, a vida não pode existir sem a morte e a alegria não pode existir sem a
tristeza.

É assim que as coisas são – não se pode fazer nada a respeito. Essa é a própria natureza das
coisas.

Então aceite a responsabilidade por ser como é, com tudo o que você tem de bom e com tudo o
que tem de ruim, com tudo o que tem de belo e com tudo o que não é belo. Nessa aceitação,
ocorre uma transcendência e você se torna livre." (Osho)

"Como você se sente não é resultado do que está acontecendo na sua vida; é a sua
interpretação do que está acontecendo". (ROBBINS, 1999).

Se você quiser saborear a existência, não é via o outro, é um salto direto dentro de você mesmo.
É via você mesmo, através de você.E somente o amor e seus fracassos podem jogá-lo para
dentro. Nada mais pode atirá-lo para dentro, porque tudo mais está muito abaixo do amor.”
(Osho)
" Tudo que você possui pode ser perdido, pode ser roubado, pode ser removido. No fim, a morte
separará você de suas posses. Somente aquilo que você se tornou não pode ser removido. Nem
a morte o separa disso. Você não tem isso, você é isso." (Osho)

" Você se sente solitário, então quer se agarrar a algo, a alguém, a um relacionamento, só para
ter a ilusão de que não é solitário. Mas você sabe que é, por isso a dor.

Por um lado, você está se agarrando a algo que não é de verdade, que é só um arranjo
temporário - um relacionamento, uma amizade. E enquanto mantém o relacionamento, pode
alimentar uma pequena ilusão que o faça esquecer a solidão.

Mas este é o problema: embora possa esquecer por um instante a sua solidão, no instante
seguinte você se dá conta de que o relacionamento ou a amizade não é para sempre.

Ontem você não conhecia esse homem ou essa mulher, vocês eram estranhos.

Hoje são amigos; amanhã o que acontecerá?

Amanhã vocês podem ser estranhos outra vez, por isso a dor". ( Osho )

Comece a ficar consciente de tudo que comumente acontece inconscientemente. Por exemplo,
raiva, inveja, orgulho... – e sua consciência se aprofundará.

OSHO

"Amor invoca amor e ódio invoca ódio. Tudo aquilo que nós damos retorna para nós. Essa é
uma lei eterna.

Assim, tudo aquilo que você deseja receber, é aquilo que você deve dar ao mundo. Você não
pode receber flores em retribuição a espinhos.." ( Osho )

" Você deve compreender que enquanto você não ficar consciente da dor escondida no seu
inconsciente, ela não o deixará, ela permanecerá escondida. Exponha-a, traga-a para a
consciência. Puxe-a para fora, onde quer que ela esteja escondida na escuridão interna, traga-a
para a luz.

Algumas coisas morrem com a luz. Se você puxar para fora da terra as raízes de uma árvore,
elas morrerão. Elas necessitam da escuridão, elas vivem na escuridão, na escuridão está a vida
delas. Assim como as raízes, o sofrimento também vive na escuridão. Exponha os seus
sofrimentos e você descobrirá, eles morreram. Se você continuar escondendo-os dentro de si,
eles irão permanecer seus companheiros constantes por muitas vidas. A infelicidade tem que ser
expressada.

Compreenda uma coisa mais: foi de fora que você pegou as dores e as trouxe para dentro de si.
Por favor, volte com elas para o lado de fora. A dor não é interna; todas as dores são trazidas do
lado de fora."

(Osho)
"A vida é um fenômeno muito misterioso, onde o riso é parte e onde as lágrimas também fazem
parte.

De vez em quando estar triste, realmente triste, não é mal.

A tristeza tem sua própria beleza.

Você só precisa aprender a apreciar a beleza da tristeza, o seu silêncio, sua profundidade.

A vida é tudo isso, tudo junto.

Dias nublados , dias ensolarados...

Tudo na vida pode ser apreciado, você só precisa de um pouco mais de consciência, mais
consciência do que está acontecendo...

Deixar a vida seguir seu fluxo ir em frente.

Apreciar, rir, chorar, mas faça o que fizer faça-o totalmente, sem vergonha, sem culpa."

(Osho)

Aceite sua solidão.

Aceite sua ignorância.

Aceite sua responsabilidade,

e então observe o milagre acontecer.

Um dia, de repente,

você se verá sob uma luz totalmente nova,

pois nunca antes olhou para si mesmo.

Nesse dia você realmente terá nascido.

Antes disso, o que ocorreu

foi apenas um processo de pré-nascimento.

OSHO

"Espiritualidade não é procurar o fantástico

no dia a dia da realidade material,

mas compreender que a realidade material

é composta pelo fantástico da espiritualidade."

OSHO
“A única maneira de não cometer erros é fazendo nada. Este, no entanto, é certamente um dos
maiores erros que se poderia cometer em toda uma existência.”

― Confúcio

"Tristeza dá profundidade. Felicidade te eleva. Tristeza dá raízes. Felicidade dá ramos. A


felicidade é como uma árvore indo para o céu, e tristeza é como as raízes indo para dentro do
ventre da terra. Ambas são necessários, e quanto maior a árvore vai, mais fundo vai,
simultaneamente. Quanto maior a árvore, maior serão suas raízes. Na verdade, é sempre
proporcional. Esse é o seu equilíbrio. "

(Osho)

" O Mestre não é um tio.

O Mestre não pode ser bonzinho.

O Mestre é um terremoto."

( Osho )

" A questão não é ir para o céu, e sim aprender a arte de estar no céu onde quer que você
esteja. "

( Osho )

" Tente entender isso. E comece a procurar o ego - não nos outros, isso não é da sua conta, mas
em você. Toda vez que se sentir infeliz, imediatamente feche os olhos e tente descobrir de onde
a infelicidade está vindo, e você sempre descobrirá que o falso centro entrou em choque com
alguém.

Você esperava algo e isso não aconteceu. Você espera algo e justamente o contrário aconteceu
- seu ego fica estremecido, você fica infeliz. Simplesmente olhe, sempre que estiver infeliz, tente
descobrir a razão.

As causas não estão fora de você.

A causa básica está dentro de você - mas você sempre olha para fora, você sempre pergunta:
'Quem está me tornando infeliz?' 'Quem está causando a minha raiva?' 'Quem está causando a
minha angústia?'

Se você olhar para fora, você não perceberá. Simplesmente feche os olhos e sempre olhe para
dentro. A origem de toda a infelicidade, da raiva e da angústia, está oculta dentro de você, é o
seu ego.

Todo o caminho em direção ao divino, ao supremo, tem que passar através desse território do
ego. O falso tem que ser entendido como falso. A origem da miséria tem que ser entendida como
a origem da miséria - então ela simplesmente desaparece. Quando você sabe que ele é o
veneno, ele desaparece. Quando você sabe que ele é o fogo, ele desaparece. Quando você
sabe que esse é o inferno, ele desaparece.

E então você nunca diz: 'eu abandonei o ego'. Você simplesmente irá rir de toda essa história,
dessa piada, pois você era o criador de toda essa infelicidade...

É difícil ver o próprio ego. É muito fácil ver o ego nos outros. Mas esse não é o ponto, você não
os pode ajudar.

Tente ver o seu próprio ego. Simplesmente o observe,"

( Osho )

O ser humano ainda não aprendeu a conhecer as belezas da solidão.

Ele está sempre ansiando por algum relacionamento, ansiando por estar com alguém... e
esquece, de alguma maneira, que está só. Que nasceu só, que morrerá só e, não importa o que
faça, você vive só.

A solidão é algo tão essencial a seu ser que não há maneira de evitá-la. Todos os esforços
dirigidos a evitar a solidão falharam e falharão, porque são contrários a que você se torne
consciente de sua solidão. E é tão lindo experienciá-la, senti-la, porque ela o liberta da multidão,
do outro. É a nossa libertação do medo de estarmos sós.

"Solidão" significa simplesmente ser completo. Você é inteiro, não precisa de ninguém mais para
completá-lo.

Assim, tente descobrir seu centro mais profundo, onde você está sempre só, sempre esteve só...
tão pleno, tão completo e tão transbordante com todas as seivas da existência que, tendo
provado sua solidão, a dor do coração desaparecerá. A necessidade do outro desaparecerá.

Em seu lugar, um novo ritmo de imensa suavidade, paz, alegria e bem-aventurança estará
presente.

Isso não significa que uma pessoa que está centrada em sua solidão não possa fazer amigos,
não possa ter um companheiro. Na realidade, só ela pode fazer amizades, porque agora isso
não é mais uma necessidade, é simplesmente um compartilhar."

( Osho )

" Se você quiser reduzir a dor, então deixe-a acontecer; se você quiser aumentar a alegria, então
deixe-a acontecer, porque a alegria está dentro e novas camadas continuarão se revelando. E
na medida em que você segue deixando a alegria acontecer você começará a ter mais e mais
vislumbres de pura alegria.

A alegria aumenta ao ser compartilhada.

A dor tem que ser liberada. E quando você começa a ter vislumbres de alegria, eles também têm
que ser liberados.

Você tem que se tornar como uma criancinha, que não tem qualquer preocupação a respeito do
passado, nem qualquer questão a respeito do futuro, que nem mesmo sabe o que os outros
estão pensando a seu respeito.
Somente então acontecerá aquilo para o que eu o chamei aqui, e aquela jornada na qual eu
gostaria que você fosse bem suavemente. Um pouco de coragem é requerida, e então, os
tesouros de alegria não estarão longe.

Um pouco de coragem é requerida e você poderá abandonar o seu inferno - exatamente como
alguém que se suja na rua e volta para casa para tomar um banho e a sujeira é lavada. Da
mesma maneira, a meditação é o banho e a dor é a sujeira.

Assim como depois do banho a sujeira foi lavada e você se sente fresco, da mesma forma você
terá um vislumbre, sentindo dentro de si a felicidade e alegria que é a sua natureza."

( Osho )

"Se tenho algum conhecimento superior negado à maioria, então eu tenho uma dívida com essa
maioria, e não um sentimento de superioridade com essa maioria." - Eduardo Marinho.

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