Você está na página 1de 5

Prefácio

Este é um livro perturbador, mas intrigante. Será também, para mui-


tos, um desafio. Não deixará o leitor indiferente.
Impressiona a naturalidade com que António Pinto Leite fala de amor
e gestão. Para muitos, talvez a maioria, a gestão nada tem a ver com amor.
É um mundo frio, calculista, dominado pela realidade brutal da concorrên-
cia e pela frieza dos resultados. Quem não gere bem é eliminado, quem é
mais competente cresce, domina, adquire mais poder. A ideia que muitos
fazem da gestão e dos gestores é baseada numa visão estreita do exercí-
cio do poder, sem contemplações, e numa quase completa obsessão pela
destruição dos concorrentes. O grande gestor é muitas vezes descrito como
um homem – e raras vezes este modelo se pode aplicar a mulheres – de
grande visão e completo conhecimento do que é importante, capaz de
tomar decisões instantâneas sem hesitações nem insegurança, disposto a
exercer uma autoridade sem limite em qualquer momento e, sobretudo,
contando com a adesão disciplinada e cega de todos os seus colabora-
dores. Para muitos, este modelo define o conceito de leadership, como
se a empresa fosse um exército e o objetivo fosse ganhar uma guerra.

– 11 –

António Pinto Leite •

É fácil concluir que o amor não cabe neste mundo. E que qual-
quer referência ao amor na gestão parece desajustada, inapropriada,
longe da realidade. Como pode alguém lembrar-se de falar de amor
quando se trata de impor disciplina, exigir rigor, sancionar a incompe-
tência e visar obsessivamente os bons resultados? O próprio título do
livro perturba, porque vai diretamente contra esta visão tradicional da
gestão e sugere que se está a misturar dois mundos que deviam ser
mutuamente exclusivos.
Mas quem vive o dia a dia das empresas e da concorrência, quem
estuda a gestão na sua formulação mais avançada, quem tenta apro-
fundar os casos de maior sucesso das melhores empresas do mundo
sabe que a análise fria e calculista, a competência técnica, a capacida-
de de obter a obediência dos colaboradores, se bem que necessárias,
não são de todo suficientes. Primeiro, as empresas de grande sucesso
estão quase sempre associadas a um conjunto de valores que ultra-
passam em muito a racionalidade e a disciplina. São muitas vezes em-
presas em que existe – e é palpável – uma cultura organizacional com
importantes elementos de carácter afetivo, os quais motivam, entusias-
mam e mobilizam as pessoas, determinam comportamentos de cola-
boração construtiva, permitem afrontar e superar dificuldades e geram
uma procura de excelência que vai muito para além da mera intenção
de obter maiores lucros ou remunerações.
Segundo, no mundo de hoje é cada vez mais claro que os gran-
des avanços civilizacionais, económicos, financeiros e empresariais são
quase sempre explicados pela maior e melhor capacidade de gerar
colaboração, ao nível mais sofisticado e mais exigente, entre pessoas,
grupos, empresas e organizações. Todos sabemos, desde os primór-
dios da economia de mercado, que esta colaboração resulta em grande
parte da procura do interesse individual, a qual, pelos mecanismos da
concorrência, leva a resultados ótimos em termos de eficácia na afeta-
ção de recursos. Mas mesmo os primeiros pensadores e defensores da
propriedade privada e da livre concorrência – como Adam Smith ou
Stuart Mill – sempre deixaram claro que a economia de mercado tam-
bém precisaria de um sistema de valores muito exigente, para garantir

– 12 –

O Amor como Critério de Gestão •

que o bem comum se sobrepõe ao interesse individual. É que, como


os economistas bem sabem, os incentivos da concorrência, mesmo da
concorrência perfeita, não são compatíveis com a preservação dessa
mesma concorrência e podem por isso subverter os resultados. Daí
que se torne imperativo garantir o bem comum, o que significa manter
a economia de mercado dentro das normas que lhe dão otimalidade.
Essa garantia pode vir do Estado, pela intervenção reguladora, im-
posta pela lei, com as suas inevitáveis sanções para os prevaricadores.
A intervenção do Estado é sempre indispensável. Mas na verdade as
economias de mercado que melhor funcionam são aquelas em que há
maior adesão natural e espontânea aos valores que asseguram o bem
comum: aquelas em que há menor conflitualidade, em que a sanção
do Estado é menos necessária, em que o maior número de pessoas
percebe que é no interesse de todos atuar no sentido do bem comum.
Os países mais avançados – que são também aqueles em que há maior
qualidade de vida, no sentido mais lato do termo – são aqueles em
que há menos conflitualidade social, menos evasão fiscal, menos abu-
so de poder económico, menos tentativas de fugir às regras do jogo
competitivo. E, adiantando um dos pontos principais deste livro, não é
por acaso que esses países são todos eles – com raríssimas exceções –
países dominados por uma matriz de valores de origem cristã, que,
mesmo num mundo mais materialista e menos crente, continuam a ser
os que maior impacto têm. O fascínio que hoje existe pela performan-
ce económica dos países emergentes não nos deve iludir: esses países
estão no início do seu desenvolvimento; quanto mais se aproximarem
de níveis mais altos de prosperidade, mais precisarão de garantir essa
extraordinária compatibilização entre interesse individual e coletivo
que está na base das economias mais avançadas. E veremos então se
os seus sistemas de valores estão ou não à altura do desafio.
Terceiro, é interessante refletir um pouco – seguindo a sugestão
de António Pinto Leite – sobre o setor filantrópico, hoje tão importan-
te nos países mais avançados. A atividade sem fins lucrativos, resul-
tante geralmente de donativos por vezes gigantescos de indivíduos,
de famílias ou de empresas, tem um papel crucial nas sociedades mais

– 13 –

António Pinto Leite •

avançadas. É mesmo possível adiantar que, sem essa atividade, o avan-


ço científico, artístico, cultural e social dos países mais desenvolvidos
– com especial destaque para os Estados Unidos da América – não seria
possível ou seria muito menos evidente. E a generosidade que conduz
à filantropia não tem nada que ver com a prossecução do interesse in-
dividual, que é a base da economia de mercado. Por outras palavras,
não é difícil argumentar que, nas economias mais avançadas, alguns
dos grandes fatores de progresso só são possíveis porque no compor-
tamento das pessoas o amor acaba por ser muitas vezes dominante.
Sem desvalorizar toda a sofisticação e toda a relevância da análise
tradicional da economia e da gestão, grandes linhas de investigação e
de experimentação têm sido desenvolvidas para ir mais além. A impor-
tância dos elementos mais afetivos no comportamento de empresários
e gestores obriga-nos a alargar horizontes e a ultrapassar os axiomas
da análise económica e financeira tradicional. A importância da inteli-
gência emocional, o carácter decisivo do chamado capital emocional
das organizações, o estudo do empreendedorismo apaixonado, a ade-
são espontânea a objetivos de responsabilidade corporativa e o entu-
siasmo que hoje existe pelo empreendedorismo social são a melhor
prova de que o amor não pode estar separado da vida das empresas
e do papel dos seus dirigentes.
Há ainda um outro aspeto – porventura mais controverso – que
vai na mesma direção e que António Pinto Leite não menciona: o da
chegada a lugares de enorme responsabilidade de um número cada vez
maior de mulheres. Durante muitos anos, o mundo da gestão esteve
entregue quase exclusivamente aos homens. O aparecimento de uma
mulher à frente de uma empresa ou em lugares de grande responsabili-
dade era considerado antinatural e, em geral, um sinal de fraqueza. Na
tal conceção da gestão com base na frieza do cálculo acompanhada do
exercício forte da autoridade, não havia lugar a mulheres, geralmente
consideradas insuficientemente assertivas e demasiado influenciáveis
por um sentimentalismo deslocado.
Ora, hoje em dia, verifica-se que a crescente presença de mulheres
no topo das maiores e mais importantes organizações do mundo, em

– 14 –

O Amor como Critério de Gestão •

lugar de conduzir a lideranças fracas e a resultados desastrosos, está


com frequência associada a performances excelentes, por vezes alicer-
çadas em modelos de liderança que são realmente diferentes. Como
dizem os investigadores desta área, «men take charge, women take
care». E taking care é precisamente aquilo de que muitas organizações
mais precisam, aquilo que leva essas organizações a superarem-se a si
próprias e a chegarem a níveis de performance de que ninguém sus-
peitaria. Afinal, o amor talvez tenha um papel fundamental na gestão.
O elemento mais intrigante deste livro – e que representa um de-
safio para todos os homens e mulheres de boa vontade que se inte-
ressam por estes temas – é a ideia simples de que o amor na gestão se
pode resumir a um princípio simples: tratar todos como gostaríamos
de ser tratados se estivéssemos no seu lugar. Não estamos muito longe
das ideias de John Rawls, que defendia que a escolha de modelo de
sociedade deveria ser determinada pela posição ocupada pelo menos
afortunado membro dessa sociedade. Mas tornar este princípio ope-
racional, dar-lhe conteúdo prático, transformá-lo num guia simples e
decisivo para cada dilema da gestão, aí está um desafio que não deixa
de ser intrigante. Será possível? António Pinto Leite acredita que sim,
embora seja o primeiro a reconhecer as dificuldades: como aplicar este
princípio a um concorrente? Como aplicá-lo a colaboradores que têm
de ser sancionados, por vezes despedidos?
Em qualquer caso, fica sempre um desafio fundamental: a lide-
rança consiste, acima de tudo, em saber afirmar na empresa os valores
essenciais em que se acredita e que acabarão por determinar o com-
portamento de cada um e a cultura da organização. Para todos os ges-
tores, mas sobretudo para os gestores cristãos, a ideia simples de que
o amor deve ocupar um lugar central na vida das organizações não
deixa de ser intrigante, mas sobretudo desafiante.

António Borges
29 de abril de 2012

– 15 –

Você também pode gostar