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A ESCADA

JORGE ANDRADE
PERSONAGENS

ANTENOR
AMÉLIA
MARIA CLARA, filha de Antenor
ZILDA, filha de Maria Clara
LOURDES, filha de Maria Clara
FRANCISCO, filho de Antenor
NOÊMIA, mulher de Francisco
RICARDO, filho de Francisco
HELENA FAUSTA, filha de Antenor
SÉRGIO, marido de Helena Fausta
VICENTE, filho de Antenor
IZABEL, mulher de Vicente
OMAR
JUCA
MARLENE
INDUSTRIAL
VENDEIRO
OFICIAL DE JUSTIÇA

...Ó DESEJADO,
Ó POETA DE UMA POESIA QUE SE FURTA E SE EXPANDE
À MANEIRA DE UM LADO DE PEZ E RESÍDUOS LETAIS...

PRIMEIRO ATO
CENÁRIO: QUATRO APARTAMENTOS, EM DOIS PLANOS, LIGADOS POR ESCADAS. NO
CENTRO DO PLANO INFERIOR, HALL DE ENTRADA DE UM PRÉDIO DO COMEÇO DO
SÉCULO, ADAPTADO PARA APARTAMENTOS, QUE VAI TERMINAR NA ESCADA QUE
SOBE. EM PRIMEIRO PLANO, CORREDOR DE ENTRADA DO PRÉDIO. A ESCADA TEM
UM PEQUENO PATAMAR ENTRE O ANDAR TÉRREO E O PRIMEIRO ANDAR, DONDE
SE DIVIDE EM DUAS, A ESCADA É DE BALAÚSTRES E PASSA ENTRE OS
APARTAMENTOS, SEGUINDO PARA OS ANDARES SUPERIORES, COMO ELO DE UMA
CORRENTE. À DIREITA, EM PRIMEIRO PLANO, APARTAMENTO DE MARIA CLARA,
COM PORTA DE ENTRADA À EXTREMA DIREITA. À ESQUERDA, NO MESMO PLANO,
APARTAMENTO DE VICENTE, COM PORTA DE ENTRADA À EXTREMA ESQUERDA. OS
APARTAMENTOS DO SEGUNDO PLANO ESTÃO NO CENTRO, RODEADOS PELAS
ESCADAS E CORREDORES. À ESQUERDA, APARTAMENTO DE FRANCISCO: À
DIREITA, DE HELENA FAUSTA. OBJETOS ANTIGOS E PEÇAS DE MOBÍLIA COLONIAL,
DIVIDIDOS ENTRE OS IRMÃOS, ESTÃO DISTRIBUÍDOS NOS APARTAMENTOS.
APARTAMENTO 1, DE MARIA CLARA: MESA DE JANTAR, SOFÁ VELHO, MUITOS
ENFEITES, QUADRINHOS BORDADOS A MÃE NAS PAREDES. MÁQUINA ANTIGA DE
COSTURA COM TOALHA E PORTA-RETRATO EM CIMA. MÓVEIS SEM ESTILO, COM
EXCEÇÃO DAS PEÇAS HERDADAS DE ANTENOR.
APARTAMENTO 2, DE VICENTE: SALA ARRUMADA COMO LIVING. SOFÁ, POLTRONA,
RÁDIO-VITROLA, PORTA-REVISTAS, VASOS COM FLORES E MÁQUINA
SEMIPORTÁTIL DE ESCREVER. PAPÉIS LIVROS E PASTAS SOBRE A MESA. EM UM
DOS CANTOS, ESTANTE CHEIA DE LIVROS EM DESORDEM. GRAVURAS, DESENHOS
EA CRAYON DO ROSTO DE IZABEL E RETRATOS DE IBSEN, DOSTOIÉVSKY E
TCHÉKHOV.

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APARTAMENTO 3, DE FRANCISCO: MESA DE JANTAR, RETRATOS DE CIDADES
ANTIGAS E FLÂMULAS DE UNIVERSIDADES PELAS PAREDES. POLTRONA-CAMA,
ESTANTES, VITROLA E MESINHAS, ATRAVANCAM A PEQUENA SALA.
APARTAMENTO 4, DE HELENA FAUSTA: SALA ARRUMADA COMO LIVING. TOALHAS
PEQUENAS NOS BRAÇOS E NO ENCOSTO DO SOFÁ E DAS POLTRONAS. TELEVISÃO,
ABAJURES, QUADROS, MESINHA BAIXA COM OBJETOS DE CRISTAL, MESA DE
JOGAR CARTAS E ALGUNS VASOS COM PLANTAS. EM UMA DAS PAREDES, CARTAZ
GRANDE DE TURISMO, ONDE ESTÁ ESCRITO BEM VISÍVEL – RECIFE, VENEZA
BRASILEIRA.
CENA: AO ABRIR-SE O PANO, O ZELADOR DO PRÉDIO ACABA DE LIMPAR A ESCADA.
NOÊMIA, NO APARTAMENTO 3, ARRUMA A MESA PARA O CAFÉ. NO APARTAMENTO 4,
MARLENE ESPANA A SALA. NO APARTAMENTO 1, ZILDA TOMA CAFÉ COM AFLIÇÃO.
NO APARTAMENTO 2, IZABEL, SEGURANDO UM ESPANADOR, LÊ A FOLHA DE PAPEL
QUE VICENTE DEIXOU NA MÁQUINA DE ESCREVER; SORRI COM TERNURA. OMAR,
APRESSADO, DESCE A ESCADA, VINDO DO ANDAR SUPERIOR.

ZILDA (Levanta-se e grita para dentro do apartamento)


- Até logo, vovô! Um beijo, vozinha!
(ZILDA SAI PARA O HALL. OMAR ENCONTRA-SE COM JUCA NO PATAMAR DA
ESCADA.)
OMAR
- Bom dia, seu Juca.
JUCA
- Bom dia.
OMAR
- Olha a chave do apartamento. Hoje, basta arrumar o quarto.
JUCA
- E o resto?
OMAR
- Está tudo em ordem. Até logo.
JUCA
Até logo.

OMAR (Desce o resto da escada e beija Zilda)


- Bom dia.
ZILDA
- Bom dia. Que foi?
OMAR
- Nada, pro quê?
ZILDA
- Parece zangado.
OMAR
- Dormi mal. Rápido! Estamos atrasados. O ônibus passa à sete e meia. (Saem)
APARTAMENTO 3
NOÊMIA
- Ricardo! Ricardo! Já está pronto?
RICARDO (Voz)
- Agora mesmo, mamãe.
NOÊMIA
- Depressa, meu filho!
RICARDO (Voz)
- Não sei me arrumar a jato.

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NOÊMIA
- Está na hora. Assim você perde a primeira aula.
RICARDO (Entra, acabando de se vestir)
- E não vou perder grande coisa. Aquele professor de latim é chato e burro.
NOÊMIA
- Não sei pra que estudar latim. Não vejo ninguém falando latim!
RICARDO
- Eu também não vejo ninguém fazendo uma porção de coisas que somos obrigados a
estudar. (Senta-se à mesa) Velho gagá.
NOÊMIA
- Olhe aqui o leite. Coma bastante pão.
RICARDO
- Papai volta hoje?
NOÊMIA
- Volta. Estudou bastante raiz quadrada?
RICARDO
- Estudei. Deve ser bárbaro viajar de avião a jato.
NOÊMIA
- Não encha tanto a boca, meu filho!
RICARDO
- A senhora está me apressando.
NOÊMIA
- Mas, também não precisa pôr metade do pão na boca.
RICARDO
- Estou atrasado.
NOÊMIA
- Leva a vida toda pra sair do quarto.
RICARDO (Meio irritado)
- Estava separando minhas coisas.
NOÊMIA
- Arrumou tudo?

RICARDO
- Arrumei. Por no lugar, depois, é que vai ser.
NOÊMIA
- Não fique assim.
RICARDO
- Assim, como?
NOÊMIA
- Assim... jururu.
RICARDO
- Mas que é chato, é.
NOÊMIA
- Nem faça essa cara perto de seu pai.
RICARDO
- Por que não mudamos para um apartamento maior? Assim não precisava dar meu quarto.
NOÊMIA
- Vou falar pra seu pai alugar um palácio e ceder a você toda um ala.

RICARDO
- Se o quarto fosse seu, a senhora ia ver.
NOÊMIA

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- Um mês, só, meu filho!
RICARDO
- Tire tudo das gavetas. Não esqueça das revistas.
NOÊMIA
- Já disse que não precisa.
RICARDO (Corta)
- Precisa, sim. Toda vez que quero uma camisa, um livro, um caderno, preciso pedir.
Prefiro que a senhora tire tudo. Vovô pega a gente no quarto e não larga mais. É um verdadeiro
banho de história! O sofá-cama já foi consertado? Não sou faquir pra dormir em cima de mola
quebrada.
NOÊMIA
- Quantas queixas, meu Deus!
RICARDO
- Este sofá é de amargar. Mês de notas baixas, hei.
NOÊMIA
- Você pode muito bem estudar aqui. Isto não é desculpa.
RICARDO (Beija Noêmia e sai correndo)
- Só estudo no meu quarto. Até logo.
NOÊMIA
- Até logo, meu filho, cuidado! Não pegue beira com esses mocinhos malucos que andam
por aí. Saia do ginásio e venha direto pra casa. Não fique andando à toa... e nada de cinema...
RICARDO (Volta-se aborrecido)
- Ehêêê! Quem ouve a senhora falar, pensa que sou algum marica.
(NOÊMIA SORRI. RICARDO DESCE A ESCADA E ENCONTRA-SE COM JUCA)
RICARDO
- Este prédio é um verdadeiro depósito de lixo, hein, meu velho.
JUCA
- Por que não limpa?
RICARDO (Sai correndo)
- Porque o escravo é você.
JUCA
- Moleque mal educado.
(NOÊMIA COMEÇA A TIRAR A MESA. ANTENOR E AMÉLIA SAEM DO QUARTO
CARREGANDO VALISES. JÁ SÃO VELHOS, COM A CABEÇA BASTANTE GRISALHA.
APESAR DISSO AINDA ESTÃO FIRMES E SE VESTEM COM MUITA ORDEM. REVELAM,
EM SEUS MODO E NA MANEIRA DE SE VESTIR, RESTOS DE ELEGÂNCIA E DE
EDUCAÇÃO ANTIGA. OS DOIS SÃO MAGROS, SENDO QUE AMÉLIA É LIGEIRAMENTE
MAIS ALTA. ANDAM COM CERTA DIFICULDADE, MAS AINDA NÃO ESTÃO TRÔPEGOS.
ANTENOR CARREGA UMA BENGALA. QUE USA MAIS POR COSTUME. OLHAM A SALA
E FICAM SEM SABER O QUE FAZER. NO APARTAMENTO 3, NOÊMIA ESVAZIA O
QUARTO DO FILHO, ARRUMANDO ALGUMAS COISAS NA SALA E LEVANDO O RESTO
PARA DENTRO DO APARTAMENTO.)
APARTAMENTO 1
ANTENOR
- Está na hora, Amélia.
AMÉLIA
- Não vamos nos despedir de Maria Clara?
ANTENOR
- Pra quê? Não vamos viajar.
AMÉLIA
- Você tem cada uma, Antenor!
ANTENOR

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- Cada uma, pro quê?
AMÉLIA
- Ninguém sai sem se despedir.
ANTENOR
- Eu saio.
(MARIA CLARA, APRESSADA, ENTRA NO APARTAMENTO, CARREGANDO UMA CESTA
DE VERDURAS)
AMÉLIA
- Não vou sem ver Maria Clara.
MARIA CLARA
- Bom dia, mamãe. Bom dia, papai. Tive medo de não encontrar vocês.
ANTENOR (Olha a cesta com desprezo)
- Neta de barão carregando cesta de verduras!
MARIA CLARA
- Neta de barão, mas sem empregada. Já vão?

AMÉLIA
- Antenor é uma aflição. Por ele, teríamos subido às cinco da manhã.
ANTENOR
- Gosto de chegar logo.
MARIA CLARA
- Pra que essa correria? Podem ficar até mais tarde. Assim, esperam Noêmia arrumar o
apartamento.
ANTENOR
- Se não arrumou até agora, não arruma mais.
MARIA CLARA
- Agora que Ricardo saiu.
ANTENOR
- Vamos, Melica.
AMÉLIA
- Depois você leva o resto das roupas, minha filha?
MARIA CLARA
- Levo.

AMÉLIA
- Mas, cuidado, não vá amassar. Detesto roupa amassada.
MARIA CLARA
- Pode ficar sossegada. (Beija Amélia) Até logo. Subo mais tarde.
ANTENOR
- Não se incomode. Nós temos muito que fazer. Vamos, Melica! Que lerdeza!
AMÉLIA
- Já vai Antenor. Já vai.
(ANTENOR SAI APRESSADO, ACOMPANHADO POR AMÉLIA. IZABEL NO
APARTAMENTO 2, ACABA DE ARRUMAR A SALA. MARIA CLARA FICA PARADA, COM
EXPRESSÃO TRISTE, OLHANDO A PORTA QUE SE FECHA ATRÁS DOS PAIS, LOURDES
ENTRA.)
LOURDES
- Bom dia, mamãe.
MARIA CLARA
- Bom dia, minha filha. Zilda já saiu?

LOURDES

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- Já. Vamos começar o trabalho?
MARIA CLARA
- Agora mesmo.
(MARIA CLARA SEGURA A CESTA COM DECISÃO E SAI. LOURDES SENTA-SE E
COMEÇA A TRICOTAR.)
NA ESCADA
AMÉLIA
- Pra que essa pressa, Antenor?
ANTENOR
- E pra que essa lerdeza, Melica? Se temos que mudar, é mudar.
JUCA
- Bom dia, seu Antenor. Bom dia Dona Amélia.
AMÉLIA (Sem reconhecer)
- Bom dia.
ANTENOR
- Ahaa! Bom dia. Como vai o senhor?
JUCA
- Bem. Quer que leve as valises?
AMÉLIA (Agarra-se a sua valise)
- Não obrigada.
ANTENOR
- Trabalha aqui?
JUCA (Sorri)
- Trabalho.
ANTENOR
- Como se chama o senhor?
JUCA
- José. José dos Santos.
ANTENOR
- Será dos Santos , de Amparo?
JUCA
- Não sei, não senhor.

ANTENOR
- Conheci uns Santos de Amparo. Gente brava, mas muito boa. Houve até o caso de uma
mãe que matou a filha.
JUCA
- Dos Santos, de Amparo?
ANTENOR
- É! A moça estava vendo passar a procissão, debruçada na janela. A mãe morreu de
vergonha do vigário. Ah! não teve dúvida. Chegou em casa e deu um tiro na filha. Matou. Era gente
de muito respeito. Debruçar em janela, nem mulher de vida fácil, o senhor não acha?
JUCA
- Brava mesmo.
ANTENOR
- O senhor sabe que já andei de bangüê?
JUCA
- Sei.
AMÉLIA
- Vamos, Antenor.

ANTENOR

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- Pois, já andei. De bangüê, de trole, carro de boi, carro de dois cavalos, tíburi, automóvel,
trem e até de avião. Conheci de tudo nesta vida. Fui camarista, amigo, primo, sobrinho neto de
barão. Até revolucionário. O que não fui na vida! Só não fui ladrão; o resto eu fui.
AMÉLIA
- O senhor mora aqui também?
JUCA
- Sou zelador desse prédio há seis anos.
ANTENOR
- Não me lembrava.
AMÉLIA
- Meus filhos moram aqui. Quatro apartamentos.
ANTENOR
- Já fiz tudo pra eles se mudarem, mas não adianta.
JUCA
- Por que , seu Antenor? O ponto é ótimo.

ANTENOR
- Isso é pardieiro, não é casa de gente. Meu avô não poria aqui nem seus escravos.
AMÉLIA
- Tenho a impressão de que não varrem nunca esta casa.
JUCA
- Tenho que cuidar da obrigação. Até logo.
AMÉLIA
- Até logo
ANTENOR
- Esta gente de hoje é tão atrevida, não é, Melica? Pior mesmo, só juiz de direito. E esta
cidade está infestada. Banqueiro estrangeiro, juiz que vende sentença e malandro... é onde tem
mais! Aqui, em Buenos Aires e Chicago.
AMÉLIA
- Pegou seus documentos, Antenor?
ANTENOR
- Peguei.
AMÉLIA
- Não digo os papéis.
ANTENOR (Subindo a escada)
- Sim, os documentos, os documentos. Documentos não é papel. É documento mesmo.
(Pára no patamar e vira-se para Amélia) Também, desta vez, aquela gente vi me pagar.
AMÉLIA
- O advogado continua com esperança?
ANTENOR
- Claro, Melica.
AMÉLIA
- Você toca essa demanda há tanto tempo!
ANTENOR
- Vou pôr todo mundo pra fora. Desta vez não quero saber de acordo. O testamento do
barão estava bem claro: sessenta alqueires no Brás e não trinta. Pro lei, eles me pertencem. Não
tenho nada com isto, se construíram prédios e mais prédios. Os terrenos são meus. Sabe, Melica?
Estão todos apavorados. (Os dois riem) Hoje, já há mais velhacos na terra do que estrelas no céu.
AMÉLIA (Segura na mão de Antenor e sobe a escada, parando no patamar)
- O barão e meu avô, uma vez, armaram uma discussão daquelas, um queria pagar, o outro
não queria receber. Deve, não deve. Deve, não deve. Que gente diferente!

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ANTENOR
- Hoje! Hum! Venha o cobre.
AMÉLIA
- Os parentes eram muito ligados.
ANTENOR
- Bulia com um, buli com todos.
AMÉLIA
- Era o homem mais rico da Província!
ANTENOR
- Tinha um sítio pra surrar caboclo à toa. Senhor conde! Senhor conde! Senhor conde!
Quem é conde hoje? Uns vigaristas, uma estrangeirada que nem gente é. O Pepino esteve trinta
anos em galera e diz que é conde. Conde! Esses italianos apareceram com urso, realejo e macaco no
ombro. Oitocentos mil! Tudo tirador de sorte. Conde!
(ANTENOR E AMÉLIA DESAPARECEM NA CURVA DA ESCADA. MARIA CLARA ENTRA
EM SEU APARTAMENTO.)
APARTAMENTO 1
MARIA CLARA:
- Traga o resto da lã, minha filha.
LOURDES
- Vovô já foi?
MARIA CLARA
- Já. Fico mais sossegada quando vão para o segundo andar. Lá, papai tem menos
oportunidade de fugir. Nós, aqui, estamos a dois passos da rua.
LOURDES (Saindo)
- Não será esta escada que vai impedir.
(MARIA CLARA OLHA LOURDES, CONTRAINDO, LIGEIRAMENTE, O ROSTO. AO
MESMO TEMPO, IZABEL ENTRA NO APARTAMENTO 2.)
APARTAMENTO 2
IZABEL
- Vicente! Vicente! Você pediu pra chamar cedo. A reportagem no aeroporto.
VICENTE (Voz)
- Está pronto o café?
IZABEL
- Estou esperando você.

VICENTE (Voz)
- Pode coar. Saio agora mesmo.
IZABEL
- Já sei o que é esse agora mesmo.
VICENTE (Aparece de pijama)
- É agora, mesmo. Um beijo!
IZABEL
- Assim, você perde a chegada do avião.
VICENTE
- Não troco um beijo seu, nem pela chegada de um spútnik. (Beija Izabel)
IZABEL
- Depressa, Vicente.
VICENTE
- Calma, calma, minha pombinha. Você não pode se afligir.
IZABEL
- Ora, deixe de bobagem.

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VICENTE
- Que braveza. (Saem)
APARTAMENTO 1
LOURDES (Entrando)
- Não achei a lã verde.
MARIA CLARA
- Já trouxe.
LOURDES
- Um mês de atraso!
MARIA CLARA
- Precisamos trabalhar como duas mouras.
LOURDES
- Ainda bem que o enxoval do filho da Marina está pronto. Criança não espera pra nascer.
MARIA CLARA
- Não reclame, minha filha. São seus avós.
LOURDES
- Não disse nada.
MARIA CLARA
- Não disse, mas pensou. Eu custa ter um pouco de paciência?
LOURDES
- A senhora falou com os outros?
MARIA CLARA
- Sobre o quê?
LOURDES
- Sobre o Instituto.
MARIA CLARA
- Não. Nem vou falar.
LOURDES
- Bom. A senhora é quem sabe. Mas acho que no Instituto eles ficariam melhor instalados
do que aqui.
MARIA CLARA
- Pode ser, Lourdes. Mas, não quero pensar nisto. Temos tantas encomendas! Precisamos
dar conta.
LOURDES
- Se Zilda pelo menos ajudasse um pouco. Foi um grande achado esta Repartição. Passa o
dia tomando café e lendo romance.
MARIA CLARA
- Ora, minha filha (Pausa) Podiam resolver esse namoro logo.
LOURDES
- O Omar quer subir de posto.
MARIA CLARA
- O ordenado dele dá perfeitamente pra casar.
LOURDES
- Ela que não ande depressa, pra ver.
MARIA CLARA
- Por quê?
LOURDES
- Porque duvido muito que este casamento vá pra frente.
MARIA CLARA
- É um bom moço. Trabalhador, honesto e independente.
LOURDES
- Não importa.

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MARIA CLARA
- Não importa por quê?
LOURDES
- Já tenho experiência. A senhora sabe.
MARIA CLARA
- Não comece, minha filha.
LOURDES
- Meu noivo era tudo isto e não adiantou.
MARIA CLARA
- Saber perdoar é uma grande virtude, minha filha.
LOURDES
- É verdade que as coisas mudaram muito! Com Zilda é diferente. Tudo é permitido.
MARIA CLARA (Não aceitando a discussão)
- Pegue a linha. Este modelo é de tranças. Tome cuidado.
(MARIA CLARA E LOURDES CONCENTRAM-SE NO TRABALHO TRICOTANDO
RAPIDAMENTE. VICENTE, JÁ VESTIDO, DEPOIS DE TER LIDO O QUE ESCREVEU,
AMASSA O PAPEL COM IRRITAÇÃO.)
APARTAMENTO 2
IZABEL
- Por que jogou fora?
VICENTE
- Porque não presta. É besta.
IZABEL
- Achei tão bonito.
VICENTE
- Não vai. Não consigo achar o tom. Bati até as três da manhã e não saiu nada.
IZABEL
- Também... quer escrever tudo de uma vez!
VICENTE
- Depois de oito horas naquela redação, entrevistando cada idiota, não pode mesmo sair
nada.
IZABEL
- É por isso que anda tão irritado?

VICENTE
- Não ando irritado.
IZABEL
- Se visse a sua cara!
VICENTE
- Que tem minha cara?
IZABEL
- Está constantemente contraída, como se tivesse a pior das dores de cabeça.
VICENTE
- Não consigo terminar este ato.
IZABEL
- Quem disse que não consegue? Consegui , sim. Você é que anda impaciente, cansado.
VICENTE (Sorri, acariciando o rosto de Izabel)
- Quando escrever certo, compreenderá a diferença. Afinal, o escritor sou eu. Não é você
quem deve saber. O que deve saber, sabe como ninguém.
IZABEL (Puxa Vicente)
- Vem, senhor escritor, vem ver. Está lindo o quarto do nosso nenê!

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VICENTE (Abraça Izabel, afastando-se de repente)
- A gente não pode mais nem se abraçar. Afinal, quanto falta?
IZABEL
- Dois meses.
VICENTE
- Ehêêêê! Rapaz! Vê se anda logo. (Beija Izabel) A entrevista.
IZABEL
- Vicente! É verdade aquilo que disse ontem?
VICENTE
- O quê?
IZABEL
- Que se for homem vai se chamar Martiniano?
VICENTE (Ri)
- Estava brincando.
IZABEL
- Não é que ache feio. Mas, é muita responsabilidade. Já imaginou um bebezinho chamado
Martiniano?

VICENTE
- Você escolhe. Até logo, pombinha. (Pára na porta) Meu pai gostaria muito. Nome antigo!
(Vira-se) Ah! não suba escada, não lave, não passe, nem precisa arrumar demais este “apertamento”.
Vou encontrar você na casa de sua mãe. A sogra também precisa cooperar. Até logo. (Sai)
IZABEL
- Não se esqueça de arranjar a balança.
VICENTE
- Que balança?
IZABEL
- Pra pesar o nenê.
VICENTE
- Ihiii! Ainda falta muito tempo. Ciao!
IZABEL
- Ciao!
(AO MESMO TEMPO QUE VICENTE SAI CORRENDO, ANTENOR E AMÉLIA SURGEM
NO SEGUNDO PATAMAR. PARAM, TOMANDO FÔLEGO. IZABEL SENTA-SE E
CONTINUA O TRICÔ. MARLENE PASSA NO LIVING DO APARTAMENTO 4, COM UMA
BANDEJA ENORME, E ENTRA NO QUARTO)
NA ESCADA:
ANTENOR
- Senhor conde! Senhor conde! Senhor conde!
AMÉLIA
- Era primo-irmão de minha avó.
ANTENOR
- Tinha uma língua de fogo! Uma vez perguntaram a ele se conhecia os Veigas. “Conheço e
não conheço”, respondeu. “Os Veigas, de MINAS, OS Lobos, de Itu e os Uchoas. Do Norte...
distinguir um do outro não é possível. Conheço em bloco porque é tudo uma coisa só”. (Ri) Era
muito atrevido.
AMÉLIA
- Mas foi um verdadeiro santo.
ANTENOR
- Mais santo do que santo italiano. Onde vai?
AMÉLIA
- Ora, Antenor! No apartamento de Helena Fausta.

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ANTENOR
- Não é a vez de Helena Fausta.
AMÉLIA
- Quem disse?
ANTENOR (Irritado)
- Eu sei que não é. É aqui.
AMÉLIA
- Não é.
ANTENOR
- Não teima, Melica.
AMÉLIA
- Todas as vezes que subimos é isto.
ANTENOR
- E subimos sempre para o apartamento de Francisco.
AMÉLIA
- Você é que não gosta de ficar com Helena Fausta.
ANTENOR
- Não gosto, mesmo.

AMÉLIA
- São muito bons.
ANTENOR
- Bons! Onde se viu levantar daquele jeito. Tomar café na cama... e naquela bandeja
enorme. Só sabem jogar cartas e ir ao cinema. É uma mania de sair! Até parece juiz de direito!
AMÉLIA
- Deixe de implicar, Antenor. Ela acompanha o marido. Não têm filhos.
ANTENOR
- Não sei, não, Melica. Mas acho que nossa filha já desandou. Mulher à toa é que anda
assim.
AMÉLIA
- Você tem cada uma!
ANTENOR
- A gente toma café quase na hora de almoçar. Passo as frutas quando estou lá. Bragança!
Bragança que conheço é família do imperador. Pelo que eu saiba, o marido dela não é parente de
Pedro II, é?
AMÉLIA
- Acho que não.
ANTENOR
- Também se fosse, não queria dizer nada. Homem muito reto, mas demais sem energia. Só
tinha barba. Fazia coisa que ninguém compreendia. Uma vez visitou um barão republicano! Já
ouviu contar uma coisa dessas, Melica? Um imperador visitar um republicano?!
AMÉLIA
- O barão era muito respeitado, Antenor.
ANTENOR
- Imperador é imperador!
AMÉLIA (Evocativa)
- A princesa Izabel eu vi naquele tempo.
ANTENOR
- Feia como santo de caboclo.
AMÉLIA
- Vi também o imperador na casa do visconde. Gostava muito de bolo de mandioca.
ANTENOR

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- Onde se viu um imperador gostar de bolo de mandioca! Era tonto!

AMÉLIA
- Afinal, onde é, Antenor? Estou cansada.
ANTENOR
- É aqui mesmo, estou dizendo. Onde é a campainha?
AMÉLIA
- Bata na porta.
ANTENOR (Irritado)
- Pra que existe campainha, Melica? É pra tocar! (Bate na porta com a bengala)
AMÉLIA
- Pegou os documentos, Antenor?
ANTENOR
- Claro que peguei, Melica.
AMÉLIA
- Você anda tão esquecido.
ANTENOR
- Ando coisa nenhuma!

APARTAMENTO 3
NOÊMIA (Abrindo a porta)
- Bom dia, dona Amélia. Como vai, seu Antenor?
ANTENOR
- Vamos bem. Vamos bem.
AMÉLIA (Examina a sala)
- Que desordem!
NOÊMIA
- Ainda não acabei de arrumar.
ANTENOR
- Francisco não está?
NOÊMIA
- Está viajando.
ANTENOR
- Não digo, Melica? O povo de hoje não pára.
NOÊMIA
- Por que não avisaram que vinham tão cedo? Teria ido buscá-los.
AMÉLIA
- Pra quê, minha filha? Vamos, Antenor?
ANTENOR
- Estou esperando você.
NOÊMIA
- Não querem ficar aqui enquanto acabo de arrumar?
ANTENOR
- não.
AMÉLIA (Seca)
- Eu arrumo.
NOÊMIA
- Não! Isto não! Não vou deixar a senhora arrumar as camas.
ANTENOR (Saindo)
- Grande coisa.
AMÉLIA
- Arrumei cama a vida inteira... e muito bem.

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(ANTENOR E AMÉLIA ENTRAM NO QUARTO E BATEM A PORTA. NOÊMIA FICA
PARADA DIANTE DA PORTA, ABORRECIDA. ENQUANTO, NO APARTAMENTO 4,
SÉRGIO APARECE ACOMPANHADO POR HELENA FAUSTA, FRANCISCO ENTRA NO
HALL DO PRÉDIO, CARREGANDO UMA MALA.)
APARTAMENTO 4
HELENA
- Já recomendei muitas vezes, Sérgio.
SÉRGIO
- Então não aprende mais. O café parecia um purgante.
HELENA
- Mando fazer outro, enquanto se veste.
SÉRGIO
- Não precisa. Tomo no escritório. Hoje não venho almoçar. Você fica em casa?
HELENA
- Não. Vou a um cinema.
SÉRGIO (Saindo)
- Como queira.
(HELENA SENTA-SE E FOLHEIA, DISPLICENTEMENTE, UMA REVISTA. FRANCISCO
ACABA DE SUBIR A ESCADA.)
APARTAMENTO 3
FRANCISCO
- Noêmia! Noêmia!
NOÊMIA
- Francisco!
FRANCISCO
- Bom dia (Beijam-se)
NOÊMIA
- Pensei que chegasse à tarde.
FRANCISCO
- Andei rápido. Vai tudo bem?
NOÊMIA
- Tudo. Como foi de negócios?
FRANCISCO
- Muito bem. Ricardo já saiu?
NOÊMIA
- Já. Seus pais acabaram de chegar.
FRANCISCO (Sorri)
- Subiram cedo.
NOÊMIA
- Não me deixaram nem acabar de arrumar o quarto.
FRANCISCO (Abre a porta do quarto)
- Bom dia, papai. Bom dia, mamãe. (Escuta) Não. Estou chegando de viagem. Fui à
Brasília. (Eleva a voz) Brasília, a nova capital (Ri) Mudaram, que vamos fazer. Muito bonita! (Vai
fechando a porta) Depois conto ao senhor... preciso de um banho. Muita poeira. Niemayer.
NIEMAYER! (Ri) Já morreu, papai! (Fecha a porta)
NOÊMIA
- Que foi?
FRANCISCO
- Perguntou se Brasília foi feita pelo Ramos de Azevedo.
NOÊMIA
- Coitado!

15
FRANCISCO
- Ricardo tem estudado?
NOÊMIA
- Estou cansada de estudar verbos e raiz quadrada.
FRANCISCO
- E o professor particular?
NOÊMIA
- Estava ficando muito caro. Dispensei. Comigo vai melhor.
FRANCISCO
- Você é quem sabe.
NOÊMIA
- Vendeu as máquinas?
FRANCISCO
- Muitas. Com a comissão podemos comprar a televisão.
NOÊMIA
- Prefiro uma máquina de lavar roupa.

FRANCISCO
- Então tire par ou ímpar com Ricardo. (Abraça Noêmia) Estou cansado, minha velha.
NOÊMIA
- Vou preparar seu banho.
FRANCISCO
- Ricardo precisa estudar.
NOÊMIA
- Ele estuda, Francisco.
FRANCISCO
- Não quero que leve esta vida. Dou um duro desgraçado e não saímos disto.
NOÊMIA
- Vivemos muito bem.
FRANCISCO
- Claro! Estou me referindo a outras coisas.
NOÊMIA
- Nunca reclamei, Francisco.
(NOÊMIA SAI E FRANCISCO ABRE O JORNAL.)
APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- Helena! Não há outra camisa mais bem passada?
HELENA
- Estão todas bem passadas.
SÉRGIO
- Olha uma coisa. Se isto é bem passada...!
HELENA
- Não vejo nada, Sérgio. Um amarrotado tão insignificante!
SÉRGIO
- Mande minhas roupas à tinturaria. Como vou aparecer na firma com uma camisa assim?
HELENA
- Pegue outra, Sérgio. Você tem dúzias!
SÉRGIO
- Isto é camisa pra faxineiro, não para um diretor de relações públicas. (Desaparece no
quarto)
(OMAR ENTRA APRESSADO NO HALL. ZILDA APRECE LOGO EM SEGUIDA.)

16
NA ESCADA
ZILDA
- Omar!
OMAR
- É melhor assim, Zilda.
ZILDA
- Que culpa tenho eu?
OMAR
- Nenhuma, mas não dá certo.
ZILDA
- Omar. Você ficou ofendido e com toda razão. Mas, nós já íamos casar... não deixe que
isto destrua tudo.
OMAR
- É melhor a gente se separar.
ZILDA
- Mas, eu não faço questão dessas coisas.
OMAR
- Não sei, não.
ZILDA
- Omar! Escute!
OMAR
- Você não vê que assim vamos ser infelizes?
ZILDA
- Vou viver onde você quiser.
OMAR
- É muito fácil de falar.
ZILDA
- Você me conhece... sabe que não tenho preconceitos.
OMAR
- Mas sua família tem... e é melhor que você fique com ela.
ZILDA
- Omar! Minha mãe não pensa assim. (Omar sobe correndo a escada) Escute, Omar...!
(OMAR DESAPARECE NA ESCADA. ZILDA VOLTA-SE E CORRE PARA SEU
APARTAMENTO.)
APARTAMENTO 1
MARIA CLARA
- Que foi, Zilda?
LOURDES
- Está sentindo alguma coisa?
MARIA CLARA
- Não foi à Repartição? Mas... que foi?
LOURDES
- Ah! Já sei: o Omar!
MARIA CLARA
- Vocês brigaram? Mas fale, criatura de Deus!
ZILDA
- Mamãe. Isto é um desaforo!
MARIA CLARA
- O Omar brigou com você?
ZILDA
- Brigamos.
MARIA CLARA

17
- Por quê?
ZILDA
- Porque Omar não serve pra mim.
LOURDES
- Não disse à senhora? Estava demorando.
ZILDA
- Mamãe! Sabe o que o vovô disse ao Omar?
MARIA CLARA (Apreensiva)
- Eles se conheceram?
ZILDA
- Ontem, na entrada do prédio. Sabe o que disse?
MARIA CLARA
- Seu avô está velho minha filha. É preciso ter paciência.

ZILDA
- Disse que Omar não é nome de gente, que devia ser mulato porque tem gengiva escura...
e acabou perguntando de quem o avô de Omar foi escravo!
MARIA CLARA (Cansada)
- Eh! Papai!
ZILDA
- Eu sabia que o vovô ia acabar dizendo isto. Mamãe! A senhora não compreende que
assim não é possível continuar? É meu segundo namorado que o vovô ofende.
MARIA CLARA
- Tudo isso passa, minha filha. Papai está velho, o Omar acaba compreendendo.
ZILDA (No auge da irritação)
- Por que não internam o vovô no Instituto de uma vez?
(ZILDA ENTRA NO QUARTO, ACOMPANHADA POR MARIA CLARA. LOURDES
DOMINA-SE, LEVANTA A CABEÇA E COMEÇA A TRABALHAR RAPIDAMENTE. SÉRGIO
SAI DO QUARTO, MUITO BEM VESTIDO.)

APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- Não se esqueça de que hoje temos convite para jantar.
HELENA
- Por que não ficamos um pouco mais em casa? Seria tão bom!
SÉRGIO
- Minha filha. Vamos aproveitar enquanto seus pais não estão aqui. Depois, você já sabe
como é.
HELENA
- Eles não atrapalham nossos programas, Sérgio.
SÉRGIO
- Leve o carro e encontre comigo no bar de costume. Vou tomar aperitivo com uns amigos.
(Beija helena muito rapidamente) Até logo.
HELENA
- Até logo. Você falou com Alberto sobre o cachorrinho?
SÉRGIO
- Falei. Será que o cachorrinho não vai fazer muita desordem.?

HELENA
- Terei cuidado.
SÉRGIO
- Você é quem sabe (sai)

18
(HELENA SENTA-SE E COMEÇA A PINTAR AS UNHAS. IZABEL E LOURDES
CONTINUAM TRICOTANDO. SÉRGIO, COM CERTA POSE, DESCE AS ESCADAS E SAI.)
APARTAMENTO 3
FRANCISCO (Sorri)
- Pelo menos hoje posso ler um jornal em ordem. Papai faz tamanha mixórdia.
NOÊMIA
- O banho já está pronto.
FRANCISCO
- A firma fez nova proposta.
NOÊMIA
- Aumentou?

FRANCISCO
- Dobra o ordenado se formos pra Brasília. Que é que você acha?
NOÊMIA
- Você é quem resolve.
FRANCISCO
- Dão casa, levam a mudança e fornecem as passagens. Que tal?
NOÊMIA
- E Ricardo?
FRANCISCO
- Pode estudar lá.
NOÊMIA
- Não sei. E seus pais?
FRANCISCO
- Bom! Assunto encerrado.
NOÊMIA
- Se você quiser, Francisco podemos encontrar uma solução. Por mim estou disposta.

FRANCISCO
- Mas, que solução, minha velha?
NOÊMIA (Com certo esforço)
- Seus pais não vão para o Instituto?
FRANCISCO
- Claro que não!
NOÊMIA
- Não seria melhor para todos, Francisco?
FRANCISCO
- Você sabe o que penso a respeito disto.
NOÊMIA
- Há tanto tempo que espera uma posição melhor na firma, Francisco.
FRANCISCO
- Mas, por causa disto não vou internar meus pais.
NOÊMIA
- Como achar melhor.

FRANCISCO
- Depois... nunca pensei realmente em ri. Não compensaria, minha velha. Aquilo está
infestado de aproveitadores, gentinha louca pra ficar rica da noite para o dia. Se visse o tipo de
gente que se encontra por lá!
NOÊMIA
- Mas, há gente boa também... e é ótima oportunidade.

19
FRANCISCO
- Tem-se a impressão de que nesta terra não há mais gente distinta.
NOÊMIA
- Venha tomar seu banho.
(FRANCISCO E NOÊMIA SAEM. AO MESMO TEMPO, O INDUSTRIAL ENTRA NO HALL
DO PRÉDIO, EXAMINA UM PAPEL E TOCA A CAMPAINHA DO APARTAMENTO DE
MARIA CLARA.)
APARTAMENTO 1
LOURDES
- Mamãe! Quer atender pra mim? Não posso largar as malhas.
INDUSTRIAL
- Bom dia, minha senhora.
MARIA CLARA
- Bom dia.
INDUSTRIAL
- É aqui que mora o senhor Antenor?
MARIA CLARA
- Sou filha dele.
INDUSTRIAL
- Ele está?
MARIA CLARA
- Não senhor.
INDUSTRIAL
- Ele me deu este endereço.
MARIA CLARA
- Papai costuma passar temporada comigo. Atualmente está em casa de meu irmão. O
senhor deseja alguma coisa?
INDUSTRIAL
- Fiquei de passar por aqui para pegar seu pai. Seu irmãos mora longe?

MARIA CLARA
- Neste mesmo prédio.
INDUSTRIAL
- Pode me indicar o apartamento?
MARIA CLARA
- O senhor ficou de pegar papai pra quê?
INDUSTRIAL
- Vamos ver os terrenos que estão à venda.
NO HALL
MARIA CLARA (Fecha a porta preocupada)
- Que terrenos?
INDUSTRIAL
- No bairro do Brás.
MARIA CLARA
- Não compreendo.
INDUSTRIAL
- Os terrenos me interessam. Fiz oferta e seu pai ficou de estudar com o advogado.
Combinamos ir lá e acertar tudo.
MARIA CLARA
- Meu pai não pode ir.
INDUSTRIAL
- Mas, ficou combinado!

20
MARIA CLARA
- Ficou combinado, mas ele não irá.
INDUSTRIAL
- Agora, quem não está compreendendo sou eu, minha senhora.
MARIA CLARA
- É muito fácil: meu pai não possui os terrenos.
INDUSTRIAL
- Não possui?
MARIA CLARA
- Não senhora.
INDUSTRIAL
- Mas ele me mostrou os títulos.

MARIA CLARA
- Sei que deve ter mostrado. Mas papai está velho e não sabe o que faz.
INDUSTRIAL
- Falamos no negócio em presença de testemunhas idôneas. Prometi e trouxe o dinheiro do
sinal. (Caminha em direção da escada) A senhora pode me indicar em que apartamento está?
MARIA CLARA
- Estou falando que meu pai não sabe mais o que faz.
INDUSTRIAL
- Não sabe o que faz! Então por que o deixam sair à rua?
MARIA CLARA
- Sairá enquanto quiser. Isto não é da sua conta.
INDUSTRIAL
- Para vender o que não lhe pertence?
MARIA CLARA
- E o senhor? Sai à rua para fazer negócios com pessoas indefesas? É muito fácil perceber
o estado em que está meu pai. Que é que o senhor esperava? Ganhar muito dinheiro, não é?

INDUSTRIAL
- Irei à justiça!
MARIA CLARA
- Meu senhor. Espere um momento.
INDUSTRIAL
- A senhora está querendo desmanchar uma transação feita. Foi proposta por seu pai.
Exibiu títulos de terrenos que me servem, e por causa disto deixei de fazer outros negócios.
Ofereceram mais, com certeza.
MARIA CLARA
- O senhor está enganado. Não costumamos faltar coma palavra. Mas... é que não existe
nada! Os títulos têm algum valor, eu sei... mas meu pai não tem direito de usar para negócio. Essas
terras do Brás pertenceram, no século passado, a um tio-avô de meu pai, que as legou, por herança,
à família de minha avó. Mas, passaram-se quase setenta anos, e embora ele tenha direito por
herança, as famílias que moram lá têm muito mais, pois estão no bairro há mis de cinqüenta anos.
Meu pai há muito tempo vem tocando demanda sobre os terrenos... mas, na verdade, eles não
pertencem a ele. Peço desculpas em nome da família. Meu pai está velho... e o senhor
compreende...seria uma grande humilhação.
INDUSTRIAL (Seco)
- Aconselho a senhora a não deixar mais seu pai sair à rua.
MARIA CLARA
- Ele não sairá.
INDUSTRIAL

21
- Passe bem. (Sai)
MARIA CLARA
- Obrigada.
(MARIA CLARA CAMINHA PARA A ESCADA, PÁRA E FICA OLHANDO NA DIREÇÃO DO
APARTAMENTO DE FRANCISCO.)
APARTAMENTO 3
AMÉLIA
- O Parque Pedro II também?
ANTENOR
- O que é que você pensa que são sessenta alqueires, Melica? É a rua do Gasômetro, a
Rangel Pestana, a Avenida Celso Garcia... e o Parque Pedro II! Sessenta alqueires!

SEGUNDO ATO
CENA: AO ABRIR-SE O PANO, VICENTE ESTÁ SENTADO CORRIGINDO O QUE
ESCREVEU. VICENTE TRABALHA, ACOMPANHANDO IZABEL COM OS OLHOS, CADA
VEZ QUE ESTA PASSA PELA SALA, CARREGANDO BRINQUEDOS E ROUPAS DO
FUTURO FILHO. LOURDES CONTINUA TRICOTANDO. RICARDO, SENTADO À MESA,
BRINCA COM UM LÁPIS, PERDIDO EM SEUS PENSAMENTOS. SÉRGIO APARECE, JÁ
VESTIDO, ACOMPANHADO POR HELENA FAUSTA.

APARTAMENTO 4
HELENA
- Já vai?
SÉRGIO
- Já.
HELENA
- Por que não espera o almoço?
SÉRGIO
- Não! Tenha paciência! Já estou cansado de ouvir as mesmas conversas.
HELENA
- Você ficou fora de casa mais de dez dias.
SÉRGIO
- A serviço da firma, você sabe muito bem. Não disse a você que o cachorrinho ia fazer
desordem? Olhe só! Não se pode mais sentar nesta cadeira. Como posso trazer amigos para jantar?
HELENA
- Hoje, a Soraia vai para o quarto.
SÉRGIO
- Já devia ter ido.
HELENA
- Papai não podia nem vê.
SÉRGIO
- Pelo menos nisto, seu pai e eu combinamos. Ainda estão no quarto?
HELENA
- Estão.
SÉRGIO
- Todo mundo me deu notícia de seu pai na cidade. Vocês não deviam deixá-lo sair tanto.
HELENA
- Papai foge! Quando a gente vê, já sumiu. Também, coitado, viver preso
num apartamento! Pior do que prender uma criança.
SÉRGIO
- Muito pior é ficar solto na cidade com sua mania de negócio.
HELENA

22
- Que fique pelo menos com esta ilusão.
SÉRGIO
- Sabe que esteve muitas vezes na firma?
HELENA
- Quando?
SÉRGIO
- Nos dias em que viajei.
HELENA
- Foi fazer o quê?
SÉRGIO
- Conversar! Simplesmente, conversar! Perguntou sobre a ascendência de Deus e todo
mundo. Num lugar onde trabalham descendentes de sírios, italianos, alemães, gaúchos e nortistas...
você deve calcular o resultado.

HELENA
- É tão fácil compreender papai!
SÉRGIO
- Para vocês. Acharam muita graça! E acabaram me apelidando de príncipe consorte! Que
eu ouça, durante dez anos, as mesmas perguntas aqui dentro de casa, vá lá. Mas ir ao meu trabalho e
me ridicularizar, é o que não vou permitir.
HELENA
- É um velho! Será que ninguém compreende, meu Deus!
SÉRGIO
- Isto enche.
HELENA
- Você é grosseiro.
SÉRGIO
- Comecei do nada! Subi com muito esforço. Não vou admitir que essa mania besta de
nobreza destrua tudo. Sou Albuquerque e Bragança, de Pernambuco, é verdade, mas não sou
parente do Imperador e não sei e nem me interessa saber se meu tataravô tomou parte na Batalha de
Guararapes! Estou farto de repetir.

HELENA (Cansada)
- Está bem, Sérgio.
SÉRGIO
- No jornal eu nem falo, porque deve estar tudo de cabeça pra baixo. O mês que seu pai
passa aqui, fico na mais completa ignorância. Não consigo pegar o jornal e quando pego é aquela
mixórdia. Tenho a impressão de que ele fica espreitando o jornaleiro na escada.
HELENA
- Você sai todos os dias, Sérgio. Pode ler na cidade.
SÉRGIO
- Assino o jornal pra quê?
(SÉRGIO ENTRA NO QUARTO. HELENA SENTA-SE E ACARICIA A CACHORRINHA.)
APARTAMENTO 3
NOÊMIA
- Meu filho! Não é possível eu não saiba isto!
RICARDO
- Pois não sei.
NOÊMIA
- Você já estudou!
RICARDO
- Estudei, mas esqueci. Também, os professores são uns ignorantes.

23
NOÊMIA
- O professor sempre leva a culpa.
RICARDO
- Se ninguém aprende é porque o professor não sabe ensinar. Pode perguntar pra qualquer
colega meu.. ninguém sabe.
NOÊMIA
- Seu pai trabalha, luta com dificuldade... é preciso compensar o esforço dele. Os estudo
estão muito caros!
RICARDO
- Ah, não mamãe! Não venha com tragédia só porque errei essa raiz quadrada. Não sou
nenhum Einstein.
NOÊMIA
- Faça outra vez. Até eu já aprendi. Lembre-se de que na hora do exame não posso entrar
na classe com você.

RICARDO
- Esse é o mal, minha querida mãe.
NOÊMIA
- Não sei onde iríamos parar, com todas as mães sentadas, fazendo exame depois de velhas.
RICARDO
- Mas, que seria legal, seria.
NOÊMIA
- Minha obrigação faço em casa e sempre fiz muito bem. Faça o mesmo.
RICARDO
- No fim dá tudo certo. Seu filho é inteligente!
NOÊMIA
- Inteligente! Não se esforce não, pra ver o que acontece.
RICARDO
- A senhora seria uma ótima atriz dramática. Por que não tenta o cinema? Vê tragédia até
num pé de alface.
NOÊMIA
- No preço em que estão, é preciso mesmo ser artista pra ver alguma.
RICARDO
- Vai cuidar do seu almoço.
NOÊMIA
- Então, estude direito. Não fique aí pensando à toa (Sai)
(RICARDO TENTA ESTUDAR, MAS LOGO DEPOIS ADORMECE. ENQUANTO ISSO, O
VENDEIRO TOCA A CAMPAINHA DO APARTAMENTO DE MARIA CLARA)
APARTAMENTO 1
MARIA CLARA
- Por que não atendeu, Lourdes?
LOURDES
- Estou ocupada.
MARIA CLARA
- Eu também.
(MARIA CLARA ABRE A PORTA E O VENDEIRO APRESENTA UM PAPEL)

NO HALL
MARIA CLARA
- Que é isto?
VENDEIRO
- Despesas de seu pai.

24
MARIA CLARA
- O senhor deve estar enganado.
VENDEIRO
- Aquele velho muito prosa não é pai da senhora?
MARIA CLARA
- É.
VENDEIRO
- Então. É dele mesmo.
MARIA CLARA
- Não pode ser! Que despesas são essas?!
VENDEIRO
- Frutas, doces... está tudo escrito aí, dona.
MARIA CLARA
- Quando foi que ele comprou isto?
VENDEIRO
- O mês inteiro. Quase todos os dias passava na banca.
MARIA CLARA
- Todos os dias? O senhor tem certeza?
VENDEIRO
- Tenho. Contou cada estória! Dizia que não deixavam ele comer, que matavam ele de
fome, que não sei quem tomava café numa bandeja que parecia a roda de um carro... e coisas assim.
a senhora sabe... velho... a gente fica com pena. Fui marcando.
MARIA CLARA
- Papai não pode ter comido tudo isto.
VENDEIRO
- Pois comeu. Não tenho culpa se matam o velho de fome.
MARIA CLARA
- Com quem pensa que está falando?
VENDEIRO
- Eu não penso nada, dona. Só quero o meu dinheiro. E é bom pagar logo.
(MARIA CLARA ENTRA NO APARTAMENTO, PEGA A BOLSA, PROCURA O DINHEIRO,
CONTA, VERIFICA QUE NÃO DÁ E VOLTA. SÉRGIO APARECE EM SEU LIVING, OLHA
PARA HELENA E SAI, AINDA IRRITADO. IZABEL, ABRAÇADA A UM BURRINHO DE
FELTRO, PASSA EM SEU APARTAMENTO; VICENTE OLHA PARA ELA COM
ANGÚSTIA.)
MARIA CLARA
- Não posso pagar agora.
VENDEIRO
- Quando devo voltar?
MARIA CLARA
- De tarde, a qualquer hora.
VENDEIRO
- Venho hoje mesmo. (Sai)
LOURDES
- Que foi, mamãe?
MARIA CLARA
- Despesas de seu avô na banca de frutas. Também, helena acha que está fazendo grande
favor em receber papai. Não quer ter o menor trabalho, não sai da rua, é claro que papai faça das
suas.
LOURDES
- Agora, então com aquela Soraia!
MARIA CLARA

25
- Quero saber isto, direito.
(MARIA CLARA SAI DO APARTAMENTO E SOBE A ESCADA, ENCONTRANDO SÉRGIO
NO PATAMAR.)
NA ESCADA
SÉRGIO
- Bom dia, Maria Clara.
MARIA CLARA
- Bom dia.
SÉRGIO
- Já resolveram alguma coisa?

MARIA CLARA
- Não.
SÉRGIO
- Conheço um instituto de um médico amigo meu. Existem lá, muitos casos idênticos.
MARIA CLARA
- Eu sei. Mas quando os velho são os pais da gente, o caso muda de figura.
SÉRGIO
- Você sabe que seu pai foi... (Pára, de repente)
MARIA CLARA (Seca)
- Que tem papai?
SÉRGIO
- Nada.
MARIA CLARA
- Acho que podemos continuar como estamos.
SÉRGIO
- Claro! Isto não traz nenhuma conseqüência para vocês.
MARIA CLARA
- Que quer dizer?
SÉRGIO
- Nada! Nada! (Sai)
(MARIA CLARA, IRRITADA, SOBE A ESCADA)
APARTAMENTO 3
NOÊMIA
- Ricardo! (Sacode Ricardo) Ricardo! Mas será possível que você esteja dormindo?
RICARDO
- Ahnnn... Eu estudei... estudei...Um soninho, mamãe.
NOÊMIA
- Estudou, lendo estas revistinhas! Será que preciso ficar vigiando você, meu filho?
RICARDO
- Puxa, mamãe. Mas, que marcação! (Sai)
NOÊMIA (Saindo também)
- Estudar é sua única obrigação, Ricardo.
APARTAMENTO 4
MARIA CLARA (Entrando)
- Helena, Helena!
HELENA
- Bom dia, Maria Clara.
MARIA CLARA
- Bom dia. Onde esta papai?
HELENA
- Ainda no quarto.

26
MARIA CLARA
- Ele saiu de casa muitas vezes?
HELENA
- Deve ter saído. Papai foge!
MARIA CLARA
- Tome.
HELENA
- Que é isto?
MARIA CLARA
- Despesas de papai na banca de frutas. A responsável é você.
HELENA
- Por quê?
MARIA CLARA
- Porque são despesas deste mês. E por favor... vá pagar hoje, sem falta. O dono da banca
veio me cobrar. Disse que papai passava por lá todos os dias, queixando-se de passar fome. O que
quer dizer: não parou em casa.
HELENA
- Que quer que eu faça?
MARIA CLARA
- Devia ter impedido.
HELENA
- E que importância tem, ir conversar na banca de frutas? Também não vamos fazer de
papai um prisioneiro.
MARIA CLARA
- Pois bem! O que quero saber, mesmo, é se estão disposto ou não a tomar conta de papai.
HELENA
- Cada um tem feito o que pode.
MARIA CLARA
- Pois você tem feito muito pouco.
HELENA
- Não sei por quê!
MARIA CLARA
- Porque vive melhor do que os outros, está em melhor situação, não tem filhos para se
preocupar, vive nos cinemas e ainda acha que faz muito por papai?
HELENA
- Não tenho filhos, mas tenho um marido...
MARIA CLARA
- Que não lhe dá nenhum trabalho, já que não pára em casa.
HELENA
- Maria Clara!
MARIA CLARA
- É isso mesmo. Um marido que só vive pensando em internar papai, que reclama até do
jornal que papai lê. Isto é fazer o que pode?
HELENA
- Todos pensam internar papai.
MARIA CLARA
- Olhe papai, em vez de ficar abraçada a esse cachorro. Você tem mais obrigação do que os
outros, já que tem uma vida quase inútil.
HELENA
- Inútil, mas é minha. Cada um sabe de si. Não tenho filhos, mas sei o que isto me custou.
Só possui este marido que me deixa só o dia inteiro, que reclama de tudo! Mas, o que é que você
quer? Que o abandone para viver com papai? E depois? O que será de minha vida? Pensa que é

27
muito bom viver sozinha nesta apartamento? Preferia que eles vivessem aqui. Mas Sérgio não
suporta as conversas de papai... e papai é tão imprudente. Não dá uma folga. Cada vez que vem pra
cá...minha vida se torna um inferno!
MARIA CLARA
- Desculpe, Helena! Eu...
HELENA
- Só vivo cuidando de camisas, correndo atrás de um marido que... Arrastando-me de
cinema para cinema, de bar para bar... como se fosse uma qualquer. Pensa que desejo isto? Eu
prefiro ir ao cinema do que ouvir discussões intermináveis. Sérgio diz “a”, papai diz “b”. Discutem
por qualquer coisa. Papai está cansado de saber que Sérgio é pernambucano... pois não faz outra
coisa que falar mal de nortista. Guararapes!
MARIA CLARA
- Também, Sérgio devia compreender.
HELENA
- Compreende, mas cansa. Nós desculpamos, os outros não. (Subitamente) Você quer que
eu deixe papai fazer da minha vida, o que permitiu que ele fizesse da vida de Lourdes?
MARIA CLARA (Magoada)
- Helena!
HELENA
- E não é verdade?
MARIA CLARA
- Eu não permiti...
HELENA
- Maria Clara!
(MARIA CLARA SAI DO APARTAMENTO E DESCE CORRENDO A ESCADA,
ENCONTRANDO-SE COM FRANCISCO NO PATAMAR)
NA ESCADA
FRANCISCO
- Bom dia, Maria Clara.
MARIA CLARA (Procurando se controlar)
- Ah! é você? Bom dia.
FRANCISCO
- Que foi, Maria Clara?
MARIA CLARA
- Francisco. Acho que devemos interditar papai.
FRANCISCO
- Que foi que ele fez?
MARIA CLARA
- Está ficando cada vez pior, Francisco. Papai foge, ninguém consegue segurá-lo. Fez um
mundo de despesas na banca de frutas... e coisas assim.
FRANCISCO
- Só por isto? Pagam-se as despesas.
MARIA CLARA
- Se não quer a interdição, devemos internar.
FRANCISCO
- Você nunca admitiu isto, Maria Clara. Por que mudou de idéia?
MARIA CLARA
- É que... cada um tem seus problemas. Não podemos ficar como cães de fila vigiando
papai.
FRANCISCO
- Já pensou o que isto significa para ele? Saber que não é mais responsável?
MARIA CLARA

28
- Mas não é esta a verdade, Francisco? Pense bem!
FRANCISCO
- Por mim, não admito que papai seja internado, e muito menos interditado.
MARIA CLARA
- Estou apenas querendo evitar que ele seja humilhado e nos humilhe ainda mais.
FRANCISCO
- Quando foi que papai nos humilhou?

MARIA CLARA
- Prefiro não falar sobre isto.
FRANCISCO
- Vocês é que estão querendo humilha papai.
MARIA CLARA
- Está bem. Está bem, Francisco. Não se fala mais nisto.
(MARIA CLARA ENTRA EM SEU APARTAMENTO. FRANCISCO, PREOCUPADO, FICA
OLHANDO MARIA CLARA. DEPOIS VOLTA-SE E SOBE A ESCADA. POR UM MOMENTO
MARIA CLARA OBSERVA LOURDES.)
APARTAMENTO 1
LOURDES
- Como foi?
MARIA CLARA
- Sua tia não tem culpa.
LOURDES
- Sabia que a senhora desculparia.

MARIA CLARA
- A verdade é que precisamos internar papai.
LOURDES
- Quero ver a senhora convencer tio Francisco.
MARIA CLARA
- Ele acabará se convencendo.
LOURDES
- E a demanda do vovô?
MARIA CLARA (Angustiada)
- Há coisas mais importantes que esta demanda.
(MARIA CLARA E LOURDES CONCENTRAM-SE NO TRABALHO)
APARTAMENTO 3
FRANCISCO
- Ricardo! Ricardo! Venha cá!
NOÊMIA
- Que foi?

FRANCISCO
- Se continuar assim, não passa nos exames.
RICARDO
- Senhor.
FRANCISCO
- Quero saber se isto são notas que se apresentem. (Mostra o boletim) Três, dois, cinco,
quatro, dois, zero! ZERO! Você pensa que trabalho como um burro de carga, pra quê? Pra você
vadiar?
RICARDO
- Essas notas são do mês que vovô passou aqui.

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FRANCISCO
- E que tem isso?
NOÊMIA
- Ora, meu filho! Isto não é desculpa!
FRANCISCO (Furioso)
- Quero saber o que tem o papai com esta vergonha?
RICARDO
- Tem ... que fico sem lugar pra estudar.
FRANCISCO
- Tudo serve pra desculpar vagabundagem.
RICARDO
- Vovô não dá uma folga!
FRANCISCO
- Pelo que vejo, papai virou bode expiatório. Maria Clara, helena e até você! Não culpe seu
avo. Eu sei que ele caceteia... é velho! Mas, o que está querendo? Uma biblioteca particular? Olhe
aqui: logo vai fazer exame e não serão as notas deste mês que vão influir. Se não passar, trate de
arranjar emprego. Não estou pra sustentar vagabundo.
RICARDO
- Ehêêêê! Também não precisa xingar assim!
NOÊMIA
- Calma, Francisco. Isso acontece com todo estudante.
FRANCISCO
- Não pode acontecer.
NOÊMIA
- Vá, meu filho. Vá estudar.

RICARDO
- Eu disse pra senhora tirar tudo do quarto. Eu não sei. Vovô está sempre atrapalhando!
Também... amigo íntimo de Pedro Álvares Cabral! (Ricardo sai)
NOÊMIA
- Ele se esforça, Francisco, mas é tanta matéria, tanto coisa pra estudar!
FRANCISCO
- Essa mania de Maria Clara! É papai, é Ricardo.. é tanto trabalho. Não há cabeça que
agüente. E ainda não querem que a gente tenha esperança!
NOÊMIA
- Quem? Esperança em quê?
FRANCISCO
- Nada. Nada. (Saem)
(ANTENOR E AMÉLIA ENTRAM NO LIVING DE HELENA FAUSTA. ESTÃO COM AS
MESMAS VALISES DO PRIMEIRO ATO.)
APARTAMENTO 4
HELENA
- Já vão?
AMÉLIA
- Já minha filha. Deus te abençoe.
ANTENOR
- Vamos, Melica. Você está sempre atrasada! (Volta-se para Helena) Onde vai?
HELENA
- Acompanhar.
AMÉLIA
- Não precisa, minha filha.
HELENA

30
- Não custa.
ANTENOR
- Helena Fausta. Gostamos de descer sozinhos. Pelo menos na escada queremos ficar a sós,
sem ninguém nos espionando.
HELENA (Magoada)
- Mas, papai! Não interfiro na vida de vocês quando estão em meu apartamento.
ANTENOR
- Você eu sei que não. Mas, esta sua empregadinha. Onde arranjou este
estrepe?
AMÉLIA
- Que aliás, não sabe fazer nada, hein, minha filha! Que horror! Onde foram parar as
empregadas! Atrevida, você precisa ver.
HELENA
- Sempre ajuda.
AMÉLIA (Com azedume)
- Marlene! Vê se isto é nome de empregada!
ANTENOR
- Mamãe, sim, tinha dúzias de empregadas! (Chamando) Violante! Cipriana! Estácia!
Bastava bater palmas... e chovia negrinhas de todos os lados!
AMÉLIA
- A culpada foi a Princesa Izabel!
ANTENOR
- Feia como santo de caboclo! Depois, essa sua cachorrinha!
ANTENOR
- Puro rabo de biscoito! Não pudemos abrir a porta de nosso quarto! Era abrir e ela
entrava! Pra que isso? Pegue uma criança pra criar.
HELENA
- Sérgio na gosta de criança.
ANTENOR
- Também, esse seu marido não gosta de nada, hein? Aliás, gostar ele gosta: aperitivos,
cinemas, jantares! Ninguém vive só para comer. Até parece juiz de direito!
AMÉLIA
- Antenor!
ANTENOR
- Um Bragança! Um homem que seus antepassados morreram expulsando os invasores
flamengos, só pensando em tontices! Ele não é parente do Imperador, é?
HELENA
- Papai! Já estou cansada de falar que não é.
ANTENOR
- Então, de onde tirou esse Bragança?
HELENA
- Não sei, papai.

ANTENOR
- Albuquerque, de Pernambuco! Se não lutou nos Guararapes, deve ser gentinha. (Sai.)
AMÉLIA
- Até logo, minha filha. (Beijam-se) Depois você leva a roupa?
HELENA
- Levo.
AMÉLIA
- Mas, cuidado! Não vá amassar. Detesto roupa amassada.
HELENA

31
- Está bem, mamãe. (Amélia sai)
NA ESCADA
AMÉLIA
- Sobre a empregado e a cachorrinha você tinha razão, Antenor. Mas não precisava falar!
ANTENOR
- Se a gente não falar, minha velha, não aprendem nunca. Trouxe o jornal
AMÉLIA (Riem)
- Está aqui.
ANTENOR
- Não queria sair antes do marido dela. (Ri) Precisava trazer o jornal.
AMÉLIA
- Era só falar, Antenor!
ANTENOR
- Falar pra quê? O jornal traz um artigo grande sobre o Regente Feijó, este, sim, foi um
homem. Levantou a Província inteira! Também foi o mais traído! Teve pela frente um verdadeiro
homem: o Duque de Caxias! Não era paulista, mas era um bom homem. (Volta-se) Que é que está
esperando, Melica?
AMÉLIA
- Já reparou, Antenor, que brasileiro não fica mais padre?
ANTENOR
- Por que isso agora?
AMÉLIA
- Você falou no Padre Feijó e eu me lembrei. Antigamente, todas as famílias tinham um
padre. Lembro-me do Padre Bento: era um santo!

ANTENOR
- Mais santo do que santo italiano.
AMÉLIA
- Era primo-irmão de minha avó.
ANTENOR
- E sobrinho de meu avô.
AMÉLIA
- Já ouvi falar que hoje tem até padre turco, Antenor!
ANTENOR (Irritado)
- Quem é que vai acreditar em missa de turco, Melica! Você tem cada uma!
AMÉLIA
- Já ouvi falar, Antenor! Ora!
(ANTENOR E AMÉLIA DESAPARECEM NO PATAMAR DE CIMA. IZABEL COLOCA UM
BRINQUEDO EM CIMA DA ESTANTE DE VICENTE.)

APARTAMENTO 2
VICENTE
- Por favor, Izabel, não faça essa cara! Assim não consigo trabalhar. Que posso fazer?
IZABEL
- Não estou pedindo pra fazer nada.
VICENTE
- Não está pedindo, mas passa por aqui como alma penada, carregando esses bichos como
se os levasse para o matadouro.
IZABEL
- Para o matadouro foram os meus projetos.
VICENTE (Levanta-se, num ímpeto)

32
- Diga, Izabel: posso fazer alguma coisa?
IZABEL
- E eu, não posso, sentir? Não tenho o direito de arrumar o quarto de meu filho? Arrumar
como queria?
VICENTE
- Será possível!
IZABEL
- Meu filho também é importante.
VICENTE
- Será apenas por um mês, Izabel!
IZABEL
- Será sempre assim!
VICENTE
- Pois que seja. O que você quer? Que feche a porta a meus pais? Não combinamos ficar
com os velhos, um mês cada um?
IZABEL
- Não estou reclamando isto, Vicente!
VICENTE
- Sua expressão vale por um milhão de reclamações.
IZABEL
- Queria que tudo para o meu filho fosse o mais bonito. Você não compreende que essas
arrumações completam tudo?
VICENTE
- Compreendo, sim. Mas também compreendo que meus pais estão velhos e que precisam
de mim. Terei muito tempo para dar ao meu filho um bruta quarto. E tenho muito pouco tempo para
dar a meus pais um quartinho como este. E você? Compreende isto?
IZABEL (Chorando)
- Vicente. Não brigue comigo.
VICENTE
- Eu também não gosto de ver você desarrumar o quarto, mas que posso fazer (Controla-se)
Desculpe, Izabel. (Acaricia o rosto de Izabel) Eu ainda darei a você uma casa com um quarto para
cada filho.
IZABEL
- Não pretendo morar em hotel.
VICENTE
- Então, dois em cada quarto. Está bem assim? Não faça caso de minhas grosserias. Estou
preocupado com o meu trabalho. É só isto.
IZABEL
- A culpada sou eu.
VICENTE
- Você tem o direito de reclamar.
IZABEL
- Preciso ajudar, não atrapalhar.
VICENTE (Pausa)
- Izabel! Você acha que aquilo daria certo?
IZABEL
- O que, Vicente?
VICENTE (Com esforço)
- O tal instituto.
IZABEL
- Vejo dizer que muita gente... Não sei, Vicente. Francamente, não sei.
VICENTE (Irritado)

33
- Se pelo menos esse malditos apartamentos tivessem mais um quarto!
IZABEL
- É tão bonito nosso apartamento!
VICENTE
- Mas não precisava ser tão pequeno.
IZABEL (Abraça Vicente)
- Fui egoísta, meu bem. Ele dá perfeitamente pra nós todos.

VICENTE
- Acha mesmo?
IZABEL (Pausa)
- Claro. Não pense mais nisto. Trabalhe. Tudo se ajeita.
VICENTE (Pausa)
- Gosto dos velhos. Fico satisfeito quando sei que estão aqui. É como se fossem a presença
de um mundo que estivesse preso em minhas mãos. Um mundo diferente que só nós possuímos.
Ficam lá dentro, trancados... só se ouve um murmúrio... e tenho sempre a impressão de que, abrindo
esta porta, encontro resposta pra tanta coisa que me atormenta... e que não sei o que é. Se papai não
se agarrasse tanto a um mundo que não é nem dele, mas do avô! É uma presença limpa como uma
boa recordação, e no entanto... (Animando-se) Sabe, Izabel? Gostaria de abrir portas, ver como as
pessoas vive, descobrir como gostariam de viver... e escrever sobre a diferença. Já viu nossa
vizinha?
IZABEL
- Qual?
VICENTE
- A velha Marta! Que mundo não deve estar atrás daquele rosto! Em que expressão, sorriso
ou gesto...está escondida sua verdade! Se pudesse descobrir como encontrar a de cada um. Sei que
há um mistério na vida desta mulher. Não vejo ninguém entrar ou sair de lá. Nem ela! Um dia, não
resisti e entrei.
IZABEL
- Naquela casa?!
VICENTE
- Como um ladrão. Ela estava sentada, e sentada continuou, como se estivesse a minha
espera. Olhou para mim de maneira estranha e me contou a estória das confrarias. Enquanto a
ouvia, lembrei-me de três irmãs que moravam no bairro onde vivemos antes de vir pra cá. Passavam
horas sentadas à janela, namorando a rua. E eu, de longe, namorando-as. Possuíam objetos
belíssimos.... já vendidos para que fossem entregues depois que morresse a última. Um verdadeiro
saque contra a morte. Foram desaparecendo da janela, uma a uma... até que um dia , passei por lá e
nem a casa existia mais. De repente, senti que eu também vivo emparedado, enquanto ouvia Marta
acrescentar: “Não gosto de velhos. Não são vivos, nem mortos.” E é a mais velha do que a velhice!
Esta mulher me fascina...! (Debruça-se sobre a máquina de escrever)
IZABEL (Sorri, beijando a cabeça de Vicente)
- Pense em suas personagens. Trabalhe que seu filho vem vindo. Vou arrumar o quarto e
eles vão passar um mês agradável conosco.
(IZABEL SAI. ANTENOR E AMÉLIA APARECEM NO PATAMAR DE BAIXO. JUCA,
CARREGANDO BALDE E ESCOVA, SOBE A ESCADA.)
NA ESCADA
ANTENOR (Aparecendo)
- Senhor conde! Senhor conde! Senhor conde!
AMÉLIA
- Era primo-irmão de meu avô!
ANTENOR

34
- Tio de mamãe e casou-se com minha tia. Naquele tempo, um tio podia se casar com a
sobrinha. (Vendo Juca, apressa o passo) Ahaaa! (Juca, que tentara fugir, volta-se para Antenor)
JUCA
- Bom dia, seu Antenor. Bom dia, dona Amélia.
AMÉLIA (Sem reconhecer)
- Bom dia.
ANTENOR
- Bom dia. Como vai o senhor?
JUCA
- Como Deus manda.
ANTENOR
- Trabalha aqui?
JUCA
- Trabalho.
ANTENOR
- Como se chama o senhor?
JUCA
- José. José dos Santos
ANTENOR
- Será dos Santos, de Amparo?
JUCA
- Creio que não.
ANTENOR
- Conheci uns Santos, de Amparo. Gente brava, mas muito boa!
JUCA (Tentando sair)
- Saí de Amparo muito pequeno.
ANTENOR
- Houve até um caso de uma mãe que matou a filha.
JUCA
- O senhor já me contou.

ANTENOR
- Pois é! A moça estava vendo passar a procissão, debruçada na janela! A mãe morreu de
vergonha do vigário. Ah! não teve dúvida. Chegou em casa e deu um tiro na filha. Matou! Era gente
de muito respeito! Debruçar na janela, nem mulher de vida airada. O senhor não acha?
JUCA
- É tão bom olhar quem passa na rua, seu Antenor.
ANTENOR
- O senhor sabe que já andei de bangüê?
JUCA
- Sei.
ANTENOR
- Pois já andei. De bangüê, de trole, carro de dois cavalos, tílburi, automóvel, trem e até de
avião. Vi o tempo passar! Conheci de tudo nesta vida. Fui camarista, amigo, primo, sobrinho, neto
de barão. Até revolucionário! O que não fui na vida. Só não fui ladrão, o resto eu fui.
AMÉLIA
- O senhor mora aqui também?
JUCA
- Sou zelador deste prédio, há seis anos!
AMÉLIA
- Meus filhos moram aqui. Quatro apartamentos.
ANTENOR

35
- É um verdadeiro pardieiro, mas dizem que não há outro.
JUCA
- Meu serviço está atrasado. Tenho ainda que limpar as escada.
AMÉLIA
- Anda tão suja esta casa!
ANTENOR
- A senzala de meu avô andava mais em ordem.
JUCA (Saindo)
- Com licença.
ANTENOR
- Desde que veio a libertação que está esta desordem, Melica! Escangalharam com o
Brasil. Também, um imperador que só sabia fazer versos! No dia em que veio a república, ele
estava olhando as estrelas! Só tinha barba!
AMÉLIA
- Vovô tinha trinta negrinhos que pareciam uns brincos!
ANTENOR
- Dizem que escravo apanhava. Tudo mentira, Melica. Fingiam que surravam, mas não
faziam nada. Foi o que se viu! Quando veio a liberdade, quase que morreu tudo pelas estradas.
Acabaram voltando para o senhor. Comiam muito bem, dormiam bem; o que mais queriam!
AMÉLIA
- Também, oito meses depois, saíram atropelados do palácio.
ANTENOR
- Uma vez foi visitar Victor Hugo e o escritor francês chamou-o de majestade e ele
respondeu: “Sou, por acaso, e o senhor é pelo saber!” Veja que tontura, Melica! Era só bom chefe
de família. Pedro I, sim, é que era bom homem! Tinha amante, surrava gente à toa, sabia o que
queria. Veja a paixão que teve pela Marquesa de Santos!
AMÉLIA
- Essas Domitílias que anda por aí, é tudo por causa dela!
ANTENOR
- Era uma mulher muito violenta!
AMÉLIA
- Vejo contar que era tão ruim, que o pai achava que devia ter sido trocada na pia de
batismo!
ANTENOR (Contrariado)
- Ora, Melica!
AMÉLIA
- Ouvi contar, Antenor! Onde vai?
ANTENOR
À cidade.
AMÉLIA
- Vamos arrumar as coisas primeiro.
ANTENOR
- Leve a valise. Tenho compromissos. Se não cuidar de meus negócios, quem vai cuidar?
AMÉLIA
- Cuidado, Antenor. Há tantos automóveis na rua!
ANTENOR
- Não sou nenhum inválido, Melica! Alguma vez fui atropelado?
AMÉLIA
- Volte logo.

ANTENOR (Saindo)
- Depois que defender meus interesses. Até logo.

36
AMÉLIA
- Até logo. (Dirigindo-se para o apartamento de Vicente) Veja se resolve logo esta
demanda.
ANTENOR (Irritado)
- Você sabe perfeitamente, Melica, que já está resolvida.
(ANTENOR SAI. AMÉLIA, COM CERTA DIFICULDADE, ACHA A CAMPAINHA.)
APARTAMENTO 2
VICENTE
- Ah!... Bom dia, mamãe.
AMÉLIA
- Bom dia, meu filho. Como vai?
VICENTE
- Bem. (Olha o corredor) Onde está papai?

AMÉLIA
- Foi à cidade.
VICENTE
- Por que deixou, mamãe?
AMÉLIA
- Deixa seu pai trabalhar, meu filho. (Vendo Izabel) Bom dia, minha filha.
IZABEL
- Bom dia, dona Amélia. A senhora está passando bem?
AMÉLIA
- Por que não deveria estar?
IZABEL (Olha para Vicente)
- Claro!
AMÉLIA
- Com licença.
VICENTE
- Ajude, meu bem.

AMÉLIA
- Não precisa. Obrigada!
(AMÉLIA SAI. IZABEL E VICENTE TROCAM UM OLHAR. IZABEL ACOMPANHA
AMÉLIA.)
APARTAMENTO 4
MARLENE
- A senhora quer acertar minhas contas?
HELENA
- Por que, Marlene?
MARLENE
- Porque vou sair, é claro.
HELENA
- Que foi que aconteceu?
MARLENE
- Fique a senhora sabendo que não sou nenhuma nega cativa.
HELENA
- Claro, Marlene. Eu disse isso alguma vez?
MARLENE
- Disseram! Felizmente houve uma Princesa Izabel.
HELENA
- O mesmo digo eu. Quero saber que motivos tem para sair?

37
MARLENE
- Dona Helena! Durante tudo o mês, cada vez que seu Antenor me via, dizia que eu tinha a
cabeça boa pra coques, e lombo ótimo para a chibata. Amanheceu hoje me chamando de nega
cativa! O que a senhora está pensando? Trabalho aqui por que quero, e saio também a hora que
quiser. Pode acertar minhas contas.
HELENA
- Ora, Marlene! Papai não sabe o que faz!
MARLENE
- Não sabe? Eu, hein!
HELENA
- Trato você tão bem, Marlene.
MARLENE
- Não adianta.

HELENA
- Pago o ordenado que quer, deixo sair quantas vezes deseja; só porque papai diz umas
tonturas, vai me deixar sozinha?
MARLENE
- Sou preta com muito orgulho! Não me troco por muito branco que existe por aí.
HELENA
- Pode ficar sossegada, que isto não vai se repetir.
MARLENE
- É bom, mesmo.
HELENA
- Se continuar, melhoro o seu ordenado.
MARLENE
- Mas a senhora, já sabe: o dia em que seu Antenor entrar por esta porta, saio
imediatamente pela mesma. Nega cativa! Eu, hein! (Sai)
APARTAMENTO 2
(AMÉLIA ENTRA, OBSERVA VICENTE TRABALHANDO, PÁRA ATRÁS DE SUA CADEIRA
E SUSPIRA.)
VICENTE
- Quer alguma coisa, mamãe?
AMÉLIA
- Que está fazendo?
VICENTE
- Lutando com as minhas personagens. Eu queria uma coisa, elas quiseram outra. Agora
não sei como sair desta embrulhada.
AMÉLIA
- Meu filho! Será que esse negócio de escrever dá certo, mesmo? Não conheci ninguém
que mexesse com isso.
VICENTE
- Dá para os outros, tem que dar para mim.
AMÉLIA
- Não sei, não. Vida de artista é tão sem propósito!
VICENTE
- Muito!
AMÉLIA
- Vejo contar cada coisa!
VICENTE
- Por exemplo, mamãe?
AMÉLIA

38
- Não sei. Que vivem tudo junto, não comem na hora certa, nunca estão em ordem,
limpinhos. Uma gente esquisita!
VICENTE
- São iguais a todo mundo.
AMÉLIA
- Não tem perigo! Antigamente, sim, os homens eram fortes.
VICENTE
- Artista também tem saúde, mamãe.
AMÉLIA
- Viviam livres, respiravam o ar do campo, eram cavalheiros! Sabe o que penso, meu filho?
VICENTE (Distante)
- O quê, mamãe?
AMÉLIA
- Acho que a luz elétrica, o trem e o telefone... enfraqueceram os homens.
VICENTE
- Ora, mamãe! Tudo isto nos ajudou a viver.
AMÉLIA
- Não sei, não. Ninguém mais faz força. (Sorri) Gosto de conversar com você, meu filho.
Por que não conversa mais comigo?
VICENTE
- Mamãe! Estou trabalhando. Não trouxe o seu crochê?
AMÉLIA
- Trouxe, mas não estou com vontade de fazer.
VICENTE
- Não quer conversar com Izabel?
AMÉLIA
- Hum! Izabel não pára em casa!
VICENTE
- Não pode ser, mamãe!
AMÉLIA
- Sei o que digo.

VICENTE
- Izabel deve estar no tanque ou na cozinha.
AMÉLIA
- Isto é o que pensa. Estou eu e minha sombra. E você, naturalmente. O que não quer dizer
muito, já que não me dirige a palavra. Assim.... eu e minha sombra. Aliás, já estou acostumada a
viver sozinha. Seu pai não pára. Sempre com seus negócios. Todo mundo desaparece e eme larga.
Vivo praticamente abandonada!
VICENTE (Atormentado)
- Não é verdade, mamãe.
AMÉLIA
- Veja! Eu gostaria de me sentar e ter com quem conversar. Conversar sobre coisas úteis,
bonitas, amáveis. Mas não há vivalma nesta apartamento. Eu e minha sombra!
VICENTE
- Bom! Já que não é possível trabalhar, vamos conversar sobre coisas agradáveis.
AMÉLIA
- Por favor, meu filho! Não pare seu serviço. Não quero incomodar ninguém.
VICENTE
- A senhora está dizendo que ninguém lhe dá atenção!
AMÉLIA

39
- Como, não dá? Seria muita grosseria, e meus filhos não são grosseiros. Vou cuidar da
minha obrigação. (Sai)
VICENTE
- Mamãe!
AMÉLIA (Volta à sala e sorri)
- Que é Vicente?
VICENTE (Beija o rosto de Amélia)
AMÉLIA (Ri)
- Você sempre foi muito beijoqueiro, meu filho!
VICENTE
- Assim que acabar meu serviço, poderemos conversar uma porção de coisas amáveis.
Quer?
AMÉLIA
- Não. Não tenho tempo.
(AMÉLIA SAI. O OFICIAL DE JUSTIÇA ENTRA NO HALL DO PRÉDIO, EXAMINA AS
PORTAS DOS APARTAMENTOS E TOCA A CAMPAINHA NO APARTAMENTO DE
VICENTE.)
NO HALL
VICENTE
- Que deseja?
OFICIAL
- Pode me informar se mora neste prédio um senhor chamado... Antenor... de...
VICENTE (Corta, impaciente)
- Mora, sim. É meu pai.
OFICIAL
- Isto é para ele. Assine aqui.
VICENTE
- Que é isto?
OFICIAL
- Intimação.

VICENTE
- Intimação? Intimação de quê?
OFICIAL
- Seu pai vendeu terrenos e os compradores estão reclamando na justiça.
VICENTE
- Estão reclamando o quê?
OFICIAL
- Foram vendidos a mais de uma pessoa.
VICENTE
- O senhor deve estar enganado! Meu pai não fez isto.
OFICIAL
- Seu pai não fez. Mas, passou procuração para espertalhões que se aproveitaram dele.
Venderam os terrenos, receberam o sinal e desapareceram. Está escrito aí que deve comparecer ao
Fórum no dia 20, às treze horas, para depor. Passe bem. Obrigado.
(VICENTE FICA ATURDIDO, OLHANDO O OFICIAL QUE SAI. SUBITAMENTE, ANDA
APRESSADO PARA O APARTAMENTO DE MARIA CLARA.)
VICENTE
- Maria Clara! Maria Clara!
MARIA CLARA
- Que foi? Izabel...?
VICENTE

40
- Não. Venha cá. (Saem para o hall) Olhe isto.
MARIA CLARA
- Papai terá que depor no Fórum!
MARIA CLARA
- Por quê?
VICENTE
- Passou procuração para espertalhões que venderam terrenos a mais de um comprador.
Estão reclamando na justiça.
MARIA CLARA
- Mas que terrenos são estes, Vicente?
VICENTE
- Sei lá! Papai está sempre metido no meio de tanto embrulho! Ele não conta nada.
MARIA CLARA
- Que vamos fazer?
VICENTE
- Ir lá e falar com o juiz.
MARIA CLARA
- Por que papai faz isso?!
VICENTE
- Vamos falar com Francisco.
MARIA CLARA
- Vou chamar Helena.
(VICENTE E MARIA CLARA SOBEM A ESCADA. AMÉLIA APARECE À PORTA DA SALA
DE VICENTE)
APARTAMENTO 2
AMÉLIA
- Antenor! Antenor!
IZABEL
- Que foi, dona Amélia?
AMÉLIA
- Antenor está demorando tanto!
(MARIA CLARA E HELENA SAEM DO APARTAMENTO 4, DESCEM A ESCADA E PASSAM
PELO PATAMAR. VICENTE, NOÊMIA E FRANCISCO ENTRAM NO APARTAMENTO 3.
FRANCISCO EXAMINA A INTIMAÇÃO DO JUIZ.)
IZABEL
- Esta hora é difícil de pegar ônibus.
AMÉLIA
- Antenor some. Não tenho com quem conversar.
IZABEL
- Vicente deve voltar logo. Com certeza foi comprar cigarros.
AMÉLIA
- Eu e minha sombra! Não sei o que foi que aconteceu, minha filha, mas a vida ficou tão
desagradável!
IZABEL
- Venha comigo.

AMÉLIA
- Não. Obrigada.
(AMÉLIA SENTA-SE E COMEÇA A FAZER CROCHÊ. IZABEL SAI DA SALA)
APARTAMENTO 3
FRANCISCO
- E agora?

41
VICENTE
- Acho que basta ao juiz ver o estado de papai.
FRANCISCO
- Claro.
VICENTE
- Depois, trata-se de espertalhões já conhecidos. Foi o que deduzi da conversa do oficial de
justiça.
FRANCISCO
- Quer dizer que papai tinha esses terrenos?
(MARIA CLARA E HELENA ENTRAM NO APARTAMENTO DE FRANCISCO.)
VICENTE
- Quem pode saber! Papai se julga dono da cidade. Qualquer dia destes vende a Praça da
Sé.
FRANCISCO
- Que vamos fazer?
MARIA CLARA
- Comparecer ao Fórum, junto com ele, e explicar tudo ao juiz.
HELENA
- Que mais podemos fazer?
MARIA CLARA
- Agora, você concorda comigo, Francisco?
FRANCISCO
- Continuo pensando a mesma coisa.
MARIA CLARA
- Não é possível, Francisco!
VICENTE
- Concorda com quê?

MARIA CLARA (Pausa)


- Acho que devemos interditar papai.
HELENA
- Também acho melhor.
VICENTE
- Interditar?
MARIA CLARA
- Vocês não vêem o que está acontecendo?
VICENTE
- Também, não é caso de tamanha humilhação!
MARIA CLARA
- Vicente! Há dois meses, esteve um senho em meu apartamento. Passou para levar papai.
Iam ver os terrenos do Brás. Quando eu disse que papai não ia, ameaçou recorrer à justiça.
FRANCISCO
- Um mal-entendido à toa, Maria Clara, que não trouxe nenhuma conseqüência.
MARIA CLARA
- Mal-entendido? Onde está com a cabeça, Francisco?
FRANCISCO
- Onde ela deve estar! Vocês é que estão com ela fora do lugar. Não será por causa de um
sujeito qualquer que irei internar meu pai, ou interditar.
HELENA
- Você não vê que é pior para ele, Francisco?
FRANCISCO
- Já disse que não concordo, e não concordo mesmo.

42
MARIA CLARA
- Que é que você acha, Vicente?
VICENTE
- Não sei. Interditar eu não teria coragem.
HELENA
- Pois eu concordo com Maria Clara.
FRANCISCO
- É o caminho mais fácil, não é?
HELENA
- Mais fácil, por quê? Que é doloroso eu sei que é.

FRANCISCO
- Assim não lhe daria mais trabalho.
HELENA
- Tenho o mesmo trabalho que você.
FRANCISCO
- Pois não parece. Papai vive na rua, quando está em seu apartamento.
HELENA
- Tanto foge do meu, como tem fugido do seu.
FRANCISCO
- Reclamam até do jornal que ele lê!
HELENA
- Isto você também reclama.
MARIA CLARA
- Não vamos discutir sobre isto. O que importa é tomarmos uma resolução. Acho que
devemos internar. É muito triste; eu sinto tanto quanto vocês... mas que podemos fazer?
FRANCISCO
- Meu pai não é nenhum indigente para ser internado em asilo?
MARIA CLARA
- Quem está falando em asilo.
FRANCISCO
- Você.
MARIA CLARA
- Instituto não é asilo.
FRANCISCO
- O nome é pra disfarçar. Mas a verdade é uma só.
MARIA CLARA
- Nenhum de nós pode ver papai e mamãe descendo e subindo esta escada. No instituto
existem apartamentos, casinhas particulares... ficariam melhor instalados, Vicente!
HELENA
- É fácil: de hoje em diante eles passam a viver no apartamento de Francisco.
FRANCISCO
- Poderiam ficar no seu. Você não tem filhos, tem um quarto sobrando. É só jogar aquele
vira-lata na rua.

MARIA CLARA
- Mas, não se trata de ter mais quartos! Se fosse só isto, eu daria jeito em meu apartamento.
Como você daria, Francisco. É que não é possível continuar assim. acabaríamos todos loucos, não é
justo pra eles, nem pra nós.
FRANCISCO
- Pois, então, que continue como está.
MARIA CLARA

43
- Mas esta mania de negócios do papai... é uma ameaça constante.
FRANCISCO
- Até hoje não aconteceu nada de grave. Nem vai acontecer.
MARIA CLARA
- Então, ser intimado a depor não é grave? Depor por causa de negócios com espertalhões e
vigaristas?
VICENTE
- Papai nem desceu para o meu apartamento. Diz mamãe que ele foi à cidade tratar de
negócios.
MARIA CLARA
- Não estou falando?

FRANCISCO (Exalta-se)
- Já disse que não concordo.
VICENTE
- Você não está sendo razoável, Francisco. Vamos conversar!
FRANCISCO
- Já sei! Estão todos loucos para se verem livres dos velhos, como se fossem trambolhos!
VICENTE
- Ninguém aqui está doido pra isto. Estamos conversando sobre o problema. Que é sério,
você não pode negar.
FRANCISCO
- Não vejo onde está o problema!
VICENTE
- Está... que precisamos cuidar da vida, não podemos acompanhar papai pra baixo e pra
cima.
MARIA CLARA
- Não vê, Francisco, que papai vai se sentir humilhado diante daquele juiz?

FRANCISCO
- Um juizinho qualquer!
VICENTE
- Se pelo menos papai esquecesse um pouco suas conversas, seus negócios.
FRANCISCO
- Esquecer, por quê? É a vida dele.
VICENTE
- Bom! Acho que todo mundo concorda que são coisas que não interessam mais a ninguém.
FRANCISCO
- Eu, por mim, aprecio muito.
VICENTE
- Ora, Francisco! Quem, hoje em dia, se interessa por barões e baronesas? Quem quer saber
de nobres fora de moda, de gente que viveu há mais de cem anos?
FRANCISCO
- A verdade é que, se interditarmos papai, todos os seus títulos e documentos ficarão sem
valor.
MARIA CLARA
- Mas não têm nenhum valor, Francisco!
FRANCISCO
- Já imaginou, Maria Clara, se um dia papai provar a todo mundo que tinha razão? Que é
dele , de fato, a metade do Brás?
MARIA CLARA
- Aquela gente mora lá há mais de cinqüenta anos!

44
FRANCISCO
- Isto seria uma questão de advogado. Já pensou como mudaria nossa vida?
MARIA CLARA
- Acontece que não temos direito. Para ganharmos, termos que dar prejuízo a muita gente.
FRANCISCO
- Não mandei ninguém fazer casa em terreno alheio.
HELENA
- Não mandou , mas estão feitas!
VICENTE
- Será possível que você acredita, mesmo?
FRANCISCO
- A chácara pertenceu à nossa família!
VICENTE
- E no lugar da chácara, existe hoje um bairro com prédios de apartamentos, repartições
púbicas, igrejas, residências! O que é que você quer? desalojar milhares de pessoas?
FRANCISCO
- Papai ainda há de provar que os terrenos são nossos. E quanto isto acontecer, todos vocês
vão ficar loucos de alegria.
VICENTE
- Você, eu não.
FRANCISCO
- Você, você e você também.
VICENTE
- Não quero o que pertence aos outros.
FRANCISCO
- Você é um intelectual besta!
NOÊMIA
- Por favor, não discutam assim!
VICENTE (Exaltado)
- Quero vencer com o meu esforço. Ter um nome feito e não herdado. Já estou farto de
ouvir falar em grandezas passadas, de carregar este nome como se fosse uma canga! Uma canga,
está ouvindo? Arranque esse peso das costas e seja você mesmo!
FRANCISCO
- Sai da minha casa!
NOÊMIA
- Francisco! Pelo amor de Deus!...
MARIA CLARA
- Vicente!
VICENTE (Escapa de Maria Clara e Helena)
- Você com sua mania de chefe de clã. Por isso fez tanta questão que todos morassem à sua
volta... neste prédio infecto. Você está pensando nessas bobagens do passado. O que me interessa é
meu pai e minha mãe. O que interessa a você são os terrenos do Brás.
FRANCISCO
- Não se atreva...
VICENTE
- Você só pensa na demanda do barão, em ficar rico da noite para o dia.
O Brás! É o Brás que interessa a você, não o papai.
FRANCISCO
- Cale a boca!
NOÊMIA
- Não, Francisco!
HELENA

45
- Vicente!
MARIA CLARA (Abraçada a Vicente)
- Por favor, Vicente! Vá embora!
(PAUSA. AMÉLIA LEVANTA-SE, SUSPIRA E SAI DA SALA DE VICENTE.)
VICENTE
- Tenho mais pena de você do que de papai.
FRANCISCO
- Não preciso de sua piedade. Saia daqui.
(VICENTE E HELENA FAUSTA SAEM DO APARTAMENTO E DESCEM A ESCADA.)
MARIA CLARA
- Não há outra solução, Francisco.
FRANCISCO
- Me deixe, Maria Clara!
(MARIA CLARA, CHORANDO, DESCE A ESCADA E ENTRA EM SEU APARTAMENTO.
VICENTE ENCOSTA-SE À SUA MESA DE TRABALHO, COMEÇANDO A SOLUÇAR.
HELENA, ANGUSTIADA, SOBE A ESCADA E ENTRA EM SEU LIVING.)
NOÊMIA
- Meu velho! Para que se exaltar assim!
FRANCISCO
- Estou cansado, Noêmia. Por que tudo isto, meu Deus!
NOÊMIA
- Vocês estão nervosos. Decidir sobre sito é doloroso.
FRANCISCO
- Noêmia! Você acha que seria a única solução?
NOÊMIA
- Acho.
FRANCISCO
- Deve haver um jeito. Tem que haver um jeito!
(FRANCISCO É ABRAÇADO POR NOÊMIA. IZABEL ENTRA EM SEU APARTAMENTO.)
APARTAMENTO 2
IZABEL
- Vicente! Vicente! Por que está assim, Vicente?
VICENTE
- Nada. Nada.
IZABEL
- Você está chorando?
VICENTE
- Não. Não estou.
IZABEL
- Está sim! Por quê, Vicente?
VICENTE
- Izabel! Minha Izabel! Me abrace. Me abrace com força. Não quero pensar.
IZABEL
- Querido! Diga o que foi que aconteceu?
VICENTE
- Depois. Depois. Não fale. Não fale agora.
APARTAMENTO 1
LOURDES (Entrando)
- Que foi, mamãe?
MARIA CLARA (Com grande angústia)
- Lourdes! Minha filha!
LOURDES

46
- Mamãe!
MARIA CLARA
- Lourdes!
LOURDES
- Por que está chorando?
MARIA CLARA
- Me abrace bem apertado.
LOURDES
- Calma, mamãe. Não chore, por favor.
MARIA CLARA (Soluça violentamente)
- Coitado do papai!
APARTAMENTO 2
IZABEL (Subitamente, afasta-se de Vicente)
- Vicente! Vicente! Me acode!
VICENTE
- Que foi, Izabel? A dor que o médico disse? Aquela?
IZABEL
- É!
VICENTE
- Fique quietinha. Não se mexa. Vou chamar Helena. Controle o espaço das dores, como o
médico mandou.
IZABEL
- Depressa, Vicente. Pelo amor de Deus.
VICENTE (Sai correndo, meio desorientado)
- Maria Clara! Maria clara!
APARTAMENTO 1
MARIA CLARA (Separa-se de Lourdes)
- Que foi, Vicente?
VICENTE
- Já começou!
MARIA CLARA
- Começou o que, criatura?
VICENTE
- Izabel!
MARIA CLARA (Ri, nervosa)
- Ahaaa!
VICENTE
- Fique com ela, enquanto chamo Helena.
(MARIA CLARA SAI CORRENDO E VICENTE SOBE A ESCADA, PULANDO OS
DEGRAUS.)

APARTAMENTO 2
MARIA CLARA (À Izabel)
- A mala? Onde está a mala? Não está pronta?! (Desaparece, correndo, no apartamento)
NA ESCADA
VICENTE (Gritando)
- Helena! Helena!
HELENA
- Que foi, Vicente?
VICENTE
- Você pode nos levar no seu automóvel?

47
HELENA
- Levar aonde?
VICENTE
- À maternidade.
HELENA
- Vou imediatamente.

VICENTE (Passa correndo no patamar e grita para o apartamento de Francisco)


- Noêmia! Francisco! Noêmia! As dores já começaram! Vamos para a maternidade! (Desce
correndo a escada)
APARTAMENTO 2
VICENTE
- Vamos, minha pombinha.
IZABEL
- A mala, Vicente! A mala!
VICENTE
- A mala, Maria Clara.
IZABEL
- Você, Vicente.
VICENTE
- Eu levo, Maria Clara.
IZABEL
- E não fique olhando pra mim como se eu fosse morrer!
(ENQUANTO HELENA, FRANCISCO E NOÊMIA DESCEM A ESCADA, MARIA CLARA
SAI CORRENDO PARA SEU APARTAMENTO)
NO HALL
VICENTE
- Maria Clara! Você não vem com a gente?
MARIA CLARA
- Naturalmente! Lourdes! Olhe a casa. Não se esqueça do jantar. Ah!... Feche direito a
torneirinha do gás.
(DIRIGEM-SE TODOS PARA A SAÍDA, FAZENDO GRANDE ALGAZARRA. NESTE
INSTANTE, ANTENOR ENTRA, FICANDO CONFUSO NO MIO DOS FILHOS. AMÉLIA
SAI DO APARTAMENTO PARA O HALL.)
VICENTE
- Papai! Já vamos para a maternidade!
(SAEM TODOS. ANTENOR E AMÉLIA FICAM OLHANDO PARA A SAÍDA, SEM
COMPREENDER NADA.)
ANTENOR
- Por que todo esse barulho, Melica?
AMÉLIA
- Acho que está acontecendo alguma coisa. Como vão os negócios, Antenor?
ANTENOR
- Muito bem. Sabe, Melica? Aquele juiz que deu sentença contra mim?
AMÉLIA
- Sei.
ANTENOR (Furiosos)
- É descendente do Braso de Montes-Claros!
AMÉLIA
- É?
ANTENOR

48
- Eu sempre desconfiei que aquele traste não era ninguém. O bisavô dele sempre desejou
quatro coisas na vida; levar a comarca pra Montes-Claros – conseguiu. Senador pela Província –
conseguiu. Ser nomeado barão – conseguiu. Virar branco... não conseguiu! Continuou negro e sem-
vergonha!

TERCEIRO ATO
CENA: AO ABRIR-SE O PANO, A SALA DE VICENTE ESTÁ VAZIA. A MESA ESTÁ CHEIA
DE PAPÉIS ESPARRAMADOS. HÁ UMA FOLHA NA MÁQUINA DE ESCREVER. NO
APARTAMENTO 3, FRANCISCO ESTUDA, AFLITO, UM MONTE DE PAPÉIS. NOÊMIA
OBSERVA FRANCISCO. NO APARTAMENTO 1, LOURDES CONTINUA FAZENDO TRICÔ.
ZILDA TENTA LER, MAS NÃO CONSEGUE. LEVANTA-SE, ABRE A PORTA DO
APARTAMENTO, OBSERVA O HALL, TORNA A FECHAR , SENTA-SE NOVAMENTE E
FICA OLHANDO PARA O LIVRO ABERTO. LOURDES, DE VEZ EM QUANDO, OBSERVA
ZILDA. IZABEL, ACOMPANHADA POR HELENA E CARREGANDO O FILHO, SAI DO
QUARTO NO APARTAMENTO 4 E ENCAMINHA-SE PARA A PORTA.

APARTAMENTO 4
HELENA
- Coitado de meu afilhado! Que nome puseram em você. Que gente malvada!
IZABEL
- Já me acostumei.
HELENA
- Por que deixou, Izabel?
IZABEL
- Vicente quis.
HELENA
- Martiniano! Não consigo aliar o nome a essa carinha.
IZABEL
- Ele embelezou o nome.
HELENA
- Vicente e Zilda pregam tanto contra a genealogia, mas acabam sempre lá. Zilda, então,
está ficando tão agressiva.
IZABEL
- Zilda está apaixonada, eu teria ficado assim, também. Até logo, Helena.
HELENA
- Fique um pouco mais. Não tenho nada que fazer.
IZABEL
- Eu tenho.
HELENA
- Um minuto só. Vicente deve estar satisfeito. Ele nada mais calmo?
IZABEL
- Tudo vai bem quando ele escreve.

HELENA
- Que negócio é esse de escrever sobre Marta, a nossa vizinha? Marta é uma mulher velha,
tão feia!
IZABEL
- Vicente está apaixonado por ela.
HELENA
- Vigia todos os nossos passo. Sempre com aquela expressão enigmática, de esfinge. Sinto-
me mal cada vez que a encontro.
IZABEL (Sorri)

49
- Vicente diz que quando a vê namorando a rua, debruçada nas almofadas entre as cortinas
de filé... com aquele camafeu horroroso no pescoço, tem vontade de parar e conversar sobre
qualquer coisa que ele não sabe que é.
HELENA
- Pois eu tenho vontade é de correr.
IZABEL
- Preciso descer, Helena. (Subitamente) Francisco, como está?
HELENA
- Péssimo!

IZABEL
- Coitada de Noêmia!
HELENA
- É uma situação que a gente não sabe como resolver.
IZABEL
- Mas que precisa ser resolvida.
HELENA
- Nós vamos levá-los hoje. Já arrumaram as malas, está tudo pronto. Só estamos esperando
Maria Clara.
IZABEL
- Imagino como Vicente deve estar. Bom! Até logo, Helena.
HELENA
- Até logo. (Beija a criança)
(IZABEL DESCE A ESCADA. HELENA ENTRA NO QUARTO, VOLTA COM UM BALÃO E
COMEÇA A ARMÁ-LO. PERCEBE QUE NOÊMIA FAZ GRANDE ESFORÇO PARA RETER
AS LÁGRIMAS. ZILDA LEVANTA-SE, ABRE A PORTA DE SAÍDA E ENCOSTA-SE NO
BATENTE.)
APARTAMENTO 1
LOURDES
- Zilda! Ou você lê ou não lê. Ou senta, ou sai daqui. Assim, me atrapalha.
ZILDA
- Os incomodados que se retirem.
LOURDES
- Estou trabalhando.
ZILDA
- Domingo não é dia de trabalho.
LOURDES
- Pra mim, é.
ZILDA
- Saia um pouco. Vá ver gente.
LOURDES
- Ver gente pra quê? Basta você, que vejo todos os dias.
ZILDA
- Por isto mesmo. Ficaria louca se tivesse de ver só você.
LOURDES
- Quem disse que não fico também?
ZILDA
- Sabe? Você está precisando, mesmo, é de homem.
LOURDES
- Vou mandar a família escolher um pra mim.
ZILDA

50
- Escolha você mesma. Faça tricô pra filho seu. Não importa de quem: italiano, japonês ou
mulato!
LOURDES
- Zilda!
ZILDA
- Não vá me enganar que não gosta de homem.
LOURDES
- O que é que você acha?
ZILDA
- Se gosta, não dá a menor demonstração.

LOURDES
- E você?
ZILDA
- Gosto de Deus, sobretudo, e em primeiro lugar, porque o Omar existe! Quando ele me
beija ou acaricia... é que compreendo por que existe tanta gente no mundo... e me dá vontade de pôr
mais gente ainda.
LOURDES
- Você me cansa.
ZILDA
- Você não tem é coragem.
LOURDES
- É preciso?
ZILDA
- Tenho pena de você. Lá fora a vida continua, tudo evolui, o homem chega à lua, e você
aqui, sentada, com certeza pensando em alguém que seja digno de você. Qualquer casamento é
bom, nem que seja pra desmanchar depois.
LOURDES
- Você não sabe de nada.
ZILDA
- Sei sim. Só porque permitiu que tio Francisco desmanchasse seu casamento, fica
escondida nesta sala, como um cacto, jogando espinho pra todo lado.
LOURDES
- E você? Adiantou não permitir?
ZILDA
- Quem disse que permiti?
LOURDES
- Há muitos dias que Omar desapareceu.
ZILDA
- Ele vai voltar, não tenha dúvida. Não aceito como você.
LOURDES
- Não se trata de aceitar.
ZILDA
- Quer saber de uma coisa? Se Omar não voltar, saio à rua e me entrego ao primeiro que
passar.
LOURDES
- É exatamente o que não quis fazer: entregar-me ao primeiro.
ZILDA (Retesada)
- Só vivem pensando em pureza de sangue, tradição! São as verdadeiras personagens da
estória de tio Vicente.
LOURDES
- Que estória?

51
ZILDA
- Que pretende escrever sobre as confrarias.
LOURDES
- Que confrarias?
ZILDA
- Onde é que você vive? No mundo da luz? Tio Vicente não falou em outra coisa durante
meses.
LOURDES (Irritada)
- Ele quer escrever sobre tanta coisa! Até sobre Marta, essa vizinha fuxiqueira que não dá
uma folga. Mas até agora...
ZILDA
- É a estória daquela mulher que carregou o filho morto de igreja em igreja e nenhuma quis
aceitar no cemitério.

LOURDES
- Só mesmo tio Vicente pensa numa estória dessa!
ZILDA
- Pensa não... vive. O que restou da confraria mais intolerante, mora neste prédio... ainda
expulsando gente por infâmia de mulato, ou de italiano. “Italianinho de brinco na orelha”, lembra-
se? Se Omar não voltar, deito com o primeiro que encontrar, e quero jogar na cara da família toda.
Era preferível fazer isto, do que ficar aqui... como virgem intocável. Joana D’Arc, defensora da
tradição.
LOURDES
- Não sou Joana D’Arc, mas também não sou prostituta.
ZILDA
- Este é seu mal. Não tem coragem de ser nada.
LOURDES
- Onde aprendeu tudo isto?
ZILDA
- Por aí. (Pausa) Mamãe, onde está?
LOURDES
- Estou cansada de dizer que foi ao Instituto.
ZILDA
- Será que não percebem que quanto mais demoram mais sofrem?
(ZILDA ENTRA NO QUARTO)
APARTAMENTO 3
NOÊMIA
- Hoje é domingo, Francisco!
FRANCISCO
- E daí?
NOÊMIA
- É dia de descanso.
FRANCISCO
- Não estou trabalhando.
NOÊMIA
- Está examinando esses documentos desde que amanheceu o dia.
FRANCISCO (Lendo)
- Examinar papéis não é trabalhar.

NOÊMIA
- Francisco! Você não vê que isso é loucura? Volte a si, meu velho! Há dois meses que lê
papéis como um desesperado.

52
FRANCISCO
- Preciso verificar bem. Não tenho mais confiança em ninguém.
NOÊMIA
- Não valem nada, Francisco.
FRANCISCO
- Que é que você entende?
NOÊMIA
- Se valessem, seu pai já havia ganho a demanda.
FRANCISCO
- Não ganhou por causa de um juiz desonesto.
NOÊMIA
- Será que em trinta anos, todos os juizes que examinaram o processo eram desonestos?
FRANCISCO
- Houve um parecer favorável. Papai não pode ter perdido o processo. Ele carrega seus
documentos para onde vai.
NOÊMIA
- Este parecer nunca existiu, a não ser na imaginação de seu pai.
FRANCISCO
- Que é que você insinua? Que meu pai é mentiroso?
NOÊMIA
- Mentiroso, não. Mas, obcecado! Obcecado por uma herança que ninguém sabe se existiu.
FRANCISCO
- E a chácara? Também foi inventada?
NOÊMIA
- Estou falando do processo. Garanto que nunca houve parecer favorável. Seu pai criou
tudo isto. Onde estão os títulos e os documentos de valor? Uma papelada rasgada e até roída de
ratos!
FRANCISCO
- Mas que provam nossos direitos.
NOÊMIA
- Seu pai se agarrou a esta demanda como um louco, exatamente como você está fazendo.
Para que lutei tanto, fiz tanta economia? Para você gastar em cartórios, registro e repartições... em
busca de direitos que, se existiram, já caducaram há muito tempo. Quem somos nós para pôr na rua
milhares de pessoas, Francisco?
FRANCISCO
- Somos os donos.
NOÊMIA
- Deixar o emprego, abandonar seu filho quando ele mais precisa de você. Veja para onde
está nos levando, Francisco!
FRANCISCO
- Um dia, papai há de se lembrar onde guardou o processo.
NOÊMIA
- Há dois meses que seus pais estão presos neste quarto, como dois criminosos quando
podiam esta instalados no Instituto.
FRANCISCO
- Todos querem ver-se livres dos velhos! Pois que fiquem aqui!
NOÊMIA
- E a nossa vida que vire um inferno, não é?
FRANCISCO
- Você está infernizando mais do que eles.
NOÊMIA
- Francisco!

53
FRANCISCO
- Saia daqui. Me deixa em paz.
(NOÊMIA SAI DO APARTAMENTO ENCOSTA-SE À PORTA, PROCURANDO SE
DOMINAR; DEPOIS DESCE A ESCADA ZILDA ANDA PELA SALA UM POUCO
IMPACIENTE, DEPOIS SAI PARA O HALL. SÉRGIO, VESTIDO COM UM CHAMBRE
VISTOSO, ENTRA NA SALA DE SEU APARTAMENTO.)
APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- Que é isto?
HELENA
- Um balão.
SÉRGIO
- Balão?
HELENA
- É. um balão.
SÉRGIO
- Está voltando à segunda infância?
HELENA
- Estou.
SÉRGIO
- Tire isto daqui! Quero ler meu jornal.
HELENA
- Sente-se na poltrona.
SÉRGIO
- Quero me sentar aqui.
HELENA
- Deixe de agir como se as coisas estivessem aqui só para seu conforto.
SÉRGIO
- Amanheceu irritada?
HELENA
- Não é para menos.
SÉRGIO
- Para quem é isto?
HELENA
- Para o meu afilhado.
SÉRGIO
- Não acha que é um pouco cedo? Ou um pouco grande?
HELENA
- Gosto dele assim.
SÉRGIO
- Então, é para você.
HELENA
- É possível.
SÉRGIO (Pausa)
- Vamos jantar fora?
HELENA
- Não posso.

SÉRGIO
- Por que não?
HELENA
- Izabel e Vicente vai ao cinema. Vou ficar com Martiniano.

54
SÉRGIO
- Diga que temos compromisso.
HELENA
- Já prometi que ficaria.
SÉRGIO
- Afinal, que está acontecendo?
HELENA
- Nada.
SÉRGIO
- Você é minha mulher ou pajem de Izabel?
HELENA
- Que é que você acha?
SÉRGIO
- Estou bem arrumado! Antes eram seus pais, agora é o garoto. Ah! ia-me esquecendo: a
cachorrinha também.
HELENA
- Pois é.
SÉRGIO
- Afinal, vão ou não vão para o Instituto?
HELENA
- Vão hoje.
SÉRGIO
- É a melhor solução.
HELENA
- Ou a mais cômoda.
SÉRGIO
- Não vá me dizer eu não desejava?
HELENA
- Não se trata de desejar.
SÉRGIO
- Você acha que poderiam ficar conosco?
HELENA
- Não.
SÉRGIO
- Então! É a melhor solução.
HELENA
- Leia o seu jornal.
NA ESCADA
NOÊMIA
- Zilda!
ZILDA
- Bom dia, tia Noêmia.
NOÊMIA
- Sua mãe já voltou?
ZILDA
- Não.
NOÊMIA
- Você sabe o telefone do Instituto?
ZILDA
- Acho que Lourdes sabe.
APARTAMENTO 4
SÉRGIO (Irritado)

55
- Vou sair.
HELENA
- Está tudo limpo, calmo, em ordem! Não era isto que exigia tanto?
APARTAMENTO 1
NOÊMIA
- Lourdes! Qual é o número do telefone do Instituto?
LOURDES
- Mamãe tem guardado. Um momento, tia Noêmia (Sai.)
APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- São sempre as mesmas notícias (Atira o jornal)
HELENA
- O que você não gosta mesmo é de ficar em casa.
APARTAMENTO 3
FRANCISCO (Abre a porta do apartamento)
- Noêmia! Noêmia!
APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- Vou tomar um drink.
HELENA
- Passarei a tarde com mamãe. Só venho à noite.
APARTAMENTO 1
LOURDES
- Deve ser este. Aconteceu alguma coisa?
NOÊMIA
- Não. Preciso falar com sua mãe.
(NOÊMIA SAI DO PRÉDIO. ZILDA ENCOSTA-SE À ESCADA, NO INSTANTE EM QUE
ENTRA OMAR.)
NA ESCADA
ZILDA
- Omar!
OMAR (Passando)
- Bom dia.
ZILDA
- Espere, Omar.
OMAR (Com relutância)
- Que é?
ZILDA
- Há tanto tempo que não nos vemos!
OMAR (Seco)
- Estive viajando.
ZILDA
- Onde foi?
OMAR
- Visitar meus pais. (Volta-se para sair)
ZILDA
- Tive saudades. (Omar pára) Sabe que entrei em seu apartamento?
OMAR
- Juca me contou.
ZILDA
- Coloquei flores no vaso... como naquele dia! Fiquei lá, imaginando que você entraria de
uma hora para outra.

56
OMAR (Volta-se, tentando fugir)
ZILDA
- Olhei suas roupas, limpei os móveis... alisei a cama.
OMAR (Excitado e irritado)
- Pare com isto, Zilda!
ZILDA
- Não acha que já me castigou bastante?
OMAR
- Não estou castigando ninguém.
ZILDA
- Este prédio, sem sua presença ficou insuportável.
OMAR
- Não pode dar certo, Zilda.
ZILDA
- Não pode, por quê? Por quê?
OMAR
- Por que não pode.
ZILDA
- Pensa que sou igual ao meu avô? Não sou a mesma que dizia amar?
OMAR
- Ninguém vive sem a família.
ZILDA
- Não vou me casar com a sua, como você não se casará com a minha.
OMAR
- E por que não? Não pertencemos a elas?
ZILDA
- Porque vamos formar a nossa.
OMAR (Desesperado)
- Você não vê que seu avô estragou tudo?
ZILDA
- Não tenho nada com os preconceitos de meu avô. Trabalho para viver. Minha mãe
costura, borda, faz tricô, cozinha, lava e passa. Todos lutam com dificuldade.
OMAR
- Mas continuam agarrados a coisas que para mim não têm o menor valor.
ZILDA
- Para mim também não.
OMAR
- Conheço os tipos da sua família. Ninguém sabe ofender como eles.
ZILDA
- Se agarram tanto ao passado, é porque ficaram à margem, não possuem mais nada. Será
que não pode entender?
OMAR
- Preconceito, intolerância... são coisas que ficam no sangue.

ZILDA
- E você? Não está com preconceito também?
OMAR
- Que preconceito?
ZILDA
- Acha humilhante ser descendente de negros?
OMAR
- Claro que não.

57
ZILDA
- Pois parece. Ficou tão ofendido! Só sabe falar em família.
OMAR (Pausa)
- Você viveria no meio de pessoas diferentes de sua gente?
ZILDA
- Por que não?
OMAR
- Sabe como chamam minha mãe? Mulata Quitéria, a doceira. Ela cozinha para banquetes.

ZILDA
- E a minha costura para os outros.
OMAR
- Meu pai é chofer de caminhão. São negros, mesmo! Já imaginou quantas vezes seu avô
iria me perguntar de quem o meu foi escravo?
ZILDA
- Responda de quem foi. E daí? Não descendo desta gente que escravizou a sua, e não
estou aqui pedindo que se case comigo? Se isto não representa nada, é porque é cego. A única
diferença que restou entre nós é a cor da pele. Nada mais. Não se esconda atrás dela, guardando
ressentimentos. Pensa que não sabia que descendia de negros... quando me entreguei a você? E que
diferença fez? Éramos apenas um homem e uma mulher naquela cama!
(VICENTE SAI NO HALL E OBSERVA ZILDA E OMAR, REFLETINDO NO ROSTO O
CONFLITO EM QUE OS DOIS ESTÃO ENVOLVIDOS.)
OMAR
- Zilda!
ZILDA
- Depois que fui sua... não posso ser de mais ninguém. Esqueça meu avô, meu nome, seu
sangue... barões e escravos! Não vê que tudo isto impede a gente de viver? (Subitamente, cai de
joelhos, abraçando as pernas de Omar) Case comigo! Vou viver com você... onde quiser.
(OMAR LEVANTA ZILDA, BEIJANDO-A. ZILDA SE ENTREGA, SOLUÇANDO. LOURDES
ENCOSTA-SE EM SUA MESA E, AMARGURADA, OLHA FIXAMENTE PARA FRENTE,
REVELANDO GRANDE SOLIDÃO.)
OMAR
- Zilda!
ZILDA
- Omar!
OMAR
- Tudo isto me fez sofrer.
ZILDA
- Quero viver... e só posso junto de você.
OMAR
- Desde aquele dia, na entrada do prédio percebi que tentava fugir do que sou. Parecia que
carregava em mim duas forças que queriam me destruir. Sentia-se como se tivesse atravessado uma
fronteira... num lugar sem nome, sem nada!
ZILDA
- A gente pode ser branco ou negro, sem que as portas nos sejam fechadas, Omar.
OMAR
- Depende das portas onde batermos.
ZILDA
- Abri-las, depende de nós.
OMAR
- A gente vive só!
ZILDA

58
- Por que nos fazemos sós.
OMAR (Observa seu braço)
- Debaixo da pela branca... é sangue negro que corre!
ZILDA
- Pois que seja negro! Sinta que pertence... não importa a que lado.
OMAR
- Venha.
(ZILDA E OMAR SOBEM A ESCADA ABRAÇADOS. VICENTE ENTRA EM SUA SALA E
FICA OLHANDO A MÁQUINA DE ESCREVER. SUBITAMENTE, SENTA-SE E COMEÇA A
ESCREVER , ANSIOSO E AFLITO, COMO SE QUISESSE REGISTRAR PENSAMENTOS.
DURANTE AS CENAS QUE SE SEGUEM, OUVIMOS O BARULHO DA MÁQUINA.
SÉRGIO APARECE JÁ VESTIDO.)
APARTAMENTO 4
SÉRGIO
- Vou ao bar do Jóquei. Fico por lá.
HELENA (Vira o balão, admirando-o)
SÉRGIO
- Ouviu?
HELENA
- Ouvi.
SÉRGIO
- Que foi que aconteceu a você?
HELENA
- Nada.
SÉRGIO
- Eu também sinto a ida de seus pais para o Instituto. Mas, aquele negócio de Bragança, da
Batalha de Guararapes... me irritava.
HELENA
- Eu compreendo.
SÉRGIO
- Não mudou de idéia?
HELENA
- Não.
SÉRGIO
- Até logo.
HELENA
- Até logo.
(SÉRGIO SAI E ENCONTRA-SE COM ZILDA E OMAR NA ESCADA. PASSAM SEM SE
CUMPRIMENTAR. ZILDA E OMAR DESAPARECEM NO TERCEIRO ANDAR. MARIA
CLARA E NOÊMIA ENTRAM NO HALL. LOURDES, COM CERTO ESFORÇO, SENTA-SE E
COMEÇA A TRABALHAR)
NO HALL
NOÊMIA
- Telefonei, mas você já havia saído.
MARIA CLARA (Calma)
- Pode ficar sossegada, Noêmia. Hoje vamos pôr um ponto final disto tudo.
(NOÊMIA SOBE A ESCADA, CRUZANDO COM SÉRGIO)
APARTAMENTO 2
MARIA CLARA
- Vicente! Vamos?
VICENTE
- Um momento. Izabel! Izabel!

59
IZABEL (Entrando)
- Fale baixo, Vicente. Assim você acorda Martiniano. Vão agora>
VICENTE
- Vamos.
IZABEL
- Quer que eu vá junto?
VICENTE
- Gostaria... mas e o filhote?
IZABEL
- Está dormindo.
VICENTE
- Não seria melhor esperarmos até amanhã, Maria Clara?
MARIA CLARA
- Não, Vicente. Vamos terminar com isto de uma vez.
IZABEL
- É melhor, meu bem.
VICENTE
- Pode ir, Maria Clara. Eu já vou.
NA ESCADA
HELENA
- Tudo pronto?
MARIA CLARA
- Tudo, vamos?
HELENA
- Vamos. (Sobem para o apartamento de Francisco)
APARTAMENTO 2
IZABEL
- Que é que você quer, Vicente?
VICENTE
- Não sei. Esqueci.
IZABEL
- É preciso pensar em Francisco. Ele não pode continuar assim!
VICENTE
- Eu sei.
IZABEL
- Venha! Maria Clara escolheu um bom apartamento. (Saem no hall)
VICENTE (Parando diante da escada)
- Izabel. Começo a compreender este prédio, a escada... tudo!
IZABEL
- Venha. Não pense nisto agora.
(VICENTE SOBE A ESCADA ACARICIANDO O CORRIMÃO, OLHANDO À SUA VOLTA,
ANSIOSO)
APARTAMENTO 3
HELENA (Entrando)
- O apartamento é confortável, Maria Clara?
MARIA CLARA
- É. Tem uma salinha muito bem arrumada, cozinha, banheiro... tudo. As casinhas são
distribuídas no meio do jardim. É como se vivessem em uma casa particular.
NOÊMIA
- Quem arruma?
MARIA CLARA
- As enfermeiras.

60
(VICENTE E IZABEL ENTRAM NO APARTAMENTO DE FRANCISCO, AO MESMO
TEMPO EM QUE ESTE APARECE SEGURANDO UMA PASTA. FRANCISCO DEBRUÇA-
SE SOBRE A MESA, AINDA EXAMINADO A PASTA. MARIA CLARA, HELENA, VICENTE,
IZABEL E NOÊMIA FORMAM UM BLOCO, OLHANDO FRANCISCO.)
FRANCISCO
- Maria Clara! Você sabe onde papai guardou o processo da demanda do barão? Já revirei...
(Pára, subitamente, olhando todos) Noêmia! Que malas são aquelas no quarto do papai?
NOÊMIA
- Seus pais vão embora hoje.
FRANCISCO
- Embora pra onde?
NOÊMIA
- Para o Instituto, Francisco. Já se esqueceu?
FRANCISCO
Quem disse que eles vão?
MARIA CLARA
- Eu.
FRANCISCO
- E eu digo que não vão.
HELENA
- Você não pode resolver isto sozinho.
FRANCISCO
- Posso. Sou o filho mais velho.

MARIA CLARA (Calma)


- São nossos pais também.
FRANCISCO
- Ninguém vai tirar os velhos da minha casa. Não quiseram ficar com eles... eu fico.
VICENTE
- Eles precisam ir, Francisco.
FRANCISCO
- Não vêem que isto é uma vergonha?
HELENA
- Vergonha por quê?
FRANCISCO
- Por que são nossos pais, sua egoísta.
NOÊMIA
- Francisco!
FRANCISCO
- Então, não prestamos para tomar conta de dois velhos, justamente quando mais precisam
de nós? Não vêem que... enquanto papai lutar por seus direito, pensar que vai ganhar a demanda...
sentirá que vive? Será alguém preso a um passado que foi grande! E nós não seremos gentinha que
não sabe de onde veio, que nunca teve nada.
MARIA CLARA
- Nunca tivemos, mesmo.
FRANCISCO
- Maria Clara! Tenho certeza de que ainda podemos ganhar a demanda.
NOÊMIA
- Por favor, Francisco! Esqueça isto!
FRANCISCO
- Se a gente achasse o processo como parecer do juiz, não precisaríamos interná-los.
MARIA CLARA

61
- Por que não?
FRANCISCO
- Alugaríamos um apartamento maior. Todos ficariam bem.
MARIA CLARA
- Mas não se trata de mais quartos, Francisco.

FRANCISCO
- Se exigirmos apenas os trinta alqueires...
MARIA CLARA
- Você pensa ganhar a demanda em alguns meses, quando papai levou mais de trinta anos
para obter apenas um parecer favorável?
HELENA
- Você nunca se importou com este processo. Por que isto agora?
FRANCISCO
- Até hoje papai não precisou de mim. Vocês sabem como esconde os negócios dele. Mas,
agora... se não tomar a iniciativa, tudo ficará perdido. Trinta anos de espera!
NOÊMIA
- Nós vivíamos tão bem, Francisco! Não precisamos do Brás.
MARIA CLARA
- Francisco! É preciso pensar nos outros também. Você tem mulher e filho.
HELENA
- Saber que estão internados no Instituto não é nenhuma vergonha.

FRANCISCO
- Para nós, é. Que vão dizer os parentes, os amigos?
MARIA CLARA
- Vergonha é abandonar emprego, esquecer da família... pôr o nosso orgulho acima de tudo.
Basta o que papai fez a família dele passar, por causa dessa demanda. Não faça o mesmo com a sua,
Francisco!
FRANCISCO
- Que é que tem a minha família?
MARIA CLARA
- Seu filho foi reprovado e você nem toma conhecimento. Noêmia está sofrendo, e você
agarrado a esses papéis que já deviam estar no lixo.
FRANCISCO
- Acho melhor vocês se preocupar com sua filha.
MARIA CLARA
- Que que tem minha filha?
FRANCISCO
- O prédio inteiro sabe das malcriações que Zilda faz para papai. E por quê? Porque
resolver se casar com um tipinho sem eira nem beira, cujo avô foi o último escravo a apanhar em
praça pública.
MARIA CLARA
- É um moço direito e trabalhador.
FRANCISCO
- Zilda vive se esfregando com esse Omar pelos corredores e na escada, como se fosse...
MARIA CLARA
- Não se atreva a falar de minha filha! Não permitirei que faça com ela o mesmo que fez
com Lourdes. Pode ser que seja mulato, mas é de quem ela gosta.
FRANCISCO
- Que foi que fiz com Lourdes?
MARIA CLARA

62
- Você e papai atormentaram a coitada, só porque ficou noiva de um italiano. (Gesto de
Francisco) Está certo! Eu permiti. Não tinha marido, vocês se intitulavam chefes da minha casa.
Mas, foram vocês que fizeram de minha filha o que ela é hoje. Não vou deixar que façam o mesmo
com Zilda.
FRANCISCO
- Era um imigrante de brinco na orelha! Passageiro de terceira classe! Mais um tirador de
sorte!

MARIA CLARA
- Quem é que você pensa que é?
FRANCISCO
- Somos descendentes de Fernão Dias; netos de barões!
MARIA CLARA
- Netos de barões... decadentes.
FRANCISCO
- Aí é que está a diferença entre nós: não sinto nenhuma decadência porque só dou valor a
meu nome. Você sente, porque fez toda sorte de concessões às suas filhas. E que concessões!
MARIA CLARA
- Se você der dez passos na rua, Francisco, todas as pessoas que encontrar nunca ouviram
falar em você e em nosso nome muito menos. E nosso barões estão no cemitério há muito tempo.
Existem seis milhões de pessoas nesta cidade! Nunca pensou nisto? Seis milhões que nos ignoram!
FRANCISCO
- Por isto mesmo precisamos ganhar a demanda. Se papai lembrasse onde pôs o processo...
MARIA CLARA
- Eu queimei. (Pausa) Eu queimei o processo.
FRANCISCO
- O processo com o parecer do juiz?
MARIA CLARA
- Isto mesmo. Não passava de papéis inúteis, como esse. Recortes de jornais do século
passado, pareceres comprados... um amontoado de documentos sem valor que acabaram destruindo
papai.
FRANCISCO
- Quando? Quando, Maria Calara?
MARIA CLARA
- No dia em que fomos ao Fórum, quando papai depôs. Tirei o processo e queimei.
Queimei também os títulos.
FRANCISCO
- Você está mentindo! Diga que é mentira, Maria Clara!
MARIA CLARA
- Eu queimei mesmo. E sabe pro quê? Você não viu papai subindo as escadas do Fórum.
Mas, eu e Helena vimos. Você não viu a vergonha que ele sentia. E o medo! Mal podia levantar os
olhos para mim, enquanto subia as escadas. Perguntava de minuto a minuto o que se passava.
(VICENTE, SEGURO POR IZABEL, VAI SE AFASTANDO, REVELANDO UMA GRANDE
DOR.)
MARIA CLARA
- Eu e Helena vimos... papai parado no meio da sala, respondendo a perguntas horrorosas.
Lá!... no meio de falsificadores, ladroes e prostitutas! Isso, sim é que é vergonha. Depois de toda
aquela humilhação, a dois passos do Fórum, papai começou a repetir as mesmas coisas, como se
tudo fosse recomeçar. Queimei! Queimei, sim!
FRANCISCO (Desesperado)
- Você está mentindo!
MARIA CLARA

63
- Era a única maneira de acabar com esta maldita demanda que nos fez sofrer a vida inteira.
FRANCISCO
- Você destruiu tudo!
MARIA CLARA
- Fiquei viúva. Trabalhei noite e dia. Criei minhas filhas com o suor do rosto. Não quero
mais ouvir falar no que fomos, em barões e bandeirantes.
FRANCISCO (Possesso)
- Papai tinha direito.
MARIA CLARA
- Vicente tem razão...
FRANCISCO
- A chácara era dele.
MARIA CLARA
- ... arranque este peso das costas...
NOÊMIA
- Não, Francisco!
MARIA CLARA
- ... e tenha coragem de ser você mesmo.
NOÊMIA (Agarrada em Francisco)
- Pelo amor de Deus
FRANCISCO
- Largue-me, Noêmia!
MARIA CLARA (Descontrolada)
- Não temos mais nenhuma importância.
IZABEL
- Vicente! (Abraça-o) Vicente!
VICENTE (No auge do sofrimento, cobre o rosto com as mãos)
MARIA CLARA
- Somos como qualquer um, nem piores nem melhores do que mulatos ou italianos.
HELENA
- Maria Calara! Maria Clara!
FRANCISCO (Dá uma bofetada em Maria Clara. Pausa longa)
MARIA CLARA
- Você não tem pena deles, Francisco. Não viu papai sozinho no Fórum. Você não vê que
esses papéis nunca valeram nada? Que foram eles que nos destruíram? Ensine seu filho a viver no
mundo de hoje, a ser ele mesmo! Eu também queria que papai fosse considerado. Mas, não é mais.
Ninguém tem culpa, Francisco.
FRANCISCO
- Maria Clara!
(MARIA CLARA E FRANCISCO SE ABRAÇAM. NESTE INSTANTE A PORTA DO QUARTO
SE ABRE E ANTENOR E AMÉLIA ENTRAM.)
AMÉLIA
- Está na hora, Maria Clara?

MARIA CLARA (Com grande esforço)


- Está sim, mamãe!
AMÉLIA
- Que bom! Vamos Antenor!
ANTENOR
- Estou indo. Estou indo, Melica. (Volta-se para Helena) Onde vai?
HELENA
- Acompanhar...

64
ANTENOR
- Helena Fausta! Pelo menos na escada gostamos de ficar a sós. Que mania de espionar!
(ANTENOR E AMÉLIA SAEM. DURANTE UMA PAUSA LONGA, OS FILHOS FICAM
PARADOS, IMÓVEIS. JUCA, CARREGANDO A VASSOURA E O BALDE, SOBE A ESCADA)
NA ESCADA
AMÉLIA
- Trouxe os documentos, Antenor?

ANTENOR
- Claro, Melica.
AMÉLIA
- Não digo os papéis.
ANTENOR
- Sim, os documentos.
AMÉLIA
- Você anda tão esquecido!
ANTENOR
- Ando coisa nenhuma.
JUCA
- Bom dia, seu Antenor. Bom dia, dona Amélia.
AMÉLIA
- Bom dia.
ANTENOR
- Ahaa! Bom dia.

JUCA
- Já vão?
ANTENOR
- Já. Cansei de falar pra mudarem daqui. Não quiseram. Eu e Melica mudamo-nos.
AMÉLIA
- Vamos para o nosso apartamento. É um lugar agradável, muito distinto!
JUCA
- A senhora já conhece?
AMÉLIA
- Não. Mas deve ser distinto.
ANTENOR (Olha fixamente Juca)
- O senhor sabe que já andei de bangüê?
JUCA
- Não!
ANTENOR
- Pois, já andei. De bangüê, de trole, carro de boi, carro de dois cavalos, tíburi, automóvel,
trem e até de avião. (Antenor e Amélia desaparecem no patamar de cima. Juca fica parando,
ouvindo a voz de Antenor) Conheci de tudo nesta vida. Fui camarista, amigo, primo, sobrinho neto
de barão. Até revolucionário! (A voz vai sumindo) O que não fui na vida! Só não fui ladrão; o resto
eu fui.
(JUCA PEGA O BALDO, A VASSOURA, DESCE A ESCADA E DESAPARECE.)
APARTAMENTO 3
NOÊMIA
- Venha, Francisco! Precisamos levar seus pais.
HELENA
- Não chore, Maria Clara. Venha! Vamos ajudá-los.

65
(FRANCISCO, NOÊMIA, MARIA CLARA E HELENA DESAPARECEM NO
APARTAMENTO. VICENTE DESCE A ESCADA E VAI PARAR NO PATAMAR. IZABEL
ACOMPANHA-O)
NA ESCADA
VICENTE
- O passado é um monstro, Izabel!
IZABEL
- Vicente! Não fique assim. não é só você que tem pais que criam problemas.
VICENTE (Amargurado)
- Para terminar assim...! num prédio como este e num asilo.
IZABEL
- Mas nós estamos começando, Vicente. Não se esqueça. Isto, sim, é importante. Você vive
dizendo que gostaria de escrever sobre a vizinha; que só retratando a nossa rua, este prédio... poderá
ser compreendido em qualquer parte, não é assim?
VICENTE (Olha à sua volta, perdido)
- É.
IZABEL
- Então, o que espera? Pensa que é só nós que carregamos velhos? Olhe à sua volta e
escreva.
VICENTE
- E não é o que estou tentando?
IZABEL
- A peça sobre Fernão Dias está parada há um não. A que pretendia escrever sobre as
confrarias de Ouro Preto, ficou apenas na intenção. Em vez de sofrer pelo passado, use-o para se
realizar. Ele não está contido no presente de todo mundo? Pegue essa gente, barões ou não, e jogue
no palco. É uma boa maneira de se libertar.
VICENTE
- Será que estou querendo me libertar?
IZABEL (Firme)
- Você não é o Francisco... e vai realizar o que se propôs.
VICENTE (Examina Izabel)
- Como foi que descobri você?
IZABEL
- Comendo um churrasco.
VICENTE (Evocativo)
- Seus olhos não me largavam!
IZABEL
- E os seus não se prendiam a nada. Pensei: todo mundo está alegre e ele não se dá conta.
Estou aqui e não me vê. Que desaforo!
VICENTE
- Eu estava preocupado.
IZABEL
- Está vendo? Sentei-me a seu lado, à sua frente, falei alto, ri, dei cada direta... e foi só no
fim da festa que me tirou para dançar.
VICENTE
- Foi assim?
IZABEL
- Veja o que ia perdendo.
VICENTE
- Não sei o que teria sido de mim se não a tivesse encontrado.
IZABEL

66
- É melhor dizer... se não tivesse encontrado o teatro. Venha. Vamos levar seus pais. (Pára e
sorri) Seu pai vive contando estórias que são de vocês. Estórias lindas! Não acha que muita gente
gostaria de conhecer? (Saindo abraçada a Vicente) Lembra-se do italiano rico que comprou os ossos
de um antepassado de vocês...?
(VICENTE E IZABEL SAEM DO PATAMAR DE CIMA. AO MESMO TEMPO, ANTENOR E
AMÉLIA SURGEM NO PATAMAR DE BAIXO.)
ANTENOR
- O barão de Jaraguá tinha uma língua de fogo! Casou-se com a sobrinha. Naquele tempo
eram permitidos casamentos assim.
AMÉLIA
- Era primo-irmão de minha avó materna...e tio do meu avô paterno.
ANTENOR
- Sobrinho do meu bisavô e, ai mesmo tempo, tio de minha avó materna.
AMÉLIA
- Era um homem muito honesto! Muito respeitado!
ANTENOR
- Também, naquele tempo, era o que existia. Vendia-se sem letra, sem nada! Até na Europa
a gente mandava comprar tudo de boca. Comprei muita camisa em Paris. Muito vinho na Espanha.
AMÉLIA
- Mandavam lavar as roupas em Portugal.
ANTENOR
- Depois que entraram os turcos é que tudo modificou.
AMÉLIA
- Havia muito crédito pessoal.
ANTENOR
- O mundo mudou muito! Até a Rua do Imperador desapareceu! Era o ponto de prosa!
Vinte, trinta pessoa proseando e tomando café! Que vida boa!
AMÉLIA
- As famílias tinham lugar certo pra sentar!
ANTENOR
- O imperador sempre proibiu a entrada, no país, de orientais. Pelo menos nisto ele foi
bom.
AMÉLIA
- Visitava-se mais!
ANTENOR
- Da minha idade, acho que só existem dois: o Botelho e o Pacheco.
AMÉLIA
- E o Senador Jaguaribe.
ANTENOR
- Morreu há muito tempo, Melica!
AMÉLIA
- Morreu? Não sabia!
(ANTENOR SEGURA A MÃO DE AMÉLIA E DESCE O ÚLTIMO LANCE DE ESCADA.
MARIA CLARA, HELENA, FRANCISCO E NOÊMIA SAEM DO APARTAMENTO
CARREGANDO AS MALAS E VÃO PARAR NO PATAMAR DE CIMA. VICENTE E IZABEL
PARAM NO PATAMAR DE BAIXO. OBSERVAM ANTENOR E AMÉLIA COM GRANDE
TRISTEZA.)

ANTENOR
- Sabe, Melica? Só aqui na capital eu tenho sete lugares para ser enterrado.
AMÉLIA
- Que bom, Antenor!

67
ANTENOR
- Em Itu, onde nasci, posso fechar os olhos, entrar no cemitério e onde encostar a mão...
posso deitar que é parente meu. (Pequena pausa) É pra lá que quero ir.
AMÉLIA
- Prefiro o Cemitério da Consolação.
ANTENOR (Carinhoso)
- Você gosta de em contrariar, hein, Melica?
AMÉLIA
- Prefiro mesmo. O túmulo de papai está num lugar pitoresco. A vista é linda. Uma
vizinhança boa, tão distinta!
ANTENOR (Evocação carinhosa)
- Um dos túmulos mais bonitos que conheço é o do primo Alexandre. Um fuzil, um
capacete, a bandeira paulista e a estátua de um mulher apontando: “Veio do chão paulista, por ele
tombou e para ele voltou!”
AMÉLIA (Ranzinza)
- Prefiro o do barão de Jaraguá.
ANTENOR
- Ora, Melica!
AMÉLIA
- Lembra a capela da fazenda de meu avô. As grinaldas de pedra unindo as gavetas; os
anjos debruçados sobre elas como se fosse abrir; os nomes, as datas, as inscrições...! É um
verdadeiro livro de história, Antenor.
ANTENOR (irritado)
- Gosto de túmulo em cemitério, onde a gente pode visitar. Não na casa de um italianinho
qualquer.
AMÉLIA (Pensativa)
- Nunca descobri quem é a mulher que aponta o chão. Tem um olhar tão estranho!
ANTENOR (Pausa. Perdido)
- É muito difícil morrer.
AMÉLIA
- Podia ser tão mais rápido!

ANTENOR
- Tenho a impressão de ter passado a vida morrendo.
AMÉLIA
- Claro, Antenor. Todo mundo morre aos poucos.
ANTENOR
- Ainda tenho muito o que fazer.
AMÉLIA
- Mamãe, que não fez grande coisa aqui na terra, devia se mexer lá no céu.
ANTENOR
- Pra quê?
AMÉLIA
- Podia falar com Santa Marta, dar um jeito pra você ganhar logo a demanda do barão.
ANTENOR
- Não preciso de interferência divina.
AMÉLIA
- Assim, andava mais depressa, Antenor.
ANTENOR
- Tem tempo. Tem tempo.
AMÉLIA
- Foi adulada a vida inteira. Não perderia nada em trabalhar um pouco. Assim penso eu.

68
(RICARDO ENTRA ASSOBIANDO. OS FILHOS DESCEM A ESCADA E PARAM NO
ÚLTIMO LANCE, FORMANDO, COM ANTENOR E AMÉLIA, EM PRIMEIRO PLANO, UM
QUADRO DE FAMÍLIA.)
RICARDO
- Já vão?
ANTENOR
- Já. Onde foi?
RICARDO
- Ao cinema.
ANTENOR
- Bom o filme?
RICARDO
- Um sarro! Foguetes, massacres, gente nua pra todo lado. Bacana pra
valer.
ANTENOR
- Depois de “E o Vento Levou” não fizeram mais nada que prestasse. Assisti dez vezes.
RICARDO
- Puxa! Bom. Até logo, vovô. (Sai)
ANTENOR
- Ricardo! Ricardo!
RICARDO
- Que é?
ANTENOR
- Aposto que não sabe de uma coisa?
RICARDO
- O quê?
ANTENOR
- Qual foi o homem que não quis ser rei?
RICARDO
- Ah! Vovô! Esta é canja. Armador Bueno.
ANTENOR
- Era tonto, não era? Todo mundo briga pra ser rei, e ele correu pra se esconder. Se não
fosse ele, tudo teria sido diferente!
(RICARDO SOBE A ESCADA, DESAPARECENDO EM SEU APARTAMENTO. ANTENOR
TIRA O RELÓGIO, MARIA CLARA ADIANTA-SE.)
MARIA CLARA
- Vamos?
ANTENOR (Volta-se)
- Onde vão?
MARIA CLARA
- Levar o senhor.
ANTENOR
- Não precisa. Vamos sozinhos, não é, Melica?
AMÉLIA
- Isso mesmo, minha filha. Não se incomodem.
MARIA CLARA
- Ora, mamãe!
ANTENOR (Adianta-se com Amélia. Abaixa a voz)
- Esse povo de hoje gosta de espionar.
AMÉLIA (Olha o hall)
- Não varrem nunca esta casa!
ANTENOR (Anda e pára)

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- Você passava pela rua e ouvia: Senhor Conde! Senhor Conde! Senhor Conde!
(ANTENOR E AMÉLIA CAMINHAM EM DIREÇÃO DA SAÍDA. TODOS OS
APARTAMENTOS ESTÃO EM PENUMBRA, SÓ ESTÁ ILUMINADA A ESCADA. MARIA
CLARA, HELENA, FRANCISCO, NOÊMIA, VICENTE E IZABEL, IMÓVEIS, OLHAM
FIXAMENTE PARA OS VELHOS, REVELANDO UMA GRANDE ANGÚSTIA.)

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