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CONTOS DE BATMAN

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Volume 3

Digitalização e revisão:
ÐØØM™ SCANS

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CONTOS DE BATMAN
VOLUME 3

BATMAN, O CORINGA e todos os personagens contidos neste livro,


seus slogans e equipamentos são marcas registradas da DC Co-
mics, lnc. Todos os direitos reservados.
Copyright © 1994 DC Comics, Inc.

Textos: Stuart M. Kaminsky, Edward D. Hoch,


Isaac Asimov, Karen Haber, Robert Silverberg,
Henry Slesar, Edward Wellen
Edição: Martin H, Greenberg

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida por


nenhuma forma ou meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocó-
pia, gravação, armazenagem de informações ou sistema de recupe-
ração de dados, sem permissão por escrito do editor.

ISBN 85-7305-081-0

Abril Jovem

Publicado pela Editora Abril Jovem S.A.


Rua Bela Cintra, 299, CEP 01415-000,
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Fundador: VICTOR CIVITA (1907-1990)
Impresso na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.
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Sumário

OS MEMORANDOS DE BATMAN
STUART M. KAMINSKY
PÁGINA 05

O PIRATA DA BAÍA DOS MILIONÁRIOS


EDWARD D. HOCH
PÁGINA 27

RUMO AO NOROESTE
(OS VIÚVAS NEGRAS N° 61)
ISAAC ASIMOV
PÁGINA 55

BATMAN NA NOITE DE GOTHAM


KAREN HABER E ROBERT SILVERBERG
PÁGINA 86

BATMALUCO
HENRY SLESAR
PÁGINA 126

SÁBIOS DE GOTHAM
EDWARD WELLEN
PÁGINA 173

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Os Memorandos de Batman
STUART M. KAMINSKY
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MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Todos os executivos, Selznick
International Studios
DATA: 14 de dezembro de 1942

Os projetos de E o Vento Levou e Rebeca


estão muito devagar. Quero, imediatamente,
relatórios sobre a situação de cada um deles.
Já conseguimos os direitos de Mein Kampf ? E
aquela história de terror? Ben Hecht está tra-
balhando nela? E o tal caso do Batman, que
discutimos na reunião de sexta-feira? É verda-
de ou é alguma brincadeira? Harry, e os direi-
tos? Walter já voltou de Gotham City? Trouxe
os recortes? Ed acha que Errol Flynn gostaria
de interpretar o Batman, mas isso implica uma
negociação com a Warners, e eles podem pe-
dir demais. Vamos cuidar disso antes que a
MGM passe na nossa frente. Fleming gostaria
de dirigir o filme, mas acho que é um projeto
para Woody Van Dyke, o que significa outra
negociação com a MGM. Ivan, onde está o re-

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latório sobre Joan Teel? Sua equipe a encon-
trou? Faltam quatro semanas para terminar as
filmagens do filme de Leslie Howard. Jess dis-
se que ela ainda tem que filmar duas cenas.
Se não a encontrarem, teremos que fazer uma
modificação rápida no roteiro. Alguém já pro-
curou a polícia? Ivan, se não a encontrar até o
dia seis, procure Murchison, no Departamento
de Polícia de Los Angeles, e peça que ele faça
uma investigação discreta. Será que deve
mesmo ser discreta? O que o Departamento
de Publicidade acha de deixar essa informação
vazar para a imprensa? Boa promoção para o
filme de Howard ou é de mau gosto? Quero
retorno sobre isso. Como vai indo a mudança
de nome de Phyllis Walker?

MEMO PARA: David O, Selznick


DE: Walter Schlect, Departamento de
Novos Projetos e Direitos Cinematográfi-
cos
DATA: 17 de dezembro de 1942

O Batman é real. Conversei com Gordon, o


comissário de polícia de Gotham City, que fa-
lou muito bem sobre o cara. Ele sugeriu que

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eu falasse com Bruce Wayne, um empresário
influente da sociedade local. Ele atua no ramo
têxtil, no ramo da construção civil... Herdou
uma fortuna e mantém seus investimentos na
cidade. Wayne é um pouco antipático, mora
com um garoto de uns dezesseis anos, seu
“tutelado”. A coisa me pareceu um pouco es-
tranha... mas aquela cidade inteira é estranha.
Wayne diz que pode entrar em contato com
Batman, que Batman pode até deixar que ele
o represente. Wayne não pareceu muito inte-
ressado na coisa toda, mas disse que está dis-
posto a conversar. Anexei algumas fotos de
jornal, do Batman e do seu amiguinho Robin.
Não consegui nenhuma foto colorida, mas pedi
a Sheila, do Departamento de Artes, que apli-
casse cor nas que temos. Também pedi ao dr.
Benjamin Pinesett, da Universidade da Califór-
nia, que enviasse um perfil psicológico do Bat-
man, baseado em entrevistas e recortes de
jornal. Mandei o relatório das despesas refe-
rentes à viagem e ao perfil psicológico para o
meu departamento. Anexei uma cópia desse
relatório.

MEMO PARA: David O. Selznick

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DE: Ivan O’Connor, Segurança
DATA: 3 de janeiro de 1943

Nenhuma novidade sobre Joan Teel. Exami-


namos o apartamento dela e, ao que tudo in-
dica, não se mudou. As roupas ainda estão no
armário, a comida na geladeira. Conversei com
o tenente Murchison, do Departamento de Po-
lícia de Los Angeles, como você pediu. Ele está
investigando.

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Benjamin Pinesett, M.D., Ph.D.
Professor de Psiquiatria Universidade da
Califórnia, Los Angeles
DATA: 4 de janeiro de 1943

A pedido do sr. Walter Schlect, de seu De-


partamento de Novos Projetos, e baseado em
(a) informações biográficas, (b) recortes de
jornais e revistas, (c) fotografias e (d) transcri-
ções de entrevistas, tudo fornecido pelo sr.
Schlect, posso esboçar algumas conclusões
provisórias sobre Batman. Gostaria de conver-
sar com ele, se ele estiver disponível, para um
estudo mais conclusivo. Neste caso, cobraria

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meus honorários normais. Como vai perceber,
o recibo em anexo leva em conta que (a) o sr.
Schlect pediu o relatório com urgência, (b) in-
sistiu para que não passasse de três páginas.
Portanto, trabalhei nele durante os feriados de
fim de ano. Incluí também algumas observa-
ções sobre o desaparecimento de Joan Teel,
que o sr. Schlect mencionou. Ele me forneceu
informações biográficas sobre a moça e o rela-
tório de um detetive particular sobre seu desa-
parecimento.
Sobre Batman, minha opinião é de que es-
tamos lidando com um caso de fixação infantil
combinada a um complexo messiânico. As
duas coisas muitas vezes vêm juntas, como
comprova a experiência que temos — o senhor
e eu — com atores. Seja quem for esse ho-
mem, ele só se realiza quando usa uma fanta-
sia de Dia das Bruxas. Felizmente, essa neces-
sidade de esconder sua identidade atrás de
uma fantasia é combinada com a convicção de
que sua intervenção é necessária para prote-
ger Gotham dos criminosos. Digo “felizmente”
porque, sob outras circunstâncias, um homem
assim poderia muito bem se tornar um travesti
ou entrar para a Ku Klux Klan. Numa perspec-
tiva mais favorável, ele poderia entrar para

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uma organização que lhe permitisse usar um
uniforme: a polícia, os correios, o serviço de
saúde. No entanto, essas instituições não lhe
permitiriam ocultar sua identidade. Em termos
leigos, evidente que esse homem é mental-
mente desequilibrado. O que me incomoda é
que toda a comunidade de Gotham City, inclu-
indo o comissário de polícia, aceita e apoia
esse delírio. Permitem que Batman se sinta
acima da lei e oferecem apoio estruturado
para a sua ilusão de onipotência. É possível
que essa personalidade tão instável passe a
não fazer mais a distinção entre o bem e o
mal. Sem terapia e acompanhamento, eu diria
que uma internação é inevitável. O que me in-
comoda ainda mais é o fato de ele ter incluído
um garoto nessa sua ilusão. É provável que tal
rapaz já esteja vivenciando essa influência ne-
gativa.
Observe que Batman usa roupa escura, de
um morcego, uma criatura da noite. Observe,
também, a composição da roupa: o capuz pa-
rece um capacete, simbologia fálica inegável.
Contrastando, Robin é identificado com um
pássaro vulnerável, um pássaro de cores cla-
ras. A relação é perigosa.
Minha recomendação é evitar qualquer ne-

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gociação com esse homem. Pode-se apenas
aconselhá-lo a buscar ajuda profissional, o que
ele dificilmente vai aceitar.
Quanto a Joan Teel, sugiro que telefonem
para seus pais, em Dixon, Illinois. Não é inco-
mum que uma garota de vinte anos, sempre
protegida, sustentada e elogiada pelos pais e
pelos que a cercavam, ache que a pressão é
grande demais e simplesmente queira voltar
para o “útero”.

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Walter Schlect, Departamento
de Novos Projetos e Direitos Cinemato-
gráficos
DATA: 7 de janeiro de 1943

As pessoas estão morrendo pelo mundo.


Acho que um herói messiânico seria bom para
elas. Seria bom para o país inteiro, pois preen-
che as nossas necessidades emocionais, sem
mencionar as físicas. Telefonei para Bruce
Wayne, em Gotham City, e lhe disse a mesma
coisa. Acho que o convenci, e ele está disposto
a vir a Los Angeles para discutir o projeto, tra-
zendo uma carta de autorização do Batman.

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Wayne também demonstrou interesse em in-
vestir no projeto e cooperar como consultor.
Danny falou com Errol Flynn. Ele definitiva-
mente está interessado. Não sei qual é a me-
lhor alternativa. Gable é exclusivo do Exército.
Ty Power é exclusivo da Marinha. Hank Fonda
se engajou na Marinha e Van Heflin acabou de
ser convocado.

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Ivan O’Connor, Segurança
DATA: 7 de janeiro de 1943

Joan Teel não voltou para Illinois. O tenen-


te Murchison, da Polícia de Los Angeles, está
investigando as amigas, os amigos. Até agora,
nada. Pode ser um caso delicado. A busca en-
tre pessoas não identificadas em hospitais e
necrotérios também foi em vão.

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Harlan Turbekian, Escritório de
Advocacia Turbekian, Zimmer e Kitt
DATA: 8 de janeiro de 1943

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Teremos que ser cuidadosos neste caso.
Não estou certo de que a assinatura “Batman”
num contrato tenha valor legal, pois, presumi-
mos, Batman tem outra identidade. Pesquisa-
mos sobre Bruce Wayne, de Gotham City. Ele
é, de fato, um homem com patrimônio sólido
e, aparentemente, íntegro. Apesar de seus in-
teresses financeiros consideráveis, nunca hou-
ve nada contra ele ou contra suas empresas.
Se Wayne está disposto a assinar um contrato
ou carta de indenização assumindo total res-
ponsabilidade, Batman não terá como contes-
tar qualquer filme, livro, peça ou roteiro base-
ado em suas aventuras. Achamos que é segu-
ro continuar com as negociações. Também
achamos que, no caso de algum litígio, a Selz-
nick International pode alegar que as aventu-
ras de Batman são de domínio público. Nesse
caso, no entanto, você pode ser obrigado a
apresentar alguma aventura da vida de Bat-
man tirada de jornais ou outras fontes, em vez
de criar um filme de ficção. Ross Zimmer e eu
estaremos disponíveis a partir de sexta-feira
para conversarmos mais sobre isso.
Quanto ao desaparecimento de Joan Teel,
seja por escolha própria, por “obra de Deus”
ou outras circunstâncias, desobriga a Selznick

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International de qualquer encargo financeiro,
caso você decida substituí-la ou alterar o rotei-
ro. A situação é muito semelhante ao caso
Warner Brothers/Bette Davis no ano passado.

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Myron Selznick
DATA: 10 de janeiro de 1943

Continue a negociar a participação de Flynn


no filme de Batman. Acabei de me encontrar
com Bruce Wayne. Como a maioria dos ho-
mens de negócios bem-sucedidos, ele enxerga
tanto quanto nosso pai. Parece possuir um se-
gredo que o coloca acima do resto do mundo.
Por mim, está tudo bem. Ele trouxe uma carta
de autorização do Batman, que mandei para
Turbekian. Mas, algo estranho: Wayne quer
que o roteiro seja aprovado pelo Batman. Não
gostei disso, só não vejo como evitar. Acho
que dá para levar. Vamos ver se Ben Hecht co-
meça a trabalhar imediatamente num argu-
mento e num roteiro. Mantenha os custos bai-
xos. Caso Wayne não aprove, seremos obriga-
dos a desistir. Isso significa que, por enquanto,
Flynn não deve assinar nada. Mas fale seria-

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mente com ele. Que tal Thomas Mitchell para
fazer o papel de comissário de polícia? Vilões:
Alan Hale, Basil Rathbone? Caso amoroso...
isso é difícil. Com quem Flynn quer trabalhar?
Não precisamos de uma grande estrela, mas
gostaria de Lana Turner, Ida Lupino ou Phyllis
Walker. Que tal Jennifer Jones como o novo
nome de Walker?
Quero pedir um favor. Dá para conseguir
uma colocação para Alice Feigner em seu es-
critório? Ela é uma boa funcionária, boa datilo-
grafa, mas pouco brilhante. Ela entrou apres-
sada em meu escritório quando Wayne estava
lá e disse que uma pessoa, ao telefone, afir-
mava ter sequestrado Joan Teel. Fosse quem
fosse, desligou antes que eu atendesse. Tive
que contar a Wayne sobre o caso. Ele pareceu
interessado, mas continuamos as negociações.
Não houve maiores problemas, mas gostaria
de conseguir uma colocação para Alice que
exija menos sutileza.

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Ivan O’Connor, Segurança
DATA: 14 de janeiro de 1943

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O caso Teel está saindo do controle. Como
você sabe, recebi dois telefonemas de um ho-
mem que afirma ter sequestrado Joan Teel.
Ele pôs na linha uma mulher que chorava e di-
zia ser Teel. Não sei se era. Desde que falei
com você, discuti a situação com nossos advo-
gados. Há várias possibilidades. Teel pode fa-
zer parte dessa tentativa de extorquir dinheiro
da empresa. Não é provável, mas sabemos de
casos em que pessoas normalmente decentes,
seduzidas pelo amor, sexo ou desequilíbrio
emocional, fazem coisas que normalmente não
fariam. Esse é o argumento básico da metade
dos filmes produzidos pela Warner Brothers.
Se a ameaça for verdadeira, é de alguém que
não conhece a indústria do cinema. Ele parece
acreditar que vamos dispor de milhões para
Teel voltar ao filme de Howard. Eu não o desi-
ludi. Ele quer cento e cinquenta mil dólares.
Não vejo como deixar de pagar. Fique à vonta-
de para discutir o caso com o tenente Murchi-
son e me dê um retorno à tarde. Estou em
reunião, mande um memorando.
Mais uma coisa. Vamos dispensar os servi-
ços do dr. Pinesett. Seus honorários são altos
demais e seus conselhos estão tão distantes
do caso quanto Tojo está de Washington.

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Carta para David O. Selznick
De Bruce Wayne, Hotel Beverly Hills
15 de janeiro de 1943

Caro Sr. Selznick:


Foi um prazer conhecê-lo. Como disse, ad-
miro seu trabalho e gosto especialmente de E
o Vento Levou. Foi muito gentil em enviar a
encantadora senhorita DeHavilland para me
dar assistência. Decidi ficar em Los Angeles
por algum tempo tratando de negócios. Pode
me encontrar aqui. Talvez Batman também ve-
nha para cá. Contei a ele o caso da jovem atriz
desaparecida, e ele, assim como eu, ficou pre-
ocupado e ofereceu seus serviços, se forem
necessários.
Falei com meus advogados e dei ordens
para que preparem um contrato de indeniza-
ção, como me pediu. Fique tranquilo, pois não
me senti nem um pouco ofendido com seu pe-
dido. Ao contrário, considero isso uma prática
comum numa negociação séria.
Espero ter notícias em breve.
Cordialmente,
Bruce Wayne

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RELATÓRIO PARA: David O. Selznick
DE: Tenente Tom Murchison, Departa-
mento de Polícia de Los Angeles
DATA: 19 de janeiro de 1943

Ivan O’Connor me falou sobre seu plano de


pagar cento e cinquenta mil dólares para os
supostos sequestradores de Joan Teel. Acho
que cometerá um erro. Nem sabemos, com
certeza, se ela foi sequestrada. Meu conselho
é ir protelando e depois armar um encontro
com os supostos sequestradores. Eu e meus
homens chegaríamos antes ao local. A decisão
é sua, mas acho que as chances de encontrar
a senhorita Teel serão maiores se agirmos, em
vez de ficarmos dependendo da boa vontade
de sequestradores.
Você sabe que a situação ficou mais com-
plicada desde que algumas testemunhas disse-
ram ter visto, ontem à noite, um homem vesti-
do “como um guarda-chuva preto” no prédio
onde mora a senhorita Teel. O zelador jura
que o homem, usando um capuz preto e asas
pretas, saiu do apartamento dela. Não é a fan-
tasia mais estranha que já vi nesta cidade, nos

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últimos trinta anos, mas ganha da roupa de
aniversário de Barrymore, com cartola e tudo.
Tentei telefonar, mas não consegui. Gosta-
ria de que destruísse esta carta assim que a
ler.
Cordialmente,
Tenente Tom Murchison Departamento de
Polícia de Los Angeles

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Ivan O’Connor, Segurança
DATA: 19 de janeiro de 1943

O caso Teel está tomando tempo demais,


meu e do estúdio. Estou preocupado com a
segurança da senhorita Teel. Você e o tenente
Murchison progrediram tão pouco! Estou dis-
posto a aceitar seu conselho e não deixar que
Murchison prepare uma armadilha para os se-
questradores quando o dinheiro for entregue.
Mas estou preocupado com o fato dos seques-
tradores exigirem que eu entregue pessoal-
mente o dinheiro. Eles podem me sequestrar e
fazer uma exigência ainda maior!
No próximo telefonema, vou dizer ao se-
questrador, como você sugeriu, que o dinheiro

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será entregue por um emissário: você. Esta é
a minha condição. Depois, que Deus nos aju-
de. Espero que concorde e que a solte assim
que pagarmos o resgate. Depois quero que
você e Murchison descubram quem é esse se-
questrador.

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Ivan O’Connor, Segurança
DATA: 21 de janeiro de 1943

Estou confirmando as instruções que me


passou hoje de manhã por telefone. Vou pegar
o pacote na quarta-feira à noite em seu escri-
tório, levá-lo à jaula do tigre, no Zoológico
Griffith Park, à meia-noite, e trocá-lo pela mer-
cadoria combinada.

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Janice Templeton
DATA: 21 de janeiro de 1943

Quando cheguei hoje de manhã ao meu es-


critório, percebi que alguém tinha mexido nas
cópias de meus memorandos e papéis mais re-

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centes. Ninguém deve mexer nos meus papéis
sem meu consentimento direto.

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Janice Templeton
DATA: 21 de janeiro de 1943

Falei com os porteiros e com os seguranças


da noite. Falei, também, com as secretárias.
Todos afirmaram que ninguém entrou em seu
escritório, e eu lhe asseguro que não entrei.
Estou desolada e, se quiser que eu peça mi-
nha demissão, ela estará em sua mesa logo
que o senhor me autorizar.
Não queria acrescentar isto, mas sinto que
devo. Um dos porteiros da noite, Baylor Riggs,
que já recebeu várias advertências por beber
no horário de trabalho, disse que uma “coruja
enorme, do tamanho de um homem”, estava
rondando o prédio depois da meia-noite. É
possível que o sr. Riggs tenha visto alguém,
mas o supervisor dele e os outros seguranças
acham que não.

MEMO DE: David O. Selznick

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PARA: Janice Templeton
DATA: 21 de janeiro de 1943

Estou muito satisfeito com seu trabalho e


não quero que peça demissão. Temos tido dias
difíceis. Confio em sua discrição e em seu dis-
cernimento, esperando que continue a partici-
par de nosso crescimento. Gostaria de que
providenciasse fechaduras para os meus arqui-
vos hoje à tarde. Quero um só jogo de chaves
para mim.

LOS ANGELES TIMES, 24 DE JANEIRO


DE 1943

Um grande pássaro escapou do Zoológico


Griffith Park, na madrugada de ontem, segun-
do relatos de um vigia e de policiais de uma
radiopatrulha.
Apesar dos depoimentos das testemunhas,
os funcionários do zoológico dizem que não
está faltando nenhum animal.
O dr. Leon Santucci, veterinário do zoológi-
co, acha que uma águia, atraída pelos animais
enjaulados, pode ter vindo das colinas de
Hollywood. “Já aconteceu antes”, disse o dou-

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tor. “Não é comum, mas já aconteceu.”
Oliver Palmer, o vigia noturno, afirmou ter
visto o pássaro perto das jaulas dos mamífe-
ros. “Parecia atacar um homem que carregava
uma pasta”, disse ele. Palmer contou também
que gritou e correu para socorrer o homem,
mas que, ao chegar ao local, tanto o homem
quanto o pássaro tinham desaparecido.
Outra explicação para o estranho aconteci-
mento veio do tenente Tom Murchison, da Po-
lícia de Los Angeles. Por outros motivos, ele
passava perto do zoológico durante a madru-
gada. Murchison disse ter visto dois homens
saindo do zoológico, mas, aproximando-se,
percebeu que eram “dois bêbados se divertin-
do”.
Os funcionários do zoológico compromete-
ram-se a fazer uma investigação completa e
aumentar a segurança do zoológico, apesar de
admitirem que é difícil conseguir pessoal sufi-
ciente.

MEMO DE: David O. Selznick


PARA: Tom Murchison
DATA: 23 de janeiro de 1943

23
Destruí seu memorando como me pediu.
Peço que faça o mesmo com este. Estou satis-
feito por ver a senhorita Teel livre e com boa
saúde depois do que sofreu, presa durante
tanto tempo no porão da casa de Ivan O’Con-
nor. Não sei como Batman descobriu que ele
estava envolvido no sequestro, Mas estou feliz
que tenha descoberto, senão O’Connor teria
escapado com o dinheiro. E, apesar de ele di-
zer que não, poderia ter impedido, como você
sugeriu, que a senhorita Teel tivesse a oportu-
nidade de contar o que lhe aconteceu. Se pos-
sível, gostaria de manter o caso em segredo.
Segundo meus advogados, isso significa nego-
ciar uma redução de sentença e uma confissão
de culpa de O’Connor. Por favor, trate disso
com nossos advogados. Como sabe, o afasta-
mento de O’Connor deixou uma lacuna em
nosso Departamento de Segurança. Ficaria
agradecido se você considerasse a ideia de as-
sumir o lugar dele.

Carta para David O. Selznick


De Bruce Wayne, Hotel Beverly Hills
25 de janeiro de 1943

24
Batman e eu agradecemos sua hospitalida-
de, mas ele gostaria de recusar sua oferta de
participar do filme baseado em suas aventu-
ras. Sua decisão, disse-me ele, está relaciona-
da à maneira com que foi tratado o sequestro
da senhorita Teel. Batman acha que ainda não
está suficientemente preparado para lidar com
Hollywood. No entanto, ele me assegurou que,
caso mude de ideia, o senhor será o primeiro
a saber.
Por favor, agradeça à senhorita DeHavil-
land. Se ela ou o senhor forem a Gotham City,
gostaria de que se hospedassem na Mansão
Wayne.
Cordialmente,
Bruce Wayne

MEMO PARA: David O. Selznick


DE: Harlan Turbekian, Escritório de
Advocacia Turbekian, Zimmer e Kitt
DATA: 26 de janeiro de 1943

Tenho cópias dos relatórios, memorandos e


dados que me forneceu com suas conclusões a
respeito da identidade secreta de Batman. Eu
e meus sócios achamos que não temos provas

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suficientes de que Batman invadiu seu escritó-
rio, apesar das provas circunstanciais serem
bastante evidentes. Conforme suas instruções,
vamos manter em segredo a documentação a
respeito da identidade de Batman pelo tempo
que você quiser. Ou até o momento em que
quiser entregá-la a outra produtora.

26
O Pirata da Baía dos Milionários
EDWARD D. HOCH
m

A lua cheia estava levemente encoberta


pela neblina. Anton Bartizan andava pelo con-
vés de sua escuna de pesca, transformada em
barco de passeio, o Dragonfly. O feriado de
Quatro de Julho era sempre movimentado na
Baía Milliton. conhecida como Baía dos Milio-
nários por causa dos iates fabulosos ali anco-
rados. Muitos saíram da Baía mais cedo, to-
mando suas posições para a grande corrida da
manhã seguinte. Mas Bartizan tinha se atrasa-
do, esperando uma convidada para o fim de
semana.
Debruçado na amurada, ele viu, na praia,
os primeiros fogos de artifício da noite. Enfiou
a mão no bolso e apalpou a caixinha com o
bracelete de diamantes, sua surpresa para
uma convidada. Depois foi até a entrada da
cabine e chamou: “Suba para o convés, queri-
da. Tenho uma coisa para lhe mostrar.”
Quase no mesmo instante, houve uma ex-
plosão, como se alguém, num barco ali perto,
tivesse soltado um rojão. Anton Bartizan olhou

27
para cima, surpreso, e viu que o céu parecia
estar cheio de vaga-lumes que caíam na sua
escuna. Percebeu, incrédulo, que furavam suas
velas, produzindo, cada um, uma pequena lín-
gua de fogo. Chamou seus dois marinheiros.
“Fogo! Fogo nas velas!”
Jesse estava no timão e já tinha visto as
chamas. Saiu correndo da cabine do piloto en-
quanto o outro marinheiro, Luís, veio de baixo
do convés com um extintor de incêndio. De re-
pente, Bartizan percebeu que um barco se
aproximava com as luzes apagadas. Tentou
identificá-lo e, com a claridade das chamas
cada vez maiores nas velas, conseguiu ver a
bandeira com a caveira e os ossos cruzados
balançando no mastro.
Quando um homem, muito musculoso, sal-
tou para bordo da escuna, Bartizan pensou
que tudo era uma brincadeira de mau gosto.
Usava barba e tapa-olho e segurava uma es-
pada como um pirata em um baile a fantasia.
Teria rido se as chamas nas velas não fossem
tão reais.
Luís parou bem na frente do “chefe” dos pi-
ratas, e a espada atravessou seu corpo. Anton
Bartizan percebeu, então, que não era ne-
nhum faz de conta. Alguém atirou com uma

28
espingarda, e Jesse também caiu. O incêndio
nas velas estava totalmente fora de controle.
Para Bartizan, tudo parecia um grande pesa-
delo.
Quando outros homens entraram na escu-
na, ele se lembrou de sua passageira, a linda
garota que lhe faria companhia no fim de se-
mana prolongado. Correu para a entrada da
cabine, seguido pelo pirata com tapa-olho.
Ela estava esperando por ele, aparente-
mente sem se dar conta do que acontecia no
convés. “Depressa!”, ele gritou. “Vamos para a
água, ou seremos mortos!”
Ela ficou parada, muito calma, olhando
para ele. “É muito tarde para isso, querido.”
Voltou-se e viu o pirata atrás dele erguendo
a espada.

Dois dias depois, o Comissário de polícia de


Gotham City, o ex-policial de ronda James Gor-
don, estava sozinho em seu gabinete olhando
com desgosto as manchetes dos jornais locais:

Navio pirata ataca mais um iate na


Baía dos Milionários: Polícia acredita que

29
incêndio no iate tem relação com naufrá-
gio recente.

Anton Bartizan viveu o suficiente para bal-


buciar uma história lúgubre sobre um navio pi-
rata, que agora estava nos jornais. Fizeram até
uma relação com o naufrágio inexplicado de
um iate luxuoso na mesma baía, duas sema-
nas antes. O prefeito exigia ação e seu gabi-
nete tinha recebido uma enxurrada de telefo-
nemas de iatistas assustados.
O Comissário Gordon precisava desespera-
damente de ajuda.
Nesse momento, a porta de trás de seu ga-
binete, que levava ao elevador particular, abriu
e fechou. Ele girou sua cadeira para olhar.
“Batman!”
“Às suas ordens, Comissário.”
O homem alto encapuzado, com a roupa
azul e cinza e a capa azul de morcego, era
uma figura familiar para o Comissário Gordon.
No passado, Batman vinha muitas vezes em
seu socorro, quando crimes inacreditáveis
ameaçavam Gotham City. Imediatamente, Gor-
don sentiu como se um peso tivesse sido tira-
do de seus ombros. “Você leu os jornais, é cla-
ro.”

30
“É verdade”, perguntou o Cruzado Mascara-
do, “que um navio pirata está atacando iates
na Baía dos Milionários?”
“É verdade, Batman. Há duas semanas, um
garoto disse ter visto um navio pirata ao lado
de um iate chamado Trenchon. O iate pegou
fogo e afundou naquela mesma noite. É claro
que ninguém acreditou no menino, e não tí-
nhamos nenhuma evidência de sabotagem.
Mas agora é diferente.”
“O que, exatamente, Anton Bartizan contou
antes de morrer?”, perguntou Batman.
O Comissário Gordon se debruçou sobre a
mesa, olhando para a misteriosa figura diante
dele. “Disse que viu vaga-lumes vindo em sua
direção no céu escuro e que depois suas velas
pegaram fogo.”
“Vaga-lumes?”
“Depois o iate foi invadido por homens ves-
tidos como piratas. Mataram seus dois mari-
nheiros, e ele desceu para a cabine de passa-
geiros para proteger uma garota que estava
lá.”
“Ela também foi morta?”, perguntou Bat-
man.
“Não encontramos vestígio dela. Bartizan
estava morrendo quando a polícia e os bom-

31
beiros chegaram ao local. A válvula de escoa-
mento do porão estava aberta, e o barco teria
afundado como o Trenchon se não tivéssemos
chegado a tempo.”
“Tem alguma ideia do motivo desses cri-
mes, Comissário?”
“Dinheiro e joias. Bartizan, por exemplo, ti-
nha comprado um bracelete de vinte mil dóla-
res na semana passada, possivelmente para a
garota que estava no barco. Não foi encontra-
do em lugar algum. O joalheiro nos forneceu
uma foto dele.”
“Acha que a garota está envolvida?”, per-
guntou Batman, examinando a foto.
“Isso explicaria porque ela não foi morta
como os outros.”
“Os piratas às vezes levam prisioneiros,
principalmente garotas.”
“Não encontramos nenhuma descrição que
corresponda a ela na seção de desaparecidos.
Talvez faça mesmo parte da quadrilha.”
Mas Batman não parecia muito convencido
disso. “Por que ajudaria a roubar um bracelete
de diamantes que seria dela de qualquer for-
ma?”
“Não sabemos. Bartizan era divorciado,
mas tinha outras namoradas. Talvez ela não

32
soubesse que ia ganhar tal presente.”
“E o primeiro naufrágio? Havia alguém a
bordo?”
“Só o dono do barco, um banqueiro local
chamado Brewster Hemmings. A válvula do
porão também estava aberta e, até agora, o
caso tinha sido classificado como suicídio.”
“Ele levava dinheiro e joias a bordo?”
“É bem possível, já que é a Baía dos Milio-
nários...”
“E o que a polícia tem feito, Comissário?”
“Mandei mais homens para a Baía, especi-
almente para a área do Iate Clube e da mari-
na. Tudo que podemos esperar é apanhá-los
em flagrante se tentarem outra vez.”
“Mas aí poderá ser muito tarde para impe-
dir outras mortes”, observou Batman.
“Tem alguma ideia?”
“Talvez. Vou ficar em contato, Comissário.”
Sem mais palavras, Batman passou a capa
azul-escuro em volta do corpo e saiu pela por-
ta por onde tinha entrado.

Num bairro próximo de Gotham City, a


mansão do multimilionário Bruce Wayne pare-

33
cia solitária e misteriosa, como seu proprietá-
rio. A única atividade na mansão, nessa noite,
acontecia na enorme caverna sob a casa, onde
Bruce Wayne tirava a máscara de morcego e o
capuz. Um homem o observava, seu amigo e
confidente Alfred Pennyworth, um cavalheiro
inglês de meia-idade que trabalhava como
mordomo na Mansão Wayne.
“Falou com o Comissário, senhor?”, pergun-
tou Alfred.
“Falei.” Bruce pendurou sua capa de morce-
go e começou a tirar a roupa que se tornou o
terror para o submundo de Gotham. “Mas a
polícia não sabe absolutamente nada sobre os
crimes. Até mesmo o Comissário parece con-
vencido de que deve aguardar o próximo cri-
me para pegar os piratas em flagrante.”
“Que plano sugeriria, senhor?”
“Qualquer coisa, menos esperar. Esses cri-
mes são audaciosos e bem planejados. Se
esse suposto navio pirata aparece e desapare-
ce quando quer, a quadrilha não vai esperar
muito para atacar outra vez.” Bruce Wayne
amarrou na cintura o cordão de seda do rou-
pão. “Alfred, resolvi comprar um iate... um iate
grande e imponente. Cuide disso logo de ma-
nhã.”

34
“Sim, senhor.”
Na manhã seguinte, Bruce foi até o Iate
Clube de Gotham City, não muito longe da
Baía Milliton. Tinha estado lá poucas vezes, na
companhia de alguns sócios, mas não conhe-
cia ninguém além de Rusty, o barman. Um ho-
mem de rosto bronzeado e marcado pelo tem-
po, que estaria mais à vontade numa ilha tro-
pical do que servindo bebidas num clube ex-
clusivo.
“Posso servir alguma coisa, sr. Wayne?”,
perguntou, exibindo sua legendária memória
para fisionomias.
“Agora nada, Rusty. O gerente do clube
está por aí?”
“O sr. Ritter geralmente almoça aqui. Deve
estar no terraço.”
Bruce encontrou Herb Ritter comendo sozi-
nho numa mesa com vista para o mar. De
meia-idade, cabelos grisalhos, mas com um
bronzeado perfeito e um sorriso contagiante,
era a pessoa certa para uma posição que exi-
gia habilidades de diretor social e de iatista.
“Bruce Wayne! O que o traz aqui? Sente-
se, sente-se!”
Bruce sentou-se na cadeira à sua frente.
“Vou comprar um iate, Herb. Achei que já era

35
tempo de entrar para o seu clube.”
“Resolveu abandonar a vida solitária? É um
prazer ter você aqui! A aprovação de nosso
Conselho será uma mera formalidade. Vou cui-
dar pessoalmente de sua inscrição.”
“Obrigado. Agradeço muito.” Olhou casual-
mente para o atracadouro, onde vários iates
estavam ancorados. “O que aconteceu àquela
escuna?”
“Deve ter lido sobre isso nos jornais”, disse
Herb Ritter. “Aquela história do navio pirata na
Baía Milliton...”
“Claro! Então, esse é o iate? Posso descer e
dar uma olhada?”
Ritter foi indo na frente. “Cuidado! Não sei
como está o convés.”
“O barco pertencia a Anton Bartizan. A polí-
cia terminou as investigações hoje de manhã.”
“O que é isso... uma escuna?”
“Uma escuna de pesca que Bartizan trans-
formou em iate de passeio. Ouvi dizer que
custou uma pequena fortuna. Gostava de levar
garotas para passear.”
“É mesmo?”, Bruce demonstrou o típico in-
teresse de um homem solteiro em sua posi-
ção. “Quem foi sua última conquista?”
“Ouvi boatos de que estava saindo com

36
Amanda Royce.”
“O homem tinha bom gosto.”
“A coisa toda é uma tragédia, não só para
Bartizan. Depois daquele outro naufrágio na
Baía, as pessoas estão ficando com medo. E
isso é ruim para os negócios, ruim para o mer-
cado imobiliário.”
O olhar de Bruce Wayne foi atraído por um
objeto sobre o convés arruinado. Ele se incli-
nou e pegou um preguinho que parecia nunca
ter sido usado. Havia outros no convés. Viu
pelo menos uma dúzia perto de seus pés. “Pa-
rece que a reforma do barco ainda não tinha
terminado”, comentou.
“Bartizan estava sempre fazendo alguma
coisa. Nunca ficava satisfeito, nem com os ia-
tes, nem com as mulheres.” Voltaram para o
clube e o gerente prometeu fazer a inscrição
de Bruce rapidamente.

A outra visita de Bruce ao Iate Clube foi


dez dias depois. A essas alturas, já tinha com-
prado um iate cabinado de 54 pés com um
motor projetado para pesca. Mas ele estava
pensando em usá-lo como isca. Alfred foi con-

37
vocado para ser o único membro da tripula-
ção, com a promessa de que essa posição se-
ria temporária.
“Eu me sinto como peixe fora d’água, se-
nhor”, reclamou o inglês. “Fico muito mais à
vontade como mordomo.”
Tinham dado uma volta pela Baia dos Milio-
nários para conhecer melhor o lugar e depois
voltaram para a marina do Iate Clube. En-
quanto Alfred estudava atentamente o consu-
mo de combustível, Bruce foi até a sede do
clube. Algumas pessoas estavam chegando
para o almoço e ele pediu uma mesa perto da
janela. Enquanto esperava, ficou no balcão.
“Que prazer vê-lo, sr. Wayne”, disse Rusty,
pondo de lado o livro que estava lendo. “Acho
que é hora de começar a trabalhar.”
“O que está lendo?”
“Um livro sobre a Revolução Americana.
Gosto de História. O senhor lê muitos livros de
História, não é?”
Bruce acendeu seu cachimbo. “Quando dá
tempo, Rusty. Atualmente estou lendo sobre
iates.”
“O sr. Ritter disse que o senhor comprou
um de 54 pés. Parece que é uma beleza.”
“Eu estou gostando”, disse Bruce. “Mas é

38
só um leasing, com opção de compra.”
O barman ajeitou as garrafas, arrumando-
as para o movimento da hora do almoço.
“Quer uma bebida para acompanhar o almoço,
sr. Wayne?”
“Um copo de vinho branco seria ótimo.”
Deu outra cachimbada, observando o iate in-
cendiado pela janela panorâmica. “Conhecia
bem Anton Bartizan, Rusty?”
“Eu o servi algumas vezes. Ele não vinha
muito ao bar. Ficava naquela mesinha de canto
com sua bebida favorita, o conhaque Courvoi-
sier. Parecia ser um bom homem. Foi horrível o
que aconteceu com ele.”
“O iate vai ficar ali?”
“Só até a companhia de seguros terminar a
vistoria.”
A mesa de Bruce ficou pronta e ele levou o
copo de vinho para lá. A garçonete era Millie,
uma garota de seios grandes, de uns vinte e
poucos anos. Ele já a tinha visto, mas nunca
conversara com ela. Obviamente que era co-
nhecida entre os frequentadores. Havia mais
garçons que garçonetes, mas Bruce percebeu
que as mesas atendidas por garçonetes eram
mais procuradas.
Quando Millie trouxe o almoço, ele pergun-

39
tou em tom casual: “Amanda Royce tem apa-
recido aqui?”
“A sra. Royce?” Bruce sabia que ela era di-
vorciada mas que ainda usava o nome de ca-
sada. “Veio uma vez na semana passada.”
“Provavelmente ficou muito abalada com a
morte de Bartizan, não é?”
A expressão de Millie não se alterou.
“Não sei dizer.”
Bruce voltou para o iate e encontrou Alfred
mastigando um sanduíche que tinha trazido de
casa. “Devia ter ido comigo. A comida é óti-
ma.”
“Mas ia parecer esquisito, senhor.”
“Bom, vamos para casa. Já passeamos mui-
to de barco para o primeiro dia.”
“Qual é o próximo passo?”
“Descobrir uma forma de ser apresentado a
Amanda Royce.”

A oportunidade apareceu naquele fim de


semana, no baile do Iate Clube, onde estariam
as pessoas mais importantes de Gotham City.
Até mesmo o Comissário Gordon e sua mulher
deveriam comparecer. O Comissário tinha re-

40
tornado um telefonema de Batman, informan-
do que Amanda Royce iria ao baile com Simon
Butterfield, o dono da imobiliária local. Ela não
tinha perdido tempo depois da morte de Barti-
zan.
“Houve algum outro incidente na Baía Milli-
ton?”, Batman perguntou ao telefone.
“Nada, desde a morte de Bartizan. Nossos
barcos estão patrulhando durante a noite. Mas
vou ter que retirá-los de lá em breve. Não te-
mos mais verba.”
“Obrigado pela informação sobre Amanda
Royce. Comissário.”
“Você vai ao Iate Clube, Batman?”
“Vou estar por lá”, respondeu vagamente.
Na noite do baile, Bruce Wayne deu um jei-
to de ficar até mais tarde no bar e viu quando
Amanda Royce chegou com seu acompanhan-
te. Desde o divórcio, ela circulava bastante,
exibindo seu belo corpo nos acontecimentos
sociais da cidade. Ele se perguntou por que
uma mulher como aquela se envolveria com
uma quadrilha de piratas modernos.
Bruce já conhecia o acompanhante dela, Si-
mon Butterfield, e conseguiu puxar uma con-
versa quando ele e Amanda voltaram para a
mesa depois de uma dança, Butterfield foi

41
obrigado a apresentá-los. “Amanda, conhece
Bruce Wayne?”
“Acho que nunca tive o prazer”, disse ela
com seu sorriso sedutor. “Como vai, sr. Way-
ne?”
A conversa, casual e breve, tomou o rumo
dos incidentes na Baía Milliton. “É terrível para
o mercado de imóveis”, confirmou Butterfield.
“Os iatistas estão evitando este lugar. Nesta
semana, dois milionários de uma cidade interi-
orana desistiram de abrir um restaurante
aqui.”
“A polícia está patrulhando a Baía.”
“Por enquanto. Mas não por muito tempo.
Ouvi dizer que o Comissário não tem nenhuma
pista.”
Bruce Wayne sorriu na direção de Amanda.
“O que acha disso, sra. Royce?”
“Acho que Anton estava drogado ou algu-
ma coisa assim quando falou daqueles piratas
à polícia. Foi tudo obra de sua imaginação.”
“Dizem que havia uma testemunha a bor-
do... uma mulher.” Amanda Royce deu de om-
bros. “Se for verdade, ela que se apresente.”
Bruce ficou por lá até o fim do baile, à
meia-noite, esperando trocar mais algumas
palavras com ela, mas não teve oportunidade.

42
O grupo de Butterfield era grande, e ela este-
ve cercada por admiradores a noite inteira. Lá
pela meia-noite e meia, ele desistiu. Algumas
luzes do restaurante estavam apagadas, e os
garçons e garçonetes começavam a ir embora.
Ele viu Millie pronta para sair.
Nesse instante, uma coisa chamou a sua
atenção. Deve ter dado um pulo, pois Herb
Ritter, o gerente do clube, passava por ele na-
quele momento e disse: “Espero que não te-
nha assustado você, Bruce.”
“Não... não foi isso.”
“Gostou do baile?”
“Gostei... mas estava sem companhia...”
Ritter riu. “Vou apresentá-lo a algumas pes-
soas.”
Bruce pediu licença e correu para a porta,
mas Millie já tinha desaparecido. Entretanto, a
lembrança do que tinha visto permaneceu: no
braço direito da garçonete, um faiscante bra-
celete. À distância, parecia idêntico ao da foto-
grafia que o Comissário Gordon tinha mostra-
do ao Batman.

Bruce Wayne não teve dificuldade de, na

43
semana seguinte, convencer Millie a dar um
passeio em seu iate. Na segunda e na terça,
almoçou numa mesa que ela servia, e fez um
convite casual no meio de uma conversa.
Quarta-feira, que era o dia de folga da garço-
nete, saíram no iate de Bruce, com Alfred no
leme.
“Acho que não sei seu sobrenome”, disse
Bruce logo que se afastaram do ancoradouro.
“Millie Steiner. É alemão.”
“Há quanto tempo você trabalha no Iate
Clube, Millie?”
“Dois anos.” Ela protegeu os olhos com a
mão e ficou olhando as praias passarem. “Eu
gosto daqui. Dá para conhecer muita gente in-
teressante.”
“Outra noite, vi você saindo do trabalho
com um bracelete lindo. Foi presente de al-
guém que conheceu no clube?”
Ela ficou um pouco vermelha e olhou para
o outro lado. “Ele me disse para não usar o
bracelete. Não vai ser nada bom para mim se
ele souber que você viu.”
“Ah! Você tem um admirador secreto!”
“Mais ou menos”, ela admitiu.
“Alguém me contou que você estava com
Anton Bartizan antes dele morrer. É verdade?”

44
Por um momento, ela pareceu estar prestes
a pular na água para não responder à pergun-
ta. Depois se acalmou e sentou-se numa das
cadeiras giratórias presas ao convés. “O que
quer de mim, sr. Wayne?” O sorriso tinha de-
saparecido completamente de seu rosto. “O
senhor é detetive?”
“Não, é claro que não! Estou só conversan-
do! Gosto de saber tudo sobre as mulheres
com quem saio.”
“Acho que é melhor voltar.”
“Não! Beba alguma coisa e relaxe!”
Ela relutou um pouco mas acabou concor-
dando, e Bruce levou a conversa para águas
menos perigosas. Toda a atitude da garota ti-
nha mudado. Ela estava “em guarda”. Quando
o iate entrou na Baía Milliton, Millie parecia
nervosa. “Por que me trouxe aqui?”, pergun-
tou.
Antes que ele respondesse, Alfred, ainda
no leme, gritou: “Uma lancha está se aproxi-
mando, sr. Wayne.”
Bruce a viu a estibordo, aproximando-se ra-
pidamente. Quase que por instinto, puxou Mil-
lie da cadeira e os dois caíram no convés.
Houve uma rajada de balas de uma arma au-
tomática. A antepara acima da cabeça de Bru-

45
ce se estilhaçou com o impacto das balas.
“Meu Deus!” Millie estava quase sem voz.
“Estão tentando me matar!”
“Quem, Millie? Quem está tentando matá-
la?”
“Tudo bem, senhor?”, gritou Alfred.
“Até agora. Vamos sair daqui. Depressa!”

Mais tarde, ancorados num lugar seguro,


Millie conseguiu tranquilizar-se um pouco com
uma bebida na mão. Começou a falar. “Eles
tentaram me matar”, repetiu. “Talvez consigam
da próxima vez. Preciso falar com alguém so-
bre isso.”
“Sobre Bartizan?”
Ela fez que sim. “Eles me pagaram para
levá-lo à Baía dos Milionários. Era uma espécie
de aniversário... fazia um mês que a gente ti-
nha saído pela primeira vez... e ele comprou
aquele bracelete de diamantes para mim. Eu
trouxe uma garrafa de Courvoisier do clube.
Ele nunca tinha bebido esse conhaque, mas
gostou. Estava esperando que me desse o bra-
celete quando eles atacaram...” Havia lágrimas
nos olhos dela. “Os vaga-lumes. Eles queima-

46
ram as velas e invadiram o barco, como no
tempo dos piratas. E por isso que ele é conhe-
cido como Pirata.”
“Quem, Millie?”
Mas ela ignorou a pergunta, como se falas-
se consigo mesma. “Ele desceu para a cabine
para me proteger, mas o Pirata o seguiu com a
espada. Pensei que apenas queria assustá-lo e
roubar seu dinheiro. Não sabia que ia matá-lo.
Foi a coisa mais horrível que já vi. Então eles
revistaram os bolsos de Anton e me jogaram o
bracelete. Quase o deixei lá, mas sabia que
Anton tinha comprado pra mim. Então, resolvi
ficar com ele.”
“Quem é o Pirata?”, Bruce insistiu.
Mas ela ficou completamente em silêncio,
olhando para a água. Bruce percebeu que o
sol já estava se pondo. Logo anoiteceria.
“Quais são os planos do Pirata?”, pergunta em
voz baixa.
“Creio que outro ataque. Ele disse que ti-
nham que ser pelo menos três ataques.”
“Por quê? Pelo dinheiro?”
“Não é só dinheiro. Tem a ver com imóveis.
Não entendi direito, mas estou com medo. Se
ele mandou me matar, é porque me viu usan-
do o bracelete e acha que não pode mais con-

47
fiar em mim.”
“Temos que colocar a polícia na pista dessa
quadrilha. Você entende, não é?”
“Entendo.” Ela falou baixinho, olhando para
as nuvens que refletiam o sol,
“Qual será a próxima vítima?”
“Você. Ele escolheu quando você começou
a se aproximar de mim.”
Bruce Wayne sorriu levemente. “Quando?”
“Tenho que fazê-lo vir com o iate à Baía,
qualquer noite desta semana. Agora que ten-
taram me matar, não sei mais o que pensar.”
“Eles ainda devem estar nos observando.
Vamos lá esta noite.”
“Você não tem medo de nada, não é?”
“Tenho amigos nos lugares certos.”

Depois de quase uma hora navegando na


Baía Milliton, Bruce começou a achar que não
ia adiantar nada, Se não confiavam mais em
Millie, era pouco provável que caíssem numa
armadilha tão óbvia. Decidiu esperar mais
meia hora e ir para casa. Uns dez minutos de-
pois, viu um barco grande, com as luzes apa-
gadas. Voltou-se para Millie: “É melhor você ir

48
lá para baixo. Eles estão vindo.”
“E você?”, ela perguntou já no topo da es-
cada.
“Já vou descer. Tenho que avisar Alfred.”
Ele correu para o leme. Alfred já se prepa-
rava para desviar daquele barco. “Estão com
as luzes apagadas, senhor!”
“E com a caveira e os ossos cruzados na
bandeira, eu aposto. Desligue o motor e des-
ça. É hora de pedir ajuda ao Batman.”
“Mas como o senhor vai...? A garota vai
perceber.”
Houve um rugido, como o de um canhão,
vindo do lado do ancoradouro. Logo o ar pare-
ceu ficar cheio de vaga-lumes que vinham na
direção deles. “Para baixo... depressa! Eu cui-
do da garota!”
“O que é isso?” Alfred estava aterrorizado.
“Preguinhos em brasa, disparados com um
canhão. Se tivéssemos velas, já estaríamos em
chamas.” Foi empurrando o inglês pelos de-
graus, até o lugar onde Millie Steiner
esperava.
“O que vamos fazer?” Ela tremia de medo.
“Desta vez, vão me matar também! Sei que
vão me matar!”
“Depressa! Entre no armário. Alfred e eu

49
vamos ficar no outro.” Ele a empurrou para
dentro do espaço estreito e fechou a porta.
Lá em cima, os “piratas” já estavam se
aproximando. Em poucos minutos, o navio
sombrio chocou-se contra o lado do iate de
Bruce, enquanto alguns ganchos prendiam os
dois barcos. Seis homens armados subiram a
bordo, liderados por um pirata barbudo de
tapa-olho.
Nesse momento, Batman desceu sobre
eles, balançando no mastro do rádio e aterris-
sando bem no meio do grupo. “É o Batman!”,
gritou um dos homens, dando um tiro a esmo
e recuando para a amurada.
Dois homens se atiraram contra Batman e
conseguiram jogá-lo sobre o convés, mas só
por um instante. Ele chutou, acertando um de-
les no rosto com sua bota azul. Depois rolou e
puxou as pernas do outro, fazendo-o cair. Um
quarto homem veio em sua direção brandindo
um gancho terrível, mas Batman empurrou ou-
tro dos bandidos, que caiu e acabou receben-
do o golpe.
O Pirata tinha voltado para o seu barco,
onde preparava o pequeno canhão para atirar
em Batman. “Você se meteu com a pessoa er-
rada”, rosnou.

50
“Mais devagar, amigo.” Batman saltou o vão
que ficava cada vez maior entre os barcos.
Agarrou e girou o canhão no instante em que
o Pirata puxou a corda para disparar. Houve
outra explosão de pregos, mas desta vez eles
estilhaçaram a madeira do barco do próprio Pi-
rata.
“Acabe com ele!”, gritou o Pirata para o úni-
co homem de sua tripulação que ainda estava
em pé.
O homem correu para a figura de capa,
com a espada desembainhada, mas Batman
saltou e jogou os pés contra o peito do seu
agressor. Aterrissou com segurança e encarou
o Pirata. “Assim é mais justo. Só nós dois, Pi-
rata!”
“Você não vai me deter, Batman! Onde es-
tão Wayne e a garota?”
“Estão bem a salvo.”
O Pirata ergueu a espada no momento em
que um facho de luz o atingiu no rosto. “O que
é isso?”
“O Comissário Gordon e a polícia!”
“Droga!”
Ele jogou a espada na direção de Batman e
se voltou para fugir, mas Batman saltou sobre
ele, segurando-o no convés e encerrando a

51
batalha com um murro no seu queixo.
Logo depois, Gordon e seus homens pula-
ram do barco-patrulha para o iate. “Seu palpi-
te estava totalmente certo, Batman. Desculpe
por termos chegado um pouco tarde.”
“Não faz mal, Comissário. Estão todos
aqui... o Pirata e seu bando.”
“Mas quem é ele? Por que cometeu esses
crimes?”
“Nem preciso tirar a barba falsa e o tapa-
olho para saber quem é.”
O Pirata tentou levantar, mas Batman o jo-
gou de volta no convés, tirando seu disfarce
para que todos pudessem ver o rosto de
Rusty, o barman.

Poucos minutos depois, os bandidos tinham


sido algemados e transferidos para o barco da
polícia. Batman voltou-se para o Comissário:
“O roubo era menos importante que os ata-
ques. O que ele queria era espantar as pesso-
as da Baía e fazer o preço das propriedades
cair. E isso já estava começando a acontecer...
Ele planejava comprar vários terrenos a preços
baixos. Queria abrir um restaurante e uma

52
marina. Os membros da quadrilha são todos
garçons do Iate Clube.”
“Meu Deus!”
“Não foi difícil descobrir que Rusty era o
chefe. O Pirata atacava disparando um canhão
carregado de pregos em brasa. Essa técnica
era especialmente eficaz para incendiar as ve-
las, e era usada não apenas por piratas, mas
também na Guerra Civil. Rusty gostava de ler
livros sobre a Revolução Americana e ficou sa-
bendo disso. Ele também disse que a bebida
favorita de Anton Bartizan era conhaque Cour-
voisier, mas Bartizan nunca tinha tomado esse
conhaque antes da noite em que morreu.
Rusty sabia disso porque estava a bordo do
Dragonfly. Tinha que ser o Pirata.”
“Você prestou um grande serviço a Gotham
City, Batman”, disse o Comissário Gordon.
“Era o meu dever.”
“Onde estão Bruce Wayne e os outros?”
“Lá embaixo, escondidos na despensa. É
melhor dizer que já podem sair.” Com essas
palavras, Batman saltou sobre a amurada e
desapareceu na escuridão.
Enquanto o Comissário descia a escada,
Batman jogou rapidamente sua roupa na água
e entrou na despensa pela mesma escotilha

53
por onde tinha saído, ajudado por Alfred.
O Comissário fez Millie sair e depois abriu a
outra porta.
“Pronto, sr. Wayne. Espero que o transtor-
no não tenha sido muito grande.”
“O que aconteceu?”, perguntou Bruce, aca-
bando de ajeitar a roupa no corpo e esperan-
do que o Comissário não notasse seu cabelo
molhado.
“Batman capturou a quadrilha para nós.
Está tudo resolvido.”
Bruce Wayne olhou para Millie. “Millie me
contou algumas coisas. Acho que ela está dis-
posta a testemunhar contra eles se precisarem
de mais evidências.”
O Comissário olhou feio para ela. “É melhor
vir comigo, mocinha.”
“Obrigada por tudo.” Millie sorriu para Bru-
ce.
Ele também sorriu. “Boa sorte e espero que
volte logo para o Iate Clube. Acho que eles fi-
carão com falta de pessoal por algum tempo.”

54
Rumo ao Noroeste
(Os Viúvas Negras n° 61)
ISAAC ASIMOV
m

Thomas Trumbull perguntou em voz baixa


a Emmanuel Rubin: “Onde foi que você se me-
teu? Faz uma semana que eu estou tentando
te encontrar!”
Os olhos de Rubin chisparam, por detrás
dos óculos de lentes grossas, e sua barba rala
ficou eriçada. “Estive em Berkshires durante
uma semana. Não sabia que precisava pedir
permissão para viajar.”
“Eu queria falar com você.”
“Então fale agora. Estou ouvindo... Supon-
do que você consiga pensar em alguma coisa
inteligente para dizer.”
Trumbull olhou em volta, apreensivo. Os Vi-
úvas Negras haviam se reunido para o seu
banquete mensal no Milano e ele tinha dado
um jeito de chegar na hora, porque era o anfi-
trião.
“Não levante a voz, pelo amor de Deus,
Manny! Eu não posso falar agora!” E murmu-
rou: “...É sobre o meu convidado.”

55
“Que é que tem ele?” Rubin olhou na dire-
ção do senhor alto e de aparência distinta que
conversava com Geoffrey Avalon no outro can-
to.
Tinha uns cinco centímetros a mais do que
Avalon, normalmente o mais alto numa reuni-
ão. Rubin, que era vinte centímetros mais bai-
xo que Avalon, fez uma careta.
“Acho que faz bem a Jeff olhar para cima
de vez em quando.”
“Você quer prestar atenção?”, disse Trum-
bull. “Eu já falei com os outros e você era o
único com quem eu estava realmente preocu-
pado. E o único que não conseguia encontrar!”
“Com o que você está tão preocupado? Vá
direto ao assunto!”
“É o meu convidado. Ele é estranho.”
“Se é seu convidado...”
“Fique quieto! Ele é um cara interessante e
não é maluco, mas pode ser considerado um
tipo estranho e não quero que você caçoe
dele. Deixe o cara sossegado.”
“Ele é estranho como?”
“Tem idée fixe, se é que você me entende!”
Rubin ficou irritado. “E você pode me expli-
car por que é necessário dizer idée fixe quan-
do ideia fixa é exatamente a mesma coisa?”

56
“Ele tem uma ideia fixa, então. E vai falar
nela, porque não consegue deixar de falar. Por
favor, não faça piadas. Aceite o cara como ele
é.”
“Isso vai contra todo o princípio do interro-
gatório, Tom.”
“Ora, eu só estou pedindo que seja polido,
mais nada. Todos os outros concordaram.”
Rubin apertou os olhos. “Eu vou tentar...
Mas, Tom, eu juro que se isso for alguma go-
zação... Se vocês estão com alguma armação
pra cima de mim... Nem que eu precise subir
num banquinho, eu lhe dou um murro no
olho.”
“Não tem armação nenhuma.”
Rubin caminhou até onde Mario Gonzalo
dava os retoques finais numa caricatura do
convidado. Na verdade, não era bem uma cari-
catura. Ele havia desenhado um homem bem-
vestido, parecendo um anúncio de uma antiga
revista de moda.
Rubin olhou para o desenho, depois voltou
a contemplar o convidado e disse: “Você se
esqueceu das rugas, Mario...”
“A caricatura”, disse Gonzalo, “é a arte do
exagero da verdade, Manny. Se um cara tem
tão boa aparência nesta idade, a gente não

57
estraga o efeito desenhando rugas.”
“Qual é o nome dele?”
“Não sei. Tom não disse. Falou para espe-
rarmos o interrogatório para perguntar...”
Roger Halsted se aproximou, com um copo
na mão, dizendo em voz baixa: “Tom procurou
você a semana inteira, Manny.”
“Ele me contou. E me encontrou bem aqui.”
“Ele explicou o que queria?”
“Não. Só pediu que eu fosse bonzinho...”
“E você vai ser?”
“Vou, até descobrir que tudo isso é uma
tentativa de fazer piada às minhas custas. De-
pois...”
“Não... aparentemente ele está falando sé-
rio.”
Com sua voz suave e cativante, Henry,
aquele silencioso protótipo do garçom perfeito,
anunciou: “Cavalheiros, o jantar está servido.”
E todos se sentaram diante de seus coque-
téis de camarão.

James Drake esmagou a ponta do cigarro,


já que, por maioria de votos, não era permiti-
do fumar durante a refeição. Entregou o cin-

58
zeiro a Henry.
“Henry acabou de interromper os comentá-
rios que nosso convidado estava fazendo so-
bre o Super-Homem. Se não for incômodo, eu
gostaria que repetisse o que falou.”
O convidado acenou com a cabeça num
pomposo gesto de agradecimento e, acabando
de engolir uma fatia de vitela, recomeçou a fa-
lar: “Eu estava dizendo que o Super-Homem é
uma versão de uma antiga e honrada tradição.
Sempre houve um ramo da literatura dedicada
aos heróis. A seres humanos de força e cora-
gem superiores. Os heróis, entretanto, devem
ser supernormais, não sobrenaturais.”
“Para dizer a verdade, eu concordo”, inter-
rompeu Avalon em sua espantosa voz de barí-
tono. “Sempre houve personagens como Hér-
cules, Aquiles, Gilgamesh, Tristão...”
“Já entendemos, Jeff...”, disse Rubin male-
volamente.
Avalon continuou, com suavidade. “Há cer-
ca de meio século, vimos o surgimento de Co-
nan, de Robert Howard, na forma de uma len-
da moderna. Todos esses heróis são incompa-
ravelmente mais fortes do que qualquer um de
nós, pobres mortais. Mas não são divinos. Eles
podem ser feridos, e até mesmo mortos. E é o

59
que normalmente acaba acontecendo.”
“Na Ilíada”, disse Rubin, sempre disposto a
iniciar uma discussão, “os deuses podiam ser
feridos. Ares e Afrodite foram feridos por Dio-
medes.”
“Não podemos negar a Homero algumas li-
berdades”, contestou o convidado. “Mas com-
pare, digamos, Hércules com Super-Homem.
O Super-Homem tem olhar de raios-X, voa no
espaço sem qualquer proteção, consegue mo-
ver-se mais rápido do que a luz. Nada disso
acontece com Hércules. Mas com os poderes
do Super-Homem, onde fica a emoção? Onde
fica o suspense? Aliás, onde fica a justiça? Ele
luta contra insetos humanos que são menos
para ele do que um besourinho é para mim.
Como posso ter orgulho de tirar um besouri-
nho do meu pulso com um peteleco?”
Drake observou: “O problema de todos es-
ses heróis é que eles não têm músculos na ca-
beça. Vejam Siegfried, por exemplo: se tinha
um átomo de inteligência, tomou cuidado para
nunca mostrá-lo. Aliás, Hércules também não
se destacava por sua capacidade de pensar...”
“Por outro lado”, disse Halsted, “o Príncipe
Valente tem cabeça... E Odisseu também...”
“Exceções raras”, rebateu Drake.

60
Rubin voltou-se para o convidado e disse:
“Você parece ter muito interesse em histórias
de heróis.”
“Tenho sim”, disse o convidado, com suavi-
dade. “É quase uma idée fixe que eu tenho.”
Sorriu com óbvio autodesprezo. “Fico falando
o tempo todo sobre eles, ao que parece.”
Logo depois disso, Henry trouxe o assado
de pescada-preta do Alasca.

Trumbull bateu a colher no seu copo d'água


na hora em que Henry servia o brandy meticu-
losamente. Tinha esperado terminar o café,
como se estivesse relutante em começar o in-
terrogatório e, mesmo agora, o soar do metal
contra o cristal parecia ser menos autoritário
do que de costume.
“Está na hora de começarmos o interroga-
tório de nosso convidado, e gostaria de sugerir
que Manny Rubin fizesse as honras da casa
esta noite.”
Rubin lançou um olhar duro para Trumbull
e depois disse ao convidado: “Senhor, normal-
mente costumamos pedir ao nosso convidado
que comece justificando sua existência, mas,

61
contra todas as regras, Tom não nos disse seu
nome quando fez as apresentações. Sendo as-
sim, posso perguntar como se chama?”
“Certamente”, respondeu o convidado.
“Meu nome é Bruce Wayne.”
Rubin virou-se imediatamente na direção
de Trumbull, que fez, com as mãos, um gesto
discreto, pedindo calma.
Rubin respirou fundo e conseguiu sorrir.
“Bem, senhor Wayne, já que estávamos falan-
do de heróis, não consigo resistir e vou per-
guntar-lhe se alguma vez acharam que o se-
nhor é o Batman, o herói das histórias em
quadrinhos. Bruce Wayne é o nome real de
Batman, como o senhor provavelmente sabe.”
“É claro que sei”, disse Wayne, “porque eu
sou o Batman.”
Isso provocou um tumulto geral na mesa e
até mesmo Henry, normalmente imperturbá-
vel, levantou as sobrancelhas. Aparentemente
Wayne estava acostumado a esse tipo de rea-
ção, pois tomou calmamente um gole de
brandy, sem se manifestar.
Rubin lançou outro olhar rápido a Trumbull,
depois disse cuidadosamente: “Suponho que
devemos deduzir que o senhor quer, de algu-
ma forma, ser identificado com o personagem

62
das histórias em quadrinhos... e não com algu-
ma outra coisa com o nome de Batman, como,
por exemplo, um grau de cavaleiro no exército
britânico.”
“Tem razão”, prosseguiu Wayne. “Estou me
referindo ao personagem das histórias em
quadrinhos.” Sorriu suavemente. “É claro que
não estou tentando convencê-lo de que sou li-
teralmente o Batman dos quadrinhos, de capa,
símbolo do morcego e tudo mais. Como você
pode ver, sou um ser humano vivo e tridimen-
sional, e garanto que tenho consciência disso.
Entretanto, inspirei a existência de Batman, o
personagem das histórias em quadrinhos.”
“E como foi isso?”, perguntou Rubin.
“No passado, quando eu era consideravel-
mente mais jovem do que sou hoje...”
“Que idade o senhor tem?”, perguntou su-
bitamente Halsted.
Wayne sorriu. “Tom me disse que devo res-
ponder com sinceridade a todas as perguntas.
Por isso eu vou revelar a minha idade, embora
isso não me agrade. Tenho setenta e três
anos.”
“Não parece ter mais que cinquenta, sr.
Wayne”, disse Halsted.
“Obrigado. Eu tento me manter em forma.”

63
Com um traço de impaciência na voz, Rubin
retomou a palavra. “Poderia voltar à minha
pergunta, sr. Wayne? Quer que eu a repita?”
“Não, minha memória ainda consegue ca-
pengar satisfatoriamente. Quando eu era con-
sideravelmente mais jovem do que sou hoje,
colaborei com várias instituições de combate
ao crime. Nessa época, ganhava-se dinheiro
com heróis de histórias em quadrinhos, e um
amigo sugeriu que eu servisse de modelo para
um desses heróis. Batman foi criado a partir
de algumas das minhas características e de
minha história.”
“É claro que o personagem foi romantizado.
Eu nunca saí vestido com uma capa, nunca
tive um helicóptero, mas insisti que Batman
não tivesse poderes sobrenaturais, que tivesse
as limitações das capacidades humanas. Admi-
to que houve alguns exageros, às vezes. Até
mesmo os vilões que o Batman enfrenta, em-
bora sejam invariavelmente grotescos, são
exageros de pessoas com quem tive proble-
mas no passado e que ajudei a colocar fora de
circulação.”
Avalon observou: “Entendo por que o Su-
per-Homem o aborrece... Houve dois seriados
do Batman na televisão. O que o senhor acha

64
deles?”
“Lembro-me bem desses seriados. Especial-
mente de Julie Newmar fazendo o papel da
Mulher-Gato. Gostaria de tê-la encontrado
como adversária na vida real. O filme era para
fazer rir e para proporcionar uma diversão
saudável...”
Drake acendeu cuidadosamente um cigar-
ro, agora que a refeição tinha terminado (ele o
cobria com a mão, acreditando piamente que
assim a fumaça não se espalharia). Olhou em
torno da mesa e falou. “Parece ter sido uma
vida bem divertida... O senhor também é mul-
timilionário, como o Batman dos quadrinhos?”
“Para dizer a verdade”, respondeu Wayne,
“eu vivo bem. Minha casa, fora da cidade, é
requintada e tenho até mesmo um museu par-
ticular. Mas todos nós somos humanos. Eu
também tenho meus problemas...”
Avalon interrompeu: “Casado? Filhos?”
“Não. Nesse ponto eu também me pareço
com meu alter ego... ou ele se parece comigo.
Nunca me casei e não tenho filhos. Não é esse
o meu problema. Tenho um mordomo que cui-
da da minha casa, além de outros empregados
menos importantes.”
“Nas histórias em quadrinhos, o mordomo

65
é seu amigo e confidente. Isso está certo?”,
perguntou Gonzalo.
“Bem... sim.” Wayne suspirou.
Com um olhar pensativo, Rubin disse:
“Conte-nos sobre o seu museu, sr. Wayne.
Que tipo de museu é esse? Um quartel-gene-
ral da ciência e da criminologia?”
“Ah, não! As histórias em quadrinhos conti-
nuam fazendo sucesso, mas os meus dias de
defensor da lei estão acabados. Meu museu
consiste de curiosidades. Há muitos objetos
produzidos com base no desenho do Batman e
de sua parafernália. Acho que possuo pelo me-
nos uma cópia de cada peça desse tipo já fa-
bricada: papel timbrado do Batman, modelos
em tamanho natural do Batmóvel, as roupas
de cada um dos personagens importantes dos
quadrinhos, cópias de todas as revistas em
que o Batman aparece, vídeos de todos os
programas de televisão e assim por diante.”
“Agrada-me ter tudo isso. Afinal de contas,
tenho certeza de que os quadrinhos vão so-
breviver a mim, e serão a parte de mim que
será lembrada depois da minha morte. Não te-
nho filhos para reverenciar a minha memória e
nada fiz na vida real para me tornar parte da
história. Essas evidências de minha vida ficcio-

66
nal são o melhor que posso fazer para chegar
mais perto da imortalidade.” Rubin assentiu:
“Certo... Agora vou lhe perguntar uma coisa
que pode deixá-lo um pouco constrangido,
mas o senhor precisa responder. Ah, Tom, pelo
amor de Deus! É uma indagação necessária.
Por que não me deixa perguntar antes de pu-
lar da cadeira?”
Embaraçado e perturbado, Trumbull afun-
dou na cadeira. Rubin continuou... “Há alguns
instantes, sr. Wayne, o senhor disse que tam-
bém tinha problemas e, logo depois, ao menci-
onar o seu mordomo, deu a clara impressão
de estar aborrecido. Está tendo problemas
com o seu mordomo? Do que você está rindo,
Tom?”
“Não é nada.” Trumbull deu uma risadinha.
Foi Wayne quem respondeu: “Ele está rindo
porque fizemos uma aposta de cinco dólares:
se eu respondesse a todas as perguntas com
naturalidade e sinceridade, em vinte minutos
os Viúvas Negras arrancariam isso de mim. E
ele ganhou a aposta.”
“Devo concluir, então, que Tom Trumbull
sabe do que se trata?”
“Sim, eu sei”, disse Trumbull, “e é por isso
que fiquei de fora. Vocês fazem o interrogató-

67
rio.”
“Eu sugiro,” interveio Avalon, “que Tom e
Manny se acalmem. Vamos pedir ao sr. Wayne
que nos conte os problemas que está tendo
com seu mordomo.”
“O nome do meu mordomo”, começou
Wayne, “é Cecil Pennyworth...”
“Não seria Alfred Pennyworth?”, introme-
teu-se Halsted.
“Sem interrupções!”, exclamou Trumbull,
batendo a colher no copo.
“Tudo bem, Tom. Eu não me importo de ser
interrompido. Na verdade, Alfred Pennyworth
era originalmente o meu mordomo e, com sua
permissão, seu nome foi usado nas histórias
em quadrinhos. Entretanto, ele era mais velho
que eu e, no seu devido tempo, morreu. Nos
quadrinhos, os personagens não envelhecem
nem morrem, mas na vida real as coisas são
bastante diferentes. Meu atual mordomo é so-
brinho de Alfred.”
“É um substituto à altura?”, perguntou
Drake com suavidade.
“Ninguém poderá jamais substituir Alfred, é
claro. Mas estou satisfeito com Cecil em tudo,
menos em relação a uma coisa.” Wayne fran-
ziu a testa. “E é exatamente aí que está o meu

68
problema.”
“Vocês devem imaginar que às vezes parti-
cipo de convenções sobre heróis de histórias
em quadrinhos. Não faço alarde de ser o Bat-
man, nem apareço mascarado ou qualquer ou-
tra coisa do gênero, embora normalmente os
editores contratem atores para isso.”
“O que faço é montar uma exposição dos
itens mais notáveis da minha coleção. Às ve-
zes, meus editores colocam à venda os produ-
tos do Batman mais convencionais. Não tanto
pelo dinheiro que isso rende, mas pela publici-
dade, já que esses objetos mantêm o Batman
vivo na cabeça das pessoas. Não tenho nada a
ver com o aspecto comercial. Só exponho uma
seleção de algumas das curiosidades mais in-
comuns, que não estão à venda. Permito que
sejam vistas e estudadas, enquanto faço uma
pequena palestra sobre o assunto. Isso tam-
bém tem valor publicitário.”
“Não há necessidade de dizer que é preciso
ficar de olho em todas as peças expostas. A
maior parte delas não tem valor intrínseco sig-
nificativo, mas para mim são imensamente va-
liosas e temo que, às vezes, também para o
público. A vasta maioria dos fãs sequer pensa-
ria em se apropriar de qualquer peça. Mas

69
ocasionalmente aparecem indivíduos que, por
desonestidade natural ou, mais provavelmen-
te, por um desejo incontrolável, tentam surru-
piar alguma coisa. Temos que ficar atentos a
isso.”
“Acontece até mesmo de eu ser alvo de
atentados mais violentos. Em duas ocasiões,
houve tentativas de arrombamento no meu
museu. Fico feliz de dizer que essas tentativas
se frustraram graças a um sistema de segu-
rança bastante sofisticado. Vejo que está sor-
rindo, sr. Avalon, mas, na verdade, os objetos
da minha coleção poderiam ser rapidamente
vendidos por uma considerável soma em di-
nheiro.”
“Uma peça da minha coleção tem, de fato,
um respeitável valor intrínseco. É um anel do
Batman, no qual o símbolo do morcego foi en-
talhado numa esmeralda. Ganhei-o em cir-
cunstâncias que, se me permitem dizer, refleti-
am bem o Batman real, eu mesmo. É por isso
que sempre foi um objeto muito querido para
mim, não tanto pelo valor da esmeralda. É o
ponto alto da minha coleção e muito raramen-
te o exponho.”
“Há um ano, mais ou menos, prometi parti-
cipar de uma convenção em Minneapolis, mas

70
na hora de ir não me senti bem. Como vocês
vêem, eu estou ficando velho e, apesar de
todo o meu programa de condicionamento físi-
co, minha saúde e minha sensação de bem-
estar já não são mais como antigamente. Pos-
so ser o Batman real, por assim dizer, mas
também sou humano.”
“Assim, pedi a Cecil Pennyworth para ir à
convenção no meu lugar. Eu já tinha lhe pedi-
do outras vezes para me substituir, mas nunca,
até então, numa convenção importante. Eu
havia prometido uma exposição interessante,
mas tive que adaptá-la às possibilidades de
Cecil. Escolhi peças pequenas que pudessem
ser embaladas sistematicamente numa única
valise grande... para ser possível verificar rapi-
damente se a exposição estava intacta. E envi-
ei Cecil com a advertência normal e desneces-
sária de que deveria ficar de olho o tempo
todo.”
“Ele me telefonou de Minneapolis para dizer
que tudo tinha corrido bem e, novamente,
poucas horas mais tarde, para me contar que
haviam tentado fazer uma troca de valises.”
“Sem sucesso, eu espero — disse eu.”
“Ele me garantiu que estava com a valise
certa e que os objetos estavam intactos e em

71
segurança. Mas me perguntou se eu realmen-
te queria expor o anel. Vejam vocês: como es-
tava mandando apenas itens pequenos, senti
como se estivesse enganando meu público.
Por isso, incluí o anel para que, ao menos, os
fãs pudessem ver a mais rara e valiosa de mi-
nhas curiosidades. Disse a Cecil que ele deve-
ria expor o anel, tomando o máximo cuidado.”
“Falei com ele outra vez dois dias depois,
quando a convenção estava terminando: esta-
va ofegante e parecia exausto.”
“Está tudo bem, sr. Wayne — disse-me —,
mas acho que estou sendo seguido. Tentarei
despistá-los. Estou indo para o noroeste e logo
nos veremos.”
“Bastante alarmado, perguntei se ele esta-
va em perigo. Respondeu-me com um ‘Agora
eu preciso ir’ e desligou.”
“Comecei a agir. Suponho que seja o Bat-
man em mim. A indisposição desapareceu
completamente, fiquei pronto para a ação. Eu
achava que sabia o que estava acontecendo.
Cecil estava sendo perseguido por alguém in-
teressado naquela valise e ele não era uma
pessoa forte, do tipo heroico. Portanto, pare-
cia-lhe que o mais certo era fazer o inespera-
do. Em vez de voltar para Nova York, ele ten-

72
taria enganar as pessoas que o estavam se-
guindo, tomando uma direção completamente
diferente. Quando estivesse livre dos persegui-
dores, voltaria para Nova York em segurança.”
“Mais ainda: eu sabia para onde ele estava
indo. Tenho várias casas pelos Estados Unidos,
o que é um privilégio de quem, como eu, está
bastante bem de vida. Uma dessas casas é
num lugar pequeno e desconhecido em Dako-
ta do Norte, para onde vou, às vezes, quando
sinto o desejo de me isolar das invasões into-
leráveis do mundo em minha vida particular.”
“Fazia sentido ir para lá. Ninguém, além de
Cecil, eu e alguns representantes legais, sabia
que aquela casa me pertence. Se ele conse-
guisse chegar lá em segurança, podia ficar
tranquilo. Ao dizer que estava indo para o no-
roeste, eu entendi muito bem a sua mensa-
gem. Mas isso nada significaria para qualquer
um que tivesse escutado a nossa conversa.
Era uma coisa inteligente. Presumi que tinha
desligado apressadamente porque sentia que
os inimigos estavam por perto. Parecia-me que
havia dito logo nos veremos a fim de me pedir
que eu fosse para a casa de Dakota do Norte
para encontrá-lo. Ele queria, evidentemente,
que eu assumisse a responsabilidade. Como já

73
disse, Cecil não é do tipo heroico.”
“Ele tinha me telefonado de manhã e, an-
tes de cair a noite, eu já estava em Dakota do
Norte. Lembro-me de que me senti grato por
ser começo de outono. Eu teria odiado ir para
lá com sessenta centímetros de neve cobrindo
o chão, a quarenta graus abaixo de zero.”
Rubin, que ouvia atentamente, interrompeu
o relato: “Suponho que o seu mordomo, com
um tempo assim, teria escolhido algum outro
lugar como esconderijo. Diria que estava indo
para o sudoeste e o senhor teria se dirigido
para sua casa na Flórida, se é que o senhor
possui uma casa na Flórida.”
“Tenho uma na Geórgia”, disse Wayne,
“mas, em todo caso, você está certo. Acho
que ele teria feito isso. De qualquer forma,
quando cheguei a Dakota do Norte, descobri
que Cecil ainda não estava lá. Falei com as
pessoas que tomam conta da casa na minha
ausência (e que me conhecem somente por sr.
Smith), e elas me garantiram que ninguém ha-
via chegado. Não havia quaisquer sinais de
uso recente na casa, de maneira que nada in-
dicava que ele tivesse chegado e sido sur-
preendido dentro dela. Naturalmente, tinha
sido detido no meio do caminho.”

74
“Passei a noite na casa... uma noite des-
confortável e praticamente em claro, como po-
dem imaginar. De manhã, ele ainda não havia
chegado. Então liguei para a polícia. Não havia
ocorrências de acidentes de avião, trem, ôni-
bus ou automóvel nos quais Cecil pudesse es-
tar envolvido.”
“Decidi esperar mais um dia ou dois. Afinal
de contas, existia a possibilidade de ele ter
pego uma rota tortuosa. Ou de ter parado no
meio do caminho, ficando... entocado, por as-
sim dizer... para desorientar seus perseguido-
res. Em suma: logo ele recomeçaria sua via-
gem e deveria chegar um dia mais tarde, ou
até dois.”
“No terceiro dia, entretanto, não consegui
mais ficar esperando. Já tinha certeza de que
algo estava errado. Telefonei para minha casa
em Nova York, achando que ele poderia ter
deixado uma mensagem. Estava até me cen-
surando por não ter ligado antes para saber se
havia ou não algum recado e para deixar o nú-
mero de onde eu estava, caso Cecil telefonas-
se.”
“Seja como for, telefonei no terceiro dia. E
foi Cecil que atendeu. Foi como se um raio ti-
vesse me atingido. Ele havia chegado à noiti-

75
nha, no dia em que eu tinha partido. Disse-lhe
apenas que estaria em casa naquela mesma
noite e, naturalmente, foi o que aconteceu.
Então, cavalheiros, os senhores percebem a
minha dificuldade.”
Houve um breve silêncio depois do final
abrupto do relato e, em seguida, Rubin disse:
“Presumo que Cecil estava bem e em perfeita
segurança...”
“Sim, é claro! Perguntei-lhe sobre as pesso-
as que o estavam seguindo. Ele sorriu leve-
mente e disse: ‘Acho que os despistei, sr. Way-
ne. Ou pode ser que eu tenha me enganado
inteiramente e eles nunca tenham existido.
Pelo menos ninguém me incomodou na minha
viagem de volta.”’
“Quer dizer que ele chegou bem em casa?”
“Sim, sr. Rubin.”
“E as curiosidades da exposição estavam
intactas?”
“Absolutamente intactas.”
“Até mesmo o anel, sr. Wayne?”
“Até mesmo o anel.”
Rubin se recostou na cadeira, com uma ex-
pressão aborrecida. “Então eu não vejo onde
está o problema.”
“Por que ele me disse que estava indo para

76
o noroeste? Ele me disse isso claramente. Não
existe possibilidade de eu ter entendido mal.”
“Ele achava que estivesse sendo seguido”,
disse Halsted. “Por isso falou que estava indo
para a casa em Dakota do Norte. Mas pensou
que tinha conseguido se livrar dos perseguido-
res, ou que eles nem existiam e então mudou
de ideia e voltou direto para Nova York, sem
ter tempo de telefonar outra vez para avisá-lo
da mudança de planos.”
“Não acha, nesse caso”, retrucou Wayne
com alguma veemência, “que ele teria me pe-
dido desculpas? Afinal de contas, ele me enga-
nou e fez com que eu me lançasse a uma ca-
çada desnecessária em Dakota do Norte. Obri-
gou-me a passar mais de dois dias de incerte-
za, durante os quais não apenas temia por mi-
nha coleção, como achava que ele poderia es-
tar morto ou gravemente ferido em algum lu-
gar. Tudo isso foi o resultado de Cecil me dizer,
falsamente, que estava indo para o noroeste.
E então, ao chegar a Nova York, ele deveria
ter adivinhado, já que eu não estava em casa,
que eu havia partido em direção a Dakota do
Norte para ajudá-lo. Deveria ter tido a gentile-
za de ligar para lá e informar que estava em
segurança. Ele sabia o número do telefone.

77
Mas não telefonou nem pediu desculpas quan-
do voltei para casa.”
“Tem certeza de que ele sabia que o senhor
estava em Dakota do Norte?”, perguntou Hals-
ted.
“É claro que tenho certeza. Aliás, eu mes-
mo lhe disse. Precisava explicar por que tinha
estado fora durante três dias. Eu lhe disse: In-
felizmente não estava em casa quando você
chegou, Cecil. Tive que fazer unia rápida e
inesperada viagem para Dakota do Norte. É
preciso ter um coração de ferro fundido para
não recuar diante disso, para não começar a
pedir desculpas... mas isso aparentemente
não o perturbou.”
Nesse ponto, houve mais uma pausa e, en-
tão, Avalon limpou a garganta com um ronco
profundo: “Sr. Wayne, o senhor conhece o seu
mordomo melhor do que qualquer um de nós.
Como explica esse comportamento?”
“A dedução lógica é que foi apenas insensi-
bilidade”, disse Wayne, “Mas não me parece
que Cecil seja um homem insensível. Então
pensei o seguinte: e se ele também foi tenta-
do pelo anel e pelos outros objetos? E se havia
planejado vendê-los? Poderia me dizer que es-
tava sendo perseguido e me induzir a viajar

78
para Dakota do Norte numa missão tola, para
ter tempo de pôr a salvo em algum lugar seus
ganhos desonestos e fingir que havia sido as-
saltado. Percebem?”
“O senhor acha que Cecil é um homem de-
sonesto?”, perguntou Rubin.
“Eu não diria isso, mas qualquer um pode
ceder à tentação.”
“Sem dúvida. Mas se foi o caso, ele resistiu.
Ele não roubou nada.”
“É verdade, mas falar que estava indo para
o noroeste e não explicar por que havia muda-
do de ideia me faz sentir que ele esteve a pon-
to de cometer uma desonestidade. E não ter
tido coragem de ir até o fim desta vez não o
desculpa. Da próxima vez, ele pode ser mais
corajoso...”
Rubin voltou a perguntar: “O senhor lhe
pediu explicações sobre essa história de noro-
este?”
Wayne hesitou. “Eu não quis fazer isso. Su-
ponha que haja alguma explicação. O fato de
lhe perguntar a respeito indicaria que não con-
fio nele. E isso prejudicaria o nosso relaciona-
mento. O fato de eu ter esperado tanto tempo
piora ainda mais as coisas. Perguntar agora
significaria que eu passei o ano todo pensando

79
no assunto e tenho certeza de que ele ficaria
ressentido e se demitiria. Por outro lado, não
consigo pensar numa explicação para o que
ele fez, e não lhe ter perguntado me impede
de relaxar quando ele está presente. Estou
sempre atento, esperando que ele tente outra
vez.”
“Se o senhor não perguntar, mas continuar
convencido de que ele é culpado, parece que
seu relacionamento com ele está arruinado”,
disse Rubin. “E se perguntar, e ele o convencer
de que é inocente, seu relacionamento tam-
bém está arruinado... Mas... e se o senhor
simplesmente não perguntasse e se conven-
cesse de que ele é inocente?”
“Seria ótimo, mas como? Adoraria fazer
isso. Quando penso na minha longa e íntima
associação com Alfred Pennyworth, tio de Ce-
cil, sinto que devo algo ao sobrinho. Mas pre-
ciso de uma explicação e não tenho coragem
de pedir.”
Drake observou: “Já que Tom Trumbull
sabe tudo sobre isso... O que você tem a dizer,
Tom?”
Foi Wayne quem respondeu: “Tom diz que
devo esquecer completamente o assunto.”
Trumbull concordou: “Certo. Cecil deve ter

80
ficado tão envergonhado de seu pânico desne-
cessário que não consegue falar sobre o caso.”
“Mas falou!”, afirmou Wayne com veemên-
cia. “Admitiu, casualmente, que devia ter-se
enganado quanto à perseguição... E isso logo
que cheguei em casa... Por que não se descul-
pou nem expressou arrependimento por ter
causado problemas?”
“Talvez seja exatamente disso que ele não
consegue falar”, arriscou Trumbull.
“Ridículo! O que devo fazer? Esperar por
uma confissão em seu leito de morte? Ele é
vinte e dois anos mais novo que eu, e vai viver
por mais tempo.”
“Então”, disse Avalon, “para melhorar o cli-
ma entre vocês, precisamos encontrar uma ex-
plicação natural para o fato de ele ter dito que
estava indo para o noroeste e que justifique
também o fato de não ter conseguido pedir
desculpas por toda a preocupação que cau-
sou.”
“Exatamente! Mas explicar as duas coisas
ao mesmo tempo é impossível. Eu os desafio a
fazer isso.”
O silêncio que se seguiu durou um bom
tempo. Finalmente, Rubin falou. “E o senhor
não aceita o constrangimento como uma expli-

81
cação para o fato de ele não ter pedido des-
culpas...”
“É claro que não.”
“E também não lhe perguntaria.”
“Não, não perguntaria”, respondeu Wayne
com um tom decidido.
“E o senhor acha que tê-lo a seu serviço
nessas circunstâncias é cansativo e desgastan-
te.”
“Sim, eu acho.”
“Mas, ao mesmo tempo, o senhor não quer
despedi-lo.”
“Não. Em memória do velho Alfred, não
quero.”
“Nesse caso”, disse Rubin sombriamente,
“o senhor se encurralou, sr. Wayne, e não sei
como vai sair dessa...”
Trumbull rosnou: “Ainda acho que você
deve esquecer o assunto, Bruce. Finja que
nada aconteceu.”
“Isso é pedir muito, Tom.” Wayne franziu o
rosto.
“Então Manny tem razão! Você não vai con-
seguir escapar do buraco em que se meteu...”
Rubin olhou à volta da mesa. “Tom e eu
achamos que o sr. Wayne não consegue sair
desse impasse. E vocês, o que pensam?”

82
Avalon disse: “E se houvesse um interme-
diário...”
“Não”, interrompeu Wayne no mesmo ins-
tante. “Não quero que ninguém mais fale so-
bre o assunto com Cecil. Isso é algo que deve
ficar estritamente entre nós dois.”
Avalon sacudiu a cabeça. “Então eu tam-
bém acho que não tem jeito.”
“Parece”, disse Rubin olhando em volta,
“que nenhum dos Viúvas Negras pode ajudá-
lo.”
“Nenhum dos Viúvas Negras que estão sen-
tados à mesa”, disse Gonzalo. “Mas ainda não
perguntamos ao Henry o que ele acha. É o
nosso garçom, sr. Wayne. Ficaria surpreso com
a capacidade que ele tem para resolver coisas
assim. Henry!”
“Sim, sr. Gonzalo.” Henry continuou em seu
lugar, ao lado do aparador.
“Você ouviu tudo. O que acha que o sr.
Wayne deve fazer?”
“Concordo com o sr. Trumbull, Acho que o
sr. Wayne deveria esquecer o assunto.”
Wayne ergueu os olhos e sacudiu a cabeça
com determinação.
“Entretanto”, continuou o garçom, “tenho
um motivo específico para fazer essa suges-

83
tão. Talvez o sr. Wayne concorde comigo.”
“Bom!”, disse Gonzalo. “E que motivo é
esse, Henry?”
“O sr. Pennyworth, achando que lhe havia
dito que ia pegar o avião para Nova York, falou
que o veria logo... em Nova York. E é provável
que tenha desligado subitamente porque ouviu
a chamada para embarcar.”
“Meu Deus!”, exclamou Wayne.
“Exatamente, senhor. Então, quando che-
gou em casa e descobriu que o senhor havia
ido para Dakota do Norte, ele, honestamente,
não conseguiu ver qualquer ligação entre a
sua viagem e alguma coisa que tivesse feito.
Assim, nunca lhe ocorreu pedir desculpas. Ele
não perguntaria por que o senhor tinha ido
para Dakota do Norte. Como empregado, não
estava em posição de perguntar. Se o senhor
tivesse explicado por sua própria vontade, ele
teria compreendido e, sem dúvida, teria se
desculpado por ter contribuído para toda a
confusão. Mas o senhor permaneceu calado...”
“Meu Deus!”, exclamou Wayne pela segun-
da vez. Depois falou com energia; “E eu passei
um ano inteiro me sentindo miserável a troco
de absolutamente nada! Não há dúvida... Bat-
man cometeu um erro terrível!”

84
“Batman”, concluiu Henry, “como o senhor
mesmo observou, tem a grande vantagem e a
desvantagem ocasional de apenas ser huma-
no.”

85
Batman na Noite de Gotham
KAREN HABER e ROBERT SILVERBERG
m

Quando a figura mascarada e encapuzada


entrou no hall de mármore branco e preto da
mansão Wayne, trinta minutos antes da meia-
noite, houve um murmúrio de excitação entre
os convidados.
“Olhem só! É o Batman! Chamem a polí-
cia!” Alice Chilton tinha um falso tom de alar-
me na voz. Resplandescente em sua roupa de
bailarina da Indonésia, ela se aproximou para
ver melhor o recém-chegado.
“Não, não chamem a polícia”, disse Mara
Osuna. “Chamem os repórteres. Acho que ele
é o máximo.” Sinuosa na fantasia justa e negra
de pantera, ela também chegou mais perto,
deslizando pelo magnífico salão de baile sem
conseguir disfarçar seu entusiasmo.
O advogado Carlton Thayer, vestido como
um soldado inglês, ergueu o copo numa imita-
ção de homenagem. “Alguém precisa comba-
ter o crime. Certamente os tribunais não con-
seguem dar conta de tudo. Força para ele!”
“O mascarado não passa de um vigilante”,

86
retrucou Alice Chilton. “Não podemos deixar
que as pessoas façam justiça com suas pró-
prias mãos. Mesmo que usem luvas de seda
azul.”
Ela se voltou para seu anfitrião, que estava
silencioso num canto, com uma expressão
pensativa estampada em seu rosto.
“O que você acha, Bruce?”
Bruce Wayne observava o dublê misterioso
de seu alter ego, divertido e talvez um pouco
perplexo. Voltou-se e sorriu para sua tia.
“Não sei se este Batman é um criminoso ou
um santo. Mas sei que está atrasado. Alfred,
veja se nosso convidado inesperado quer uma
bebida.”
“Sim, senhor”, disse o mordomo com seu
sotaque inglês. “E talvez o cavalheiro queira
me dar sua capa, não?”
Batman balançou a cabeça.
O recém-chegado aceitou uma taça de
champanhe, e Wayne ergueu sua própria taça
num brinde.
“Inteligente”, pensou. “E é uma réplica
muito boa. Se é assim que eu fico, o efeito é
ainda melhor do que imaginava. A capa é óti-
ma.”
Batman entrou pelo salão, juntando-se aos

87
demônios e duendes, bruxas e feiticeiros.
Wayne o seguiu por um momento, com uma
fascinação cada vez maior.
“Parece um sonho”, pensou. “Como se eu
estivesse fora de meu próprio corpo, me ven-
do chegar a uma festa. Admirou a ousadia do
estranho. Será que sabe de quem é a casa
onde está? Provavelmente não. Ou talvez sai-
ba muito bem. Quem será ele? Vou descobrir
na hora em que todos tirarem as máscaras.”
Wayne circulou pela festa, desempenhando
com perfeição seu papel de anfitrião. No início,
o jovem milionário não queria oferecer sua
mansão para o baile de máscaras. Mas a tia
Alice tinha sido tão persuasiva que ele acabou
concordando. E Wayne certamente devia um
favor a ela. Querida Alice. Todos aqueles feria-
dos, durante o curso primário, que tinha pas-
sado em sua companhia carinhosa e gentil.
Depois do assassinato de seus pais, Alice Chil-
ton tinha sido muito boa para ele. Uma tia,
sem dúvida. Apesar de não ser parente de
sangue, tinha sido quase uma segunda mãe.
O mínimo que podia fazer era lhe oferecer um
lugar para o Baile de Caridade do Clube Femi-
nino. Além disso, queria impedir que sua repu-
tação de eremita continuasse crescendo. Por

88
isso, a nata da alta sociedade de Gotham, com
perucas e joias e, a estas alturas, bastante
embriagada, enchia sua mansão, esperando o
toque da meia-noite para tirar as máscaras.
Com um rápido movimento, Wayne passou
a mão atrás da própria máscara (um diabo
sorridente, de rosto vermelho) e limpou o suor
do queixo. Através das frestas estreitas, con-
sultou seu Rolex de ouro. Eram onze e quaren-
ta. Faltavam só vinte minutos. Ajeitou o
smoking vermelho. E se tivesse vindo de Bat-
man, também? Mas isso teria sido fácil de-
mais.
“Linda festa, Wayne”, disse uma figura de
manto marrom e máscara de coruja, com um
longo charuto pendurado de forma bizarra no
bico. A voz tinha um tom áspero e profundo.
Era o Comissário Gordon. “É bom ver a velha
mansão toda iluminada.”
“Tudo por uma boa causa”, disse Wayne.
“Eu não me importo, contanto que ninguém
quebre o meu vaso Ming.” Olhou significativa-
mente para o charuto barato do Comissário.
“Ou use a urna egípcia como cinzeiro.”
Gordon exalou uma grande e malcheirosa
nuvem de fumaça. Wayne tossiu.
“Seu seguro de vida está em dia?”, pergun-

89
tou bem-humorado. “Odiaria ver uma radio-
grafia de seus pulmões.”
“E eu odiaria ver a conta desta festa”, disse
Gordon. “Mas isso não é problema meu. Há
quanto tempo voltou para a cidade?”
“Seis meses, Comissário.”
“A Europa perdeu a graça?”
Wayne forçou um sorriso superior. “O mun-
do está cheio de prazeres e distrações. Mas de
vez em quando precisamos voltar para casa.”
Os olhos cinzentos o fitaram com astúcia
através da máscara de coruja.
“Não sei, Bruce. Se tivesse tempo e dinhei-
ro, haveria muitos lugares, que gostaria de
chamar de minha casa, além de Gotham City.”
E se afastou, dando de ombros.
Um bom homem, pensou Wayne. Um bom
tira, também. Talvez bom até demais. Ele ti-
nha uma profunda tendência à curiosidade
aguçada. Curiosidade demais. Será que sus-
peitava da verdade?
Wayne atravessou o salão em direção à
porta.
“Não passe por mim desse jeito”, disse uma
voz rouca de mulher.
Wayne se voltou. Ellen Harring estava de
pé perto da janela, a mão enluvada de branco

90
apoiada sensualmente nos quadris. O cabelo
loiro caía solto pelas costas, brilhando como
uma cascata ofuscante à luz do candelabro.
Estava vestida como virgem do paraíso, cheia
de véus dourados e brilhos.
“Muito adequado”, ele pensou. Desde seu
retorno a Gotham City, Ellen tinha encontrado
um pretexto atrás do outro para vê-lo, deixan-
do bilhetes, perseguindo-o infatigavelmente
com técnicas de caça social polidas pelo longo
uso. A cada movimento dela, ele dava um jeito
de escapulir. Um passo para a frente, dois para
trás. Por algum tempo, Wayne se divertiu, mas
o pas de deux estava ficando muito intrincado.
Agora, a jovem vinha em sua direção num mo-
vimento fluido.
Passou os braços por seu pescoço e se in-
clinou até repousar seu peito no dele.
“Por que você não me conta tudo sobre sua
coleção de armas eróticas?” A voz dela era um
sussurro.
Wayne percebeu que Ellen cheirava a bour-
bon. Com delicadeza, livrou-se do abraço.
“Você não estaria aqui para ganhar o prê-
mio pela fantasia mais bonita”, disse ele. “Não
podemos deixar que isso aconteça.”
Ela pareceu não se perturbar com sua frie-

91
za bem-educada. A expressão da elegante
donzela era totalmente franca, os olhos expli-
citamente intensos. Wayne olhou em volta
procurando uma maneira de escapar. E encon-
trou, quando a misteriosa figura de capuz azul
e máscara de morcego passou pelos dois.
“Vamos conversar com Batman sobre suas
façanhas?” Wayne se afastou para incluir o es-
tranho no grupo. “Até mesmo um vigilante
fantasiado precisa de uma assistente bonita
como você, Ellen.”
Ela se voltou para olhar: o tempo suficiente
para o anfitrião da festa entrar por uma porta
que dava para os aposentos dos empregados.
Salvo.
Wayne encostou-se na parede branca e ba-
lançou a cabeça. Uma vergonha. Tão atraente.
Ainda sentia o calor dela em seu corpo. Mas
era do tipo pegajosa. Se a convidasse para seu
mundo, para a sua cama, acabaria se arrepen-
dendo. Tudo terminaria mal, com ele arrancan-
do os dedos de Ellen, um a um, de sua vida. E
Wayne não tinha tempo, não tinha espaço
para nenhum envolvimento sério nesse nível.
A Europa o tinha curado dessas coisas.
Andou pelo corredor pouco iluminado, os
passos ecoando no chão de concreto. Saiu,

92
por detrás de uma estante, na sala de jogos.
Ali, o barulho da festa era amortecido por pai-
néis grossos e pelos carpetes vermelhos. Dois
candelabros suspensos, cor de âmbar, joga-
vam círculos quentes de luz no pano verde de
uma enorme mesa de bilhar. Um lacaio de pe-
ruca branca e jaqueta púrpura fazia uma joga-
da complicada, observado atentamente por
seu adversário, um imponente sultão com
mantos negros e um enorme turbante cheio
de joias.
“Um supersarau, Bruce”, disse o lacaio en-
quanto observava o sultão se preparar para a
próxima tacada.
“Harry... sempre perto de uma mesa de bi-
lhar. Devia ter adivinhado.” Wayne ficou em si-
lêncio. Desde a escola primária, Harry Thorn-
ton nunca tinha conseguido resistir a uma
mesa de bilhar. Quinze anos haviam apenas
aumentado seu apetite.
O sultão ergueu os olhos. Era o contador
de Wayne, Jim Weatherby. Fez um gesto am-
plo com o taco, apontando as bolas espalha-
das sobre a mesa.
“Alguma dica?”
Wayne fez que sim. “Claro. Não jogue com
Harry. Ele é um semiprofissional incansável.”

93
Deu um meio sorriso e saiu da sala, inquieto.
Cercado por essa multidão turbilhonante de
amigos e conhecidos, ele ainda estava só, es-
condendo sua agitação, sua alienação, por de-
trás da conversa inteligente e da distância que
a fortuna permitia.
Wayne tinha voltado muito infeliz da Euro-
pa, cansado das mesas de jogos e das viúvas
ricas. Estava saturado dos mesmos rostos en-
contrados nos mesmos hotéis, aqueles rostos
famintos que escrutinavam com avidez a mul-
tidão. Todos procurando pela mesma coisa.
Carne fresca. Ele também tinha participado da
caça predatória, com bastante sucesso. Há
muito tempo tinha aprendido que a boa forma
de seu corpo, seus cabelos escuros e os olhos
azuis agradavam mulheres de todas as formas
e tamanhos. É claro, o dinheiro ajudava. E
Wayne tinha herdado uma das maiores fortu-
nas de Gotham City.
Mas agora estava numa caçada diferente.
Tinha voltado para casa em busca de significa-
do. Para fazer alguma coisa útil. Para vingar o
passado. Fazia pouca diferença para ele se
Batman era visto como vigilante ou como um
herói popular. O importante é que se sentia
vivo e ligado ao mundo quando estava usando

94
a roupa de capa azul... e vazio e distante
quando não estava.
Entrou pela porta da biblioteca.
Três gerações de bibliófilos tinham reunido
uma coleção de raridades que enchia dois an-
dares de estantes. A sala, com o cheiro pene-
trante do couro antigo das encadernações e
das páginas mofadas, com suas graciosas es-
cadas e grades de cerejeira, era uma das favo-
ritas de Wayne. Esperava ficar alguns minutos
sozinho, mas percebeu que a biblioteca já es-
tava ocupada. Alguém de máscara e capa de
seda azul dava uma olhada nas estantes do
fundo, as de literatura francesa do século XIX.
Era o homem fantasiado de Batman.
Por um momento, Wayne sentiu como se
estivesse olhando num espelho. Como se fosse
o estranho do outro lado da sala, que olhava
para ele. Depois espantou essa imagem de so-
nho. Com esforço, falou em tom brincalhão, ri-
sonho. “Então, como vai a luta contra o cri-
me?”
O impostor se voltou. Parecia tenso.
“Podia estar pior.” Sua voz de tenor parecia
um pouco mais áspera por causa da bebida.
O verdadeiro Batman aproximou-se. Dava
para ver agora que o outro usava uma réplica

95
perfeita de sua própria roupa. “Linda fantasia”,
disse. “Quem é seu alfaiate?”
“Esta roupa à toa?” Batman deu de om-
bros. “Arranjei por aí. Azul-escuro sempre foi
minha cor favorita.”
“A minha também.”
“Quer trocar de fantasia comigo?”, pergun-
tou o impostor. “Gostaria de ficar um pouco no
seu lugar. Mesmo que sua roupa seja verme-
lha. Valeria a pena, para descobrir como é ser
um milionário.”
Havia um tom de ansiedade no comentário.
E um pouquinho de ameaça.
Wayne estava ficando impaciente para des-
cobrir o rosto que estava por trás da máscara.
“Você não gostaria de estar em meu lugar.
Minhas roupas e sapatos são feitos por enco-
menda. Acho que não serviriam em mais nin-
guém.”
Olhou para o Batman, cada vez mais inco-
modado. A brincadeira estava perdendo a gra-
ça. Como esse penetra ousava aparecer justa-
mente com essa fantasia?
“Acho que vou pegar outra dose”, disse o
impostor. “Com licença.”
Sua capa farfalhou como folhas secas
quando passou por Wayne e saiu da bibliote-

96
ca.
Lentamente, o relógio de parede do hall
deu doze dolorosas badaladas.
Na décima segunda, as luzes se apagaram.
No início, a conversa e a música continua-
ram. Mas, à medida que a escuridão tomava
conta da festa, os convidados foram ficando
em silêncio. A brincadeira estava se tornando
estranha. Inquietante. Com exceção de algu-
ma risadinha nervosa, o silêncio era total.
Alarmado, Bruce tateou pela parede, procu-
rando a porta. Onde estavam as lâmpadas au-
xiliares? O gerador do porão deveria funcio-
nar...
“Minhas pérolas!” Era um grito de mulher.
Outros gritos soaram na escuridão.
“Meu relógio!”
“Ladrão! Agarrem-no!”
“Luzes! Precisamos de luz!”
Wayne encontrou a porta da biblioteca e
seguiu em direção às escadas que levavam ao
porão. Tinha que ligar os disjuntores. Se isso
não funcionasse, o próximo passo seria achar
as lanternas. Onde estava Alfred, bem agora
que precisava tanto dele?
Então ouviu o barulho do gerador auxiliar e
as luzes se acenderam. Piscaram por alguns

97
momentos, ficaram mais brilhantes e desta
vez continuaram acesas. Wayne respirou alivi-
ado. Melhor evitar o pânico, pensou.
“Calma!” Sua voz estava segura. “Vocês
não precisam se preocupar. Achei que iam
gostar dessa brincadeira.”
Risadas e aplausos cobriram suas palavras.
Com uma reverência, foi para a porta da fren-
te.
Havia um grupinho de pessoas ali. Ellen
Harring e Alice Chilton estavam entre elas. A
tia de Wayne estava à beira das lágrimas.
“Bruce, é horrível”, disse ela. “Sabe o que
aconteceu? Alguém roubou as pérolas de El-
len. E o relógio de Harry. E até o broche do
turbante de Jim.”
Wayne apertou os lábios. “Está dizendo que
aquelas pérolas eram verdadeiras?”
“É claro.” Ellen falou com rispidez. “O que
você pensou que fossem?”
“E você usa pérolas numa festa a fantasia?”
Ele tinha vontade de sacudi-la.
O Comissário Gordon abriu caminho e en-
trou no grupo, com a máscara puxada para
cima, os olhos de coruja esbugalhados, olhan-
do misteriosamente para o teto.
“Alguém tem alguma ideia de quem era o

98
ladrão?”, perguntou.
“Não.”
“Nenhuma.”
“Ouvi um barulho”, disse Harry. “Como se
fosse uma mulher andando com um vestido de
cetim. Então, senti um puxão em minha man-
ga e o relógio desapareceu.”
“É alguém que enxerga muito bem no es-
curo”, disse Wayne.
Gordon concordou. “É. Alguém com olhos
de gato.”
“Ou com o sonar de um morcego”, pensou
Wayne. Olhou rapidamente pela sala mas não
viu nem sinal da meia-máscara azul, da capa
com nervuras ou do cinto dourado de utilida-
des. O Batman impostor tinha desaparecido. É
claro.
Uma brisa fria entrou na sala, erguendo as
pontas do smoking de Wayne, fazendo esvoa-
çar as penas aveludadas da roupa de Gordon.
Wayne olhou para o outro lado, Na sala de
jantar, uma janela estava escancarada, deixan-
do que um retângulo do céu escuro quebrasse
a simetria da parede forrada de espelhos.
“Fugiu por ali”, pensou. E minutos precio-
sos já tinham sido devorados pela conversa fi-
ada. Tinha que sair dali.

99
Ergueu dramaticamente as sobrancelhas.
“Meu Deus! Estão chegando as cotações de
Tóquio.” Voltou-se para o grupo. “Titia, tenho
que correr lá para cima e verificar as cotações
da bolsa. Você cuida dos convidados e do fim
da festa?”
“É claro, Bruce. Mas e o roubo?”
Wayne deu de ombros.
“Isso é departamento do Comissário Gor-
don. Tenho certeza de que ele vai cuidar de
tudo.”
Subiu as escadas correndo, ignorando os
olhares chocados nos rostos das pessoas.
“Depressa!” Passou pela porta do quarto de
hóspedes, desceu as escadas em direção à
porta dos fundos e saiu para a escuridão fria
de novembro.
Alguém ligou o motor de um carro. Wayne
reconheceu o som e franziu a testa. Era o seu
carro. E o alarme? O tal Batman não era ape-
nas um ladrão esperto, sabia também fazer
uma ligação direta. E o portão da frente esta-
va aberto. Mesmo que Wayne pegasse o con-
trole remoto, nunca conseguiria fechá-lo a
tempo.
“A caverna”, pensou. Precisava pegar a mo-
tocicleta nova e mudar de roupa. Mas não ti-

100
nha tempo. Melhor ir como estava.
Desceu a escada de dois em dois degraus,
pegou as chaves da moto e saltou sobre a po-
derosa Harley.
A moto roncou, com o facho branco do fa-
rol espalhando luz sobre o cimento. Wayne li-
gou o rastreador. Uma luzinha vermelha pul-
sou no mapa esquemático instalado ao lado do
odômetro. Sua presa estava saindo da vizi-
nhança imponente de Wayne, atravessando o
bairro novo, mais barato, em direção à rodo-
via.
Wayne fez uma careta. Se tivesse tido mais
tempo, poderia ter chamado a polícia pelo rá-
dio e dito a Gordon para mandar algumas via-
turas saírem em perseguição ao impostor.
Agora tinha que ir sozinho, caçando seu pró-
prio carro na noite de Gotham.
O vento atravessava sua roupa de seda
vermelha como cristais afiados de gelo. As lu-
zes frias da rua brilhavam através dos galhos
nus dos carvalhos que ladeavam o boulevard.
Wayne tirou as luvas da caixa lateral da moto
e vestiu-as.
Começou a se sentir mais confiante.
Cortando pela Rua Elm, entrou no estacio-
namento da Primeira Igreja Episcopal e saltou

101
a cerca, economizando alguns segundos. O
mapa mostrava que sua presa estava entrando
na rodovia. O verdadeiro Homem-Morcego gi-
rou ainda mais o acelerador.
As ruas escuras passavam zumbindo por
ele, pontuadas por manchas de água gelada
que refletiam a luz no calçamento escorrega-
dio. As casas pareciam manchas... formas
grandes e escuras surgindo por trás das cercas
cuidadosamente podadas.
Com o motor gritando, passou sobre folhas
molhadas e derrapou. Tentou desesperada-
mente manter o controle, enquanto a moto
deslizava, quase saindo da pista.
“Breque. Não, não breque, estúpido. Acele-
re”, murmurou.
A moto continuou a deslizar. Um carvalho
maciço e muito antigo, com os galhos cheios
de nós, apareceu à sua direita. Segurou-se,
pronto para um impacto de quebrar os ossos.
“Vou no mínimo fraturar a clavícula”, pensou.
“Hospital. Ataduras. Oito semanas para
sarar...”
Um trecho de calçamento seco pegou a
roda da frente. Com um gemido, a moto parou
de deslizar e, no último momento, voltou à
pista.

102
Bruce suspirou aliviado. Examinou o mapa.
Seu carro ainda estava na rodovia. E em pou-
cos instantes ele também estava. O vento zu-
nindo em seus ouvidos, tentando arrancar a
parte de trás de seu smoking vermelho.
As placas passavam por ele. Rua Hawken,
Euclid, Morton. À frente, as luzes da cidade
piscavam em seu firmamento de concreto e
ferro.
O rastreador mostrou que sua presa subia
a ladeira da Rua Principal.
Outras luzes, vermelhas e azuis, chamaram
a sua atenção. Era um carro de polícia que vi-
nha atrás dele. O uivo triste da sirene subiu
por suas vértebras. Wayne lembrou tarde de-
mais que era proibido andar de motocicleta na
rodovia.
“Droga!”
Não tinha tempo para brincar de pegador
com uma viatura. E ainda por cima sem o cin-
to de utilidades para ajudá-lo. Tinha que dizer
a Alfred para deixar um cinto extra preparado
na caverna.
Verificou o tanque de gasolina. Três quar-
tos. Bom. Na rodovia, a Harley podia ultrapas-
sar com facilidade um carro com motor de seis
válvulas. Quando entrassem na cidade... Way-

103
ne pensaria nisso depois. Tinha que apanhá-lo
primeiro.
Na saída da rodovia, reduziu a marcha com
habilidade e passou zumbindo por um farol
amarelo. A viatura veio atrás dele, com os
pneus cantando. Desviou de um carro quebra-
do, passou entre um caminhão de entregas e
um carro de passeio e entrou direto numa vie-
la.
A sirene da polícia diminuiu até se transfor-
mar num gemido. Wayne olhou por cima do
ombro. A viela estava vazia: havia apenas
sombras. Seus perseguidores deviam estar
atrás do caminhão, retardados pelas reações
lentas do motorista. Ótimo. Deveria falar a
Gordon para dar um treinamento melhor para
os policiais que dirigiam as viaturas, pensou
sorrindo.
O ponto vermelho em seu mapa foi na dire-
ção do Mercado. Parou.
Wayne digitou o endereço.
Rua do Mercado, 225. Logo depois da es-
quina com a Hayes.
Um lugar estranho. Só alguns bares, arma-
zéns e lojas de autopeças. Wayne foi em dire-
ção ao Mercado, puxando pela memória. Não
se lembrava de receptadores nesse bairro. Fi-

104
cavam todos no lado leste da cidade.
Estacionou a moto na esquina da Hayes e
andou os dois quarteirões, passando por por-
tas de ferro abaixadas e janelas trancadas.
Lá estava seu carro: uma sombra escura e
baixa no meio-fio. Silêncio... o motor desliga-
do. Nenhum sinal de movimento dentro dele,
apesar de ser difícil enxergar através dos vi-
dros embaçados. O Batman à paisana abriu a
porta do motorista. O Spencer cinzento estava
vazio.
Um sopro de música, triste e solitária, des-
viou sua atenção do carro. De onde vinha? Foi
em direção ao prédio de tijolos vermelhos,
bastante estragado.
Subiu dois degraus de pedra e entrou no
saguão do velho prédio de apartamentos. Car-
tões apagados e sujos, com nomes de antigos
moradores, ainda estavam presos às caixas de
correio, embutidas na parede. Mas na terceira
caixa, contando do fim da fileira, um cartão
novo com o número 405 tinha sido colado com
fita adesiva vermelha.
Clube Astarte, dizia o cartão.
“Nesta baiuca? Devia ser um bar ilegal”,
pensou Wayne. Desses que mudam regular-
mente de lugar para evitar a polícia. Provavel-

105
mente não tinha licença para vender bebidas
alcoólicas e cobrava cinco dólares a dose. Gor-
don gostaria de estar ali.
“Perderei o homem”, pensou.
Subiu as escadas, os degraus rangendo.
Quatro andares na direção do ritmo pulsante
de um contrabaixo, de risadas femininas, um
pouco estridentes demais, de um tocador de
trompa agarrado a uma nota.
“Quarto andar. Escuro como o inferno”,
pensou. “De onde vinha aquela música?”
Entrou num corredor e viu luz saindo pela
bandeira quebrada em cima da porta do 405.
Clube Astarte. Bruce cobriu o rosto com a
máscara de diabo e encostou na porta. Ela
abriu.
A sala estava cheia de fumaça e do cheiro
enjoativo de cerveja choca. Luzes cor-de-rosa
cortavam fracamente a escuridão. Não havia
banda. Não tinha música ao vivo. Homens e
mulheres estavam sentados de qualquer jeito
nas mesas, ou moviam-se lentamente ao som
de fita ou de algum ritmo interior, encostando-
se uns nos outros na pequena pista de dança.
Todos o ignoraram.
Talvez um homem de roupa de seda ver-
melha e máscara de diabo venha todas as noi-

106
tes nesta hora, pensou Batman, disfarçado de
capeta.
Abriu caminho entre as pessoas, procuran-
do algum sinal de sua presa.
Um corredor comprido, pomposamente pin-
tado de verde e laranja, levava aos banheiros.
Um deles estava ocupado. Ele se encostou na
parede, esperando.
Uma mulher de vestido azul muito curto,
rindo de bêbada, passou correndo e desapare-
ceu no banheiro vazio.
A porta do outro se abriu. Wayne ficou ten-
so.
Uma outra mulher, baixinha, com uma nu-
vem de cabelos vermelhos, saiu de lá. Estava
usando um vestido preto, justo, que mostrava
um pouco demais. Parou de repente quando o
viu.
“Oi, Diabo”, disse ela. Seu sorriso era um
convite sem ambiguidades. Acendeu um cigar-
ro e tragou, os olhos verdes medindo-o com
cuidado. Como Bruce não reagiu a seu convi-
te, os olhos dela se apertaram. Apontou para a
roupa dele.
“O que é isso? Carnaval?”
“Pensei que era um bar”, disse ele.
A ruiva se encostou na parede e cruzou os

107
braços. A fumaça se enrolava em tomo de sua
cabeça como uma auréola.
“Primeiro o cara de capa”, disse ela. “Agora
você com o smoking vermelho.” Ela o olhou
com aprovação grosseira. “Nada mal. Que tal
uma espiada atrás da máscara?”
“Sou tímido.”
“Quer uma bebida?”
“Mais tarde, quem sabe.”
Ele tentou passar por ela.
Ela esfregou os ombros, fingindo estar com
frio.
“Brrr. Pensei que os diabos fossem quentes.
Acho que só está interessado em comprar al-
mas. Provavelmente Ricky está vendendo al-
gumas.”
Suas palavras fizeram com que Wayne pa-
rasse no meio de um passo. Ele se voltou para
ela. “Ricky?”, perguntou.
Ela riu, um som alto e cortante. Suas pupi-
las estavam enormes.
“De repente ficou interessado”, disse ela.
“É, Belzebu. É Ricky que você quer ver, não é?
Então, continue por esse corredor até não po-
der mais. Essa também é minha filosofia pes-
soal. Vejo você depois, Satã.”
A baixinha sorriu e voltou para a outra sala.

108
O capeta seguiu pelo corredor, que termi-
nava numa parede púrpura.
“Sem saída? Então, o que ela quis dizer?”
Franziu a testa e empurrou a parede. Ela se
afastou devagar, girando sobre dobradiças em-
butidas.
Portas secretas eram sempre úteis para saí-
das rápidas numa batida da polícia, pensou.
Devia ter adivinhado.
Entrou num corredor escuro. A parede fe-
chou atrás dele.
No meio do corredor, viu luz saindo por de-
baixo de uma porta. Pressionou a mão contra
ela, que se moveu um pouco. Empurrou com
mais força. Com as dobradiças rangendo, a
porta se abriu.
Lá dentro, um homem com uma barba de
três dias e uma expressão amarga ergueu os
olhos da mesa entulhada de pequenos sacos
plásticos e uma pilha de placas eletrônicas.
Então, havia um receptador na Rua do Merca-
do. Wayne segurou um sorriso.
O receptador suspirou. “Outro, não.”
“Você é o Ricky?” Bruce falou baixinho.
“Quem é você?”
“A ruiva me mandou.”
“Donna?”

109
“Quem mais?”
O rosto do receptador relaxou, ficando a
meio caminho entre uma careta e um sorriso.
“Está bem”, disse. “O outro comediante me
deixou nervoso. Entra aqui com aquela capa
maluca e quer me vender joias. Idiota. Só tra-
balho com peças de computador.”
Wayne ficou interessado. “Então ele foi em-
bora?”
“Faz um minuto. Maldito filho da mãe. Não
quis tirar aquela máscara de morcego.”
“Por onde ele saiu?”
“O quê?”
Endiabrado, Wayne agarrou a camisa do
homem e o puxou sobre a mesa, em sua dire-
ção. Com os dentes cerrados, perguntou outra
vez.
“Por onde ele saiu?”
“Por lá.” O receptador apontou uma escada
escura do outro lado do corredor. O verdadeiro
Batman jogou o homem na cadeira e saiu pela
porta. As escadas desciam para a escuridão.
Wayne enfiou as mãos no bolso, tirou os
óculos de motoqueiro com lentes infraverme-
lhas e colocou-os rapidamente. As sombras
cinzentas se transformaram numa geometria
infernal, vermelha e preta. Correu pelas esca-

110
das. Um andar. Dois andares.
Ouvia o som de passos logo abaixo. Tentou
ir mais depressa, segurando no corrimão para
se equilibrar. Pisou em falso num degrau, qua-
se caiu, recuperou o equilíbrio e continuou
descendo.
Três andares.
Mas ainda estava muito atrás. Dobrou um
joelho, agarrou o corrimão com as duas mãos,
saltou sobre ele e escorregou pelo último lan-
ce de escadas, aterrissando sobre as plantas
dos pés.
Graças a Deus por aquele treinamento de
acrobacia na França, pensou.
Bruce viu a porta da frente balançando vio-
lentamente. Em três passadas, atravessou-a e
saiu para a rua.
O Spencer tinha voltado à vida, com o mo-
tor rugindo. Wayne procurou seu cinto. “Uma
pena ter que furar meus próprios pneus”, pen-
sou. Mas a mão que procurava o cinto tocou a
seda vermelha de sua roupa.
Olhou para baixo.
E lembrou que quem estava usando um
cinto de utilidades era o homem que estava
caçando.
Antes de ter tempo de xingar, o Spencer ar-

111
rancou. Os pneus cantaram quando o carro
escuro e brilhante saiu do meio-fio, acelerando
de zero a cem em nove segundos.
Ainda disfarçado de diabo, Batman correu
pela calçada até a viela e saiu com a moto em
alta velocidade. Estava começando a ficar
aborrecido.
Levou quinze minutos para alcançar seu
carro na rodovia, saindo da cidade.
Tonto de cansaço, observava a luzinha ver-
melha se movendo pela tela do monitor. “Está
voltando para casa”, pensou. “Provavelmente
quer guardar o carro e tomar alguma coisa.
Quando chegar lá e tocar a campainha, o Bat-
man vai me convidar para beber um conhaque
com ele. Perguntar se não quero ficar para
passar a noite. Vai me mostrar a coleção de
armas.”
O mapa mudou para um novo quadrante
quando o Spencer pegou a saída de volta a
Oakhusrt. Wayne acelerou ainda mais e des-
ceu para a rampa de acesso da Avenida Oak-
dale. As árvores, os postes e os cruzamentos
vazios passavam por ele. Estava a cinco minu-
tos de sua mansão. Então, a luzinha virou à
esquerda em Vanderheel e seguiu na direção
de Huntington.

112
Que diabo esse palhaço está fazendo?
A luzinha vermelha entrou na Rua Radison.
Parou no número 221.
A casa de Alice Chilton.
Será que ela estava envolvida nisso? A
doce Alice Chilton, com seus cabelos grisalhos,
teria armado uma cilada para ele em sua pró-
pria casa? Bruce estava disposto a acreditar
em qualquer coisa.
Acelerou e passou pela entrada de carros
da casa de sua tia em dois minutos.
O Spencer estava abandonado na frente da
casa. Vazio e com a porta do motorista aberta.
Por puro hábito, Wayne parou para fechar e
trancar a porta. Não que adiantasse alguma
coisa.
O gosto de sua tia, em arquitetura, tendia
para uma imitação do estilo Tudor. Wayne
sempre tinha achado sua casa atraente e aco-
lhedora. Mas não hoje. Agora, cada janela es-
tava fechada para ele. A frente estava escura.
Estranho. Alice geralmente deixava a luz acesa
durante a noite.
Tentou abrir a porta social. Trancada. Isso
não era surpresa. Mas perderia minutos preci-
osos se tentasse arrombá-la. E se tivesse alar-
me? Imaginou o olhar no rosto de sua tia des-

113
cendo as escadas e vendo o anfitrião de seu
baile a fantasia arrombando a porta de sua
casa aos quinze para as duas da manhã.
Talvez pudesse tocar a campainha.
É claro que ela estava em casa, na cama. A
festa já tinha terminado há mais de uma hora.
E se não estivesse na cama, se fosse cúmplice
desse Batman fraudulento, poderia ficar abala-
da ao receber uma visita enquanto contava o
produto do roubo.
Mas a campainha podia funcionar como um
aviso.
Wayne suspirou. Melhor tentar as janelas.
Foi contornando a casa, experimentando
cada uma das janelas, até conseguir abrir a da
copa. Passou por ela com dificuldade, saltando
com a leveza que vinha da prática.
“Passei muito apertado”, pensou. “Melhor
ficar mais alguns minutos por dia na sala de
ginástica.”
A cozinha estava escura. Prendeu a respira-
ção, escutando. Passos no assoalho do andar
de cima. Seria sua tia? Ou o intruso a estaria
ameaçando? Não tinha tempo para adivinhar.
Só para agir.
Saindo de seu esconderijo, foi para a esca-
da da frente. Mesmo na penumbra, a casa era

114
familiar. O cheiro do carpete limpo e da madei-
ra de cedro despertou lembranças.
Natal. Ano Novo. Risadas.
Inflexível, Bruce afastou esses pensamen-
tos.
No andar de cima, parou ao lado de uma
porta aberta. Devia ser o quarto de sua tia.
Cortinas e colcha cor-de-rosa. Ela adorava
essa cor. O cheiro de colônia enchia o ar. A
roupa de bailarina da Indonésia estava bem
dobrada sobre uma cadeira. O quarto estava
vazio.
Uma ferroada de suspeita fez com que pa-
rasse por um instante. Onde estava ela àquela
hora da noite?
Passou pela porta aberta e saiu para o cor-
redor. A primeira porta que viu era de um ar-
mário embutido. A segunda era de um escritó-
rio vazio, com exceção de uma antiga escriva-
ninha de nogueira e uma poltrona vermelha. A
terceira era de um quarto de hóspedes, pinta-
do em tons pastel. Aparentemente, alguém es-
tava usando esse quarto há algum tempo.
O divã cor-de-rosa estava coberto de jor-
nais espalhados. Roupas sujas se amontoavam
sobre o tapete amarelo. A cama estava desar-
rumada. O criado-mudo estava entulhado de

115
garrafas de cerveja vazias. O quarto cheirava
como um cinzeiro que alguém tinha esquecido
de limpar.
Havia uma pilha de álbuns de fotografia so-
bre um sofá amarelo. Wayne folheou os ál-
buns. Em vez de fotografias, cada página tinha
um recorte de jornal ou de revista. O assunto
era sempre o mesmo. Batman. Na capa do úl-
timo álbum, havia vários esboços da roupa do
Homem-Morcego.
Quem moraria com Alice e teria um álbum
como esse? Alguém que também ia a bailes de
máscaras sem ser convidado, fantasiado de vi-
gilante mascarado?
Frustrado, o jovem milionário jogou os ál-
buns sobre a cama. A casa estava vazia. O im-
postor tinha fugido, possivelmente depois de
ter dado uma parada para pegar sua cúmplice,
a gentil Alice Chilton.
Ele estava no meio da escada, entre os dois
andares, quando foi surpreendido por um forte
facho de luz. Ficou imóvel.
“Não é um pouco tarde para festinhas do
Dia das Bruxas?” Era uma voz rouca, de tenor.
O facho de luz, que parecia grudá-lo no lu-
gar, vinha de uma lanterna. Por detrás de seu
brilho, podia discernir apenas as orelhas pon-

116
tudas de uma máscara.
“Quem é você?”, perguntou. “Se machucou
Alice...”
“Machuquei Alice?” O impostor parecia sur-
preso. Então ele riu. O som tinha um tom alto
e fino, próximo da histeria. “Está maluco? Por
que machucaria Alice? Foi você que arrombou
e invadiu a casa.”
“Não fui o único. Você não tem direito de
estar aqui.”
A risada outra vez.
“Tenho todo o direito de estar aqui”, disse o
Batman. “Mas isso não importa. Você facilitou
as coisas para mim, cara. Foi muita considera-
ção. Deveria agradecer.”
“O que você quer dizer com isso?”
O impostor baixou a lanterna. Agora Wayne
conseguia enxergar a pistola de cano curto
apontada para ele.
“Milionário excêntrico rouba seus próprios
convidados em baile a fantasia. Invade a casa
de famosa filantropa para roubá-la também. É
pego e morto em flagrante. Perfeito.”
A voz de louco tinha um tom de satisfação
maligna, triunfante.
Bruce tentou ganhar tempo.
“Quem é você?”

117
“Pode me chamar de Batman. Logo todos
vão me chamar assim.”
“Como entrou aqui?”
“Que diferença faz? Lembre-se de que es-
tou apontando uma arma para você.”
“Mas não quer atirar.”
“Quero, sim.”
Batman esticou o braço, apontando a arma.
“Não! Não faça isso!” Era uma voz de mu-
lher.
Quando ele disparou, uma figura indistinta
correu para a frente de Wayne e caiu contra
ele, jogada pela força da bala, atirando-o ao
chão. Tia Alice.
“Droga!” O falso Batman gritou. “Olha só o
que me fez fazer!” Ele atirou de novo, a esmo,
e as balas entraram pelo papel de parede ace-
tinado acima da cabeça de Wayne. Então su-
biu correndo as escadas. A luz foi junto com
ele.
Por um momento, Bruce ficou parado, ator-
doado. Alice continuava ali, caída, ferida pela
bala que tinha sido dirigida a ele.
“Vamos, homem, mexa-se!”
Ele a encostou delicadamente na parede,
procurou o interruptor e acendeu a luz. Alice
estava meio deitada, meio sentada, com os

118
olhos fechados. Uma mancha vermelho-escuro
crescia na frente de seu roupão cor-de-rosa.
Wayne se ajoelhou e tocou o rosto dela
com ternura. Ela estremeceu, abriu os olhos.
“Bruce, meu menino querido, é você?”
“Sou. Não tente falar.”
Havia um filete de sangue no canto de sua
boca. Wayne ficou gelado por dentro.
“Vou chamar uma ambulância...”
“Não dá tempo! Pegou aquele Batman de
mentira?”
“Droga, Alice...”
Ele tentou fazer com que a tia se deitasse,
mas ela agarrou as lapelas de seu smoking
com determinação surpreendente.
“Depressa. Estou no fim. Está tudo bem.
Contanto que você o apanhe. Ele chegou aqui
fazendo a maior confusão...”
Ela parou, tossiu com um som dissonante,
fazendo sair mais sangue.
Bruce limpou os lábios dela com a ponta da
manga do smoking.
“Alice, deixe eu chamar um médico.”
“Depressa, querido. Estou quase no fim.
Apanhe-o. Sei que você consegue.”
Wayne olhou surpreso para ela.
“O que está querendo dizer?”

119
Alice deu um sorriso fraco. “Não queira
bancar o inocente comigo, garoto. Você nunca
conseguiu. Para o Batman autêntico, é fácil
pegar um impostor.” Ela se encostou na pare-
de e fechou os olhos. Sua voz era apenas um
sussurro. “Essa luta contra o crime... bom tra-
balho. Seus pais ficariam orgulhosos.”
Ela abriu um olho, tocou debilmente o rosto
dele.
“Mas e o amor, Bruce? Não se esqueça do
amor.”
Com um suspiro, ela se foi.
Wayne deitou a cabeça no ombro dela, as
lágrimas escorrendo pelos olhos fechados.
E o amor? O pouco que ele tinha conhecido
sobre o amor jazia sem vida em seus braços,
tinha ido embora para sempre.
Apertou os lábios contra a testa de sua tia
e deitou-a com delicadeza, tomando cuidado
para não mexer na ferida úmida em seu peito.
As lágrimas se transformaram em raiva.
O falso Batman ia se arrepender como nun-
ca quando o verdadeiro o apanhasse.
Subiu as escadas correndo.
Batman estava no quarto de Alice, abrindo
as janelas francesas que davam para a varan-
da. O vento da noite bateu nas cortinas finas,

120
fazendo com que esvoaçassem em volta do
homem armado, detendo-o o tempo suficiente
para que Wayne atravessasse o quarto.
O primeiro golpe jogou o impostor contra o
batente. O outro fez com que o bandido se do-
brasse em dois. Batman cambaleou, apanhado
de surpresa. Depois levantou.
“Você não pode ferir o Batman!” Deu um
murro violento na clavícula de Wayne.
Bruce cambaleou para trás, sem fôlego. O
impostor livrou-se das cortinas e saiu rápido
para o corredor.
“Vamos. Levante-se. Você não vai deixar
um Batman de mentira levar a melhor, vai?”
Ainda sem fôlego, Wayne correu com difi-
culdade até a escada.
Batman já estava lá embaixo. Mais um mi-
nuto e conseguiria sair da casa. Livre.
Bruce dobrou os joelhos, saltou e se jogou
por cima do corrimão. Aterrissou dois passos à
frente do impostor, bloqueando seu caminho.
Selvagemente, deu um chute para cima e
pegou o vilão no ombro, jogando-o contra a
parede.
“Quem é você?”, perguntou.
“Já disse.” O impostor estava ofegante.
“Sou o Batman.”

121
As palavras eram irritantes. Como ele podia
ser tão louco? Com uma fúria ainda maior,
Wayne fez com que ficasse de pé e o atirou
contra o corrimão.
“Há apenas um Batman.” Sua voz estava
fria. “Você é um louco! E um assassino!”
“Mentiroso!”
Por um momento, o homem tentou se livrar
dos braços de Wayne. Depois, aparentemente
exausto, relaxou, deixando a cabeça tombar.
Assim está melhor, pensou Bruce. Soltou
uma das mãos para limpar o suor do queixo.
Com um impulso violento, o impostor deu
um soco no queixo de Wayne, jogou-o de lado
e desceu correndo a escada.
“Preciso alcançá-lo antes que consiga pegar
o carro”, pensou. Desceu a escada de três em
três degraus, rezando para não perder o equi-
líbrio.
O impostor tinha aberto a porta da frente.
O capeta de roupa de seda saltou sobre os
cinco últimos degraus. Agarrou o falso Bat-
man, jogando-o no chão. Lutaram desespera-
damente. O impostor parecia ter reservas in-
termináveis de energia louca.
Chutou-o no joelho. Depois deu um soco
violento, um golpe forte nos rins.

122
Sem fôlego, quase paralisado, Wayne caiu
para trás. Ouviu o som de passos subindo as
escadas. O que ia acontecer agora?
“Vou lhe provar que sou o Batman”, gritou
o impostor. Sua voz estava alta, descontrolada.
Ainda imobilizado pela dor, o verdadeiro
Homem-Morcego abriu os olhos. Batman esta-
va tirando uma corda de seu cinto de utilida-
des. Brilhava estranhamente.
“Está bem”, disse ele. “Você pensa que sou
apenas Joey, o filho de Alice. Mas vou provar
para você. Vou provar para todos. Sou real-
mente o Batman.”
Filho de Alice? Bruce estremeceu. Agora ele
se lembrava. O filho mais velho. Sofria de perí-
odos de alucinação. Esteve internado alguns
anos. Wayne tinha se esquecido totalmente
dele. O mundo inteiro tinha se esquecido. Mas,
aparentemente, Alice o tinha trazido de volta
para casa.
“Vou sair voando pela porta.” Joe Chilton
parecia seguro. “Isso vai convencê-lo. Só o
verdadeiro Batman pode fazer isso.”
Ele se preparou para laçar o lustre de cris-
tal com sua corda brilhante.
“Seu idiota!”, gritou Wayne. “Não! Espere!”
A corda se enrolou no lustre. Pingentes fa-

123
cetados de cristal dançavam e tilintavam lou-
camente. Houve um clarão. Um estouro. Joe
gritou e começou a chutar convulsivamente,
como um fantoche puxado por cordas. Saiu
uma pluma de fumaça do lustre e a luz se
apagou. Batman caiu para a frente, sobre o
corrimão, depois para o chão, aterrissando
com um ruído surdo. Não se moveu.
Lenta e dolorosamente, o homem-diabo
conseguiu ficar de pé. Seus rins latejavam.
Seu joelho parecia estar em brasas. Com uma
das mãos sobre o rim, cambaleou para onde
Chilton estava caído, tomando cuidado para
não encostar na corda pendurada. Não preci-
sou tocar em Joe para ter certeza. Ele estava
morto. Eletrocutado. Aquela corda brilhante
era de metal.
O impostor estava caído de costas, a capa
de seda azul espalhada sob ele. As joias rou-
badas estavam a seu lado: tinham caído de
seu bolso durante a queda.
Mais uma vez, Wayne teve a incômoda sen-
sação de olhar para si mesmo, morto. Sua ca-
beça girava estranhamente. Sentiu um arrepio.
“Estou vivo”, disse para si mesmo com fir-
meza. “Sou o Batman e estou vivo.”
Puxou a máscara de seda azul para cima.

124
Por um momento, quase esperou ver a si pró-
prio. Mas o rosto atrás da máscara tinha traços
marcados, maçãs pronunciadas e cabelos cor
de areia. Não parecia nem um pouco com ele.
Só a roupa era uma boa cópia.
Levantando-se, Wayne olhou para cima,
para onde sua tia estava, e mandou-lhe um
beijo.
Então pegou o telefone e chamou a polícia.

125
Batmaluco
HENRY SLESAR
m

Sempre resisti à tentação de escrever um


diário. Em minha posição privilegiada, um rela-
to de minhas experiências teria, sem dúvida,
um valor incalculável, tanto comercial quanto
histórico. Mas também revelaria segredos a
mim confiados pela pessoa a quem devo leal-
dade e devoção — sem falar de meu salário.
Meu nome é Alfred Pennyworth, e sou o mor-
domo de Batman.
Foi só quando essa pessoa notável parecia
perdida para mim (e para o mundo inteiro)
que tive necessidade da sensação que um diá-
rio muitas vezes proporciona. Ansiava deses-
peradamente compartilhar minha dor e minha
tristeza com alguém, mas o voto sagrado de
silêncio, no que dizia respeito à identidade se-
creta de Batman, deixava-me apenas um con-
fidente: eu mesmo. E, naquela noite melan-
cólica, quando voltei da Clínica Pine-Whatney,
onde Batman definhava, coloquei uma folha
de papel numa máquina portátil mal-humora-
da (uma triste lembrança dos tempos de esco-

126
la de Mestre Robin) e comecei a relatar a visita
ao Homem-Morcego.
O Comissário Gordon, sempre gentil, per-
mitiu que eu desse uma olhada em Batman
em seu quarto, que depois ele descreveria
como uma “prisão antisséptica”. Fiquei impres-
sionado com o esquema de segurança monta-
do para evitar que se tornasse pública a situa-
ção de Batman: paciente de uma clínica subur-
bana de Gotham City. Fiquei ainda mais im-
pressionado com o cuidado do Comissário em
resguardar a identidade secreta de Batman.
Naquelas circunstâncias, poderia ter satisfeito
uma curiosidade de longa data, dando uma
olhada no rosto que estava atrás da máscara.
O homem sedado naquela cama, com aquelas
grades lamentáveis, não usava apenas o cami-
solão do hospital: usava, também, a sua más-
cara.
Eu tinha ido disfarçado como representante
da solidariedade de meu patrão, o milionário
Bruce Wayne, que oferecia toda a assistência
financeira necessária para que Batman tivesse
os melhores cuidados médicos. O artifício ti-
nha sido ideia minha, mas logo fiquei sabendo
pelo Comissário que eu não era o primeiro a
estender a mão. Centenas, talvez milhares de

127
pessoas abaladas pela notícia do colapso de
Batman tinham, espontaneamente, oferecido
ajuda. Era um tributo tocante de cidadãos
agradecidos, e fiquei um pouco envergonhado
por minha oferta ser apenas um subterfúgio.
Como as despesas médicas de Batman eram
pagas pela “Fundação Wayne”, Bruce Wayne
estava, na verdade, pagando o seu próprio
tratamento. Bruce Wayne, vocês já percebe-
ram, não é apenas meu patrão e amigo do Co-
missário Gordon: é a identidade cotidiana de
Batman.
Foi durante essa minha visita que fiquei co-
nhecendo os detalhes dos acontecimentos que
causaram a hospitalização de Batman. Até
aquele momento, todas as informações vi-
nham das infundadas notícias da imprensa, in-
cluindo a manchete infame que ofuscava a pri-
meira página do Correio de Gotham City:

BATMAN FICA BATMALUCO!

Muitas mentiras sobre Batman já foram di-


vulgadas. Mas o choque provocado por essa
manchete... Percebi que podia ser verdadeira.
Estava dolorosamente consciente da condição
atormentada da mente de Batman desde a

128
morte de Robin. É claro que sua tristeza era
compreensível e, apesar de não ser psiquiatra,
já li o suficiente sobre o assunto para saber
que sua reação estava sendo ampliada por
sentimentos de culpa. A segurança de Robin
sempre foi prioridade máxima de Batman em
todas as suas aventuras. O próprio Robin reco-
nhecia os perigos que enfrentava como parcei-
ro do Homem-Morcego na luta contra o crime.
No entanto, Batman parecia estar se culpando
pela perda do jovem valoroso e amigo.
Esta foi, com certeza, a pior época para
Batman cair naquele “pântano de desespero”,
como diz o reverendo Bunyan. Talvez fosse al-
guma conjunção de astros, ou o submundo es-
tivesse excitado com a morte de Robin... O
fato é que Gotham City não atravessava tama-
nha onda de crimes há décadas. O número de
delitos, com toda a violência que os acompa-
nha, tinha aumentado abruptamente. Mais de
dez bancos tinham sido assaltados em três se-
manas, dois deles no mesmo dia. A melhor e
mais bem guardada joalheria da cidade havia
sido roubada em quase dez milhões de dólares
em pedras preciosas. Cinco fábricas foram as-
saltadas no dia do pagamento dos funcioná-
rios, apesar de seus sistemas de segurança se-

129
rem considerados intransponíveis. E, o pior de
tudo, mais de dez pessoas inocentes tinham
sido mortas ou feridas durante esses crimes.
Apesar de sua coragem, a polícia parecia inca-
paz de evitar esse colapso e prender os res-
ponsáveis.
Senti de perto o tamanho da frustração da
lei quando o Comissário Gordon veio jantar
com Bruce Wayne, poucos dias antes do co-
lapso. Enquanto servia o jantar, ouvi o Comis-
sário expressar claramente sua ansiedade.
“Nunca vi uma coisa assim”, disse ele, ata-
cando selvagemente seu ris de veau. “Esses
vagabundos agem como se não houvesse au-
toridade policial nesta cidade.” Mastigou um
pouco e acrescentou sombriamente: “Às ve-
zes, acho que a culpa é minha. Deveria apre-
sentar minha demissão ao prefeito.”
O sr. Wayne murmurou alguma resposta
educada, mas percebi que ele não estava
prestando muita atenção à conversa.
“Há uma organização por trás disso tudo”,
disse o Comissário. “Mas não conseguimos lo-
calizar a liderança, apesar de termos reunido
todos os suspeitos.”
O sr. Wayne sorriu de leve ao ouvir esse
eco da fala do Capitão Renault em Casablanca.

130
Foi o último sorriso que vi em seu rosto.
“Já pensaram em pedir ajuda federal?”,
perguntou. “Dois dos bancos assaltados eram
federais.”
“Falei com meu amigo do FBI, Randolph
Spicer. Ele ofereceu ajuda, mas parece estar
tão perplexo e impotente quanto eu.”
“Você tem estado sob muita pressão, Co-
missário”, disse o sr. Wayne. “Com sua esposa
doente há tanto tempo e os problemas que
teve com sua filha...” (Barbara Gordon era
uma garota difícil, e o Comissário ficaria ainda
mais preocupado se soubesse de sua vida se-
creta como Batgirl.)
O Comissário suspirou. “É. Minha vida está
complicada ultimamente. Aliás, tudo anda
complicado...” Parou de falar, como se relutas-
se em completar o pensamento. Senhor Way-
ne e eu chegamos à mesma conclusão, mas,
como sou apenas o mordomo, deixei que meu
patrão falasse.
“Batman também?” Ele fez a pergunta com
muita delicadeza.
“Não que eu o culpe”, disse Gordon. “Ainda
está de luto pelo pobre Robin. E ultimamente
não tenho cumprido minha parte em nosso
acordo. Ele conta comigo para saber o que

131
está acontecendo, e há semanas que não te-
nho contato com ele...”
É claro que o Comissário, desconhecendo a
outra identidade do sr. Wayne, não sabia que
estava “em contato” com Batman naquele
exato momento. Se houve um brilho de ante-
cipação nos olhos de Bruce Wayne, não conse-
gui perceber à luz das velas. Ele ficou olhando
para o Comissário Gordon, em contemplação
solene, sem dizer nada.
Lembrei-me desse último encontro quando
vi o desacorçoado Comissário no confinamento
frio e branco da Clínica Pine-Whatney e ouvi
sua descrição patética de como Batman tinha
sido encontrado vinte e quatro horas antes.
“Foi na loja de departamentos Wellman’s.
Tinha soado o alarme, avisando que era um
assalto. Mandei pessoalmente mais de dez po-
liciais para o local. Mas, por algum motivo,
eles foram para o andar errado. Os ladrões,
que tinham arrombado o cofre, fugiram com
meio milhão de dólares em dinheiro... Desta
vez, apesar de respeitar o seu período de luto,
decidi usar minha linha direta para falar com
Batman. Contei o que estava acontecendo, e
ele não negou ajuda.”
“Mas não era tarde demais?”, arrisquei. “Os

132
bandidos já não tinham fugido?”
“Você sabe que Batman não é homem de
usar só força bruta e truques. Ele é muito inte-
ligente, principalmente quando se trata de
desvendar crimes. Achei que talvez ele tivesse
alguma ideia de como seguir os bandidos até
seu esconderijo. Mas... você também sabe o
que aconteceu.”
Confessei que não confiava muito nas notí-
cias dos jornais.
“Mas eram verdadeiras”, disse o Comissário
Gordon com pesar. “Uma freguesa da seção de
lingeries da Wellman’s gritou quando viu o ho-
mem fantasiado vagando sem rumo pela loja.
Uma das vendedoras chegou perto dele, viu
que era o Batman e perguntou se precisava de
ajuda. Ele olhou vagamente para ela e mur-
murou algumas palavras sem sentido. Depois
sentou no carpete, apoiou a cabeça nas mãos
e... chorou.”
Não podia demonstrar o que estava sentin-
do sem revelar minha ligação próxima com o
Cruzado Encapuzado. Então, murmurei algu-
mas palavras de simpatia e, lutando contra mi-
nhas próprias lágrimas, perguntei ao Comissá-
rio qual era o estado de saúde de Batman.
“Está consciente de novo”, disse Gordon.

133
“Mas não se lembra da ausência que teve. Ele
se recusa a ficar na clínica para se tratar, mas
concordou em começar imediatamente uma
terapia intensiva.”
Expressei minha alegria e perguntei qual
era o tratamento indicado.
“Pedi à minha terapeuta que o aceitasse
como paciente e ela concordou.”
“Ela?” O leve erguer de minha sobrancelha
não escapou ao Comissário.
“É uma das melhores psiquiatras de Go-
tham City. O nome dela é Letitia Lace, e foi re-
comendada por Randolph Spicer, do FBI. Ela
me ajudou muito durante a doença de minha
mulher...”
“Mas e a... verdadeira identidade do Bat-
man? Não correrá... riscos num tratamento
psiquiátrico?”
“A dra. Lace concordou em respeitar seu
desejo de anonimato. E, mesmo que sua iden-
tidade seja... revelada espontaneamente, ela
vai guardar o segredo dele. Sigilo profissional,
você sabe como é.”
Desta vez, não consegui disfarçar meu ceti-
cismo, mas o Comissário deu de ombros.
“Quem sabe... seja bom para o Batman pa-
rar de desempenhar um duplo papel... Pode

134
estar sofrendo de uma crise de identidade.
Talvez, se fosse uma só pessoa, pudesse levar
uma vida mais normal, sossegar, até se ca-
sar...”
“Será?” Tentei visualizar uma mulher na
Batcaverna. Batman tinha sempre fugido de
compromissos por causa de sua dedicação, e
isso custou-lhe o amor de várias mulheres no-
táveis. Mas agora eu estava preocupado com a
nova mulher que entraria na vida dele.

É claro que eu não estava presente quando


Batman reclinou, pela primeira vez, sua figura
maravilhosamente fantasiada no divã de couro
da dra. Lace. Mas este relato pode ser consi-
derado bastante exato, pois veio do próprio
Batman, cuja memória é tão formidável quan-
to sua musculatura.
A primeira coisa a ser dita sobre a dra. Leti-
tia Lace é que ela não conseguia inspirar con-
fiança em seus pacientes na primeira consulta.
A razão era bem simples. A doutora, popu-
larmente falando, era “boa à beça”. Ela se es-
forçava bastante para disfarçar sua beleza
usando vestidos largos e escuros, mas suas

135
curvas insistiam em aparecer voluptuosamen-
te. O cabelo era negro como as asas de um
morcego. Ela o penteava com sobriedade, mas
o penteado só realçava a impressionante cor
violeta de seus olhos e a perfeição de seus tra-
ços. Aliás, os olhos eram escondidos por ócu-
los de aros grossos, mas Batman, com sua vi-
são aguçada, via muito bem o que tinha por
trás deles...
Batman, porém, não alimentava preconcei-
tos e estava disposto a conceder à dra. Lace o
benefício da dúvida, até mesmo depois de ela
ter começado a sessão com uma pergunta
bombástica.
“Pode me dizer por que você não respeita o
sistema legal americano?”
“Ei! Espere um pouco...” Batman não termi-
nou a frase.
“Tomar a lei em suas próprias mãos vai
contra tudo que o nosso código criminal de-
fende. Quem lhe deu o direito de ser o juiz e o
júri de pessoas iguais a você?”
“Olhe, há algumas coisas que você não
compreende...”
“Compreendo a justiça feita por justiceiros”,
disse a doutora com frieza. “Vai negar que isso
sempre leva à quebra das garantias constituci-

136
onais? Que anula o processo justo, prejudica o
inocente mais do que pune o culpado, que
leva à anarquia e até mesmo ao fascismo?”
Batman ameaçou sentar, fervendo de indig-
nação, mas depois achou que estava sendo
deliberadamente provocado e relaxou.
“Concordo com você”, disse de maneira
desconcertante. “Também não acredito em
justiceiros. Foi por isso que fui oficialmente
delegado pelo Comissário de polícia há muitos
anos. Não julgo criminosos. Tento prendê-los e
entregá-los às autoridades competentes. Sou
apenas outro tipo de policial. Isso responde a
suas perguntas?”
“Não se vêem muitos policiais de capuz,
roupas coladas no corpo e capas parecidas
com asas de morcego.”
“Tenho um motivo para usar esta fantasia.”
“Poderia me contar qual é?”
Batman hesitou. Fazia muito tempo que
não precisava se explicar.
“Logo que decidi dedicar minha vida à luta
contra o crime, aconteceu uma coisa... uma
coisa que pode ser considerada simbólica.” Ele
sorriu. “Você sabe tudo sobre símbolos, não
sabe, dra. Lace?”
“Continue.”

137
“Um grande morcego negro entrou pela ja-
nela aberta de meu escritório... Você gosta de
morcegos?” Ela não respondeu. “Acho que
não. A maior parte das pessoas tem pavor de
morcegos. Eles nos inspiram um medo supers-
ticioso, apesar de quase todos serem criaturas
inofensivas, úteis para o equilíbrio ecológico.”
“É isso que pretendia fazer? Inspirar medo
supersticioso nas pessoas?”
“Não nas pessoas, doutora. Só nos bandi-
dos.”
“Como aquele que matou seus pais?”
“Estou vendo que sabe algo sobre o meu
passado.”
“Não sobre o seu passado”, respondeu a
doutora. “Sei algumas coisas sobre sua lenda.
É uma lenda, não é?”
“Está querendo dizer que não é verdade?”
Batman sentiu que a psiquiatra deu de om-
bros, apesar de não conseguir vê-la do divã.
“Acho que você tem vontade de criar um
mito”, disse ela. “Isso não fica claro em seu
comportamento? Minha única pergunta é: o
mito foi criado para ajudá-lo em sua ‘carreira’
ou para racionalizar alguma injustiça secreta
que cometeu?”
“Acha que estou escondendo alguma

138
coisa?”, perguntou Batman, debochadamente.
“Não tenho ideia.” A doutora estava sendo
sincera. “É por isso que estamos aqui. Para
descobrir o que pode estar acontecendo sob a
superfície de sua vida. Na Batcaverna de sua
mente, por assim dizer.”
“E o que você acha que pode ser?”
“Se tivesse que arriscar uma resposta, o
que seria pouco profissional...”
“Estamos entre amigos.”
“Diria que a culpa é uma possibilidade. A
culpa que pode ter sentido na noite em que
seus pais foram mortos por aquele assaltante
de rua... Você não se esforçou para salvá-los,
não é?”
“Eu era um garoto. O que poderia ter fei-
to?”
“Poderia ter morrido com eles. Mas você
sobreviveu... Aquele assassino de sangue frio
deixou que você vivesse. Não é essa a verda-
de?”
Batman fez uma careta.
“Sim. Ele ouviu o som de uma sirene de
polícia ao disparar os tiros, e fugiu.”
“E o que você sentiu depois que isso acon-
teceu, quando percebeu que seus pais esta-
vam mortos? Dor, raiva, desejo de vingança?”

139
“Senti todas essas coisas. Foi quando jurei
conduzir minha vida da maneira que tenho fei-
to. Desde aquela noite, passei todo o meu
tempo treinando minha mente, meu corpo...”
“Isso ajudou? Será que toda essa dedica-
ção, todos os criminosos que prendeu com-
pensaram a culpa que sentiu quando seus pais
morreram?”
“Não posso responder.”
“Então tenho outra pergunta: do que você
se lembra daquela noite? O que você viu?
Como agiu? Como se sentiu?”
Batman hesitou.
“Não me lembro de muita coisa. Só da es-
curidão. Do assaltante que apareceu de repen-
te, mandando que minha mãe lhe desse o co-
lar. Meu pai resistindo. A arma disparando...
duas vezes. É tudo do que eu me lembro.”
“Não faz mal.” A doutora falou com suavi-
dade. “Todos os detalhes ainda estão aí, bem
no fundo do seu subconsciente. Vou resgatar
todos, através da hipnose. Depois vamos ver
se eles têm algum sentido para a nova culpa
que está fazendo você sofrer, a que fez você
chorar em público...”
“Nova culpa?” Ela não respondeu, mas Bat-
man não teve dificuldade para ler seus pensa-

140
mentos. “Está falando de Robin, é claro.”
“Estou”. A doutora não hesitou ao respon-
der. “Robin. Como é mesmo que a imprensa o
chamava?”
“O Menino-Prodígio.”
“É. E que morreu lutando pelos outros... ao
contrário do menino que continuou vivendo,
enquanto os outros morreram...”
Desse relato que Batman fez, ficou eviden-
te que ele estava lidando com uma personali-
dade formidável, felizmente numa causa be-
néfica. Devo confessar que, pela primeira vez
desde que me tornei o confidente de Batman,
percebi que ele estava exposto às mesmas fra-
quezas que separam a humanidade dos deu-
ses. Deveria ter aceito com naturalidade esse
sinal de sua humanidade, mas não consegui
evitar uma sensação de desapontamento.
Posso fazer um relato ainda mais detalhado
do que aconteceu na sessão seguinte de Bat-
man com sua psiquiatra, porque todas as pala-
vras foram gravadas.
Foi a sua primeira sessão de hipnose. É cla-
ro que ele ficou preocupado com o que pode-
ria revelar sobre si mesmo (sobre Bruce Way-
ne). A dra. Lace garantiu que pacientes hipno-
tizados não se comportam de maneira contrá-

141
ria às suas convicções nem revelam segredos
que consideram sagrados. Batman, sabiamen-
te, pediu que ela lhe desse mais garantias. Pe-
diu que gravasse a sessão inteira.
Na transcrição que se segue, cortei o diálo-
go introdutório, usado para induzir o estado de
transe.

DRA. LACE: Quero que volte à noite da


morte de seus pais. Sei que a viagem será pe-
nosa para você, que preferiria não fazê-la,
mas não pode evitar. Você é aquele menino e
está voltando para casa com seus pais. Já está
na rua escura? Conte o que vê.
BATMAN: Estamos conversando. Acabamos
de assistir a um filme e falamos sobre ele. Eu
gostei do filme. Eles não gostaram muito. Mi-
nha mãe achou que era muito violento... Espe-
re! Há alguém ali!
DRA. LACE: Onde?
BATMAN: Debaixo do poste de luz. Ele está
fingindo que está amarrando o sapato. Tenho
certeza de que espera por nós.
DRA. LACE: Você é apenas um garoto.
Como sabe disso?
BATMAN: Não sei como. Parece que sem-
pre consegui... saber coisas sobre as pessoas.

142
O que pensam, o que pretendem fazer. Seus
olhos me contam coisas. Os olhos desse ho-
mem... ele está assustado, com um medo ter-
rível. E isso me dá medo...
DRA. LACE: Por quê?
BATMAN: As pessoas assustadas são peri-
gosas... Ei, papai, aquele homem tem um re-
vólver!

Nesse ponto, a voz gravada de Batman fi-


cou diferente. Podia jurar que era a voz de um
garoto. Estava estranha, um pouco fraca.

DRA. LACE: Continue. O que aconteceu de-


pois?
BATMAN: Ele disse... era um assalto! Não
parecia real. Parecia o filme que a gente tinha
visto... Disse que ia levar o colar que minha
mãe estava usando. O bandido a agarrou, e
meu pai gritou para que a soltasse... Foi então
que ele atirou... Meu pai caiu... e, quando mi-
nha mãe pediu socorro, o assaltante atirou
nela também... Corri para perto deles, mas sa-
bia que não podia fazer nada, que os dois es-
tavam mortos, que tinham morrido instantane-
amente...
DRA. LACE: E o assaltante? Onde ele esta-

143
va?
BATMAN: Ele fugiu. Um guarda ouviu os ti-
ros... apitou e veio correndo... O resto daquela
noite... está em branco.
DRA. LACE: Então precisamos explorar
mais, Batman. Você precisa entrar mais fundo
em seu subconsciente...

A fita girou em silêncio por uns cinco minu-


tos enquanto, imagino, a dra. Lace tentava
aprofundar o estado hipnótico. Mas, quando
recomeçou a fazer perguntas, Batman não
conseguiu lembrar-se de coisa alguma além do
que já tinha falado sobre aquela noite fatídica.
Enquanto Batman lutava para reconquistar
sua estabilidade emocional, o mundo fora do
consultório da dra. Lace parecia ficar comple-
tamente louco!
O Correio de Gotham City comandava a
loucura. Seu editor, Samuel Leaze, tinha sede
de vingança desde a ocasião em que seu ta-
bloide irresponsável tentara aumentar a tira-
gem com rumores escandalosos sobre Bat-
man. Primeiro, com uma reportagem sugerin-
do que Batman havia livrado a Mulher-Gato
das garras da lei por causa de um envolvimen-
to amoroso. Depois, com uma nova publicação

144
de boatos sobre Batman e a Mulher-Gato. Mas
a gota d’água fora um parágrafo, na coluna de
fofocas, que sugeria um relacionamento ilícito
entre Batman e Robin. Batman ficou furioso, é
claro, mas não tinha condições de processar o
jornal, como Leaze sabia muito bem. Alguns
membros do Fã-Clube do Batman se vingaram.
Quando o jornal soltou um enorme balão,
como parte de uma campanha promocional,
conseguiram colocar nele a mensagem: COR-
REIO DE GOTHAM CITY - UM BALÃO FURADO.
O editor, ao tentar arrancar a mensagem do
balão, acabou subindo com ele, preso aciden-
talmente às cordas, e passou pela humilhante
experiência de ser salvo... pelo próprio Bat-
man. O episódio só fez com que Samuel Leaze
desprezasse Batman ainda mais.
Desde o dia do colapso de Batman, não
houve uma única edição do Correio de Gotham
City que não trouxesse uma manchete de pri-
meira página sobre a condição “sem esperan-
ças” de Batman. Desrespeitando a verdade, o
jornal citava “fontes seguras”, “porta-vozes do
hospital” e “pessoas próximas”, que diziam
que Batman estava à beira da insanidade total.
Apesar da angústia que sentia ao ler essas re-
portagens, eu ainda acreditava que o público

145
não levaria em conta essas mentiras. Até certo
ponto, minha fé era justificada... mas os “Bat-
pirados” apareceram.
Não gosto de repetir essa expressão vulgar,
mas ela se tornou frequente em Gotham City e
não foi apenas obra do Correio. Os meios de
comunicação locais, a imprensa nacional e as
emissoras de televisão usavam essa expres-
são. Logo as emissoras de todo o país esta-
vam enviando repórteres à nossa cidade, na
esperança de levar alguma notícia quente so-
bre o “Batpirado” para aumentar a audiência.
Esse foi, certamente, o pior período da vida de
Batman, sem falar da minha.
A primeira aparição ocorreu na inauguração
de um novo shopping no centro de Gotham.
Definitivamente esse não foi um acontecimen-
to significativo para o avanço da humanidade,
mas atraiu milhares de pessoas, seduzidas
pela promessa de brindes e diversão grátis. Na
verdade, acharam que a figura encapuzada
que desceu de repente no meio deles, presa
ao que parecia ser um Batfio, fazia parte do
show. Fiquei perplexo ao ver a fotografia de
primeira página daquela aparição e ao ler a
manchete que a acompanhava.

146
BATMAN ESTÁ BATGORDO!

Na verdade, a manchete era justificada. A


figura encapuzada que balançava na ponta do
fio era mesmo corpulenta. A roupa justa de
Batman mostrava o volume dos quilos a mais,
incluindo uma barriga digna de outra figura le-
gendária: Papai Noel. Além disso, nenhuma
tentativa foi feita para ocultar o fato de que a
barriga e os volumes a mais eram falsos, um
disfarce bem-humorado inventado por al-
guém... e que esse “alguém” parecia ser o
próprio Batman!
É claro que era um impostor. Estava absolu-
tamente certo disso quando corri para levar o
jornal ao sr. Wayne e bati com energia na por-
ta do quarto. Tinha que ser uma brincadeira
inventada pela equipe de promoção do novo
shopping, ou talvez pelo pessoal do Correio de
Gotham City. Mas um terrível choque me
aguardava. Como o sr. Wayne não veio abrir a
porta, entrei no quarto e vi que ele estava na
cama, dormindo. A primeira coisa que notei,
jogada sobre uma cadeira, bem à vista, foi a
roupa do Batman. Mas o que me surpreendeu
foram os rolos de algodão abertos sobre o ta-
pete, ao lado de vários travesseiros, que obvi-

147
amente tinham sido usados como enchimento.
Muito abalado, larguei o jornal, saí do quarto e
fechei a porta.
Não disse nada ao sr. Wayne sobre o que
tinha visto, e ele não fez comentário algum,
nem mesmo depois de folhear o jornal. Na
verdade, ele estava absolutamente não-comu-
nicativo desde o início da terapia com a dra.
Lace, como se ela tivesse receitado discrição
como parte do tratamento.
Então, dois dias depois, apareceu outro
“Batpirado”.
Talvez vocês conheçam o monumento no
parque central de Gotham City, que tem diver-
tido as crianças por mais de cinquenta anos.
Esculturas em tamanho natural reproduzem
vários dos famosos personagens de Alice no
País das Maravilhas. Está sempre lotado de cri-
anças felizes, que gostam de escalá-lo.
O tempo não estava bom no domingo do
centésimo vigésimo quinto aniversário do
clássico de Lewis Carroll. Apesar da garoa per-
sistente, foi feita uma pequena cerimônia di-
ante do monumento a Alice. Havia uma cele-
bridade inesperada entre os presentes. Quan-
do o prefeito e alguns outros políticos ilustres
se reuniram para prestar tributo ao autor e à

148
sua criação — e para dar à imprensa a oportu-
nidade de uma foto —, Batman apareceu
triunfalmente nos ombros de pedra de Chico
Bam e Chico Bum. Só que não era o Batman
que todos conheciam e amavam. Este Cruzado
Mascarado usava uma enorme cartola com
uma etiqueta de preço pendurada na aba, ob-
viamente o chapéu usado pelo Chapeleiro Lou-
co. Jogando a capa para trás, abriu os braços
e gritou para o grupo de pessoas:
“Feliz aniversário do... Batcartola!”
Soltou uma gargalhada aguda e sem hu-
mor, típica dos dementes, e desapareceu de
repente, como tinha aparecido. Com a agilida-
de costumeira do Batman, ele sumiu antes
que os fotógrafos presentes conseguissem
mais que uma imagem borrada de sua partida.
Na manhã seguinte, olhei para aquela foto
na primeira página do Correio e estremeci. Mi-
nha teoria do “impostor” estava enfraquecida.
Apesar da má qualidade da fotografia, reco-
nheci o chapéu. Era um troféu de uma das
mais famosas aventuras de Batman, quando
ele capturou Jervis Tetch, o “Chapeleiro Lou-
co” que aterrorizou Gotham City até Batman
acabar com sua carreira. O chapéu estava
sempre trancado no museu particular de Bat-

149
man, mas, quando desci à sua toca subterrâ-
nea, lá estava ele, jogado de qualquer jeito ao
lado do computador, ainda úmido de chuva.
Em todos os meus anos como mordomo,
nunca tinha me aventurado a aconselhar ou
criticar Batman, mas agora estava fortemente
inclinado a fazer isso. Era óbvio que ele tinha
passado da depressão para a demência, e ti-
nha que discutir o assunto com alguém, por
mais sutil que fosse.
Pela lógica, o Comissário Gordon era a úni-
ca pessoa com quem eu poderia dividir minhas
preocupações. Usei o mesmo ardil que tinha
usado para entrar na clínica: a preocupação de
meu patrão pelo bem-estar de Batman. Mas
não adiantou. O Comissário estava ocupado
demais para atender a meu telefonema, e isso
era compreensível. Os bandidos de Gotham
City, mostrando seu desprezo pelo “Batpirado”,
intensificaram seu ataque ao patrimônio públi-
co. O Comissário Gordon estava, sem dúvida,
fora de si, especialmente depois que a impren-
sa começou a pressionar o prefeito Paul Dono-
van para que exigisse sua demissão. Na verda-
de, isso parecia inevitável.
Então, outra ideia me ocorreu. Talvez fosse
bom falarem particular com a psiquiatra de

150
Batman, a dra. Lace. As consultas estavam
sendo pagas através do banco do sr. Wayne, e
isso era um bom pretexto para a conversa.
Em vez de arriscar outra recusa por telefo-
ne, fui pessoalmente ao consultório, tomando
o cuidado para não chegar lá na hora da con-
sulta diária de Batman. Mas havia ainda uma
surpresa me aguardando. Quando cheguei, vi
alguém saindo da casa da dra. Lace, um ho-
mem que reconheci imediatamente. Era o pre-
feito Donovan.
Ainda estava pensando sobre essa estranha
coincidência quando toquei a campainha. A
enfermeira da doutora, a sra. Bonny, uma ma-
trona de olhos frios, recebeu-me cheia de sus-
peitas. No entanto, quando levou meu recado,
a dra. Lace me atendeu com muita amabilida-
de.
Sua primeira pergunta foi porque o benfei-
tor de Batman, o sr. Wayne, não tinha vindo
pessoalmente. Não era estranho mandar um
mordomo em seu lugar?
“O sr. Wayne está indisposto. Pegou algum
tipo de virose.” Nem pisquei ao mentir. Havia
uma verdade simbólica no que eu tinha dito.
“Bem, espero que o sr. Wayne compreenda
que posso revelar muito pouco sobre este

151
caso. Não seria ético.”
“Ele compreende que a senhora deve res-
peitar a confiança de seu paciente. Mas está
muito preocupado com o que está acontecen-
do, com essas aparições bizarras... A senhora
soube do... comportamento excêntrico de seu
paciente?”
“Estou sabendo, sim.” A voz dela era fria.
“Mas por que presume que qualquer compor-
tamento ‘excêntrico’ seja anormal? Não lhe
ocorreu que Batman possa apenas estar ex-
pressando um senso de humor reprimido há
muito tempo?”
“Nunca achei que o senso de humor de
Batman fosse ‘reprimido.’” Eu respondi com a
mesma frieza. Depois, com medo de estar fa-
lando demais, acrescentei rapidamente: “Pare-
ce estranho que ele tenha ficado tão brinca-
lhão pouco depois de sofrer uma perda trági-
ca...”
“O período normal de luto já passou há al-
gum tempo”, disse a doutora. “Esta pode ser,
simplesmente, a maneira de Batman expressar
seu novo entusiasmo pela vida, brincando com
sua identidade.”
“É exatamente isso que me preocupa...
quero dizer, que preocupa o sr. Wayne. A brin-

152
cadeira parece tão sem graça! Batgordo! Bat-
cartola! O que será que ele vai fazer agora?”
Eu logo descobriria. O telefone sobre a es-
crivaninha da dra. Lace tocou baixinho e ela
atendeu. Seu lindo rosto ficou sombrio ao ou-
vir a voz da sra. Bonny. Quando desligou, dis-
se: “Vai ter que me dar licença. Um dos meus
pacientes está com problemas.”
Foi só depois que saí do consultório da
doutora que descobri que o paciente era o
próprio Batman. Felizmente, passei por um
carro com o rádio ligado muito alto e ouvi a
notícia. Batman tinha sido visto no parapeito
do trigésimo andar do edifício Gotham City
Towers. A polícia e os bombeiros correram
para o local com escadas e redes, para o caso
de uma tentativa de suicídio.
Fiquei horrorizado, é claro. Batman era fre-
quentemente considerado um super-herói, e
circulavam muitos mitos sobre seus poderes
super-humanos. Mas ele tinha conquistado to-
das essas qualidades através de um rigoroso
treinamento de corpo e mente. E já tinha de-
monstrado que sua mente era bastante vulne-
rável, mas seu corpo também era. Corri para o
edifício.
Era impossível ir depressa. Todas as ruas,

153
numa área de vinte quarteirões em volta do
prédio, estavam cheias de pessoas e carros.
Era uma atração irresistível: não se tratava
apenas de um suicida em potencial, mas de
um suicida que era, certamente, a pessoa
mais famosa de Gotham City. Talvez agora pu-
dessem comprovar se seu “super-herói” podia
ou não voar como o Super-Homem. Ou, tal-
vez, ficariam saciados com a visão do corpo
esmagado e ensanguentado de Batman. Como
estão vendo, meus pensamentos eram os mais
mórbidos possíveis quando finalmente conse-
gui enxergar o prédio. Lá, como tinha sido
anunciado, estava Batman, sentado calma-
mente no parapeito, segurando um objeto
branco na mão enluvada de azul.
Não percebi o que era o objeto até que
Batman, aparentemente satisfeito com o ta-
manho da audiência, levantou e levou-o aos
lábios. Então, sua voz soou pelo megafone, fa-
zendo com que eu gelasse até a medula.
“Senhoras e senhores! Com vocês o... Bat-
balão!”
Sabia o que ia acontecer, mas minha mente
se recusou a acreditar. Batman ficou nas pon-
tas dos pés, abriu a capa em forma de asas de
morcego e mergulhou graciosamente. Por um

154
momento parou no ar, como se estivesse vo-
ando, à maneira da criatura noturna que imita-
va... mas a gravidade ganhou a disputa. Um
grito coletivo de horror e espanto ergueu-se
da multidão quando Batman saltou lá das altu-
ras em direção às pessoas. Os policiais e os
bombeiros, com seus equipamentos de resga-
te ainda nos carros, olharam impotentes para
ele. Quanto a mim, consegui apenas fechar os
olhos e rezar pela alma imortal de meu patrão.
De repente, o tempo pareceu parar!
Não percebi o que tinha acontecido até que
outro grito de espanto, vindo dos espectado-
res, fez com que eu abrisse os olhos e visse
Batman suspenso acima do chão, como uma
cena em câmera lenta. Seu voo para o esque-
cimento tinha sido abruptamente interrompi-
do. O Batfio quase invisível, amarrado à sua
perna, havia feito com que parasse a menos
de dois metros da calçada. A perna de um ho-
mem mais fraco teria sido arrancada pelo im-
pacto. Batman apenas riu com o “sucesso” de
sua brincadeira e saltou com leveza para o
chão. Então, acenando à multidão perplexa,
correu para o Batmóvel e disparou rua abaixo.
Sua gargalhada misturava-se ao ranger do
motor.

155
As imagens do acontecimento encheram o
noticiário das seis, e os comentários jocosos
dos jornalistas indicavam que eles comparti-
lhavam a mesma opinião do mundo: Batman
estava louco.
Esse não foi o único assunto do telejornal.
Houve também reportagens sobre a onda de
crimes em Gotham City e uma entrevista gra-
vada com o prefeito Donovan, que afirmou ca-
tegoricamente ter total confiança no Comissá-
rio Gordon e que não ia demiti-lo. Apesar de
ficar aliviado pelo Comissário, algo naquilo
tudo me incomodava.
Naquela noite, resolvi arriscar todo o meu
relacionamento com Batman, quebrando uma
regra sagrada. Faria ao sr. Wayne uma pergun-
ta direta sobre a situação.
Não consegui dormir. Tinha certeza de que
não dormiria antes de me livrar desse fardo.
Joguei as cobertas de lado, vesti um roupão e
fui para o quarto do sr. Wayne. Nem me dei ao
trabalho de bater: simplesmente entrei. Estava
escuro, iluminado apenas pelo luar que banha-
va o vulto adormecido. Ele se mexeu um pou-
co quando cheguei perto e, por um momento,
quase perdi a coragem. Depois falei em voz
baixa.

156
“Sr. Wayne!”
Não houve resposta, mas minha determina-
ção era tamanha que decidi acordá-lo a qual-
quer custo. Toquei levemente no seu ombro e
percebi... que não era de carne!
Puxei as cobertas e vi que tinha sido enga-
nado por um boneco habilmente construído,
um homem artificial perfeito com um mecanis-
mo para respirar. Eu me lembrei, então, da
época em que Batman, temendo que desco-
brissem sua dupla identidade, tinha criado um
“robô Bruce Wayne” para tomar seu lugar en-
quanto Batman agia. Agora, o sr. Wayne esta-
va usando o robô para tapear a única pessoa
do mundo a quem tinha confiado seu segredo
mais importante! Fiquei tão confuso que per-
guntei em voz alta, no meio da escuridão:
“Por quê?”
É claro que a loucura era a explicação para
todos os mistérios, mas a menos satisfatória.
Até mesmo a loucura tem certa lógica. E que
lógica louca levaria Batman a enganar seu leal
mordomo? Por mais irracional que isso possa
parecer, senti uma pontada de raiva, o que me
animou a fazer outra incursão clandestina à
caverna sob a Mansão Wayne.
Não percebi nada fora do comum... se “co-

157
mum” pode descrever a Batcaverna, uma
combinação de sala de computador, laborató-
rio, museu e quartel-general. Compreendia os
métodos de Batman o suficiente para saber
que seu ponto de partida era geralmente o
computador Cray. Seu funcionamento era um
mistério para mim, mas, uma vez, Batman es-
tava longe de casa e precisou de alguns dados
gravados. Então, ele me ensinou a entrar nos
programas. Repeti o procedimento e tive sor-
te. Havia um programa na memória e apare-
ceu uma pergunta na tela:

Deseja ver a lista outra vez?

Hesitei, mas apertei a tecla enter. Apareceu


o seguinte na tela:

PENTOTHYL DIAZINE
CHLOROPAM E.
ALPRAPROXIDE
TRITOPHENOZENE

Não conhecia esses nomes, mas pareciam


ser de produtos farmacêuticos. Talvez receita-
dos pela dra. Lace? Batman não deveria estar
tomando aquilo tudo, mas isso poderia expli-

158
car seu comportamento estranho. Não deu
tempo para fazer muitas especulações, pois
ouvi o barulho inconfundível do elevador e me
dei conta de que Batman estava descendo!
Confesso que tive um momento de pânico.
Batman nunca me negou livre acesso à Batca-
verna, mas teria que explicar por que estava
mexendo em seu computador. Resolvi me es-
conder no primeiro lugar que encontrei: o ban-
co de trás do Batmóvel.
Não foi a escolha mais feliz, porque Batman
foi diretamente para o Batmóvel. Com um úni-
co toque no painel, a porta camuflada da Bat-
caverna se abriu, o motor do carro rosnou e,
com uma explosão de velocidade que fez
meus ouvidos zumbirem, disparamos pela noi-
te.
Vocês podem imaginar o terror que senti,
de pijama e roupão, à mercê de um homem
que, com certeza, estava mentalmente dese-
quilibrado. Depois do colapso na loja de de-
partamentos, dos episódios do Batgordo, do
Batcartola e do Batbalão, não podia mais ne-
gar que “Batpirado” era a designação correta
para o antigo super-herói de Gotham City.
Quem poderia saber que visões malucas o im-
peliam agora... me levando com ele!

159
A corrida durou uns vinte minutos, mas pa-
receu levar uma eternidade, até o poderoso
veículo parar de mansinho e ficar silencioso.
Foi só quando Batman saiu do Batmóvel que
eu me aventurei a dar uma espiada para ver
onde estava. Era um estacionamento no su-
búrbio, atrás de um prédio sombrio e quadra-
do, apenas com duas janelas acesas.
Finalmente, vi uma placa:

CLÍNICA PYNE-WHATNEY
Estacionamento exclusivo para médicos
Os infratores serão processados

Essa placa era até simpática, perto da outra


que consegui ver na cerca alta de arame que
contornava o prédio.

CUIDADO!
CERCA ELETRIFICADA
NÃO SE APROXIME

Então, como se quisesse demonstrar mais


uma vez a perda de suas faculdades mentais,
Batman se preparou para escalar justamente
aquela cerca!
Enquanto eu olhava, fascinado e horroriza-

160
do, ele tirou um instrumento do cinto, que pa-
recia ser um revólver pequeno, de cano curto.
Mirou o telhado do prédio e disparou um gan-
chinho preso a vários metros do Batfio. O fio
atravessou a cerca eletrificada produzindo uma
chuva de faíscas, mas Batman começou a es-
calar assim mesmo.
Para meu alívio, nada aconteceu. Levei al-
guns momentos para compreender que suas
botas e suas luvas emborrachadas funciona-
vam como isolante.
Então, desapareceu na escuridão sobre o
telhado da clínica, e eu fiquei sozinho, refletin-
do sobre o mistério.
Por que Batman estava de volta a Pine-
Whatney, a clínica que ele tinha chamado de
“prisão antisséptica”? Seria um desejo sub-
consciente de procurar ajuda para seu patético
estado mental? Por que estava sendo tão furti-
vo? Havia alguma explicação racionai para seu
comportamento?
Decidi que a melhor coisa a fazer era sair
do Batmóvel e voltar para casa a pé. Essa foi,
provavelmente, a pior decisão de minha vida.
Quando consegui me desentalar do banco de
trás, perdi o equilíbrio e caí sobre o painel. Es-
tendi a mão para me apoiar e bati na buzina!

161
Aquele som, no silêncio da noite, era tão
penetrante quanto o grito de um alarme antia-
éreo e provocou o mesmo susto nos ocupan-
tes do prédio. Os gritos formaram um coro tão
cacofônico que tive a certeza de que eram dos
pacientes internos. Então, consegui discernir
algumas vozes, e o que diziam era ainda mais
alarmante.
“Pegamos! Pegamos o Batman!”
Não sabia quem estava celebrando essa vi-
tória. Esperava que fosse apenas algum encar-
regado do hospital, mas havia algo claramente
maligno no tom da voz. Quando vi duas figu-
ras de branco saindo pela porta dos fundos,
meus instintos me levaram de volta ao escon-
derijo no banco de trás do Batmóvel.
Mais uma vez, contra a minha vontade, tive
que passear de carona. Os dois homens riram
maldosamente ao ver o Batmóvel, mas seu
contentamento diminuiu quando descobriram
que não conseguiam ligar o motor. É claro que
ninguém, além de Batman, conseguia. A igni-
ção reagia apenas ao toque de sua mão na di-
reção. Mas isso não os impediu de empurrar o
carro por uma rampa, até uma garagem sob o
hospital. Então, eles subiram pela escada e eu
fiquei novamente sozinho, com minha ansieda-

162
de e minha indecisão.
A indecisão não durou muito. Não podia ir
embora naquelas circunstâncias. Precisava sa-
ber o que tinha acontecido com Batman. Ten-
tei dizer a mim mesmo que ele estava bem
cuidado, que estava num hospital, num local
de cura, e que as pessoas que o “pegaram”
agiam por motivos humanitários. Mas não con-
seguia me livrar de um sentimento de pavor.
Saí do Batmóvel e subi pela escada, como ti-
nham feito os dois atendentes, até o andar de
cima.
Subi oito andares ao todo, parando a cada
lance de escadas e abrindo a porta só um pou-
quinho, para tentar ver alguma coisa.
Já estava no andar mais alto, quase sem
fôlego por causa da fadiga e da apreensão,
quando ouvi vozes exaltadas. Entrei num cor-
redor pouco iluminado, tentando perceber de
onde vinha o som. Vinha, aparentemente, de
uma sala para reuniões médicas e, a julgar
pela confusão que ouvi, pelo menos uns dez
homens discutiam calorosamente. A ideia de
ficar ouvindo pela porta me assustava, mas,
como meu avô dizia, “quem sai na chuva é pra
se molhar”. Colei a orelha na porta branca e
ouvi.

163
“Tem certeza de que ele não vai fazer um
de seus truques com a gente?”, perguntou
uma voz áspera. “Ele é mais esperto do que
muitas raposas juntas, não se enganem.”
“Não se preocupe com isso”, respondeu ou-
tro homem. “Pusemos nossa ‘camisola’ nele.
Está inofensivo como um bebê.”
Levei alguns momentos para deduzir que
“camisola” era o nome que davam para uma
camisa de força.
“Então está bem”, disse o primeiro homem.
“Tragam-no e vamos descobrir o que ele
sabe.”
Ouvi o som de uma meia dúzia de cadeiras
sendo arrastadas num chão de madeira e de-
pois um murmúrio excitado, que poderia ter
sido provocado pela entrada de Batman. Não
consegui resistir à oportunidade de espiar para
dentro da sala. Com uma lentidão agonizante,
girei a maçaneta e abri a porta menos de um
centímetro. Vi meu pobre patrão, vestido
numa camisa de força branca, ser arrastado
sem cerimônias para a cabeceira de uma longa
mesa de conferências. À volta dela, estava
sentado um grupo estranho, que parecia uma
assembleia de médicos, com suas roupas
brancas, e pacientes, vestidos com roupões e

164
pijamas.
“Vamos, Batman.” Era o homem da voz ás-
pera, mas ele estava fora do meu campo de
visão. “Conte como chegou aqui.”
“Vai ver, ele errou de lugar.” Foi outra voz
que disse isso, seguida de um estrondo abafa-
do de risadas desagradáveis.
“Não queria perder esta reunião.” A voz de
Batman estava clara e firme. “Não há uma
conferência como esta desde Apalaches.”
A referência não significava nada para mim,
mas causou comoção entre as figuras senta-
das.
“Todos nós sabemos que você está com tei-
as de aranha na cabeça, Batman”, disse outra
voz. “Isto é um hospital, lembra? Somos médi-
cos.”
“E pacientes também.” Batman confirmou
minhas suspeitas. “Vocês também deixam os
pacientes internos administrarem este asilo?”
“Por que estamos ouvindo esse maluco?”,
perguntou um deles. “Vamos lhe dar uma boa
dose de Alpraproxide e jogá-lo numa sala acol-
choada.”
“Não.” A voz áspera soou bem alto. “Vamos
ouvir o que ele tem pra dizer. Continue, Bat-
man. O que é essa bobagem de Apalaches?

165
Isso é nas montanhas, não é?”
Percebi que a voz era muito inculta para
um médico.
“É”, disse Batman. “Em Catskills. Foi lá que,
em 1957, houve a maior reunião de chefões
do crime da História. E também a mais emba-
raçosa, porque foi interrompida pela polícia.”
“E é isso que você acha que está fazendo,
Batman?”
Prendi a respiração quando compreendi o
significado disso.
“Sabia que esta reunião ia acontecer por-
que ouvi sua chefe tomando as providências.
Aliás, onde está a chefona?”
Não esperava que respondessem ao imper-
tinente desafio de Batman, mas alguém res-
pondeu. Surpreendentemente, a voz era mes-
mo de uma mulher. E, o que era ainda mais in-
crível, eu reconheci a voz!
“Estou aqui.” A voz da dra. Lace estava
bem controlada. “Mas não acredito que tenha
'‘ouvido’' alguma coisa, Batman, pois estava
sob a influência de uma droga hipnótica na-
quela hora.”
Batman deu um grande sorriso sob a más-
cara.
“Sinto muito, doutora. O delicioso prepara-

166
do que introduziu no meu corpo não teve efei-
to algum. Tomei minhas providências para fi-
car imunizado contra suas técnicas hipnóticas
há algum tempo. Desde o início de seu trata-
mento, para falar a verdade.”
“Isso é impossível!”
“O bom da Alpraproxide, do Chloropam e
de todas essas drogas é que podem ser anula-
das por um composto. É claro que tive que ser
minha própria cobaia antes de dar o mesmo
remédio a seus outros pacientes... como o Co-
missário Gordon, Randolph Spicer do FBI e, é
claro, sua última vítima, o prefeito Donovan.”
“Ei, o que é isso?” A voz áspera estava
mais áspera que nunca. “O que está aconte-
cendo aqui, doutora? Você não disse que Bat-
man estava completamente sob controle?”
“E estava!” Percebi um tremor nervoso na
voz dela. “Você sabe o que ele tem feito. Tem
se comportado como um louco completo, se-
guindo minhas ordens...”
Batman riu, sem um pingo de nervosismo.
“Gostei das encenações que inventou para
mim, doutora. Foi engraçado seguir suas su-
gestões ‘hipnóticas’. Quase tão engraçado
quanto ser seu paciente.”
“Espere um pouco!”, exclamou um dos ou-

167
tros. “Está brincando com a gente? Você não
teve um colapso nervoso?”
“Desculpem desapontá-los”, disse Batman.
“Achei que essa era a melhor maneira de des-
cobrir se o que eu suspeitava era verdade...
que o Comissário Gordon e os outros estavam
sendo estranhamente influenciados para não
fazerem seu trabalho. Conheço Gordon há
muito tempo, e ele nunca deu tantas ordens
erradas, nunca seguiu pistas tão falsas nem
reagiria de maneira tão lerda a uma onda de
crimes. Sabia que havia alguma coisa errada
em sua atitude e comecei a me perguntar se
essa ‘atitude’ não estaria sendo induzida por
alguma outra pessoa.”
“Quantas mentiras!” O tom da dra. Lace era
defensivo. “O homem era um farrapo humano
quando veio me ver.”
“Na verdade, você me fez bem”, disse Bat-
man com um sorriso. “Desviou minha atenção
de meus problemas, doutora. Você me deu um
objetivo: ver todos esses chefões do crime
trancados na cadeia de Gotham City.”
“Já chega!” A voz áspera explodiu. Pela pri-
meira vez, vi de quem era: de um homem gi-
gantesco. Reconheci Teddy “Durão” Thomas,
que já tinha sido um dos mais notórios perso-

168
nagens do crime no país. Pensava-se que há
muito tempo ele fazia parte do asfalto da ro-
dovia de Gotham City. “Esse homem a fez de
boba, doutora! Era ele que pregava peças, não
você! Quero ter certeza de que a brincadeira
acabou...”
Para meu terror, ele tirou um revólver de
dentro do paletó, apontou para Batman e ati-
rou! O impacto da bala fez com que Batman
voasse contra a parede da sala de conferên-
cias e, mole como gelatina, ele escorregou e
caiu de cara no chão.
Batman tinha sido executado diante de
meus olhos.
Esse acontecimento surpreendente deixou
a assembleia eletrizada. De repente, as cadei-
ras foram arrastadas para trás e atiradas no
chão. O ar ficou repleto de gritos, de berros
estridentes, e depois houve uma corrida de-
sordenada em direção à saída. A porta da sala
de reuniões foi aberta com tanta violência que,
por alguns instantes, fiquei oculto atrás dela.
Mesmo quando saí de trás, minha presença
passou totalmente despercebida. Logo entendi
por quê. Estava vestido como os bandidos que
fingiam ser pacientes do hospital, de roupão e
pijama. Acharam que eu era um deles!

169
Quando a sala ficou vazia, corri para o lado
de Batman, certo de que não poderia fazer
mais nada além de lhe prestar as últimas ho-
menagens. Estava em lágrimas, lamentando
profundamente nunca mais poder dizer ao he-
rói tombado como sentia por não ter confiado
nele desde o início. Por não ter compreendido
a trama criada por ele para vencer essa terrí-
vel conspiração criminosa. Era doloroso pensar
que todo seu esforço corajoso e sua disposi-
ção a se humilhar para o bem de todos tinham
sido em vão. Os vilões tinham escapado, dei-
xando Batman para a História.
Então ouvi sirenes e compreendi que Bat-
man previra essa possibilidade e providenciara
a chegada da polícia antes de ir àquele lugar...
mas parecia tarde demais...
“Não se preocupe, Alfred”, disse Batman.
“Fechei todas as portas com Batfio. A única
maneira de sair deste prédio é pela garagem,
e há muitas viaturas lá.”
Fiquei olhando abobado para Batman en-
quanto ele se levantava e começava a tirar a
camisa de força.
“Ouvi dizer que Houdini consegue fazer isto
em quatro minutos.” Sua voz estava bem-
humorada. “Vamos ver se consigo bater o re-

170
corde.”
Devo confessar que ele não conseguiu. Ti-
rou a camisa de força em quatro minutos e
quinze segundos. A camisa caiu no chão, com
um som metálico.
“É um colete à prova de baias”, explicou
Batman. “Eu o coloquei dentro da ‘camisola’
antes que me capturassem. Questão de segu-
rança.”
“Você queria ser capturado?” Eu estava
quase sem voz.
“Achei que era a melhor maneira de conse-
guir uma confissão da dra. Lace.” Ele tirou o
pequeno gravador preso a seu cinto e sorriu.
“Agora tenho a confissão.”
Devo ter desmaiado, porque o minuto se-
guinte fugiu de minha memória. Quando voltei
a mim, estava sentado numa cadeira, e Bat-
man me dava um copo de água.
“Desculpe”, eu disse. “Na verdade, achei
que era o culpado por você ter sido captura-
do.”
“Eu é que tenho que pedir desculpas, Al-
fred. Simplesmente não podia dizer a você
nem a ninguém o que estava fazendo. Não po-
dia me dar ao luxo de levantar a mais leve
suspeita sobre meu estado mental.”

171
“Então... foi tudo um ardil? Desde o come-
ço?”
“Foi só um jogo.” Batman sorriu. “Definiti-
vamente, havia uma lógica em minha loucura.”
“Sim, senhor”, concordei. “Compreendo
perfeitamente. E estou certo de que todos em
Gotham City vão ficar profundamente agrade-
cidos pelos sacrifícios que o senhor fez.”
“Mas”, disse Batman com amabilidade,
“seja o que for que os meios de comunicação
digam sobre tudo isso, não fique surpreso se
algumas pessoas continuarem acreditando que
realmente sou maluco”.
Naturalmente, isso era verdade. É da natu-
reza humana, eu suponho, acreditar no pior.
Até hoje, há pessoas que acham que Batman
é um esquizofrênico com mania de grandeza.
Há outros que pensam que Batman é apenas
o produto da imaginação enlouquecida de al-
guém. Batman não se importa. Ele está dis-
posto a deixar que os criminosos deste mundo
vivam num paraíso de tolos, até a noite escura
em que virem a sombra negra das asas de
morcego desenhada contra a elipse da lua
amarela.

172
Sábios de Gotham
EDWARD WELLEN
m

Bruce Wayne sorria, irônico, enquanto cir-


culava entre os outros convidados, a bordo do
luxuoso iate do incorporador Jack King.
Estava usando sua roupa de Batman.
Achou que o risco valia a pena, pois era um
baile a fantasia e ele já tinha visto pelo menos
outros três Batmans na festa. E, para falar a
verdade, sua roupa, um tanto estragada de-
pois da última aventura, parecia a menos au-
têntica de todas. Não era esse, no entanto, o
motivo de sua preocupação. Tinha se dado
conta, de repente, da ironia de uma ocasião
tão deslumbrante ter uma causa tão triste.
Jack King e sua mulher, Queena, estavam
dando uma festa beneficente em prol dos
sem-teto de Gotham.
A caminho da marina, sob o neon que ofus-
cava as estrelas, Bruce tinha passado por mui-
tas figuras esfarrapadas, amontoadas em so-
leiras malcheirosas, abrigadas em caixas de
papelão ou sob marquises, na calçada. Tinha
dado um dólar aqui e outro ali. Olhou para os

173
convidados ao seu redor. Eles também tinham
visto os sem-teto, que agora já estavam dis-
tantes e esquecidos, silenciados pela conversa,
pelo tilintar dos copos e pelo ritmo da banda.
As pessoas espalhadas pelo salão deslum-
brante exibiam suas joias e seus rostos petu-
lantes. Todos moravam bem, estavam bem-
vestidos e bem alimentados.
O elegante Jack King e a bela Queena mais
do que todos. Ele os reconheceu por trás das
máscaras cravejadas de joias. Jack era o pirata
de tapa-olho e Queena, escrava do harém.
Foi fácil identificar outros membros da elite.
Hizzoner, o prefeito, passeava pelo salão, cheio
de sorrisos hipócritas. Ele e o incorporador
Jack King estavam em guerra política, discutin-
do através de manchetes de jornais e progra-
mas de tevê. No entanto, as dificuldades dos
sem-teto, pelos quais nenhum dos dois havia
demonstrado qualquer simpatia, agora os
aproximava nesta fugaz demonstração de cari-
dade. Seus dentes brilhavam ao trocarem am-
plos sorrisos, diante dos flashes dos fotógrafos
e das luzes da televisão. O baile de caridade
propiciava publicidade favorável, permitindo
que Jack King ofuscasse sua fama de despejar
os pobres (aumentado assim o número de de-

174
sabrigados) para abrir espaço a empreendi-
mentos grandiosos. E, sem dúvida, o baile
também permitia que deduzisse do imposto de
renda uma quantia considerável. Para o prefei-
to, que concorria à reeleição pela enésima vez,
a festa era uma ótima oportunidade de dar um
novo brilho à sua opaca administração, assim
como de evitar a erosão de sua popularidade.
No grupinho de Hizzoner estavam seu pa-
drinho político, Rudolph Newkirk, o magnata
dos jornais; seu amigo Sam Rubin, o Secretá-
rio da Habitação; e o atual aliado na campa-
nha eleitoral, o ambientalista Glenn Dubois.
Wayne observava a hipocrisia desmedida.
Parecia uma luta de egos entre Hizzoner e
King, pois o prefeito havia se juntado também
a outros construtores de habitações de luxo.
Ele e o incorporador pareciam, ambos, cobiçar
o papel de Número Um em Gotham City. Os
jornais de Newkirk estavam demolindo King,
publicando denúncias sobre seus projetos, in-
sinuando subornos vultosos em troca de licen-
ças para construir e de abatimentos nos im-
postos, entrevistando os miseráveis que esta-
vam sendo despejados dos prédios que fica-
vam no caminho de King. Newkirk, por sua
vez, era insaciável na aquisição de jornais e

175
emissoras de tevê, O secretário Rubin quase
nada havia feito para recuperar prédios aban-
donados, que seriam destinados a abrigar as
famílias despejadas. Por alguma razão incom-
preensível, ele achava mais prático amontoá-
las em quartinhos de hotéis precários, infesta-
dos de ratos e baratas, apesar de caros. O
ambientalista Dubois tinha lutado contra os
aterros na baía por causa do dano que trariam
aos peixes, porém não tinha oferecido nenhu-
ma alternativa. E agora todos se juntavam aos
Kings para levantar dinheiro destinado aos
sem-teto.
Outro personagem que Bruce Wayne identi-
ficou facilmente foi seu velho amigo Gordon, o
Comissário de Polícia. A presença de Gordon
amenizou o gosto ruim que o Batman, disfar-
çado de Batman, sentia na boca.
O Comissário estava fantasiado de mosque-
teiro, mas parecia ocupado demais com a se-
gurança para representar seu papel com tran-
quilidade. Mantinha a pose com floreios galan-
tes e reverências à moda da corte sempre que
encontrava um conhecido ou era apresentado
a alguém. No entanto, seus dedos estavam
duros de tanto apertar o cabo da espada en-
quanto verificava a posição de seus homens.

176
Tinha um sobressalto sempre que uma voz so-
ava aguda demais ou quando um copo se esti-
lhaçava no chão.
Wayne sorriu com tristeza. Ele sabia por
que Gordon estava tão aflito. Na semana ante-
rior, os meios de comunicação só tinham fala-
do do concorrido leilão em que King havia
dado um lance mais alto que o dos japoneses
para arrematar um Rembrandt. O martelo ti-
nha sido batido em oitenta e seis milhões de
dólares.
O Comissário devia estar com medo de que
alguém aproveitasse a confusão do baile de
caridade para roubar o Rembrandt debaixo de
seu nariz, pois o famoso quadro estava depen-
durado numa cabine de luxo, a bordo do lie de
Joie.
Um pouco do mistério que cercava o qua-
dro tinha se transferido para alguns privilegia-
dos. Wayne percebeu que Jack e sua mulher
conduziam um grupo de pessoas (provavel-
mente signatários de polpudos cheques desti-
nados à caridosa causa) para visitas monitora-
das aos tesouros do iate, dos quais o Rem-
brandt era certamente o ponto alto.
Bruce também era um homem generoso,
por isso se viu abordado por Jack King em

177
pessoa para participar de uma dessas visitas.
King lhe deu uma batidinha no ombro e fez
um sinal com a cabeça, indicando o elevador.
Wayne viu que um ansioso mosqueteiro ca-
minhava a seu lado na direção do hall.
“Está gostando da festinha, Comissário
Gordon?”, perguntou.
O mosqueteiro deu uma olhada para o Bat-
man. “É você, Bruce?”
Wayne assentiu.
Gordon deu um suspiro explosivo. “Como
eu queria que você fosse mesmo o Batman em
vez de...”
“Em vez de um ricaço inútil?”
“Eu não disse isso.”
“Não, você mordeu a língua. Mas não tem
importância. Por que está querendo a ajuda
do verdadeiro Batman?”
Gordon chegou mais perto dele. “Que fique
entre nós... não quero espalhar o pânico em
Gotham City. O Charada está de volta à cida-
de.”
Os sentidos de Wayne se aguçaram à men-
ção de seu velho inimigo. As orelhas pontudas
da máscara pareceram ficar em pé. “Como
sabe?”
Gordon tirou uma foto do bolso da fantasia.

178
“Isto é obra dele. Um cadáver não identificado
boiando no porto. E uma das suas malditas
charadas tatuadas no corpo.”
Bruce pegou a foto repulsiva e olhou o pei-
to nu com o verso escrito sobre ele. O ponto
final era um lúgubre buraco de bala.

Arte?
Que arte!
És nada
se baleada.
Cordialmente, o Charada

Wayne devolveu a foto. Alcançaram o pe-


queno grupo e permaneceram em silêncio no
elevador, que desceu dois andares.
Ficaram um pouco mais animados ao ver os
tesouros que King estava mostrando. Poucos
monarcas haviam juntado tanta fortuna duran-
te a vida. A riqueza do anfitrião sobreviveria a
seu dono, mas, ao exibi-la como um troféu, ti-
nha imenso orgulho.
O Rembrandt chegava a impor silêncio. Es-
tava num recesso bem iluminado, e uma corda
de veludo mantinha os visitantes a uma certa
distância.
Era o famoso A Futura Noiva, às vezes cha-

179
mado de Coscinomancer. A pintura mostrava
uma jovem que parecia perceber pela primeira
vez o poder que sua sexualidade lhe conferia,
achando isso ao mesmo tempo divertido e as-
sustador. Segurava uma tesoura, com uma pe-
neira pendurada na ponta das lâminas. Estava
ali, imóvel, esperançosa, como se tivesse aca-
bado de pronunciar o nome de um pretenden-
te e agora esperasse para saber se o virar da
peneira lhe diria que era ele o escolhido.
Os espectadores também estavam parados,
imobilizados pelo poder do pintor. Um dardo
assobiou porta adentro e atingiu a obra-prima,
espetando-se bem no meio dos seios robustos.
Havia um bilhete preso à seta.
Wayne se voltou rapidamente e correu para
a porta. Tarde demais. Um esvoaçar negro ti-
nha desaparecido pela escotilha na outra pon-
ta do corredor.
Voltou para a sala. Ninguém parecia ter no-
tado o vândalo de capa negra. Pelo menos,
ninguém disse ter visto um outro Batman jo-
gar o dardo e fugir. Wayne respirou aliviado.
O Comissário Gordon pedia ajuda pelo rá-
dio. Bruce olhou para King. Ele parecia estar
singularmente calmo para alguém cujo patri-
mônio de oitenta e seis milhões de dólares

180
acabara de ser danificado.
Mas não deu tempo de refletir sobre isso.
Uma policial à paisana tinha atendido ao cha-
mado de Gordon, começando a agir imediata-
mente. Batman observou com atenção.
Era a investigadora Heather Mortimer, como
Gordon a apresentou. Usava um elegante ves-
tido imperial e estava perfeita no papel de
dama da corte.
Ela agia rápido. Vestiu um par de luvas de
borracha que tirou do vestido. Cuidadosamen-
te, retirou o dardo do quadro. Precisou puxar
com força e, para isso, apoiou o antebraço na
tela. Quando tirou o dardo, Wayne notou que
ela tinha uma leve mancha no braço. Talvez já
estivesse manchado, mas ele achava que não.
Quem sabe a polícia técnica encontrasse um
pouco de saliva no dardo, podendo assim de-
terminar o tipo sanguíneo e até mesmo o DNA
do vândalo... Antes de colocá-lo num saco
plástico, ela removeu o bilhete. Colocou a nota
num outro saquinho e entregou para o seu
chefe.
Bruce leu a mensagem por cima do ombro
de Gordon.

O sábio, assim chamado,

181
De Es-gota Am-anhã a Alegria,
cairá em sono profundo
e nunca despertará.
Indomavelmente, o Charada

Ele gravou a mensagem na memória.


Depois deu um sorriso malandro. Então ti-
nha sido o Charada que ele havia visto de re-
lance... vestindo a roupa do Batman! Mas, por
mais mau-caráter que fosse, o Charada não ti-
nha jogado a culpa do vandalismo no Batman.
O ego do vilão era grande demais para dar a
outra pessoa o crédito por qualquer coisa que
fizesse.
O pequeno destacamento de Gordon e os
seguranças de King tinham fechado todas as
saídas, mas Wayne estava certo de que o Cha-
rada conseguira escapar.
De fato.
Depois que os policiais checaram sua iden-
tidade (comprovada pelo próprio Comissário
Gordon), Bruce desceu pelo passadiço do iate
e voltou para casa. O Charada tinha lhe deixa-
do muito apreensivo.

182
Alfred, o mordomo inglês, balançou a cabe-
ça pesarosamente ao guardar a roupa de Bat-
man. Resmungou alguma coisa sobre seu es-
tado lastimável.
“Estou me sentindo péssimo por ter deixa-
do que saísse com isso, senhor. Mas, como me
avisou na última hora, fiz o melhor que pude.”
“É, acho que esperei até o último minuto
para lhe falar do baile.”
Contudo, como tinha tocado no assunto,
Alfred foi até o fim. “Encomendei uma dúzia
destas roupas para nossos alfaiates de Saville
Row — dando o endereço de sempre para a
entrega —, mas vai demorar muito. Enquanto
isso, tentei alugar um traje. Telefonei para to-
das as lojas que encontrei, porém já tinham
alugado todas as roupas de Batman.”
Pela janela do quarto, na suíte do andar su-
perior da mansão, Bruce Wayne observava as
luzes do Île de Joie, ancorado na marina.
“Achei que isso ia acontecer, Alfred.”
“Se me permite dizer, senhor, a culpa é da
sua própria popularidade.”
Bruce olhou para Alfred. “Alfred, quero lhe
fazer umas perguntas.”
Alfred pareceu alarmado. “O que disse, se-
nhor?”

183
“Fale-me a respeito de Gotham.”
Alfred ficou ainda mais alarmado. Olhou
pela janela, para os milhões de luzes. Por
onde começar? O que descrever? Como pode-
ria fazer justiça a Gotham City?
Wayne seguiu o olhar de Alfred e riu em
tom de desculpa. “Estou falando da Gotham
inglesa, a cidade de onde veio o nome de Go-
tham. Dos Sábios de Gotham e tudo o mais.”
“Ah, essa Gotham, senhor.” Alfred pareceu
aliviado, depois ficou sério. “Essa Gotham é
uma cidadezinha no condado de Nottingham.
Nunca estive lá.” Ele deu a entender que não
iria lá nem morto.
“Sábios é uma designação irônica, senhor.
Uma brincadeira. Os habitantes de Gotham
parecem ter sido um bando de tolos.” Seu tom
de voz dava a entender que não tinha nada a
ver com isso.
“Hummmm. Isso é tudo o que você sabe?”
“Receio que sim, senhor. Deseja mais algu-
ma coisa?”
“Quero que me acorde cedo amanhã.”
“Pois não, senhor.”

184
Alfred franziu o rosto quando seu patrão,
distraído, mordeu a torrada e espalhou miga-
lhas por toda parte.
Como era cedo demais, Wayne esperou um
pouco antes de telefonar para a dra. Amicia
Sollis. Convidou-a para tomar café da manhã.
Ela aceitou o convite, ainda sonolenta, pare-
cendo ao mesmo tempo satisfeita e surpresa.
Bruce a apanhou na Universidade de Go-
tham City e a levou a um restaurante que fun-
cionava no último andar do edifício Skyways.
Falaram de amenidades enquanto comiam.
Amicia, como sempre, tentava ter um vislum-
bre da verdadeira natureza de Bruce Wayne.
Achava que ele não era o que parecia ser, sen-
tia que havia algo de profundo sob a aparên-
cia mundana que ele exibia. Finalmente, ela
empurrou o pratinho para o lado e, apoiando o
queixo nas mãos, olhou-o nos olhos.
“Hora de cantar para pagar minha comida.
Qual o nome da canção?”
Assim, enquanto o restaurante girava lenta-
mente nas alturas, acima das ruas do centro
de Gotham, ele contou para a professora de
linguística, morena e esguia, sobre a nota que
o Charada havia espetado no Rembrandt. Re-
citou de memória.

185
“Assustador”, disse ela. “O que você acha
que significa?”
Ele franziu a testa. “Essas palavras separa-
das, Es-gota Am-anhã, parecem ser uma brin-
cadeira com Gotham, de onde se conclui que o
Charada está ameaçando as vidas dos Sábios
de Gotham, sejam eles quem forem. Já ouvi
falar a respeito dos Sábios de Gotham, da Go-
tham de Nottingham, mas não conheço sua
história. Você é a autoridade em folclore. Por
isso, comece a falar.”
Ela pensou alguns segundos antes de res-
ponder. “Alguns acham que isso remonta à
época do rei João, no século XIII. Era aquele
rei covarde, ambicioso e traiçoeiro que foi for-
çado a assinar a Magna Carta. Segundo a len-
da, o rei João queria se apropriar de terras dos
moradores de Gotham para transformá-las em
território de caça. Como se isso não bastasse,
os habitantes de Gotham deveriam servir ao
rei e à sua corte. Revoltados, os moradores da
cidade se reuniram e tramaram um plano para
fazer o rei mudar de ideia. Começaram a agir
como idiotas, no intuito de que o rei pensasse
que os camponeses seriam vizinhos tolos e in-
desejáveis. Tentaram afogar uma enguia num
lago, botaram fogo numa ferraria para tirar

186
mel de uma colmeia, colocaram uma carroça
de comida em cima de um galpão para fazer
sombra, fizeram também um cercado em volta
de um ninho de cucos para que os bichinhos
cantassem durante o ano inteiro.”
“E deu certo?”
“Deu. Pelo menos, que eu saiba, não existe
nenhuma reserva de caça em Gotham.” A mo-
rena sorriu. “Essa é a lenda. Mas as histórias
sobre os tolos de Gotham podem ter tido sua
origem nas práticas e legislações absurdas li-
gadas à posse das terras.”
“Tais como?”
Ela deu de ombros. “Não me lembro dos
detalhes agora. Talvez legislações semelhantes
às que existem aqui. Você sabia que o municí-
pio é obrigado a ceder, todos os anos, ‘uma
rês gorda’ para os descendentes dos proprie-
tários originais de determinadas glebas no su-
búrbio da cidade, se eles assim exigirem?”
Quando terminaram a refeição, Wayne ti-
nha muito o que pensar.
Levou a professora de volta ao campus. En-
quanto a observava caminhar graciosamente e
entrar no prédio estilo gótico, sentiu o rosto
queimando. As preocupações de Batman esta-
vam interferindo demais na vida de Bruce

187
Wayne. Por que não tinha se lembrado de con-
vidar Amicia para ir ao baile com ele? Por que
se lembrou dela só depois? Ela merecia muito
mais, e o azar era dele. Da próxima vez...

Telefonou para o gabinete do Comissário


Gordon, e ele o atendeu aborrecido e nervoso.
“Não tenho muito tempo, Wayne. Outro re-
cado do Charada.”
“Uma ameaça?”
“Uma ameaça específica. É tudo o que pos-
so dizer. Se ao menos conseguisse falar com o
Batman.”
“Você tem uma maneira de lhe mandar si-
nais, não tem?”
“Tenho. Mas como vou saber se ele estará
atento para o sinal?”
“Ele tem um radar de morcego. De qual-
quer forma, só lhe resta tentar.”
“É verdade.” Gordon suspirou. “Vou tentar.”
E perguntou com voz cansada: “Você queria
falar alguma coisa comigo?”
“Nada urgente. Você já tem muito com que
se preocupar. Não quero atrapalhar mais. Até
logo.”

188
“Obrigado por ser tão compreensivo. Até
logo.”

Wayne estava atento ao céu escuro, e o


Comissário não enviou em vão os sinais.
Sentado no terraço de sua suíte, na noite
quente de março. Wayne viu o facho do holo-
fote varrendo os céus com uma silhueta de
morcego. O morcego voou diretamente para o
leste, depois para o sudoeste. Isso formava
um sete, e significava que o encontro seria na
esquina da Sétima Avenida com a Rua Sete, às
sete horas da noite.
Consultou o relógio. Tinha meia hora para
chegar lá.
O facho apagou no final do sete, depois
acendeu de novo e repetiu o traçado. Isso
continuaria até as sete horas, quando Gordon
desistiria se Batman não chegasse ao local do
encontro.
Wayne correu para dentro. “Alfred!”
O mordomo estava preparado, com a roupa
de Batman dobrada em seu braço. Ajudou
Bruce a vesti-la. Alfred tinha feito o que era
possível, lavando e passando o capuz e a

189
capa, mas ainda estava desgostoso com o es-
tado do traje.
Batman sorriu. “A roupa não faz o morce-
go.”

O Comissário Gordon teve um sobressalto


quando a figura negra saiu das sombras. De-
pois suspirou, aliviado. “Batman!”
“É sobre o Charada?”
“Como você sabe?”
“Os morcegos têm bons ouvidos.”
“Wayne disse mais ou menos isso.”
“Quem?”
“Esquece. Ele não tem importância. É um
bom sujeito, mas...”
“Conheço o tipo.” Batman ficou sério. “O
que nosso velho amigo, o Charada, está
aprontando agora?”
Como resposta, Gordon tirou três fotografi-
as do bolso.
Batman sacou uma lanterninha do cinto e
examinou a foto de cima. Mostrava a mensa-
gem tatuada no peito do cadáver que boiava.
“Foi identificado como um promissor estu-
dante de artes”, disse o Comissário. “Os cole-

190
gas disseram aos detetives do Departamento
de Homicídios que ele andava exibindo dinhei-
ro e insinuando que tinha recebido uma comis-
são misteriosa. Depois desapareceu.”
“Ah! Isso explica o arte! que arte?” A ex-
pressão de Batman endureceu. “O Charada,
com sua lógica distorcida, pegou alguém inte-
ressado em arte... e o transformou num objeto
de arte!”
Batman pegou a segunda foto. A imagem
também era familiar, mas deixou que Gordon a
explicasse.
“Esta é a foto de uma nota que o Charada
espetou no famoso Rembrandt, no iate de
Jack King.”
Batman apertou os olhos. “Aqui ele ameaça
os Sábios de Gotham.”
Gordon olhou para o rosto sombrio de Bat-
man. “Surpreendente! As melhores cabeças do
Departamento levaram a noite inteira para
descobrir isso!”
Batman fez um gesto de modéstia e voltou
a atenção para a terceira foto.
“É uma cópia da última mensagem do Cha-
rada.” A voz do Comissário tremia com uma
mistura de raiva e medo. “Eu a encontrei em
minha mesa, lá na Central. Como ele conse-

191
guiu entrar naquela fortaleza...”
“Todas as fortalezas são penetráveis”, disse
Batman, distraído. Estava ocupado com a
mensagem.

Queimar a colmeia é melhor


Para tirar o mel.
Queimar a casa e o ninho das abelhas
É estúpido mas engraçado.
Estando tudo azul, subscrevo-me,
o Charada

Gordon olhava compenetrado para ele,


como alguém que espera um milagre. Pergun-
tou com voz ansiosa: “E aí, Batman? Tem al-
guma ideia do que isso significa?”
“Significa problemas.” Então, com um sorri-
so, levantou o ânimo de Gordon. “Tenho uma
bela ideia do que significa.” Antes que Gordon
pudesse fazer mais perguntas, o Homem-Mor-
cego deu um passo para trás e desapareceu
nas sombras.

O Clube do Vale da Ferraria era o último re-

192
duto do elitismo masculino, uma organização
exclusiva que admitia apenas protestantes
brancos, anglo-saxônicos.
Um caminhão de carne fazia uma entrega.
O motorista e seu ajudante estavam descarre-
gando. Batman esperou por uma oportunidade
de pegar uma peça de carne. Levou-a ao om-
bro e se inclinou sob seu peso, de forma que
tinha o rosto e uma parte do corpo ocultos
quando entrou. Jogou de lado a peça de carne
antes de chegar ao frigorífico, deixando que
outros tentassem descobrir como ela tinha ido
parar no armário do cozinheiro.
Sem ser visto, Batman esvoaçou pelos cor-
redores, procurando algum sinal das maquina-
ções do Charada.
Nada encontrou que justificasse seu palpi-
te, mas aquele lugar tinha que ser a contra-
partida moderna da ferraria e do ninho de ves-
pas da lenda dos habitantes da Gotham origi-
nal, contada pela dra. Amicia Sollis.
Chegou ao topo da escada de incêndio.
Pelo barulho, era o andar onde ficavam a sala
de jogos e a de estar. Abriu um pouquinho a
porta e olhou para o corredor.
Um homem com o uniforme azul da polícia
andava por ali. Batman ergueu a sobrancelha.

193
Será que o Comissário Gordon tinha chegado à
mesma conclusão (de que o Clube do Vale da
Ferraria era o alvo do Charada) e providencia-
do proteção?
Batman já ia chamar o policial, com o obje-
tivo de juntar forças, quando soou um alarme
em sua cabeça.
Ocorreu-lhe que o homem de uniforme azul
não estava patrulhando, mas espreitando. Bat-
man, que também espreitava, sabia a diferen-
ça.
No minuto seguinte, já não tinha tanta cer-
teza. Dois membros do clube, com charutos e
copos na mão, saíram de uma sala... o homem
de azul aprumou-se e fez uma saudação bre-
ve, a que eles corresponderam casualmente.
Batman reconheceu um deles: era o ambienta-
lista Glenn Dubois. Se esses homens aceita-
vam a presença do policial sem perguntas...
Mas, quando eles atravessaram o corredor
e desapareceram numa sala onde se ouviam
os sons de um jogo de bilhar, o sujeito de azul
mudou de atitude. O olhar de Batman endure-
ceu.
Um homem de uniforme azul tinha acesso
a todos os lugares... até mesmo ao santuário
do Comissário de Polícia.

194
E, ao assinar sua ameaça, o Charada escre-
vera estando tudo azul...
Batman sentiu um arrepio. O Homem-Mor-
cego sempre reconhecia o mal... mesmo quan-
do estava vestido com as roupas do bem!
Esperou mais um pouco, para ver o que o
Charada pretendia.
O homem uniformizado parou diante de
uma prateleira. Olhou à sua volta, depois abriu
uma portinhola logo acima dela. Batman per-
cebeu que era a abertura de um elevador para
comida. O falso policial tirou uma lata de gaso-
lina dali. Abriu-a rapidamente e foi derraman-
do seu conteúdo pelo corredor, em direção à
porta da sala de jogos.
Batman sentiu o cheiro do combustível e
não esperou mais.
Antes que o Charada acabasse de despejar
o líquido e riscasse um fósforo, saltou em dire-
ção ao incendiário.
“Pare aí, Charada!”
O vilão ficou imóvel. Depois, ao puxar uma
faca, seu rosto se contorceu num sorriso sar-
cástico.
“Segure este rojão, Batman!”
A faca do Charada rasgou a capa de Bat-
man, que ficou com raiva por Alfred. Ele ficaria

195
desolado.
O Homem-Morcego sorriu selvagemente.
“Quase... só quase!”
Então, atacando com fúria, chutou o pulso
do inimigo, fazendo a faca voar da sua mão.
Porém, quando já o agarrava, escorregou no
líquido inflamável. O bandido aproveitou a
chance e puxou o elevador para cima, deixan-
do livre a abertura. Pulou para dentro dela e
desceu agarrado à corda.
Batman teve que se consolar com o fato
de, pelo menos, ter frustrado essa tentativa do
Charada.

Eles se encontraram na esquina da Décima


Primeira Avenida com a Rua Onze.
“Bom trabalho, Batman!” A preocupação e
os maus pressentimentos sufocavam o prazer
e a gratidão do Comissário Gordon. “Será que
ele consegue de novo?”
“Outra ameaça do Charada?”
Gordon tirou uma fotocópia do bolso.
O Homem-Morcego, com a capa capricho-
samente remendada por Alfred, saiu das som-
bras para examinar a mais recente ameaça do

196
Charada.

Jogue a carroça de comida bem alto,


fora do alcance da ursa,
para fazer sombra no telhado do galpão,
cheio de couves-de-Brucelas.
Por que não a égua também,
para que fique perfeito?
Refrescantemente, o Charada

Batman sentiu um frio maior que o da noi-


te. Por que um homem tão cuidadoso escreve-
ria Brucelas e não Bruxelas?
Será que o Charada tinha descoberto a
identidade do Batman, Bruce Wayne, ou um
simples erro tinha levado a essa coincidência?
“Você está se sentindo bem, Batman?”
O Mascarado olhou para o rosto preocupa-
do de Gordon, fantasmagórico à luz da rua, e
fez força para sorrir. “Estou bem.”
Se estivesse correndo algum risco, tinha
que afastar isso de sua cabeça. Tinha que
concentrar sua atenção para desvendar a
ameaça a outro Sábio de Gotham.
Rodopiando a capa, desapareceu na escuri-
dão.

197
m

Sem perceber que ofendia Alfred, Wayne


deixou os crepes do café da manhã esfriarem
enquanto examinava os jornais. O Charada pa-
recia visar figuras públicas do naipe do ambi-
entalista Glenn Dubois, cuja vida Batman tinha
salvo. Muitos outros inocentes também teriam
morrido... se o Clube do Vale da Ferraria tives-
se pegado fogo. Quais eram os feitos mais re-
centes dessas figuras populares?
Wayne franziu a testa enquanto folheava o
matutino. Tinha o palpite de que o termo car-
roça de comida era a chave para o novo ata-
que do Charada. Examinou atentamente todas
as seções do jornal, na esperança de encon-
trar algo sobre eventos públicos que tivessem
relação remota com uma carroça de comida...
um rodeio, um churrasco, um novo hotel fa-
zenda, uma nova lanchonete...
BINGO! Não era nada disso!
Naquela tarde, Hizzoner, o prefeito, compa-
receria à estreia de um show no Planetário.
Isso mudou sua linha de pensamento e fez
com que telefonasse para a dra. Amicia.

198
Ela não parecia estar nada aborrecida com
a frequência de seus encontros... e sorriu para
ele, que a observava do outro lado da mesa
do restaurante. “Você está certo. A carroça
tem a ver com a ursa. Mas acho que a égua
não tem nada a ver com isso. Não vejo por
que ficaria perfeito.”
Wayne achava que perfeito era um trocadi-
lho com prefeito. Mas não disse nada. Só fez
um gesto, pedindo que Amicia prosseguisse.
Antes, ela tomou um gole de vinho para
umedecer os lábios. “Vamos ficar com a carro-
ça e a ursa. A carroça é uma denominação
que vem da época de Carlos Magno, ou de
Charles I, da Inglaterra. Seja como for, refere-
se ao grupo de sete estrelas na constelação da
Ursa Maior. Segundo eles, essas estrelas lem-
bravam uma carroça sem rodas, mas com um
varal para atrelar os cavalos.” Ela inclinou a ca-
beça para o lado. “Será que isso ajuda?”
Ajudava.

Dia lá fora, mas meia-noite lá dentro.


Batman espreitava na escuridão, sob o
grande domo estrelado. Seu olhar vagava pelo

199
auditório, com especial atenção à seção reser-
vada para a comitiva do prefeito. Observou,
sombriamente, que as cadeiras ficavam direta-
mente abaixo da constelação da Ursa Maior.
Um agrupamento agitado de funcionários
do Planetário chamou a atenção de Batman.
Chegou mais perto e percebeu que falavam do
sistema de ar-condicionado. Pelo que diziam,
estava com defeito. De fato, agora que tinha
prestado atenção na temperatura, sentiu que
o ar estava quente.
Nesse momento, uma figura de macacão
juntou-se apressadamente ao grupo.
O diretor do Planetário deu um suspiro de
alívio. “Vai dar tudo certo. O técnico chegou.”
Batman apertou os olhos, pensando. Ar-
condicionado. O Charada assinou Refrescante-
mente...
“Tenho que examinar os respiradouros no
telhado.” A voz da figura de macacão parecia
familiar.
A comitiva do prefeito chegou, e o diretor
foi cumprimentar Hizzoner. O sujeito de maca-
cão ficou ali, observando, até Hizzoner sentar.
Então, entrou por uma porta em que estava
escrito Manutenção.
Batman esperou um momento e depois o

200
seguiu, chegando a um espaço pouco ilumina-
do entre as camadas interna e externa do
enorme domo. O lugar estava cheio de ruídos
de máquinas e cheirando a graxa. O Homem-
Morcego viu a figura de macacão já na metade
de uma escada que subia pela camada interna
do domo. Esperou no pé da escada até que
parasse de vibrar, depois começou a subir, to-
mando cuidado para não sacudi-la. Isso pode-
ria denunciar sua presença.
Chegou ao topo a tempo de ver o sujeito
de macacão ajustar sua chave inglesa a um
parafuso e começar a desatarraxá-lo. Sem
dúvida... era o Charada em sua atividade letal!
O facínora girava a chave com cuidado, no
entanto uma parte do domo cedeu quando o
parafuso se soltou um pouco mais. Batman
viu... e percebeu que o Charada tinha soltado
muito rapidamente os outros parafusos daque-
la seção do domo, que desabaria sobre o pre-
feito e seus convidados quando o vilão aca-
basse de desapertar esse último.
“Quieto, Charada! Você tem um parafuso a
menos!”
O Charada ficou imóvel. Depois, xingando,
jogou a chave inglesa em Batman.
O Homem-Morcego não recuou nem se

201
abaixou. Apanhou a chave com uma das
mãos. Quase que com o mesmo movimento,
devolveu-a pro Charada.
A chave bumerangue bateu na cabeça do
fora-da-lei e caiu com um barulho pesado.
“Está vendo estrelas, Charada?”
Se estava, o criminoso as espantou logo,
pulando da escada para a parede do domo.
Ele deslizou pela parede curva do domo até
embaixo. Ouviu-se um ruído. E tudo ficou em
silêncio.
Quando Batman chegou ao pé da escada o
Charada já tinha desaparecido.
Alfred acharia lamentáveis as manchas de
graxa na capa de Batman.

Dessa vez eles se encontraram na esquina


da Primeira Avenida com a Rua Um, a uma da
manhã.
O Comissário deu um salto. “Batman! Esta-
va esperando você! Mas não achei que viesse
voando na corrente de um guindaste.”
“Desculpe.” O guindaste tinha sido um exa-
gero, no entanto parecera uma boa ideia ter
uma visão panorâmica do local do encontro

202
para certificar-se de que estavam a sós.
“Está tudo bem.” Gordon se recompôs.
“Graças a você, Batman, o prefeito ainda está
vivo. Teve um ataque do coração (de verda-
de!) quando soube que tinha escapado por
pouco. Aí escapou por pouco de novo. Vai se
recuperar.”
“Estou feliz por ter sido útil. Mas você não
me chamou aqui para me fazer um relatório
da condição de saúde de Hizzoner. É o Chara-
da outra vez?”
Com um olhar esperançoso, o Comissário
Gordon entregou a Batman uma cópia de ou-
tra mensagem em verso.

Você ouviu a voz do corno?


O que o cuco canta?
A asa está no pássaro...
ou o pássaro está na asa?
Com uma carta de amor.
Subscrevo-me, notificando e sussurrando,
O Charada

Batman franziu parcialmente o rosto. Mais


uma vez precisava dos conhecimentos de Ami-
cia.

203
m

“Qual seu interesse nessas charadas, Bru-


ce? São só um exercício intelectual?”
“Foi como começou, Amicia. Acontece que
minhas descobertas chegaram ao conhecimen-
to do Batman, que parece estar fazendo bom
uso delas.”
“Vocês formam uma bela dupla, não?” Ela
se inclinou sobre o creme de abacate. “Como
é o Batman? Adoraria conhecê-lo.” Wayne sor-
riu. “Sou a última pessoa que poderia dizer
como ele é. O Comissário ainda não nos apre-
sentou. Quando o conhecer, não vou me es-
quecer de mencionar seu interesse.”
Amicia ficou vermelha. “Nem pense nisso!”
Pegou a colher, terminou a sobremesa e lim-
pou delicadamente a boca com o guardanapo.
“Canto para pagar meu jantar. O cuco canta
para que venha o verão. A canção do Cuco é a
mais antiga das canções inglesas,” Ela cantou
baixinho, para que as outras pessoas não ou-
vissem.

“O verão está chegando,


Na trombeta o cuco canta”

204
Ela sorriu. “Essa trombeta só significa que
o cuco canta alto. Mas o Charada fez uma
brincadeira com corno. Acho que sei por quê.
A fêmea do cuco bota ovos em ninhos de ou-
tros pássaros, que os chocam e depois criam
os filhotes. É por isso que cuco passou a de-
signar o marido de uma mulher infiel. Séculos
atrás, na Inglaterra, as pessoas gritavam cuco
para avisar a um marido quando o amante de
sua mulher estava por perto. Mas o termo aca-
bou se aplicando ao marido.” Wayne se recos-
tou na cadeira. “Ah! Então... eu... quer dizer, o
Batman... precisa procurar um adultério.”
“Não vão precisar procurar muito. Até estes
abacates estão adulterados.”

Alfred acordou seu patrão. “Precisamente


sete horas, senhor.”
Wayne abriu um olho. “Como você sabe
que são precisamente sete horas?”
O mordomo apontou as janelas francesas
que davam para o terraço. “O relógio do edifí-
cio Ninhos, senhor.”
E Bruce ouviu a última nota do carrilhão
desaparecer no ar.

205
Jogou as cobertas de lado e pulou da
cama. Foi até a janela e, com o nariz grudado
no vidro, olhou para o relógio que assomava
acima da neblina da manhã. Ninhos...
A Companhia de Investimentos Ninhos,
uma subsidiária da Corporação Fidelidade, es-
tava entre as mais respeitadas instituições de
Gotham, financeiras ou não. O Charada certa-
mente colocaria seu presidente entre os Sá-
bios. Foster Cavendish tinha tudo para se en-
quadrar no perfil de um Sábio. Um cidadão de
posição e poder. Será que Cavendish estava
envolvido num caso de adultério? O relógio do
edifício Ninhos era um relógio cuco?
“Minha roupa de Batman, Alfred.”
“Mas, senhor, quer que realmente o vejam
vestindo aquilo? Não prefere esperar os trajes
encomendados?”
“Minha roupa de Batman, Alfred.”
“Senhor, lembre-se de que hoje é domingo
de Páscoa e todos usarão suas melhores ves-
tes...”
“Alfred, minha roupa de Batman.”
“Pois não, senhor.”

206
O Cavaleiro das Trevas era uma criatura da
noite, mas os desfiladeiros de Gotham City fa-
ziam uma bela sombra de dia. E, onde não ha-
via sombra, o Batmóvel último tipo, com sua
pintura camaleão e janelas escuras, propiciava
abrigo e camuflagem. Assim, Batman conse-
guiu seguir Foster Cavendish sem levantar
suspeitas.
A família de Cavendish morava num condo-
mínio de alto nível na Avenida Éden. Às dez e
meia da manhã, o sr. Foster saiu pelo elegante
portão da frente, e o porteiro chamou um táxi.
Antes de entrar, Cavendish olhou para cima,
passou a maleta para a outra mão e acenou.
De uma janela num dos últimos andares, um
braço com uma manga branca correspondeu
ao aceno.
Batman seguiu o táxi até o Aeroporto Fitz-
gerald e viu seu protegido comprar uma pas-
sagem para Red Wing, no Estado de Minneso-
ta. Embarcou mais de dez minutos antes da
hora do vôo. O Homem-Morcego sorriu.
O pássaro estaria voando, fora do alcance
do Charada que, por uma questão de orgulho
e talvez de honra, preferia levar avante suas
ameaças dentro dos limites de Gotham City.
Depois Batman pensou melhor. Uma bomba

207
que explodisse enquanto o avião estivesse ain-
da no espaço aéreo de Gotham estaria dentro
das normas que o Charada impunha a si mes-
mo.
O Mascarado não tinha certeza se o seu ini-
migo tinha posto uma bomba no avião... mas
também não tinha certeza de que ele não ti-
nha posto.
Melhor garantir que se arrepender, como
seus pais costumavam dizer antes de terem
morrido prematuramente nas mãos de um as-
saltante de rua... um assalto que ele havia tes-
temunhado e que o transformou no temido
Batman, o terror dos criminosos.
Correu para um telefone público, passando
na frente de uma mulher de vestido verde e
chapéu amarelo. A dona começou a bater nos
ombros do estranho mascarado com a sombri-
nha enquanto ele discava 911. Quando a fre-
nética senhora ouviu a palavra bomba no tele-
fonema anônimo, soltou um OOOOOOHHHH!!!
E ficou quieta.
A viatura do esquadrão de bombas chegou
e vasculhou o avião com cachorros e sensores
eletrônicos.
Nada de bomba.
Porém, o acontecido tinha abalado Caven-

208
dish. Depois de alguns drinques no bar do ae-
roporto, entrou com a maleta em outro táxi e
foi para casa.
Batman o seguiu, sentindo o peso da res-
ponsabilidade. O telefonema anônimo tinha
sido um fiasco, colocando o sr. Foster nova-
mente em perigo de morte nas mãos do Cha-
rada. Agora o Homem-Morcego teria que ficar
grudado na provável vítima para protegê-la.
Enquanto o porteiro ajudava Cavendish a
descer do táxi, conduzindo-o em seguida por-
tão adentro, Batman contornou o prédio, cor-
rendo, e entrou pelo subsolo. Havia contado
os andares até a janela por onde a senhora
Cavendish tinha acenado... sabia que botão
apertar. O elevador de serviço levou o Vigilan-
te Mascarado ao andar desejado antes do ele-
vador social chegar.
Como ainda tinha alguns segundos, Bat-
man localizou a porta com o nome de Caven-
dish, tirou uma chave mestra do cinto, abriu-a
e deslizou para dentro.
Esgueirou-se para o interior do quarto de
vestir, escondendo-se atrás de botas e capas
de chuva. Tinha acabado de se ajeitar quando
a porta da frente abriu-se outra vez, agora
com barulho de chaves, seguido de um baque,

209
quando a maleta chegou ao chão.
De um quarto lá de trás, veio um uivo fan-
tástico.
“Sou eu, meu bem.” Cavendish falou em
voz alta. “Acabei de levar um susto.”
“Você levou um susto? E isto, o que foi?”
Batman espiou com cuidado para fora e viu
cachos de cabelo cor de hena e um penhoar
transparente.
“Deixe eu contar o que aconteceu, Ba-
thsheba. Foi uma bomba que me assustou.
Não embarquei. Brrr! Acho melhor beber algu-
ma coisa!”
A voz de Bathsheba parecia preocupada.
“Pobrezinho. Vá até a sala que eu levo um
drinque para você.”
Batman esperou que saíssem, escapou do
cubículo e examinou o apartamento em busca
de um esconderijo melhor, algum lugar de
onde pudesse ficar atento à possível chegada
do Charada.
Ao entrar no quarto de onde Bathsheba ti-
nha saído, ficou imobilizado. Seus sentidos lhe
diziam que havia alguém ali.
A certa altura, percebeu uma respiração
abafada que vinha de baixo dá enorme cama
de casal.

210
Andando com leveza, aproximou-se e agar-
rou o pé da cama, empurrando-a para o lado.
Depois, jogou-se sobre a figura nua, deitada,
antes que se movesse.
“Eu o peguei, Charada!”, disse com raiva,
apertando o pescoço do homem contra o
chão.
“Aaarggg!!!” O sujeito estava tentando lhe
dizer alguma coisa.
Queria dizer que não era o Charada.
Batman olhou pela primeira vez para o ho-
mem, soltou-o e levantou devagar. Era o se-
cretário da Habitação, Sam Rubin.
O Homem-Morcego se recobrou rapidamen-
te. Rubin se sentou, esfregando o pescoço
cheio de vergões. Olhou em volta e começou a
gralhar alguma coisa. O Caçador de Charadas
viu uma calça e uma camisa jogadas sobre a
cadeira. Ergueu o visitante com um tranco, jo-
gou as roupas em cima dele e colocou a cama
de volta no lugar.
Não devia coisa alguma a Rubin. Não preci-
sava encobrir o fato de ele ter transformado
Foster Cavendish num cuco nem mesmo preci-
sava salvar sua vida... parecia claro agora que
o alvo do Charada não era o corno, mas o
amante. Batman faria tudo para derrotar o ad-

211
versário.
Soou uma campainha e o Terror dos Crimi-
nosos pegou o interfone do quarto para escu-
tar a conversa. O porteiro estava anunciando
um carteiro com uma entrega especial para
Bathsheba Cavendish. Ela precisava assinar
pessoalmente o recibo.
O coração de Batman bateu mais forte. Era
isso! O Charada tinha escrito com uma carta
de amor ao assinar seu bilhete. E aí vinha o
carteiro. Tinha que ser mesmo uma entrega
especial, pois era domingo de Páscoa.
A campainha tocou.
“Eu atendo, querido!” Era a voz de Ba-
thsheba.
Batman debatia consigo mesmo se devia
agir agora ou se devia esperar que o Charada
fizesse o primeiro movimento.
Decidiu esperar.
A porta se abriu.
“Que pacote lindo!” Bathsheba gritou por
cima do ombro. “Obrigada, querido. Abra para
mim.”
“Assine aqui, madame.”
“Não fui eu que mandei. Você deve ter um
admirador secreto.”
“Assine aqui, madame.”

212
“Isso seria ótimo. Abra. Quero ver o que
meu amor secreto me mandou.”
“Assine aqui, madame.”
Antes que Batman conseguisse gritar para
ele não abrir o pacote, ouviu o som de papel
rasgando.
“É um ovo de chocolate!”
“Que bonitinho!”
Não ouviu outro “Assine aqui, madame.”
Era evidente que o Charada decidira não
esperar.
Batman saltou para dentro da sala, agarrou
o ovo de chocolate da mão de Foster Caven-
dish e saiu correndo do apartamento.
TIC-TAC-TIC-TAC-TIC-TAC!
O ovo estava junto do seu coração, que ba-
tia apressadamente.
Foster Cavendish arregalou os olhos para
Bathsheba Cavendish. “Com o Batman?”
Bathsheba cruzou os braços e ergueu o
queixo.
Sem prestar atenção a esse enredo secun-
dário, o Cavaleiro das Trevas disparou pelo
corredor com o ovo de Páscoa, como um joga-
dor de futebol americano. O Charada, vestido
de carteiro, estava sozinho no elevador. Seus
olhos se encontraram no momento em que a

213
porta se fechou.
Batman derrapou ao parar e, com uma das
mãos, forçou a porta o suficiente para jogar o
presente no buraco escuro. O ovo caiu em
cima do elevador que descia. Batman pulou
para trás e se encostou contra a parede. Mes-
mo assim, foi atirado ao chão, enquanto esti-
lhaços de madeira e aço furavam sua capa.
Então, ouviu quando a explosão rompeu os
cabos de aço e fez com que o elevador des-
pencasse por vários andares até o subsolo.
Um carteiro chamuscado e rasgado passou
mancando pelo porteiro.
Quinze minutos depois, Sam Rubin saiu de
baixo da cama e fingiu ter chegado com a polí-
cia e os bombeiros, que agora enchiam o pré-
dio. Foster ficou emocionado por Rubin ter
vindo ao saber da explosão, não apenas como
um secretário da Habitação preocupado com
danos em edifícios habitáveis, mas também
como alguém interessado no bem-estar dos
amigos. Cavendish mal sabia quanto Rubin era
amigo da família.
Batman teve medo de encarar Alfred com a
capa no estado em que estava.

214
Wayne telefonou para Sollis. “Por acaso,
você sabe quantos Sábios de Gotham exis-
tem?”
Amicia fez uma pausa antes de responder.
“Poderia ir até a Inglaterra e procurar Gotham
no livro de cadastros e nos registros de todos
os censos. Mas duvido que a população mas-
culina esteja dividida entre sábios e tolos.”
Bruce também fez uma pausa. “Você inter-
pretou literalmente o que eu disse. Estou fa-
lando dos sábios das lendas, não necessaria-
mente de homens que viveram e respiraram.”
“Está bem. Bruce. Preciso ser mais esperta.
Deixe ver... Ah! Tem uma canção infantil:

‘Três Sábios de Gotham


foram para o mar de barco.
Se o barco fosse mais forte,
minha estória seria mais longa.’

Mas ela não diz quem são ‘os três sábios’.


Assim, fica em aberto.”
“Era disso que eu tinha medo”, disse Way-
ne.
Apesar de Bruce estar protelando a consul-
ta (com o que ela não se importou nem um

215
pouco), a dra. Sollis compartilhava desse
medo.

“Precisa sair de novo, senhor? Ainda não


acabei de remendar a capa.” Alfred foi buscar
com relutância a roupa de Batman. Hesitou
antes de entregá-la a seu patrão. “Se não for
ousadia minha, senhor, gostaria de sugerir que
usasse a roupa de Mestre Dick Robin enquanto
ele está na Inglaterra estudando.”
Wayne fez um movimento com os ombros.
“Não ia servir direito.” Deu um tapinha no om-
bro do mordomo. “Não se preocupe, Alfred. A
escuridão encobre uma multidão de pecados.”
Alfred permaneceu inflexível. “Pensei que
fosse a caridade, senhor, que encobrisse os
pecados.”
“Somos ensinados a praticar nossas boas
ações em segredo, não é? Escuridão é isso.”
Batman jogou a capa nos ombros e não espe-
rou pela resposta de Alfred.

Eles se encontraram na Quarta Avenida


com a Rua Quatro, às quatro da manhã.
216
“Foster Cavendish escapou por pouco”, dis-
se o Comissário Gordon.
“Isso é verdade”, confirmou Batman. Não
falou que era Rubin, e não Cavendish, o alvo
do Charada. Perguntou: “O Charada, outra
vez?”
Gordon balançou a cabeça desolado. “Ele
vai e volta.” Entregou a Batman a cópia de
uma mensagem em verso.

Chapéu de burro em vez de coroa,


o tolo não afogaria
uma enguia na lagoa?
Então venha e seja guiado.
Cruelmente, frio como uma agulha, o Cha-
rada

As expressões cruelmente e frio como uma


agulha gelaram a espinha de Batman. O Cha-
rada parecia querer compensar suas perdas.
No entanto, o Homem-Morcego não deixou
que Gordon percebesse o desânimo que sen-
tia. Desapareceu no escuro antes que o Co-
missário visse o seu sorriso gelado.

217
A dra. Amicia Sollis tinha algumas explica-
ções para o verso. “Chapéu de burro é um
nome que se usava para folhas de papel com
a largura certa para se fazer um chapéu de
burro. O nome vem de uma marca-d’água em
forma de chapéu de bufão, com guizos. Afogar
uma enguia numa lagoa refere-se, natural-
mente, àquela história dos habitantes de Go-
tham fingirem que eram tolos. Venha e seja
guiado deve querer dizer isso mesmo. Ele de-
safia o Batman a ser guiado por suas palavras.
Deve ser isso.”
“Então o Batman precisa apenas encontrar
o tolo, a enguia e a lagoa.”
“É isso.” Amicia provou seu filé de peixe.
“Está delicioso.”
Mas Wayne tinha perdido o apetite. Carran-
cudo, sem pensar em nada, tomou um gole
d’água.
Uma lâmpada se acendeu em sua cabeça.
Segurou o copo perto da luz das velas.
Água era a chave.
Será que a lagoa do Charada era a baía
onde ficavam os iates? Será que a enguia era
o Île de Joie? Será que o tolo era Jack King?
Batman não admitiria ser guiado.

218
m

Alfred parecia animado, mas desafiador.


“Mestre Dick está no quarto dele, desfazendo
as malas.”
Wayne olhou para Alfred e foi para o quarto
de seu parceiro. Dick Grayson demonstrava es-
tar muito bem.
Cumprimentaram-se com as agressões de
praxe, depois Bruce observou o rapaz, descon-
fiado. “Pensei que ia para as montanhas, de
carona, nos feriados da Páscoa. O que aconte-
ceu?”
Dick deu de ombros. “Alfred me telefonou
ontem à noite e disse que você estava muito
preocupado com o Charada. Imaginei que pre-
cisava de minha ajuda. Por isso, peguei o avi-
ão e voltei.”
“Depois eu converso com o Alfred. Porém,
devo admitir que me sinto mais seguro e mais
forte com você aqui. Vamos trocar de roupa, e
eu lhe conto tudo a caminho da baía.”

Batman pisou fundo no freio do Batmóvel.


O carro brilhante derrapou pelos desfiladeiros
de Gotham.
219
Foram salvos pelos cintos.
Robin olhou espantado para Batman. “Por
que brecou?”
“Tive uma ideia. Estou sendo guiado pelo
Charada. Jack King não é seu alvo. Na verda-
de, Jack King é o cérebro que há por trás dos
ataques do Charada aos Sábios de Gotham.”
Contou nos dedos enluvados de preto. “Pri-
meiro: o cadáver boiando com o verso tatuado
do Charada era de um estudante de arte en-
volvido com alguma coisa misteriosa na época
em que desapareceu. Essa coisa misteriosa
poderia muito bem ter relação com a cópia de
uma determinada pintura... o Rembrandt de
oitenta e seis milhões de dólares. Segundo:
isso explicaria a estranha calma de Jack King
quando o Charada ‘vandalizou’ o quadro. Ele
não estava exibindo um original, mas uma có-
pia pintada há pouco tempo. Porque, terceiro:
vi uma leve mancha de tinta no braço da dete-
tive Heather Mortimer depois que ela tirou o
dardo da tela. A tinta ainda não estava seca!
Quarto: foi fácil demais para o Charada entrar
e sair do Île de Joie. Quinto: os sábios que o
Charada está perseguindo estão, de uma ma-
neira ou de outra, no caminho implacável de
Jack King.”

220
Batman fechou o punho. “Tudo se encaixa!”
Robin concordou. “Parece. Mas e agora?”
O Homem-Morcego saiu do Batmóvel.
“Você vigia o Île de Joie para o caso do Chara-
da estar fazendo jogo duplo.” Robin passou
para o banco do motorista. “Enquanto isso...”
“Eu procuro a enguia certa na lagoa certa.”
“Boa pescaria!”
A voz de Robin foi encoberta pelo ruído do
escapamento do Batmóvel.
Batman olhou pela calçada, procurando
uma banca de jornais. Um pouco tarde, agora,
para examinar os jornais em busca de uma
pista de um lugar provável para o novo ataque
do Charada.

Robin reduziu a velocidade quando se apro-


ximou da baía. Viu o Île de Joie e estacionou o
Batmóvel num espaço reservado, marcado
com cones laranja fluorescente.

“Guarde o troco”, disse o Mascarado, distra-


ído. Já estava folheando o jornal.
“Obrigado, Batman!”, respondeu o cego
221
que tomava conta da banca.
Batman se assustou. “Como sabe que sou
eu?”
“Quem mais usa uma capa hoje em dia?
Ouvi o barulho que ela faz quando arrasta no
chão.”
“Ah!” O Homem-Morcego se afastou, lendo
enquanto andava.
O jornal estava mais grosso que o comum
para um dia de semana. Tinha um caderno es-
pecial sobre uma exposição de barcos.
O Combatente do Crime parou de repente.
“Está tudo bem, Batman?”, gritou o cego.
“Tudo bem.” Batman saiu quase correndo.
Foi para o Centro de Exposições, o local do
evento.
Tudo se encaixava. Chapéu de burro conto
coroa. Chapéu de burro era papel. Jornal era
papel. O jornal mais importante de Gotham
City, aquele que tinha nas mãos, era a coroa
do império de Rudolph Newkirk. Rudolph esta-
va no caminho de Jack, representando, por-
tanto, um dos Sábios que o Charada queria
destruir. Segundo o caderno especial, que de-
via ter rendido milhões em anúncios para o
jornal, Rudolph Newkirk estaria na exposição
de barcos naquela noite.

222
Batman apertou o passo.

O Centro de Exposições tinha entradas que


as pessoas que compravam ingressos desco-
nheciam.
Batman entrou no porão labiríntico do com-
plexo. Outros já haviam feito isso antes dele.
Ao andar pelas câmaras abobadadas, obser-
vou formas sombrias nos recessos mais escu-
ros. Um bom número de sem-teto tinha trans-
formado aquele lugar em sua casa. Andava
com cuidado e em silêncio, para não perturbá-
los. Mesmo assim, alguns se mexiam e res-
mungavam quando ele passava.
Mãos esqueléticas com garras sujas se
aproximaram ameaçadoramente de seu rosto,
olhos vermelhos fitaram os seus e o mau háli-
to entrou por suas narinas. Uma figura esfar-
rapada, coberta por camadas de roupa, mas
sem carne sobre os ossos, tinha pulado de
dentro de um dos recessos sobre ele. A voz
estridente continuava a gritar. “Vá embora!
Este lugar é meu!”
Batman fez um gesto de paz. “Está certo! É
todo seu!”

223
Tentou passar, mas as garras pegaram sua
capa perto da garganta e os olhos vermelhos
se fixaram nos seus. “Você está de máscara,
mas já vi esses olhos. Onde foi que eu vi esses
olhos?”
Batman se livrou das garras e, o mais deli-
cadamente possível, empurrou o homem de
volta para o seu precioso lugar. “Não sei, meu
amigo. Mas vamos ter que descobrir isso outra
hora. Agora estou atrasado.” Correu para as
escadas.
Não percebeu que a figura esfarrapada o
seguia, com medo e fascinação nos olhos inje-
tados de sangue.

No andar da exposição, uma vasta arena


cheia de barcos de todos os tamanhos, enfei-
tados com tiras e bandeiras, Batman se escon-
deu da multidão atrás da cabine de uma lan-
cha e estudou um programa que tinha apa-
nhado. O nome de Rudolph Newkirk lhe saltou
aos olhos. O editor deveria chegar às dez ho-
ras para entregar os troféus aos melhores da
exposição... daí a quinze minutos. A entrega
seria feita no estande do Caribe.

224
No verso do programa havia um mapa,
mostrando que o local era um modelo em mi-
niatura da região do Caribe (ilhas de barro
numa área de água emoldurada de aço), do
outro lado do salão.
Batman consultou outra vez o programa.
Logo antes do grande momento de Rudolph
Newkirk, um especialista de Anguilla, nas Ilhas
Leeward, faria uma demonstração de pesca
com arpão no mesmo estande. Os neurônios
de Batman faiscaram. Anguilla significava co-
bra, moreia, enguia...
As equipes das emissoras locais já estavam
instalando as luzes e as câmeras, abrindo es-
paço para os cabos que serpenteavam pelo
chão.
Lá perto, uma mulher, sentada num banco,
bordava um tecido de lã com uma agulha
grande, como se esperasse pacientemente que
seu marido se cansasse da exposição.
Batman só tinha olhos para o pescador de
Anguilla, um homem bronzeado usando óculos
e roupa de mergulho. Segurando um arpão,
andava com água até o joelho, agitando os
peixes que nadavam por ali. Subiu na réplica
de sua ilha nativa, equilibrando-se no pequeno
espaço. Batman viu Newkirk chegar com seu

225
grupo e parar nos bastidores da cena. Como
seria fácil para o pescador (o Charada disfar-
çado?) matar Newkirk quando saísse de cena
para dar lugar a outro! O Homem-Morcego
contornou o estande. Parou perto do banco
onde a mulher (que parecia Madame Defarge
tricotando enquanto a guilhotina decepava ca-
beças) trabalhava com a agulha e o fio de lã
num bastidor para bordado.
Uma animada apresentadora anunciou o
pescador como capitão. Com seu sotaque das
ilhas, o capitão Jacoby descreveu a técnica,
depois arpoou meia dúzia de baiacus em rápi-
da sucessão.
Agradecendo os aplausos, o capitão Jacoby
saiu pelo mar do Caribe. Os aplausos foram
mais fortes quando a apresentadora chamou
Newkirk.
Com um olho no pescador, que parou ao
lado da piscina para enxugar as pernas, Bat-
man observou Newkirk que, de bom humor, ti-
rou os sapatos e as meias e arregaçou as cal-
ças antes de entrar na água.
O dono do império das comunicações colo-
cou um pé na piscina, depois o outro. Batman
ficou tenso. Agora o Charada agiria.
Mas quem agiu foi a mulher que bordava.

226
Levantou do banco, derrubou seu bastidor e
se abaixou para puxar a tomada da extensão
de um refletor que estava ligada na parede.
Jogou a fêmea da tomada na água.
Cruelmente... frio como uma agulha... as
palavras passaram pela mente de Batman. O
Charada!
Todos ficaram imóveis, enquanto o cabo,
parecendo uma enguia elétrica, fez um movi-
mento em arco na direção da água. Todos,
menos Batman.
Ele saltou sobre o cabo e o puxou da toma-
da no instante em que a outra ponta ia tocar a
água, com silvos e faíscas. Newkirk ficou mui-
to assustado, mas não se machucou.
Soltando palavrões, o Charada, com a pe-
ruca meio caída, revelando agora sua identida-
de, pulou sobre o bordado, agarrou a agulha e
lançou a ponta afiada diretamente no coração
de Batman.
Uma figura esfarrapada se jogou entre o
Homem-Morcego e a agulha.
O Cavaleiro das Trevas deixou que os ou-
tros perseguissem o Charada. Inclinou-se so-
bre a figura esfarrapada, atingida pelo golpe
mortal que lhe fora dirigido.
Esforçou-se para ouvir as últimas palavras

227
do homem das ruas. Ele olhava para os olhos
de Batman.
“Os olhos... os olhos do menino... que me
viu... atirar em seus pais... no assalto...”
Batman levou um instante para compreen-
der, depois sentiu uma onda de raiva encher
seu peito. O homem já estava além do ódio do
Homem-Morcego, além de qualquer coisa a
não ser, talvez, da paz.

Bruce Wayne organizou uma espécie de au-


tópsia, uma reunião com Dick Grayson, o Co-
missário Gordon e a dra. Amicia Sollis. Alfred
trouxe o vinho na temperatura exata, e eles
estavam fazendo justiça a pelo menos uma
das garrafas.
A série de vitórias de Batman sobre o Cha-
rada tinha tido consequências imediatas e sur-
preendentes.
Gordon olhava sombriamente através de
seu copo meio vazio. “Jack King deu o passo
maior do que as pernas... sem ganhar nada
com isso. Como os Sábios de Gotham sobrevi-
veram para frustrar seus projetos grandiosos,
seu castelo de cartas desabou. Até seus bens

228
na Suíça e no Caribe foram bloqueados, e o Île
de Joie embargado em troca de impostos atra-
sados, juntamente com todos os seus tesou-
ros... incluindo o verdadeiro Rembrandt, que
estava enrolado, num cofre de parede.”
Dick falou: “Eu estava, por acaso, na baía,
quando ouvi no rádio as notícias do atentado
contra Newkirk. Vi quando Jack King saiu do
Île de Joie numa lanchinha veloz. Não sei por
que não levou o Rembrandt com ele.”
“Tinha outras coisas em mente”, arriscou
Wayne.
Amicia sorriu. “Ele não levou Queena com
ele. Ouvi dizer que ela pediu o divórcio e está
exigindo uma pensão altíssima. Duvido que
consiga, com todos os credores — lobos, tuba-
rões e gaviões — à procura de King por terra,
mar e ar. Mas, pelo menos, ficou com as joi-
as.”
“Uma Sábia de Gotham?” Wayne olhou
para Amicia. “Conheço uma mulher ainda mais
sábia.”

O Comissário de Polícia e o Cavaleiro das


Trevas se encontraram mais uma vez para fa-

229
lar do caso dos Sábios de Gotham, para que
Gordon pudesse agradecer ao Batman... e
contar como ia a caçada ao Charada.
“Ele escapou de novo. Procuramos em cima
e embaixo. Primeiro, é claro, embaixo... o po-
rão do Centro de Exposições.” Ele estremeceu.
“Que buraco de ratos! Vou tomar algumas me-
didas para tirar aquelas criaturas de seus ni-
nhos e de suas tocas e dar um jeito de fechar
o lugar.”
Batman colocou a mão no braço de Gor-
don. “Deixe-os. Pelo que sei, Jack King vai
precisar de algum lugar para morar.”

230
“Criminosos são uma espécie supersticiosa
e covarde. Então, devo usar um disfarce que
leve o terror ao fundo de seus corações! Preci-
so ser uma criatura da noite, como um… um…
morcego!”
— Bruce Wayne.

Estas palavras, pronunciadas há mais de


meio século, deram origem a uma lenda mun-
dial. Desde que presenciou o assassinato dos
pais, quando ainda era criança, o milionário
Bruce Wayne vem dedicado sua vida a uma
vingança pessoal contra o crime — tornando-
se a sombria figura mascarada que vasculha a
noite de Gotham City.

Agora, alguns dos maiores nomes da ficção


fantástica colocam seus talentos à disposição
do herói, narrando histórias totalmente inédi-
tas de mistério, terror, suspense e até com in-
gredientes sobrenaturais!
Seja bem-vindo aos CONTOS DE BAT-
MAN.

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