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Figurino funk:

Roupa, corpo e dança


em um baile carioca
mylene mizrahi

Figurino funk:
Roupa, corpo e dança
em um baile carioca
SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA

UFRJ
coleção
© 2019 Mylene Mizrahi
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Alice Garambone Apresentação9
Isadora Bertholdo
João Saboya
Julia Roveri Capítulo 1  15
Rodrigo Fontoura O objeto e a discussão teórica

Capítulo 2 41
O baile todo!

cip-brasil. catalogação na publicação Capítulo 3 83


sindicato nacional dos editores de livros, rj As pessoas e as coisas
m681f
Capítulo 4 119
Mizrahi, Mylene
Figurino funk : roupa, corpo e dança em um baile carioca / Mylene Mizrahi. - 1. ed. -
As marcas estilísticas
Rio de Janeiro : 7 Letras : ufrj, 2019.
Considerações finais 165
isbn 978-85-421-0512-4

1. Vestuário - Aspectos sociais - Rio de Janeiro (rj). 2. Funk (Música) - Aspectos sociais Bibliografia171
- Rio de Janeiro (rj). 3. Etnologia - Rio de Janeiro (rj). I. Título.

19-57193 cdd: 391


cdu: 391

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária crb-7/6439

2019
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
Para Beatriz Alasia Heredia
Apresentação

O livro que o leitor tem em mãos resulta de minha pesquisa de mes-


trado, conduzida majoritariamente em um baile funk dos anos 2000.1
Cheguei ao baile fascinada por seu universo estilístico, sua música, suas
estéticas corporais. Mas foi a partir de uma problematização da mate-
rialidade, mais especificamente da indumentária dos jovens frequenta-
dores da festa, que adentrei esse mundo e suas lógicas. A publicação de
minha dissertação atende assim a duas vontades, ambas relacionadas ao
momento histórico de sua realização. De um lado, ofereço o estado da
arte das abordagens da materialidade como imprimidas em inícios dos
anos 2000 pela antropologia. O enquadre conceitual que o leitor acom-
panhará corresponde àquele momento histórico, mesmo que a discus-
são sobre as coisas tenha avançado muitíssimo, como minha própria
trajetória de pesquisa vem dando testemunho, se entrelaçando ainda
aos estudos de ciência e tecnologia.2 Esse livro se constitui assim em um
documento histórico também do ponto de vista conceitual, ao realizar
um raio X do estágio em que se encontravam as discussões relativas às
abordagens das coisas, nestas incluídas os bens de consumo, os objetos
de arte, os adornos corporais.

1 O trabalho de campo transcorreu entre os anos de 2005 e 2006, ao longo de dezoito meses. Além
de realizar observação participante no baile propriamente dito, visitei os jovens em seus locais
de trabalho e moradia, quando pude acompanhar ainda suas produções para a festa, em suas
incursões aos centros de compras e, no caso específico dos rapazes, em suas idas ao barbeiro.
2 A pesquisa de doutorado foi conduzida junto à rede de relações que se articulou em torno do
cantor de funk Mr. Catra e se apoiou em dois vértices: a criação musical e as estéticas corporais
(MIZRAHI 2014). Algumas das minhas elaborações posteriores são exemplares do modo como
segui abordando os objetos materiais (MIZRAHI, 2012, 2015, 2018).

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Mas com a etnografia que aqui trago, produzo também um registro Assumi como meu ponto de partida o baile funk, uma vez que este
histórico dos bailes funk no Rio de Janeiro de então. A festa funk segue havia sido institucionalizado pelos meios de comunicação como con-
mobilizando a juventude carioca, especialmente a das classes populares texto de origem da “calça”. Em seguida, partiria para os outros grupos
da cidade, mas o cenário que a abriga e, que por sua vez altera a própria sociais consumidores do objeto, procurando ver também o discurso de
festa, mudou muito. O momento de ruptura fundamental pode ser loca- seus produtores e outros agentes envolvidos no processo de sua confec-
lizado na instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que ção. Contudo, uma vez no baile, minha pesquisa tomou um outro rumo.
alteraram fortemente a dinâmica das festas nas favelas, lócus privilegiado Não me pareceu mais suficiente estudar apenas os usos da “calça” no
de realização dos bailes e, não menos relevante, de difusão de hits que baile funk, mas me interessou todo o conjunto indumentário no qual
posteriormente chegariam ao asfalto e alçariam à fama seus criadores. ela se inseria. De repente, meu objeto passou de um único artefato que
O baile de favela foi engrenagem fundamental do funk carioca como circulava por mundos sociais diversos, fazendo a ponte entre eles, para
o conhecíamos. Não é mera coincidência que nesse mesmo período São o baile funk, o universo estético que se articulava em torno daqueles
Paulo tenha se convertido no grande centro produtor da música funk. artefato, que o continha.
Mas o funk carioca não se fez de rogado e encontrou seus próprios cami- Ao reformular meu projeto de mestrado, mantive o foco sobre a
nhos. Incorporou as 150 BPMs, viu surgir figuras como o DJ Rennan da materialidade, acompanhando Douglas e Isherwood no entendimento
Penha e o DJ Polivox, inventou o Baile da Gaiola, capaz de reunir até de que o objeto, ao ser tratado de uma perspectiva arqueológica, pode
20.000 pessoas, além de tornar-se personagem presente em letras de ser tomado como “a ponta visível do iceberg que é o processo social como
músicas que no verão de 2019 ocuparam as top ten lists dos serviços de um todo” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004:123). Contudo, a apreensão do
streaming. Tudo isso alcançado de modo muito próprio ao funk, esca- consumo da “calça” como um “fato social total”, articuladora de grupos
pando transgressoramente da engrenagem da indústria cultural, que sociais diversos (MAUSS, 2003), foi articulada a um estudo da estética e
das conexões entre a arte e a vida coletiva (GEERTZ, 1997). Elegi, assim,
vinha englobando artistas funk por meio de seu braço paulista. Mas essa
um enquadre condizente com o novo foco de minha pesquisa, uma
é uma outra história, a ser contada em outra ocasião.
etnografia sobre o “figurino funk”, composto pela vestimenta e adornos
Cheguei ao universo funk levada pela “calça da Gang”, categoria
corporais femininos e masculinos, encontrados em um baile localizado
midiática que designou um estilo de calças femininas que se tornou
na Zona Central do Rio de Janeiro. Desse modo, a roupa foi apreendida
conhecido após a sua apropriação pelas meninas frequentadoras dos
em sua relação com o corpo e a dança, fazendo da música outro compo-
bailes do Rio de Janeiro. O interesse pela “calça” já tinha me levado a
nente importante da etnografia, como nas letras parcialmente transcri-
pesquisar sua trajetória nos meios de comunicação, observando a sua
tas de algumas canções.
ressignificação ao longo dos anos. Após esse estudo, formulei o meu
A narrativa que apresento a seguir é entremeada por algumas ilus-
projeto de mestrado com o intuito de registrar o discurso dos usuários
trações, todas realizadas por mim. Encontram-se sem qualquer legenda
em torno do referido estilo. Assim, minha intenção era a de, a partir de
e inseridas no próprio corpo do texto, na medida em que este faz as
um estilo específico e dos discursos que se articulavam em torno dele,
vezes da primeira. A grande maioria das imagens são diretamente refe-
entender as pessoas e seus distintos ethos. Como a pesquisa anterior já ridas pela descrição do texto.
havia me mostrado que o bem em questão era consumido por diversos No primeiro capítulo, realizo alguns esclarecimentos iniciais sobre
grupos sociais, e não apenas por frequentadores dos bailes funk, o pro- a forma pela qual cheguei ao meu “objeto de pesquisa” bem como apre-
jeto de pesquisa do mestrado envolvia investigar não apenas a circula- sento a discussão teórica que conduz a narrativa etnográfica. A discus-
ção do objeto, mas a circularidade do gosto. são conceitual tem como cerne as abordagens da cultura material que

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procuraram ultrapassar a importância do objeto como símbolo, consi- plano mais individualizado, ainda que seja possível notar como as opções
derando-o também em sua materialidade e agência. Mas nem por isso individuais encontram-se permeadas por valores mais coletivos. Nesse
abandonei a abordagem classificatória dos bens. Ao contrário. A pesquisa momento, o ponto é a escolha do indivíduo em um vasto universo de
empírica mostrou que, em se tratando do estudo de um conjunto indu- possibilidades, que pode vir a ser o guarda-roupa de uma amiga. No
mentário, por definição composto por elementos que contrastam entre capítulo, discrimino ainda os distintos estilos de vestir dos rapazes, em
si, se fez necessário que os objetos fossem abordados como articuladores contraposição ao das moças, que apresentam uma indumentária mais
de oposições. Entretanto, e especialmente em um estudo cujo foco cen- complexa, e por isso mesmo mais difícil de ser sistematizada.
tral recai sobre as roupas, impôs-se a necessidade de se estudar a natureza O quarto e último capítulo é dedicado às marcas estilísticas que
física do objeto e sua relação com o corpo que o veste. Em outros termos, apresentam cada um dos conjuntos indumentários, o feminino e o mas-
para entender os usos de um determinado bem pela pessoa foi crucial culino. Nessa seção, a estética é novamente devolvida ao seu contexto
compreender a relação estabelecida entre pessoa e coisa, como uma via relacional de produção, uma vez que a roupa é apreendida agora em sua
de mão dupla, em que nenhum dos lados se sobrepôs ao outro. relação com o corpo na dança. O discurso em torno do gosto é colocado
Isto posto, a relação entre o artefato e o seu usuário envolve uma con- em diálogo com os cantos ouvidos na festa. O estilo só se faz apreender,
sideração da materialidade do primeiro em relação ao corpo do segundo. só obtém sentido, quando relacionado ao todo estético e a um conjunto
As relações com o corpo derivam da problematização da materialidade. de valores que, se não pode ser designado como ethos do grupo, consiste
Mas este corpo não está solto no espaço nem em repouso. Trata-se de um no esboço de uma ética que legitima a estética observada. As marcas
corpo em movimento e inserido em um contexto específico, o da dança. estilísticas são consideradas ainda a partir de uma perspectiva que con-
Temos, assim, o tripé sobre o qual se desenvolve o argumento desta dis- sidera as trocas com o mundo exterior ao baile como de grande rele-
sertação: as relações entre roupa, corpo e dança em um baile funk. vância para a definição dos estilos carregados por cada um dos gêneros.
Esta base rege o andamento da etnografia propriamente dita, que
apresento a partir do segundo capítulo, no qual descrevo a minha chegada
ao baile, que ocorreu em uma atmosfera cercada por um misto de medo e Antes de adentrarmos o baile propriamente dito, gostaria de fazer
fascínio. Uma vez lá dentro, concedo uma descrição ampla do repertório alguns agradecimentos a pessoas e instituições que tornaram esse livro
de roupas e adornos corporais encontrados, evidenciando as relações de possível. Começaria agradecendo a CAPES pela bolsa PNPD e pelo auxílio
oposição que estes travam entre si. Mostro a roupa inserida em um todo financeiro fornecidos, que viabilizaram a publicação deste livro. Nesse
estético maior, ao qual a vestimenta encontra-se articulada ao mesmo aspecto, o apoio de Glaucia Villas Bôas foi fundamental. Além disso,
tempo em que tem o seu sentido reforçado. Nesta etapa do trabalho de sendo o presente livro resultante de uma investigação de mestrado, é
campo a minha posição na festa é similar a de um espectador em uma natural que as pessoas que me cercaram naquele momento sejam tam-
apresentação artística. Esta é a maneira pela qual me parece que o baile, bém importantes para o mesmo. Quero assim agradecer aos meus jovens
como um todo, pode ser melhor apreendido. Um espetáculo de dança. interlocutores em campo que, hoje já adultos e alguns com filhos, foram
Não obstante, a minha trajetória na festa revelou que a pura obser- cruciais para que eu pudesse desvendar o baile funk. Quero agradecer
vação e classificação da estética estudada não davam conta da apreensão também àqueles que, de um modo ou de outro, contribuíram para que
das lógicas que regem o gosto dos frequentadores da festa. Assim, no eu adentrasse a antropologia e que hoje são meus colegas da academia. A
terceiro capítulo, entro na festa para em seguida dela sair e ir ao encontro Els Lagrou, orientadora de mestrado e doutorado, por seu olhar atento e
das pessoas em suas casas, lançando o meu olhar sobre a relação entre cuidadoso, que permanece em nossa interlocução desde então. A Peter
as roupas e as pessoas e seus corpos. Aqui a análise se fecha sobre um Fry e Everardo Rocha, que compuseram minhas bancas de qualificação

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de projeto e defesa de dissertação. A Beatriz Heredia e Marco Antonio Capítulo 1
Gonçalves, professores que igualmente contribuíram para os caminhos
que esse texto tomou. Beatriz teve participação especial nos trâmites para O objeto e a discussão teórica
minha entrada em campo. A amizade que desenvolvemos a partir dali,
vivenciada também junto à disciplina que ministramos juntas, transcor-
reu durante o intervalo de tempo que vai de minha chegada no baile
até alguns meses antes da publicação desse texto, quando Beatriz nos
deixou. A ela, que segue me inspirando e estimulando, dedico esse livro.

A pesquisa que apresento nas próximas páginas teve início, podemos


dizer, com uma pesquisa anterior, que tratou de investigar a ressignifi-
cação, através do discurso midiático, de um estilo de calças femininas
que tornou-se conhecido como “calça da Gang” (MIZRAHI, 2003). Esta
calça passou a ganhar destaque em prestigiosos editoriais de moda da
imprensa especializada, que colocavam em destaque, ao mesmo tempo
que traziam para o conhecimento de um público mais amplo, uma esté-
tica descrita como discordante da que pautava então o gosto hegemô-
nico carioca, parecendo fazer uma ponte entre esses dois distintos gos-
tos. A partir dessas reportagens passei a me perguntar se a “Zona Norte”
exercia algum tipo de fascínio sobre a “Zona Sul”. Uma das publicações
que me inspirou na formulação dessa hipótese intitulava-se, inclusive,
Zona Norte, território da alma carioca (RITO, 2001). Por meio desse
contraste entre uma zona e outra da cidade, passava igualmente a orga-
nizar meu pensamento por meio de uma espacialidade simbólica que
Gilberto Velho já apontara como articulando no Rio de Janeiro áreas de
moradia e representações de estilos de vida (VELHO, 1973). Em busca de
uma resposta para essa pergunta inicial, resolvi me aprofundar no uni-
verso do gosto carioca. De um certo modo, minha trajetória acadêmica
tem sido pautada pela complexificação dessa problemática primeira, as
relações entre estéticas, gostos, aparências, corpos, que permitem enten-
der, mesmo que um pouco, o Rio de Janeiro e junto o próprio Brasil.

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a “calça da gang” revelar detalhes da silhueta corporal, como os contornos das nádegas e
coxas. Após ser tinturado e lavado, o tecido pode ficar, dependendo do
Tomei a “calça da Gang” como representante exemplar da cultura mate- resultado pretendido por seu produtor, com a aparência final bastante
rial carioca e objeto que encerra uma tensão entre a ideia de criador e semelhante à do índigo blue, tecido empregado na confecção das calças
estilo cultural. jeans. Portanto, não se trata de uma calça jeans, mas de um objeto que
se assemelha a esta, simulando a sua aparência.
Além do tecido empregado, outra característica fundamental a este
estilo particular está relacionada à modelagem da calça propriamente.
Esta calça possui um cós extremamente baixo em sua parte da frente e
mais alto atrás, o que, segundo a mídia, tende a destacar os quadris de
suas usuárias. Por fim, são peças muitas vezes extremamente adorna-
das, de maneira que possuem um aspecto artesanal, especialmente as da
marca Gang, que utiliza bordados, cristais, rendas, encaixes de outros
tecidos, além de pequenas incisões feitas em sua superfície. São reali-
zadas, ainda no tecido, lavagens localizadas, que realçam determinadas
partes do corpo que a veste.
Foi a partir de seu consumo pela parcela feminina frequentadora
de bailes funk na cidade do Rio de Janeiro que a “calça da Gang” obteve
visibilidade e chegou ao conhecimento de um público mais amplo, pro-
cesso que institucionalizou o baile funk como seu contexto de origem.
Posteriormente, esse item passou a aparecer na imprensa como “objeto
Gang era uma confecção de roupas carioca, pertencente ao seg- de desejo” de diversas consumidoras do chamado star system, como a
mento jeans que colocou no mercado, em fins dos anos 90, uma mode- modelo brasileira de carreira internacional Gisele Bündchen e a can-
lagem de calças com algumas características distintivas. A primeira delas tora norte-americana Britney Spears, para finalmente cair no gosto dos
diz respeito ao tecido que é utilizado em sua confecção. A calca, apesar “fashionistas”, consumidores que constantemente buscam a “última
de possuir aparência de jeans, era na verdade feita de moletom stretch, moda” ou aquela tendência que ainda estará em voga, podendo se tratar
uma malha resultante da mistura de dois fios, o indifio, produzido pela ou não de profissionais do campo da moda.
empresa Santista Têxtil, e o elastano, termo técnico que designa a mais A estética exemplificada pela “calça da Gang” gerou desdobramen-
conhecida Lycra, de uso coloquial, e marca registrada da multinacional tos na indústria de moda nacional e internacional. O estilo passou a ser
do setor químico Du Pont.1 A associação entre uma malha, que por si só denominado, em contexto estrangeiro, como brazilian jeans ou, como
já “estica”, e o fio de elastano – adicionado aos tecidos, de maneira geral, retraduzido em solo nacional, “jeans de corte brasileiro”. É nessa pas-
para dar-lhes mais flexibilidade – permite o moletom stretch se expan- sagem do gosto nacional para um cenário de gosto mais cosmopolita
dir tanto horizontal quanto verticalmente. Este traço tornou a calça que me parece possível afirmar que o objeto, ao ser ressignificado, passa
totalmente aderente ao corpo, como uma roupa de ginástica, capaz de de representação do gosto marginalizado à representação da identidade
nacional da moda brasileira, sem que sua trajetória deixasse de expres-
1 O principal produtor do tecido era então a Velonorte que, em associação com a Dupont, desen-
volveu o Veloflex, composto de 96% de algodão e 4% de elastano. sar as relações de ambiguidade que o mesmo suscita.

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A empresa Gang2 afirma ter se inspirado, para criar a calça, nas como o processo pelo qual o sentimento de pertencimento a um grupo e
danças baianas. Por outro lado, a modelagem desenvolvida pela Gang o seu ethos podem ser determinantes para o desencadeamento de opções
é claramente coerente com a evidencia do corpo nos bailes funk. ao estéticas discordantes da estética dominante e passíveis de serem imita-
nos debruçarmos sobre estudos sobre o universo funk na década de das e tidas como prestigiosas. O meu objetivo foi mostrar de que forma a
80 (VIANNA, 1988), podemos notar que desde então calças justas eram estética das ruas é reproduzida pela alta moda, evidenciando a trajetória
peças preferenciais da indumentária usada pelas dançarinas de funk e a que transforma modas marginalizadas em representações prestigiosas
valorização dos abdomens era expressa através de uma constante exibi- e demonstrando como a expressão de um grupo e a formação social
ção dessa região do corpo durante os bailes. Igualmente instigante é a em que este grupo se insere é capaz de produzir estilos que contradi-
forma como a Fórum, importante produtor de calças jeans da indústria zem as tendências sinalizadas pelo sistema internacional de moda. Não
paulista, realizou a apropriação desse gosto periférico ao mesmo tempo se trata de negar que a indústria da moda nacional esteja articulada às
que recontextualizando-o, retirando algumas de suas marcas e preser- demandas do capital, representado pelas multinacionais da cadeia têxtil
vando outras. O mesmo podemos notar na edição de fevereiro de 2003 e química (LIMA, 1987). O que me interessou foi justamente como, con-
da revista norte-americana Elle, em sua edição de fevereiro de 2003. Em siderados estes dados, a estética que expressa o gosto de um grupo social
um artigo intitulado “Booty Call”,3 a Gang, única das empresas men- periférico foi relevante o suficiente para promover uma moda que acaba
cionadas no artigo a efetivamente produzir calças no estilo brazilian por “contaminar” parte do sistema de moda.
jeans, esmiuçado na reportagem, é citada en passant. Em outros termos, A partir dos resultados dessa primeira pesquisa, se colocou para
não foi explicitado o fato de as calças produzidas pela Gang serem as mim a necessidade de investigar o consumo, e portanto os usos, do estilo
que, dentre as griffes arroladas pela revista, incontestavelmente possuem de calças acima referido. Digo estilo porque foi a partir de minha pes-
como traços característicos o uso do que designaram como “jeans tri- quisa etnográfica que pude constatar que a “calça da Gang” não é uma
cotado” [knitted jeans] aliado a uma modelagem de calça justíssima e manifestação isolada e sim uma variante de uma estética englobante.
baixíssima. Tampouco foi dado à empresa o crédito da invenção. Dessa perspectiva, não é possível falar em um criador individual do
A partir dos artigos analisados à época, foi possível aferir que o estilo. E se de fato fui conduzida por um objeto específico ao ambiente
gosto hegemônico não é balizado exclusivamente pela estética das clas- funk, o contexto tratou de me arrastar para dentro dele.
ses dominantes. Este fato é coerente com a mudança da dinâmica do sis- Considerando que, ao elaborar meu projeto de mestrado, meu obje-
tema de moda mundial nos anos 60, quando o vestuário passou a sofrer tivo era estudar o consumo da “calça da Gang” em seu setting de “ori-
influência de fontes múltiplas e as ruas tornaram-se um dos centros fun- gem”, o contexto funk, para, em seguida, investigar o consumo do bem
damentais de irradiação de novas modas (LAVER, 1982; LIPOVETSKY, em outros ambientes pelos quais ele circulava. Contudo, uma vez dentro
1989; POLHEMUS, 1994). Essa circulação dos gostos é ainda bastante do baile, não me pareceu suficiente estudar as relações que os dançari-
coerente com a especificidade da cultura brasileira, propiciadora da res- nos estabeleciam com uma única peça de roupa, mas investigar todo o
significação de elementos da cultura popular em símbolos da identidade contexto da estética indumentária em que esta se insere. A calça se tor-
nacional (FRY, 2001; VIANNA, 2002). nou, a partir de determinado ponto da pesquisa, mais um elemento do
Desta forma, o que procurei discutir naquela ocasião foi a formação conjunto estético encontrado. O estudo da circularidade dos gostos foi
do gosto como resultante de uma inversão nas lógicas de distinção bem assim sucedido pela etnografia que apresento nos próximos capítulos,
que diz respeito aos discursos travados em torno da vestimenta e dos
2 Foi o que me afirmou uma funcionária do alto escalão da empresa à época da mencionada
pesquisa. adornos corporais, como bijuterias, cabelos, piercings, tatuagens, dentre
3 Algo como “Chamado do bumbum”. outros, encontrados sobre os corpos dos dançarinos de um baile funk.

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duas abordagens em diálogo será pensada não como um termo independente, mas como um ele-
mento que pertence a um todo que por sua vez engendra um sistema
A ideia subjacente à minha investigação no baile foi realizar movimento relacional e que deve ter seu sentido apreendido a partir da relação de
inverso ao que fiz na pesquisa anterior. Se em A influência dos subúrbios oposição que estabelece com os outros elementos do conjunto (LÉVI-
na moda da Zona Sul centrei minha análise sobre um ponto específico, STRAUSS, 1996: 48). A esta abordagem do consumo como um sistema
dessa vez ampliei o escopo de minha pesquisa, etnografando para além de oposições binárias, somarei a perspectiva adotada pelas teorias da
da “calça da Gang”. Isto significa que considero o estilo estético em que a materialidade. Desta forma, manterei um olhar constante sobre as
calça se insere junto com as outras peças que compõem a indumentária características físicas do objeto, entendendo-o como constitutivos dos
funk. Tomo assim o “figurino funk” como um todo que contém a “calça processos por meio dos quais damos forma e entendemos a nós e aos
de moletom stretch”, que por sua vez é um estilo que engloba a “calça da outros (MILLER, 1994: 397). Penso que é a partir dessa união entre abor-
Gang”, como será visto adiante. dagens que poderei dar conta das lógicas que regem as escolhas estéti-
Nos próximos parágrafos introduzirei os autores com os quais dia- cas dos frequentadores de um baile funk.
logo, inserindo dados recolhidos em minha pesquisa de campo que De fato, as evidências etnográficas demonstram que ambas as ver-
justificam as escolhas teóricas. O cerne da discussão conceitual diz res- tentes teóricas são necessárias e não excludentes. As declarações ‘nati-
peito, portanto, às relações entre os sistemas classificatórios de bens4 e vas’ atestam que não é possível pensar a indumentária usada por fre-
as abordagens da materialidade. Pretendo mostrar que, para a análise quentadores de um espaço no qual dançar é o interesse principal que
do material recolhido no contexto etnográfico estudado, é necessário move as pessoas ali reunidas, sem pensar na relação que os objetos que
antes um diálogo entre as referidas correntes teóricas ao invés de uma compõem o conjunto possuem com a dança e com os corpos.
abordagem que as tome em moldes exclusivistas. Dessa perspectiva, A primeira noite no Clube do Boqueirão me deixou encantada com
pretendo conjugar a relação de importância que o objeto em sua con- o universo de roupas que ali encontrei. Como já afirmei acima, eu vinha
cretude estabelece com seu usuário e a sua significação a partir de sua em busca de um bem de consumo específico, e o ambiente estético que
posição e das relações de oposição que ele estabelece com os outros ele- ali encontrei colocou-me diante de diversos aspectos teóricos. Logo de
mentos do conjunto. Trato o objeto, portanto, a partir de dois de seus início percebi que existiam inúmeras versões da calça que até aquela noite
aspectos relevantes: como parte de uma totalidade englobante e como eu designava como “calça da Gang” e que eu acreditava fortemente ser
artefato, cuja natureza física revela-se como fundamental para a com- a categoria que englobava todas aquelas versões. Pus-me a conversar de
preensão dos seus distintos usos. Será visto que a problematização do imediato com as moças, ainda que a minha empolgação inicial tenha
aspecto material leva a considerações sobre as relações com o corpo. sido freada por acontecimentos que ainda tomariam forma. De qualquer
Assim, a argumentação teórica que segue se constitui em um esforço de maneira, rapidamente pude entender que “calça da Gang” não era o termo
preencher as lacunas deixadas pelas abordagens nas quais os objetos são “nativo” que designava a peça de roupa. A primeira moça com quem con-
tratados como linguagem, como signo. versei, Guta,5 me contou que chamava as calças de “calça de moletom
O “figurino funk” é aqui apreendido como um todo formado por com stretch”, que passam a ser “da Gang” quando possuem a logomarca
relações de oposição estabelecidas pelos diversos elementos que cons- afixada à peça, como o G em cristal que adornava a parte de trás de sua
tituem o grupamento de roupas e adornos corporais. A peça de roupa “calça de moletom com stretch”. Angela, de 17 anos, chama essas peças
de roupa de maneira similar: “calça de moletom stretch”. E ao me contar
4 Em importante trabalho, Barthes (1979) analisa o discurso dos jornais de moda em torno das
imagens das roupas, realizando uma análise estrutural. Nesta dissertação privilegio os traba-
lhos que articulam os sistemas classificatórios dentro de uma arcabouço socioantropológico. 5 Todos os nomes dos informantes foram substituídos por outros fictícios, com exceção do codi-
Deixo para projetos futuros a leitura mais cuidadosa de “Sistema da Moda”. nome do barbeiro, no capítulo 4.

20 21
isso, puxou o tecido de sua calça na altura de sua coxa, descolando-o da definido e ainda entender o que pretendo quando digo que fui levada ao
perna e dizendo “isso aqui, ó”, para me mostrar o material do qual era contexto funk por um objeto, uma vez que, qualquer que seja a versão da
feita a sua vestimenta. Acrescentou que sua calça era da PXC,6 mas que a calça, ele remeterá sempre ao seu corpo estilístico maior.
de sua colega, que assistia à nossa conversa, havia sido emprestada por A proposta de Gell segue de perto a maneira de operar do pen-
uma terceira amiga, que a comprou na “feirinha”.7 Ana, 18 anos, chama as samento mítico (LÉVI-STRAUSS, 1989), que se utiliza de um repertório
calças apenas de stretch, e diz que “‘calça da Gang’ é da Gang”, pois “Gang previamente existente para criar seus novos conceitos. Lévi-Strauss des-
é a loja”. A que ela usa é preta, recoberta de purpurina prateada e foi com- carta em sua análise a existência de um mito de origem, ainda que eleja
prada na loja PXC. Mas Ana compra também na “feirinha” e na Gang, de um como sendo o de “referência”. Em O Cru e o Cozido, o mito bororo
acordo com a sua disponibilidade financeira no momento da aquisição. é eleito por Lévi-Strauss (1991) como o ponto de partida de sua aná-
Assim, logo de início se colocaram duas questões de natureza teó- lise, não por ser o mais simples, o mais complexo ou o mais arcaico
rica. Uma delas diz respeito ao fato de a “calça da Gang” pertencer efe- dos mitos, mas por sua posição “irregular” no seio do grupo. Ele não é
tivamente a um universo estilístico maior. O discurso nativo nos mostra “senão uma transformação mais ou menos elaborada de outros mitos”
como a “calça da Gang” não é criação individual nem se encontra iso- (1991: 12). A mesma lógica rege o trabalho do bricoleur (LÉVI-STRAUSS,
lada do contexto estético carioca. Foi somente após o início do trabalho 1989) que parte de um conjunto de objetos e peças previamente existen-
de campo que pude perceber que existe de fato um estilo englobante no tes para construir seus novos objetos, todos distintos mas todos deriva-
qual está contida a “calça da Gang”. Dessa perspectiva é preciso definir a dos de um mesmo universo material. Um universo fechado e não defi-
maneira pela qual pretendo abordar conceitualmente a noção de estilo. A nível por projetos específicos, mas cujas partes são determinadas pela
formulação de Alfred Gell (1998) é bastante pertinente ao meu material. possibilidade de um dia virem a ser úteis. “Cada elemento representa
Em sua reformulação da antropologia da arte, o autor propõe que os esti- um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais; são ope-
los são definidos em um domínio interartefatual, pressupondo que as uni- rações, porém utilizáveis em função de quaisquer operações dentro de
dades de estilo não são os artistas individuais, ou escolas e movimentos um tipo” (1989: 33). O estilo que Gell define como sendo “‘relações entre
artísticos, mas as ‘culturas’. O autor entende que um determinado estilo relações’ de forma” (1998: 215) é bastante análogo a esse repertório que
é formado a partir da interconexão entre os artefatos e no qual qualquer possui o bricoleur, cujos elementos se abrem para uma vasta possibili-
exemplar de um corpus estilístico remete ao todo. Não há um objeto ou dade de encaixes. Gell realiza uma análise estética das tatuagens de uma
motivo do qual o todo estilístico derive, mas todos são transformações coleção de arte das Ilhas Marquesas, mostrando como todos os exem-
uns dos outros. Como uma imagem holográfica, que possui a informação, plares derivam uns dos outros, a partir de operações de corte, inversão
ainda que atenuada, da totalidade contida no holograma, o elemento per- e passagem análogas às que fez Lévi-Strauss em sua análise dos mitos.
mite reconstruir o todo, que por sua vez não é visto como “uma coleção de O ponto de partida é dado por aquele motivo que pareça mais “saliente”,
objetos separados, mas apenas um objeto com muitas partes distribuídas pois “a análise deve começar de algum lugar” (1998: 170).
em vários lugares diferentes” (1998: 167). Somando o discurso dos usuá- O segundo aspecto, de natureza teórica, evidenciado pelas moças
rios dessas calças no ambiente funk à abordagem proposta pelo antro- no baile, diz respeito à materialidade do objeto. A calça é classificada por
pólogo inglês, é possível afirmar que estamos diante de um estilo bem elas a partir de seu valor intrínseco, o moletom stretch que este último
termo explicita, a partir de sua tradução literal da língua inglesa, precisa-
6 Esta loja chamava-se Pixação e posteriormente alterou o seu nome para PXC. Entretanto, os usuá- mente a capacidade de esticar que o tecido possui. O discurso midiático
rios dos seus produtos continuam se referindo à marca através de sua denominação anterior.
7 Centros de comércio informal, geralmente constituídos de barracas como as dos camelôs e
em geral, e da própria empresa Gang, em particular, classifica a calça
expostas a céu aberto, muitas vezes em pequenas praças. como fazendo parte do segmento jeans, isto é, a partir de sua aparência

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e não de sua fisicalidade. Desta forma, a calça que dá origem ao brazi- Essas moças enfatizam a liberdade de movimentos que a calça per-
lian jeans propriamente dito, o estilo que se torna símbolo da indústria mite na dança. Guta foi um pouco além das outras garotas, expressando
nacional de jeans, não é uma calça jeans, que utiliza o denim índigo blue o seu gosto por roupas justas, o que de fato se nota no baile e é coerente
em sua confecção. Portanto, não examinaremos uma calça jeans, mas com o gosto que predomina na moda de vestuário carioca. O que torna
uma peça de roupa que muitas vezes simula a sua aparência. Digo muitas esse estilo de calças tão relevante, ao menos em um primeiro momento,
vezes porque o moletom stretch pode assumir distintos aspectos. Para é o fato de a peça de roupa esticar, traço que garante conforto ao corpo
chegar à aparência de jeans o tecido é tinturado em tons de azul, sendo na dança. Assim, se coloca a questão teórica: a materialidade dos objetos
em seguida lavado. Mas o mesmo processo pode ser realizado utilizan- e de que forma a natureza intrínseca do bem é relevante para se com-
do-se a cor que se desejar e o tecido pode se tornar rosa, turquesa, ama- preender a relação com o corpo e para o entendimento das escolhas que
relo, preto, ou assumir tons mais “terrosos”, como marrom e bege. levam ao seu uso do objeto. Mas antes de nos atermos às conexões entre
O que as falas dessas moças que conheci naquela primeira noite nos pessoas e coisas, vale a pena nos determos um pouco mais sobre outros
dizem é que é preciso problematizar a relação do objeto com o corpo dados etnográficos relativos agora à indumentária como um todo.
que o veste para compreender não apenas seus usos mas igualmente Beto, na época com 22 anos, frequentava o baile do Clube do
os sentidos que adquirem para suas usuárias. No baile funk a primeira Boqueirão em busca de uma oportunidade de ali se apresentar com seu
justificativa que é dada pelas meninas para o uso desse estilo de cal- grupo de amigos. Muito magro, alto e negro, ele apresentava um estilo de
ças está relacionada à liberdade de movimentos que o tecido permite se vestir muito distinto daquele que rege a indumentária feminina. Em
ao corpo na dança. Guta, como já vimos, vestia uma calça de “moletom diversos aspectos é possível notar esse contraste. O tecido empregado na
com stretch”, acompanhada de uma blusa em malha de poliamida, igual- bermuda que Beto veste é aquele que a indústria têxtil classifica como
mente elástica. Pergunto-lhe que roupa gosta de usar, e ela me responde “plano”, não estica. Característica inversa possui o moletom stretch que,
que são “essas roupas meio malucas”. Pergunto o que lhe fez escolher a como já vimos, estica em duas direções, horizontal e vertical, e é uma
roupa que usava naquela noite. Disse-me que gostava da calça que usava malha, produzido em teares circulares. A bermuda de Beto, como todas
por ser “justa”, que ela gostava de roupas justas. Em relação às calças as bermudas e calças usadas no baile, é larga. A calça das moças é justa.
jeans, afirmou que estas não eram boas para dançar, e quanto àquelas O rapaz veste ainda camiseta de malha de algodão, também larga, “longe
que possuíam elastano, isto é, o índigo blue com Lycra, ela reafirmou do corpo”, oposta ao estilo prés du corps como são os tops e as blusas que
que não eram calças apropriadas para a dança,8 pois não lhe permitiam vestem as meninas, confeccionadas em malha de poliamida mesclada ao
“fazer assim”. Em seguida fez um movimento circular dobrando uma fio de elastano, bastante aderente ao corpo. A poliamida, ao contrário da
de suas pernas, de maneira que a coxa formava um ângulo de noventa fibra natural que compõe a meia-malha, utilizada na confecção das t-shirts
graus com a perna e um outro ângulo idêntico com o tronco. Ana afirma e algumas regatas usadas pelos rapazes, é produzida em fio sintético. Vê-se
que escolhe a sua roupa por causa da dança: “Então tem que ser de assim que as roupas masculinas e femininas são marcadas por um forte
lycra, stretch, por que se você vai rebolar até o chão, as outras não dão”. contraste, possível de ser acessado em diversos níveis, e que apresenta uma
Andréia, também frequentadora de bailes funk, é específica. Ela garante oposição básica que se observa a partir da aparência da roupa. Trata-se da
que as outras calças “prendem no joelho”. proximidade ou afastamento da roupa do corpo. É importante notar que,
assim como as moças, Beto busca obter através de suas roupas conforto na
8 As calças jeans, por definição, utilizam em sua fabricação o denim índigo blue propriamente, dança. Sua fala é bastante coerente com sua indumentária. Ele diz que usa
que pode ser ou não mesclado ao fio de elastano. No caso de se realizar a mistura do fio de
“bermuda que deixa o corpo à vontade na dança... camiseta larga também
elastano ao índigo blue, o tecido se expande somente em uma direção, no sentido horizontal. O
moletom stretch, como já explicitado acima, estica em duas direções, a horizontal e a vertical. é legal pra dançar, e sapatilha. Tênis e sapato atrapalham”.

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Outra oposição pode se depreender do uso das cores. A roupa de ... essa mistura íntima de direitos e deveres simétricos e contrários deixa
Beto é muito colorida, ele veste bermudões amarelos e camiseta num de parecer contraditória se pensarmos que há, antes de tudo, mistura de
vínculos espirituais entre as coisas, que de certo modo são alma, e os indi-
tom de azul esverdeado, se aproximando do turquesa, sua sapatilha pos-
víduos e grupos que se tratam de certo modo como coisas. (2003: 202)
sui detalhes na cor laranja, seu cabelo, todo trançado, é arrematado por
elásticos brancos, de silicone. A roupa das moças, por sua vez, é sempre O etnólogo francês foi pioneiro ao mostrar, em Ensaio Sobre a
muito combinada. Em geral escolhem um dos tons do traje para repeti- Dádiva, como as pessoas e os grupos sociais se indistinguem de suas
-lo por todo o conjunto, através dos acessórios, como cintos e bijuterias, posses e como as trocas dos objetos são capazes de vincular estes mes-
e as cores das sombras colocadas sobre as pálpebras dos olhos, como mos grupos e pessoas. O autor analisa sistemas que consistem na troca
nos mostra Shirley, uma mulata de 18 anos, muito bonita, magra e de de presentes contratuais, ou seja, são presentes, aparentemente voluntá-
estatura mediana. Na noite em que a conheci, Shirley usava seus cabelos rios, mas que no fundo envolvem obrigação. É o interesse em desven-
negros presos em um rabo de cavalo e arrematado por um aplique de dar o que torna obrigatória a retribuição da dádiva recebida que move
trancinhas, o que tornava a aparência de seus fios muito longos. Vestia grande parte da investigação de Mauss. Para além da reciprocidade
uma calça de moletom stretch em tecido todo perfurado, formando que se estabelece a partir das trocas feitas entre as pessoas e os grupos
flores, e tinturado de maneira a imitar o aspecto de jeans lavado, em sociais, o foco de seu argumento recai sobre a circulação de coisas sociais
um tom intermediário de azul, nem claro nem escuro. Sobre o tecido que a troca de dádivas promove, que precipita as coletividades em um
estavam aplicados cristais, esparsamente salpicados. Sua blusa era de movimento contínuo e perpétuo, através do qual as pessoas e os grupos
modelo “ombro-só” em um tom de verde “ácido”, com pequenas bolas sociais se imbricam e contratam entre si, permanentemente. É a própria
brancas estampadas nas áreas próximas ao decote e na parte inferior sociedade que é colocada em movimento, onde o comércio e o consumo
da blusa. A jovem usava um cinto branco, cuja fivela de metal prateado surgem como espaço de troca entre pessoas movidas por interesses que
era em forma de coração, pintada de verde e branco. Calçava sandálias ultrapassam o ganho utilitário que se possa vir a adquirir.
brancas de plataforma e usava um anel acompanhado de pulseiras no Se Mauss é essencial para que pensemos o laço indissolúvel entre as
mesmo tom de verde usado nas outras peças, cor que se repetia no boné pessoas e as coisas, as formulações de Lévi-Strauss em torno do pensa-
que trazia sobre a cabeça, também com detalhes em branco. Seus olhos mento classificatório são imprescindíveis para apreendermos como pes-
arrematavam o visual, maquiados de sombra verde-claro cintilante. soas e coisas podem ser pensadas também a partir de relações de oposi-
A necessidade de apreender os itens que derivam das escolhas esté- ção. Lévi-Strauss (1975; 1989) nos mostra que o “pensamento selvagem”
ticas dos frequentadores do baile como um todo que forma um sistema é antes um recurso classificatório ao invés de um pensamento totêmico,
de oposições se impõe pela própria evidência etnográfica. Igualmente como se acreditava até então. O antropólogo francês desmonta a noção
evidente é a importância que possui a materialidade do objeto, a ponto de totemismo, demonstrando que não há uma fórmula única para que
de a natureza física dos artefatos ser fundamental na definição do tipo as associações entre os domínios do humano e do não-humano sejam
de roupa que se usará. É através dessas duas perspectivas que procurarei relacionadas, mas que se trata de uma relação de descontinuidade entre
mostrar, ao longo deste livro, como gosto, corpo e ethos se imbricam. ambos os lados, de maneira que são as diferenças nas duas esferas que
Exponho assim a seguir os principais autores a alicerçarem essa proposta. se assemelham e permitem opor os grupos sociais. Lévi-Strauss trata da
Marcel Mauss há muito notou que é dessa imbricação entre corpos articulação entre os domínios da natureza e da cultura, que por muito
e objetos e das misturas que pode aflorar o ethos e a lógica que se estabe- tempo foi pensada pela antropologia como se tratando de um sistema de
lece entre elementos aparentemente opostos: relações entre o humano e o divino.

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Sahlins expande essa ideia para argumentar que podemos falar em ao materialismo histórico, chama atenção para o fato de Marx não haver
um totemismo moderno, que não é “negado por uma racionalidade de considerado a relação das pessoas com os objetos na explicação da pro-
mercado” (2003: 177). Toda produção, defende, é a realização do esquema dução, a lacuna a ser preenchida agora é, uma vez considerada a relação
simbólico de uma cultura. Ao mesmo tempo em que faz uma crítica ao das pessoas e coisas, o lugar que possui a materialidade dos objetos no
materialismo histórico, Sahlins explicita o fato de que mesmo em uma uso que fazemos dos mesmos.
sociedade como a capitalista, na qual a produção dos bens é regida pela Miller (1987; 1994) nos mostra como é a própria natureza física dos
maximização dos lucros e uma racionalidade do capital, é uma ordem objetos, igualmente produtos dos desejos humanos e coisas inanimadas,
simbólica e não utilitária que organiza essa produção. A produção é um que os torna ambíguos em relação ao dualismo entre pessoas e não-pes-
momento funcional de uma estrutura cultural, ela objetifica o todo da soas. Assim, o artefato não é apenas produto do fazer humano, mas diz
cultura. A produção “é algo maior e diferente de uma prática lógica de respeito a todo o universo de coisas com as quais o ser humano interage,
eficiência material. É uma intenção cultural” (2003: 169). emprestando-lhes significado ao mesmo tempo em que é afetado por
Dessa perspectiva, o valor de uso de um objeto não é dado por elas. Dessa forma, o que se coloca em discussão é a validade de se pensar
sua natureza nem por sua capacidade de atender a alguma necessidade dualisticamente de maneira geral, seja opondo pessoas e coisas, natureza
material, mas por sua posição em um sistema simbólico e a sua corre- e cultura ou indivíduo e sociedade.
lação com os outros elementos do sistema. O objeto só possui sentido A discussão sobre a importância do artefato e sua materialidade
dentro dessa estrutura simbólica e sua circulação ocorre em função da envolve ainda um outro aspecto, cujo alvo é dado pelas abordagens lin-
significação que a sociedade lhe atribui. Esse sistema classificatório for- guágicas dos objetos. Miller quer chamar atenção para a diferença que
mado por bens correlatos reproduz códigos de temporalidade, de divi- existe entre palavras e artefatos e a maior acuidade que possuem estes
são espacial, de separação entre papéis de gênero, de relações intergera- últimos em relação aos primeiros na expressão das pequenas diferenças.
cionais etc., refletindo as classificações da maneira como ocorre nessa O autor identifica no momento da escolha aquele em que é possível se
mesma sociedade. notar como o objeto de fato é capaz de dar conta de particularidades que
a linguagem não abarca. São os “familiares” momentos de inadequação
Evidentemente, essa produção é organizada para explorar todas as possí- que nos revelam as sutis diferenças de significação que uma mesma
veis diferenciações sociais através de uma motivada diferenciação de bens.
forma pode assumir:
Ela se desenvolve com uma lógica significativa do concreto, de significa-
ção das diferenças objetivas (...). O produto que chega ao seu mercado de O problema de escolher entre centenas de pares de sapatos é muito fre-
destino constitui uma objetificação de uma categoria social, e assim ajuda quentemente causado menos porque somos estragados pela escolha, e
a constituir esta última na sociedade; em contrapartida, a diferenciação da mais por causa do extraordinário sentimento de que apesar da diversidade
categoria aprofunda os recortes sociais do sistema de bens. O capitalismo nenhum dos pares é exatamente o certo para nós. Recobrar tal experiência
não é pura racionalidade. É uma forma definida de ordem cultural; ou familiar nos ajuda a entender as sutilezas na maneira pela qual diferencia-
uma ordem cultural agindo de forma particular. (2003: 184 e 185) mos os objetos entre as formas significativas (...). (1994: 407)

Sahlins (2003) enfatiza ainda a importância que as aparências indi- A discussão entre forma e significado é de fato uma discussão
viduais possuem na sociedade ocidental ao facilitar a comunicação sobre a importância da materialidade dos objetos e a maneira como eles
entre os membros de “uma coesa sociedade de estranhos” (2003: 202). nos ordenam ao mesmo tempo que somos ordenados por eles. Dessa
As coisas surgem como a “materialização suntuária das principais coor- perspectiva, deve-se buscar o significado do objeto procurando com-
denadas de pessoa e ocasião” (2003: 202), formando um sistema que preender por que os objetos se tornam significativos para as pessoas,
funciona como uma linguagem. Entretanto, se Sahlins, em sua crítica de maneira que as pessoas passam a se identificar com os objetos ou

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até se indiferenciarem deles. Torna-se, assim, compreensível a defesa de ocorrendo uma identificação entre pessoa e coisa. O exemplo que o
Miller de um estudo das materialidades que supere o dualismo entre autor concede – de um soldado violento e destruidor que somente o é
artefatos e pessoas (1987), entendendo-os em uma relação dialética, na portando a sua destrutiva mina – permite compreender como, de fato,
qual objetos e sujeitos se constituem um ao outro. O consumo surge a pessoa só se constitui em companhia do artefato correto, adequado.
simplesmente como um “processo de objetificação” (1995: 30), através Lagrou (2003) transporta para as sociedades ameríndias a discus-
do qual as pessoas definem a si mesmas e afirmam seus valores, media- são sobre a relação entre pessoas e coisas. Comparando os contextos
dos pelos artefatos que compõem uma determinada cultura material, melanésio e ameríndio, Lagrou mostra como a noção de “pessoa dis-
não necessariamente inserida em sociedades capitalistas. Assim a roupa tribuída”, desenvolvida por Gell (1998), faz sentido na Nova Guiné, mas
no Ocidente, como exemplar material de uma cultura, deve estar sujeita tem aplicação com restrições temporais na Amazônia. Se no primeiro
ao mesmo tipo de entendimento que os mantos melanésios, procurando caso os objetos de fato sobrevivem à morte da pessoa, estendendo-a
“integridade na complexa trama formada pelo que raramente pode ser e ampliando a sua ação no tempo e no espaço, como os braceletes do
separado em domínios materiais e sociais distintos” (2005: 1). Miller não kula que sobrevivem aos seus proprietários originais, perpetuando seus
partilha da opinião de que é a sociedade moderna, ao incrementar os nomes, no segundo caso, os objetos envelhecem com seu dono e devem
níveis de cultura material, a responsável pelo culto à matéria, como quer desaparecer com a morte, com o desaparecimento do corpo de seu pro-
fazer crer o senso comum. Ao contrário, o autor defende que esta ideo- prietário. Nesse contexto não são as pessoas que podem ser vistas como
logia “antimaterialista” só corre entre nós ocidentais. objetos, mas são os objetos que parecem possuir status de pessoa. É por-
O problema de nossa sociedade não é (como tem sido sustentado) que nós que “não são meros objetos... [que] precisam ser desfeitos para ajudar
nos tenhamos tornado muito devotados aos objetos, mas que, ao contrário vivos e mortos a aceitarem a profunda e inegável transformação signifi-
de qualquer outra sociedade, não parecemos dispostos a permitir qual- cada pela morte” (2003: 107).
quer mediação da nossa devoção direta aos sujeitos. Qualquer coisa que se Se os objetos, e em nosso caso específico o vestuário, não devem
coloque entre nós e uma pura subjetividade do bem-amado é suspeita de
ser abordados apenas como um conjunto de signos linguísticos, talvez
ser uma forma de fetichismo ou de reificação. (2002: 160)
seja interessante pensar a indumentária como um dialeto, a cujo sig-
Alfred Gell (1998), ao formular uma teoria antropológica da arte nificado só tem acesso aqueles que dominam o sistema simbólico da
visual, defende igualmente uma ruptura com os antigos dualismos entre cultura como um todo. Como nos mostra Clifford Geertz, os símbolos
pessoas e coisas e com as abordagens linguágicas das obras de arte. utilizados pelo artista são compartilhados por sua audiência, pois “a arte
Veja-se que para o autor qualquer objeto, inclusive as pessoas, pode se e os instrumentos para entendê-la são feitos na mesma fábrica” (1987:
constituir em uma obra de arte, uma vez que este é uma função da matriz 178). É o compartilhar de todo um sistema de signos que possibilita a
social-relacional na qual o mesmo se insere. É o nexo de relações causais comunicação do grupo (VIDAL, 1992).
que dará sentido ao objeto, e não a sua posição em um sistema de comu-
nicação simbólica. A ênfase de sua teoria está na agência, onde os obje- teorias da moda
tos de arte constituem um sistema de ação, e devem ser entendidos em
sua capacidade de transformar o mundo a sua volta, ao invés de codi- Ainda que este não seja um trabalho sobre moda, se discute nele as lógi-
ficar proposições simbólicas sobre esses objetos. Gell está interessado cas que regem o gosto inerente à indumentária “funkeira”. A moda, em
no papel prático de mediação que exercem os objetos de arte no pro- última instância, é uma questão de gosto. E gosto, em última análise, é
cesso social (1998: 6 e 7). Nesse sentido, a persona social que assume um o que pretendemos desvendar neste trabalho. Nesse sentido, me parece
indivíduo em uma sociedade é indissociável dos objetos que a cercam, pertinente colocar em diálogo alguns excertos de minhas anotações de

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campo com as formulações dos autores que pensam a moda enquanto Marcel Mauss (2003) formulou de modo pioneiro diferentes noções
fenômeno social. Retornando um pouco ao contexto etnográfico, é pos- seminais para o campo das ciências sociais. E não foi diferente em suas
sível se notar, a partir da descrição da roupa de Shirley, uma preocu- contribuições para as reflexões sobre o corpo, que apreendeu como resul-
pação central com o aspecto formal do conjunto vestido. Nas palavras tante da interação social do indivíduo e de sua imersão no universo sim-
de outra interlocutora, Paula, “tem que ter sempre alguma coisa combi- bólico da cultura, rompendo com abordagens evolucionistas que apreen-
nando, um cinto...”. diam o homem como produto de seu corpo. Contemporaneamente,
Essa coerência interna do conjunto, da relação formal entre os ele- uma bibliografia extensa vem sendo produzida em relação à centrali-
mentos, para a qual Geertz (1988) chamou atenção como sendo carac- dade do corpo nas relações sociais no Rio de Janeiro. Mirian Goldenberg
terística que a arte Moderna tentou tomar para si como seu traço dis- e Marcelo Silva Ramos, desenvolvendo a ideia de Norbert Elias (1994)
tintivo, encontra-se presente nesse “gosto popular”. Vejamos um outro sobre o autocontrole dos corpos dentro de um padrão “civilizado” de
exemplo, dado por Jussara, 24 anos, uma garota muito bonita, negra, de comportamento, destacam o surgimento de uma moral estética: “Devido
manequim em torno do número quarenta e seis. Moradora do Catumbi, à mais nova moral, a da boa forma, a exposição do corpo, em nossos
a moça trabalha na cozinha de uma loja de doces em Copacabana e, dias, não exige dos indivíduos apenas o controle de suas pulsões, mas
quando necessário, dorme em um “quartinho” da própria loja em épo- também o (auto) controle de sua aparência física. O decoro, que antes
parecia se limitar à não exposição do corpo nu, se concentra, agora, na
cas de muitas encomendas.
observância das regras de sua exposição” (2002: 25). Stéphane Malysse,
Em uma noite no baile, Jussara vestia uma minissaia em jeans azul
em trabalho de campo realizado nos bairros de Ipanema e Leblon, iden-
escuro, com uma textura “enrugada”. A saia estava acompanhada de uma
tificou muito mais do que uma moda de roupas, uma moda corporal,
blusa em tom azul turquesa, com decote em V e solta abaixo do busto.
resultado das sessões de “malhação”, criando corpos idênticos, “uma
Esta peça era como uma bata, do tipo frente-única, sendo amarrada atrás
mimese corporal completa” (2002: 109). A roupa surge aqui como exten-
do pescoço de sua usuária e deixando suas costas nuas. A moça calçava
são do corpo, como uma segunda pele, tendo como função principal
tamancos de plataforma inteiriça, em couro branco, não muito altos, e
destacar esse corpo esculpido de forma padronizada.
possuía as unhas dos seus pés pintadas de esmalte cintilante claro. Seus
Essa mesma preferência pela roupa justa, que revela o corpo, impera
cabelos são curtos, com a aparência de crespo, ainda que fosse possível
no baile funk. De fato, como já afirmei acima, a roupa usada pelas moças
perceber que os mesmos haviam passado por algum tipo de alisamento. é sempre elástica, surgindo como uma “segunda pele” e, nesse sentido,
Estavam presos no alto da cabeça por uma fita de malha também na cor bastante afinada com o gosto carioca e quiçá brasileiro. Entretanto, a pre-
turquesa. Seus olhos estavam maquiados por sombras igualmente azuis, sença de moças gordas e magras, que vestem roupas sempre justas, indica
e seus lábios pintados por um batom escuro e cintilante. Jussara usava uma adequação entre corpo e pessoa distinta da observada em áreas como
um par de brincos formado por uma flor prateada e esmaltada na cor a Zona Sul do Rio. Um dado interessante para embasar esta afirmação é
azul turquesa, que pendia de sua orelha. O seu visual era arrematado a ausência de refrigerantes dietéticos nos bares do Clube do Boqueirão.
por um celular, do tipo dobrável, colocado no decote, por dentro de sua Shirley é mulata, esguia, de estatura mediana, Ana é clara e magra.
blusa, de forma que se notava a pequena antena do aparelho saindo por Guta é também clara, mas mais “cheia”. Jussara é negra e gorda. E Rose
entre os seus seios, bem como o berloque próprio para adornar celu- é muito alta e muito gorda. Em uma noite no baile, essa moça, que tem
lares. Essa moça é frequentadora assídua das festas que acontecem aos uma pele cor de canela, trajava um vestido rosa, do tipo tomara que
sábados no Clube do Boqueirão. Em todas as vezes que a vi estava com caia, confeccionado em uma malha de poliamida e totalmente ajustado
uma produção esmerada. ao corpo. O vestido tinha ainda dois babados na saia, bem curta. Seus

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cabelos são longos, avermelhados e cacheados, e ela os usava soltos, com pela durabilidade do produto. O que está em jogo não é a qualidade nem
uma pequena mecha na frente presa de lado por uma presilha adornada a durabilidade da peça adquirida, uma vez que a moda é efêmera, é pas-
por cristais rosas. Bastante maquiada, em tons de rosa, usava brincos lon- sageira. Ao contrário, o que se quer é a última tendência, consumindo
gos, de pedras que pareciam pequenos cristais, também em tons de rosa. um produto que poderá cair em desuso na estação seguinte. Optam por
Pierre Bourdieu, com base na noção de habitus – que ele desenvolve roupas baratas sim, mas não por roupas necessariamente duradouras, o
a partir da teoria do corpo de Mauss e segundo a qual as culturas produ- que reforça a importância do baixo custo, não importando, em muitos
ziriam gestuais e posturas corporais particulares introjetadas por meio casos, a qualidade da peça adquirida. Ao mesmo tempo, certos itens de
do processo de socialização –, demonstra que o gosto promove uma aná- vestuário são eleitos como aqueles nos quais se investirá maior soma de
lise profunda da sociedade francesa e demonstra como o gosto é uma dinheiro. É o caso da calça de moletom stretch para as moças e o tênis
capacidade apreendida ao longo da vida, num processo que começa na para os rapazes. Como veremos, se a durabilidade e a qualidade estão em
infância, e que depende da composição do capital econômico e cultural questão, o seu custo é menos relevante. Podemos assim dizer que o gosto
de cada uma das classes sociais. O gosto, ao invés de capacidade inata, de Shirley, Jussara e Rose mostra ser regido por uma dinâmica própria
é “uma virtude feita da necessidade” (1984: 177). O autor contrapõe “o e autônoma. Não se torna possível assim afirmar que esta estética esteja
gosto pelos bens de luxo” ao “gosto da necessidade”, o primeiro corres- calcada numa busca por valores estéticos similares àqueles que regem o
pondendo às escolhas estéticas dos indivíduos que são produto de con- gosto das elites, como querem fazer crer as teorias distintivas do gosto.
dições materiais de existência definidas pela distância da necessidade, A própria dinâmica da indústria de confecções carioca apresenta-se
e o último como expressão das necessidades das quais é o produto. Em em sintonia com este gosto distanciado de uma estética funcionalista,
outras palavras, é a uma estética da falta que estariam condenados os que parece reger os hábitos de consumo da classe trabalhadora fran-
membros das classes de baixa renda. cesa nos anos setenta, no que diz respeito ao vestuário. O setor informal
da economia carioca é bastante relevante, sendo grande parte de sua
O gosto da necessidade pode ser considerado a base de um estilo de vida
“em si” apenas pela falta, pela relação de privação entre si e outros estilos indústria composta por pequenas confecções informais ou parcialmente
de vida” (BOURDIEU, 1984: 178). informais, ou seja, terceirizam parte de sua produção a agentes infor-
mais (ABREU, 1986). Na distribuição do produto ao consumidor final, a
O gosto das classes trabalhadoras seria assim limitado, de um informalidade está novamente presente, através do comércio ambulante
lado, pela restrição orçamentária e, de outro, pela incapacidade que carioca. Formam assim “feirinhas” – centros de compras improvisados
os indivíduos dessa classe teriam de fazer escolhas estéticas próprias. em espaços como estacionamentos ociosos ou praças públicas – nas
Obedeceriam à tendência ditada pela moda das classes dominantes, quais as meninas que conheci ao longo de meu trabalho de campo fazem
num processo constante de imitação. A classe trabalhadora, ao fazer muitas de suas compras. Essa informalidade parece dotar a indústria
suas escolhas de vestuário, seria coerente com uma “estética pragmática de confecções do Rio de Janeiro de grande agilidade na distribuição de
e funcional” (1984: 376), fazendo uma escolha duplamente prudente: a tudo o que é novo, permitindo que os produtos cheguem rapidamente
opção por um produto de baixo custo e simultaneamente duradouro. ao mercado a preços acessíveis.
A descrição dos trajes das moças que viemos fazendo até aqui não Outro aspecto importante dessa discussão sobre o gosto que pode-
torna possível afirmar que estamos diante de uma estética restrita pelo mos explorar com Bourdieu diz respeito à noção de “vulgar”, tema
“gosto da necessidade” ou de pessoas incapazes de fazer escolhas estéticas recorrente nas conversas que travei com rapazes e moças frequentado-
próprias. No que toca as modas e as roupas, a opção feita é certamente res da festa. Bourdieu (1984) define o “vulgar” por oposição ao gosto da
balizada pela questão orçamentária, mas não necessariamente pautada burguesia. Enquanto a classe trabalhadora tem por objetivo obter o:

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máximo de ‘efeito’ a um custo mínimo, a fórmula que para o gosto burguês O autor antecipa diversas teorias da moda, entendendo-a como aglutina-
é a verdadeira definição da vulgaridade, uma das intenções da distinção é dora de dois desejos essenciais do homem moderno: o desejo de sociali-
sugerir com o mínimo de ‘efeito’ possível o máximo de gasto em tempo,
zação, de se adaptar à sociedade, e o desejo de individualização, isto é, o
dinheiro e inventividade. (1984: 379 e 380)
desejo de se diferenciar, de expor as suas particularidades. Estas, segundo
Distinction é uma resposta à Crítica do Juízo de Kant, fundamen- o autor, são duas condições necessárias para que o fenômeno da moda
tada sobre o gosto puro e a estética que o suporta teoricamente como ocorra, de modo que a moda surge como decorrência de um equilíbrio
por oposição e na recusa ao gosto impuro e aos sentidos. Toda a lingua- permanentemente instável. A necessidade de se socializar, de se fundir
gem da estética kantiana pode ser contida na recusa ao facile, ao vulgar, com o grupo, resulta em imitação, na medida em que, no desejo de se
ao acessível, ao simples. Uma recusa a tudo que ofereça prazer imediato. identificar com membros de uma classe social, de se inserir socialmente,
Vemos assim uma oposição entre o “gosto reflexivo”, distanciado, con- o indivíduo irá repetir formas de se vestir e adornar que o identifiquem
templativo, e o “gosto sensitivo”, derivado de uma entrega total aos sen- com determinado grupo social. O elemento dinâmico da moda na cons-
tidos, onde não há barreira entre a representação e a coisa representada. trução teórica de Simmel resulta do processo de distinção social, tornan-
Se para Kant, a obra de arte é “uma medida indiscutível da capacidade do-se conhecido como o efeito trickle down, que ocorre quando grupos
de sublimação, que define o ser humano” e “é evocada para marcar a de elite, não necessariamente classes sociais, ao terem suas modas imita-
diferença entre humanos e não-humanos”, para Bourdieu a obra de arte das, buscam novas escolhas estéticas que os mantenham diferenciados do
é, por excelência, o objeto de consumo capaz de conferir distinção àque- restante da sociedade. Aqui a busca por uma demarcação é fundamental,
les que a adquirem e a estética kantiana está a serviço dos propósitos de uma vez que é através da diferenciação que são mantidas e renovadas as
distinção da classe dominante. O vestuário, para Bourdieu, é uma exten- segmentações de grupo ou classe. A moda é produto das necessidades de
são dos outros bens de consumo cultural, e um dos tipos de consumo distinção e inclusão social. Distinção e imitação são duas faces da mesma
que melhor realizam a função de associação e dissociação. moeda, resultando numa “individualização relativa” que a moda é capaz
Bourdieu se inspirou fortemente em Veblen (1983), economista que de promover. Em Simmel a moda tem uma natureza paradoxal, pois, ao
formulou uma das primeiras teorias a pensarem moda e consumo de mesmo tempo em que promove uma dissociação individual, permite a
uma perspectiva social. A Teoria da Classe Ociosa possui como argu- coesão de grupo e é característica da sociedade moderna, estratificada e
mento central a ideia de que o consumo das classes superiores obe- dividida em grupos sociais diferentes.
dece essencialmente ao princípio do esbanjamento ostentatório. Para Veblen e Simmel são dois expoentes das teorias distintivas do gosto
conquistar honra e prestígio, as classes superiores devem despender que visam “explicar” não só a moda como o consumo moderno, fenôme-
amplamente e fazer exibição de riqueza e de luxo, manifestando osten- nos que seriam explicados através do consumo honorífico e da emulação,
sivamente, através das boas maneiras, do decoro, dos adereços etc., que a competição imitativa envolvida em disputas de status. É em contra-
não estão sujeitas ao trabalho produtivo e indigno. A moda torna-se, em posição a essas teorias, e em especial a de Veblen, que Campbell (2001)
Veblen, um corolário da lei do conspicuos consumption, um instrumento argumenta que o fenômeno do consumismo moderno, e não apenas o
de obtenção de honorabilidade social. Sua teoria enfatiza uma dimensão consumo, resulta de uma revolução nas subjetividades da época. O autor
essencial da moda: o consumo em seu aspecto simbólico, como dispên- entende o amor romântico e a leitura do romance moderno como ele-
dio demonstrativo e um meio para significar uma posição, despertar a mentos centrais para se compreender a revolução do consumidor que
admiração e expor um estatuto social. ocorre na Inglaterra no século XVIII. O romântico é um indivíduo encap-
Simmel (1957) descreve a moda como um dos mecanismos que o sulado em seu mundo fantasioso e absorto em seus devaneios. E são esses
indivíduo possui para equalizar duas de suas tendências antagônicas. devaneios que vão caracterizar o hedonismo moderno e imaginativo, a

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busca pelo prazer não mais sensorial, mas doravante emocional. Não indivíduo moderno e ao fascínio por tudo o que é novidade, atmosfera
se objetiva mais, ou pelo menos não exclusivamente, atender às neces- que se instaura com a modernidade.
sidades dos sentidos. O fundamental é atender aos anseios do espírito, Ted Polhemus (1994) é outro autor que critica as teorias distinti-
desejos idealizados nos momentos de devaneio. Balizados pela realidade, vas, não tanto para bani-las, mas para propor uma leitura subversiva das
esses devaneios têm como ponto de partida “a chance de que algo novo mesmas. Acredita que os traços que se tornaram distintivos do sistema
e emocionante possa acontecer a qualquer momento”. Porém, a reali- de moda estão cada vez menos em evidência, especialmente o processo
dade se revela sempre frustrante e incompatível com o esquema ideal de trasbordamento, de trickle down, que faz com que os estilos estéticos
e perfeito traçado nas horas de devaneio. É neste momento que, sem- migrem da alta moda para o mercado de consumo de massa. A partir
pre segundo Campbell, estabelece-se o hiato entre o desejo e a necessi- dos anos 60, argumenta o autor, a cultura não é mais vista como prer-
dade e assim a inexauribilidade do consumo, que seriam características rogativa das classes mais altas, o que coloca em marcha um movimento
da sociedade moderna. Ao se adquirir um produto ou serviço, o que se que inverte as lógicas distintivas: “ao invés da extremidade de baixo
buscaria é atender aos anseios gerados nos momentos de devaneio, o emulando a extremidade de cima, [ocorre] precisamente o inverso”
que não pode ser feito no âmbito da realidade concreta, pois esta sempre (1994: 10). A partir de meados do século XX, é o bubble up, a eferves-
decepciona o sujeito hedonista moderno e imaginativo. Como num ciclo cência das ruas, que passaria a comandar a disseminação dos gostos e da
moda nas sociedades modernas.
vicioso, a busca recomeça e novos anseios são criados. A busca constante
Vemos que a circulação de gostos e estéticas alternativos pode ser
pela novidade é justificada por essa procura incessante de prazer, uma
pensada assim no contexto de uma discussão sobre a modernidade,
qualidade da experiência. A moda surge quase como uma consequência
como podemos ver também com a discussão que traz Featherstone
natural das necessidades do homem moderno.
(1995). O autor mostra como alguns dos traços apontados como distin-
Com Campbell, o consumo é comandado pelos excessos, afetos,
tivos da pós-modernidade já estavam presentes na modernidade e até
gozo, e não uma lógica utilitarista e racional. Esta permitiu o estabeleci-
em uma pré-modernidade. Um desses traços é o que o autor chama de
mento da burguesia acética, que reinvestia todo o seu lucro, viabilizando
“carnavalesco”, o elemento de transgressão que remete aos antigos espa-
a Revolução Industrial e o estabelecimento de um modo capitalista de
ços de descontrole emocional, como as feiras e o carnaval que perduram
produção (WEBER, 2003). Porém, a demanda, consequência do desejo
na sociedade de consumo. Este elemento está presente em locais de con-
de consumir, foi regulada por uma ética antitética àquela descrita em A sumo, como os shoppings centers, e em imagens, dentre elas produtos de
ética protestante e o espírito do capitalismo. Foi uma ética romântica que design, como as roupas. Recorrer ao carnavalesco por meio do consumo
permitiu uma revolução do consumidor e o estabelecimento de uma de modas discordantes pode ser lido como a expressão de um desejo de
moderna sociedade de consumo na Inglaterra a partir do séc. XVIII. transgressão e do encontro com o outro transgressor. A moda e a esté-
Lipovetsky (1989) igualmente busca caminhos alternativos às logi- tica objetificam esse desejo. É esta a fonte de seu fascínio, o espaço de
cas distintivas na formulação de uma explicação para o fenômeno da desordem a que o bem de consumo remete, sem que haja necessidade de
moda. Apreendendo a moda como uma realidade sócio-histórica espe- se ir até locais socialmente prescritos ou perder o controle das emoções.
cífica, não ocorrida em nenhuma outra sociedade conhecida, toma-a Encerro assim essa exploração das abordagens teóricas pertinentes
não tanto como signo das ambições distintivas como quanto signo da à minha pesquisa e convido-os agora a passarmos à etnografia propria-
ruptura com o mundo da tradição, uma celebração do presente social. mente dita.
Conferir distinção, segundo o autor, é uma das funções sociais da moda,
mas não explica o fenômeno. O autor vincula o sistema de moda ao

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Capítulo 2
O baile todo!

chegando à festa
Minhas primeiras incursões a campo ocorreram em meados do ano
de 2004. Eu já tinha estado, para fins da investigação anterior, em um
baile funk na Zona Oeste da cidade.1 Para subsidiar a nova pesquisa, eu
buscava um baile mais próximo de minha casa, que me permitisse uma
entrada e saída de campo mais ágil. Fui até o baile funk da Favela dos
Tabajaras, em uma pesquisa exploratória, mas logo após minha primeira
e única visita as festas na comunidade de Copacabana foram suspensas.
Voltei ao Tabajaras mais uma vez, para conversar com o presidente da
associação de moradores, que me informou não ser possível garantir se
e quando os bailes voltariam a ocorrer, e deixando-me à vontade para
ligar sempre que eu quisesse. Procurei-o mais algumas vezes até que
ficou claro que os bailes funk não voltariam tão cedo ao tabajaras.
Nesta última visita, ainda subindo a Ladeira dos Tabajaras, notei
uma faixa que anunciava o baile funk que ocorreria no sábado seguinte,
no Clube do Boqueirão. Eu já sabia da existência dessa festa e ao ver o
seu anúncio colocado no principal acesso a uma favela pensei que aquele
poderia ser um sinal interessante do tipo de público que encontraria
no clube do Centro da Cidade, no mínimo composto por moradores
de comunidades carentes, como o Tabajaras. Com o tempo percebi que
seria possível mapear parte do público que frequentava o baile do Clube
do Boqueirão a partir dessas faixas, colocadas em áreas de residência

1 Em janeiro de 2003 acompanhei o baile do Clube dos Bandeirantes, na Cidade de Deus, para
obter subsídios para o trabalho que resultou em A influência dos subúrbios na moda da Zona Sul.

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popular. Na Zona Sul encontramo-nas, por exemplo, na entrada do dourada. Minha rápida observação naquela noite me mostrou o predo-
morro Santa Marta ou no acesso, pela rua Alberto de Campos, da mínio de correntes prateadas e o par bermuda, de tactel ou microfibra, e
Cruzada São Sebastião. Vemos essas faixas ainda sobre passarelas da t-shirt3 em malha de algodão, usados por jovens magros e morenos.
Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso às comunidades da Ronaldo comandava a colocação de uma faixa com o anúncio do
periferia carioca. Era possível ainda, por meio dessas faixas, fazer um baile seguinte. Mais tarde conversou com João, olhando na mesma
levantamento dos artistas que estavam mais em voga nos bailes. direção em que eu me encontrava sentada, e um pouco depois passou
Minha primeira visita ao Clube Boqueirão do Passeio2 ocorreu em puxando pela mão uma mulher de pele bronzeada, cabelos lisos e loiros,
uma noite de novembro de 2004. O meu objetivo, nessa primeira visita, quase brancos, novamente andando em ritmo acelerado. Levantei-me
era fazer uma observação inicial e checar se o baile era interessante para com a intenção de ir embora e mais uma vez Ronaldo estava ali, desta
os propósitos de minha pesquisa. Logo na entrada conversei com João, vez com um grupo de rapazes, cujas mãos ele cheirava. Em seguida
que me pareceu coordenar a segurança da festa. Expliquei que eu con- apontou para a saída e mandou que alguns deles se encaminhassem
duzia uma investigação sobre a moda de roupas dos bailes funk e que naquela direção. Não deixou que restasse a mim dúvidas quanto a quem
eventualmente conversaria com alguém ou fotografaria. Ele deu um sor- era a autoridade no evento.
riso malicioso quando eu mencionei a “moda dos bailes”, e disse que eu No sábado seguinte retornei ao Boqueirão pronta para iniciar o
poderia conversar com os frequentadores da festa, mas que a máquina trabalho de campo. Cheguei cedo, antes das 23:00 horas, e fiquei aguar-
fotográfica eu deveria deixar no carro. dando na fila das meninas a abertura dos portões do clube. Estacionado
A primeira entrada naquele ambiente me deixou bastante estimu- sobre a calçada estava um carro da Polícia Militar, fazendo a vigilância
lada. Encontrei uma festa de grandes proporções e um público que, por do acesso ao clube e suas imediações. Ronaldo cumprimentou com dois
suas roupas e estética corporal, muito me interessaram. A música, altís- beijinhos uma policial e manteve com ela uma breve conversação, ao
sima, mostrava ao que a festa vinha. Coloquei-me de imediato a falar lado do veículo oficial.
com as meninas que vestiam o tipo de calças que eu vinha seguindo. Ao entrar no clube pensei que seria conveniente apresentar-me de
Conversei ainda com Beto, a quem já apresentei no capítulo inicial. Fiz início, uma vez que eu queria ter certeza de que não haveriam maiores
algumas anotações e observei um pouco a dinâmica geral do baile. empecilhos para a condução do trabalho de campo no clube. Expliquei
Naquela noite notei, circulando e dando ordens, um homem que a Ronaldo que eu realizava uma pesquisa de mestrado, explicitando o
parecia ser o principal encarregado pelo baile. Sua performance me meu tema, e perguntei-lhe se poderia contar com a sua colaboração. Ele
pareceu ostensiva. Eu estava sentada em um dos dois únicos bancos que me respondeu que se eu fosse me restringir à moda não haveria proble-
ficam na área externa aos locais de dança e fazia algumas anotações em mas. Expliquei que precisaria conversar com alguns rapazes e moças,
meu primeiro caderno de campo. E Ronaldo passou por mim andando ao que ele opôs-se dizendo não achar “isso legal”, argumentando que
muito rápido, chamando minha atenção. Um homem de cerca de 40
“algumas pessoas” poderiam “não gostar”. Eu insisti, explicando-lhe que
anos, claro, calvo e forte, estatura mediana. De fato não sei se era calvície,
seriam apenas perguntas sobre a roupa usada na festa, mas que eu pre-
ou se ele possuía os cabelos da cabeça raspados por máquina, ou ambas
cisaria voltar diversas vezes ao baile. Ele me perguntou qual era o meu
as coisas. O aspecto forte de seu corpo parecia um outro misto de excesso
nome e, em seguida à minha resposta, informou-me seu nome, que até
de peso com massa muscular. Vestia camisa branca em tecido de algodão,
bermuda jeans e tênis brancos. Usava, no pescoço, uma grossa corrente
3 Usarei o termo da língua inglesa até certo ponto do trabalho para designar as blusas em meia
malha de algodão com mangas curtas. O termo em português “camiseta” parece-me pouco
2 Este é o nome oficial do clube, mas os frequentadores do baile semanal chamam-no de “Clube preciso na medida em que o mesmo se refere às blusas com ou sem mangas. Será visto que o
do Boqueirão” ou simplesmente de “Boqueirão”. discurso nativo utiliza ainda um outro termo para designar esta mesma peça de roupa.

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então eu não sabia, olhando-me fixamente em meus olhos: “Ronaldo”. Um todo formado pelos diversos personagens que se preparam para a
E me alertou, mantendo o olhar duro: “Se você ficar só na moda, tudo festa de acordo com os distintos papéis que desempenham individual-
bem. Mas se eu souber que você anda perguntando outras coisas, eu não mente, em função da persona social que assumem naquele ambiente.
vou ficar nada satisfeito”. A própria divisão temporal e espacial do baile permite dizer que
A advertência de Ronaldo surtiu efeito imediato. Dirigi-me à quadra este é experienciado como um espetáculo por seus frequentadores. Uma
de esportes, sentei-me no alto da arquibancada e dali não saí mais, a não apresentação na qual cada participante compõe seu personagem a partir
ser para ir embora. Tampouco falei com qualquer outra pessoa naquela de suas escolhas estéticas, que resultarão no que designo como “figurino
noite. Voltei para casa frustrada e me perguntando se eu teria que procu- funk”. Um conjunto de roupas relacionado aos distintos papéis desem-
rar um novo baile para a minha pesquisa. Com o passar dos dias fui me penhados pelos dançarinos, papéis estes que se diferenciam a partir dos
refazendo do susto. Na semana seguinte retornei ao baile com uma carta contrastes que formam entre si de maneira que as roupas devem contras-
do PPGSA-IFCS-UFRJ que explicitava o teor de minha investigação bem tar igualmente. A estética é em si um todo relacional, através da qual os
como a minha vinculação a este programa de pós-graduação, solicitando personagens se definem em oposição aos outros. Portanto, a concepção
aos organizadores da festa que colaborassem com a minha pesquisa.4 da festa como um espetáculo envolve considerá-la como um todo no sen-
Mas não tive a oportunidade, não naquela noite, de entregá-la. tido antropológico do termo. Um conjunto formado por relações de opo-
sição, no qual os elementos que formam o todo se opõem uns aos outros.
o espetáculo coeso É importante frisar que este ponto de vista se refere a uma etapa do
trabalho de campo na qual a minha posição é externa à festa e equiva-
Por um longo período frequentei a festa sem fazer qualquer nota no lente a do espectador de um espetáculo. Significativamente, a percepção
próprio local, apenas observando obcecadamente a cena e realizando de que a festa poderia ser apreendida como um espetáculo e de que eu
minhas anotações já em casa. Algum tempo depois comecei a levar lápis me posicionava “fora” da mesma ocorreu justamente no momento em
e papel para fazer pequenas notas, fora do clube. Só muito tempo depois que me vi imersa na festa. Assim, nessa que denomino como sendo a
é que fiz minhas primeiras anotações dentro da festa, de maneira provi- primeira etapa de meu trabalho de campo, estou olhando a celebração
sória e em uma folha avulsa, de papel ofício, que eu levava dobrada no de fora em vez de participando ativamente da mesma, ainda que só algu-
bolso traseiro de minha calça jeans. mas das observações que resultaram na descrição abaixo tenham sido
Observar, observar, observar... Esse olhar distanciado produziu em realizadas. Nos parágrafos subsequentes descrevo o baile, explicitando
mim uma verdadeira ânsia classificatória. Era preciso entender tudo simultaneamente os seus aspectos que me permitem tratá-lo como um
a que eu assistia. Tempos de pura observação que me permitiram ver todo relacional bem como um espetáculo coeso. Aquilo que presenciei é
o baile em sua totalidade. Como um todo que compõe um espetáculo realmente um show, difícil de se descrever. Mas tentemos.
coeso, cuja estética pode ser apreendida como um conjunto formado
por termos contrastantes, ainda que muitas das oposições binárias iden-
o começo do baile e o hip hop
tificadas só tenham tido seu sentido revelado quando de fato entrei na
festa. Mas disto tratarei mais adiante. Ao longo deste capítulo descreve- O clube Boqueirão do Passeio é um clube de regatas fundado em 1897 e
rei a festa procurando mostrar as diversas oposições que a compõem. localizado entre o Aeroporto Santos Dumont e o Museu de Arte Moderna,
o MAM,5 no Centro da Cidade do Rio de Janeiro. A festa que descrevo
4 Agradeço à Beatriz Heredia, minha professora de Metodologia de Pesquisa à época, por seu
auxílio e suas valiosas sugestões que muito me estimularam a dar continuidade ao trabalho de 5 A minha referência inicial era o Museu de Arte Moderna. Mas para os jovens frequentadores
campo no Clube do Boqueirão. da festa esta é sempre o aeroporto.

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ocorria nas noites de sábado e nas vésperas de feriados. O baile tinha pelo MC em sua apresentação. No “Baile da Diretoria” a atração da noite
início às 23:00 horas e a espera para a entrada ocorria em filas separadas é a música “Diretoria”, cantada em versão light pelo MC Sapão. A versão
pelo sexo. Em noites muito concorridas era preciso chegar cedo, antes da pesada da música ficou especialmente conhecida através do MC Primo,
abertura dos portões. Assim era possível entrar no clube pagando meia morto em 2012, na frente de sua casa, em São Vicente, Baixada Santista.
entrada, no caso dos rapazes, ou gratuitamente, no caso das moças. Após Antes de se entrar no clube, todos os frequentadores são inspecio-
as 23:30 horas as moças pagavam R$ 5,00 e os rapazes pagavam o dobro nados. Meninas são revistadas por seguranças femininas e os rapazes por
deste valor. Esta festa, ainda que acontecesse na “rua”,6 era frequentada seguranças masculinos. São abertos maços de cigarro, bolsas e canetas.
tanto por jovens moradores das favelas localizadas, em sua maioria, no Os cabelos femininos, se estes estiverem presos em rabo de cavalo, meio-
Centro, na Zona Sul e nas proximidades da Tijuca, bem como por jovens -rabo, ou ainda adornados com “bico de pato”, também são verificados.8
provenientes da “pista”, isto é, não residentes em favelas. O baile funk é Teme-se que se esconda narcóticos ou algum objeto que possa ser usado
um divertimento no qual predomina a presença de jovens provenien- como arma. As moças que vestem saia, especialmente aquelas “sem
tes das classes populares cariocas, o que não impede que a festa seja fre- bolso”, podem ser deslocadas para uma fila alternativa, na qual passam
quentada por membros das camadas médias urbanas. A idade mínima por uma revista mais rápida, agilizando assim o processo de entrada.
para se entrar na festa costuma ser dezesseis anos, uma regra cujo rigor Ao entrar no clube, o primeiro ambiente a que chegamos é o pátio
varia, sendo possível encontrar adolescentes mais jovens, com catorze ou ao ar livre que funciona como ponto de encontro e área de socialização
quinze anos, em noites de fiscalização mais relaxada. inicial. Aguarda-se colegas que ainda estão por chegar ou companheiros
Bailes concorridos dependem de vários fatores. No inverno a fre- que, por serem de outro sexo, entram em separado. Encontra-se ainda
quência cai. Baixas temperaturas afastam mais os dançarinos do que a conhecidos com os quais nada se havia programado. Nesse pátio está
simples chuva, além das festas juninas que ocorrem em muitas áreas de montado um bar que vende água, refrigerantes e bebidas alcoólicas. Em
moradia popular. No auge do verão, em épocas próximas ao Carnaval, frente, na parede oposta, encontra-se uma churrasqueira portátil, que
o número de frequentadores igualmente se reduz, graças aos ensaios fornece petiscos assados em espetos, como salsichões e queijo coalho.
das Escolas de Samba. Outro elemento que influencia a frequência são Apesar de o auge do movimento neste local ocorrer no início da festa, ao
as atrações da noite, os bondes e MC’s7 que se apresentarão. Os jovens longo de toda a noite essa área do clube terá movimento, especialmente
checam semanalmente a página da Curtisom Rio, a equipe de som que devido à procura por bebidas e alimentação.
comanda o baile, para saber quais serão as atrações do fim de semana, A partir do pátio da entrada é possível seguir por dois caminhos:
que incluem não só os artistas mas as promoções. Em uma noite “damas” seguir por uma passagem ao ar livre, por trás da quadra de esportes, e
podem beber vinho de graça até à meia-noite. Na outra, novamente as subir as escadas que levarão ao mezanino, onde dança-se suingue, ou
“damas”, e somente elas, participam do “Clube das Mulheres”, show de dirigir-se diretamente para a adjacente quadra de esportes. Até a zero
strip-tease masculino. As festas podem ganhar ainda nomes específicos, hora, o ritmo musical executado na quadra é o hip hop norte-ameri-
geralmente relacionados ao tipo de atração ou promoção que se oferece. cano, em sua versão mais comercial e dançante. O funk é o epicentro e
No “Baile do Doidão” toma-se “cerveja Skol a r$ 1,00 a noite toda”. No traço distintivo da festa, possuindo espaço privilegiado em sua geogra-
“Baile do Apito” são distribuídos apitos na entrada, igualmente usados fia. Entretanto não é o único ritmo executado no baile.

6 A categoria nativa utilizada pelos jovens com os quais convivi para designar o espaço oposto à 8 Tipo de prendedor de cabelo formado por duas partes, feitas em plástico rígido, que abrem e
“favela” é “rua” ou “pista” e não “asfalto”. fecham. Uma das extremidades de cada uma das partes é formada por “dentes”, como os dos
7 Os bondes são os grupos que se apresentam ao vivo, geralmente liderados por um MC, abre- pentes. As outras extremidades são lisas e unidas por uma mola colocada no centro de ambas.
viação derivada de Master of Ceremony, que vem a ser o cantor de rap, seja ele na variante funk Ao ser aberto manualmente o prendedor assemelha-se ao bico de um pato ou à boca do peixe
ou hip hop (SOARES DA COSTA, 2002). “piranha”, outro nome utilizado para designar esse tipo de adereço de cabelo.

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No início da festa o som já está bem alto, mas a pista de dança em dobradas e colocadas dentro do bolso da frente da calça, ou inseridas no
que se converte, mais precisamente o piso da quadra de esportes, ainda seu cós, pendendo do mesmo como uma pequena toalha. Era possível
está vazia. Encostadas na parede oposta às arquibancadas estão cerca de ainda ver o elástico de sua roupa de baixo saindo pelo cós da calça. O
dezesseis colunas de caixas de som, entremeadas de painéis de acetato, quarto rapaz vestia bermuda e blusa de malha sem manga. Esses quatro
adornados por grafites feitos em tinta florescente e que reproduzem a rapazes ficavam distantes da arquibancada, meu costumeiro ponto de
logomarca da equipe de som: um menino com boné na cabeça e skate sob observação, e em um canto escuro. Dançavam, desde o início do baile,
os pés. No centro desta parede formada pelas caixas de som está inserida uma coreografia que parecia pouco variar, sempre no fundo da quadra,
a cabine do DJ. No seu alto está um letreiro com os dizeres: “Curtisom do lado direito, o mesmo em que eu estava. Em outra noite, apenas um
Rio” e “100% Mais Implacável”. A todo momento o DJ solta uma vinheta dos quatro rapazes desse mesmo grupo, que permanece dançando no
que reproduz essa frase, e ao longo da noite ele fará intervenções anun- mesmo local da quadra de esportes, e da mesma maneira, mantinha a
ciando a programação de festas futuras ou para parabenizar alguém por sua t-shirt presa ao seu jeans largo, expondo assim o seu torso. Outros
seu aniversário. O DJ pode ainda recorrer ao microfone para auxiliar na dois rapazes estavam com suas t-shirts vestidas e acompanhadas igual-
contenção de conflitos ou para pedir a quem “achar” um celular “per- mente de jeans largo. O quarto rapaz usava camisa de botão, de mangas
dido” que o devolva para que o mesmo seja encaminhado ao seu proprie- curtas e cor preta.
tário. À frente da cabine do DJ está montado o pequeno palco no qual Vemos aqui, já no início da festa, uma constância na composição
os artistas da noite se apresentarão. De cada uma das arestas posteriores da indumentária de um grupo específico. Na primeira noite por mim
do palco sai um cordão grosso que é preso às caixas de som, “isolando” descrita três dos rapazes se vestiam de maneira similar, e o quarto rapaz
assim a área do palco e cabine de som do restante da festa. Dentro da se diferenciava destes. Na segunda noite permanece a homogeneidade
quadra de esportes, em uma de suas paredes laterais, está montado um observada, na medida em que mais uma vez temos um trio portando
outro bar, também provisório, para a venda de bebidas, cigarros e balas. peças de vestuário equivalentes, somado de um quarto elemento vestido
Para a grande parte dos frequentadores da festa, os primeiros de maneira alternativa e que contrasta com o conjunto de três rapazes.
momentos da noite são de espera pelo funk, ritmo que mais tarde domi- A diferença observada na segunda noite diz respeito ao fato de que no
nará a quadra de esportes. Algumas moças e rapazes, geralmente em núcleo t-shirt/jeans largo somente um dos rapazes mantiveram a peça
grupos separados pelo sexo, marcam passo, ao som do hip hop. Outros superior dobrada.
aguardam na arquibancada, sentados ou não, para assim pouparem
energia para o auge da festa, que está por vir. Para outros ainda, a oca- o suingue
sião é propícia para dançar mais livremente pela quadra ainda vazia. É
o caso dos dançarinos que executam suas coreografias em grupos com- Mas esse momento inicial da festa, é aproveitado de fato para dançar
postos apenas por rapazes. Em quase toda festa no Boqueirão do Passeio suingue, o ritmo musical que forma um segundo espaço de dança da
pude ver o mesmo grupo de quatro rapazes, dançando todos iguais, rea- festa no mezanino acima da quadra de esportes. O acesso a ele é feito
lizando movimentos corporais coordenados, suas pernas e braços em de duas formas. A maneira mais óbvia seria tomar o corredor ao ar livre
movimentos acentuados e angulosos. Escolhem sempre a mesma área que se forma por trás da quadra, caminho que tomei ainda na primeira
da quadra para a execução de sua performance, permanecendo próxi- fase do trabalho de campo. Chegar a ele pelo atalho criado pelos jovens.
mos às caixas de som, do lado direito. Da quadra de esportes, atravessa-se em diagonal a arquibancada da qua-
Em uma noite, três desses rapazes vestiam calças jeans largas e de dra de esportes, passando por entre as pessoas que aí se postam, subindo
cintura baixa e traziam seus torsos desnudos. As suas t-shirts estavam os seus degraus e ultrapassando a mureta que arremata o último andar

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da arquibancada. Assim, alcança-se o início da escada que levará ao principal do rapaz é conduzir a moça. Na “paradinha” os rapazes ficam
suingue. E desta maneira chega-se ao alto da escada que liga o corre- quase imóveis exceto pelo discreto rebolado que mantêm enquanto sua
dor externo ao suingue. Eu só cheguei a este atalho depois que passei a parceira realiza movimentos circulares com seus quadris. Terminada a
vivenciar a festa com alguns dos jovens frequentadores da festa. música, o casal se dissolve e cada um dos membros do par vai ao encon-
O salão que abriga o suingue, ao contrário da quadra de esportes, tro de seu grupo de amigos. A moça retorna para o exterior da pista de
tem pé direito baixo e pouquíssima ventilação. Sua área deve equivaler, dança e aguarda que novo rapaz a retire para dançar.
se muito, a 20% da ocupada pelo funk. Em momentos específicos o local Além dessa formação tradicional é bastante comum ver duplas de
fica lotado, o que somado às dimensões do espaço contribui para a tem- moças evoluindo pelo salão. Dançam da mesma maneira que o casal
peratura elevada do ambiente. Em dias de calor pode parecer impossível misto, com a diferença que neste caso não ocorre na “paradinha” da
permanecer ali. A iluminação do salão é feita por “luz negra”, tornando música o posicionamento estático de uma das partes, o momento em
o ambiente escuro e realçando roupas e adereços brancos. No fundo do que, acompanhando a melodia da música, o rapaz interrompe quase que
salão está posicionado o DJ, com seu equipamento, e as caixas de som totalmente seus movimentos corporais para que a moça realize rebo-
da equipe “Expacial”. O volume da música neste local também é inferior lados. No caso de duplas de moças, ambas rebolam simultaneamente,
àquele escutado na quadra de esportes, assim como o é o número de nenhuma das duas abrindo mão do papel feminino. É interessante notar
caixas de som. que algumas moças se arrumam especialmente para este propósito, ves-
O suingue, ou “pagode romântico”, tem sua sonoridade composta tindo roupas similares ou até conjuntos idênticos.
essencialmente por instrumentos acústicos. Um tipo de pagode mais
lento, cujas letras se referem invariavelmente às relações amorosas, geral-
mente fracassadas: amores não correspondidos ou relacionamentos dis-
solvidos. Dança-se a dois, sendo o par formado na maioria das vezes por
um homem e uma mulher, as moças devem aguardar serem convidadas
para dançar. Colocam-se nas imediações da pista de dança, delimitada
pela aglomeração que se forma por aqueles que não dançam, e aguardam
até que sejam retiradas para bailar. Esse ritmo é dançado de maneira tra-
dicional pelo casal: a moça coloca uma de suas mãos no ombro do rapaz
e com a outra segura uma das mãos de seu par. Esse, por sua vez, pousa
sua outra mão sobre a cintura da moça. O esquema básico da dança é
dar dois passos para um lado e em seguida dois para o outro. Porém, há
variações que distinguem o suingue de outras danças de salão.
Quando o casal se desloca pela pista, a moça se reclina levemente Em uma noite vi uma dupla de moças que vestia o par “calça de
sobre o ombro do rapaz, enquanto este permanece com o corpo ereto, moletom stretch” e blusa justa. As blusas, ambas brancas, justas e elásti-
mantendo o braço que segura a mão da moça esticado e o ombro que o cas, eram confeccionadas em malha de poliamida e possuíam o mesmo
corresponde bem aberto. Em momentos específicos da música, o casal estilo, apesar de não serem idênticas. Já as calças que vestiam as moças
para de se deslocar e a moça então move suas ancas de maneira bas- eram sim idênticas. Do tipo “corsário”, possuíam comprimento abaixo
tante sensual e erótica, mantendo o tronco e as pernas estáticos. A dança do joelho, e eram feitas em moletom stretch azul escuro, sem o aspecto de
masculina, por sua vez, é bastante restringida no suingue, pois o papel jeans. As peças eram rebordadas em seus cós, bainhas, costuras laterais

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e bolsos traseiros, pelo mesmo fio empregado na produção do tecido bebidas, balas e cigarros. Muitas moças, assim que chegam à festa, diri-
utilizado nas calças, formando assim uma espécie de “galão” tricotado gem-se ao banheiro. Outras o fazem somente após muito dançarem e
branco. Graças à ação da luz negra sobre a cor branca, esses detalhes transpirarem no suingue e antes de retornar para o funk. O objetivo princi-
causavam um efeito “néon”, enfatizando o branco do rebordado da calça pal destas incursões aos sanitários é realizar a manutenção dos penteados
e da blusa, que sobressaíam no ambiente escuro do suingue. O resultado e evitar o que denominam como “efeito Cinderela”, isto é, cabelos desali-
era um par formado por dois corpos femininos que rodopiavam pelo nhados, que perdem o encanto após uma determinada hora da noite. Os
salão com troncos florescentes e contornos de quadris e ventres idem, cabelos podem ser anelados, retos e rígidos, sem movimento, ou ainda
realçando, dessa forma, a silhueta corporal das duas moças. lisos. Em geral os cabelos são longos, podendo estar todo solto, como é o
mais usual, ou presos em meio-rabo ou rabo de cavalo. A grande maioria
das moças possuem cabelos longos e cacheados e os penteiam com creme
para mantê-los alinhados. No baile molham os cabelos novamente, para
conservar o efeito molhado e principalmente evitar que fiquem “altos” os
cachos. As moças raramente utilizam os sanitários propriamente ditos.
Além de utilizarem as pias para a manutenção de seus penteados, recor-
rem também aos espelhos para checar a maquiagem, repassar o batom ou
observar o caimento das roupas, de frente e de costas.

o funk
A partir da zero hora o funk toma conta da quadra de esportes. E quem
Uma outra dupla de moças dança, e as duas vestem-se de modo
aguardava na arquibancada a entrada da atração principal, isto é, a
idêntico e seguindo um estilo indumentário não muito corriqueiro música funk, se empolga e comemora com gritos suaves a entrada do
no baile. Novamente o conjunto é composto de blusa e calça corsário. ritmo. A partir de agora a plateia se converterá em um misto de artista
Entretanto, as duas peças são largas, contrastando com a predominância e espectador da festa. Mas espectador não somente no sentido de assis-
de roupas justas encontradas na festa. A calça é confeccionada em sarja tência, mas em função da maneira pela qual todo o evento é vivenciado.
preta, um tecido plano sem qualquer elasticidade, bem distinto das cal- O verdadeiro palco do espetáculo é toda a quadra de esportes, e não o
ças de moletom stretch, a malha feita em tear circular e extremamente pequeno e frágil tablado montado em frente às caixas de som. O público
aderente e expandível. As “pernas” da calça em questão são presas por é o próprio espetáculo. A música, muito alta e reverberando em todo o
um cós abaixo dos joelhos. A lateral de uma das pernas é enfeitada por corpo, contribui para a coesão da apresentação. O funk é uma música
um bolso fechado por aba e abotoado por um botão de metal em tom eletrônica, dançada em grupo e em sua maioria por pessoas do mesmo
bronze. A blusa que vestem é preta, do tipo tomara que caia e feita em gênero. As versões tocadas neste momento inaugural do ritmo são mais
malha mole de algodão, como um jersey. Justa na região do busto e larga calmas. Correspondem ao “funk clássico”, ao “funk melody”, ou ainda ao
daí para baixo, como uma bata. Este top possui um corte logo abaixo estilo de canções de cunho político. São canções que se referem generi-
do busto, arrematado por uma faixa branca e estreita que leva um laço camente à favela e podem ser executadas independentemente da proce-
geométrico e plano na lateral, feito na mesma malha da blusa. dência do público do baile. Suas letras mencionam termos como “cons-
Ainda no mezanino ocupado pelo suingue estão os banheiros femi- ciência”, “liberdade”, ou fala da morte de amigos que optaram “pela vida
ninos e o terceiro bar da festa, que fornece, como o da quadra, apenas errada”, acompanhada do ruído das sirenes dos carros de polícia.

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Favela... Porque aqui no morro
Orgulho e lazer Também tem jogador
Estamo à vontade Artistas famosos
Nós somos... Empresário e doutor

Favela... Gente inteligente


Orgulho e lazer E mulheres belas
Estamo à vontade Você também encontra
Somos mais você Aqui na favela9

No fim de semana Posicionada na arquibancada, observo os grupos de moças e rapa-


Chega sexta-feira zes, dançando em separado, sem se deslocarem muito pela quadra, per-
E o baile come à vontade
manecendo quase sempre no mesmo local. Algumas moças em dupla,
A noite inteira
muitos grupos de quatro rapazes, e alguns grupos mistos de dançari-
Tem várias gatinhas nos. Vejo também algumas grávidas, quase sempre de barriga de fora, às
No meio do salão vezes dançando e rebolando.
Mexendo a pepita
Vemos duplas de moças contrastantes entre si. Uma mulata muito
E o popozão
alta, de quadris bem largos e altos e coxas fortes. Seus cabelos são aver-
E para os amigos melhados e estão todos trançados, formando um topete sobre a testa.
Que tão na atividade Está vestida em tons de rosa, trajando uma bata larga e curta e uma saia
Que fortalecem o baile
em tom mais escuro de rosa. Calça um tamanco de plataforma em couro
E deixa a gente a vontade
cor de sola e não usa bolsa. Sua colega, ao contrário, é branca, magra
Cheg’os MC’s e baixa, de aspecto flácido, com pouco tônus muscular. Seus quadris
Pra poder cantar são estreitos e suas nádegas “retas”. Seus cabelos, presos por minúsculas
E mostrar que o funk
piranhas prateadas enfeitadas por cristais, parecem alisados por química
Nunca vai acabar
e possuem pouco movimento. Veste uma blusa de algodão sem manga,
Favela... azul clara, justa, e com decote V nas costas, arrematado por uma renda
Orgulho e lazer no mesmo tom. Usa minissaia jeans em tom claro e não muito justa e
Estamo à vontade
uma bolsa a tiracolo, de tamanho pequeno, de alças curtas e em tecido
Nós somos...
cru. Essa moça dançava com muita empolgação, traço raro nas moças
Favela... do baile. O que vemos com frequência são moças que adotam uma pos-
Orgulho e lazer tura mais blasé ao dançar, como a de sua colega.
Estamo à vontade
Somos mais você

Eu peço a eles
Que deem uma trégua
Pra vivermos felizes
Em nossas favelas
9 Favela, de MC Marcinho.

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Lúcia e Vera formam mais uma dessas duplas. As duas moças, quando Pá pum
não vão à festa acompanhadas de um grupo maior de moças, estão, fre- Tipo, tipo
Pá pum
quentemente, uma na companhia da outra. São companheiras nas peque-
Tipo, tipo
nas mentiras que pregam em seus namorados, uma fazendo a vez de álibi
da outra quando é preciso uma boa justificativa para o fato de não se estar O baile aqui no Rio, mano
disponível para sair com seu par romântico. Lúcia é alta, magra e morena. É maior alegria
Todo mundo dançando
Seus cabelos são longos, anelados e tingidos de vermelho escuro. Vera é Várias táticas...
baixa, roliça de corpo e clara de pele. Seus cabelos são longos, anelados e
descoloridos, adquirindo tom de loiro. Lúcia “adora” usar saia e vestido. Pá pum
Tipo, tipo
Vera gosta de usar calça, afirmando não ter “modos para usar saia”. Lúcia
Pá pum
usa muito a cor branca, que contrasta com seu tom de pele cor de canela. Tipo, tipo
Vera usa muito a cor preta, que contrasta com seu tom de pele claro.
Por volta de uma hora da manhã começa a tocar o funk mais recente É nós que dá
É nós que dá
e mais “neurótico”. A esta altura a quadra de esportes já está lotada e o
Up
espetáculo a que se assiste está chegando ao seu auge, que ocorre por Up
volta de uma e meia da manhã, dependendo do horário programado
Nós que dá
para as atrações. Os “trenzinhos”, formações em fila indiana compostas
Nós que dá
geralmente por pessoas do mesmo sexo, começam a se movimentar pela Pum
quadra. Cortam sinuosamente a massa de dançarinos que se aglomera Pum
na quadra lotada. Permitem ao espectador apreciar um bonito efeito ao
Oi quando eu tava chegando
vê-los serpentear. Estes agrupamentos são, em sua maioria, formados
Não deu para acreditar
por rapazes, mas moças também saem em trens. Eventualmente elas se Todo mundo dançando
misturam a eles, e vice-versa, formando assim um “trenzinho” misto. Deu vontade de cantar
Uma canção comemora a chegada dessa etapa da festa.10
Pra quem não tá ligado
Ah! Uma hora De um jeito interessante
Fé em D’us Relíquia das relíquias
Uma hora... Sou eu MC Frank
Baile lotadão
É o bonde preparado
Ah! Uma hora da manhã Não tô de sacanagem
O bonde todo se apronta O bonde de homem-bomba
Vem pro baile funk No estilo Osama Bin Laden
Pra dançar e tirar onda
As gatinhas dançando
10 Esta canção, de nº 13 no CD em anexo, chama-se “Uma hora” e é cantada pelo MC Frank. No meio do salão
Sua versão mais “pesada” descreve o cenário visto ao se chegar em uma favela, à uma hora Se liga no meu papo
da manhã, durante uma “guerra”. O MC, em depoimento a um documentário, explica que o Tipo Afeganistão, neguinho...
que ele faz não é apologia, mas canta a “realidade da favela” (GARCIA, 2005). Esse discurso é
recorrente e surge em falas de distintos MC’s.

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É nós que dá Toma... Ah, Ah, Ah,
Nós que dá Aprenda a respeitar o homem mau
No estilo Bagdá Toma, toma, toma
No estilo... Tambôzão, tambôzão...
Ah, Ah, Ah...
As canções executadas a partir desse momento são predominan- Aprenda a respeitar o homem mau
temente de dois tipos. Um deles possui conteúdo sensual e de cunho Toma, toma, toma12
jocoso, passando suas mensagens de maneira velada ou explicitando o Agarra ela
seu teor erótico. O outro tipo é composto por letras que se referem aos Vai, vai
locais de moradia da maioria dos frequentadores da festa, tratando de Agarra ela, agarra ela
um dia a dia às vezes violento e expressando disputas entre grupos rivais Oi toma, toma
Agarra ela, agarra ela
pertencentes a distintas favelas. O funk “violento” pode ser tomado
Oi toma, toma
como uma variante daquele de conteúdo político mencionado ante- Ai que delícia
riormente. Lúcia classifica as canções como de um lado os “funk mais Toma, toma
tocados em rádio” e de outro a “apologia”. Muitas dessas músicas men-
Pra saí com essa mina
cionam o nome de algumas das áreas de moradia dos frequentadores da
Eu vô tê que te falá
festa. É interessante frisar que ambas as “modalidades” de funk elaboram Você tem que sê bom de papo
sobre acontecimentos do cotidiano desses jovens e dizem tanto respeito Pra você pudê pegá
à “realidade da favela” quanto a situações que acontecem na “noite”,
Já que tu já deu outro papo
aquelas que se desenrolam no próprio baile. Ela começô a caí
São canções assim classificadas como “eróticas” ou como “violen- Ela qué o vai e vem
tas”, terminologia que é empregada pela imprensa e pelo senso comum Mar não pode deixá dormí
e utilizada para classificar os bailes funk do Rio de Janeiro como de tipo
Você subiu p’aquele esquema
“erótico” e ou “violento”. No meu entender, os dois aspectos, se é que Tu vai falá pra ela
assim devem ser denominados, estão imbricados, formando um baile É só ficá deitada
só. Os dois traços encontram-se presentes no Clube do Boqueirão, Ô viaja na janela
estando ambos controlados, um menos e outro mais. Ou melhor, o A nova brincadeira
aspecto erótico encontra-se mais explicitado, sendo mais fácil de ser Os magrim vai t’ensiná
apreendido pelo observador novato. Em bailes como o que acontece no Na melô do tambôzão
Clube do Boqueirão a porção erótica está menos codificada do que a Agarra ela, sem pará
porção violenta.11 Agarra ela, sem pará
Essa imbricação dos dois aspectos pode ser identificada no uso de Vai, vai
um único termo, o “toma”, presente em ambas as “modalidades” de funk Agarra ela
e bastante recorrente nas letras das canções. Oi toma, toma13

11 Cecchetto (2003) mostra que mesmo nos bailes “de corredor”, onde a briga, a violência, é ins-
titucionalizada, os aspectos lúdicos encontram-se imbricados às rivalidades expressas pelos 12 Montagem do Homem mau/Jack matador.
embates corporais. 13 Agarra ela, autor desconhecido.

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Na primeira canção, o termo surge duplicado e com uma leve pausa mãos, inclinando o tronco para frente e o quadril para trás. Nesta posi-
entre a repetição: “Toma...! Toma...!”. Neste caso a expressão é acompa- ção mantêm-se agachadas, de maneira que a coxa e a parte inferior da
nhada de sons produzidos por bateria eletrônica que simulam o ruído de perna formam um ângulo de noventa graus. Com as pernas paralisadas,
tiros de armas de fogo e pode ser sucedida por uma espécie de vinheta que realizam um movimento de sobe e desce com os quadris de forma que
diz “aprenda a respeitar o homem mau”. O público segue a música dan- só estes se movem. Em outros momentos, elas jogam seus quadris para
çando com o “dedinho para cima”, fazendo com as mãos o formato de um a frente, em ocasiões específicas, associadas às letras das canções, que
revólver. Procurei saber com os jovens quem era “o homem mau” e a que podem pedir para “encaixotar”. Os passos e coreografias femininos estão
remetia o som da bateria. Lúcia me diz que não sabe quem é o “homem sempre relacionados às letras das canções. Uma delas fala: “Joga na cara
mau” e que o som de tiro, nem som de tiro é, mas “chama pra dançar”. dele, foguenta. Joga na cara dele, foguenta. Levanta, levanta, levanta.
Alex associa o “homem mau” ao “Jack Matador”,14 dizendo que “é muito Senta, senta, senta”. As meninas então dançam, levando um de seus pés
antigo”, da “época em que tinha baile de briga no morro”, e que o “Toma!... de lado e em movimento diagonal ao corpo, como se chutando o rosto
Toma!...” é “como se fosse dando tiro”. Já no caso das canções eróticas o de alguém que estivesse deitado no chão, ou na cama, aos seus pés. É um
“toma, toma” não tem intervalo e passa a designar o movimento dos qua- chute com o pé baixo, resultando em um movimento suave. Em seguida,
dris masculinos nas relações sexuais. Segundo a explicação de Alex, no “levanta, levanta, levanta”, elas realizam dois pequenos passos sem
Eles tão no baile. Aí, desenrolou com a mulher. Tem que tê bom papo pra pegá
sair do lugar, empinando o bumbum para trás, e no “senta, senta, senta”,
a mulher. A mulher topou, ele levou ela até a situação, o esquema armado, o se agacham levemente, como se sentando sobre o corpo. Em uma noite,
local. Ela tá na janela olhando a paisagem, na posição que ela quiser. uma menina, de minissaia jeans, ainda levava a mão oposta à perna que
chutava à sua cabeça, pousando-a por detrás de sua orelha, mantendo o
O “toma” pode ser protagonizado simbolicamente no baile tanto cotovelo aberto. A outra mão ela deixava pousada sobre o seu quadril,
por um revólver ou metralhadora como pelo órgão sexual masculino. fazendo com seu rosto uma expressão que fazia o outro pensar que ela
Lilian, frequentadora do Boqueirão, em uma passagem sobre um baile
maltratava o seu parceiro sexual imaginário.
no bairro da Penha, Zona Norte da cidade, chama atenção para essa
complementaridade entre o erótico e o violento nas festas funk: “Você
vê de tudo. Não que seja bom ver bandido armado, mas você vê de tudo,
menina dançando sei lá como... É o verdadeiro baile erótico”. Já no Clube
do Boqueirão, não vemos bandidos armados, mas, por meio de dialeto
específico, faz-se referencia à determinada facção. O aspecto “violento”
encontra-se controlado e codificado.15
Em relação à dança que acompanha a música é possível distinguir
duas variantes. No caso feminino, a dança é sempre composta por movi-
mentos corporais sensuais. As moças rebolam, jogando os quadris para
trás, de maneira que o bumbum parece estar separado do corpo, como
se fosse autônomo. Flexionam os joelhos, colocando sobre estes as suas Os rapazes, por sua vez, são mais parcimoniosos em relação ao
14 “Jack Matador” ficou sendo a mais conhecida “montagem” do funk, quando sobre a “batida” teor erótico de suas danças. Alguns frequentadores masculinos rebo-
eletrônica são jogadas frases soltas, com as sílabas das palavras repetidas (ESSINGER, 2005: 110). lam, fazendo com os quadris movimento inverso àquele que fazem as
15 A canção Babalu 25, bolete 3 por 10 ilustra bem essa codificação, expressando através da valora- meninas. Enquanto estas jogam frequentemente seus quadris para trás,
ção de um e outro chiclete a disputa entre duas facções rivais.

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ao requebrar, os rapazes jogam-nos para frente, como pude ver em uma
noite com um grupo de cinco garotos. Seu líder usava uma t-shirt azul
clara com a inscrição “Bonde dos Chatos”, e acima desta, em letras maiús-
culas “Zé”. Toda a escrita era em preto e tinha grafia similar aos grafites
que vemos nos espaços públicos da cidade. Um outro membro do grupo
usava blusa idêntica, com o nome “Diogo”. Outros dois garotos vestiam
t-shirts com bermudas bem largas de tactel estampado, franzidas na cin-
tura. Apenas um dos rapazes usava calças jeans, acompanhada de uma
jaqueta feita em tecido grosso, como uma gabardine, da marca Nike. Era
uma noite fresca, mas o salão estava muito cheio e por este motivo muito
quente. Em um determinado momento o rapaz abriu sua jaqueta e com
as mãos fez um movimento de abre e fecha, se abanando com seu abrigo
Um deles é mais fashion, abusa dos adereços e roupas com um ar
e assim se refrescar. Pude notar então que ele não vestia nada por baixo
mais de moda e que se assemelham às usadas pelos MC’s e dançarinos
do agasalho. Naquela noite, como em outras igualmente mais frescas, vi
profissionais, que se apresentam no baile. Usam t-shirts, sempre mis-
mais alguns rapazes de jaqueta. Geralmente de marcas estrangeiras.
turando ou alternando tons de branco, preto e vermelho, em malha
Outros rapazes rebolam de maneira explicitamente sensual, se
sintética, ao contrário das t-shirts de algodão dos dois estilos predomi-
esmerando em chamar a atenção das moças. Geralmente permanecem
nantes. Adornam seus jeans, manchados de branco sobre o azul escuro
no baile sem roupa sobre o tronco, deixando-o nu e à mostra. Estes
do tecido, sobrepondo sobre os mesmos muitas correntes prateadas,
rapazes, muitas vezes, imitam os meneios femininos, jogando os qua-
similares às dos antigos relógios de bolso, e cintos recobertos de tachas,
dris para trás. Nestes momentos demonstram conspicuamente, através
também prateadas, elementos que remetem à indumentária punk. Há
de suas expressões faciais, estarem debochando da maneira como dan-
ainda os rapazes que usam camisas de mangas curtas e abotoadas por
çam as meninas, repetindo os passos das moças e rindo. “Zoando”, como
botão, os “blusões”. Seguem um estilo que é considerado “mais social”,
dizem. Como se justificassem com o deboche o seu rebolado. Mas se a
geralmente associado ao “charmeiro”, ou ao “pagodeiro”, como me disse
sensualidade na dança masculina não chega a ser uma exceção, ela tam-
um rapaz que se vestia dessa forma em uma noite.
bém não é seu traço distintivo. O que predomina na dança dos rapazes
O estilo tipicamente “funkeiro”16 é de fato composto pela dupla
são movimentos vigorosos e retos, realizados com seus braços e pernas,
t-shirt e bermudão, acompanhada de um par de tênis. É o estilo que
opostos à sinuosidade dos corpos femininos em dança.
eles designam como “normal” e que bebe na indumentária dos surfis-
Os rapazes vestem, em sua grande maioria, bermuda de tactel ou
tas.17 Por outro lado, o estilo dos “bombados”, mesmo que não abunde
microfibra, t-shirt de meia-malha de algodão e calçam tênis. Usam
na festa, é bastante atuante, além de oferecer um importante contraste
bonés ou deixam à mostra a cabeça adornada por cabelos descoloridos e
com o rapaz “funkeiro”. Os “bombados” permanecem no baile sem suas
raspados de maneira a formar os mais surpreendentes motivos gráficos
ou figurativos. Assim, os rapazes podem ser divididos entre os “magrim”
16 “Funkeiro”, como uso o termo, diz respeito fundamentalmente ao estilo estético que predomina
[os “magrinhos”], que usam t-shirt e bermuda, e os exibicionistas de na roupa dos rapazes, não pretendendo que o mesmo se refira a jovens pertencentes a um
torso nu, descritos acima e que invariavelmente usam calças jeans largas. único movimento musical.
17 Para esses garotos, “surfista” é o estilo dos “playboyzinhos” ou “mauricinhos”, ou seja, os filhos
Mas outros estilos indumentários masculinos podem ser observados no
da classe média. Entretanto a roupa de surf compõe largamente o guarda-roupa da juventude
baile, mesmo que não sejam predominantes. moradora de favela, discussão a que ainda chegaremos.

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blusas, que, apesar de feitas em malha de algodão, como as usadas pelos Lúcia está de vestido de malha de poliamida branca estampada, do
rapazes que seguem o estilo “funkeiro”, são mais ajustadas ao corpo. Esse tipo tomara que caia, com o corpo comprido e saia curta godê. Sofia
estilo “exibicionista”18 produz um contraste que me permite expor de veste uma bermuda em uma malha preta aderente ao corpo, toda fura-
maneira mais clara os traços mais marcantes da indumentária mascu- dinha, acompanhada de um corpete branco. Esse tipo de blusa é ins-
lina na festa. A diferenciação de distintos estilos masculinos me permite pirada nos antigos corseletes e espartilhos e peça de roupa constante
ainda não cair em reducionismos deterministas, no que diz respeito às no guarda-roupa das meninas que frequentam o baile. Graças aos seus
escolhas dos dançarinos. muitos recortes, o corpete modela o corpo. Em suas costuras são embu-
tidas barbatanas, as hastes de metal ou plástico duro que Sofia chama de
“ferro”, uma referência ao incômodo que causam.
Irene está toda de vermelho. Veste uma blusa em malha elástica de
poliamida, aderente ao corpo, e uma saia no mesmo tecido, de pala ajus-
tada e saia rodada.19 Este tipo de saia é chamado pelas meninas de “dar-
lene”, assim como o é o tecido do qual é feito a peça de roupa. O impor-
tante, neste caso, não é exatamente a composição do tecido, que pode ser
um jersey de viscose, ficando com um aspecto de fibra de algodão, ou de
Mas se os rapazes me permitiram uma classificação mais ou menos poliamida, quando o tecido fica com uma aparência mais brilhosa. O
rápida de seus estilos, divisão similar não consegui estabelecer para a que define o material necessário a esse estilo de saias é que o mesmo seja
indumentária feminina. As moças possuem um guarda-roupa mais difí- “mole” e permita o efeito “rodadinho”, como me explicaram as moças
cil de ser sintetizado. Ao contrário do que se observa entre os rapazes, durante uma visita à “feirinha” do Rio Comprido. Este estilo de saia é
não se nota uma relação de continuidade entre as formas de se dançar e muito usado pelas garotas no baile, e a categoria que o designa é originá-
se vestir. rio do nome de uma personagem de novela da TV Globo que usava esse
Vimos que os rapazes “exibicionistas”, que rebolam dançando, estilo de saias. Outra moça veste minissaia em jeans azul escuro, justa
optam por expor o torso nu vestindo preferencialmente calças jeans lar- e sem qualquer elasticidade, e top de malha de poliamida preto. Uma
gas, ao passo que os “magrinhos” são fiéis às largas t-shirts de algodão última variação pode ser notada a partir do conjunto vestido pela garota
e bermudas de tactel ou microfibra que acompanham seus movimentos que usa calça jeans stretch, um tecido plano misturado ao fio de lycra,
angulosos. Vejamos agora a roupa das moças em um mesmo grupo. sem qualquer detalhe, acompanhada de uma bata de um tecido de seda,
larga, sem qualquer elasticidade e também sem adornos.
Então, temos aqui alguns contrastes importantes. Um deles diz res-
peito ao tipo de movimento realizado com o corpo, sendo o masculino
mais reto e vigoroso e o feminino circular e mais suave. Outro contraste
importante diz respeito ao estado de espírito externalizado na festa. Os
rapazes têm por hábito “zoar”, debochar, brincar. As moças, mesmo
naqueles momentos em que realizam movimentos mais enérgicos com o
seu corpo, têm um ar sério e concentrado. Um certo ar de superioridade,
18 Esta é uma denominação minha, que surge inspirada na fala das moças em relação a esses
rapazes, que afirmam que os mesmos “se acham” apenas por serem “bombados”. 19 Chama-se de “saia” também a parte que fica abaixo dos cós e palas.

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como se nada as abalasse. Em relação às roupas, nota-se uma oposição subam ao palco, interagindo corporalmente com os dançarinos e MC’s,
entre a indumentária feminina justa e a roupa masculina larga, entre san- dançando, abraçando, acariciando ou simulando atos sexuais. Em outros
dálias e tamancos altos femininos e os tênis baixos masculinos. E ainda a momentos os dançarinos se aproximam do público, permitindo que as
fibra sintética que predomina na indumentária feminina, sintetizada pelo moças toquem seus corpos, preferencialmente as suas áreas genitais. Os
elástico fio de elastano, oposta ao “natural” algodão das t-shirts masculi- rapazes, por sua vez, têm subidas ao palco mais restringidas, e recorrem
nas. Os rapazes “exibicionistas” se opõem aos “funkeiros”, mas parecem predominantemente à visão para se entreterem durante as apresentações.
estar a um meio termo dos polos feminino e masculino. Rebolam como Assistem à performance de maneira quieta e silenciosa. Usam mais o
as moças, se opondo aos “funkeiros”, e expõem seu corpo, se distinguindo olhar. As dançarinas se agacham e viram de costas, se esmerando na reali-
destes novamente. Mantêm seus torsos nus, ou realçados por blusas jus- zação de movimentos que atendam à curiosidade visual de sua audiência.
tas, como ocorre com a indumentária feminina de maneira geral, ao As atrações concedem uma síntese de qualidade superlativa dos
mesmo tempo que vestem calças largas como a indumentária masculina aspectos que compõem a estética observada no ambiente funk. Os artis-
predominante. Os “exibicionistas”, da mesma forma que realizam expres- tas interpretam as músicas mais executadas no baile, realizam passos de
sões faciais de deboche ao rebolar, parecem manter calças largas para não dança similares aos que são presenciados na quadra de esportes e trajam
correrem o risco de serem confundidos com as moças. roupas que possuem o mesmo estilo das usadas pelos frequentadores da
Agora, deixemos a descrição estilística momentaneamente de lado e festa. Entretanto, as sutilezas dos movimentos corporais, das cores e dos
voltemos para a festa. Em breve se assistirá às atrações da noite, apresen- detalhes das roupas surgem amplificadas. O “corpo grotesco”, no sentido
tações que ocorrem no ambiente funk, realizadas por grupos formados de Bakhtin (1999) é trazido à cena, não somente por meio de elementos
por cantores e dançarinos profissionais, invariavelmente pertencentes corporais que destacam suas partes baixas e orifícios, mas igualmente pela
às camadas populares, o mesmo grupo social a que pertence a maioria presença de anãs e transexuais que simulam strip-tease e permitem notar
dos jovens presentes na festa. Desço à quadra, por alguns instantes, para o antagonismo entre homens e mulheres que predomina no ambiente
observar de perto a performance dos artistas. A concentração por gênero funk, em particular nas apresentações de funk “erótico”. Os “bondes” e
nas proximidades do palco depende da atração do momento. Quando MC’s muitas vezes tomam parte nessa disputa, explicitando sua posição
esta é voltada para as mulheres, elas ocupam as imediações do palco, através da letra das canções ou através da própria performance.
soltando gritos em momentos de maior excitação. Na situação inversa, O grupo “Gaiola das Popozudas” dá uma boa medida da rivalidade
quando o show é dirigido aos homens, eles se posicionam igualmente que comanda as relações de gênero no baile, como na descrição abaixo, de
nas áreas mais próximas ao palco, se portando de maneira mais discreta. uma apresentação específica a que assisti no baile, durante o trabalho de
campo. Permite ainda trazer o aspecto superlativo a reger as apresentações.
as atrações20 Composto por mulheres, uma MC e duas ou três dançarinas, uma
delas podendo ser uma anã, predominam no repertório musical do
As apresentações dos bondes e MC’s são momentos propícios para obser- grupo letras que junto ao teor erótico, enfatizado pelo figurino, aciona
var como pode ser flexível a barreira entre plateia e artista no baile do a rivalidade entre os gêneros, presente no ambiente funk. Quando a
Boqueirão. Em diversos momentos permite-se que moças da audiência “Gaiola” se apresenta, como dizem minhas amigas, “os homens perdem
a linha”. Cantora e dançarinas possuem a pele morena e cabelos longos
20 As apresentações que ocorrem no Clube do Boqueirão são predominantemente de “bondes” e anelados. Valeska Popozuda, a MC, além de ter os cabelos ainda mais
por cantores e dançarinos de funk. Eventualmente se apresentam também grupos de pagode.
Entretanto, nunca assisti a uma apresentação desta última modalidade. Portanto, detenho
longos, na altura da cintura, os tem em tom de loiro. Ela movimenta
minha explanação aos shows dos artistas do funk. muito seus cabelos, jogando-os de um lado para o outro, balançando a

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cabeça para cima e para baixo. Seu umbigo, como o de outra dançarina,
está à mostra, assim como podem ser vistas tatuagens, como a longitu-
dinal na região da coluna lombar de uma delas.

O traje da cantora é composto por uma calça de “boca” larga, em Após dançarem, cantarem e muito transpirarem, as três moças se
um tecido preto, brilhante e aderente ao corpo, com tachas prateadas retiram do palco. Fazem um pequeno intervalo e retornam com um
em sua lateral, aberta por uma fenda, e composta por um cinto no novo figurino, com o qual simularão um strip-tease. As dançarinas estão
mesmo tecido e cor, com fivelas e ilhoses prateados. Usa uma blusa em caracterizadas como enfermeiras, o que pode ser identificado por um
um tecido fino, também preto, como um crepe de malha, estampado de pequeno chapéu branco que trazem sobre a cabeça, como os usados por
grandes flores de hibiscos, nas cores rosa-shocking e branco. A blusa é aquelas profissionais. Uma das dançarinas usa minissaia e sutiã meia-
curta, acima da cintura, com mangas ¾, cujo comprimento se localiza -taça, ambos brancos, e uma calcinha vermelha por baixo da saia, todas
entre o pulso e o cotovelo do braço de quem a veste, e mais largas em sua as peças confeccionadas em lycra. A outra dançarina usa modelo similar
extremidade final, combinando com a “boca” larga da calça do conjunto. ao de sua colega, também em lycra, com variações na combinação de
A blusa possui ainda duas tiras longas que são presas em sua costura cores. O top possui o bojo branco e a estrutura vermelha, e a calcinha
lateral e depois entrelaçadas e amarradas sobre o abdômen. O seu cal- é vermelha. A esta se sobrepõe um saiote vermelho, confeccionado em
çado é similar a um tênis, em couro preto, com o solado levemente alto uma malha fina e translúcida, como um jersey e fechado por um laço
na região do calcanhar. A roupa das dançarinas possui as mesmas cores lateral na cintura. Ambas calçam botas brancas que parecem de couro,
que a vestida pela MC, mas é menos ornamentada. A calça não tem as de cano longo e salto alto. A MC é a última a entrar no palco, toda de
tachas laterais e o seu tecido é opaco. A blusa foi substituída por um rosa-shocking. Usa uma espécie de biquíni, no qual os triângulos do
top de dimensões bastante reduzidas, se assemelhando a um sutiã meia- sutiã, do tipo “cortininha”, e da parte anterior da calcinha são recobertos
-taça. A estrutura da peça é preta e a frente é confeccionada no tecido por pelúcia, o mesmo material de que são feitos alguns bonecos e bichi-
estampado da blusa usada pela MC. nhos infantis. A lateral e as costas da parte inferior do biquíni são feitas
Elas dançam, cantam, falam da “amante” e da “fiel”. Somente em um de um tecido fino e transparente, como é também o seu saiote. Todas
momento é permitido a um único rapaz subir ao palco, autorizado pela portam uma capa sobre os ombros, que é retirada ao longo da apresen-
MC. Inicialmente ela dança com ele, parecendo querer seduzi-lo, para tação. As dançarinas as têm na cor vermelha e a MC em rosa-shocking.
em seguida cantar, aos gritos, o trecho de um funk que rima com “veado”, Durante esta etapa explicitamente sensual da apresentação, a MC e
se referindo ao rapaz. Faz com as mãos um movimento que estimula a duas das dançarinas se movimentam intensamente pelo palco. Se abai-
plateia a acompanhá-la, no que é bem-sucedida. Cantam também um xam de frente e de costas, dão saltos, se jogam no chão e lançam as pernas
funk que fala de um rapaz que entrou para a academia, ficou forte, mas para o alto. E desta forma o bumbum, adornado pela calcinha minúscula
que gosta é de “dedinho na bundinha”. Uma outra canção avisa aos con- do biquíni, e a sua parte anterior, estão sempre expostos. Neste momento
quistadores de plantão que eles não passam de “um otário pra bancar”, não cantam, mas são acompanhadas por uma canção romântica norte-a-
pois é isto o que toda mulher no baile quer. mericana. Em volta do palco somente rapazes, boquiabertos e paralisados.

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Ficam apenas olhando, com muita atenção, todos os movimentos e poses por trás da moça, também de joelhos, como se mantivesse relações
que as moças fazem. Alguns seguranças estão encostados ao palco, de sexuais com ela. Depois se levanta, bate com o microfone na região do
costas para o mesmo e de frente para o público, vigiando-o com o obje- ânus da moça, sobre a sua roupa. Pede que a moça retorne para o chão, e
tivo de evitar qualquer atitude indesejada, o que de fato não ocorre. No depois que ela já não está mais sobre o palco diz: “bota esse cu para fora
fim da performance a anã entra novamente, trajando um biquíni de pro- pra ver se eu não soco”. Em seguida, Serginho anuncia a entrada de uma
porções reduzidas e no mesmo estilo e cor do traje usado pela MC. dançarina, avisando que “ela não é a Luana Piovani, nem é a Claudia
Assim, a apresentação da “Gaiola”, ao mesmo tempo em que é per- Raia”, e completa dizendo que “eu tô falando é da Lacraia”. Comprida,
formada de maneira a reforçar o feminino como um divertimento sexual alta e magra, a transexual Lacraia está vestida em tons de preto, branco e
masculino, é também uma armadilha para aqueles que se aventuram na verde. Usa uma blusa branca, de malha de poliamida, justa e sem man-
concretização das suas fantasias. O homem, nesse caso, é por elas cons- gas, sobreposta a uma outra, de tela preta e mangas longas, que per-
trangido e tem sua identidade sexual colocada em dúvida. A tônica da mitem ver a pele de seus braços, peitos e costas. Veste uma saia curta
apresentação é esta, uma cilada para os homens. Afinal, como diz uma preta, do tipo “darlene”, sobre uma calça justa de malha, do tipo legging.
das principais canções do grupo, “mulher de verdade quer um otário Nos pés calça tênis pretos e suas canelas estão enfeitadas por caneleiras
para bancar”. Mais adiante veremos que a Gaiola, em suas performances, verdes. Traz sobre a cabeça um boné e sobre a face grandes óculos de
não apenas desafia os homens, mas canta o ponto de vista das mulheres. sol. Em seu pescoço vemos uma “coleira” de couro preto e perfurado, e
sobre seu pulso está um grande relógio de pulseira larga de couro preto.
A dançarina realiza um strip-tease parcial, retirando primeiro sua saia,
depois a calcinha verde que estava sobre a calça e finalmente a calça.
Permanece com uma segunda calcinha, igualmente verde, que estava
sob a sua calça, se exibindo de costas para o público, balançando suas
nádegas de maneira que estas tremem. Vira-se então de frente e abaixa
sua calcinha revelando a pele do local onde poderia estar uma vagina.
As apresentações do MC Serginho dão outra boa medida da tônica Após a atuação de Lacraia, o MC Serginho se volta para o público e per-
da festa. Nelas homem e mulher são colocados em posição ambígua. O gunta: “gostou de ver a xereca do veado?”.
cantor sobe ao palco vestindo bermuda e blusa sem mangas, em tons Em seguida, o MC chama um homem para subir ao palco e beijar
de azul-marinho e com detalhes brancos e vermelhos, ambas largas em Lacraia. Em troca o rapaz receberá um prêmio de R$ 50,00, mas deve
tecido sintético, similares às roupas de jogadores norte-americanos de ser um beijo na boca que dure dois minutos. Serginho aumenta a oferta
basquete. Nos pés ele calça um par de sandálias pretas, mas em outras para R$ 100,00 e aí sim um rapaz sobe ao palco. Enquanto o rapaz beija
apresentações pode usar tênis. Serginho inicia sua apresentação can- Lacraia, do chão atiram-lhes copos plásticos e latas de bebida. Completa
tando “putaria”, as músicas funk cujas letras possuem teor sexual. Nesta a tarefa, o rapaz recebe o seu dinheiro e retorna para o seu lugar. Serginho
noite duas moças da plateia se juntam a ele, dançando e participando encerra sua apresentação cantando canções na qual defende o direito
ativamente da performance do artista. Uma delas diz ao MC que o “ama” das mulheres de também terem os seus amantes. Novamente sobem
e que gostaria de manter relações sexuais com ele. O cantor inicia uma ao palco outras moças, desta vez em número de três, que se alternam.
canção em que diz “agora vira de quatro”. A moça então se apoia no chão, Uma delas é a mesma que disse “amar” o MC. Serginho é um verdadeiro
com seus joelhos dobrados e seus braços esticados. Serginho coloca-se show man, muito engraçado e didático. Conduz o público, recitando a

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letra das canções antes de cantá-las, permitindo assim que a audiência o a retornarem aos seus lugares. Em um momento específico é permitido
acompanhe. Um genuíno Master of Ceremony.21 que então elas subam. As moças vão subindo uma a uma, até que somam
Existem grupos que possuem como público preferencial um ou cinco sobre o palco. Dançam com os rapazes. Uma delas tenta beijar o
outro gênero, não estando presentes as ambiguidades notadas acima. cantor, procurando maior proximidade corporal. O rapaz continua a can-
“Os Perversos”, composto por quatro dançarinos e um MC, é um desses tar, dizendo que a “mulherada” está pouco comedida naquela noite. Em
grupos. Seu público é claramente o feminino. O cantor veste uma t-shirt outro momento o cantor levanta com uma de suas mãos a parte posterior
preta, em tecido de malha com leve brilho, e distante do corpo, isto é, da saia de outra das moças que subiu ao palco. Ela por sua vez reage,
não justa. A trama do tecido forma listras horizontais. Umas são em alto retirando com a sua mão a mão do rapaz, demonstrando, através de sua
relevo e mais fechadas, e as outras são formadas pelo tecido mais fino, expressão facial, não haver gostado nada de sua atitude. O rapaz diz a
dando-lhe uma certa transparência. O rapaz usa calça jeans, um cinto ela, com a boca distante do microfone, que é “só pra dar uma olhadinha”.
branco recoberto por tachas prateadas e viseira preta sobre a cabeça. Os
dançarinos se vestem de maneira semelhante, mas suas t-shirts são todas
brancas, no mesmo tecido e modelo da blusa usada pelo cantor.
A dança dos rapazes é bastante vigorosa. Rebolam bastante,
mexendo os quadris, mas não os jogam para trás. Requebram muito,
deslocando as ancas de um lado para o outro, ou levando-as para frente.
Frequentemente lançam suas pernas para o alto, flexionando-as de
maneira a formar um ângulo de noventa graus entre coxa e a parte infe-
rior da perna. Os braços são bastante utilizados, em movimentos muito
rápidos, diagonais e para o alto, em geral com os punhos cerrados. Em
alguns momentos os braços são deslocados para o lado oposto àquele
que foram lançados os quadris e a parte inferior do corpo. Os braços, ao
cortarem os fachos de luz socando o ar, produzem um interessante efeito
visual quando observados à distância.
Em um determinado momento do show o MC diz: “Chega de disse
me disse. Agora Os Perversos vão fazer strip-tease”. Os dançarinos tiram
sua blusas, os cintos, mas não as suas calças. Dançam, rebolam e apro- Existem igualmente aqueles MC’s e bondes que conduzem sua apre-
ximam-se das moças, aglomeradas e espremidas em volta do palco. As sentação de maneira a se alinhar com o público masculino. É o caso do
moças, no chão, o local em que fica a audiência, tentam alcançar seus cor- MC que se apresenta com a dançarina Daniele. Ele entra no palco sozi-
pos. Os dançarinos, por sua vez, facilitam sua empreitada. Abaixam-se de nho, vestindo uma blusa em malha sintética preta, larga e sem mangas,
maneira a permitir que seu público os toque em suas áreas genitais, sobre com estampas com a logomarca do fabricante da peça, em um tom de
a calça jeans. Algumas moças da plateia sobem ao palco, sem a autoriza- cinza escuro e metalizado. Sua calça é em jeans preto, larga e curta. Sobre
ção da produção do espetáculo, quando são obrigadas, pelos seguranças, a cabeça traz um boné e seus pés estão calçados por tênis. Inicialmente
o MC menciona o nome de algumas comunidades que se localizam ao
redor do Centro da Cidade, e depois pede que se dance com o “dedinho
21 No funk carioca, diferentemente do hip hop, MC é designação para o cantor e não para
aquele que conduz a apresentação sem necessariamente cantar.
para cima”, momento em que a bateria eletrônica simula o som de rajadas

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de fuzil. O MC chama então Daniele, que se esmera tanto no rebolado seguranças. Na verdade, percebo, com o tempo, que todos estão sendo
que a impressão que se tem é que a moça irá se partir em duas. João, que vigiados. O baile funk do “Clube do Boqueirão” é, em muitos de seus
normalmente permanece na área da entrada do clube, supervisionando aspectos, um evento bastante controlado. Os seguranças, que no início
o movimento do baile, está agora no alto da arquibancada, apreciando, da festa fazem a revista do público, circulam durante toda a noite pelo
com dois outros colegas, a apresentação de Daniele. A dançarina é clara, clube, mantendo-o sob constante controle. Quando iniciam as apresen-
do tipo mignon, pequena e magra. Seu corpo não é nem musculoso nem tações vemos surgir grupos de dois ou três desses seguranças e, como se
especialmente curvilíneo. Seus cabelos são escuros e anelados, na altura saídos do subterrâneo, postam-se sobre os tablados dispostos ao longo
dos ombros e levemente mais claros em suas pontas, resultado provável do palco. Sempre com troncos e braços muito corpulentos, vestidos de
de tratamentos químicos e/ou banhos de sol. Ela veste uma minissaia preto e muitas vezes usando toucas na mesma cor sobre a cabeça inva-
feita em jersey de algodão, mole, formando três babados, em dois tons riavelmente raspada. Ficam aí parados, de braços cruzados e imóveis.
de azul. A saia tem um cós de renda, também azul. A parte de cima de Mexem apenas a cabeça, de um lado para o outro, como câmaras de
sua vestimenta é um top tomara que caia bem estreito, recoberto por circuito interno de imagens, vigiando os dançarinos.
quatro babadinhos, todo azul. Daniele calça um tênis de couro branco,
de solado baixo e plano, acompanhado por meias de algodão curtas. intervalo para o próximo ato
Em determinado momento de sua apresentação, Daniele pega
a blusa de um rapaz da audiência, próximo ao palco. Torce a peça de Entre duas e três horas da manhã retorna o hip hop, desta vez mesclando
roupa em seu comprimento e, virando-se de costas para o público, passa canções do repertório nacional aos exemplares norte-americanos. Neste
a blusa entre suas pernas, esfregando-a em seu sexo. A moça dança de momento, o DJ costuma anunciar: “agora, só no sapatinho”, referindo-se
maneira tal que, ao se virar de costas, sua saia balança e seu bumbum às músicas mais lentas que tomam conta do espaço. É hora de descansar,
e sua calcinha ficam à mostra. Os homens ficam muito animados com ir ao banheiro, checar o cabelo, comprar uma bala, beber e comer algo.
esta parte da performance de Daniele, e começam a tirar suas blusas É oportunidade também de voltar ao suingue e ali curtir até que o funk
para que ela faça o mesmo com suas peças de roupa. Mas o MC diz que retorne à quadra de esportes. A volta à quadra de esportes pode ocorrer
agora é hora de ver “a perereca bater no sapo”. Um rapaz da plateia é cha- para se assistir a mais uma atração. O número de bondes e MC’s a se
mado para subir ao palco, que levanta a dançarina em seu colo. Segura-a apresentarem em cada baile varia enormemente. Podem ser dois, sete,
pelas nádegas, de maneira que esta senta, com suas coxas apoiadas sobre oito ou nove grupos se apresentando em uma única noite.
seus braços e as costas recostadas sobre os seus antebraços. Nesta posi- Retorno à arquibancada. Do seu alto, sentada sobre a mureta que
ção ele deve fazer um “vai e vem” de maneira que o seu sexo bata no sexo protege o último degrau, observo o todo do ambiente funk. Vejo tam-
da moça. Mas o rapaz não aguenta o peso de Daniele e deixa o palco bém muitas moças gordas, mas não rapazes. Elas estão sempre de rou-
aos gritos de “veado”. Sobe então um outro rapaz, que desta vez é muito pas elásticas e justas. Usam calça, mas parecem preferir as minissaias. A
bem-sucedido em sua performance, sendo bastante aplaudido antes de lógica de suas roupas obedece à mesma que rege as escolhas das roupas
retornar ao chão. O MC diz que “agora é a vez da cobra comer a aranha”, femininas de uma maneira geral. As peças de roupas podem ser colo-
mas nenhuma performance específica ocorre. Daniele dança mais um ridas e combinadas em seus mínimos detalhes, como vimos nos trajes
pouco e a apresentação se encerra. de Jussara e Rose, que se assemelham aos de Shirley, conforme descrevi
Do chão posso ainda apreciar a performance das moças e rapa- no primeiro capítulo. Vemos também moças gordas que se vestem mais
zes distribuídos pelos degraus das arquibancadas. Mas, sozinha, sin- discretamente, preferindo o azul do jeans, que surge muitas vezes no
to-me desconfortável e tenho a sensação de estar sendo vigiada pelos moletom stretch, e o preto e o branco das blusas de poliamida. A esta

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mesma “palheta” de cores recorrem frequentemente Lúcia e Vera, para
montar suas produções, como explicitei acima, ao definir a preferência
de uma pela cor branca e de outra pela cor preta.
Por outro lado, é raríssimo ver no baile um garoto gordo, ou “cheio”.
Os rapazes são sempre muito magros. Vejo um grupo de três, todos
muito bem vestidos, e ali encontro um garoto mais “cheinho”. Todos
usam jeans e tênis, mas dois deles, altos, magros e finos, isto é, estrei-
tos, vestem jaqueta. O terceiro, sem jaqueta, possui formas arredonda-
das. Veste blusa sem mangas da marca Nike, azul marinho. Pergunto se
posso fotografá-los, mas não gostam da ideia. Parecem já estar alcoo-
lizados. Os rapazes, quando não se restringem aos tons neutros, como
branco, preto, azul marinho e cinza, gostam muito de cores fortes, espe-
cialmente o vermelho e o amarelo.
Observo também a turma que prefere dançar do lado de fora da qua-
dra, na passagem que dá acesso ao mezanino onde está o suingue. Neste
caso, não se nota a mesma separação por gênero observada no interior da
quadra. Este corredor é largo o suficiente para permitir que parte dele seja
utilizada como ponto de reunião entre amigos e ainda como uma espécie
de “passarela”, pela qual moças e rapazes passam fazendo performances,
andando e dançando. Ali está o grupo de três rapazes, cuja vestimenta
descrevi acima. Dançam no mesmo lugar, deixando transparecer esta-
rem alcoolizados. Demonstram conspicuamente estarem se divertindo,
“zoando”. Um outro grupo de três rapazes passa, formando um trem, pelo
mesmo local. Dançam realizando movimentos vigorosos e angulosos
com os corpos. Dão saltos, param, depois continuam. Transpiram muito.
Meninas vão e vêm, perfazendo todo o caminho. Descem a rampa
que sai do pátio da entrada e seguem até o salão do suingue, e vice-versa.
Mais uma vez passa a mulata alta e magra, de cabelos cacheados averme-
lhados. Usa um vestido tomara que caia com saia evasê curta, em malha Mais uma moça. Vem dançando e rebolando. A menina de repente
de poliamida, em um tom suave de rosa, nem muito claro nem muito dá um salto e para na frente de um rapaz, seu conhecido. Vira de cos-
escuro. A morena está aflita, com seu celular prateado, do tipo dobrá- tas para seu colega e pousa as pontas dos dedos de suas mãos sobre os
vel, nas mãos. Parece esperar por alguém. Calça tamancos bem altos, de joelhos, flexionando-os. Em seguida empina os quadris, dançando e
salto de madeira, e o peito do pé em vinil transparente. O rosa é uma cor balançando o bumbum. Parece encostar suas nádegas na área genital do
muito usada, como vimos no traje de Rose, seguido do turquesa, como rapaz. Por fim a moça dá uma risada para seu amigo, realiza um novo
vimos no traje de Jussara. São os tons preferidos pelas moças, além do salto e sai andando em direção ao suingue. Ela veste calça de moletom
branco, do preto e do azul do jeans. stretch, imitando jeans, em tom de azul intermediário, nem escuro, mas

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também não muito claro. Do tipo “furadinha” faz lembrar uma calça de de maneira geral, a polícia é uma presença constante na saída dos bailes,
ginástica “bailarina”, de “boca” larga. A malha é toda talhada, formando mesmo naquelas noites em que não ocorrem brigas.
motivos figurativos, como borboletas e estrelas, ou abstratos. A calça é Um momento de tensão especial ocorre em relação ao meio de
baixa e acompanha um shortinho, que é vestido por baixo da mesma. transporte que se tomará para voltar para casa. Os amigos moram muitas
Seus talhos, quando esticados sobre o corpo, parecem uma fenda, dei- vezes em comunidades separadas e rivais, o que complica o retorno para
xando a pele à mostra e as “carnes” bem visíveis. os locais de moradia. De madrugada a kombi que lhes levará nem sempre
Temos, assim, mais alguns pares de oposições. O corpo feminino faz ponto em frente ao clube. Pode ser preciso andar até a distante rua
tende a ser mais redondo, curvilíneo, e as cores das quais se utiliza para Gomes Freire. Então deve se seguir junto, aproveitando a companhia de
se recobrir são “suaves”, como o são os movimentos sinuosos realiza- um colega, que poderá querer sair mais cedo do baile. Ou ir até o “pé” do
dos na dança, realçados por roupas justas. O corpo masculino é sempre morro em que mora o colega e ali pegar o mototáxi para a favela vizinha.
mais reto, anguloso, assim como o são os vigorosos movimentos de sua Faz-se, assim, um pequeno desvio, indo até o Estácio, havendo um ponto
dança, acompanhados de roupas largas e em cores “fortes”. de mototáxi no Catumbi, que poderia ser usado para se subir uma das
favelas daquela região. Entretanto, o que está em funcionamento àquela
dissolvendo a festa hora só sobe o morro dominado pela facção rival. Daí a necessidade de se
deslocar até um pouco mais longe, o morro do Zinco, por exemplo, e de
A festa começa a se aproximar de seu fim, que ocorre oficialmente às lá seguir para casa. Os pontos de mototáxi também são controlados pelas
cinco horas da manhã. Mas o momento da saída depende de inúme- facções criminosas que separam as favelas.
ros fatores. As brigas acontecem com frequência, mesmo que raramente
evoluam. Na verdade, eventualmente se assiste ao desenrolar de um as oposições binárias
conflito propriamente. O que se presencia sempre é um grande deslo-
camento de pessoas de um lado para o outro da quadra de esportes. Duas oposições fundamentais regem a festa investigada. Uma diz res-
Essas brigas podem ocorrer durante as apresentações, e normalmente peito ao contraste entre o funk e o suingue.22 Tomando por base os
não alteram o ritmo da festa. Tudo segue como se nada estivesse aconte- aspectos realçados acima, é possível sintetizar alguns dos traços contras-
cendo. Rapidamente aqueles envolvidos na disputa são expulsos do baile tantes relativos aos dois ambientes. O funk ocupa espaço físico privile-
e a festa volta ao seu curso normal. Quando as brigas persistem, mesmo giado na festa, é uma música de base eletrônica, com letras de conteúdo
após a expulsão dos supostos responsáveis pelo tumulto, o DJ costuma diversas vezes erótico ou violento, dançada em grupos formados majori-
intervir, abandonando a postura discreta que assume durante o baile. tariamente por pessoas de apenas um dos sexos. O suingue, por sua vez,
Torna-se peça importante na solução dos conflitos, chamando pelo auto ocupa um salão pequeno e quente, e corresponde a uma música tocada
falante os seguranças e repreendendo aqueles que brigam: “Olha a segu- por instrumentos musicais acústicos, cujas letras possuem conteúdo
rança! Sem vacilação... Baile só de irmão...”. Se ainda assim persistem romântico e que une, no momento da dança, os polos masculino e femi-
as brigas, o DJ é obrigado a dissolver gradualmente a festa, colocando nino. Enquanto ao dançar o “pagode romântico” os rapazes possuem
músicas lentas e desinteressantes, que não estimulem os dançarinos a menor liberdade de expressão corporal, no ambiente funk os rapazes
permanecerem na quadra de esportes por muito mais tempo. O baile possuem papel menos definido, podendo vir a rebolar ou não. Um traço
fica “aloprado” e os dançarinos vão saindo “espontaneamente”. Lá fora,
carros com policiais armados já se posicionam para garantir a ordem. 22 Este ritmo é denominado como “pagode romântico”. A diferença entre o suingue e o simples
Eventualmente, a polícia poderá estar ausente no fim de uma noite. Mas, pagode está no fato do primeiro ser mais uma “batucada” e o segundo ter a “paradinha” carac-
terística, que permite à dançarina rebolar sozinha.

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comum aos dois ambientes é o fato de em ambos os locais as danças A presença de dois ritmos no Clube Boqueirão, o funk e o suin-
femininas serem explicitamente sensuais, ainda que os movimentos cor- gue, que produzem ambientes tão antagônicos, certamente é um indício
porais sejam distintos e compatíveis com o ritmo tocado. estético importante da complexidade do universo a que pertencem os
Se funk e pagode romântico parecem sintetizar dois mundos anta- frequentadores da festa que investigo. Como dizem as meninas e rapazes
gônicos, um mais romântico e outro mais violento, como podemos com quem conversei ao longo de meu trabalho de campo, funk e pagode
depreender de Coelho (2004), a festa no Clube do Boqueirão traz à tona estão sempre associados para aqueles que vivem nos morros e favelas
a complexidade dessa relação. O funk representaria assim uma juventude cariocas. O funk não é só erótico e/ou violento. Nem o pagode é expres-
que trocou violão e pandeiro – e a busca pela integração e relativização são de um universo puramente romântico. Um bom indício da imbri-
das diferenças entre classes – pelas baterias eletrônicas de um ritmo musi- cação dos dois ritmos é a regravação de um suingue pela MC Sabrina da
cal que expressaria o desejo de ruptura com relações sociais tradicionais Providência, cantora de funk conhecida por apologias explícitas que faz
estabelecidas entre as elites e o povo. Sansone (apud HERSCHMANN e a determinada facção criminosa do Rio de Janeiro.
FREIRE FILHO, 2003) via expressões mais controladas no próprio samba A segunda oposição fundamental que rege o contexto investigado
carioca que, diferentemente do “samba na bunda baiano”, que valoriza o diz respeito justamente às oposições entre feminino e masculino. Esta
rebolado, é um “samba no pé”, de postura mais controlada. é uma chave que rege todo o repertório estético arrolado neste capí-
Herschmann traz interessante contribuição para pensarmos as rela- tulo e se refere essencialmente às relações entre roupa, corpo e dança no
ções entre funk, pagode romântico e violência. O autor argumenta que ambiente funk. Discriminemos sinteticamente os contrastes que envol-
para a “cultura funk” a violência pode ser utilizada como um recurso vem esta segunda oposição.
político, se constituindo tanto em uma forma de expressar conflitos e
interesses diferenciados quanto em “uma estratégia de obtenção de visi-
bilidade” (2000: 170). A mídia possui papel central nesse processo, pois
MOÇAS RAPAZES
ao mesmo tempo em que dá visibilidade ao lado violento do funk, demo-
cabelos longos cabelos curtos
nizando-o, como fez à época do “arrastão” de 1992 na praia de Ipanema,
desperta o interesse pelo fenômeno, contribuindo para a sua glamouri- corpo redondo corpo reto
zação e consequente circulação por entre outros grupos sociais. Vianna roupa justa e elástica roupa larga que não estica
(2003a) chama atenção para o fato de hoje o funk não se restringir a um movimentos corporais suaves movimentos corporais vigorosos
único grupo cultural, mas expressar os sentimentos dos grupos culturais (sinuosos) (angulosos)
que formam a população carioca. cores suaves cores fortes
A meu ver o funk apresenta uma continuidade com a cultura da expressão compenetrada expressão gaiata
malandragem carioca e não rompe certas barreiras por não buscar fibra sintética fibra natural
a mesma inserção propagada pelo “discurso da ruptura” do hip hop
variação nos modelos de peças de peças de roupas de modelos
que, contraditoriamente, busca uma inserção nesta mesma sociedade
roupas restritos
moderna por eles tão criticada. Essa diferença de perspectiva frente ao
mundo pode estar sendo expressa por estas “duas comunidades criativas
independentes e, até certo ponto, antípodas” (COELHO, 2004b: 5) através
de seus distintos universos estéticos.

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Capítulo 3
As pessoas e as coisas

0 insight no santa luzia


Em fevereiro de 2005, o Baile do Boqueirão foi temporariamente trans-
ferido para o adjacente Clube Santa Luzia. Se esse trabalho possui duas
etapas, como afirmei, o seu divisor de águas é a experiência no Clube
Santa Luzia. Foi aí que tive diversos dos insights e percepções que guiam
o meu argumento.
Foi no Santa Luzia que compreendi que o baile a que acompanhava
poderia ser apreendido como um espetáculo, e portanto como um todo
estético. Foi também ali e já na primeira noite que me dei conta que a
roupa, manifestação do todo estético que é o fio condutor de minha pes-
quisa, só me interessava, só chamava o meu olho, na medida em que a
via vestida pelos corpos, e mais ainda, pelos corpos em dança, dentro da
festa. Deslocada da festa, na fila de entrada, a roupa não fazia o mesmo
sentido. Daí a roupa ser vista como um figurino, que tem relação com
a festa. Uma indumentária cujo sentido é atribuído na relação com o
contexto em que ela se insere. Foi nessa ocasião, então, que entendi que
a festa poderia ser tomada como um espetáculo, mas mais do que uma
peça teatral, uma apresentação de dança, composta por seu corpo de
baile, seus pas de deux e pela música. Foi também ali que tive a per-
cepção de que ao mesmo tempo que vinha apreendendo a festa de um
ponto de vista externo, só teria acesso às suas complexidades se nele
entrasse e deixasse de lado a “obsessão classificatória” que me abateu

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logo no início de minha entrada em campo e junto com ela deixar tam- na verdade um terraço, no alto de um edifício de três andares, com uma
bém o meu olhar, se não estrangeiro, externo. deslumbrante vista para a Baía de Guanabara e para o Pão de Açúcar.
Não é exagero dizer que o Clube Santa Luzia foi central para o Não existem ali arquibancadas, e nem espaço suficiente para que fossem
desenvolvimento da minha descrição etnográfica. Hoje, quando recorro montados os palquinhos nos quais subiam os seguranças vigilantes que
aos meus cadernos de campo para escrever esse relato etnográfico, me víamos no Clube do Boqueirão. O que nos leva para o segundo aspecto
surpreendo ao ver que na primeira noite em que lá estive já se colocaram a contribuir para que o Clube Santa Luzia inaugurasse uma nova fase de
muitas das questões que já vinham se impondo ao longo da pesquisa. pesquisa: um relativo afrouxamento no controle sobre os seus frequen-
Questões e aspectos da festa e de sua estética que pareciam ainda estar tadores. Como me disse Lúcia no Santa Luzia se fazia muito mais “apo-
submersas na minha mente. Algumas delas já foram expostas no capí- logia”. De minha parte a diferença em relação a esse segundo aspecto
tulo anterior. Outras serão tratadas adiante. A primeira noite no Santa diz respeito ao fato de que, a partir do Clube Santa Luzia, não vi mais
Luzia provocou uma avalanche de ideias, um verdadeiro brainstorming. Ronaldo na supervisão da festa.
Nessa noite dei-me conta, por exemplo, da oposição entre a sinuo- O novo responsável era João, Juca, que se mostraria bem menos
sidade dos corpos femininos e as arestas dos corpos masculinos, dos desconfiado, ou ao menos mais cordial, do que seu antecessor. Apesar
“trenzinhos” que cortam, de maneira igualmente sinuosa, a massa de disso, frequentemente era preciso que eu renegociasse minha movimen-
dançarinos, e percebi a forma como as moças ignoram as investidas tação no campo, isto é, na festa. Nunca deixei de ser revistada nem de
indesejadas dos rapazes. Foi também quando comecei a perceber os pagar o ingresso de minha entrada, quando acontecia de eu chegar ao
limites daquele que é o objeto concreto que me conduziu ao contexto clube após às 23:30 horas. Quando comentei com Juca, já depois de mui-
funk, a calça de moletom stretch. Nessa noite questionei igualmente a tos meses acompanhando o baile, que meu trabalho entrava em uma
gratuidade em relação às escolhas estéticas e constatei a impossibilidade fase na qual eu precisaria tirar fotos, ele me respondeu que não haveria
de se falar, naquele ambiente, em um “gosto da necessidade”, como o qualquer problema. Bastaria eu avisá-lo que ele pediria a um segurança
define Bourdieu (1984), e foi lá também que pela primeira vez notei o que me acompanhasse. Na verdade nunca fui acompanhada por nin-
grupo de moças que se tornaria o núcleo de minha investigação. E foi guém, mas foi sempre necessário avisar que eu fotografaria. Em uma
nessa mesma ocasião que ensaiei, sozinha e um tanto tímida, os meus noite, com o intuito de testar até que ponto ia minha liberdade de ação
primeiros passos funk. na festa, comecei a fotografar dois rapazes sem nada falar ao Juca. Logo
É verdade que o tempo (este era o meu quinto baile) teve o seu peso, em seguida ele se aproximou dizendo que sim, era preciso comunicá-lo
ao me tornar, a cada festa, mais familiarizada com o ambiente. Não que a a cada vez que eu tirasse fotos. Somente em minha última noite fotogra-
timidez tenha me abandonado de todo, mas ao menos fui me sentindo, fei sem pedir autorização e não fui interrompida.
aos poucos, cada vez mais segura. Entretanto, somente o tempo não Vale destacar que não foi apenas a ausência de uma figura cercea-
seria capaz de causar a ruptura que o novo espaço provocou. dora que me levou a todo movimento que descrevo acima. Mas foi a
Penso que dois aspectos da festa neste segundo clube contribuíram ação de uma forma artefatual concreta, a arquitetura do novo local que
largamente para que este novo momento de pesquisa se configurasse. passou a abrigar a festa. Da mesma maneira como percebi ser necessá-
Em primeiro lugar destaco o próprio espaço físico que abriga a festa. rio, para a compreensão do gosto e das escolhas estéticas, considerar a
Como no Clube do Boqueirão, funk e suingue ocupavam salões separa- relação das pessoas com os artefatos que as cercam, senti em minha pró-
dos. Mas diferentemente daquele clube, o funk ocupava no Santa Luzia pria pele, pela ação da nova disposição espacial, como “os objetos pare-
um espaço menor do que a quadra de esportes e sem as divisões espa- cem nos orientar no mundo, mas de uma maneira que permanece larga-
ciais encontradas ali. O salão que abrigava o funk no clube Santa Luzia é mente implícita” (MILLER, 1994: 408). A importância da materialidade,

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da relação das pessoas com as coisas, tema que eu pretendia problema-
tizar em minha dissertação ao focar sobre a relação entre a roupa e os
dançarinos no contexto funk, se impôs, mostrando-se atuante, direcio-
nando a forma pela qual eu passei a apreender o baile. Assim, passei da
ordenação das coisas, de certa forma, a ser ordenada por elas. Melhor
ainda, enquanto eu ordenava os objetos, eu era simultaneamente orde-
nada por eles.
A arquitetura do clube e a sua divisão espacial me levaram para
o centro da festa, para a pista de dança. Não havia mais altos e baixos
onde me refugiar nem exercer o olhar distanciado, perspectiva que teve
Assim, o que fazia a roupa era a relação que se estabeleceu entre o
a vantagem de me possibilitar acesso ao todo. Não havia mais poltrona,
objeto e o corpo em movimento. Uma relação cuja sutileza está no que a
só palco. E essa ausência de arquibancada me mostrou que era preciso
roupa encobre e no que ela revela. O corpo era realçado pela roupa, que
passar da observação, que me permitiu ver a festa como um todo esté-
por sua vez realçava a sinuosidade do corpo, que era concedida tanto
tico, para a participação. Me misturar às pessoas para que eu compreen-
pelas formas do mesmo quanto por seus movimentos durante a dança.
desse a lógica que rege o conjunto observado. A simples classificação
Mas é interessante que, como esse caso específico nos mostra, pois a
dessa estética a que vinha assistindo já não era suficiente. Era preciso me
moça tinha grande parte de seu corpo descoberto, a roupa realça simul-
aproximar das pessoas.
taneamente aquilo que cobre bem como a parte exposta do corpo. Assim,
Uma passagem de minhas anotações relativas àquela primeira noite
o que primeiro me chamou atenção foi o que resultou dessa interação
no Clube Santa Luzia dão uma boa mostra do efeito que aquela festa
entre roupa e corpo na dança. Depois fui olhar a roupa propriamente
causou em mim:
dita, e aí sim notei como ela realçava o corpo na dança. A constatação
Uma outra moça, igualmente negra e com a pele igualmente brilhante, de que a relação corpo-roupa-dança era a que de fato me interessava se
vestia calça de moletom stretch [azul] royal, com áreas desbotadas, quase colocou como um problema, na medida em que para investigá-la deve-
brancas, e também [áreas desbotadas que pareciam] franzidas. A parte de ria passar de uma posição para outra. Como romper com certas barrei-
cima era uma bata tomara que caia, numa malha de algodão mole, branca,
com estampa de pequenos corações vermelhos. As costas eram totalmente
ras e certos temores e interagir com as pessoas?
nuas, com exceção da parte fechada nas costas. Era algo como se fosse um Dessa perspectiva, serão dois os aspectos trabalhados a seguir. O
bustiê com um pano saindo dele, mas somente na parte da frente. O fecha- primeiro deles explorarei nesse capítulo: a relação que se estabelece
mento era feito através de amarração. Mas o que fazia a roupa, nesse caso, entre o tipo de corpo valorizado e a roupa que o veste. Problematizarei
era o corpo na dança. Primeiro me chamou a atenção o corpo da moça essa relação a partir dos pontos de vista feminino e masculino, mesmo
enquanto dançava, com seus movimentos sinuosos. E depois fui olhar sua
roupa, e notei como ela [a roupa] realçava seu corpo na dança.
que não tenha sido possível participar, da mesma maneira como fiz com
as moças, dos rituais masculinos que antecedem à festa. O segundo
Continuei então: aspecto será explorado no próximo capítulo e trata-se da análise esti-
Isso me parece um problema, na medida em que a roupa me chama aten-
lística da indumentária arrolada na festa bem como da relação roupa e
ção quando em ação. É aí que sinto vontade de descrevê-la, fotografá-la, corpo na dança.
ou conversar com sua usuária.

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a materialidade dos objetos do cós da calça. Lilian veste ainda um corpete em malha de poliamida
branca com alças reguláveis de elástico, como a dos sutiãs. O top pos-
sui em sua frente dois encaixes de tela branca, de fio grosso, como um
crochê, e as costas são fechadas por amarração cruzada, como a dos
espartilhos, que franze a parte posterior da blusa, deixando-a bem justa
e salientando as curvas do tronco. Completando o traje, Lilian calçava
uma sandália branca com salto anabela e plataforma, que ficava escon-
dida pela barra larga e comprida da calça.

Lilian é uma jovem que à época da pesquisa estava prestes a com-


pletar quinze anos. Antiga moradora do Morro da Coroa, Lilian passou
a viver com a mãe, irmão, irmã e cunhado em uma casa de três quartos Os cabelos de Lilian são pretos, longos e anelados, formando cachos
no bairro de Santa Teresa, próximo à favela onde morou. Em uma noite largos, e estavam penteados de lado, molhados e soltos. Na extremidade
de sábado, no exato dia em que Lilian completou sua mudança da favela externa de sua sobrancelha direita estava um piercing transparente, assim
para a casa em Santa Teresa, partimos do Largo do Guimarães, ali pró- como outro, de tonalidade florescente adornava seu umbigo. Esse último
ximo, com destino ao clube Santa Luzia. Estávamos acompanhadas de piercing só o notei no baile, quando seguíamos para o ambiente funk e
duas amigas suas, Lana e Luana, um pouco mais velhas, com cerca de Lilian dobrou sua blusa, virando a sua parte inferior para fora, expondo
dezessete anos. seu umbigo enfeitado. Fez isto como se estivesse com calor e levantasse
a blusa para se refrescar. Passou o resto da noite assim, com o umbigo
no centro da pele exposta entre a blusa dobrada e o cós da calça. Lilian
usava brincos de argola em metal prateado, de tamanhos médios, com
contas penduradas, e uma corrente no pescoço, dourada, sem nenhum
pendente. Tinha os olhos levemente maquiados, sem sombra, e a boca
recoberta de batom claro. As unhas dos pés estavam pintadas no estilo
As três moças se vestiam de maneira muito similar. Lilian vestia francesinha, mas não as unhas das mãos, que estavam sem esmalte.23
uma calça confeccionada na malha “darlene”, aderente ao corpo, de
viscose com elastano, bem fina, mole e pesada, com queda, num tom
de azul entre o azul royal e o azul turquesa. A calça tem cintura baixa, 23 Para se chegar ao estilo francesinha pinta-se a unha inicialmente de um esmalte claro e transpa-
“boca” larga e não possui bolsos. Seu único detalhe é uma grande argola rente, preferencialmente branco. Em seguida sua borda é delineada de esmalte leitoso branco,
de maneira a simular a parte da unha que torna-se branca depois de crescida. Esta é a maneira
de metal prateado, pela qual passa uma faixa do mesmo tecido da calça, mais usual de se usar esse estilo de pintura nas unhas, e aquela que as meninas do funk usam.
colocada, como um cinto levemente franzido, sobre a parte anterior Entretanto, outras variações podem ocorrer, alterando-se as cores do fundo e do desenho.

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Lana usava uma calça jeans stretch, azul claro e com muitos bol-
sos, ao contrário das calças de suas amigas. Na frente a peça possuía
dois bolsos do tipo faca e nas costas dois bolsos fechados por uma aba
cada um. Usava uma blusa de poliamida branca, do tipo frente-única,
amarrada na parte posterior do pescoço e arrematada por uma fivela
colocada sobre o meio do bojo que cobre o busto. O cabelo de Lana
é castanho e mais curto que o de suas colegas, na altura das orelhas.
Também tinha aspecto molhado e parecia ter sido alisado, não formava
cachos. Lana, diferentemente de suas amigas, calçava tênis, o que susci-
tou um pequeno debate sobre a altura dos sapatos. Lilian disse que “sem
Luana estava toda vestida por peças de moletom stretch azul royal. salto eu não sou nada”. Luana concordou que um salto deixa a produção
Sua blusa, como a de Lilian, era um corpete, enfeitado por cristais inco- mais bonita e Lana justificou sua escolha dizendo que já havia usado
lores nos cortes existentes abaixo do busto e no corpo da blusa. As alças, muito salto alto – “salto quinze, não, vinte!” – mas que atualmente estava
também como as dos sutiãs, eram feitas de elásticos azuis do tom do res- preferindo andar com sapatos baixos.
tante da roupa. A calça era baixa e sem bolsos, como a de Lilian. Possuía Essa pequena conversa se deu quando já estávamos na calçada que
um cós em forma, adornado em sua extensão por uma carreira dupla dos passa ao longo do Museu de Arte Modera, com as três moças andando
mesmos cristais da blusa. As áreas das coxas e nádegas eram aplicadas por lado a lado e de mãos dadas. Formavam um belo conjunto. De costas
cristais idênticos e salpicados. Luana calçava um sandália também com podia-se ver três corpos morenos de cintura fina e quadris largos, todos
salto do tipo anabela, de plataformas, em cor de sola. Tinha os lábios pin- vestindo calças justas e elásticas, que realçavam seus quadris, que por
tados de batom em tom de coral, e os olhos maquiados de sombras azuis. sua vez eram destacados pelas blusas justas e igualmente elásticas. Todas
No pescoço carregava uma gargantilha de cadarço encerado, bem ajus- as peças de roupa eram lisas, sem listras ou estampas. As três usavam
tada, com a inicial N, neste design, pendendo do cordão. A letra N se refere seus cabelos molhados, além da coincidência dos três nomes se inicia-
a Nando, seu namorado. O cabelo da moça é avermelhado e crespo, for- rem pela letra L. Pedro, o irmão de Lilian, nos acompanhava de longe,
mando cachos miúdos, de comprimento que os deixa acima dos ombros. afastado das moças, postura bastante coerente com os grupos separados
pelos sexos que vemos na festa propriamente. Normalmente moças e
rapazes saem de suas casas em separado. Argumentam que é para se
evitar que pensem que estão comprometidos. Mesmo aqueles que pre-
tendem encontrar seus namorados e namoradas geralmente deixam
para fazê-lo já na festa. Pedro nos seguia pelo simples fato de sua mãe só
permitir que sua irmã mais nova fosse aos bailes funk acompanhada por
alguém de sua confiança.
Alguns responsáveis se preocupam com o fato das moças frequen-
tarem essas festas. No caminho para o Clube Santa Luzia, Lana, em uma
das inúmeras ligações que fez dos telefones públicos que encontrava
pelo caminho, orientou a alguém do outro lado da linha que não dis-
sesse à sua mãe que estaria indo para o baile, e sim que dormiria na casa

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de uma amiga. Lilian, neste momento, aproveitou para me dizer que sua Lenita me explica que aquela calça é igual à que Lilian usava no sábado
mãe não aprovava muito suas idas aos bailes funk, mas que preferia não passado. Eu lhe respondi que a outra me parecia diferente, já que pos-
mentir pois sabia que a mãe descobriria. Eu mesma escutei de alguns suía uma fivela. Ela falou então que o “pano” era igual. O mesmo “pano
motoristas de táxi que me levavam para a festa, ou para os encontros darlene” fino e aderente ao corpo e elástico, composto por viscose e elas-
anteriores a esta, que não permitiam suas filhas, sobrinhas e afilhadas tano. Lenita acrescentou ainda que a calça vestia muito bem, que “faz
frequentarem bailes funk. um corpo muito bonito”.
O elemento constante nas roupas descritas acima é a sua proximi- Lilian abriu o guarda-roupa e começou a me mostrar suas roupas.
dade com o corpo, isto é, o fato de a roupa ser justa e elástica. A elasti- Ela divide um armário de três portas com o irmão, com quem também
cidade está a serviço de uma lógica cultural, a da roupa justa que revela compartilha o quarto de dormir. A área contida sob as duas portas do
o corpo, mas é também aquela que permite a flexibilidade ao tecido armário abriga os pertences de Lilian e está lotada. Lilian e Juliana, ao
necessária a uma roupa que veste um corpo em dança, aspecto que será mesmo tempo em que me mostravam as roupas, escolhiam o que vesti-
analisado no capítulo seguinte. riam naquela noite. Pegaram uma blusa justa, em malha de poliamida,
de mangas bem curtas. Juliana pensou em usá-la, mas Lilian disse a ela
que aquela não era “legal”, pois era “blusa de igreja”. Perguntei por que, já
que se tratava de uma blusa justa e confeccionada na mesma malha em
que muitas blusas que elas usam para a festa. O problema, disseram, era
a cor da blusa, branca. Eu contra-argumentei dizendo que estou acostu-
mada a vê-las vestindo branco no baile. Disseram então que a blusa era
“muito fechada”. “Muito fechada”, neste caso, diz respeito às pequenas e
justas mangas da blusa e às costas e aos ombros encobertos.

Uma olhada no guarda-roupa de Lilian, nos momentos que antece-


dem à festa, confirma a importância que possui a fisicalidade do objeto,
o seu valor intrínseco, quando se define a roupa que é apropriada para
um baile funk. Estávamos mais uma vez reunidas em número de quatro,
desta vez no quarto de Lilian, acompanhadas de sua irmã Lenita, que Mostraram-me uma “blusa de alcinha”, com três babados, um deles
tem dezoito anos e é casada, e de sua amiga Juliana, com dezessete anos. enviesado. Disseram, mais uma vez, que a peça era adequada para ir
Lilian me mostra uma calça que já estava separada. Era uma peça de à igreja ou à festa de quinze anos, mas não para se usar em um baile
malha fina branca, com o cós virado para fora, como uma continuação funk. Eu, mais uma vez, estranhei a classificação das moças, pois desta
da calça, e franzido em suas laterais por um rolotê24 do mesmo tecido. vez a blusa era decotada, deixando à mostra as mesmas partes que um
A perna da calça era justa em sua parte superior e bem larga do joelho corpete deixa, por exemplo. Contudo, me responderam, apesar de deco-
para baixo, o que pude constatar depois, ao ver a peça vestida por Lilian. tada, a blusa era “social”. Confeccionada em um crepe fino e translúcido,
a peça de roupa não poderia nunca ser ajustada ao corpo, mas sem-
24 Tipo de “cadarço” geralmente feito do mesmo material do qual é confeccionada a peça de roupa.
pre “solta”, distante do corpo. Mesmo que seu tecido seja elástico – uma

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seda misturada ao fio de elastano –, era fino demais e jamais poderia ser Lenita disse achar bonita. E dessa vez ficou satisfeita. A calça realçou
utilizado na confecção de uma peça de roupa justa. Essas duas blusas o contorno de suas nádegas e deu destaque aos seus quadris. Permitiu
eram, portanto, muito diferentes do corpete que Lilian e Luana usaram ainda notar a leve sombra que sua minúscula calcinha fazia, estivesse ela
no sábado anterior, que deixa colos, ombros e parte superior das costas de frente ou de costas. É interessante chamar atenção para o fato que esta
à mostra, além de ser justo, elástico e modelar o corpo. calça, a mesma que Lilian me mostrou logo no início desse encontro, já
Podemos assim destacar duas características da materialidade da estava separada, mesmo antes de Lilian haver experimentado a saia rosa.
roupa, a sua proximidade ou afastamento do corpo e o que permite ao Parece que em seu íntimo Lilian já desconfiava que a saia não lhe cairia
corpo expor, que torna a peça de roupa indicada para uma ocasião mas bem, não da maneira que lhe agrada sair para a festa.
não para outra. Vemos assim que a escolha não leva em conta somente Em seguida, Lilian aplica uma grande quantidade de creme de pen-
a leitura que o outro fará a partir do que usamos, como costumam tear sobre seus cabelos. Conforme os penteia, limpa na toalha o excesso
defender as abordagens simbólicas sobre a moda, mas envolve uma do produto que se acumula no pente de dentes largos. Seus cabelos
série de outros aspectos, inclusive as características físicas do objeto. estão pretos, brilhosos e anelados. Agora finalizará seus preparativos se
Continuemos acompanhando Lilian, Juliana e suas escolhas estéticas. maquiando. Passa nas pálpebras, junto aos cílios, um lápis branco e, na
parte inferior interna do olho, um lápis verde claro. Para encerrar a pin-
a escolha tura do rosto, ela passa um gloss25 cremoso e cintilante, em tom de rosa
bem claro.

A blusa que acompanhava a calça de Lilian era rosa claro, bem


Após o banho, Lilian chega ao seu quarto com os cabelos molha- curta, decotada em V, sem mangas. Dependendo do ângulo de obser-
dos, enrolada em uma toalha e as alças de um sutiã rendado vermelho à vação, era possível ver o sutiã vermelho rendado saindo muito discre-
mostra. Traz em suas mãos um grande pote de creme, de uns 2 palmos tamente pelo decote da blusa. Perguntei a ela porque usava sutiã com
de altura. Esses frascos costumam ter de 900 a 1000 gramas do produto. aquela blusa. Disse-me que era “pra ficar mais cheio”. Quando se olhou
Sem tirar a toalha, Lilian veste uma saia na malha “darlene”. Logo que pronta no espelho disse que hoje estava saindo “de um jeito que não
cheguei ela me avisou que vestiria saia para a festa, mas “saia comprida”, gostava”, com a barriga de fora.
diferenciando assim a sua roupa da minissaia que Juliana pretendia usar. Pode ser que de fato Lilian não goste de sair com a barriga à mostra,
A saia de Lilian é enviesada na barra e o seu comprimento ultrapassa o o que não significa que ela não goste de valorizar seu abdômen, ainda que
joelho. Na cor fúcsia, um tom de rosa forte, a saia possui uma faixa na o mostre em momentos específicos. Vimos que no sábado anterior Lilian
cintura, na verdade abaixo desta, feita no mesmo tecido do restante da levantou sua blusa já dentro do clube. Além disso, ela havia trocado o
peça. Lilian se olha no espelho mas não gosta do que vê. Não deixa claro
o motivo de seu desagrado. O que eu pude notar foi que a saia não real- 25 Tipo de batom líquido que pode ser acondicionado em uma pequena bisnaga com bico, apli-
çou o seu corpo da mesma maneira que a calça azul usada no outro fim cando-se o produto diretamente sobre os lábios, ou contido em um pequeno tubo de vidro
ou plástico rígido, do qual se retira o produto com um pequeno pincel cuja ponta é feita de
de semana. Lilian resolve colocar a calça branca, a mesma que sua irmã esponja, aplicando-se com o mesmo a maquiagem sobre o lábio.

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piercing de seu umbigo. Lilian tem uma coleção desses piercings e se inte- sem bolsos e com o cós em forma. Também não gostou. Experimentou
ressa pelos novos modelos do gênero quando os vê em alguma colega. uma segunda minissaia, em jeans escuro, da qual gostou. Vestiu então
Fez o furo no umbigo há cerca de um ano. O piercing de sua sobrancelha a blusa rosa que usava quando cheguei, mas de uma maneira diferente
é mais recente e disse não havê-lo trocado por não possuir outro. e que dava mais destaque aos seus seios. Passou a parte da tira que fica
Lenita também tem um piercing em sua barriga. Quando o mencio- entre os trapézios por trás do pescoço e amarrou-a aí. Seguiu com a
nei, ela pareceu gostar de meu comentário, encolhendo sua barriga antes minissaia em jeans azul escuro e a blusa no mesmo tom e tecido de que
de se aproximar de mim para que eu o olhasse melhor. Juliana disse que eram feitos a blusa que vestia Lilian.
ainda irá fazer o seu. Lilian e Lenita possuem abdomens lisos, sem qual-
quer sinal de flacidez. Juliana, ao contrário, tem seu abdômen pouco
tonificado, de aparência mais flácida, com alguns sinais de celulite, ainda
que Juliana seja uma moça magra.

Juliana se transformou com a produção para a festa. Soltou seus


cabelos, presos todo o tempo, mesmo quando voltou com eles molhados
do banho, e aplicou o mesmo creme que Lilian usara. Calçou uma san-
dália bem alta, que amenizou sua pequena estatura. O calçado é de salto
e plataforma, com a parte que fica sobre o pé em um couro sintético cor
de sola e adornada por pequenas tachas prateadas. A sua base é feita em
um tipo de resina que imita a madeira, no mesmo tom das tiras da parte
Como Lilian, Juliana passou por um processo de escolha da roupa de cima. Juliana pintou os olhos passando na área próxima aos cílios de
que usaria. Logo que cheguei, Juliana vestia uma blusa em tom de rosa suas pálpebras o mesmo lápis branco usado por Lilian, e um batom rosa
claro. A blusa era composta de três partes. Uma que cobria toda a circun- claro cintilante sobre seus lábios.
ferência do tronco, partindo da linha do busto e terminando um pouco Todas as peças de roupa experimentadas por Juliana, com exceção
abaixo do umbigo. A esta parte estavam presos dois trapézios feitos na do short de lycra sob a saia, foram retiradas do armário de Lilian. Este é
mesma malha, que tapavam o busto. Pela parte superior dos trapézios um costume bastante comum à relação de Lilian e suas amigas, e entre
passava uma longa tira, feita como um rolotê, que era amarrada por muitas moças de outros grupos que conheci ao longo de meu trabalho de
trás do pescoço. Como descrito antes, Juliana pensou em usar a blusa campo. No sábado anterior, quando Lilian estava acompanhada de Lana
branca de malha de poliamida com as pequenas mangas, a mesma que e Luana, esta última descrevia uma saia que havia comprado e que havia
Lilian descartou de imediato dizendo ser boa para usar em cerimônias emprestado a uma quarta amiga, Gabi. As duas meninas disseram então
da igreja. Já havendo decidido a blusa que usaria, Juliana foi ao banho e já ter visto Gabi diversas vezes com a dita saia, e Lana completou, mani-
voltou. Ainda enrolada na toalha, Juliana colocou um pequeno short de festando em seu tom de voz o seu desagrado, que Gabi, quando pegava
malha de lycra, fazendo às vezes de calcinha. Passou então para a escolha uma peça de roupa emprestada, demorava muito a devolver. Lilian e
da peça inferior que usaria. Experimentou uma minissaia em jeans claro, Luana disseram então que ela, Lana, reclamava, mas estava usando uma
sem elasticidade, com a bainha desfiada e acompanhada por um cinto calça da amiga, e que a usava sem que ela o soubesse. Lana disse então que
largo, sem furo e feito no mesmo tecido. Juliana não gostou da saia por usava a calça porque todas as suas estavam lavando e que a referida amiga
ela ficar “caindo”. Provou então uma calça jeans stretch, em tom escuro, é “cheia de calças”. Andréia, 20 anos, de outro grupo, coloca à disposição

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de sua prima seu armário para que esta possa “xêpar” ali suas roupas, isto ser feito em um elástico muito mais maleável que o original, que nas
é, buscar algo novo mas que não lhe custe muito caro, na verdade que versões anteriores comprimia a cintura de quem o usava. O cinto que
não lhe custe nada, para alguma ocasião. “Xêpar” significa então pegar Lúcia usava era todo rebordado de lantejoulas brancas nacaradas em
emprestado e não comprar, ainda que a possibilidade de se permanecer tons de rosa e azul claro. Parece que estamos diante de uma releitura da
um período mais longo com a peça não seja tão remota assim, como releitura. Quando o assunto é a circulação dos objetos e gostos é mais
mostra o episódio que envolveu Gabi, Lana e algumas peças de roupa. factível nos referirmos a uma circularidade dos mesmos, uma vez que
Jussara, de um terceiro grupo de moças, em uma segunda-feira, voltava torna-se difícil precisar o início ou o fim de uma trajetória.
para casa com uma “mala” de roupas que vinham sendo acumuladas na Retornando à escolha, a maneira pela qual essas moças se relacio-
casa de sua “colega”, pois é lá que costuma se arrumar antes das festas, nam com a seleção do item proveniente do universo de possibilidades
trocando com as amigas peças de roupa e acessórios. que o guarda-roupa de uma amiga apresenta faz lembrar, muitas vezes,
Lúcia, que faz parte de um quarto grupo, frequentemente recorre ao o processo de seleção que ocorre ao se eleger o objeto que será adquirido
guarda-roupa de sua prima e vizinha Paula, em busca de novidades, por em uma loja:
ser este muito “bom” para roupas funk. Recentemente nos encontramos Na compra, o vasto atoleiro dos bens possíveis é substituído pela especifici-
no baile do Clube do Boqueirão. Eu já havia encerrado a pesquisa de dade de um item particular. O grau extraordinário da especificidade desse
campo para esta dissertação, e lá marcamos para um último encontro item torna-se aparente quando ele é contrastado com todos os outros bens
não eleitos. Além do mais, essa especificidade é relacionada a uma pessoa,
antes da passagem de ano. Lúcia me mostrou então o cinto que trazia o comprador ou o usuário futuro, e os dois são inseparáveis; isto é, a natu-
sobre sua minissaia jeans e disse que “as meninas estão usando muito”. reza específica daquela pessoa é confirmada na particularidade da seleção.
Perguntei a ela onde havia comprado e ela me respondeu que pegara “no (MILLER, 1987: 190)
armário da Paula”, mas que podia ser adquirido no comércio ambulante
O momento da escolha permite perceber também as sutis diferen-
por cinco reais. O cinto é feito de uma tira larga de elástico, com cada
ças de significação que uma mesma forma pode assumir (MILLER, 1994).
uma de suas extremidades presas a uma fivela de metal. Estas peças são
Em uma outra noite na qual eu acompanhava Lilian e sua amiga Juliana
depois encaixadas uma na outra, fechando assim o cinto. Depois que
nos preparativos que antecedem a festa, as duas moças passaram por
Lúcia chamou minha atenção para o objeto, vi mais dois exemplares do
momentos de dúvida quando faziam escolhas dentro de um grupo de
mesmo na festa, em duas outras cores alternativas.
peças de roupas aparentemente substitutas. Em seu quarto, Lilian tro-
O que instiga no uso que Lúcia e as outras meninas fazem deste cava de roupa se olhando em um espelho estreito e comprido, com cerca
objeto é a maneira como se apropriam do mesmo, ressignificando-o. de 50 cm de altura e moldura de madeira adornada por decalques de
Este modelo de cinto é uma tendência na moda de maneira geral, e tra- borboleta, que era trazido do banheiro para este cômodo sempre que
ta-se de uma releitura de outra peça muito usada na década de 1980. necessário. A moça experimentou três blusas para se decidir pela defi-
Feito em malha de metal ou em elástico largo colorido, a peça original nitiva. Todas brancas, todas justas e elásticas, e todas decotadas. A pri-
remete à cintura alta que marcou a silhueta corporal da época. Nos anos meira blusa que provou era a mais singular das três. Do tipo tomara que
2000, o cinto ressurgiu na “alta” moda como um símbolo da subida dos caia, era parte do conjunto que formava com a calça branca que Lilian
cós das saias e calças, retornando assim para a cintura no lugar. Mas as usara na última vez em que ela estivera no Clube Santa Luzia, confec-
meninas do funk inserem-no em sua lógica própria, colocando-o sobre cionada no tecido “darlene”. A blusa tinha uma dobra sobre a parte que
os cós baixos de suas roupas: chamando atenção para os quadris e o ven- cobria o busto, franzida dos dois lados por rolotê que amarrava as late-
tre exposto. Adicione-se a isto o fato do cinto usado por estas meninas rais da blusa, sempre no mesmo tecido.

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saia godê, levemente rodada e ajustada na cintura por um cós largo. No
cós da saia estava aplicada a palavra sex, em letras de forma maiúsculas
feitas de metal prateado. Blusa e saia eram na mesma cor azul, mas em
tons distintos. A blusa era de Lilian e faz parte do conjunto formado
com a calça azul que ela usara no sábado anterior, a saia era em um tom
de azul turquesa suave. Ambas as peças eram em tecido “darlene”, sendo
a malha da blusa um jersey de viscose e a saia em malha de poliamida.
Juliana veio ao portão descalça, sem maquiagem e os cabelos presos
As duas outras blusas eram “corpetes”. Uma delas possuía a frente
em um rabo de cavalo. Quando entrei no quarto, Lilian saía do banho.
trabalhada em crochê bem estreito e vazado. Lenita perguntou à irmã
Lenita, a irmã mais velha e casada, que raramente vai ao baile, se juntou
de Lilian com que sapato ela iria naquela noite, e esta lhe respondeu que
a nós para acompanhar os preparativos das duas moças. Juliana se virou
usaria sua sandália rosa. Lenita chamou então atenção para o fato do
de costas e perguntou se sua saia estava “transparente”. Lenita disse pri-
detalhe da blusa combinar com a sandália, dizendo que “essa blusa fica
meiro que não, e acrescentou que era possível notar a sua peça de baixo
legal”. Foi só nesse momento que eu atentei para a cor do detalhe, que a
apenas “se ficassem olhando muito”. De fato podia se notar a sombra da
princípio me pareceu vermelho, e não um rosa-shocking, como depois
calcinha por baixo da saia de Juliana. A moça, que resolveu experimen-
foi-me esclarecido. Quando a olhei novamente, Lilian já experimentava
tar outras minissaias, todas retiradas do guarda-roupa de Lilian, teve
a terceira blusa, um outro “corpete”, igualmente em malha de poliamida
muita dificuldade de encontrar a saia que lhe satisfizesse e por diversas
branca, cuja única diferença estava nas fitas de cetim branco que eram
vezes disse que não iria ao baile. Primeiro experimentou uma saia em
transpassadas por dentre ilhoses prateados e cobriam toda a parte cen-
jeans escuro, que disse estar “caindo”. Depois uma outra em moletom
tral da frente da peça. Estas fitas remetem às amarrações dos espartilhos.
stretch, da qual não se convenceu. Em seguida uma das meninas lhe
Lilian resolveu ir com esta última peça.
mostrou mais três saias, todas curtas e todas jeans. Juliana experimentou
no mínimo quatro saias, que aos olhos de um desavisado pareceriam
idênticas, ou ao menos plenamente equivalentes. Acabou se decidindo
pela saia em moletom stretch, que já experimentara e que Lenita disse lhe
cair bem, mantendo a blusa que vestia desde o início. Perguntou à amiga
sua impressão sobre o caimento da peça de roupa virando-se de costas.
Assim que saímos de casa, Juliana mencionou mais uma vez a saia
que usava, perguntando a Lilian se havia “vestido bem”. A amiga disse
que sim, “te deixou até com bunda”! A certa altura do caminho, como
Juliana, por sua vez, também encontrava-se em dificuldades para seguíamos a pé de Santa Teresa, bairro localizado na alto das colinas, as
chegar ao conjunto indumentário que a satisfaria naquela noite. Mas duas moças resolveram descalçar suas altíssimas sandálias para poderem
ao contrário de Lilian, Juliana estava verdadeiramente aflita, parecendo descer mais rapidamente as íngremes ladeiras do bairro. Ao longo de
estar certa que não encontraria o traje correto para aquela noite. Quando nosso percurso, Juliana, que é especialmente baixa, ouviu por duas vezes
cheguei, Juliana me recebeu na porta vestindo uma bata do tipo tomara comentários jocosos em relação à sua altura, mas não pareceu dar-lhes
que caia, presa por uma tira que parte do centro do decote e é amar- crédito. Quando calçaram novamente as sandálias, Juliana começou a
rada na parte posterior do pescoço. O traje era completado por uma reclamar que as suas haviam se alargado. O que de fato me pareceu muito

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curioso, uma vez que era de se esperar que estas lhe parecessem aper- primo. Foi até uma das escadas, mas o segurança proibiu-a de descer por
tadas, já que os pés tendem a “inchar” após uma caminhada vigorosa. ali, pois a mesma era destinada para que os dançarinos que chegavam à
Juliana reclamou mais uma vez, parou para ajeitar as sandálias, e então festa subissem para os salões. A moça tomou a outra escada e no andar
disse: “Tá tudo dando errado hoje. Eu não devia ter vindo”. Eu perguntei térreo do clube passou pelo segurança sem lhe avisar que retornaria. Ao
o que havia de errado. Juliana então me contou que além da sandália, que voltar, Juca a impediu de entrar na festa, chamando sua atenção e dizen-
agora estava larga, “começou com uma blusa nova” que comprou e, ao do-lhe que na próxima vez ela deveria avisar antes de sair. Entramos no
vesti-la em casa, pela primeira vez rasgou. Perguntei como rasgou e ela clube e de repente Juliana caiu em choro, contando-me a discussão que
disse: “Não sei, sei que na loja vesti e não rasgou”. Nesse momento, Lilian tivera com o namorado. Em todos estes momentos a moça expressou o
interrompeu nossa conversa dizendo que não sabia que ela, Juliana, iria seu sentimento de inadequação ao dizer que iria embora do baile.
querer a saia que Lilian havia emprestado a uma outra amiga. Esta saia, Juliana sentiu-se verdadeiramente deslocada, alienada de si mesma.
na mesma noite, foi examinada ainda por uma quarta amiga, que não a O “não deveria ter vindo” ou os diversos “não tô com vontade de ir” e
quis usar. Parece que o pivô de todo o mal-estar de Juliana, trazido à tona “vou acabar desistindo” que proferiu enquanto se arrumava, parecem
e objetificado em sua vestimenta, foi uma sexta saia. dizer respeito ao desconforto que sentiu ao se dar conta de que não
Juliana não foi capaz de identificar em nenhuma das saias experi- encontraria a roupa que lhe satisfaria. Assim como um soldado não é
mentadas aquela que de fato lhe satisfaria. A moça, naquela noite, pare- um soldado violento e destrutivo sem a sua arma (GELL 1998: 21), Juliana
cia insegura como eu nunca a vira, ainda que sua insegurança pareça não é Juliana no baile sem a roupa que ela considera certa, a saia que irá
característica das moças de sua idade. Entretanto, o que este longo episó- fazer a mediação entre ela e os outros, permitindo que sejam travadas
dio deflagrado por uma escolha insatisfatória revelaria de extremamente relações sociais na festa. É nesse sentido que é possível compreender
interessante, sob o ponto de vista desta pesquisa, é de fato a indissociação como o artefato é um componente de sua identidade.
que se dá entre o papel social que um indivíduo assume em um ambiente Por outro lado, a tensão entre forma e significado, colocada pela
e os objetos com os quais ele se cerca para compor este papel. A persona escolha entre saias que pareciam equivalentes, é de fato uma discussão
social e as coisas encontram-se imbricadas (MILLER 1987; GELL 1998). sobre a importância da materialidade dos objetos. Por duas vezes Juliana
Juliana, como ela mesma pareceu pressentir, teve uma noite con- enfatizou que a saia tinha a qualidade particular de realçar os seus qua-
fusa, passando de fato por alguns transtornos. Assim que chegamos dris. Na primeira vez, quando Juliana quis saber como lhe havia caído
ao clube, ainda lá fora, ela demonstrou estar aflita devido ao ingresso a peça de roupa, ela virou-se de costas para que Lenita pudesse avaliar
de cinco reais que deveria comprar para o primo que, tudo indicava, o resultado da peça sobre o seu corpo. Na segunda vez, expressando
chegaria após às 23:30 horas, horário limite para uso dos ingressos com novamente sua insegurança por meio de um objeto concreto, Juliana se
desconto. Entramos no clube e ela se posicionou no pátio da entrada dirigiu a Lilian perguntando mais uma vez como lhe parecia a saia em
para esperar pelo primo. Lilian, impaciente, subiu para ir ao banheiro seu corpo. A amiga respondeu-lhe então que a saia “até” lhe deixara com
molhar os cabelos, quando a acompanhei. Retornamos e encontramos “bunda”. A saia caía-lhe muito bem, dando-lhe algo que não possuía.
Juliana já no salão do suingue. Um pouco depois ela veio se queixar do Podemos assim nos voltarmos para a importância que possui a rela-
fato de o namorado estar dançando com Lilian, no ambiente romântico. ção entre corpo e objeto para a compreensão do uso que se faz deste
Até então eu não sabia que Juliana tinha um namorado. Nós havíamos último. E esta será uma preocupação recorrente entre as moças: a rela-
chegado à festa sem qualquer companhia masculina, costume comum ção da roupa com o tipo de corpo valorizado. Já vimos Lenita referin-
entre muitas das meninas que frequentam o baile. Logo em seguida, o do-se a uma determinada calça como aquela que veste bem, que faz um
telefone celular de Juliana tocou e ela saiu correndo para encontrar o seu corpo bonito em sua irmã. Na mesma noite em que ocorreram todos

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os entreveros descritos acima, vimos Lilian indecisa em relação ao traje com os amigos “a semana toda pra chegar no baile e mostrar o corpo”. Já
que usaria, mas fez isso de maneira mais discreta e menos intensa. Além fez musculação em uma academia, mas “o dinheiro ficou curto” e passou
da dificuldade que encontrou para decidir a blusa que usaria, estava em a “malhar” na praça próxima à sua casa. Não na praça da Cruz Vermelha,
dúvida também em relação à parte de baixo que usaria. onde eu vi algumas pessoas se exercitando, um pouco antes de nos encon-
Lilian experimentou de início uma saia jeans, sem elastano. Lenita trarmos. Naquele local, me explica Eduardo, os pesos são “leves” e por
imediatamente reage dizendo à irmã que ela ficava bonita de calça, seu este motivo ele e os amigos fizeram halteres mais pesados, de cimento,
corpo ficava mais bonito, “aparecia”. Lilian, irritada, fala que para a para “malhar bíceps e supino”, os músculos dos braços, que deixam em
irmã “pra tá arrumada tem que tá de calça”. De saia, como estava, estava outra praça, chamada Bolero, também nas imediações de sua casa.
bonita, mas menos provocadora do que nas outras noites em que eu a Eduardo brinca com o efeito que a ginástica produz sobre o seu
vira. Mais tarde, quando seguíamos para o baile, em um dado momento corpo, dizendo que este termina por se assemelhar a um “funil”, já que
Lilian comentou que tinha “bunda pequena”, o que me soou muito estra- seus troncos e braços ficam desenvolvidos enquanto suas pernas ficam
nho naquele momento, pois esta não era a imagem que eu possuía em finas como as de um “sabiá”. Isto porque faz ginástica na rua e “fica meio
minha mente. Só mais tarde em casa, quando fazia minhas anotações de difícil malhar perna”. A não ser que ele jogue
campo, é que me dei conta de que a minissaia que ela usava não realçava
os pesos aqui em cima e fique só malhando panturrilha, agachamento.
seus quadris, seu corpo, da mesma forma como o faziam as calças. As Mas não vale a pena. É uma coisa meio cansativa... Mas o importante
calças destacavam as nádegas, fazendo com que se vissem maiores, real- mesmo é você tando grande em cima, embaixo você vai levando com o
çando os quadris. tempo. Porque a primeira visão da garota vai ser em cima, então...

Com a expressão “levando com o tempo”, Eduardo refere-se aos


os rapazes e as moças
usos de calça comprida para compensar as pernas pouco musculosas
A partir dos preparativos que antecedem a festa, vemos como as rou- que, em última instância, não são um problema. Uma vez que no baile
pas e os adornos eleitos estão diretamente relacionadas ao tipo de corpo ele tira a camisa e é no peito que as meninas “passam” a mão primeiro.
que elas valorizam. Em relação aos rapazes, a importância dessa rela- Usa sempre calças compridas, de pernas largas, sempre jeans ou pretas.
ção também é observada. Entretanto, enquanto as moças trafegam com Em hipótese alguma Eduardo vai ao baile de bermudas. Tampouco as
mais facilidade de um tipo de roupa para outro, o mesmo não se nota usa para ir ao trabalho, o que parece uma decisão interessante em uma
em relação aos rapazes. A minha observação da festa já me fizera des- cidade que no verão as temperaturas chegam a 45 graus. Eduardo tra-
confiar do fato de os rapazes parecerem mais fiéis a determinado tipo de balha em um restaurante na Rua do Rosário, para o qual segue a pé de
roupa. Uma investigação mais profunda do universo de roupas mascu- sua casa todos os dias, o que lhe toma cerca de 25 minutos andando. No
linos confirmou a minha hipótese. restaurante atende ao público, por detrás do balcão, servindo saladas.
Eduardo tem 22 anos e mora com a mãe e a irmã, em um aparta- Eduardo, de um certo modo, justifica o fato de não exercitar as per-
mento de sala e quarto, no Centro da cidade, próximo à Praça da Cruz nas por uma limitação orçamentária. Por não “malhar” mais em aca-
Vermelha. Ele se define como um rapaz “bastante eclético”. Frequenta a demia, onde sim teria disponível aparelhos adequados para trabalhar
festa do Baile do Boqueirão, assim como a feira de São Cristóvão ou as as pernas. Mas ele não parece efetivamente preocupado com essa área
danceterias do Arco do Teles: “onde tem... mulher eu tô”. Para ele a roupa de seu corpo, preferindo despender o seu esforço para ficar “grande em
não importa, já que ao chegar no baile, tirará “a blusa mesmo”: “tendo cima”. Acha “cansativo” trabalhar os músculos das pernas realizando
tempo para poder malhar... o importante é o corpo”. Eduardo se exercita os agachamentos, explicando que não “vale muito a pena”. Tampouco

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realiza exercícios aeróbicos, que o façam “suar” e “perder líquido”, dimi- que eventualmente ele os usasse. Mas não, são todos de Eduardo, que
nuindo assim o volume do corpo. O seu objetivo é “inchar”. O tipo de os usa sempre que sai de casa, seja para os eventos noturnos, seja para
corpo buscado por Eduardo se assemelha ao padrão corporal buscado trabalhar. Primeiro passa um hidratante por todo o corpo e rosto, com
nas academias de ginástica onde moças privilegiam o fortalecimento manteiga de cacau ou aveia, dependendo daquele que ele tenha em casa.
dos músculos dos glúteos e os rapazes dos braços (SABINO, 2000).26 Em seguida passa uma colônia, que ele chama de “cheirinho de bebê”, e
Como me disse logo no início de nossa entrevista, a blusa que Eduardo cujo nome original, escrito no frasco de plástico, é Baby Smell. Aplica-a
escolhe para a festa pouco importa, já que chegará no baile e a tirará: em todo o corpo, exceto no peito e nos pescoço, regiões nas quais aplica
o “perfume” propriamente dito, condicionado em frasco de vidro. Por
Na época que a gente tava malhando direto, tava todo mundo na acade-
mia, a gente ia pro baile, podia tá o frio que fosse, você ia vê a gente no fim, ele passa o desodorante antitranspirante.
baile sem camisa. Eduardo tem uma estética clean, quase ascética, que combina com
os cuidados que tem com o seu corpo. Não usa brincos, não usa piercing
Ainda assim, não pode ser qualquer blusa. Para a noite, Eduardo nem possui tatuagens, ainda que ele diga querer fazer uma. Não o fez
prefere as blusas do tipo polo, mas polo ou t-shirt, o importante é que porque sempre “acontece” algo que o impede. A primeira tatuagem quer
ela “defina” o seu tórax e revele os músculos de seus braços: “uma blusa fazer com um “cara de nome”, o que lhe custará “caro”. Eduardo não
que você mexa assim o braço e ela [a blusa] já subiu”, deixando à mostra fuma, apenas bebe. Não usa boné, item que ele diz ser usado pelos “ban-
sua anatomia. Em relação ao calçado, prefere os tênis, mas pode ir à festa didinhos”. Tampouco usa “blusas de botão”. É interessante que Eduardo
de sapato. Está planejando comprar um tênis, de marca estrangeira, que procura se diferenciar, através de sua roupa, do estilo “bandidagem”, que
viu em uma loja do Shopping Rio Sul – grande centro de compras no por sua vez é definido por Pedro, outro frequentador do baile, como
bairro de Botafogo, Zona Sul da cidade, e a cerca de 8,5 km de sua casa –, sendo formado pelo par calça jeans e camisa polo, justamente as esco-
mas não sabe se o custo da peça “vai tá dentro do orçamento”. Caso não lhas de Eduardo. O próprio Eduardo reconhece que ele sabe quem são
esteja, comprará um sapato, que deve ser sempre de “amarrar” e feito os contraventores porque os conhece, afirmando ser impossível reco-
de camurça, na cor “creme”, tom próximo do café com leite. O sapato nhecê-los pela roupa que trajam. “Bandidinhos” e “bandidagem”.
compraria de qualquer marca e pode ser adquirido em lojas de depar- Quando está frio, Eduardo “gosta de lançar uma touca”. Seus cabe-
tamentos, como C&A e Leader. À exceção dos tênis, as outras peças de los são curtos, sem qualquer tipo de elaboração ou detalhe, com exceção
roupa que usa podem ser adquiridas no “Reino de Camelot”, o centro do “pé tradicional” atrás do pescoço. Acha muito “amostrado”, exibido,
de comércio informal sediado nas imediações das ruas Buenos Aires e os rapazes que fazem desenhos e caminhos em seus cabelos, ou que os
Uruguaiana, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. descolorem. Considera mesmo “ridículo” esse tipo de adorno na área da
Eduardo, segundo ele mesmo, é extremamente vaidoso: “vaidade cabeça. Eduardo tem seus cabelos cortados a cada quinze dias. O rapaz
acima de tudo”. Faz depilação no “peito e costas”, pois não é “muito fã de tampouco usa relógio ou pulseira, apenas o cordão largo, de elos planos
pelo no corpo”. A também barba deve estar sempre feita. Me conta dos e prateados, que carregava sobre o pescoço quando eu o entrevistava. Ele
cosméticos que usa, trazendo do banheiro seu “kit básico para poder vestia uma camiseta regata canelada branca, que contrastava com sua pele
sair”, composto de quatro frascos. Não contenho minha surpresa e per- negra, um short em “microfibra” azul clara, lisa, e um “chinelo de dedo”,
gunto-lhe se aqueles quatro frascos não eram de sua irmã, imaginando que deixam à mostra suas pernas de panturrilhas finas. Todo o gestual
de Eduardo, enquanto conversávamos, parecia performado com o pro-
26 Essa concepção de corpo, de um feminino com glúteos e coxas desenvolvidos e um masculino
pósito de chamar a atenção para os seus braços. Movimentava-os cons-
de braços avantajados, impõe um julgamento moral sobre o tipo de exercício físico adequado a
um e outro gênero, o que parece subentendido na evitação de Eduardo dos exercícios de pernas. tantemente, posicionando-os de maneira que seus músculos retesassem.

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O gosto que rege a escolha das roupas de Eduardo apresenta, em “blusa polo” nem “blusão”, também chamadas de “blusa de botão”. Abro
muitos aspectos, um caráter de continuidade com o gosto das moças até aqui um pequeno parêntese para esclarecer melhor a nomenclatura uti-
aqui descrito. A relação que a roupa estabelece com o seu corpo é muito lizada pelos rapazes e moças para relacionar essas peças de roupa.
similar àquela estabelecida com o corpo da moça que chamou a minha “Camisa” se refere ao que até o momento chamei de t-shirt, inva-
atenção enquanto dançava no Clube Santa Luzia. A roupa de Eduardo riavelmente confeccionada em meia-malha de algodão, que pode ser na
encobre uma parte de seu corpo realçando outra. É verdade que o rapaz cor branca, mas também em cores únicas, preferencialmente vermelho,
esconde uma parte menos privilegiada de seu corpo, revelando a outra. amarelo, preto, azul-marinho, cinza e azul-claro. São decoradas com
Mas não se deve crer que todos os rapazes que mostram seus torsos des- estampas de desenhos ou dizeres, muitas vezes em inglês. “Camiseta” é
cobertos na festa, e que parecem desprivilegiar os membros inferiores a camiseta sem mangas. Estas, quando usadas para a festa, são confec-
quando da realização dos exercícios físicos, possuam “perninhas de sabiá”. cionadas em malhas de fio sintético e são, na maioria das vezes, pouco
A lógica que comanda a escolha obedece também ao jogo de esconder e decotadas nos ombros. Diferem das camisetas regatas, usualmente na
revelar que dá mais destaque a uma região do corpo e não à outra. É de cor branca e em malha de algodão, mais usadas como roupa de baixo,
fato muito incomum ver rapazes sem camisa vestindo bermudas. ou para “ficar em casa”. Eduardo, quando o entrevistei em sua residên-
Mas é claro, existe uma diferença fundamental entre a roupa de cia, usava uma destas, e Alex, ao nos encontrarmos pela primeira vez,
Eduardo e, por exemplo, a roupa de Lilian, e que diz respeito à proximi-
também usava um exemplar dessas camisetas regatas brancas por baixo
dade ou afastamento da roupa ao corpo. Esta é uma chave importante
de sua “camisa”, isto é, de sua t-shirt. Era um dia de aparência chuvosa e
para se acessar as oposições que se reproduzem por toda a estética da
a blusa de baixo era usada para, no caso de chover de fato, ele retirar a
festa. Entretanto, o que me parece extremamente interessante é que a
“camisa” de malha de algodão vermelha e ficar somente com a branca,
lógica das oposições binárias por si só não explica a roupa de um e de
evitando assim que a “blusa de sair” ficasse molhada quando a necessi-
outro sexo. Uma larga e em tecido plano, que não estica, e a outra justa
tava seca para o encontro. “Blusão” são as camisas feitas em tecido plano,
e em uma malha que estica em duas direções. Como veremos, Alex faz
de algodão ou viscose, abotoadas até em baixo e de mangas curtas. “Blusa
igualmente uso de roupas largas, mas que são escolhidas a partir de uma
polo” são camisas feitas em malha de algodão, em geral texturizadas e
lógica distinta daquela inerente às opções estéticas de Eduardo.
do tipo piquet, de mangas curtas, com golas feitas de “punho” da malha.
Alex é outro frequentador do baile do Boqueirão. Morador do
morro da Mineira, tem 19 anos e estuda no Colégio Souza Aguiar, o Alex não usa “blusão” para o baile porque entende que este deve ser
mesmo no qual estuda Guilherme, de quem falarei a seguir, e locali- acompanhado de calças compridas. E calça, mesmo jeans, ele não usa
zado nas proximidades da casa de Eduardo. Alex descreve assim a roupa para o baile em hipótese alguma, mesmo que esteja chovendo. Calça jeans
que usa para ir ao baile: “Blusa, bermuda, tênis... Só. Cabelim arrepia- usa somente para trabalhar, para a escola ou para “festa de 15 anos”. Neste
dim... [cabelinho arrepiadinho]”. Parece realmente simples, uma roupa nosso primeiro encontro, no Centro da Cidade, Alex usava calça jeans.
bastante corriqueira, mas espero mostrar como existe toda uma esque- Portanto, a roupa que Alex usa para dançar funk é a “camisa” larga
matização simbólica, regida por uma coerência específica, que leva às de malha, que pode ser substituída pela “camiseta”, sem mangas, e uma
escolhas feitas pelo rapaz. bermuda igualmente “larga” em microfibra, em geral lisa, sem estampa e
“Blusa” é um termo quase genérico que reúne em si as distintas cate- em cores neutras, como o “creme” ou o “cinza”. O rapaz nunca usa sapa-
gorias nativas utilizadas para designar as diversas peças de roupa utili- tos, nem os possui. Nos pés calça sempre tênis, para a festa ou para o coti-
zadas diretamente sobre a parte de cima do corpo. Alex usa para ir ao diano. Durante o dia usa seu par de tênis da marca Adidas, importado.
baile blusas com ou sem mangas, isto é, “camisa” ou “camiseta”. Não usa Diz que não os usa para o baile por ele estar “mais surradinho”, deixando

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para aquela ocasião seus pares da marca Nike, também importados. A intimidade, vai
São duas variantes que ele possui da marca: o “doze molas” e o “quatro que conquistô toda cidade
a intimidade, oi
molas”. A primeira é mais valorizada pelo rapaz, que a comprou de um
que revelô minha identidade
“cara que traz”, pois não a encontrava em lojas. Mas enfatiza que os seus
tênis Nike são distintos das versões “falsas” encontradas no Mercado Abrindo o zíper da calça
Popular da rua Uruguaiana, mais “largas” e sem o “olho de gato” que faz tu vai ficá toda molhadinha
quando os muleque Don Juan
a logomarca da empresa “brilhar” no escuro. Alex afirma que não cos- derem palhinha de sunguinha27
tuma comprar na “Uruguaiana”, como ele designa o mercado informal
estabelecido na rua de mesmo nome, no Centro da Cidade, conhecido É interessante que Alex se refere aos corpos como os de Eduardo
pela venda de simulacros de peças de roupas de “marca”. Alex diz que aí como do tipo “sorvete”, similar ao “funil” utilizado por Eduardo, e diz
comprava “muito” quando era “mais novo”, ainda que usasse duas pul- ainda que eles possuem “perninha de sabiá”, mesma categoria utilizada
seiras de borracha, nas cores preto e branco, compradas naquele local. por aquele rapaz. Alex diz que quando “malhava” gostava de mostrar o
Em dias de “muito frio” Alex adiciona ao conjunto formado por corpo, mas sem tirar a blusa. Opta por uma camiseta sem mangas, que
“camisa”, bermuda e tênis, vestido para ir ao baile, um “casaco” de mole- revela os braços mais fortes graças às sessões de musculação. Aproveita
tom e zíper. Mas Alex, naturalmente, não obedece apenas a uma lógica ainda os momentos de calor transformando-os em oportunidade para
utilitária quando lança mão de seu casaco. Mesmo em dias considera- mostrar o seu corpo. Se abana com a própria camisa ou camiseta, levan-
dos frios no Rio de Janeiro, portar, todo o tempo, um casaco em um tando-a e deixando à mostra a sua região abdominal. Expõe assim o
baile funk pode ser um incômodo. Após alguns momentos na festa, a corpo “inchado” chamando a atenção das moças, que podem correspon-
temperatura do corpo sobe e a “lógica” seria retirar o casaco e procurar der a Alex, ou a qualquer outro rapaz, dizendo “ô calor”! As moças, mui-
alguém que o guarde até o final da noite, como faz Guilherme e como eu tas vezes, acrescentam à expressão oral uma expressão corporal, se aba-
mesma fiz. Mas Alex soluciona esse “problema” de maneira alternativa. nando com as mãos como se de fato sentissem calor. A interjeição, nesse
Procura um “canto”, uma área da festa mais calma, arregaça as mangas caso, possui um duplo sentido. O calor de que falam as moças diz respeito
de seu casaco, e se abana um pouco com o mesmo, abrindo e fechando tanto ao efeito que as altas temperaturas causam quanto ao estado de
o agasalho, até que o “sangue esfrie”. excitação que pode promover a visão de um corpo “molhadinho e suado”.
Alex não tira a blusa no baile, debochando daqueles que o fazem,
Eu não tô falando do sol
dizendo que, não importa o frio que faça, eles tiram a “camisa” para mos- que fez quando eu fui à praia
trar o “corpinho malhado”, enquanto ele e os seus colegas estão de casaco. Eu tô falando é da gatinha
que tá usando minissaia
Quando os muleque Don Juan Rebolando com o som do tambor
invadirem a cidade Essa gatinha no baile
exibindo todo o seu corpo tá me deixando com muito calor
revelando a intimidade Ô calor, ô calor...28
Mas é só pras juanitas
que nós vamo amostrá
abrindo o zíper da calça
os Don Juan vai te mostrá 27 Intimidade, cantada pelo grupo Don Juan, canção nº 22 no CD em anexo.
28 Ô calor, artista desconhecido.

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A canção, como muitas outras, se refere a uma situação que ocorre por coloridos elásticos de silicone. Atualmente o rapaz usa seus cabelos
na festa. Moças e rapazes se utilizam da expressão “calor” para indicar curtos, cortados por máquina, sem qualquer detalhe, a não ser o “pé”.
que acharam alguém atraente, o que no entender de Alex significa “dar Se antes, por ser adornado, e somente por isso, o cabelo de Guilherme
mole”, revela o desejo de namorar. se aproximava do estilo de cabelos usados por Alex, hoje o corte de
Entre os quatro elementos destacados por Alex como formadores Guilherme o aproxima do estilo clean usado por Eduardo. E Guilherme
do conjunto apropriado para se ir a um baile funk, está o “cabelinho é assim, transita muito bem entre os dois polos estéticos e pela cidade.
arrepiadinho”. E este constitui capítulo, ou sessão, à parte no quesito O rapaz, por possuir uma motocicleta, se desloca com facilidade, fre-
indumentária e adornos corporais masculinos. Por ora, é importante quentando as festas funk do Centro, os clubes noturnos de Ipanema e
frisar que Alex corta seus cabelos a cada quinze dias e realiza neles os as discotecas da Barra da Tijuca. Essa flexibilidade se reflete em suas
caminhos, desenhos e tingimentos desprezados por Eduardo. roupas. No Clube do Boqueirão vejo um dia Guilherme vestindo shorts,
Alex usa ainda brinco em apenas uma de suas orelhas, um discreto não bermudas, de tactel floridos em dois tons de azul, acompanhados
cristal redondo e vermelho, acompanhado de um cordão curto, dourado de “camiseta”, sem mangas, em tom idêntico ao azul mais claro do short.
e bem fino, colocado em seu pescoço. Boné usa os que são “apertadi- Enfatizo ser um short mais curto do que a bermuda, seu comprimento
nhos na cabeça”, distinguindo-os dos largos usados por “tocadores de ficando cerca de um palmo acima dos joelhos, pelo fato de não ser esta
rap americano”, citando como exemplo os nomes dos artistas 50 Cents e uma peça de roupa que tradicionalmente encontramos nos bailes. Nesta
Snoop Dog. Considera “feião” o estilo hip hop de se vestir, composto por noite Guilherme poderá trazer sobre a cabeça um boné, também em tom
“blusão grande, cordãozão, calça até a canela...”. Alex diz que não gosta de azul. Em outra noite, chuvosa e fresca, Guilherme poderá ser visto no
nem do estilo de se vestir nem da música hip hop, e aproveita os momen- baile vestindo calça comprida, feita em sarja de algodão na cor mar-
tos em que esse tipo de música é tocado no baile para ir para o suingue.29 rom, acompanhada de camiseta regata em malha vermelha de algodão
Vejamos agora o gosto de Guilherme, que a meu ver se encontra a e cavada nos ombros, portanto, mais uma vez distinta das blusas sem
meio caminho dos gostos manifestos por Alex e Eduardo. Guilherme mangas mais usadas no baile, geralmente pouco cavadas nos ombros
mora no bairro do “Santo Cristo”, em um edifício muito próximo ao e em tecido sintético, como a azul que ele usava na noite anterior. Na
Morro da Providência. Ele frisa que, apesar da proximidade com a favela, noite chuvosa vestirá ainda uma jaqueta jeans que, no caso de sentir
mora em um “condomínio”. Está assim no “pé do morro”. Não mora nem calor, o rapaz deixará com algum dos seus conhecidos que trabalham
na favela propriamente dita, como Alex, nem na rua, como Eduardo. fazendo a segurança da festa. Em uma terceira noite Guilherme poderá
Guilherme usa um cordão dourado, do mesmo comprimento que usa vestir shorts, e de repente tirar sua camisa, e em uma quarta ocasião,
Alex e Eduardo, mas mais grosso que o do primeiro e mais fino que o novamente usando shorts, vestirá blusas de time de futebol. Em todas
do segundo. Tem em suas orelhas um par de brincos bastante visíveis, as noites Guilherme poderá ser visto calçando tênis. Ultimamente tem
composto por cristais redondos arrumados de maneira a formar uma usado o Nike Shox de 12 molas, como o que possui Alex. Esta é a única
flor. O brinco usado por Guilherme, que jamais é usado por Eduardo, peça de sua indumentária que permanece, não importando o tipo de
e que Alex usa em apenas uma de suas orelhas, é bastante caracterís- roupa que Guilherme vista.
tico da indumentária masculina hip hop. Quando o conheci, o rapaz É preciso dizer que, como Eduardo, Alex e Guilherme também
usava o cabelo todo trançado, onde as tranças soltas eram arrematadas usam perfume, ainda que estes últimos não enfatizem o seu uso. Como
as moças, que trazem o marcante cheiro adocicado dos cremes passa-
dos em seus cabelos, reforçado pelas constantes balas e chicletes que
29 Hermano Vianna (2003b) já chamou atenção para a presença de um certo “descaso para com
os mandamentos da indumentária hip hop” na cena funk carioca. ingerem, também de aroma adocicado, que se unem aos perfumes que

112 113
passam ao sair de casa, os rapazes também têm o seu aroma caracterís- jeans azul royal e um corpete em malha de renda branca. Carla, que é
tico. Depois de um longo tempo, descobri que este se refere ao perfume clara, tem os cabelos lisos, alourados e ondulados, é mais baixa do que
produzido pela empresa Natura, chamado Kaiak. O perfume completou Lúcia, vestia blusa vermelha sem manga, em malha de poliamida, e calça
dez anos de existência e foi então lançada uma nova versão, de aroma de moletom stretch azul bem claro arrematada por um cinto vermelho.
muito similar, chamada Kaiak Ventura. Vera vestia calça como a de Irene e uma blusa branca em malha de polia-
Vimos que Alex e Eduardo não abrem mão de seu estilo. Com a mida. E a última moça, que não conheci, vestia uma calça de moletom
descrição dos rapazes, procurei mostrar como, no caso masculino, for- stretch em tom de azul royal, similar à de Lúcia, e uma blusa na cor pink,
mas de se vestir estão de certa forma relacionadas a visões de mundo em malha de poliamida.
e estilos de vida específicos. Mesmo Guilherme, que não possui uma Hoje sei que a homogeneidade que observei nesta noite não perma-
maneira rígida de se vestir, apresenta a mesma relação de continuidade nece quando as moças saem juntas para dançar no Clube do Boqueirão,
com seu estilo de vida, na medida em que este se apresenta tão flexí- local para o qual retornou a festa, a partir de maio de 2005. Depois que
vel quanto o seu gosto. As moças, por sua vez, ainda que demonstrem a festa foi retomada no clube do Boqueirão, me aproximei de Lúcia, a
grande facilidade em intercambiar os tipos de roupas usados, demons- moça que das seis descritas acima mais chamou a minha atenção. Lilian
tram uma preferência pessoal por determinado tipo de roupa. Pode se não estava mais frequentando o baile e era preciso que eu encontrasse
dizer que em um mesmo grupo de moças, que possuem estilos de vida um novo grupo de moças. Então, em uma noite específica, segui para o
e visões de mundo equivalentes, estão presentes formas distintas de se baile determinada a travar contato com alguma das moças que eu via
vestir. O ponto que tento colocar ficará mais claro a partir da descrição com mais frequência no ambiente funk. Eu tinha em mente duas pes-
da indumentária feminina, que realizo a seguir. soas: Jussara e Lúcia. Após a noite em que vi o seu grupo dançando ao
Em minha primeira noite no Clube Santa Luzia notei o grupo de som do MC Mr. Catra, vi Lúcia mais algumas vezes no baile. Então, nesta
Lúcia e suas amigas. Elas assistiam ao show do MC Mr. Catra, muito pró- noite de sábado em que eu havia decidido encontrar uma nova interlo-
ximas ao palco. Mr. Catra cantou muita música “pesada”, de “putaria”. As cutora, vi a moça passando enquanto aguardava na fila das meninas para
moças dançavam com o ar sereno e um tanto sério que lhes é caracterís- poder entrar. Entrei no clube e fui para a quadra de esportes. Quando
tico. Davam um show à parte. As roupas faziam uma bela composição, me viro, lá está Lúcia, acompanhada de uma outra moça que mais tarde
na verdade, somavam à composição. As seis vestiam calças de moletom vim saber ser sua irmã. Me apresentei, expliquei um pouco o que fazia,
stretch, três delas em tom de rosa. e trocamos telefones. Lúcia se tornou minha interlocutora mais assídua.
Sofia, que é clara, alta e magra, com cabelos longos alourados, lisos E foi através dela que de fato entrei na festa.
e arrepiados, vestia um corpete preto, com amarração cruzada nas suas É preciso chamar atenção para o fato de Alex ser colega de Lúcia
laterais, acompanhado de uma calça de moletom stretch rosa. Irene, que também. Trabalham todos na mesma empresa30 e muitos deles moram
é morena, alta e gorda, com os cabelos negros na altura dos ombros ane- em favelas que circundam o Centro da Cidade. Lúcia tem 18 anos e mora
lados, vestia um corpete em malha de poliamida branca e uma calça de no Morro da Coroa. Vera tem 19 anos e mora no Morro dos Prazeres.
moletom stretch. A calça era em um tom de rosa forte, quase pink, mas Alex tem a mesma idade e mora no Morro da Mineira. Sofia, a mais
mais suave que este, e toda perfurada. O alinhamento de seus furos era nova, tem 17 anos e mora no Morro do Zinco. Carla tem 18 anos, já
tal que formava o desenho de estrelas. Sob a calça, cobrindo a região dos
quadris, via-se um short na mesma cor. Lúcia, tão magra quanto Sofia 30 Quando os conheci, todos eles trabalhavam na mesma empresa, a agência financiadora de pro-
jetos Finep: Lúcia, Vera, Sofia, Irene, Carla e Alex, além de outros rapazes que conheci coletiva-
e alta como Irene, tem uma pele cor de canela e os cabelos avermelha- mente. Hoje, desses seis jovens cujos nomes cito, apenas Lúcia e Sofia permanecem trabalhando
dos longos e cacheados. Usava uma calça de moletom stretch em tom de na empresa. Irene trabalha atualmente em outro local e os outros três estão desempregados.

114 115
morou no Morro da Coroa e hoje vive em um apartamento no Catumbi, de fato, é a única das moças que jamais vi alternando modelos. Veste
próximo ao Morro da Mineira. E Irene, com 19 anos, mora em um edifí- sempre calças, e sempre de moletom stretch.
cio de apartamentos, conhecido como “Balança mas não cai”. É curioso O ponto interessante é que é possível dizer que Lúcia, Vera e Sofia
que, apesar de morar em um edifício de apartamentos, ela não se con- estão para a estética feminina, assim como Alex está para a estética mas-
sidera moradora da “rua”, pois se refere aos “playboys” e “patricinhas” culina do baile. Explico melhor o meu ponto. Ao se olhar o baile funk do
como moradores da “rua”, ou da “pista”, marcando, com desprezo, a sua Clube do Boqueirão de “cima”, como se tomando uma vista panorâmica,
diferença em relação a eles. se notará que a grande maioria dos rapazes se veste como Alex. São os
Poderíamos tentar fazer com Irene, Carla e uma das meninas que correspondentes masculinos do gosto feminino representado por Lúcia
moram de fato em uma favela o mesmo tipo de análise feita com Alex, e suas colegas. Como a própria Lúcia define: “Os meninos vão mais de
Eduardo e Guilherme, pois o primeiro mora no alto, o segundo em baixo bermuda. Tênis. Vai chamar a atenção da gente”. Ou na descrição de
e o terceiro seria o trickster, o operador binário, que transita ambigua- Carla: “Ah, camiseta, tênis, boné... um estilo... coloca um brinquinho, faz
mente entre os dois domínios. O exercício, entretanto, não se justifica na um negócio no cabelo, um desenho...”.
medida em que as moças, ao contrário dos rapazes, não transitam este- Então o que temos de um lado é o estilo masculino representado
ticamente por diferentes domínios, como no caso de Guilherme, nem por Alex, predominante no baile do Boqueirão e que não irá apresentar
pertencem a distintos domínios estéticos, como ocorre com Eduardo variações marcantes no nível individual. Ele é definido pelo trio t-shirt,
e Alex. Carla, Irene e as outras garotas, apesar de morarem umas mais bermuda e tênis. Do outro temos o estilo feminino, mais complexo e
na favela do que as outras, possuem o mesmo gosto. As variações que difícil de ser definido a partir de um único conjunto indumentário. O
apresentam estão no nível individual. Mas a estética que elas “seguem” que sim é possível dizer é que os dois estilos, feminino e masculino, se
corresponde a um mesmo ethos, o que não se dá entre os três rapazes. opõem e isto pode ser acessado pela proximidade ou distância da roupa
Alex e todos os seus colegas, que são, dentre outros, os garotos que tra- ao corpo. Essa é a base no que diz respeito à vestimenta. Em relação aos
balham na Finep, usam bermudas, blusas e tênis para ir ao baile. A única adornos corporais, chama atenção o tipo de investimento feito sobre os
variação que pode ocorrer se dá em relação às blusas, que podem ser as cabelos por um ou outro gênero. Comecemos por este último traço a
“camisas”, “camisetas” ou “blusas de time”, ainda que se veja predominar análise estilística que segue no próximo capítulo.
a primeira delas, isto é, as t-shirts de malha de algodão. O mesmo ocorre
com Eduardo, que conta que quando estava “todo mundo malhando
junto” se exercitavam durante a semana inteira para no fim de semana
“chegar no baile e tirar a blusa”.
Após muitos bailes e conversas, sei hoje que as meninas, ainda que
variem o tipo de roupa vestida, possuem suas preferências pessoais em
relação às roupas e adornos corporais que usam para a festa. Isto eu
pude observar e foi-me dito por elas. Atenho-me a três das moças cita-
das acima pelo fato de as três serem as presenças mais constantes nos
bailes em que estive. Lúcia tem uma clara preferência por minissaias
jeans, mesmo que use calças de moletom stretch e vestido para ir à festa.
Sofia usa frequentemente as saias “darlene”, ainda que eu já a tenha visto
usando calças de moletom stretch, como as que usa Vera. Esta última,

116
Capítulo 4
As marcas estilísticas

Neste capítulo procurarei mostrar, ao devolver a estética ao seu contexto,


como o gosto por roupas e adornos corporais está comprometido com o
corpo do dançarino em movimento. O estilo que dela deriva está relacio-
nado, ou melhor, adquire sentido pleno, quando inserido na festa. Parto
assim da noção básica formulada por Geertz (1997). O autor defende
uma abordagem semiótica da arte, na qual as manifestações estéticas
remetem umas às outras e ainda aos valores do grupo, indicando uma
conexão entre arte e vida coletiva. Toda manifestação artística só pode
ter o seu significado apreendido quando inserida no todo da vida social.
Assim, os objetos estéticos usados por um grupo social são inseparáveis
de sua própria vida, de sua visão de mundo, e portanto a atribuição de
significado é sempre local. A indumentária não se constitui em expres-
são isolada dos outros aspectos do baile. Lagrou (1998) propõe uma
análise intersemiótica, em sua “etnografia do gosto” realizada em con-
texto ameríndio, explicitando o diálogo entre as expressões artísticas,
de maneira que “vozes dissonantes” e “discursos distintos” formam um
discurso polifônico. As distintas manifestações estéticas são interligadas
em um todo que se insere no conjunto da vida coletiva.

o barbeiro de turano
Os cabelos masculinos constituem o que me parece ser a marca mais
saliente do estilo masculino. Como vimos no capítulo anterior, os rapazes
realizam poucas variações na composição de seu conjunto indumentário,

119
no que diz respeito à modelagem das peças de roupas usadas. O grande que o rapaz sai sem qualquer tipo de acessório ou acabamento sobre a
investimento é feito sobre os acessórios, com especial destaque para os cabeça. É interessante que, no caso de Alex, o gel parece acompanhar as
cabelos, bonés e chapéus, além de tênis, colares e aparelhos de telefones situações mais formais, como a calça jeans. Ele mesmo diz que não usa
celulares. Estes últimos são usados muitas vezes como adornos, sendo gel para o baile, ainda que alguns rapazes o façam. Na tarde em que nos
presos ao pescoço por aros rijos de metal, cordões de ouro ou prata (ou encontramos no Centro, Alex estava prestes a ter seus cabelos cortados,
material alternativo que se assemelhe a esses metais), fitas ou cadarços. e usava gel sobre os mesmos, assim como usava a calça jeans e o tênis
Os aparelhos do tipo dobrável podem permanecer entreabertos e coloca- Adidas. É importante frisar que o tênis usado por Alex naquela ocasião,
dos sobre o pescoço, de maneira que seu visor se mantenha iluminado, ainda que seja destinado para o dia, não é um objeto de uso cotidiano. É
expondo assim a fotografia de algum colega ou parente, como um bebê. peça de vestuário igualmente associada a situações mais formais, ou mais
Os cabelos, especificamente, apresentam uma estética que me pare- distantes de “casa”,1 como o trabalho e a escola. Em situações mais cor-
ceu muito cara e particular a esses rapazes. Pude ver Alex ostentando três riqueiras, próximas de “casa”, o calçado utilizado é o “chinelo de dedo”,
cortes de cabelo diferentes em um intervalo de cerca de trinta dias. Na tanto para rapazes como para moças. Naquela tarde, em que íamos a
primeira vez em que nos encontramos seus cabelos estavam curtos em uma favela, semelhante àquela na qual ele mora, Alex mantinha o tênis
suas laterais, mas não especialmente curtos, quando é possível se entre- Adidas do “dia”, mas trocou calça jeans e gel por bermuda e boné.
ver porções do couro cabeludo. Os pelos do alto de sua cabeça eram, Alex estava com seu boné colocado de maneira invertida, com a aba
proporcionalmente, um pouco mais longos e levemente encaracolados. para trás, e pude ver, saindo pelo recorte que acompanha a regulagem
Após nosso encontro, fiquei sabendo pelo rapaz que ele costuma cortar do boné, voltada para a frente de sua cabeça, que seus cabelos estavam
o cabelo a cada quinze ou vinte dias, como também o faz Eduardo, que descoloridos em alguns trechos. Eram pequenos pontos louros, quase
ao contrário de Alex, não faz maiores elaborações sobre sua cabeça. brancos, salpicados sobre o cabelo negro, somente na parte superior de
Passado cerca de um mês, nos encontramos novamente, justamente sua cabeça. Infelizmente não possuo foto sua da primeira vez em que
para que eu acompanhasse Alex ao barbeiro. Marcamos no ponto de nos encontramos nem dos momentos anteriores ao corte de cabelo que
mototáxi próximo à sua casa, no Catumbi, para de lá tomarmos uma acompanhei. Quando me dei conta que seria importante registrar certas
kombi que nos deixaria na rua do Bispo, localizada no bairro do Rio imagens, saindo assim da imersão em que me encontrava, Alex já estava
Comprido e que dá acesso ao Morro do Turano. Alex chegou usando com seus cabelos cortados por tesoura e máquina.
uma roupa muito similar àquela que usa para ir aos bailes. Trajava ber- Já há alguns anos Alex2 tem seu cabelo cortado exclusivamente por
muda de microfibra lisa, em tom de areia, com vivos amarelos em suas Mãozão, como é conhecido Reinaldo, o rapaz de vinte e dois anos que se
laterais, e uma “blusa de time” da seleção italiana, com seu nome gravado iniciou no ofício de barbeiro ainda adolescente. Mãozão explica que ao
nas costas, feita na “Cidade”, na “[rua] Uruguaiana”. Calçava seu par de pegar pela primeira vez em uma “máquina”, com cerca de quinze anos,
tênis, da marca Adidas, o mesmo que ele usa para o dia, mas não para a “pra cortar o cabelo da rapaziada”, o seu sucesso foi imediato. Com o
noite. E trazia sobre a sua cabeça um boné, acessório que costuma usar tempo Mãozão foi tornando-se conhecido. Lúcia já havia comentado
quando seu cabelo já está “comprido”, isto é, a ponto de cortar, pois nunca comigo sobre “um rapaz lá do Turano” que corta o cabelo dos “garotos”.
esses rapazes deixam seus cabelos longos. Nessas épocas, Alex costuma
1 Uso aqui o “casa” conforme pensado por DaMatta, como representação do espaço social onde
pentear seus cabelos com gel ou cobri-los com boné. Como teria seus se desenrolam relações mais familiares e pessoalizadas, em oposição à “rua”, por sua vez repre-
cabelos cortados, o rapaz usava um boné, pois o gel, segundo ele, atra- sentação da sociabilidade que se dá no espaço público, onde tendem a predominar relações
individualizadas.
palha o trabalho do profissional que cuida de seu penteado. Somente
2 Alex me disse que corta seu cabelo com este rapaz há “dois ou três anos” e o barbeiro disse que
quando o cabelo de Alex está com o aspecto que ele considera ideal, é atende seu cliente há quatro anos.

120 121
A barbearia de Mãozão foi construída em sua casa, como um anexo. “disfarçada”, daí o nome do corte. No segundo caso, a fronteira entre o
A impressão que se tem é que uma parede foi colocada em um dos topo cheio da cabeça e a lateral “baixinha” está propositalmente eviden-
cômodos da construção, de maneira a isolar um trecho estreito e com- ciada, como se houvesse sido colocada uma cuia sobre a cabeça do rapaz
prido, dando origem assim à sua barbearia. Por diversas vezes, durante para, na sua parte sobressalente, ser passada a máquina.
minha visita, Mãozão fez reclamações em relação ao local, dizendo que Os “desenhos” e “caminhos” são realizados sobre essa base única, uti-
este era muito pequeno, limitando o seu trabalho. Mas o rapaz parece lizando-se lâminas de barbear que retira o pelo de regiões sempre corta-
ter ali tudo o que necessita para realizar bem o seu ofício. Sobre a sua das por “máquina 1”, que deixa o cabelo em um comprimento mínimo. O
bancada de trabalho estão diversos potes de pó descolorante, água oxi- barbeiro desenha sobre a cabeça dos rapazes “corrente”, “tribal”,3 “triba-
genada cremosa em frascos de distintos tamanhos e potências, creme de lismo”, que é um conjunto de “tribais”, “teia de aranha”, bem como repro-
barbear, escovinha de cerdas rijas para direcionar o fio de cabelo de um duz as marcas dos calçados masculinos preferidos. Muitas vezes Mãozão
lado para o outro enquanto realiza o corte, escova de cerdas macias para trabalha aos sábados até uma hora da manhã, atendendo aos rapazes que
retirar o pelo que fica sobre o corpo de seus clientes, após o corte, gel chegam lá antes de ir para o baile funk, mas diz que no momento “deu
para aplicar sobre os cabelos, potes e pincéis para a aplicação de tintura. um tempo com esse negócio de desenho”, pois teria que cobrar “dez, doze
A aplicação de tintura, quando realizada, é a etapa final do trabalho, a reais”, o que não consegue obter pelo serviço, pois na “favela não valo-
que conclui o penteado, e ocorre após os cabelos terem sido descolori- rizam o seu trabalho”. Apesar da insatisfação de Mãozão com o pouco
dos, concedendo ao cabelo o tom que se desejar: avermelhado, amare- valor que ele pensa receber por seu trabalho, Alex, como outros garotos,
lado, branco etc. Para se obter os pontos claros, como os que usava Alex o procuram justamente porque ele “dá um valor” aos seus cabelos.
antes de ter seu cabelo cortado, é necessário se colocar sobre a cabeça do Mãozão realiza ainda os cortes “pica-pau” e “asa-delta”. O primeiro é
cliente uma touca de látex, da qual são retirados, através de seus peque- realizado em cabelos crespos, com um pé largo, de “quatro dedos”, cortado
nos orifícios, os tufos de cabelos sobre os quais se passará a mistura de a toda volta da cabeça, desde as orelhas, e a parte superior deve ficar “arre-
pó descolorante e água oxigenada, que retirará a cor do cabelo, para em piadinha”, mas não necessariamente curta. Alguns rapazes usam gel para
seguida ser aplicada a “tinta”. Sobre a bancada de Mãozão vê-se ainda evidenciar ainda mais o efeito “arrepiado”. A segunda modalidade de corte
tesoura, máquina de corte e navalha, seu equipamento básico de corte, e é realizada somente em cabelos lisos, como os de “índio”. Neste caso o pé é
dois frascos de óleo Singer, utilizados para lubrificar a máquina de corte. mais estreito, com “dois dedos” de largura, e está menos evidenciado, per-
A base dos cortes de cabelo usados pelos rapazes é, de maneira manecendo levemente encoberto pelo cabelo. O corte pode ter sua parte
geral, uma só. A primeira etapa se constitui em cortar o comprimento posterior finalizada na forma da letra “V”, ou ser do tipo “redondo”. Nestas
do cabelo com a tesoura, especialmente a região do alto da cabeça, que duas modalidades de corte não são realizados os “desenhos”.
tende a permanecer com maior densidade de pelos. Em seguida, são Alex sentou-se sobre a cadeira giratória, posicionada em frente
aparadas as laterais do cabelo, com máquina específica, para então ser ao espelho que toma toda a extensão de uma das paredes. De encosto
concretizado o trabalho, quando se dá contorno ao corte, fazendo o pé reclinável, a peça está com seu estofamento, feito em vinil azul claro já
do cabelo e as costeletas, um trabalho minucioso e feito manualmente, bastante danificado. Abaixo do espelho está presa a bancada de apoio de
se utilizando de uma navalha. Esta é a base do corte “cuia disfarçado”, Mãozão. Esta parede mede cerca de dois metros de comprimento e as
que é também chamado quartel, realizado nesta tarde em Alex, e do duas outras a ela adjacentes medem algo próximo de quatro metros. No
corte “cuia”. A diferença entre um e outro corte está no fato de na pri-
3 Idêntico aos desenhos das tatuagens de mesmo nome, que formam linhas sinuosas e espirala-
meira modalidade a linha que separa o cabelo cheio do topo da cabeça
das, que se entrelaçam. Essas tatuagens são geralmente realizadas sobre o músculo do bíceps
do cabelo cortado à máquina na lateral da cabeça ser invisível, estar dos braços masculinos ou na região do cóccix feminino

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alto do espelho está escrito, em letras de grandes dimensões e similares Qual a diferença entre o charme e o funk
às utilizadas nas pichações que vemos no espaço urbano, o codinome Um anda bonito o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk
do barbeiro. Sobre a parede à direita desta está o desenho de um rosto
Um anda bonito o outro elegante
feminino moreno e sobre a parede à esquerda o rosto de uma mulher
loura, além do contorno de um rosto masculino, de cabeça raspada. Ao Eu no baile funk danço a dança da bundinha
se sentar Alex retirou sua “blusa” e Mãozão apoiou sobre os ombros de Sou MC Dolores e criado na Rocinha
Eu no baile charme já danço social
seu cliente uma toalha. Sou MC Markinhos muito velho em Marechal
Desta vez, Alex não teve seus cabelos descoloridos por Mãozão, que
recebeu pelo serviço prestado cinco reais. Caso fosse realizado junta- Qual a diferença entre o charme e o funk
Um anda bonito o outro elegante
mente ao corte o “reflexo” parcial, como o que Alex havia feito na última
Qual a diferença entre o charme e o funk
vez, seriam acrescidos outros cinco reais ao valor pago. Na porta de Um anda bonito o outro elegante
entrada da barbearia de Mãozão está afixada uma tabela com os seus pre-
ços, além de anúncios relativos ao seu horário de trabalho, o seu número Eu sou funkeiro ando de chapéu
Cabelo enrolado, cordãozinho e anel
de telefone, bem como o tradicional aviso de que ali não se presta ser- Me visto no estilo internacional
viço “fiado”. Enquanto o cabelo de Alex é aparado, um pai aguarda com Reboque ou de Nike sempre abalou geral
seu filho a sua vez de ser atendido. Maicon, de quatro anos, teve seus
Bermudão da Cyclone, Nike original
cabelos cortados nesta tarde, mas em breve, nas proximidades do Natal,
Meu quepe importado é tradicional
o pai realizará o desejo do garoto de ter seus cabelos descoloridos, um Se ligue nos tecidos do funkeiro nacional
pedido que o menino vem fazendo ao pai “desde o ano passado”. O bar- A moda rio funk melhorou o meu astral
beiro já havia me dito no início de nossa conversa que no “final de ano
Qual a diferença entre o charme e o funk
o pessoal gosta de inventar”. Enquanto Mãozão atende a criança, Alex Um anda bonito o outro elegante
inspeciona seu cabelo no espelho e diz ao barbeiro que diversos retoques Qual a diferença entre o charme e o funk
precisarão ser feitos. Mas Alex não tem pressa e aguardamos até que o Um anda bonito o outro elegante
corte de Maicon seja finalizado. O lugar que possui o cabelo na estética
Eu sou charmeiro ando social
corporal e de vestuário dos rapazes permite fazer algumas elaborações. Camisa abotoada num tremendo visual
Apesar de o cabelo não ser um adorno que é colocado especificamente Uma calça de baile e um sapato bem legal
para a festa, para o baile funk, ele é carregado para ele e dele é levado Meu cabelo é asa-delta ou então de pica-pau
para fora. É o elemento estético que, dentro do conjunto indumentário
No mundo do charme eu sou sensual
masculino, diferencia o gosto dos rapazes do “estilo internacional”. Charmeiro de verdade curte baile na moral
Os new jack swing4 são a atração
o “playboy” e o funk Trazendo as morenas pro meio do salão

A preferência desses meninos por marcas estrangeiras é algo de Qual a diferença entre o charme e o funk
Um anda bonito o outro elegante
conhecimento amplo e que já foi cantada por cantores do funk, como o
Qual a diferença entre o charme e o funk
MC Dolores, que distingue com o MC Markinhos, no “Rap da Diferença”, Um anda bonito o outro elegante
o funk e o charme, arrolando as distinções presentes na estética dos
adeptos de um e de outro ritmo. 4 Tipo de ritmo musical associado ao charme.

124 125
Eu no baile funk danço a dança da bundinha Vê-se uma grande variedade de produtos ofertados, para homens e
Estou me despedindo mas sem perdê a linha mulheres, ainda que a maioria da mercadoria exposta seja masculina.
Eu no baile charme já danço social
Este fato confirma as falas por mim registradas que atestam que as moças
Estou deixando um abraço muito especial
compram nas “feirinhas”, ao contrário dos rapazes que, ao comprarem
Qual a diferença entre o charme e o funk no mercado informal, jamais compram naqueles locais, mas compram
Um anda bonito o outro elegante na rua Uruguaiana. Ali é possível “comprar as imitações” das marcas pre-
Qual a diferença entre o charme e o funk
Markinho anda bonito e o Dolores elegante
feridas, reproduzidas sobre bonés, bermudas, shorts, t-shirts, “blusas de
time” e tênis. Os mesmos símbolos que vejo estampados nas roupas ves-
Esta canção é considerada um funk clássico, categoria na qual esta tidas por muitos dos rapazes no baile. No mercado da rua Uruguaiana e
se encontra classificada no site da Big Mix (www2.uol.com.br/bigmix), adjacências vemos também biscoitos, balas, bijuterias femininas, CD’s e
equipe de som do DJ Marlboro, o mais conhecido disc-jóquei de funk DVD’s a serem gravados, além de roupas de marcas desconhecidas.
no Brasil e cada vez mais renomado internacionalmente.5 A moda funk Aproximo-me de um boxe com grande variedade de blusas da
masculina descrita na canção apresenta poucas variações em relação à marca Nike, todas elas confeccionadas em tecido sintético. A sua apa-
indumentária atual. Estão presentes o boné, chamado de quepe na can- rência externa, isto é, o aspecto do tecido empregado, a modelagem do
ção, e o chapéu. O chapéu que vemos hoje nos bailes é do tipo austra- corte, as cores e as estampas empregadas, assim como as etiquetas inter-
liano, de aba estreita e ajustado na cabeça. Geralmente é confeccionado nas e as tags,6 me concedem a nítida impressão de serem aquelas peças
em sarja de algodão. Vemos também os tênis da marca Nike, ainda em idênticas às que vejo comercializadas no “mundo oficial”. Fico confusa
uso, e os da marca Reebok, não mais em voga. Permanecem presentes em relação à procedência do produto e pergunto ao vendedor se aquelas
na indumentária atual o “cordãozinho” e os “bermudões da Cyclone”, peças são como as que encontro nas lojas. Ele fica bastante irritado e me
ainda que muitas outras griffes dividam com esta última a preferência responde que na loja eu pagaria “cento e pouco conto”, que era óbvio
dos rapazes. Vemos também a importância dos cabelos, que eram então que naquele local “a qualidade era outra” e que eu não podia esperar
usados “enroladinhos” e são contrastados, na canção, com o estilo “asa-
comprar “carne de segunda” com a mesma qualidade de uma “carne de
-delta” ou “pica-pau”, usados pelo “charmeiro”. Note-se que a letra da
primeira”. Eu me desculpei explicando-lhe que eu não era muito familia-
canção menciona o estilo “social” como característico do “charmeiro”
rizada com aquele tipo de produto. Um rapaz olhava essas mesmas blu-
mas não do “funkeiro”, o que confirma os traços da indumentária mas-
sas, demonstrando intenção em adquirir uma delas. Com uma peça em
culina destacados até aqui. O próprio Alex me diz que “charmeiro é mais
suas mãos, em cuja etiqueta lia-se dry fit,7 me explicou que ao usá-las o
social, ele usa jeans, calça social, aqueles blusão até aqui, sapato...”. Tanto
suor da transpiração escorria, mas que o mesmo não se dava com as blu-
o estilo “social” como os cortes de cabelo “asa-delta” e “pica-pau” são
sas das lojas. Mais uma vez a materialidade dos objetos surge como traço
vistos no baile, mesmo que não predominantes.
relevante da peça de roupa, mas desta vez o valor monetário parece se
A canção reafirma o gosto por griffes estrangeiras e a concomitante
sobrepor ao valor intrínseco no momento da escolha. Em outro boxe,
indústria da imitação que acompanha esse gosto. A referência ao Nike
desta vez especializado em tênis, sou informada pela senhora que atende
“original” nos mostra como é importante que ele seja o “verdadeiro”, ao
ao público que seus calçados são feitos pelo mesmo fabricante da Nike,
mesmo tempo em que indica a existência dos simulacros. Uma volta pelo
Mercado Popular da rua Uruguaiana, no Centro da cidade do Rio de
6 Etiquetas fabricadas em cartão ou plástico e afixadas por dispositivo de nylon à peça de roupa,
Janeiro, nos revela como a “indústria da imitação” vem se aperfeiçoando. como um selo a mais de qualidade e procedência da peça de roupa.
7 O tecido do tipo dry fit absorve o suor do corpo e leva-o para fora do tecido. A terminologia em
5 Para maiores detalhes sobre a trajetória do DJ ver Matta (1996). inglês se refere ao “caimento seco” que o material permite quando usado em atividades físicas.

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e que os originais daqueles eu não encontro em loja, mas somente os bonito”. E Lúcia completa: “é o que mais chama atenção da gente, né...”.
obteria se encomendasse “na internet”. A expressão “chamar atenção” é utilizada diversas vezes para se referir
O Mercado Popular da Rua Uruguaiana é um centro de compras ao sucesso que uma roupa ou adorno faz. Os próprios rapazes, quando
muito utilizado pelos jovens que conheci no baile. Eduardo diz clara- explicam como gostam de se vestir, utilizam a mesma expressão. Dizem
mente que usa peças “derivadas do Reino de Camelot”, fazendo uma que gostam de “camisa de time de futebol, um bonezinho, sempre um
alusão ao comerciante informal e ambulante, o camelô. Alex e seus cole- bonezinho, tênis Nike de quatro molas”, que é um modelo específico
gas mostram menos conforto na relação com esse espaço de consumo. chamado de Nike Shox, porque “chama mais atenção”. E Lúcia comple-
Alex diz que costumava fazer compras neste local quando era mais menta: “porque tem uns meninos que são playboyzinho, aí arrepia o
novo, ainda que eu o tenha visto com a “blusa de time” que ele me disse cabelo, aí bota, sei lá, é uma coisa sem graça”. E fala com voz de quem de
ter sido feita aí e usando pulseiras de borracha igualmente adquiridas fato não parece estimulada com o estilo alheio. Algo “chama atenção” ou
naquele local, sendo ambos os artigos cópias de modelos originais. Ao é “chamativo” quando é bonito, interessante, instigante.
dizer que não compra mais “lá”, Alex se refere às imitações de tênis, pois Eduardo define o “playboy” como aquele que não trabalha, que não
compra somente os originais. Os colegas de Alex também se mostram tem qualquer “responsabilidade” e que depende dos outros, especial-
constrangidos em revelar que fazem alguma compra no centro da rua mente do pai detentor de uma “condição financeira bem melhor”. Diz
Uruguaiana, debochando de um dos meninos do grupo que assume ser possível reconhecê-los nos bailes a partir de suas roupas, que não são
comprar com frequência neste local por ser mais acessível. Por outro falsas, o que produziria um certo desconforto no “playboy”, por ser dife-
lado, dizem que “tênis tem que ser de molas ou então da Uruguaiana”. rente e ainda se sentir “um pouco superior”. Lúcia e seus colegas se refe-
O gosto associado aos produtos arrolados acima corresponde ao rem a um dos meninos do grupo, Daniel, como “playboyzinho”. Dizem
estilo do “playboy”, adepto das marcas estrangeiras de surfwear. A cate- que ele mora em uma favela, na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras,
goria “playboy”, “playboyzinho”, é bastante complexa para se chegar a que “na verdade não é favela”, pois é “muito arrumadinha”. Além disso,
uma definição restrita da mesma. Mas é possível afirmar que ela designa Daniel é filho único e por isso é muito mimado por sua mãe, que lhe
amplamente aquele de fora da favela,8 e mais especificamente os filhos poupa dos serviços da casa. O mesmo não se dá com Alex nem Eduardo.
bem nascidos das camadas médias urbanas cariocas. No dia em que acompanhei o primeiro até o barbeiro, este acordou na
O “playboyzinho” é definido por muitos dos rapazes com quem con- casa de sua namorada, no Morro do Salgueiro, deixou a filha de três anos
versei como aqueles que “têm condições” de levar uma vida confortável e da moça na creche, depois foi para a sua casa, onde arrumou seu quarto,
sem trabalhar. É importante frisar aqui que as referências aos “playboys” e lavou sua roupa, cozinhou o arroz e “catou” o feijão, que seria mais tarde
suas correlatas “playboyzinhas” surgiram nas conversas que mantive com cozido por sua mãe. Em relação a Eduardo, pude ver em sua casa diver-
os jovens sem que eu fizesse qualquer menção a eles ou me interessasse sas pilhas de roupas dobradas que, arrumadas sobre sua cama localizada
especificamente sobre o tema. Somente para Alex explicitei o termo, após em um canto da sala de estar, seriam mais tarde passadas pelo rapaz.
haver registrado diversas falas de outros jovens em relação a este assunto. Alex define os “playboyzinhos” como aqueles que não fazem “nada
Na primeira conversa que tive com Lúcia e suas amigas, a categoria pra ninguém”, acrescentando que eles apenas estudam, vão à praia “sur-
surgiu quando falávamos sobre a estética dos rapazes. Carla descreve a far” e saem à noite para “curtir boate”. O diagnóstico de Alex é certeiro,
indumentária dos rapazes: “tênis, boné, num estilo... botam um brinqui- ao repetir o lema da Rip Curl, marca de roupas de surfistas muito valo-
nho, entendeu, faz um negócio no cabelo, um desenho, sabe, fica mais rizada pelos ditos “playboys”. Em seu press release a empresa lembra
que “a vida é feita da Busca por ondas e festas”.9 Outro indício impor-
8 Agradeço a Everardo Rocha por esta formulação, que em sala de aula nos disse que a categoria
“patricinha”, o correlato feminino do mauricinho, designação equivalente à contemporânea
“playboy”, surge em uma favela carioca para designar o não-favelado. 9 “Life is about The Search of waves and parties” (www.ripcurl.com).

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tante de como o universo do surfista está presente na vida dos rapazes e particularidade local. Enquanto os outros acessórios diferem do “estilo
moças que frequentam o Clube do Boqueirão é o nome que possui uma internacional” apenas pela maneira como são usados, o cabelo é em si
das lojas nas quais muitos desses jovens compram suas roupas. A HB, singular, tornando impossível ao “playboy” se fazer passar por “fun-
como chamam a loja de nome HBS, tem seu nome inspirado na marca keiro”. É verdade que no morro também encontramos rapazes de “cabelo
de surfwear Hot Buttered. A letra S foi adicionada posteriormente pela grande”, como Naldinho, vizinho de Lúcia, com cabelos muito lisos,
griffe carioca para se diferenciar da griffe australiana, cuja logomarca é relativamente longos e com um discreto “reflexo”, dando ao seu cabelo
precisamente HB. Esta marca, assim como a Rip Curl, tem suas roupas o aspecto de louro. Naldinho usa o seu cabelo no estilo “asa-delta”, mas
comercializadas em lojas de multimarcas do Rio de Janeiro, sendo pos- reunido no baile com seus amigos de cabelo “baixinho” compromete
sível encontrar ambas em um mesmo local de venda. qualquer tentativa de classificação por si só. Aos meus olhos pareceu um
As considerações sobre os “playboyzinhos”, ao mesmo tempo em genuíno “playboy” no meio de “favelados”, categoria utilizada por Irene,
que demonstram uma certa cobiça por uma vida mais confortável e um por exemplo, para distinguir os dois tipos.
dia a dia menos duro, deixam transparecer também um desprezo pelo Podemos concluir, desse modo, que se os elementos que compõem
ócio, um mecanismo inverso ao evidenciado por Veblen (1983), que a indumentária dos rapazes poderiam gerar a impressão de que o seu
mostra como as classes ociosas se utilizam do consumo ostentatório uso produziria uma estética idêntica ou muito próxima daquela a que
para demonstrar seu desprezo pelo trabalho produtivo. corresponde o gosto do “playboy”; os seus penteados, como os que mos-
Alex chama atenção para o fato de os “playboys” se vestirem, anda- tro nas fotos, constituem uma marca visual de suas identidades. A res-
rem e dançarem de maneira diferente, ao mesmo tempo em que tentam significação do surfista, do “playboy”, que esses rapazes promovem pode
imitá-los em suas formas de falar e andar. Entretanto, continua o rapaz, ser dita antropofágica. O gosto por peças de roupas similares e marcas
isto é impossível, já que o “playboyzinho tem cabelo grande”. Pergunto a idênticas, ao mesmo tempo em que indica uma admiração, esconde um
Alex sobre os rapazes negros que vejo de cabelos grandes, com ou sem desprezo por aquele que não trabalha, que vive às custas do pai “rico”.
trancinhas, se eles também devem ser considerados como “playboys”. Deglutem esse gosto e o devolvem, ao seu gosto, portando cabelos mui-
Alex diz que não, pois trata-se de uma influência do hip hop, não se posi- tas vezes descoloridos e que podem ser entendidos como uma outra
cionando sobre o tema. Outra diferença que Alex marca é em relação ressignificação, proveniente do cabelo “parafinado” do menino surfista.
às bermudas usadas por seu grupo, que são em geral lisas ou compos- A partir das descrições realizadas nos capítulos precedentes, creio
tas por encaixes de tecidos lisos de cores distintas, distinta das usadas ser possível observar que as moças, ao contrário dos rapazes, apresen-
pelo “playboy”, que tem preferência pelas bermudas floridas. De fato, no tam um gosto que pode ser acessado através de uma moda que tende a
baile, vemos muitas bermudas do primeiro tipo e menos do segundo. ser mais tradicional, mais compatível com um gosto local e com uma
Então este é o ponto ao qual eu queria chegar após essa digressão moda menos globalizada. O contraste dos gostos masculino e feminino
sobre o “playboy”. Se por um lado as roupas dos meninos do funk, são poderia indicar uma menor criatividade dos rapazes, mais imitadores.
muito similares às do surfista, como já falamos, as suas técnicas corpo- Mas este ponto se sustenta somente se olharmos o gosto destes últimos
rais são muito distintas. E não é somente o gestual corporal, ao andar, apenas da perspectiva de suas roupas e não do todo estético que resulta
falar e dançar, dentre outros, que difere. Os adornos realizados sobre a da interação entre as roupas e o corpo que as veste. É nesse ponto que os
cabeça se destacam igualmente, pois insere uma marca visual que distin- cabelos10 se tornam tão importantes, marcando a identidade dos rapa-
gue o seu gosto e a sua estética da do “playboy”. De fato, outros adornos
constam dessa estética, como os aparelhos celulares, os bonés, os colares 10 Leach, em artigo clássico no qual coloca em diálogo teses psicanalíticas e dados etnográficos
etc. Mas os cabelos, nesse conjunto, formam o elemento que concede a sobre a simbologia dos cabelos, destaca que o cabelo, na antropologia, é “proeminente em ritos
que denotam uma mudança no status sócio-sexual” (1983: 163).

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zes, muitas vezes reconhecidos em ambientes externos ao baile funk desta desestabilização causada no self ao dizer que o “playboy” se sente
justamente por seus penteados. A identidade não se constitui assim em “incomodado” e pouco “à vontade” ao se deparar com a cópia de sua
uma coisa em si, mas como uma relação estabelecida entre a mimesis e vestimenta:
alteridade (TAUSSIG, 1993: 137).
Por exemplo. Se eu chego no baile com meu cordão de ouro, tal. Minha ber-
Esses garotos parecem querer “se apropriar de algo por meio de sua muda cara, meu tênis caro. Eu vou ver um tênis igual ao meu, só que falso.
aparência” (TAUSSIG, 1993), através de ação mimética e criativa na qual “a Pô, se eu ver um tênis igual ao meu falso, eu vou falar: ‘Caraca, que maluco’!
habilidade de imitar, e imitar bem, é, em outras palavras, a capacidade de
se tornar Outro” (1993: 19). Imitar, copiar, mimetizar envolve o encontro os cabelos e os namoros
com a Alteridade. Mimesis e alteridade são assim duas faces da mesma
moeda, na qual a imitação surge como desejo de tornar-se outro e cons- Ao contrário dos rapazes, as moças não promovem em seus cabelos as
tituir uma identidade na qual o que está em jogo é produzir estabilidade elaborações que revertam em variações sobre a sua aparência. O pró-
da instabilidade. O que se quer não é tanto permanecer o mesmo, mas prio Mãozão diz que raramente corta cabelos femininos, pois as moças,
manter a igualdade, transpondo-se corporalmente para a alteridade. quando os têm cortados, querem no máximo que as pontas de seus
O uso de calçados estrangeiros esportivos que podem custar cerca cabelos sejam aparadas. O barbeiro costuma atender mais frequente-
de quinhentos reais por rapazes de renda familiar bastante reduzida, mente às “senhoras” que gostam do corte “pica-pau”. Mas isso não quer
enquanto outros se satisfazem com as cópias, coloca em jogo aspectos dizer que os cabelos se constituam em um tema menos importante para
muito mais complexos do que o simples consumismo ou a adesão aos as meninas. Uma canção bastante executada nos bailes mais uma vez
ditames de uma indústria globalizada ou às lógicas distintivas embuti- remete à estética que rege a aparência dos dançarinos. O ideal de beleza,
das no efeito trickle down (SIMMEL, 1957), ou ainda o seu inverso, pro- que surge a partir das falas das moças, é ter cabelo “enroladinho”, mais
movido por imitações prestigiosas que levem a um trickle up, ou bubble do que liso.
up (POLHEMUS, 1994). Afirmações de que a moda desses garotos é cal- Ah, eu vô mandá um papo reto
cada na cópia podem soar como avaliações de senso comum, a menos Essa vai para os guerreiros
que se leve em consideração que a cópia nem sempre produz o mesmo e Que tem uma mulher
envolve muitas vezes o desejo de se transformar em Outro. que vai no cabeleireiro
O movimento que esses rapazes realizam em direção à alteridade Gastô trinta reais
permite ainda estabelecer mais uma consideração em relação à discussão Sabe o quê que aconteceu
sobre a mimesis e a alteridade. Esses rapazes tornaram o self, o “playboy”, Ih, chuveu,
Cabelo encolheu, todinho
álter a si mesmo (1993: 8). A imitação e a fascinação pelo estrangeiro,
ao mesmo tempo em que objetiva dar à cópia, no caso o “funkeiro”, Para as gatinhas presentes
poderes sobre o protótipo original, no caso o “playboy”, geram naquele Por favor vê se me escuta
que é copiado uma desestabilização, ao se ver retratado como Outro. Se você fez escova
Vê se leva o guarda-chuva
Este resultado é bastante coerente com um momento “pós-colonial” e
ainda com o entendimento de que a alteridade é antes uma relação que Eu não tô de caô
resulta das expectativas do Ocidente sobre os seus colonizados. A imi- Gata, não tô de gracinha
Se você fez implante,
tação de uma “estrangeirismo” faz com que o self entre no álter, contra
Alisante ô chapinha
o qual ele é definido e sustentado (1993: 238). Eduardo fala exatamente

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Tome muito cuidado Lúcia, ao deixar o chuveiro da mesma maneira como eu já havia
Sabe o quê que aconteceu? visto Lilian, aplicou, já em seu quarto, “creme de pentear”, acondicio-
Ih, chuveu
nado em frasco com “bico”.12 Ela me explica que seu cabelo “não precisa
Cabelo encolheu, todinho
de muito creme”, mas que coloca para ir ao baile para evitar que o seu
Para as princesas do baile cabelo fique desarrumado. E Lúcia passou muito creme em seu cabelo,
Um beijão no coração penteando-o constantemente, utilizando-se de um pente de cabo, com
Você que é vaidosa
Que vai sempre no salão
os dentes largos, como os que já havia visto Lilian usar, reaplicando
novamente o produto para os cabelos. Depois de pronta, Lúcia deu uma
Pretinha bonitinha última parada em seu banheiro, quando penteou seus cabelos com um
Do cabelo de henê
pente do tipo “fino”, com pouco espacejamento entre os dentes, e passou
Se tu marcá pra mim
Gata eu saio com você mais um pouco de creme.
Antes de seguirmos para a festa, fomos até a casa de Paula, que
As gatinhas do baile havia se vestido na casa de Lúcia. Neide, prima da primeira, lá estava e
Sempre me fortaleceu
me contou que o “creme funciona como um laquê”. As jovens colocam-
Então, ih, chuveu
Cabelo encolheu, todinho11 -no em grande quantidade de maneira a “não sair nem um fiozinho [de
cabelo] do lugar”. Mais tarde, já no baile, encontramos com Sofia, que
As moças investem preferencialmente em “tratamentos” e cremes possui cabelos lisos, e estavam igualmente com creme, com o objetivo
para seus cabelos. Não em design. De suas falas pode-se depreender que de manter seus cabelos no “lugar”. Em outras ocasiões vi Sofia com cabe-
o tipo de cabelo valorizado pode não ser o cabelo crespo, mas é muito los sem creme, que os tem sempre um tanto desalinhados.
mais aquele cacheado do que o liso. Lúcia e Vera usam o creme para que Paula, segundo Vera e Lúcia, tem a raiz de seu cabelo muito “alta”,
seus cabelos fiquem com a raiz “baixinha” e o comprimento “cacheado”, de maneira que o creme, sozinho, não permite a formação de cachos
tirando assim a sua “rebeldia”. As moças não os lavam com xampu todos nem raízes baixas em seu cabelo. Ela faz mensalmente “Beleza Natural”,
os dias, mas diariamente molham-nos e passam creme. Saem do banho nome através do qual as meninas designam “um relaxamento” que é
com as costas ainda molhadas, devido ao cabelo que mal é seco com a feito por uma empresa, de mesmo nome, “própria pra cuidar de cabelos
toalha e ainda escorre sobre os ombros. É interessante que essa homo- crespos”. O objetivo do tratamento é permitir aos cabelos que estes se
geneidade da aparência dos cabelos femininos se dá também nos outros tornem cacheados. Vera explica que Paula “vai lá, passa o produto, que
adornos corporais. No grupo de Lúcia, todas usam cordões finos com acaba relaxando o seu cabelo, reduz o volume e fica cacheado. Depois ela
um único e delicado pendente, preferencialmente dourados, e todas passa um creme. Depois ela pode esticar, fazer o que ela quiser”. Dessa
trazem seus umbigos adornados por piercings. As tatuagens também se perspectiva, ele é muito distinto do alisamento, diferença que Lúcia e
assemelham. Lúcia, Gabi e uma outra colega trazem o mesmo desenho Vera tratam de explicitar. Explicam que o cabelo de Paula, que em uma
de uma rosa vermelha desenhado sobre a mesma parte de seus corpos, noite estava bem liso no baile, chega àquele resultado após a realização
as costas. Os piercings de nariz são usados apenas por Sofia e Carla, pois de “escova” ou de “chapinha”, este último termo citado em tom de dis-
segundo Lúcia e Vera estes só ficam bonitos em narizes “finos”. creto deboche. Mas o cabelo de Paula, mesmo após o “relaxamento” e a

12 Os cremes são de dois tipos, os de pentear, como esses que são acondicionados em frascos de
11 Cabelo encolheu, de MC Frank e canção de nº 23 no cd em anexo. bico, e os de massagem, embalados em potes de 900 ou 1000 gramas, como vimos Lilian usar.

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aplicação de creme, “encaracola só um pouquinho”, pois é muito “ralo”, Na verdade ele é serra
ficando com um aspecto “frisadinho”. Lúcia me explica que seu cabelo, Para de caô caim
assim como o de Vera, “não precisa fazer todo mês relaxamento”, pois Tu não engana mais ninguém
seu cabelo “fica normal”, ao contrário de cabelos como os de Paula, que As mulheres não te agradam
“precisa fazer todo mês [relaxamento] pro cabelo ficar baixo, porque a É os homem que te faz bem
raiz dela aumenta”. Flávia, outra frequentadora do baile do Boqueirão e Então,
moradora de um edifício de apartamentos no bairro da Glória, diz que Pula veadinho
“de vez em quando”, “uma vez ou outra, assim...”, faz relaxamento no Pula veadinho
“Beleza Natural”, “um salão pra cabelos étnicos, cacheados, crespos”. O Pula veadinho
creme que passa em seus cabelos é adquirido no próprio local. Pode pular
A canção acima se refere a essas ambiguidades em relação aos cabe- Pode pular
los, onde “os guerreiros” surgem como “os caras que têm mulher de
cabelo ruim”, pois ele tem que ficar “bancando a mulher pra poder botar “Serra”, me explica Alex, é uma referência ao homossexual mascu-
lino, como o é também “coiote”. Remete ao ato de cortar, mas ao con-
o cabelo bom”, na tradução de Lúcia. “Guerreiro” é também chamado
trário da “gilete” que denomina o bissexual que “corta dos dois lados”, a
aquele que “pega mulher feia pra caramba”. “Ruim” surge nas falas como
“serra” se refere, segundo Alex, ao que “corta do outro lado”, que ao invés
sinônimo de feio. Um rapaz que namora uma mulher feia é chamado
de “cortar pela frente, corta por trás”. Quanto ao “caim”, nem Lúcia nem
de “guerreiro” por estar “pegando” uma menina “toda ruim”, como me
Alex souberam me dar qualquer explicação.
disse Andréia, frequentadora dos bailes, e moradora da Cruzada São
Sexta-feira é “dia de bolsa cheia”, com creme de cabelos, hidratante
Sebastião, cortiço no Leblon. Lúcia explica que sua prima não tem o
corporal, desodorante e perfume. Costumam seguir do trabalho dire-
cabelo bom, mas “cuida”, faz escova, o que deixa seu cabelo “bonitinho”,
tamente para as danceterias do Centro, onde geralmente se encontram
mais “bonito” do que somente com creme. Só que aí “chuva vem, cabelo com seus namorados, amantes ou “ficantes”. Estas três categorias são de
encolhe”. O cabelo que é alisado por henê não “encolhe”, mas também definição um tanto flexível na medida em que uma moça que pensa ser
“não é considerado um cabelo bom”, pois “ficou bom na base do henê”. uma “ficante”, portanto em uma situação transitória que pode vir a evo-
Em uma noite de sexta-feira comemorávamos o aniversário de luir para um namoro, está muitas vezes fazendo papel de amante de um
Lúcia, em um baile extraordinário de véspera de feriado. E desta vez o rapaz que é casado e com filhos. Outras moças têm plena consciência de
grupo era composto por rapazes. Em um determinado momento a can- que são amantes, podendo ter elas mesmas um namorado “oficial” e o
ção “Cabelo encolheu” foi tocada e diversos membros do grupo come- seu “amante”. O mal-estar existente entre rapazes e moças, resultante de
çaram a apontar para Lúcia, como se insinuando que ela fosse adepta relações amorosas nem sempre transparentes, parece indicar uma crise
de tratamentos “alisantes”. A moça, muito brava, envolveu seus longos nos modelos tradicionais de relações entre os gêneros, caracterizados
cabelos com as mãos, pegando-os na sua parte de baixo, levando-os para por namoros nos portões das casas dos subúrbios cariocas (HEILBORN,
a frente de seu corpo, balançando-os e gritando, tanto devido à irrita- 1999). Lúcia e Vera, que à época em que as conheci possuíam dezoito e
ção quanto à música alta, que seu cabelo era assim “naturalmente”. Foi dezenove anos, respectivamente, dizem que hoje o “lema” delas “é beijar
interessante ver nesta mesma noite que uma brincadeira com um dos na boca e ser feliz”. Mostram-se insatisfeitas com os namoros e noivados
rapazes do grupo, quando tocou a canção “Pula viadinho”, não causou de suas adolescências, quando “lavavam e passavam” para seus prome-
no rapaz comoção. Ao contrário, ele entrou na brincadeira, obedecendo tidos. Este desencontro entre rapazes e moças é muito bem ilustrado
aos comandos da canção, fazendo expressão de gaiato: por duas canções, em que uma fala da obsessão masculina por muitas

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mulheres e a outra surge como uma resposta feminina às canções que Tem que tê tem que tê... Tem que tê uma amante (ai, ai amor)13
“esculacham” as mulheres. O amigo deu papo
Tu é uma mina fiel Que é muito interessante
Valeu, o maior orgulho Ele disse que um homem
Mas tu mexeu com a nossa amante Tem que tê uma amante
Eu tô comprando esse barulho
Se liga aí amiga
Se liga no meu papo No que a Gaiola vai falá
Que é tão interessante Mulher de verdade
Um homem de verdade Qué um otário pra bancá
Tem que tê uma amante
A!
Tem que tê tem que tê uma amante [repete inúmeras vezes] Ahá!
Um otário pra bancá
Baile tá lotado E aí?
A chapa tá fervendo
Se tem mulher casada Ele chega no baile
Neurose eu tô correndo De cordão e celular
Quando vê uma gatinha
Geral já me conhece Ele corre pra azará
Já sabe o meu lema
O que eu quero é solução Mas no final das contas
Tô correndo de problema É um otário pra bancá
Mas no final das contas
Se tem mulher solteira É um otário pra bancá
Aceite esse convite
Vem junto com o Mascote A!
Eu tô pagando uma suíte Ahá!
Um otário pra bancá
É um papo neurótico E aí?
Papo de trique-trique
Sou homem de verdade Os homens querem amante
Gosto muito de uma amante Escute o que eu vou falá
As mulheres do baile
Tem que tê tem que tê um amante [repete inúmeras vezes] Qué um otário pra bancá, e aí?
Quem é que fortalece às 4 da madrugada? A!
Tem que tê tem que tê ... (tem que tê uma mamada) Ahá!
Um otário pra bancá
A mina é sinistra desenrola ajoelhada
E aí?14
Tem que tê tem que tê ... (tem que tê uma mamada)

Chapadão no fim da noite


Não quero saber de nada
O que seria de nós 13 Tem que ter uma amante, de MC Mascote.
Se não fossem... (as mamadas) 14 Um Otário pra Bancar, cantado pelo grupo “Gaiola das Popozudas”.

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Lúcia diz que esta canção é “perfeita”: “Só tem música esculachando sem calcinha, marca tudo, seu corpo todo. Agora, a outra não. A ‘jeans
as mulheres. Tem que esculachar os homens também! Chama a mulher com stretch’ é normal. A moletom com stretch parece uma... Lycra. A
de mamada, safadona”. Já Alex lê o refrão da canção anterior e diz: “Sem outra já não marca assim porque é jeans”.
dúvida. Se não, não tem graça”, acrescentando que “mulher é muito bom”. Andréia, de vinte anos, é uma morena alta, de pele bem clara, com
A noite de sábado é oportunidade de sair com as amigas, sem a olhos amendoados, em tom de castanho claro e boca grande. Muito
companhia masculina. Dia de ir para o baile funk e expressar o antago- bonita, possui o que as moças costumam classificar como um “corpão”,
nismo entre os gêneros que em alguns momentos faz com que a festa se de pernas “grossas”, quadris largos e barriga “saradinha”. Seus cabelos são
assemelhe a uma arena onde pode vir a ocorrer um embate entre grupos crespos, em tom de castanho claro, e formam cachos estreitos. Quando
rivais. E a principal arma desse embate é, no caso das moças, a sedução. nos encontramos no acesso ao conjunto habitacional em que ela mora,
ela vestia a mesma roupa com que permaneceu em casa: um short preto,
a calça de moletom stretch com detalhes vermelhos e brancos em seu cós curvo, confeccionado em
malha de algodão e bastante aderente ao corpo, acompanhado de uma
Retorno agora para o objeto que se constituiu como o ponto de partida camiseta vermelha em malha canelada de algodão, de alças finas, usada
dessa imersão no universo funk, procurando mostrar como ele con- sobre um sutiã branco, cujas alças de elástico acetinado estavam à mos-
densa a marca estilística da indumentária feminina, remetendo ao uni- tra, fazendo um bonito contraste com a pele bronzeada da moça e com
verso elástico da vestimenta das moças. as alças de sua blusa. Arrematando o conjunto, via-se sobre o seu colo
A “calça” é de fato um objeto de uso extraordinário, tanto em rela- um cordão largo de prata com um pequeno pendente, que alcançava o
ção às outras peças de roupas que compõem o figurino funk bem como decote da blusa e o encontro dos seios. Ela usava ainda como brincos
em relação à roupa de uso cotidiano. Lúcia, quando vai às danceterias do duas grandes e finas argolas de metal prateado, emoldurando o seu rosto.
Centro, locais onde também, mas não exclusivamente, dança funk, não Já em sua casa, pergunto a Andréia se aquele short não a deixa
veste sua “calça”. Em uma tarde, durante uma conversa na empresa em igualmente “nua”. Ela responde que de fato a peça de roupa “marca”, mas
que a moça trabalha, ela me dizia que após o fim de seu expediente iria explica que, por baixo de seu short, ela veste uma “calcinha grande”. Se
até a “Cidade” comprar uma saia porque “no lugar que eu vou também usasse o short com a mesma “calcinha pequena” com que as “calças”
não pode usar aquelas calças de cachorrona”, pois lá é um local frequen- devem ser usadas, ficaria igualmente indecente. Andréia se vira então de
tado por “pessoas que tão vindo do trabalho”. A “calça” é boa para dan- costas, passando um de seus dedos sobre o tecido de seu short, no local
çar funk, mas não em qualquer lugar. do encontro de suas nádegas, mostrando o efeito que o short teria sobre
A “calça” também não é adequada, apesar de confortável, para o o seu corpo, caso este portasse a calcinha adequada para se dançar funk.
uso cotidiano. Andréia, a moradora do cortiço no bairro do Leblon Digo “adequada para se dançar funk”, por ter visto este tipo de calcinha
que já mencionei aqui, usa suas calças somente para o baile, reforçando acompanhando a produção de muitas moças, tanto nos preparativos
que com elas não pode ir a uma “festa familiar” e tampouco a Ipanema. que antecedem o baile ou no próprio baile, perceptíveis em momen-
Contou-me isso quando estávamos em sua casa, olhando o seu guarda- tos específicos, através do tecido da roupa de cima e de acordo com a
-roupa. “Festa familiar” não é necessariamente uma festa com membros incidência da luz e a posição do espectador. A “calça” deve ser usada,
da família, mas significa uma reunião menor, que pode ser na casa de portanto, de maneira que “mostre as voltas” do corpo, provocando e ins-
amigos, onde não se dança, mas se conversa: “É festa mais parada, que tigando o sexo oposto.
você fica mais sentada”. Andréia continua: “A [calça] ‘jeans de moletom A intenção de provocar, de instigar o sexo oposto pode ser obser-
stretch’ marca muito, você usa uma calcinha pequena, parece que você tá vada desde o momento em que são adquiridas as roupas para a festa.

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Acompanhando Carla e Sofia nas compras de roupas que serão usadas de saia obedece fundamentalmente a preferências pessoais, como ocorre
preferencialmente no baile funk, vemos que a proximidade com o eró- também com a calça.
tico está presente desde a cabine onde as moças experimentam as rou- Em uma noite no Clube do Boqueirão, eu acompanhava Lúcia e
pas. Ocupando toda a extensão de uma das paredes da área de circulação seu grupo de amigas. As moças dançavam alinhadas, em grupo de duas
entre as cabines está colocado um cartaz, com cerca de quatro metros ou três, formando uma espécie de L. Irene, nesse início de festa, foi
quadrados, com a foto de uma modelo trajando roupas e realizando muito paquerada. Eu estava ao seu lado e os garotos vinham, às vezes
pose explicitamente sensual. Carla e Sofia parecem não dar especial em fila, e passavam entre nós duas, encarando-a. Em alguns momentos
atenção ao cartaz. Na área de vendas da loja está à disposição dos clien- paravam na sua frente, mas ela não esboçava qualquer reação. Ela então
tes um portfólio com fotos de modelos vestindo roupas e posando de falou, em tom de reclamação, “você viu como eles são?”, demonstrando
maneira igualmente provocante. O erotismo, que para Georges Bataille achá-los inconvenientes. Um pouco depois, comentou comigo que sua
(1988) resulta da imbricação entre vida e morte (1988: 12), parece ser um saia era curta demais e que na hora de se abaixar teria que segurá-la,
traço marcante da sociabilidade que se dá no baile funk. Entretanto, o colocando suas mãos na parte inferior traseira de sua saia, trazendo-a
desejo de provocar o outro sexo, de seduzir, de brincar com a temática para junto do corpo.
sexual não significa uma busca pela atividade sexual em si. Irene é uma morena alta e “avantajada”, como diz Alex, não exata-
Outro aspecto revelado por essa relação calcinha e roupa de cima mente gorda. Nesta noite seus cabelos pretos e anelados, que atingem
está no fato de que, ainda que se permita observá-la através de um recurso seus ombros, estavam penteados de lado, soltos e com creme. Ela vestia
que a vela, graças ao efeito da transparência, a mesma não deve ser vista a uma saia “darlene” vermelha, acompanhada de uma blusa, na mesma
olho nu. Este aspecto é reforçado pelos shorts elásticos, usados por algu- cor, em malha de poliamida, com decote U na frente e, nas costas, o
mas moças do baile por baixo das suas saias e vestidos. Este ponto é fun- decote era similar ao dos maiôs de natação. Calçava um tamanquinho
damental, pois acrescenta uma vantagem da calça em relação às outras de salto baixo, do tipo “carretel” e feito em acrílico, preso ao peito do pé
peças de roupa usadas na parte inferior do corpo e nos ajuda a compreen- por duas estreitas tiras brancas e finas, estando uma delas arrematada
der a especificidade da “calça” e o furor que ela causa ao chegar no baile. por uma pequena fivela branca e também redonda. A blusa de Irene
As saias que as moças usam são de dois tipos. As “darlene”, que são terminava exatamente sobre o seu umbigo, permitindo-se ver, even-
como saiotes, com pala justa na cintura e largas em seu comprimento, e tualmente, o piercing dourado e em forma de coração, arrematado por
as minissaias justas, que podem ser de tecido elástico ou não. A saia “dar- pequenos cristais. Logo no início da noite Irene passou para a frente e se
lene” tem sobre a minissaia justa a vantagem de não “prender” o movi- colocou ao lado de Lúcia. Seu objetivo era se desvencilhar de um grupo
mento do corpo de quem as usa na dança. Por outro lado, ela deixa mais de rapazes que pararam atrás dela, de maneira a observar o sobe e desce
vulnerável a moça que as veste. Flávia e sua amiga Marcinha, moradora de sua saia, e assim apreciar parte da anatomia de suas nádegas.
da favela Santo Amaro, no Catete, não gostam de usar saias largas para o Noemi achou exagerada a reação da irmã, dizendo que ela era
baile, pois sempre existirá uma “mão boba perdida”. Quando usam saias, “muito desconfiada”. Porém, mais adiante foi a vez de a própria Noemi
só usam as justas. ter problema com sua saia. Em um dado momento, quando a canção
Mas o uso da saia gera constrangimentos em sua usuária seja ela sugeriu que as dançarinas descessem até o chão, ela reclamou: “ai, não dá
justa ou larga. As saias de maneira geral deixam as moças excessiva- pra dançar”! Neste momento eu pensei que a saia a impedia, fisicamente,
mente expostas, ainda que algumas delas usem os diminutos e elásticos de realizar o movimento pedido pela canção, prendendo em sua perna.
shorts para dançar, ou que o ambiente seja “escuro” para impedir que os Mas ela completou: “aparece a calcinha toda”! Noemi usava uma minis-
rapazes vejam as peças íntimas das moças. O uso de um ou outro tipo saia jeans justa, sem elastano, em tom azul escuro e manchada de branco.

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Lúcia nesta noite usava o mesmo vestido que trajava na noite em um círculo e permaneceram assim por um bom tempo, agachadas e
que a conheci, do tipo tomara que caia, em malha de poliamida estam- movimentando os quadris para cima e para baixo, obedecendo à letra
pada em tons de azul turquesa e branco, de corpo longo e saia curta. da canção. Em noites como essas, saem do baile muito realizadas por
Calçava um tamanco de base de madeira, de plataforma e salto alto haverem “chamado a atenção”. Já ocorreu, inclusive, de serem filmadas
grosso, que era preso ao peito do pé por uma tira larga na cor caramelo, para o programa da Furacão 2000, equipe de som que ocupa a grade de
em couro sintético, e rebordada por miçangas turquesas que formavam programação da rede de TV Bandeirantes. Em uma noite posterior, Sofia
um desenho abstrato. Sobre o seu colo podia se ver um cordão fino dou- usava sua saia “darlene” branca e foi alertada por Lúcia em relação ao
rado, do qual pendia um berloque também dourado. Suas orelhas eram rapaz que já estava há alguns minutos dançando atrás delas, procurando
adornadas por duas argolas douradas e finas, com berloques em forma encostar a sua área genital sobre as nádegas de Sofia, cobertas pela saia
de flor que deslizavam sobre as mesmas. Seus cabelos vermelhos e ane- que se movimentava para cima e para baixo. A moça não pareceu se
lados estavam soltos, com creme, e os olhos estavam maquiados com importar. Deixou que o rapaz se cansasse e desistisse por si mesmo de
sombra clara cintilante, assim como a boca estava pintada de batom. sua brincadeira, que também era a dela.
Apesar de “adorar” saias, Lúcia reconhece que elas “atrapalham” para Já vimos a “calça” em relação à saia, seja ela justa, em tecido elás-
dançar. Geralmente ela usa por baixo desse vestido um shortinho. tico ou não, ou larga, estando acompanhada de blusas, tops e corpetes,
Conheci Vera nesta noite. Ela vestia sua calça “furadinha” rosa, sal- ou compondo vestidos. Contrastemos agora a “calça” com uma outra
picada de cristais, que é sempre acompanhada de um short bem curto, peça de roupa não muito em voga nos bailes de hoje, mas que ainda
feito em malha lisa na mesma cor. Como blusa, vestia uma espécie de assim possui um lugar de destaque no universo estético funk. Eu me
combinação em renda bege, e cujo bojo, no mesmo tecido, era acres- refiro ao short, este mesmo que vimos Andréia usando há pouco. Esta
cido de um tom rosado. Logo que a vi, a moça não me pareceu especial- peça de roupa já foi muito associada aos bailes, mas aqueles da década
mente bonita, impressão que se desfez quando ela começou a dançar. de 80 e 90, quando então ainda não existiam as calças elásticas. Esta
Seu corpo de formas arredondadas, dançando com movimentos sinuo- afirmação é feita tomando por base imagens de bailes daquela época15
sos, que eram ainda mais evidenciados pela roupa que ela vestia, dei- bem como a fala das frequentadoras. Flávia, “veterana” dos bailes, com
xou muitos rapazes boquiabertos. Ela, a quem eu jamais vi usando saia, vinte e seis anos, diz que usou short “há muitos anos atrás, antes de lan-
afirma: “Eu particularmente não gosto. Eu gosto de me esbaldar dan- çar essa moda de moletom stretch. Tinha que usar [short]. Era blusão e
çando. Você sabe que a gente põe a mão no joelho, então a pessoa que shortinho, né? Aí depois fui botando uma calça... fui melhorando o meu
fica atrás acaba vendo nossos fundilhos”. Nesta noite não a vi passar por estilo”. Verônica, hoje com vinte e sete anos, lembra do antigo “baile do
nenhum tipo de constrangimento, apesar de ela ter sido muito requisi-
shortinho”, de uma época em que a “calça” ainda não era moda.
tada durante toda a noite. Sofia, que vestia sua calça “furadinha” preta,
A “calça”, para algumas moças, surge também como uma opção
também não teve problemas naquela noite. Antes de irmos embora da
mais arrumada do que a saia e o informal “shortinho”. Lilian, ao deixar
festa, Lúcia resolveu ir até o suingue para se despedir de algumas
o seu quarto na noite em que saiu com sua saia jeans, deu uma última
amigas. Irene preferiu não subir as escadas com “aquela saia”, já que em
olhada no espelho e exclamou: “Hoje tô indo que nem uma mendiga”.
seguida as desceríamos para irmos embora.
Disse isso depois de haver reclamado que para Lidiana, sua irmã, “pra
É preciso dizer que nesta noite as moças, enquanto um grupo, cha-
tá arrumada tem que tá de calça”. A “calça da Gang”, categoria mídiatica
maram muito a atenção dos rapazes. Em diversos momentos um grupo
pela qual tornou-se possível acessar o estilo de calça que aqui discuti-
deles se aglomerava próximo a elas, olhando-as de maneira ostensiva.
Elas, naturalmente, fingiam não vê-los. Continuavam concentradas mos, usado em baile desde meados dos anos 90, tornou-se associada às
na realização de seus passos. Em um momento específico, formaram 15 Ver o documentário Rio Funk, de Sergio Goldenberg.

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“cachorras” e às “popozudas”, que seriam, segundo faz crer esse mesmo anos, ela “tem aquele corpão”. Por isso a calça fica bonita nela, pois fica
discurso midiático, moças do ambiente funk que possuiriam grande bem “apertadinha”.
liberdade sexual. Entretanto a calça é, no baile, para alguns, a escolha
Capim Canela é uma planta
das moças mais bem comportadas. Lidiana diz que “quando morava Que é medicinal
no morro ia [aos bailes do morro], mas não gostava muito” porque “as Os Perversos vão te dá
moças iam com umas roupas muito peladas, muito top e shortinho”. Os Pra você ficá legal
próprios rapazes atribuem valor similar ao objeto, dizendo que “mulher
Pra magrinha ficá legal
minha não anda daquele jeito”. Eles se referem principalmente às curtas Só Capim Canela
saias “darlene” e aos shorts. As “calças”, ao contrário da representação
gerada pela mídia, podem ser a escolha de moças que optam por manter Essa mina é magrinha
seu corpo mais encoberto e simultaneamente realçado. E geral gosta dela
Ela qué pegá um corpim
Hoje, só eventualmente vemos moças de short no baile do Clube do
Então só Capim Canela16
Boqueirão. Quando o vemos são em moletom stretch, bem justo e curto.
O short é, de fato, peça de roupa usada no cotidiano das moças, e além E a tradução,
de não pertencer à esfera da festa, pertence a situações que se dão mais
Soca a pica nela (ri)? Que fala que quando a menina é virgem, aí quando
próximas de casa. De short de malha aderente estava Andréia quando ela começa a praticá... sexo [fala meio baixo], fala que ela tá fortezinha, fala
veio me buscar para que em seguida fôssemos até sua casa. Trajando a que é muito... sexo. Acho que não é isso não. É hormônio, não é? É hormô-
mesma peça, desta vez em jeans, sem elastano, Lilian veio me buscar no nio que ela tá recebendo, né isso? É muito hormônio dela que... recebendo
ponto que saltei, próximo à sua casa, para até lá irmos. Paula, quando a dela mesmo. Corpo dela tá se evoluindo aí... Eu já falei já: ‘aquela ali era
visitei em sua casa, também vestia um short, bem justo e em popeline magrinha, olha como ela tá. O cara deve tá pegando firme ali, ó. O cara tá
amarela de algodão. E Lúcia, quando visitávamos uma “feirinha”, me pegando firme ali, como é que ela tá, toda inchadinha’. Agora homem não.
Homem fala que tá seco. Homem fala que, se tá fazendo muito, homem
mostrou um short, em uma espécie de sarja, na cor rosa, e disse-me que seca, a mulhé incha. Entendeu?!
ele era “bom” para usar “depois da praia”. Alex
O efeito que a calça causa depende do tipo de corpo que a veste.
Lúcia e Vera destacam as áreas mais importantes:
A bunda e o peito, com certeza. Qualquer pessoa. Quê que os homens
olham em você? Bunda e peito. A mulher vira, olha na bunda. Quando
você vem, olha o seu peito. Olha a bunda pra ver se tem. Se a mulher
tiver maior peitão, corpo bonitinho, e não tem bunda, cabô a mulher, né?
Nossa, cadê a bunda? Não tem. É que se você tá com a barriguinha aqui,
ó, dá pra fazer assim. Puxa assim um pouquinho, dá pra murchar, dá pra
disfarçar. Agora, bunda e peito, como é que tu vai aumentar? Não tem, vai
ficar andando que nem um pombo? Não dá! “Então é coisa de nascença.
Nasceu c’aquilo, vai morrer c’aquilo. Ou então você bota silicone (riem)”.

Este corpo deve ter formas arredondadas e ser curvilíneo. Um


corpo que tem como formas ideais as que vemos em Andréia e Paula.
Lúcia admira muito o corpo da prima, e diz que, apesar de seus dezesseis 16 Capim Canela, de “Os Perversos”.

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Lúcia é o tipo magra, de membros finos e longilínea. Quando veste “impossível isolar forma de sentido” (LAGROU, 2003: 103) e que a apa-
calças jeans mescladas ao fio de elastano parece ter “mais corpo” do que rência e o design, por si só, não são determinantes para o estabeleci-
quando veste sua “calça de moletom stretch”. E ela parece saber disso. mento de uma moda, de uma tendência estética. A calça, como já des-
Tem inúmeras calças desse tipo, que considera social e usa para traba- crito anteriormente, estica nas duas direções, horizontal e vertical. Essa
lhar, e apenas uma de moletom stretch. Para o baile usa muito suas saias propriedade de sua fisicalidade, além de conceder conforto ao corpo em
e vestidos. movimento, lhe permite ser totalmente aderente a ele, realçando-o na
dança, muito mais do que forjando-o.

Grant McCracken (1988), interessado nas propriedades físicas do


objeto, recorre a Charles Pierce para analisar o sistema de consumo da
pátina, mostrando-nos como a materialidade do objeto é usada a partir
A calça não produz um corpo, mas pressupõe um. Eu mesma pude de uma lógica cultural. A pátina é uma propriedade física que o objeto
observar isso quando vesti uma calça de moletom stretch e constatei que adquire com o passar do tempo e que no Ocidente é tratada como pro-
a calça não apenas não torna o corpo mais curvilíneo como contribui priedade simbólica, ao significar que aquele bem esteve por muitos anos
para que este pareça ainda mais “reto”. Esta impressão é confirmada por sob a posse de determinada família ou pessoa, autenticando assim suas
Luciana, uma empresária moradora do Leblon, com cerca de 40 anos, reivindicações de status. Portanto, se um jogo de chá inglês por si só é um
de classe média alta, e que não frequenta bailes funk. Falando sobre as bem que evidencia o status de seus proprietários, a pátina que se acumula
duas calças da marca Gang que comprou em meados de 2004, ela afirma em sua superfície reforça essa ideia ao dar mostras do tempo de posse do
que “na época não tava tão magra, não sei se foi a luz da cabine, só sei bem. A pátina concede provas concretas e inferíveis visualmente de que
que eu me convenci. Mas depois foi uma decepção. Não sei, mas parece aquele bem há muito pertence àquela família ou àquela pessoa, não se
que ela até achata”. Ana, frequentadora do “Baile do Boqueirão”, e com tratando de “novos ricos” ou de “recém-chegados” às elites.
quem conversei em uma noite, no próprio clube, utiliza categoria simi- No contexto funk, a elasticidade do tecido, isto é, a propriedade física
lar à utilizada por Luciana e nos confirma que é necessário ter o corpo: do objeto, é usada dentro de uma lógica cultural particular. As moças
“É mentira! Se não tiver bunda não adianta nada. Tem que ter a bunda! querem roupas justas, que realcem seus corpos na dança, revelando sua
Pelo contrário, até amassa”. As constatações acima nos mostram como é sinuosidade, que é por sua vez enfatizada por uma dança composta por

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movimentos igualmente sinuosos. Mas as roupas não podem ser apenas baixíssimo que estas calças possuem e a ausência de bolsos, especial-
justas, devem permitir liberdade aos movimentos corporais, e é neces- mente em sua parte posterior, dando ainda maior destaque às nádegas.
sário, portanto, que sejam extremamente elásticas. Os bolsos, quando existentes, são em geral simulados através de pespon-
tos feitos sobre o tecido, que desenham o seu formato. A calça, para real-
çar esse corpo redondo e enfatizar a sua sinuosidade ao dançar, deve ser
ela toda fina, fazendo pouco volume sobre o corpo, tanto através de seu
tecido, como em função de seus acabamentos. Isto gera uma necessária
ausência de bolsos, o que fez com que a antropóloga por inúmeras vezes
carregasse chaves, batons, celulares, pregadeiras de cabelo e toalhinhas
de suas informantes, em seus bolsos, bolsa e mãos.

Segundo os meios de comunicação, a “calça da Gang” produzi-


ria efeitos milagrosos sobre o corpo, garantindo bumbuns arrebitados
(MIZRAHI, 2003), tornando-se assim conhecida como aquela que “faz”
o corpo da mulher. A mídia, digo a imprensa escrita e eletrônica, parece
ter substituído a publicidade, ao fazer a intermediação entre as esferas
da produção e do consumo e ampliar o contexto de circulação do pro-
duto, ao divulgá-lo. A mídia muitas vezes promoveu o produto, reali-
zando uma propaganda indireta ou um tipo de merchandising, ao lhe
atribuir qualidades que o discurso nativo não reconhece e familiarizar
um público maior com um estilo que até então era de consumo restrito, A partir da base descrita acima, inúmeras variações poderão ser
preferencialmente entre os frequentadores dos bailes funk. Ao parti- feitas, adicionando-se à superfície do tecido elementos artesanais quase
cularizar o produto, o sistema publicitário o prepara para o consumo, barrocos, como cristais, tachas, bordados, encaixes de renda e galões,
atribuindo “conteúdos, representações, nomes e significados” (ROCHA, além dos buracos concedidos pelos ilhoses, redes, telas, talhos e ras-
1995: 69), agindo assim como mediador entre as duas esferas, da produ- gados desfiados. O tecido poderá ainda ser todo perfurado, formando
ção e do consumo, fazendo as vezes de um “operador totêmico”. motivos gráficos, como estrelas, corações ou borboletas. Esses “bura-
cos”, que para Andréia de fato determinam a classificação da “calça”,
os limites do objeto permitem entrever a pele das usuárias. Esta calça pode ser comprida,
com a “boca” larga a partir do joelho, em tecido com aspecto de índigo
O que define este estilo particular, isto é, “as dimensões limitadas sobre blue, como a que Sheila usava, ou toda justa e curta, terminando no
as quais a variabilidade do domínio é expressa” (MILLER, 1987: 128), joelho e na cor preta, por exemplo, como a de Sofia. Apesar dessas
portanto, o que limita o objeto, é o tipo de tecido empregado, o cós variações, permanecem fiéis ao estilo “calça de moletom stretch”. Mas

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determinam um sub-estilo, concedido pelo elemento barroco. É por Este estilo de calças corresponde às descrições feitas em relação à
isso que prefiro designar o objeto como a “calça”, pois o seu limite não é “calça da Gang” e é reproduzido por diversas confecções, dentre elas
dado apenas por seu tecido e sua modelagem. Uma “calça de moletom as empresas Gang, PXC, HB e Celcar. Estes produtores estão estabeleci-
stretch” “básica” é muitas vezes usada para trabalhar ou ir à escola. O dos formalmente, ao contrário daqueles que abastecem as “feirinhas”,
conforto que a materialidade do objeto concede deixou Marcinha, por centros de comércio informal nos quais é possível comprar as “calças”
exemplo, maravilhada em seus tempos de escola, quando não frequen- por preços mais acessíveis do que os encontrados nas lojas. Entretanto,
tava bailes.17 A moça conta que as calças jeans a “cortavam”, o que não muitas das moças com quem conversei adquirem as calças preferencial-
ocorria com o novo tecido. A “calça” adornada é usada exclusivamente mente nas lojas. A marca Gang é menos procurada por elas, e o seu custo
para a festa. Neste sentido deve se diferenciar, dentro do estilo “calça de pode ser um dos fatores de explicação para este fato. De toda forma, a
moletom stretch”, um sub-estilo. Este é designado por Lúcia e amigas “calça de moletom stretch” é muito mais cara do que qualquer outra das
como “cachorrona”, por chamar a atenção de todos quando elas passam. blusas e saias que as moças compram, estas sim muitas vezes nas “feiri-
Andréia classifica-o como “vulgar”, devido aos seus buracos. Flávia se nhas”. Flávia tem diversas “calças” da marca Gan, e demonstra desprezo
refere a essas peças barrocas como “calças bem diferentes”. Sofia destaca pelas marcas e pelas moças que vestem as outras “calças”, sejam elas de
a importância dos “brilhos”. “feirinha” ou de outras griffes. Andréia adquiriu suas duas “calças” na
Gang durante uma liquidação, e pagou preço similar aos pagos nas lojas
das outras marcas, em períodos de vendas não promocionais. É possível
dizer, no entanto, que o desprezo das outras moças pela marca mais cara
não está vinculado apenas ao seu custo.

17 O alívio de que fala Marcinha, concedido por uma calça justa e aderente, podendo dar a Andréia explicita ainda o elemento de rivalidade que é expresso no
impressão de ser uma vestimenta incômoda, contrasta com o desconforto que o uso contem-
porâneo do sári gera. O tradicional traje indiano, feito de uma peça única de tecido e não consumo desse estilo de calças. Ela e suas amigas, quando se trata do
cozida, pode aparentar muito conforto. Entretanto, as necessidades de uma Índia moderna estilo em questão, só usam as calças da marca Gang, as mais caras dentre
adicionou ao sári anáguas e corpetes justos que constrangem os movimentos corporais de suas
usuárias (BANERJEE e MILLER, 2003).
as diversas griffes reprodutoras do estilo. Andréia nem sequer cogita a

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possibilidade de vir a usar as calças de outras marcas, como HB, Celcar ou do mesmo mundo no qual surgiu o estilo.20 O fato de a “calça” não pos-
PXC, ou as calças “genéricas”, termo pelo qual ela designa as calças nego- suir categoria única que a designe parece indicar que o estilo que lhe
ciadas no comércio informal, sem marca ou de marcas pouco conheci- corresponde já estava de fato enraizado quando surge a categoria midiá-
das. Diz que não as usa “porque geral fica zoando”, se referindo às brin- tica “calça da Gang”. Esta, entre as meninas do funk, denota apenas o
cadeiras que ouviria no caso de usar as calças de “feirinha”. É interessante produto que é produzido por aquela empresa. Deve ser lembrado ainda
que esse consumo ostentatório parece ocorrer somente em relação às cal- que o “Rap da calça da Gang”, que ajudou a consolidar o termo, foi com-
ças de moletom stretch. As calças da marca Gang são caras também em posto pelo DJ Saddam, que à época era o responsável pelas músicas toca-
relação aos preços pagos por Andréia pelas outras peças de seu vestuário. das em uma boate instalada em um clube de elite localizado no Jardim
Por uma de suas calças Andréia pagou cento e cinquenta reais. Sua mãe, Botânico, bairro da Zona Sul da cidade. E não por acaso a letra da can-
quando soube, “falou até cantar”. A calça é ainda um símbolo de status ção se refere a um tipo de corpo que não é comum no baile.21
associado “às mulheres dos caras”, as amantes dos bandidos, porque a “de No El Turf - Caldeirão
fé”, a esposa “fiel”, deve ficar em casa e não frequenta bailes. Só tem popozão sarado
Flávia possui uma calça da marca Gang que me parece ser uma pre- Heavy Duty e Radar
cursora do sub-estilo barroco. A calça é preta e feita em um tecido duro, As mulheres malham pesado
como uma helanca. Sua composição resulta de uma mistura de noventa Caldeira é a pressão
e cinco por cento de poliéster e cinco por cento de elastano.18 O tecido Você tem que ver para crer
parece como uma malha de tricô,19 cujos pontos são bem juntinhos, não A galera grita chão
E elas começam a descer
deixando espaços entre os mesmos. Mas em um determinado momento
os pontos do tecido se abrem, formando um efeito vazado e de motivos Rebola gatinha
geométricos, que circunda as duas coxas de sua usuária e pode ser apro- Rebola até o chão
A galera perde a linha
ximado dos encaixes vistos nas calças atuais. A moça calcula que esta E canta o refrão
calça foi adquirida “há uns oito anos”, época em que já existiam as calças
de moletom stretch. Flávia retirou a etiqueta externa da peça, pois esta 20 A relação com os personagens televisivos se faz notar também nas letras das canções.
Recentemente, alguns dos personagens da novela América (TV Globo) inspiraram as letras de
era “feia”. Os seus buracos, se comparados aos das “calças” atuais, são algumas canções. Mas o figurino de Raíssa, uma “patricinha” que se converte em “funkeira”,
bem discretos. não agradou aos jovens do baile. Lúcia disse que ela é “toda desproporcional”, referindo-se ao
mau gosto da personagem ao se vestir. Alex diz que “o jeito que ela anda não é [de] funkeira”,
O discurso nativo não reconhece no objeto uma calça jeans, mas pois se veste “toda de preto igual [a] uma louca”, o que acaba por “esculachar”, “humilhar” a
designa-o através de uma categoria que o distingue por sua própria “nossa raça funkeira”. O baile surge pela primeira vez na referida novela em situação ambígua.
A personagem, ao mesmo tempo em que sai da festa, em sua noite inaugural, muito feliz com o
materialidade, por sua qualidade física. A calça é designada muitas novo mundo que descobriu, segundo ela mesma, menos “hipócrita” do que aquele no qual ela
vezes como “calça de moletom stretch” ou somente como “stretch”, cujo vive, é sequestrada na via deserta e escura que dá acesso ao baile.
o termo stretch, utilizado em inglês, explicita precisamente a capacidade 21 Em duas ocasiões estive em um baile funk onde predominavam mulheres de corpos “malha-
dos”, isto é, moldados através de exercícios corporais feitos com peso. Uma delas foi um baile
de esticar que o tecido possui, tradução literal do verbo da língua inglesa. funk realizado semanalmente pela Big Mix, equipe de som do DJ Marlboro, em uma casa de
A saia “darlene”, por sua vez, é designada por esta categoria, proveniente shows do bairro do Leblon. A outra se deu no próprio Clube do Boqueirão, em uma noite na
qual a mesma equipe, como convidada, dividiu a programação da noite com a Curtisom Rio.
Nestas duas noites pude observar que a maioria do público feminino presente usa acima de
18 O moletom stretch é composto na mesma proporção, mas a fibra predominante é o algodão. tudo as minissaias jeans, justas e não-elásticas, que expõem suas mui trabalhadas pernas, que
19 É interessante que o moletom stretch, quando possui aspecto que imita o jeans, é designado são arrematadas por sandálias de salto alto e finíssimo e fechadas por tira de couro que cir-
pela imprensa internacional especializada em moda como knitted jeans, precisamente jeans cunda o tornozelo, concedendo mais destaque para as pernas e dando ainda, segundo alguns,
tricotado. a impressão de serem as pernas mais grossas do que já são.

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Calça da Gang menina e os dois primeiros rapazes que puxavam o trem paravam em
Toda mulher quer frente a ela e faziam movimentos bizarros com o corpo, como se qui-
Duzentos reais
sessem assustar a moça. Ao mesmo tempo, era clara a sua intenção de
Para deixar a bunda em pé
brincadeira. Faziam caretas que eram assumidamente um chiste. Quem
É importante frisar, assim, que o estilo discutido aqui não se refere assistia à cena poderia ter vontade de rir. Os dois primeiros rapazes da
a uma calça jeans, mas a uma peça de roupa que muitas vezes simula a composição flexionavam, cada um deles, um de seus braços, pousando
sua aparência. A “calça de moletom stretch” não deve ser confundida, a sua mão sobre o ombro que a ela correspondia. Aproximavam, nesta
portanto, com uma calça jeans stretch, considerada por Lúcia e suas ami- posição, o braço do olho, como se fosse aquele um instrumento através
gas como social, assim como o é uma “calça de crepe”. Em uma tarde, do qual pudessem observar melhor um ponto específico do corpo da
quando eu conversava com Lúcia e suas amigas na empresa em que tra- moça, uma luneta ou uma arma, cuja mira é dada pelo cotovelo. E assim
balham, eu procurava esmiuçar com elas o estilo de calças que usam no ficavam “filmando” a moça. Mais adiante se encontram frente a frente
baile, o que o diferencia e o que o define. Carla, impaciente com minha com um trenzinho de meninas. Param em frente a elas, impedindo sua
demora em compreender algo que parece ser tão simples a elas, fala para passagem, estendendo braços e pernas, como se fossem uma única cria-
Lúcia, que vestia uma calça jeans stretch, mas não de moletom stretch: tura de quatro braços e quatro pernas. As moças, por sua vez, perma-
“Já, levanta! A sua calça é de stretch, não é?” Eu digo, então, “mas não é necem dançando, sem olhá-los. Realizam seus movimentos circulares,
de moletom”, ao que Carla retruca, dizendo: “Então. É diferente. Isso é rebolando suavemente e ignorando os rapazes. Olham para o além, sem
um stretch, mas não é uma calça que a gente vai botar prum baile, porque esboçar qualquer expressão, de desconforto ou de diversão.
não dá pra dançar com uma calça dessa”! A composição feminina segue. Param em frente a um grupo de
O corpo feminino preenche a calça e se opõe ao corpo masculino rapazes “exibicionistas”. Soltam um “uuuuu” uníssono. As saídas em
magro e anguloso, preenchido pela roupa larga que dança sobre seus trenzinhos são oportunidades bastante propícias para que as meninas
corpos. As questões relativas à alteridade não são o único aspecto da provoquem o sexo oposto. Continuam. Passam por entre os rapazes,
indumentária masculina, que se encontra igualmente relacionada ao como se não os vissem, quando têm seus cabelos, cinturas ou braços
corpo na dança. O encontro entre os trenzinhos é uma boa ocasião para tocados pelos rapazes, que o fazem, na maioria das vezes, de maneira
se observar esse contraste entre corpos, danças e estéticas femininas e gentil. Este é o momento de se ser paquerada e declinar delicadamente
masculinas. Enquanto moças dançam sinuosamente com seus corpos, os aos convites do tipo “quer namorar”? As investidas dos rapazes mais
rapazes executam movimentos angulosos. Nos trenzinhos masculinos o agressivos ou insistentes devem ser simplesmente ignoradas, não se rea-
ombro é sempre muito importante. Jogam-no para a frente com muita gindo a estas de maneira grosseira ou explícita. É curioso que esta ati-
força, ao mesmo tempo em que os quadris são deslocados em sentido tude blasé se inverte quando os rapazes estão parados, fora da área de
inverso ao ombro, mas sem rebolar. O trenzinho das moças é mais suave, dança, e as moças chegam para cumprimentá-los. Nesses momentos são
rebolam enquanto andam, às vezes param e jogam os quadris para trás. eles que parecem pouco se interessar pelas empolgadas meninas.
Fazem ainda um movimento que invade todo o corpo em seu sentido
vertical. Uma linha sinuosa que, como uma cobra, serpenteia do alto da considerações finais
cabeça até o seu baixo ventre. Em alguns momentos, esta linha sinuosa
vertical é acompanhada de outra horizontal, dada pelo movimento que é A escrita, como nota Taussig (1993), em especial a etnográfica, é um pro-
feito com um dos braços que, liderado pela mão, ondula no ar. cesso mimético criativo. E surpreendente. Ao longo dela vamos vendo
Em uma noite vi uma composição de rapazes que era muito inte- coisas que não nos foi possível ver ao longo do trabalho de campo. O
ressante. Faziam uma performance curiosa pelo salão. Escolhiam uma conhecimento está ali, mas só acessamos grande parte deste ao escrever.

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Neste trabalho, o meu objetivo principal foi fazer um inventário da que define a “calça de moletom stretch” não é apenas a “bunda”, mas um
indumentária encontrada nos corpos dos dançarinos de um baile funk. corpo todo, flexível, além dos diversos traços estilísticos e elaborações
Este ponto foi problematizado a partir de duas perspectivas. Uma que estéticas que são feitas sobre ela. Mas, ainda assim, para fazer o belo
leva em conta as oposições que os elementos que formam o conjunto resultado que faz nos bailes, a “calça” precisa de seu conteúdo. Se a calça
estabelecem entre si e outra que considera o valor intrínseco do objeto dá vida ao corpo, o corpo dá vida à calça. O que me faz perguntar se esse
e a relação, de natureza dialógica, que ele estabelece com o seu usuário. transbordamento da estética da “calça”, do baile para o seu exterior, não
Desta hipótese decorre que coisa e pessoa possuem status iguais, não carrega consigo o desejo pelo corpo que a preenche.
sendo um anterior ao outro, ou melhor, não tendo um mais importância Da mesma maneira, a “calça” não realça corpos magros e finos, de
do que o outro na relação. Estas duas hipóteses, a de que existem opo- formas retas, como eu pude constatar em minha própria carne. A esses
sições que organizam essa estética, e a do não-dualismo entre objeto e corpos, característicos da silhueta masculina funk, cairia melhor, pela
sujeito, têm por trás uma hipótese maior, dada pela noção central de lógica estética do contexto estudado, a roupa dos rapazes, que lhes dá
Clifford Geertz (1997), que entende que toda atribuição de sentido é contorno, ao invés de mostrar o contorno do corpo. De maneira que a
local e que portanto a estética, para ter seu sentido apreendido, deve roupa deles finda por dançar junto com seus corpos, indo para a frente e
estar relacionada ao seu contexto. para trás, subindo e descendo, seguindo os passos de seus donos.
A abertura de meus cadernos de campo me trouxe muitas alegrias. Chegar aos cabelos dos rapazes foi também uma grata surpresa.
A principal delas foi ver que as minhas constatações anotadas durante Quando comecei a elaborar o material que havia recolhido em relação ao
o meu trabalho de campo encontravam eco nas falas de todos os infor- gosto masculino, o que me veio à mente de início é que os rapazes seriam
mantes. Os depoimentos de uns legitimavam os dos outros, mesmo que menos criativos do que as moças. Que a sua imitação era fruto de uma
os contradissessem. Outra grande satisfação foi ver que roupa, show de pouca intimidade com os objetos, mais precisamente com as roupas e os
profissionais, músicas e letras de canções são manifestações estéticas que adornos corporais, e daí a suposta dependência das marcas e do gosto
não estão soltas no ar, mas encontram-se imbricadas umas nas outras. “estrangeiro”. Mas ao escrever, notei que não se tratava de falta de criativi-
A “calça de moletom stretch”, foco inicial de minha pesquisa que dade, mas precisamente do inverso. Trata-se de uma criação que surge da
acabou sendo englobado pelo objeto maior em que se converteu o imitação, ou de um processo que usa a imitação para criar e permanecer
núcleo deste trabalho, retornou ao final dele para me ensinar que, de fiel a si. O que me fez pensar muito em Wagner, que vê a inovação como
fato, ainda que a atribuição de sentido seja dada pelo Homem, ela não inerente aos processos culturais, na medida em que a cultura é não está-
é possível sem o objeto. O furor que a “calça” causou nos bailes não foi tica e resultante de processos dialéticos. A inovação é assim um aspecto
sem fundamento. A peça de roupa se mostrou como “tudo de bom” para esperado da cultura (1975: XVI). E aí sim as moças, que sempre me reve-
essas moças. Uma calça elástica, como uma roupa de ginástica, permi- laram uma estética mais autêntica, podem estar indicando, através de seu
tindo portanto liberdade de movimentos, conforto e proteção ao dançar, gosto, um maior fechamento para o mundo a sua volta. Uma pouca aber-
que poderia ainda adquirir o aspecto de jeans, portanto um elemento tura para a alteridade, representando elas mesmas um gosto tão álter que
de inserção na moda e no mundo global que o jeans representa, e mais, se torna fonte de fascínio para o self, para o “mundo oficial”.
ser acrescida de adornos barrocos que fizeram da “calça” uma peça de As moças possuem um gosto por roupas que pode ser dito mais
vestuário específica da esfera da festa. Para completar, mas nem por isso tradicional. São menos influenciadas pelo gosto global, ao contrário
menos relevante, a “calça” realça o corpo funk. Um corpo de formas dos rapazes. A marca das roupas, para as moças, não tem a importân-
arredondadas e que realiza movimentos circulares e sinuosos, difíceis cia que vemos entre os rapazes. A roupa feminina deve antes “te deixar
de serem executados por corpos moldados em sessão de musculação. O com um corpão”. As meninas verdadeiramente ressignificam diversos

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elementos da moda, como os cristais e os cintos elásticos, característicos por limitações do próprio tecido, fino como o “darlene”, não possui o
de um retorno da moda global à estética dos anos 80. A própria “calça aspecto de jeans de sua antecessora e nem jamais poderá ter os mesmos
de moletom stretch” é uma ressignificação, quiçá erótica, do jeans. Mas elementos barrocos. O único adorno que ela costuma possuir surge na
ainda assim, criam uma moda que guarda estreita associação com seu forma de faixas que fazem às vezes de cós, e que por serem peças duplas,
universo, concedendo uma marca estética à brasilidade, “carregando a isto é, que envolvem o uso de duas faces do tecido em sua confecção,
marca da tradição” (TAUSSIG, 1993: 130), como fazem as mulheres Cuna uma sobre a outra, podem ser mais elaboradas, através de cristais dis-
em suas blusas mola. Incorporam esses adornos vindos de fora ao tradi- cretamente salpicados sobre a mesma, fivelas que franzem e rolotês que
cional gosto pela roupa que evidencia o corpo, em especial as nádegas. resultam em efeitos drapeados. Mas os “buracos”, que muitas vezes reve-
Dão forma ao elemento estilístico que permite ao olhar estrangeiro e lam a pele de sua usuária e tão relevantes ao estilo, não são possíveis de
internacional acessar o Outro. serem realizados, pois o tecido fino não comporta tal manipulação. Esta
calça é dita “social” e “sensual”. Pode ser usada tanto para a festa como
para o trabalho quando em cores discretas como o preto. Entretanto,
ainda que social, ela jamais é aproximada da calça jeans com elastano,
pois esta última limita os movimentos corporais, o que não ocorre com
a nova calça. Digo “nova” pois pude observar essas calças serem adqui-
ridas pelas moças, ou ainda notar que elas, quando já se encontravam
em seus guarda-roupas, haviam sido compradas em épocas mais recen-
tes. A calça de moletom stretch surge na segunda metade da década de
90. Esta nova calça pode ser confeccionada no tecido “darlene”, o jersey
que entrou na moda nos últimos anos, acompanhando as modelagens
que bebem na estética dos anos 80. Mais uma ressignificação, produzida
pelo gosto dessas jovens.
O olhar, a explicitação e a não explicitação. A sedução é um aspecto
da festa ao qual a estética remete, que não foi formalmente trabalhado
na etnografia, mas que surge embutido em todo o seu decorrer. A pro-
dução estética das moças está inserida em um contexto de sedução, que
se assemelha a um exercício ou jogo no qual o que se quer é instigar o
outro, muito mais do que buscar a concretização de qualquer troca amo-
Esse maior apego às tradições estéticas não significa dizer que as rosa. O largo-justo, oposição básica que rege a estética das roupas usadas
moças não apreciem alterações que a moda possibilita. Hoje é possí- pelos jovens, remete à partição sexual que deve ser compreendida em
vel notar um certo “cansaço” pela “calça de moletom stretch”. Este fato termos da atmosfera de provocação que reina no baile. Em nenhuma
pode ser observado no surgimento de uma nova calça, que a meu ver das vezes em que acompanhei as moças presenciei encontros amoro-
apresenta um caráter de continuidade com a anterior, ainda que não sos que as envolvessem. Houve sim paquera, mas nem ao final da festa,
deva ser considerada como mais uma versão do mesmo estilo, ou uma momento que elas dizem ser adequado para aqueles que desejam “ficar”
nova variação sobre o mesmo tema. A peça de roupa é feita em uma com alguém procurar seus pares, a corte evoluiu para um desfecho dife-
malha leve, como o é o moletom stretch, é baixa e realça o corpo. Mas, rente. A sedução surge muito mais como a tônica da festa do que o seu

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fim. Moças e rapazes saem de suas casas em separado e permanecem A estética, mais especificamente a separação entre os gêneros,
assim, e as suas falas expressam que a companhia do sexo oposto “atra- remete a um aspecto interessante da esfera cotidiana desses jovens,
palha” a diversão da festa. que são as novas conjugalidades, com espaço para mais de um cônjuge,
Em uma noite estávamos no baile e Paula era a única das moças que em especial para o homem, e os novos arranjos familiares, nos quais o
estava acompanhada de seu namorado, o que a impediu de se integrar ao homem e a mulher do jovem casal vivem em separado, na casa de seus
grupo. Alguns dias depois, ela ligou para o trabalho da prima para falar respectivos pais, o que não necessariamente compromete o matrimônio.
sobre o fim de semana que se aproximava. Lúcia, muito irritada, pergun- A criança permanece com a mãe e é tradicionalmente criada por todos
tou-lhe se mais uma vez ela levaria “a mala atrás”. E a alertou, em tom os membros da família, preferencialmente as mulheres.
de ameaça: “Se levar a mala eu não vou contigo não, hein? Se tu levar a Um outro aspecto da vida cotidiana desse jovens que permaneceu
mala, vou te abandonar no Boqueirão, hein”? Alex, por sua vez, namora implícito a essas idas ao Clube do Boqueirão é uma relação com a favela
Jamiele, mas durante muito tempo se interessou por Carolina, que então que em alguns momentos parece ambígua. O baile do Boqueirão pode
não lhe correspondeu: “Eu quis, ela não quis, aí eu dei oportunidade ser considerado um “baile de comunidade”, tanto pelo fato de não pos-
pra outra. Ela não queria, eu dei oportunidade pra outra que queria”. suir brigas como por ser assim visto pelos próprios jovens. Muitos se
Hoje, quando vai ao baile, Alex tem que evitar que uma veja a outra em referem a ele como “baile do oi”, assim como a praia do Arpoador é a
sua companhia, pois tem compromisso com uma e “dá um beijinho” na “praia do oi”, em função dos muitos conhecidos que em ambos os locais
outra: “Se eu for eu fico rodando. Num paro nem com a Jamiele. Nem se encontram. Por outro lado, o Boqueirão é um baile que fica na “rua”,
paro. Falar eu falo, mas não paro de ficar junto, parado. Vou andando, e a sua procura pode estar relacionada ao desejo de se distanciar do
vou andando”. Pergunto se é apenas por causa de Carolina que ele não ambiente da favela.22 Esse movimento de entrar e sair do mundo oficial
“para” com a Jabiele: “É um dos. Quais são os outros (ri)? Não me sinto pode estar comunicando uma relação entre a esfera da festa e a margem,
bem não. Não é questão de sentir bem, é que... deixa eu ver... Não tem representada pela informalidade que rege a vida da favela. O descaso
clima [para] ficar no baile, ficar abraçado com mulher. Não tem graça”. com a estética hip hop parece ser estimulado por seu respectivo discurso
A sedução, no baile funk, reforça e remete ao antagonismo entre os da mudança que, apesar disso, busca inserção nesse mesmo “mundo ofi-
gêneros, muito mais do que expressa a busca pelo outro. Por outro lado, cial” que produz tantas desigualdades e injustiças sociais. Dessa pers-
o suingue é o ambiente que possibilita a formação do casal, do par. O pectiva, pode se dizer que o funk traz um desejo pela informalidade,
que me faz levantar a hipótese, para elaboração futura, de que a oposição característica da cultura carioca. A estética parece ter um aspecto polí-
funk/suingue pode estar expressando uma relação de interdependência tico, especialmente se pensarmos que a “calça” afigura-se como a repre-
entre os gêneros, ou uma rivalidade mútua, expressa no ambiente funk sentação de um momento de mudança histórica no consumo das classes
e dissolvida no ambiente do suingue, que pode sinalizar para a presença trabalhadoras, cuja estética surge como uma estratégia de visibilidade.
de diferentes modelos de relacionamento coexistindo e competindo. A Acredito que esse rico universo simbólico das roupas pode contribuir
dança masculina no pagode é bastante restringida, pois o papel princi- para a compreensão das formas alternativas pelas quais os por muitos
pal do rapaz é conduzir a moça. No ambiente funk os rapazes possuem considerados socialmente excluídos se incluem, e sob a minha perspec-
maior liberdade de expressão corporal, podendo vir a rebolar ou não. A tiva, esteticamente.
dança feminina, esteja ela acompanhando o funk ou o pagode român-
tico, é sempre sensual. O baile funk pode surgir assim como rito de pas-
sagem do fim da adolescência para a vida adulta, se considerarmos que
22 A vida em uma favela carioca é retratada, em romance ficcional fortemente baseado em fatos
a faixa etária predominante é de dezoito anos. verídicos, por Melo (2003), e descrita etnograficamente por Alvito (2001).

162 163
A partir da pesquisa de campo até aqui realizada é possível afir- Considerações finais
mar que a aparência de um bem e o seu uso não se encontram nunca
isolados. A estética, para ser apreendida, deve sempre ser vinculada ao
seu contexto, onde a “calça” surge como a síntese da noção de que o
valor intrínseco dos objetos é utilizado dentro de uma lógica cultural. As
moças querem roupas justas, que realcem seus corpos na dança, reve-
lando sua sinuosidade através de uma dança composta por movimentos
igualmente sinuosos. Mas as roupas não podem ser apenas justas, devem
permitir liberdade aos movimentos corporais, e portanto é necessário
que sejam elásticas. Além do conforto e da liberdade de movimentos
que franqueia o corpo na dança, o objeto realça a sinuosidade desse
corpo curvilíneo, que se torna ainda mais sinuoso vestido pela calça e
na dança funk. Os rapazes querem também roupas confortáveis, que
lhes deem liberdade de movimento, mas optam por roupas largas, que A escrita etnográfica se faz em relação estreita com a teoria antropoló-
“dançam” junto com os seus corpos. De um outro ângulo, o que temos, gica e é simultânea e definitivamente marcada pelo trabalho de campo.
de uma lado, é a evidência do corpo na dança e, do outro, a roupa que Se ao campo colocamos nossas perguntas fundamentais, nossas “hipó-
sobressai ao dançar. Podendo ser o corpo feminino representado pelo teses” de pesquisa, é também o campo que nos devolve novas perguntas.
círculo e o corpo masculino pela reta. Com esse livro, o meu objetivo principal foi realizar um inventário com-
plexo da indumentária encontrada nos corpos dos dançarinos de um
baile funk. Este ponto foi problematizado a partir de duas perspectivas.
Uma levou em conta as oposições estabelecidas entre os elementos a
formarem o conjunto instrumental. A outra considerou o valor intrín-
seco do objeto e a relação que ele estabelece com o seu usuário. A partir
desse último enquadre, coisa e pessoa adquirem estatutos equivalentes,
não sendo um anterior ao outro, nem tendo precedência um sobre o
outro. Estas duas hipóteses, a de que existem oposições que organizam a
estética investigada, e a do não dualismo entre objeto e sujeito, teve por
de trás uma hipótese maior, dada pela noção central de Geertz (1997),
que defende que toda atribuição de significado é dada localmente e que,
portanto, a estética, para ter seu sentido apreendido, deve estar relacio-
nada ao seu contexto de produção.
A abertura de meus diários de campo me trouxe muitas alegrias. A
principal delas foi constatar que as observações anotadas ao longo do
trabalho de campo encontravam eco nas falas de todos os informantes.
Os depoimentos de uns legitimavam os dos outros, mesmo que os con-
tradissessem. Outra grande satisfação foi ver que roupa, performances

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profissionais, músicas e letras de canções são manifestações estéticas que não respondia pela pouca criatividade, mas precisamente o inverso.
não estão soltas no ar, mas encontram-se imbricadas umas às outras. A Tratava-se de uma criação derivada da prática imitativa, de um processo
“calça de moletom stretch”, foco inicial de minha pesquisa, acabou englo- que cria através da imitação para que se permaneça fiel a si mesmo, como
bada pelo estudo da indumentária no baile, a partir de sua articulação argumentou Taussig (1993). O que me remeteu também a Wagner, que
com o corpo e a dança, mas retornou no capítulo final para me ensinar apreende a inovação como inerente aos processos culturais, na medida
que, de fato, ainda que a atribuição de sentido seja dada pelo humano em que a cultura é não estática e resultante de processos dialéticos. A
esta não se faz a não ser na relação com instâncias não humanas. inovação é assim um aspecto esperado da cultura (1975: xvi).
O furor que a “calça” causou nos bailes não foi sem fundamento. A relevância que as marcas esportivas possuem para os rapazes está
A peça de roupa se mostrou como “tudo de bom” para essas moças. diretamente ligada ao modo apropriativo com que produzem suas esté-
Uma calça elástica, como uma roupa de ginástica, que permitia total ticas. Incorporam o outro rival, o playboy, para a partir dele produzirem
liberdade de movimentos. Concedia conforto e proteção ao dançar, e e estabilizarem suas identidades. Por outro lado, as grifes não mostra-
estava apta ainda a adquirir o aspecto de jeans, elemento importante ram a mesma relevância para as moças. A roupa feminina deve primeiro
de inserção na moda e no mundo global. Além disso, as intervenções “te deixar com um corpão”. As meninas verdadeiramente ressignificam
estéticas recebidas, os adornos barrocos, fizeram da “calça” uma peça diversos elementos da moda, como os cristais e os cintos elásticos, carac-
de vestuário própria para a esfera da festa. Para completar, mas nem por
terísticos de um retorno, então, da moda global ao estilo distintivo dos
isso menos relevante, a “calça” realça o corpo funk. Um corpo de formas
anos 1980. A própria “calça de moletom stretch” pode ser tomada como
arredondadas, que realiza movimentos circulares e sinuosos, difíceis de
uma ressignificação erotizada do jeans. Essas moças criam assim uma
serem executados por corpos moldados em sessão de musculação. O
moda que guarda estreita associação com seu universo, incorporando
que define a “calça de moletom stretch” não é apenas a “bunda”, mas
elementos estrangeiros ao tradicional gosto pela roupa que evidencia o
um corpo todo, flexível, além dos diversos traços estilísticos e elabora-
corpo. Expressam, por meio da “calça”, o elemento estrutural do gosto
ções estéticas feitas sobre ela. Mas, ainda assim, para fazer o belo resul-
feminino funk: a roupa justa e a evidenciação do corpo. Sua autentici-
tado que fez nos bailes, a “calça” precisa de seu conteúdo. Se a “calça”
dade reside na produção de um gosto álter tal que se constituiu em fonte
dá vida ao corpo, o corpo dá vida à “calça”. O que me fez perguntar se
o transbordamento da “calça”, a sua circulação por gostos outros, não de fascínio para o self, para o “mundo oficial”.
carregava consigo o desejo pelo corpo que a preenchia. A “calça” não Esse elemento estrutural do gosto feminino funk se produz por
realça corpos magros e finos, de formas retas, como eu pude constatar oposição ao masculino e deve ser apreendido a partir da atmosfera de
em minha própria carne. Corpos mais próximos da silhueta masculina sedução reinante no baile. O olhar, a explicitação e a não explicitação são
funk, cuja roupa lhes dá volume em vez de realçar o contorno do corpo. aspectos da festa que, ainda que não formalmente trabalhados na etno-
De maneira que a roupa deles finda por dançar junto com seus corpos, grafia, surgem embutidos em todo o seu decorrer. A produção estética
indo para a frente e para trás, subindo e descendo, seguindo os passos de das moças está inserida em um contexto de sedução, que se assemelha a
seus donos, como um sobrecorpo. um exercício ou jogo no qual o que se quer é instigar o outro, muito mais
Chegar aos cabelos dos rapazes foi outra grata surpresa. Quando do que buscar a concretização de qualquer troca amorosa. O largo-justo,
comecei a elaborar sobre o material relativo ao gosto masculino, cogitei oposição básica que rege a estética das roupas usadas pelos jovens, remete
que os rapazes seriam menos criativos do que as moças. Sua imitação à partição sexual que deve ser compreendida a partir da provocação que
seria fruto de uma relação que, então, pensei ser pouco íntima com os reina no baile. Em nenhuma das vezes em que acompanhei as moças
objetos, mais precisamente, com as roupas e os adornos corporais. Mas ao presenciei encontros amorosos que as envolvessem. Houve sim paquera,
escrever, notei que sua grande afeição às marcas e ao gosto “estrangeiro” mas nem ao final da festa, momento que elas diziam ser adequado para

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aqueles que desejam “ficar” com alguém procurar seus pares, a corte O baile do Boqueirão era considerado pelos jovens como um “baile
evoluiu para um desfecho diferente. A sedução surge muito mais como de comunidade”, tanto pelo fato de não possuir brigas como por ser tido
a tônica da festa do que o seu fim. Moças e rapazes saem de suas casas como uma continuidade do espaço simbólico do território onde viviam.
em separado e permanecem assim, e as suas falas expressam que a com- Muitos jovens se referiam ao Baile do Boqueirão como o “baile do oi”,
panhia do sexo oposto “atrapalha” a diversão da festa, como podemos assim como a Praia do Arpoador era a “praia do oi”, em função dos mui-
notar a partir de uma derradeira entrada no campo. tos conhecidos que em ambos os locais encontram. Por outro lado, o
Paula era a única das moças a estar acompanhada de seu namo- Boqueirão é um baile que fica na “rua” e sua procura parecia relacionada
rado, o que a impediu de se integrar ao grupo. Alguns dias depois, ela também ao desejo de circular pelo ambiente exterior à favela, realizando
ligou para o trabalho da prima para falar sobre o fim de semana que se um movimento de entrar e sair do mundo oficial e colocando em rela-
aproximava. Lúcia, muito irritada, perguntou-lhe se mais uma vez ela ção a esfera da festa e a margem, representada pela informalidade que
levaria “a mala atrás”. E a alertou, em tom de ameaça: “Se levar a mala eu rege a vida da favela.
não vou contigo não, hein? Se tu levá a mala, [eu] vou te abandonar no Pode-se dizer que com o Boqueirão e o funk meus jovens interlocu-
Boqueirão, hein?” Alex, que por sua vez namora Jamiele, durante muito tores manifestavam um desejo pela informalidade, característico da cul-
tempo se interessou por Carolina que, então, não lhe correspondeu: “Eu tura carioca, e a estética já revelava sua dimensão política, especialmente
quis, ela não quis, aí eu dei oportunidade pra outra. Ela não queria, eu se pensarmos que a “calça” tornou-se representação de um momento de
dei oportunidade pra outra que queria”. A “outra” era Jamiele, a quem mudança histórica no consumo das classes trabalhadoras. A “calça” e os
passou a namorar. De modo que, no baile, Alex evitava que uma encon- bailes dos anos 2000 me mostraram como a moda pode se constituir
trasse a outra em sua companhia, pois tem compromisso com Jamiele em estratégia de visibilidade. O rico universo simbólico de suas rou-
e “dá um beijinho” na Carolina: “Se eu for eu fico rodando. Num paro pas contribuiu para a compreensão das formas alternativas pelas quais
nem com a Jamiele. Nem paro. Falar eu falo, mas não paro de ficar junto, os por muitos considerados socialmente excluídos se incluíam, e sob a
parado. Vou andando, vou andando”. Perguntei-lhe se apenas por causa perspectiva aqui assumida, esteticamente.
de Carolina que ele não “para” com a Jamiele: “É um dos [motivos]. As moças queriam roupas justas, que realçassem seus corpos na
Quais são os outros (ri)? Não me sinto bem não. Não é questão de sentir dança, revelando sua sinuosidade através de uma dança composta por
bem, é que... deixa eu ver... Não tem clima [para] ficar no baile, ficar movimentos igualmente sinuosos. As roupas não podiam ser apenas
abraçado com mulher. Não tem graça”. justas, mas precisavam conceder liberdade aos movimentos corporais,
A sedução, no baile funk, reforça e remete ao antagonismo entre daí a relevância de sua elasticidade. Os rapazes, por sua vez, queriam
os gêneros, muito mais do que expressa a busca pelo par romântico. roupas igualmente confortáveis, que lhes dessem liberdade de movi-
Por outro lado, o suingue é o ambiente que possibilita a formação do mento, mas que igualmente estabelecessem uma relação de correspon-
casal. A dança masculina no pagode é bastante restringida, pois o papel dência com sua corporalidade. Buscavam roupas largas que não apenas
principal do homem é conduzir a mulher. No ambiente funk, os rapazes dançavam com seus corpos mas que produziam um sobrecorpo. O figu-
possuem maior liberdade de expressão corporal, podendo vir a rebolar rino funk reafirmou exemplarmente a imbricação entre ética e estética.
ou não. A dança feminina, esteja ela acompanhando o funk ou o pagode A aparência de um bem e o seu uso não se encontram nunca isolados,
romântico, é sempre sensual. O baile funk pode surgir assim como rito e a estética, para ser apreendida, deve sempre ser vinculada ao seu con-
de passagem do fim da adolescência para a vida adulta, se considerar- texto relacional. A “calça” surge assim como a síntese da noção de que
mos que a faixa etária predominante é de dezoito anos.1 o valor intrínseco dos objetos é utilizado dentro de uma lógica cultural.

1 Em artigos posteriores, elaborei sobre esses aspectos (MIZRAHI, 2006. 2007, 2008. 2009, 2011).

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em junho de 2019.

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