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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Centro de Ciência Humanas e Sociais

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

ARQUEOLOGIA

VITTORIA SAMPAIO NETO BELIZÁRIO

CRIAÇÃO DA DEMOCRACIA ATENIENSE

RIO DE JANEIRO

2022
INTRODUÇÃO

Antes das reformas de implementação da Democracia em Atenas, a cidade-


estado helênica era regida por timocratas 1, chamados de eupátridas, os quais
comandavam as questões políticas, sociais e econômicas de Atenas. Entretanto, este
período de oligarquia gerou diversas revoltas, o que culminou em reformas no sistema
político e social da pólis grega.

Foi durante os períodos de Sólon e Clístenes que a Democracia Ateniense foi


formulada, transformando o demo da Ática no berço da democracia ocidental e de um
regime político que abriria as portas para mais grupos sociais em Atenas, mesmo que de
forma limitada.

Neste texto, iremos abordar a criação da Democracia, passando pelos períodos


de Sólon e Clístenes, os pais fundadores do regime democrático ateniense.

AS REFORMAS DE SÓLON

No século VI a.C., tivemos o período de Sólon como legislador em Atenas. Em


seus anos de governo, Sólon realizou uma série de reformas na organização política e
social em Atenas. Estas reformas foram fundamentais para a criação da Democracia em
Atenas.

Dentro das reformas de Sólon, temos a criação da Bulé e da Eclésia. A Bulé era
um conselho de magistrados, escolhidos por sorteio, que se reuniam para organizar as
leis que seriam votadas na Eclésia. Os magistrados que faziam parte da Bulé recebiam o
nome de pritanes2 e obtinham o pagamento de seis óbolos3 diários. Posteriormente,
veremos algumas reformas importantes na Bulé feitas por Clístenes. Já a Eclésia era a
assembleia de cidadãos atenienses e tinha o poder de decidir se as leis feitas na Bulé
seriam impostas ou não, ou seja, a Eclésia tinha um poder deliberativo muito parecido

1
Timocrata é um agente social importante em uma Timocracia. A Timocracia é um sistema de governo
em que apenas os ricos governam.
2
Pritanes era um magistrado de um demo. Os pritanes formavam o Conselho dos Quinhentos em
Atenas.
3
Óbolo era uma unidade de massa usada na Grécia Antiga e correspondia a cerca de 0,5 gramas. Esta
medida de peso era utilizada para medir a quantidade de metais preciosos em uma moeda. Por este
motivo, o óbolo acabou se tornando uma moeda de valor baixo, quase insignificante, já que o óbolo
correspondia à sexta parte de uma dracma, pesando 0,5 gramas de prata. Este “salário” da Bulé era mais
simbólico do que efetivo na vida de um pritane.
com o Congresso e com o Senado na atual democracia ocidental. No livro Origins of
Democracy in Ancient Greece, dos autores Kurt A. Raaflaub, Josiah Ober, Robert W.
Wallace, Paul Cartledge e Cynthia Farrar, podemos ler como a Bulé e a Eclésia
funcionavam:

Para mencionar apenas os elementos mais óbvios, a assembléia (ekklesia) se


reunia pelo menos quarenta vezes por ano. Para algumas dessas reuniões,
foram prescritos itens da agenda (44–46). Os presidentes da assembleia e do
conselho eram escolhidos por sorteio e essencialmente não podiam servir por
mais de um dia (44). O democrático “conselho de 500” (boule)—a ser
distinguido do conselho do Areópago composto por ex-magistrados (arcontes)
que eram membros vitalícios—foi escolhido por sorteio; seus quinhentos
membros, limitados a dois (não sucessivos) anos de serviço, representavam,
segundo uma fórmula sofisticada, a população de numerosos distritos da Ática.
(RAAFLAUB; OBER; WALLACE; CARTLEDGE & FARRAR, 2007, p.4,
tradução nossa).4

Sólon, também, encerrou a prática de escravidão por dívidas, algo que ampliou o
número de cidadãos atenienses, já que diminuiu o número de escravos que perdiam sua
cidadania e humanidade e passavam a ser “coisas”. Outra parte fundamental da Reforma
de Sólon foi o indulto das dívidas pendentes da época que beneficiou os devedores
atenienses. Entretanto, mesmo que as Reformas de Sólon sejam mais democráticas do
que o regime timocrata anterior, Sólon não formulou sozinho a Democracia Ateniense
stricto sensu, já que o legislador helênico manteve o voto censitário, excluindo os mais
pobres das questões políticas e sociais de Atenas. O livro Grécia e Roma, de Pedro
Paulo Funari, explica como se deram as Reformas de Sólon:

Para acalmar os ânimos, Sólon, arconte ateniense, em 594 a.C., favoreceu o


desenvolvimento econômico da indústria e do comércio, cancelou dívidas dos

4
To mention only the most obvious elements, the assembly (ekklesia) met at least forty times a year.
For some of these meetings, items on the agenda were prescribed (44–46). The presidents of the
assembly and council were selected by lot and essentially could not serve for more than one day (44).
The democratic “council of 500” (boule)—to be distinguished from the Areopagus council composed of
former magistrates (archons) who were life-long members—was selected by lot; its five hundred
members, limited to two (nonsuccessive) years of service, represented, according to a sophisticated
formula, the population of numerous districts in Attica.
cidadãos pobres e acabou com o sistema de escravidão por endividamento,
segundo o qual os atenienses pobres deviam pagar suas dívidas com o trabalho
escravo. Sólon conferiu mais poderes à assembleia popular dos cidadãos
(Eclésia) e vinculou os direitos políticos às fortunas e não mais aos privilégios
de sangue ou às ligações familiares. Se, por um lado, somente os cidadãos mais
ricos podiam se tornar arcontes, por outro, todos os cidadãos passaram a ter
direito de participar da Eclésia. Sólon instituiu também um novo conselho, a
Bulé, e um tribunal popular (mais tarde, no século v a.C., estas instituições, que
no começo não eram tão importantes, irão se sobrepor ao poder dos arcontes e
do aerópago) fazendo com que Atenas caminhasse mais alguns passos em
direção à futura democracia. (FUNARI, 2002, p. 33-34)

Em períodos posteriores, alguns filósofos falaram de Sólon. Um destes filósofos


foi Aristóteles. Para Aristóteles, as Reformas de Sólon foram, em sua maioria, positivas.
Mesmo que Aristóteles não concordasse com a Democracia, vendo-a como um governo
cheio de problemas, ele aprovava a manutenção do voto censitário, como podemos ler
no livro Política:

Sem dúvida, era necessário entregar ao povo, como fez Sólon, a nomeação e a
censura dos magistrados, sem o que ele seria escravo e, conseqüentemente,
inimigo do Estado. Mas Sólon quis ao mesmo tempo que os magistrados
fossem escolhidos dentre os nobres e os ricos: aqueles que possuíssem
quinhentos medinos de renda`, os que podiam alimentar um par de bois, ou
zeugitas, e enfim os cavaleiros, que formavam a terceira classe. A quarta
classe, composta de trabalhadores manuais, não tinha acesso a nenhuma
magistratura. (ARISTÓTELES, 2001, p. 205)

Outra importante característica da cidadania e política ateniense das Reformas de


Sólon é a escrita. Nos períodos micênicos, a palavra era um instrumento de pouco uso
na sociedade e na política grega. Escrever era um hábito de poucos, limitando-se a
sacerdotes e a escribas. Em 594 a.C., Sólon estabeleceu que as leis deveriam ser
publicadas em ambientes públicos, para que todos os cidadãos pudessem ter acesso a
elas. Este tipo de prática, podemos dizer, democratizou a leitura na época, assim como
transformou a escrita e a leitura em um artifício de poder e de intelectualidade. No livro
Sólon de Atenas: A cidadania antiga, de Gilda Naécia Maciel de Barros, podemos
entender a importância das leis escritas para o povo ateniense:
A par da progressiva assimilação e popularização de valores da aristocracia, o
homem sem estirpe encontrou na obediência às leis escritas garantia de
direitos, ainda que limitados e um novo ideal de vida. A partir do momento em
que a reparação da injustiça, escapando à vontade caprichosa de uns e à
venalidade de outros, não mais se vai fazer por fórmulas inacessíveis e sim
pelo que determinam as leis escritas, o cidadão passará a ser o primeiro
interessado em fazer com que sejam cumpridas. (BARROS, 2020, p. 56)

As Reformas de Sólon trouxeram grandes mudanças na política ateniense,


entretanto, foi nas Reformas de Clístenes, que a Democracia de Atenas stricto sensu foi
formulada e consolidada.

AS REFORMAS DE CLÍSTENES

A exclusão dos mais pobres pelo voto censitário trouxe instabilidade em Atenas.
Esta crise política na pólis grega só foi resolvida por Clístenes e por suas reformas, que
foram baseadas nas Reformas de Sólon.

As Reformas de Clístenes começaram pela divisão da cidade em dez demos. Na


Ática nas Reformas Territoriais de Clístenes Alkemeonidas, a identidade de um cidadão
não era mais regida pelo nome familiar e, sim, pelo seu nome de demo. Portanto, é
muito mais importante ser identificado por sua cidade do que ser reconhecido como
membro de alguma família. Na tese Um desvio Arcaico na obra de Platão: O uso do
modelo político geométrico de Clístenes, de Andreia Santana da Costa Gonçalves,
lemos sobre as mudanças sociais e políticas em relação à identidade nas reformas de
Clístenes:

Podemos afirmar que Clístenes pretendia romper com o antigo sistema baseado
na origem regional ou familiar, tornando-se cidadão do demos todo indivíduo
que residia naquela circunscrição, assumindo um o nome do demos a que
pertencia, sendo este um novo fator de identificação. (GONÇALVES, 2005,
p.20-21)
A principal mudança nas Reformas de Clístenes, que mais se diferenciou em
relação às Reformas de Sólon, foi o fim do voto censitário, portanto, a partir das
Reformas de Clístenes, qualquer homem livre, nascido em Atenas, filho de pais
atenienses, poderia participar da vida pública ateniense. Nas Reformas Políticas de
Clístenes, a democracia era direta, ou seja, todos os considerados cidadãos tinham o
direito de participar da Eclésia e todos os cidadãos podiam tomar decisões importantes
na pólis, caso participassem das assembleias. Entretanto, a democracia ateniense não era
praticada por mulheres, já que não eram consideradas cidadãs da cidade-estado, e,
também, entendia-se que somente nascidos de mães e pais atenienses eram cidadãos.
Menores de dezoito anos também não eram considerados membros ativos na
democracia ateniense. Funari nos mostra como funcionava a democracia em Atenas:

A democracia ateniense era direta: todos os cidadãos podiam participar da


assembleia do povo (Eclésia), que tomava as decisões relativas aos assuntos
políticos, em praça pública. Entretanto, é bom deixar bem claro que o regime
democrático ateniense tinha os seus limites. Em Atenas, eram considerados
cidadãos apenas os homens adultos (com mais de 18 anos de idade) nascidos
de pai e mãe atenienses. Apenas pessoas com esses atributos podiam participar
do governo democrático ateniense, o regime político do "povo soberano". Os
cidadãos tinham três direitos essenciais: liberdade individual, igualdade com
relação aos outros cidadãos perante a lei e direito a falar na assembleia.
(FUNARI, 2002, p. 36)

Em Atenas, a partir das Reformas de Clístenes, todos os homens livres, de


dezoito anos ou mais, que residiam em torno da pólis grega, em Ática, eram iguais,
tinham direitos iguais e os mesmos poderes de voto como qualquer outro. Este tipo de
relação pode ser explicado pelas teorias de Lugar-Antropológico de Marc Augé.

Neste contexto, existe um caráter-relacional entre os atenienses através do local


de nascença. Todos são iguais perante as leis regidas pela pólis. Em Marc Augé,
podemos enxergar o Lugar-Antropológico como referências compartilhadas e que
designam as fronteiras que marcam a relação entre os indivíduos em nível social,
político, religioso e econômico com os compatriotas e com os estrangeiros. No Lugar-
Antropológico de Marc Augé, é possível analisar como é estabelecida a relação entre os
cidadãos do demo em Ática. Em seu livro, Não lugares: Introdução a uma
antropologia da supermodernidade, Marc Augé explica exatamente a questão relacional
que encontramos, quando analisamos a relação dos povos atenienses entre si:

Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e


simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das
vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles
a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. É porque
toda antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que o
lugar, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para
aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa. O
lugar antropológico tem escala variável. A casa kabile, com seu lado sombra e
seu lado luz, sua parte masculina e sua parte feminina, a choupana mina ou ewe
com seu legba do interior, que protege quem dorme de suas próprias pulsões, e
o legba do portal, que o protege das agressões externas; as organizações
dualistas, que muitas vezes são traduzidas no solo por uma fronteira bastante
material e bastante visível, e que comandam direta ou indiretamente a aliança,
as trocas, os jogos, a religião; as aldeias ebriê ou atiê, cuja tripartição ordena a
vida das linhagens e das faixas etárias: tantos lugares cuja análise faz sentido,
porque foram investidos de sentido, e porque cada novo percurso, cada
reiteração trivial, conforta-os e confirma sua necessidade. (AUGÉ, 1994, p.36)

Atenas, portanto, se torna para os cidadãos da Ática o que Marc Augé chama de
Lugar-Identitário, ou seja, o demo na Ática é o conjunto de possibilidades, prescrições e
proibições que se formam graças ao contexto social e espacial. Neste entendimento,
todos são regidos pelas leis de Atenas, já que todos são atenienses. Vejamos o que diz
Augé sobre isto:

Esses lugares têm pelo menos três características comuns. Eles se pretendem
(pretendem-nos) identitários, relacionais e históricos. O projeto da casa, as
regras da residência, os guardiões da aldeia, os altares, as praças públicas, o
recorte das terras correspondem para cada um a um conjunto de possibilidades,
prescrições e proibições cujo conteúdo é, ao mesmo tempo, espacial e social.
Nascer é nascer num lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar
de nascimento é constitutivo da identidade individual e acontece, na África, de
a criança nascida por acidente fora da aldeia receber um nome particular
emprestado de um elemento da paisagem que a viu nascer. (AUGÉ, 1994, p.36)
Portanto, para entender a questão da cidadania ateniense, é importante
compreender como os helênicos da Ática se relacionavam de forma espacial e
relacional, como dito por Marc Augé. Os povos da Ática não se viam como gregos ou
pertencentes de uma família, mas cidadãos de seu demo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sólon e Clístenes foram os pais da Democracia de Atenas. Suas reformas


políticas foram fundamentais para a formação de uma política de democracia direta que
pode ser observada nos períodos mais importantes da cidade-estado helênica.

Entretanto, mesmo que a política ateniense se diferencie em sua organização


social com o que é hoje, muito do que foi criado politicamente pelos helênicos é
utilizado até os dias atuais nas ciências políticas e filosóficas.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret,
2001.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas, SP: Papirus, 1994.

BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Sólon de Atenas: A cidadania antiga. 2.ed. – São
Paulo, Universidade de São Paulo, 2020.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma - 2 cd. São Paulo, Contexto, 2002.

GONÇALVES, Andreia Santana da Costa. Um desvio Arcaico na obra de Platão: O


uso do modelo político geométrico de Clístenes. Dissertação de Mestrado em Filosofia
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005.

RAAFLAUB; Kurt A.; OBER Josiah; WALLACE, Robert W.; CARTLEDGE, Paul;
FARRAR, Cynthia. Origins of Democracy in Ancient Greece. Berkeley, University of
California Press, 2007.

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