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Jorge Valpaços

Ilustrações: Ana Carolina G. de Campos


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Apresenta:

Bestiário Mítico

~ Histórias não se repetem ~


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SUMÁRIO
BESTAS PRIMAVERIS 7
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BESTAS VERONIS 11
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13

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BESTAS OUTONAIS 15
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BESTAS INVERNAIS 19
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BESTAS DO CAOS 23
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BESTAS, MITOS E JOGOS 27

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PRIMAVERA

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 1

PRIMAVERA
BESTAS
PRIMAVERIS

Bestiário Mítico

7
R
EPLETA, exuberante, floresce e cria. Vida que não se
contém, divide, multiplica. Pulsa. Comunga. É plural.
Padrões difíceis de prever: belos, perfumes complexos, um desafio
para os sentidos. Imparável, impossível, incalculável, em todos,
indivisível, divina. A intersecção dos devires no bulbo prestes a
se abrir. A ternura da manhã de orvalho, do primeiro choro, da
seiva da vida. Por onde passa desafia a morte, é pura energia, é o
amanhã que se faz hoje. Uma cordilheira em altura, um oceano de
cores, um espiral crescente. É movimento, dança, êxtase, prazer.
É a intensidade do momento que se arrisca e cresce. É semente,
PRIMAVERA

pólen e sabores caudalosos. É você em seus melhores dias.

D
O CHORO um grito, nasco de desarmonia. A besta faz
o mundo girar, anoitecer, deslocar. Das matas um medo
cresce de quem teme o que não conhece. Nada anormal, porém.
As pegadas marcam os solos, cavam covas a serem semeadas.
O arfar que se ouve pouco altera seu habitat. Ele remove as
raízes do chão e se confunde com outros animais. Ele floresce
sob a pelagem e se mostra mais que uma planta. Suas garras
desenham planos, acariciam, grafam realidades em traços
firmes e ternos, abraçam sonhos e sentidos. Sua pluralidade
estreita laços, emociona. Toca corações semeando sentimentos.
Cria ativas idades.

8
E
NGANA a sorte, a tem de refém. Observa e constrói,
edifica. Sustenta a ternura em faces, cascas e cascos.
Cria pontes, casas, ninhos. Educa novas gerações. É sabor do
vento de novas ideias. É a experiência espontânea, improviso,
improvável. Faz sentir o prazer da dúvida, da descoberta. Tudo
é ferramenta, tudo é peça, tudo se integra ao seu corpo. Vence
barreiras, contorna, busca alternativas. Deixa a semente pra
si e para quem a segue. Move-se entre saltos e breves olhares,
calculando o próximo pouso em ares de liberdade. É a recusa
da simples conservação. É pois, cultura.

PRIMAVERA
D
ESCE como um raio. Farfalha, aquece. Transforma
em cinzas, fertiliza, irrompe solos com o verde
nascente. É sangrar que faz sorrir. Deixa um rastro dolorido
enquanto multiplica. Alguns padecem, outros florescem em sua
companhia. Pragas, pestes, enxames que exumam e consomem.
Clamores e temores unidos. As cores advertem. Há frutos
venenosos, espinhos, convites sedutores ao tempero de um
não-amanhã. Um belo e perigoso quadro é pintado enquanto
vida e morte se completam, sem qualquer contradição. Os ciclos
se fecham, uma folha seca é acompanhada por uma semente.

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VERÃO

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 2

BESTAS

VERÃO
VERONIS

Bestiário Mítico

11
A
LUZ, a temperança, a sobriedade. Cada passo é meticuloso.
As palavras medidas. Os movimentos precisos. Se há
sentimento, ele não é sentido. O semblante é tranquilo. Os contornos
irretocáveis, sutis. Sorte daquele que o tem por aliado. Aliás, sorte
não. Ele não se arrisca, prevê, induz, calcula. Orgulha-se por se
distanciar daqueles que se integram à paisagem. Deseja o destaque,
o brilhantismo reconhecido, a referência, a liderança. Sua forma é
fluida e adaptável. Há quem diga que não existe, sendo apenas a
maior invenção dos inventores. Governa a si com maestria. Inspira
os demais na mesma proporção que nutre a inveja. É a justa medida,
a negação dos excessos, a calma que apressa. Não arrisca, não há
VERÃO

riscos, é arisco. É, pois, síntese da razão.

S
UPERA oposições, existe em conflito. Incomoda pelo
seu ser. Mas tais olhares são de medo ou fascínio?
Como pudera ser tão bestial e astuta? Curtas são suas vias
e trajetórias. Não há rastros. Seus sentidos se pronunciam,
antevendo possibilidades. A caça, sem poréns, se realiza.
Então recolhe as presas, ainda vivas, das armadilhas. Exercita
tentáculos, garras, teias, iscas. Difícil mesmo é capturar quem
tem costume dos olhares de vítimas encarar. É desejo e mente.
É pulsar semi-comedido. É desafio sujo ao nobre sábio. Deixa
dois ossos cruzados. Marca o território. Apenas a coragem e a
loucura têm permissão para passar.

12
C
OZE o barro, cose os fios. Edifica pontes, conecta
alavancas, forja ferramentas. Não improvisa, porém,
planeja. Molda o redor, artificia e protege. Envolve, devolve,
recicla. Não se contém até concluir o iniciado. É exuberante.
Atrai olhares. Transforma dissabor em sabor. Mescla
temperos. Inventa. Não se move em demasia. É irmão da
cautela preventiva. Religa o que há muito estava em desunião.
Explica, ensina, melhora o amanhã. Olha o outro como a si
mesmo. Respeita e sempre aprende. Se despe de si e veste novos
amanhãs. Toda folha que cai é (auto)descoberta: serendipidade.

VERÃO
A
FARFALHA traz o cheiro conhecido. A destruição se
realiza em limites bem marcados. Nada além das gotas
de sangue necessárias para satisfazer sua fome de morte. Um
corte calculado milimetricamente. Não há raiva, tremores,
indícios de descontrole. As vítimas padecem sem ao menos
conhecer seus algozes. Envenena. Remove tudo que sustenta.
Sabota. Tem a solidão como amiga. Comunga com as sombras
e existe enquanto boato. Seu abraço de trevas paralisa. Os ares
exalados atraem. Os sabores são perigosamente doces. Não há
necessidade de derrubar a montanha, apenas quem a visita.

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OUTONO

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 3

BESTAS

OUTONO
OUTONAIS

Bestiário Mítico

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F
AZ-SE puro ímpeto, trota a plenos pulmões. Rasga os
céus, os mares, os solos. É força, explosão, instinto.
Nenhum odor é desconhecido. O mais singelo movimento é
observado. Todo rastro é perseguido. Sonares em alerta. Os
pelos se fazem espinho e a pele é couraça. Os dedos recebem
garras que marcam diamantes. O movimento é uma ginga
imprevisível. O porte espanta, é um colosso. Não há controle
ou paciência. Não há cautela ou comedimento. Mantém o ritmo.
Ganha fôlego. Domina territórios. Submete. Urra. Ecoa seu
brado aos sete ventos. Rompe fronteiras e transforma-se noutra
fera. É temida por muitos. E apenas quem divide o sangue
OUTONO

selvagem reconhece sua grandeza. É a epítome da besta.

A
BRE o solo, finca firme a cunha: semeia. Funde-se à relva.
Confunde olhares. Transita entre paixão e carícia. Quem
espia pela fechadura da razão encontra apenas camadas disformes.
Não a vê na paisagem. Não se vê na paisagem. A incompreensão
catalisa a fúria. A resposta galopa: aniquila futuros domados e
protege ontens-agora-depois os nutrindo com acasos e êxtases.
Seu reinado não ostenta coroas, porém galhadas. Sua envergadura
ignora limites. Suas asas lufam ventos que carregam dentes-de-
leão, içam velas, derrubam pilares. É o primeiro bocejo, o primeiro
uivo, a primeira dor. Experimenta tudo de peito aberto. Por isso há
tantas farpas cravadas em sua carne. A bestialidade é terna. Eterna.

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O
TREMOR das terras, o rio de chamas, a tempestade
elétrica, o terror dos mares. Não cultiva, destrói. Cada
parte de sua arma é corpo. Distribui o flagelo e desconhece a
piedade. É fúria impura, ornamentada pelo ódio. Agride a si
e ao redor. Seu toque queima, envenena, paralisa. Espreme
ossos em abraços brutais. Salta sobre a presa rasgando a
carne. Banha-se em sangue fresco e consome as vísceras ainda
pulsantes. Quem comunga consigo abandona a comunidade. É
vista como pária entre as demais. Não se protege de olhares
e julgamentos, uma vez que todos são potenciais vítimas. É a
destruição primal.

OUTONO
O
LÍDER da matilha. A abelha rainha. O tronco ancião. A
fera mais sábia, a natureza que ensina. Preserva e projeta.
Seleciona e extingue. Reproduz. Há quem diga que abandona seu
domínio. Há quem se encontre contigo. A contradição que porta não
reduz sua potência. Não voa tão alto, mas conhece as correntes de
vento. Não tem as presas tão afiadas, mas domina as armadilhas.
Não é tão ágil como outros, mas constrói os atalhos. Alguns dizem
que vive no limite da existência, porém encontra a plenitude no risco.
E é isto que o distingue dos demais. Mas não pense que é domável.
É fácil ser enganado por sua docilidade e se encontrar enredado por
seus truques. Não há jogo sujo ou limpo para sobreviver.

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INVERNO

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 4

BESTAS

INVERNO
INVERNAIS

Bestiário Mítico

19
O
HÁLITO da morte se pronuncia. Até mesmo a grama
treme em sua presença. A guerra. A doença. A
desnutrição. A peste. A fome. A potência da destruição encarnada.
Ao redor, terra arrasada. É a soma das ausências. O frio que
desola. O solo infértil. A carestia. Ossos se projetam de seu corpo.
Os odores são podres. As carnes em decomposição. A seiva já
se ressecou. Não há folhas nos galhos. O silêncio enlouquece. O
asco é parte de seu ser. Ser evitado é costume. Poucos o encaram
diretamente. Quem partilha o destino consigo é cruel ou insano.
Não é grande, não é preciso. Tampouco se pronuncia. Melhor é ter
suas palavras proferidas por quem está submetido. Está em todos
INVERNO

nós, ainda que neguemos, ingênuos, como tanto gostas.

O
GORGOLEJAR da vítima afogada em seu próprio
sangue era parte de seu plano. Não há nada além de
malícia e miséria em seus atos. Tens a essência do monstro
vilanesco, elegante, racional. Seduz, manipula, arrasta
multidões para o festim de corpos imolados. Não há natureza,
vida, diversidade. É bela, imponente, altiva, precisa. Para você
não há iguais, apenas subalternos. Sobrepuja a dissidência com
ódio e violência. Dança a dança da morte. Desperta audiências
que apenas precisavam de uma liderança para transpirar sua
crueldade. Esmaga, esgana, engana. Torna-se o que temem e
desejam. É o triunfo da vontade: racional e atroz.

20
C
ONTRADITÓRIA, nem por isso antinatural. A destruição
criativa conecta ciclos da existência e gera novas
possibilidades. O que nasce da floresta que se fez cinzas? Sopros
de fogo, climas inóspitos, humor instável. Não se distingue
de outros seres na miríade da existência. Domina os venenos,
elixires, emplastros e unguentos. Não é consumida por seu
próprio não-ser. É a dama dos reinícios, a rainha das revoluções,
a chama que precisa purgar as impurezas. É o devir detritívoro, a
reconstrução. Não há brechas em seu corpo. Corrói lentamente,
é diminuta e plural. A tranquilidade incomoda. Os tons são frios
em suas pétalas. É a emissária do fim dos ciclos: a ceifadora.

INVERNO
O
LHOS vermelhos, saliva caindo no chão. A fera se
aproxima. Irrompe proteções sem esforço, e isto a irrita.
A bestialidade se intensifica a cada momento. Corpos e troncos
se empilham. Contudo, não há fome, tampouco prazer. Chacina.
Asas cortam os céus em tempestade, barbatanas cingem os mares
revoltos. Não se sabe se ela desafia a natureza ou se sua fúria a
contamina. Há vapores de turbilhão. Os passos contaminam com
temor o que a cerca. Há quem deseje aniquilá-la. Mas há quem
preste cultos como uma divindade que precisa ser satisfeita a
todo momento. O dissenso é o fruto de sua existência.

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CAOS

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 5

BESTAS DO

CAOS
CAOS

Bestiário Mítico

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S
EU corpo é multicor, multiforme, multiexistencial. Está
intimamente conectada a toda forma de vida. Equilibra
criatividade, razão e instinto. Transita em distintos contextos, se
adapta com facilidade. Porém, não se satisfaz com infortúnios. A
vivacidade brota de seus poros e de seus frutos. Não se destaca
porém, pelo frutificar, uma vez que encerra em si a disputa entre
semear o futuro ou alimentar-se no presente. Por vezes irrompe
inconstante e voraz. Por vezes é cautelosa e astuta. É a seiva
mais partilhada e o sangue em todas as veias. A tensão entre
razão e instinto a define, e a criação é o fiel desta balança.
CAOS

O
CORPO repousa e contempla o horizonte. Ora o traçado
do destino se pluraliza, ora enumera infortúnios. Flerta
com a vida e a morte, tem amanhãs na palma de sua mão.
Impassível, não treme, sorri ou chora. Enigmática. Padrões de
escamas, pelos e penas hipnotizam. Desloca-se com tranquilidade.
Não há pressa ao próximo passo. Frieza no olhar. Gestos ternos e
agressivos sem ensaios prévios. Não há curvas excessivas em seus
movimentos. Tem a fuga como companheira em momentos de
dúvida. As decisões são tomadas rapidamente. Encerrar a vida e
a morte em iguais proporções em seu devir por vezes a entorpece,
fazendo-a refletir mais do que muitos dos que a julgam.

24
S
E VIDA e morte são complementares, a feracidade não
explica tal relação, mas a vivencia. O porte mediano faz
com que não se distinga nas noites escuras das demais feras que
habitam o local. O faro é aguçado. Aproxima-se. Porém hesita ao
ver sua presa. Deve acabar com ela ou preservar a prole? Não
pensa, se lança e deixa o destino decidir. Há maciez em seu toque,
mas suas garras são letais. Os olhos enxergam ao longe, buscam
pares e alvos. Se apaixona com facilidade, e é chamada de ingênua.
Contudo, se descobrir que fora enganada, pouco resta daquele que
tentou tirar vantagem sua. É fluidez, potência, liberdade. Não há
travas para quem experimenta todas as faces da existência.

CAOS
C
IPÓS com espinhos afiados. Gotas ácidas insistem
em cair, ferindo o chão. Belos chifres sempre prontos
a agredir. O vôo é calculado, a orientação é precisa. Não há
energia desperdiçada. As cores são vivas e alternadas. O
perigo é claro, mas convidativo. Não há quem se aproxime sem
estranhar. Ela avança, a morte se espalha junto ao temor. Será
que dará o bote? Está apenas marcando o território? Sua mente
é um enigma difícil de solucionar. Não arfa, porém. O salto é
preciso. Gargantas se abrem indicando a vitória. Brinca um
tanto com a vítima já sem vida. Contempla sua superioridade e
prossegue. Era apenas mais uma, afinal.

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Histórias não repetem

CAPÍTULO 6

BESTAS, MITOS
E JOGOS

Bestiário Mítico

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S
EANCHAS é um jogo pelo qual guardo muito carinho. Criá-lo
em parceria com Jefferson foi algo simplesmente fantástico,
e a Ana conseguiu transmitir a ludicidade dos 2 tempos de
jogo de forma única. Mas assim que ele foi publicado, já tinha
em mente o Bestiário Mítico como material adicional. E é claro que a
proposta de SeanchaS faria esse suplemento um tanto diferente.

Ocorre que o conceito bestiário carrega significados bem definidos em


jogos. Normalmente eles possuem como conteúdo principal estatísticas
de monstros indicando poderes especiais, fraquezas e tesouros por eles
guardados. Já as ilustrações normalmente são intimidadoras, deixando
clara a relação de oposição entre as bestas e os protagonistas das histórias
jogadas. Mas será que este tipo de bestiário seria útil em SeanchaS?

Pense comigo. O gato de Cheshire, o dragão Haku, o bisão


voador Appa, o cavalo de seis patas Sleipnir, o boto cor-de-rosa,
o pégaso, e tantos outros seres fantásticos se encaixariam em um
bestiário típico de jogos? E não seriam estes seres os monstros que
você encontraria em partidas de SeanchaS?

Como as bestas de lendas e mitos não são necessariamente


antagonistas, o bestiário de SeanchaS teve de ser diferente.
Para além, a experiência proposta em SeanchaS não se presta
necessariamente em vencê-las. Eis um ponto importante a refletir:
não há necessidade de repetir a fórmula de jogos se a proposta de
um jogo é distinta das demais. E veja, não digo que SeanchaS
é melhor ou pior que outros jogos, apenas que um bestiário nos
moldes tradicionais orientaria as partidas para uma experiência
distinta da proposta em SeanchaS.

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É por isso que não há estatísticas detalhadas, poderes ou tesouros
para os monstros do bestiário mítico. Por aqui temos apenas as
estações que as formam. Note, há 3 pontos de estações, tal qual
uma personagem comum. Ou seja, você pode jogar com estes
seres mágicos. E isto gera outra abordagem distinta de bestiários
convencionais. Se o tempo mítico de SeanchaS abre a possibilidade
dos jogadores interpretarem quaisquer personagens, este suplemento
é necessariamente orientado ao Seanchaí (contador de histórias) ?

O bestiário mítico foi desenvolvido de forma distinta, não servindo


apenas aos condutores das partidas. Este livro também é pra você
jogador, que pode consultá-lo para se inspirar quando interpretar uma
personagem no tempo mítico, inclusive podendo jogar com uma besta.
Outro campo importante de ser explorado é o jogo entre os 2 tempos
que este livro possui. Será que as bestas dos mitos são bestas mesmo? O
que impede de tais seres mágicos serem cultuados enquanto divindades
no tempo presente? Será que o bestiário mítico também não é, de
certa forma, uma ferramenta para o desenvolvimento de um panteão?
Explore essas possibilidades em suas partidas. Jogue e descubra novos
sabores para a comunidade que floresce por meio de SeanchaS.

Mas o Seanchaí também pode usar este suplemento de forma


tradicional, consultando possíveis coadjuvantes e antagonistas.
Para tanto, basta graduar a provação (1, 2 ou 3) segundo as regras
apresentadas em SeanchaS. E falando em consultas, você deve ter
notado que a redação deste livro é um pouco peculiar. Temos aqui
mais uma meta de desenvolvimento um tanto distinta aos tradicionais
bestiários de jogos. Não há exatamente características por aqui, mas a
descrição das bestas agindo, vivendo, manifestando seus poderes. Se um

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mito influencia o tempo presente, o bestiário mítico deveria se prestar a
guardar metáforas e alegorias, elementos que pudessem ser evocados ao
imaginário da comunidade no tempo presente. E é justamente por isso
que cada besta foi descrita possibilitando a leitura pelos 2 tempos.

Ainda redação, destaco que a intenção da emulação narrativa, o


contar de uma história em cada descrição. Considerando a proposta
de jogo de SeanchaS, seria um equívoco ao Seanchaí dizer que o
monstro possui 60 toneladas e se move a 120 quilômetros por hora,
mas algo como “a destruição por onde passa imprime marcas na
relva e na memória de quem presencia o flagelo colossal”. Ou ainda,
que tal algo como “o ambiente se faz luz, como a própria existência
multicor que traz esperança e vida ao redor?” Uma vez que as
estatísticas são subjacentes à provação que se apresenta (você pode
ser amigo ou mesmo jogar com uma serpente gigante voadora, por
exemplo), o enfoque narrativo em um jogo narrativo foi o centro
do desenvolvimento deste suplemento. Aliás, talvez esse tipo de
preocupação talvez seja importante em outros jogos, não é mesmo?

Mas os monstros não têm nome? Nomear é um ato de poder.


Então, cada grupo de jogo encontrará o melhor nome para a
besta. Aliás, partilho uma dica: deixe que o tempo presente, o
tempo cronológico, nomeie a besta, pois é quem conta a história
que a presentifica e confere os nomes às personagens. A escrita
do bestiário foi desafiadora pois não escrevi diretamente o texto.
Eu gravei o áudio de cada uma das descrições, antes tendo de
mentalizar os conceitos de cada estação que compunha a besta.
Após gravar, ouvia e gravava novamente várias vezes até ter o
texto que seria transcrito. Todas as narrações possuem exatamente

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o mesmo tempo de gravação (que tal tentar descobrir?). Note
que há alguns textos maiores e outros menores, o que indica a
mudança na cadência de minha fala, algo que gostei por demais
de explorar. Enquanto bestas destrutivas (inverno) possuíam uma
fala mais ágil e potente, outras com mais técnica e precisão (verão)
resultavam em gravações mais tranquilas, sem muitas variações.

Durante a criação do bestiário pensei bastante sobre os suplementos


e expansões em jogos de mesa, e refleti um tanto sobre aspectos
criativos destas obras. Eu não sei ao certo se desenvolvo bem estes
suplementos, até porque não os produzo muito. O bestiário mítico
me ajudou a perceber que a minha redação de suplementos possui
uma provocação criativa própria, não sendo apenas a continuidade ou
expansão de um jogo. E isto faz com que os suplementos abram novas
experiências, sendo possíveis de serem visitados independentemente ou
em articulação com outros jogos, gerando novos afetos e possibilidades.
Digo isto em um momento interessante de minha produção, quando
observo que jogos como encantos seriam improváveis sem Lições do
Medo (suplemento de Pesadelos Terríveis), por exemplo.

Enfim, se SeanchaS é um jogo que lida com tradição de jogos


narrativos, o bestiário mítico é um metabestiário. Afinal, será mesmo
que somos tão diferentes dos monstros?

Jorge Valpaços

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