Havia na terra de Node, um homem corcunda de roupas
rotas com um saco cinzento, pano de chão com um
coração de pedra, carga penal, condenação imposta á insensibilidade.
Era sua marca, um coração de pedra, pesado em fardo
quase insuportável dentro de um saco velho, Nicolau Avesso era seu nome ou Francisco Invertido.
Carregava o peso de seu labor, do ego obscuro
moribundo espírito a vagar sem rumo pela terra insípida, carcomida de angústia e pintada de estações.
Carrega também a tríade de nome, como o Filho de
Asvero, noturno nos passos a vagar como se fosse a multidão humana nas núpcias do fim dos tempos, jornada severa.
Em seus primeiros passos trôpegos, pra lá e pra cá como
um ébrio, sofre o peso da carga tributária da vida, em íntima sociedade com o sofrimento. No rosto reflete o cansaço e ainda assim, diante dele a jornada à frente, infinita aos seus olhos mas breve o impulso do início da transcendência do estático.
Segue o primeiro estágio a incógnita de não sentir aos
olhos o prisma, as cores vivas das flores no caminho, e pisando por cima delas, esmaga-as.
Deriva pois choro que perdura em eco sufocante das
dálias e rosas que da última, os espinhos penetram a carne dos pés e ele não sente.
Vísceras de pétalas enrugadas pelos pés dele que não
lamenta ao ver no claustro de tremendo crime , os restos mortais das flores que na penumbra exalam aromas de luto.
Enfadonho rosto a exaurir das sombras a impertinente
voz do coração de dentro, pois o de fora, pesa como os lábios frios de uma precoce tumba.
A alma prestes a sucumbir tênue nos parâmetros de um
caminho medíocre, a dilacerar todas as flores que encontrar na estrada. Sem dó, homem de todos os pêsames amorfos, num olhar sombrio que nas calçadas da vida senta-se caluniado pelas ações que propõe dar ao mundo.
Rindo diante de seu próprio reflexo na lama que distorce
o perfil do rosto trêmulo diante as águas que o vento sopra é cômica a figura aborrecida.
E vendo as borboletas órfãs, sobrevoando arbustos
secos e outros ramos ardentes, pasmo a frente, um palmo acima da lareira queima-se em ódio feroz.
Nutre dentro de si a ausência, um vazio tão frio quanto
todos os abismos, um inverno dantesco, profundo como o gelo perdido nas entranhas siderais.
Dá mais um passo no caminho e esmaga as formigas
com os pés, num prazer mórbido de sentir-se poderoso sob as pobres criaturas minúsculas.
O prazer inusitado de uma alegria sinistra que invade o
coração até transbordar na loucura de sorrisos entrelaçados na alma congelada pela indiferença Segue após a saciedade sádica e encontra um cordeiro a beira do caminho próximo as campinas verdejantes do lado oriental do caminho
Tomando uma pedra afiada como um gládio romano e
enterra na fronte do animal tão dócil, com o intuito de ver a agonia dele.
Senta-se a sombra de uma figueira velha para descansar
de seu pesadelo até mergulhar num mar revolto de sonhos turbulentos.
Entre o cais da memória e as névoas da própria alma
que obstrui as mais memoráveis luzes e retém nas sombras os mais notáveis brilhos.
Despertando do susto dentro de si mesmo, toma da
navalha de aço e desfolha a figueira deixando-a nua perante os pássaros
Que tendo seus ninhos descobertos e desprotegidos
vêem seus filhotes parecerem a mercê dos terríveis predadores. Insatisfeito com a cena tão cruel, com força feroz lança mão de um machado corta a figueira e derruba seu tronco no abismo a beira da estrada.
Erguendo-se do pó, sem dó, observa os pássaros
alvoroçados, presos nas calamidades de todas aflições por verem seus filhotes desmoronados no abismo.
Porquanto, toma das pedras pungentes e atira-as para
derrubar os pássaros desterrados, a seqüência do óbito da árvore acolhedora.
Da anunciação de tal terror sai correndo arrastando a
carga, num grito infausto e chora o peso do castigo erguendo os olhos e num seqüestro de juízo desata as lágrimas
Uma vez distante da tragédia, encontra um cisne
cuidando de seus ovos e na certeza do destemido sadismo, toma os ovos e alveja as pedras. Foge o cisne assustado, mas numa cena só, sem dó, joga o coração de pedra e acerta a cabeça do cisne que cai morto entre as pedras do campo.
O homem toma o coração duro sujo de sangue e joga
pra dentro do saco e sai arrastando-o pelos calabouços úmidos de seu caminho tristonho.
Desse destino cruel, implacável existência , condição
mórbida um horror tão medonho.
Prossegue o homem na sua trajetória trágica, em visões
insanas e sentimentos vazios de um sentido heróico, passo a passo para um destino incerto
Vê distante vindo uma criança trazendo um pão e doces,
numa alegria inocente e tão pura, sorrindo para o mundo a sua volta como se possuísse um tesouro incalculável
Uma criança só a encontrar um homem sem dó
Não pensou duas vezes, tomou o pão da criança e levou todos os doces, deixando o infante chorando a perda de suas benditas posses.
Num mar sem porto oceano sem ilhas, alma pequena a
deriva de uma desgraça tão grande que até os céus choraram chuvas.
Assim, prossegue essa alma impura e insensível em sua
jornada, arrastando um coração pesado como uma fardo de condenação
Encontrou a seguir um homem no fundo de um poço
que num descuido caiu dentro dele, gritava a agonia de sair dali.
Implorando aos ventos, esperando que qualquer brisa
levasse seus gritos, a voz de uma amargura ressuscitada pela circunstância grave.
Lutando contra a inanição e o medo das chuvas
torrenciais de um céu escuro cheio de nuvens carregadas das mais sinistras tempestades. Entre paredes que se erguem desde as profundezas como uma boca faminta querendo tragar uma alma tremendo de medo.
Sem dó, olha o peregrino estranho a insólita situação do
desesperado, mas empurrando uma pedra tapa a boca daquele abismo
Pois os gritos desesperados de socorro são sons
insuportáveis que o irritam e acendem a raiva nas suas mais sombrias. Precisavam ser sufocados.
O clamor do desesperado morre no silêncio e o homem
insolente segue sua jornada por um caminho tão torto quanto sua própria vida.
Horas depois encontra um homem em farrapos, um
pobre mendigo em seus pesares, um maltrapilho, carregando uma bolsa cheia de esmolas,
Sentado a beira do caminho, falando com a própria
sombra sigilosa, enquanto guardava seu tesouro, economia de seus caprichos. Chegando o insensato indiferente corre em direção ao pobre maltrapilho e empurra-o com violência tomando posse de seu dinheiro
Que num ousado protesto leva uma surra do monstro
humano e fica ferido e gemendo quase morto no meio da estrada
Pedindo socorro numa voz fraca que percorre o mundo e
não encontra uma alma que ouça seu gemido e venha em seu socorro.
O choro sincero de um maltrapilho que deseja extrair do
pantano da miséria seu último suspiro de uma esperança enfraquecida pela pobreza.
Vai caminhando só este homem sem dó, corroendo a
própria vida nessas tribulações que segue semeando ao próximo.
Encontra dois homens cegos, um com um bastão azul
guiando outro pelos braços, os dois cantarolando uma canção alegre. E, olhando a cena cômica, consegue rir da tragédia que vê a sua frente, é uma contradição ver o absurdo nos outro sem contudo perceber a própria loucura.
E tomando o bastão, olhos de pó, bússola dos cegos,
quebra-o e lança fora seus pedaços e empurra os dois cegos que caem no meio do caminho.
Que em desespero apalpam com as mãos o chão batido
do caminho tentando deduzir o que aconteceu e como reagir diante da catástrofe.
Mas o insensato homem prossegue seu sombrio curso
como se carregasse dentro de si uma tempestade apocalíptica que percorre todas as suas ações.
Os passos trôpegos de um espírito bruto enrijecido pela
indiferença com a miséria alheia, torna-se um miserável ambulante
Aquele que torna-se Incapaz de perceber a dor alheia
embrutece pois o próprio coração para que não possa enxergar a própria. A regra da vida é a sensibilidade, sem a consciência do sentimento iluminado pelas virtudes, o homem entra em decadência.
Assim segue um homem de mau a pior, um homem sem
dó , cheio de si mesmo e vazio de compaixão, caminhando do nascimento a morte.
Perambulando sem rumo certo e ao mesmo tempo
seguindo um paradoxo de ir ao encontro da própria ruína.
Encontra um ébrio sentado no meio da estrada, com
uma garrafa de bebida na mão, sem forças para se levantar.
Quando duas almas em farrapos se deparam em um
encontro épico, um ébrio solitário e um andarilho cansado
Um com o fardo carrega um coração de pedra e outro
asfixiado por ilusões, entre o pó e um rosto envelhecido que sofre a ruptura do tempo. Não há esperança em colher flores para quem vive semeando desertos
Subjugado pelo instinto distorcido o homem reclina-se
perante o ébrio, toma a garrafa cheia, da um gole e devolve para ele.
E sai resmungando mas foi pensando em tomar a garrafa
e arrastar para a beira do caminho
Assim, retorna e toma a garrafa do ébrio, empurra ele
para a beira do caminho, o ébrio cogita ofende-lo e com linguagem torpe solta uma multidão de palavrões ofensivos.
Mas sem domínio de si, não impede a tragédia que irá
sofrer, pois é arrastado pelas pernas, embora proteste com os braços
Suas unhas são cravadas na terra e ele ara ela com os
dedos, um sulco onde semeia suas palavras torpes. Pois dali mesmo germinará a sua ruína, com violência e jogado sem piedade de um precipício não muito grande, e continua vociferando ofensas.
Gemendo de tantas dores com pisaduras abertas,
apenas percebe que seu inimigo partiu aos gritos e risos.
O homem entra novamente no seu percurso, alguns
quilômetros a frente ele lê em uma placa, a frase inquietante
Cultiva a bondade por onde andares, pois se um dia
retornares pelo caminho verás os frutos da tua benevolência..
Um sorriso sarcástico sai de seu rosto já congelado pela
insensibilidade, seu coração não conseguia compreender a essência das virtudes.
Rumava o errante no seu erro, arrastando o saco com o
coração de pedra, agora gemendo pelo fracasso pois está enfraquecido pela jornada. Sentia as dores de um corpo debilitado uma arrogância que lutava com o desânimo uma fraqueza que se nutria da raiva.
Olhou na distância um caminho que parecia se perder
em uma névoa negra e de lá viu sair uma figura cômica e misteriosa.
Com a vista embrulhada por dificuldades parecia ver um
arco-íris ambulante perambulando pelos restos mortais de uma tempestade.
Um ser forjado nas tristezas que morreram, nos risos
arrancados do esquecimento das amarguras, um palhaço.
Que se dirige ao homem assombrado pela figura
patética mergulhada num abismo colorido de tintas faciais e gargalhadas cruas.
Como a lua vagando e fugindo dos olhos de um mendigo
torturado pelos apegos às fantasias de um adolescente em puberdade. Na calada da noite se detém por espanto e então sente medo do palhaço e se retrai trêmulo pois outra figura aparece na cena, agora uma multidão de três pessoas.
Uma mulher vestida de branco qual lírio do brejo ou a
alma pura do leite, reluzindo ao sol que se foi, o esplendor das vestes sem manchas
Atordoado tenta decifrar o enigma e o palhaço chega
aos pulos em sua presença fazendo piruetas e acrobacias por entre um cosmos vazio.
Entre as pernas dançantes e braços que se parecem com
asas de um pássaro que não sabe voar
Cai no chão, ente atrapalhado que se assusta com a face
do homem sem dó, e percorre os olhos em uma mulher de sal, como se fosse a mulher de Ló.
Caiu o palhaço com o rosto no poço de lama seca, e
chora num torrencial infinito de lágrimas como uma criança que levou uma surra. E umedeceu a lama ressequida que em espelho se transformou, onde pode ver sua face disfarçada de arco- íris, e ali mesmo admirou-se com surpresa.
Mas o homem insensato empurrou a face do infeliz
palhaço contra a lama e deixou a face dele completamente suja de terra.
Que em prantos corre atrás da noiva e limpa seu rosto
no vestido branco dela, que grita protestando contra imprudente atitude.
E o nosso herói as avessas, arrasta pelos braços o
palhaço desfigurado e lhe impõe a dura proeza de levar uma surra.
E a noiva maculada pela lama misturada com a
maquiagem do palhaço senta-se debaixo de uma figueira e começa a chorar.
O que chora ainda se sensibiliza, a tragédia do homem é
sinalizada pela piada que consegue fazer da desgraça. O palhaço sai correndo e desaparece por trás de uns arbustos se atrapalhando em um cipó e o homem ímpio ri como uma alma congelada e sem dó.
A noiva é deixada no relento e o homem insensato
prossegue seu caminho obscuro entre o passado e o futuro.
Ao longe uma figura estranha de capuz e vestes negras
com uma enxada cava uma cova a beira da estrada.
Uma cerca de arame é a fronteira com a inscrição numa
placa de metal indicando o fim do destino.
Frente a frente, o homem e o coveiro estão olhando um
para o outro e então pela primeira vez o homem sem dó sente o medo, seus lábios tremem.
E caindo em prantos, é arrastado para dentro da cova. O
coveiro cobre o corpo do infeliz com terra, arranca a placa da cerca e coloca sobre a tumba: Fim.
Autor : C. J. Jacinto Outros contos podem ler lidos em: