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Li Ping

I
Salpicos de um escarlate profundo mancharam um cenário caótico. Sob a melodia do tilintar
de espadas, a floresta tingia-se numa pintura de sangue e carnificina, as árvores chamuscando em
colunas flamejantes retratavam a guerra que desenrolava-se. Em pilhas, cadáveres ofereciam
seus últimos espasmos, seus olhos revirando numa insinuação remanescente de vida.
Um par de olhos curiosos, porém assombrados, espiava por entre frestas o desdobrar
derradeiro, contemplando o epílogo daquilo que seria um trauma. Suas mãos pálidas e trêmulas
agarraram um objeto e enfiaram-no em seu bolso. O garotinho correu para um canto,
escondendo-se por detrás de caixotes empilhados, rezando para que aquilo tudo acabasse.
Naquele instante, a porta arrebentou, chocando-se contra a parede oposta, o assoalho
rangendo conforme os passos do invasor soavam e a lâmina riscava as tábuas do chão num ruído
crespo, que trespassava os ouvidos do garotinho, amedrontando-o.
Fechou os olhos com força, rezando em seu interno, encostando-se nos caixotes. O invasor
parecia deleitar-se com o odor que pairava neste casebre, o perfume do medo fora lançado aos
ares, arreganhando os lábios num sorriso perverso; sabia que havia alguém nessa choupana.
— Por favor, não me mate, por favor, não me mate, por favor, não me mate, por favor, não
me mate, por favor, não me mate — soprou aquelas palavras para si, em súplica, redizendo
várias vezes num sussurrar.
— Calma, pirralho — disse o invasor, buscando tranquilizá-lo —, nós não matamos
criancinhas.
Qual era o formato de tranquilizar que ele idealizava? Suas palavras soavam simplesmente
assustadoras na cabeça do garotinho, que tremulava mais e mais, sua boca era blasfema, repleta
de perverso. A voz maldita do invasor, entonava tal qual um psicopata.
— Não adianta se esconder, eu sei onde você está — falou num tom zombeteiro, só para no
fim deixar escapar uma risada do mal.
O invasor, com a planta do pé, chutou os caixotes de cima, derrubando-os no garotinho.
Ergueu suas pálpebras e, num deslocamento rápido, o pequeno rolou para o lado perante o
ímpeto dos instintos, ainda que estivesse assustado, não fora paralisado completamente, corajoso
como um leão.
— Que pirralho interessante — exclamou, ainda que não muito surpreendido, pois dispunha
dos entendimentos quanto às capacidades dos bárbaros.
Os olhos pequenos do garotinho fitaram a figura encapuzada trajando uma batina taoísta, a
penumbra mascarou seu rosto sob o capuz, porém eram claras suas intenções por detrás daquela
face trevosa.
A espada que repousava em suas mãos fatiou o ar, sua ponta voltou-se para o garotinho. Um
feixe do luar refletiu na superfície da lâmina, brilhando com aspecto mortífero, de prontidão para
assassinar alguém. O pequeno não pôde deixar de assustar-se, recuando para trás, passo a passo,
até suas costas atingirem uma parede. Olhou por cima do ombro, desacreditado de realmente
esbarrar contra uma parede. Sua cabeça girou cuidadosamente, até voltar seus olhos para o
assassino.
— Bem, moleque, você está sem saída — falou —, que tal você se entregar sem eu precisar
te machucar?
— Nunca! — contestou num bradar. De imediato, o garotinho partiu rumo ao opositor,
punhos cerrados, num salto, descarregou um soco em seu estômago (talvez fosse o local mais
alto em que alcançava em relação ao adversário alto).
A figura encapuzada sorriu, admirando o pequeno com olhos maravilhados, contudo, em
uma reação impiedosa, sua perna arqueou violentamente, agredindo a criancinha num chute.
A parede em que suas costas outrora repousaram, chocaram contra a própria, amassando-a e
fraturando-a. O garotinho regurgitou um vermelhaço, um sabor metálico pairando em suas
papilas gustativas. A vista outrora curiosa, repleta de medroso, tornara-se turva, a consciência
esvaindo-se conforme os segundos lentamente corriam. Antes de sua visão transformar-se em um
breu, sentiu uma dor trespassar seus ossos e carne, como se martelos esmagando em seu corpo,
sem dúvidas fraturou múltiplos ossos.
Os olhos pequenos mergulharam numa negritude sem fim, sua consciência apagou.


O piar dos pássaros soou, atravessando o complexo florestal engolfado na névoa da manhã,
adjacente ao barulho ruidoso do rolar de rodas na estrada de terra e o roçar de correntes no solo.
Inúmeras gaiolas sobrepostas em carroças, amarradas à carruagens na dianteira por grilhões, com
humanos em seus cárceres, todos desacordados.
Os olhos oceânicos do garotinho cintilavam quando os raios de sol projetavam-se em seus
globos. Confuso, deparou-se primeiramente com outras crianças desacordadas na mesma gaiola,
cerca de oito, a cadeia há muito tornou-se apertada. Sua consciência fora acometida pelas
recordações da noite anterior em formato de lampejos.
Um mar de sangue e de cadáveres resignou-se no chão, corpos retorcidos como lírios
quebrados, sangue quente transbordando de suas compleições, manchados por um vermelho
pujante, quaisquer insinuações de vida resumiam-se em lascas perdidas de almas honradas que
partiram em combate gloriosamente.
As memórias duma noite longa passaram pelos seus olhos, momento por momento,
atrocidade por atrocidade, cada uma contemplada por olhos irados, cobiçando vingança. Um
calor apossou-se de seu corpo, parecendo renovar suas forças, a dor que outrora fora pujante,
tornara-se suportável.
O soprar dos ventos despertou-o de sua imersão na vastidão de recordações, dizimando o
furor que contorcia-se em seu interno como uma espiral colérica, restando somente fragmentos
duma estagnada raiva perpétua. Seus olhos odiosos passearam pelo cenário, reconhecendo de
imediato a estrada pela qual percorriam as carruagens, ladeada por um complexo florestal. E,
numa olhadela, esquadrinhou as carruagens nos flancos e atrás, procurando por pessoas.
— PAAAAAAAI, MÃEEEEEEE — berrou, ansiando que houvessem respostas.
E de fato, houve respostas.
— Cala a boca, pirralho, ainda é de manhã, quem que grita que nem um alienado numa
plena manhã tão bela? — retrucou um, indiferente.
Suas palavras casuais soaram como se nada tivesse ocorrido na noite passada, como se fosse
mais um acontecimento passageiro, ateando chamas repletas de odiosidade no coração do
garotinho, seus olhos piscaram com brilhos de rancor, um repugnante esculpido em um
semblante enojado.
— PAAAAAAAAI, MÃEEEEEEEEE — berrou, outra vez, desdenhando das queixas do
anterior.
— Ora seu… — Um homem desceu da carruagem à frente, em suas mãos um chicote
encouraçado.
— PAAAAAAAAAAAAAAI, MÃEEEEEEEEEEEEE — berrou novamente.
O ar assobiou num chicotear violento, atravessando perfeitamente o vão entre as grades,
golpeando o torso do garotinho com selvageria. Seu corpo infantil rechaçou para trás num
açoitar, ferindo sua pele, formando uma cicatriz sangrenta em seu peito, rasgando suas vestes.
Lágrimas escorregaram pela sua face, ele engoliu a dor e oprimiu seus berros, calando-se no
instante em que esbarrara contra em alguns de seus colegas de gaiola, acordando-os.
— Agora você pode gritar com toda vontade do mundo, pirralho — falou o homem,
chicoteando outra vez. — Grite com vontade!
Encolheu-se no chão em uma posição fetal, ainda que sentisse uma dor excruciante, resistia
corajosamente. Seus colegas, num sobressalto, distanciaram-se do garotinho golpeado
impiedosamente vez após vez. Ele mordiscou sua língua, um fio de sangue desceu pelo canto da
boca, evitando a dor das açoitadas do chicote encouraçado.
— PIJIE — outra voz vociferou em uma ordem incontestável —, CHEGA!
As chicotadas cessaram imediatamente, o homem recolheu-se e um amargor fez-se em sua
expressão.
— Você tem sorte, moleque — resmungou conforme saía.
A carne do garotinho pulsava, destilando fios de sangue de forma exacerbada através da sua
pele, as regiões golpeadas ruborizaram profundamente, feridas que não iriam sarar tão cedo. Em
seu interno, desejou aquele calor aprazível que curou-o antes. Sua vontade não permitiu-o apagar
outra vez tão fácil, aguardava resposta de seu pai ou mãe, não iria dar-se por vencido tão
prematuramente.
— Pa… Pai… Mã… Mãe… — cuspiu aquelas palavras num burburinho.
— Não faça tanta esforço! — exclamou uma garotinha companheira de cela.
— Você é maluco — falou outro. — O que aconteceu para você ser punido assim?
— Para de fal… Bestei… — Conforme a consciência do garotinho se esvaía, as vozes de
seus colegas pareciam desvanecer aos poucos.
— P… Pai… M… Mãe… — disse, dificultoso.
Um breu consumiu suas vistas, havia suportado até o último segundo, porém agora
precisava descansar caso quisesse recuperar-se, sucumbindo ao desmaio outra vez.
II

Outrora mergulhado numa negritude, despertou de sua inconsciência, desnorteado, sem


sequer saber onde estava. A escuridão, entretanto, não havia sumido, pois, assim que abriu os
olhos, o que vira fora jaulas pequenas de ferro enfileiradas numa câmara imensa. Em seus
espaços pessoas eram dispostas uma em cada gaiola, formando filas de cubículos gradeados com
seres humanos numa condição miserável em seus interiores.
A visão deturpada fez-lhe querer vomitar. As pessoas imploravam por comida, algumas
chorando incansavelmente pelas perdas de um ente próximo, outras lamentando-se pela miséria
que assolou suas vidas. Elas queriam poder vingar-se, mas não detinham poder para isso,
queriam afundar este mundo num mar escarlate profundo, queriam destroçar aqueles invasores e
fazê-los implorar para serem mortos logo. O garotinho sentiu-se impotente, embora fosse uma
criança, desejava mudar aquilo tudo.
Seus olhos cruzaram as múltiplas gaiolas, esquadrinhando novamente como quando
enjaulado na estrada, capturando com olhos, majoritariamente, crianças, mais de oitenta por
cento dos presentes ali eram crianças, dificilmente via-se adulto algum disposto num dos
cubículos.
— Li Ping — uma voz feminina disse —, é você mesmo?
Sua atenção voltou-se para uma gaiola vizinha, tal qual avistara uma garotinha enjaulada. A
penumbra impedia-lhe de descobrir a identidade da criancinha, as trevas assolavam tudo, os raios
de sol pareciam não estender-se às profundezas na qual foram metidos, como se num
subterrâneo.
— Rui Zinan? — questionou, incerto, sua visão turva inibiu sua capacidade de identificar
quaisquer seres ao derredor, confiando somente em sua audição e instintos.
— Eu mesma — falou, numa entonação desconsolada. — Você não está morto, graças ao
Imperador de Jade.
— Não, não estou — reafirmou. — Porém não podemos ficar aqui parados, independente
do que o destino nos reserva.
— Você é maluco? — indagou à Li Ping. — Nós somos crianças, nem se fôssemos capaz
de lutar, iríamos sobreviver.
— Você tem razão… — falou, conforme soava, seu ânimo quebrantava. A realidade era
dura, assim como a quebra de expectativas, não havia nada que poderiam fazer, somente
poderiam esperar pela vontade dos outros para viverem.
Li Ping afundou em pensamentos, as águas da incerteza invadiam sua mente, fazendo-o
imaginar futuros condenados, dos menos piores aos horríveis. O pensamento de seus pais
estarem mortos entranhou-se até o fundo do seu âmago, consumindo-o numa ansiedade para
saber suas atuais condições e terror. A mão outrora bronzeada, agora pálida pela fome e fraqueza
que assolava-o, tremulava, assustado, sem saber o que viria pela frente.
— Irmão Ping… — A garotinha fixou seus olhos no olhar perdido e ruminante de Li Ping,
não sabia o que discorria em seus pensamentos, mas decerto não seria algo bom.
As crianças enjauladas eram fortes — não fisicamente, mas mentalmente —, os choros que
soavam na câmara eram escassos, elas não sucumbiam às lágrimas tão fácil. Os bárbaros
instruíram-os de modo primoroso, todas ensinadas de modo único e adequado.
De repente, como lanças pálidas, feixes de luz queimaram as trevas ao ranger do portão de
aço sendo aberto, o ambiente aclarado por raios de sol oriundos dum céu azul que infiltraram-se
nesta câmara negrume. As crianças encolheram-se em suas jaulas, escondendo o rosto detrás dos
joelhos e abraçando as pernas dobradas firmemente. Li Ping assustou-se, fazendo o mesmo que
todas as outras crianças, embora fosse corajoso, ainda era um garotinho.
Um ajuntamento passeou pelo salão outrora pretume, enfileirados e disciplinados, suas
colunas rijas e nariz empinado exalavam empáfia. E, num piscar de olhos, houve luz no
ambiente, como se lamparinas acesas, proveniente magicamente sabe-se lá de onde. Apesar de
aterrorizadas, foi tudo tão místico naquele instante, que em seus olhos um cintilar de encanto
pairou, somente para num sopro retornar ao medo que rodeava-os.
— Construam uma matriz para cada fileira de gaiola — falou uma voz rouca. — O Leilão
Umbral dos Cinco Picos começará em algumas horas.
As crianças da tribo não eram desprovidas de inteligência, tampouco eram inocentes,
definindo quase que de imediato o que aconteceria: seriam leiloadas. Os pequenos que há pouco
cessaram seus choros, tornaram a gemer de tristeza em murmúrios, com medo das incertezas que
o destino lhes reservou.
As jaulas foram alinhadas em filas, e, no tempo que leva para uma vara de incenso queimar,
os homens dispuseram matrizes na parte superior de cada gaiola, era um processo rápido, já que
se fôssemos considerar a dificuldade de criar um destes arranjos para matriz, era tão fácil quanto
fechar e abrir a mão.
— Não se esqueçam, seus fedelhos — disse, ao que parecia ser o líder, às crianças
engaioladas —, caso comecem a berrar que nem gralhas, ninguém irá os escutar e vocês serão
machucados ainda. Além de ser uma matriz de teleporte, é uma matriz de silenciamento e
punição. Ah, e claro, não são todos que serão leiloados. Bem, para onde vocês vão? Vocês verão
— concluiu, sua voz soando perversa.
Os pequeninos presentes ouviram em alto e bom som, quando estivessem no palco, não
ousariam sequer abrir a boca ou fazer alardes. Em seus âmagos, sabiam que ficar quieto era o
certo a se fazer.
Eu… Eu não posso ficar parado, pensou. Outra vez a sede de poder e vingança apeteceu-
lhe, ele queria fugir dali, não por medo, mas por certeza de que ali iria voltar para uma desforra
impiedosa; outra vez não pôde deixar de amaldiçoar a si mesmo por ser tão fraco. E, outra vez,
recordou-se da lenda de mortais que ascendiam à imortalidade, nem mesmo a natureza poderia
pará-los, mover montanhas e conjurar tempestades não eram um problema, incomparáveis sob e
acima dos céus. Naquele instante Li Ping ansiava pelo poder, jurando vingança contra estes
monstros que assassinaram seus parentes sem mais nem menos.
Instigado pelos instintos de sobrevivência, agarrou aquelas barras metálicas, como se suas
mãos fossem garras, forcejando o escancarar do vão entre as grades. Nada aconteceu. Li Ping
empenhou-se o máximo que podia, mas algo parecia drenar suas forças, colocara tanta força ao
buscar escancarar aquele gradeado que chegou a ficar azul. Arfando como nunca, seus olhos
embebidos num furor sem fim para com aqueles homens que há pouco saíram aos gemidos do
portão de ferro fechando. Mais uma vez as trevas tomaram conta do ambiente.
Suas pernas bambearam, cedendo ao cansaço ocasionado previamente, embora fosse
poderoso fisicamente em tenra idade, não era páreo para aquelas jaulas feitas dum espécime
metálico negra.
Não demorou muito para algumas jaulas logo começassem a desaparecer num passe de
mágica.
— Irmã Zinan — falou Li Ping —, vai ser mais difícil para você, eu tenho certeza,
independente de aonde você for. Meu pai falava para mim que existiam homens repulsivos, que
abusavam de mulheres. Eu rezarei por você e por cada garota aqui que vocês sejam abençoadas
com a proteção de Buda.
— Irmão Ping — respondeu ela, séria —, eu rezo para que o mesmo não aconteça com
todos aqui. As pessoas que nos atacaram são desprezíveis… Caso eu tenha a chance, seja um
futuro próximo ou não, vou matar esses bastardos a quaisquer custos.
Li Ping sorriu, revelando sua arcada dentária perfeita em tenra idade, mesmo que tivesse
visto uma intenção assassina poderosíssima vazando de sua companheira, sabia que era pelos
motivos certos.
— Faço das suas palavras as minhas, Irmã Zinan.
— Irmão Ping, acho que eu sou a próxima… — falou, desconsolada. A gaiola tal qual a
confinara, de repente, começou a tremular incessante e desvanecer, pressagiando seu teleporte.
— Não fique triste, Irmã Zinan — disse Li Ping, sorrindo. — Não será somente você que
buscará vingança… Eu juro por minha vida inteira que só poderei morrer em paz quando matar
esses merdinhas e vê-los implorados por sua vida. Até lá, trate de sobreviver, pelo menos até eu
conseguir ir buscar vocês.
As palavras do garotinho soaram como a de um derradeiro líder. Não era surpresa que o
pequenino era filho do chefe da tribo. As íris âmbares de Rui Zinan irradiaram esperança,
aquelas palavras perpetuaram-se em seus pensamentos, tornando-a totalmente crente nas
palavras do garotinho de onze anos. E, apesar de ser dois anos mais velha, seu coração palpitou
forte naquele instante, somente reforçando sua crença nas frases de Li Ping.
Foi então, como nas outras vezes, num passe de mágica, a gaiola de Rui Zinan desvaneceu,
partindo misticamente para sabe-se lá onde.
Li Ping não pôde deixar de escapar um suspiro profundo, dadas as atuais circunstâncias, ele
seria o próximo. Apesar de não ter enxergado o rosto de Rui Zinan em meio ao breu, ou prestado
atenção nela quando os maníacos invasores entraram, sabia que ela era tão bonita quanto um
diamante. Rui Zinan não era ninguém, senão a jóia rara da tribo, aclamada entre os garotinhos
como a mais linda que já conheceram. O garotinho ficou um pouco pensativo, imaginando como
seria um futuro com tal beleza.
— O que você tá pensando, seu molequezinho? — Uma voz masculina pairou no outro
flanco de Li Ping.
— Wuan Beilu? — perguntou o garotinho.
— Quem mais seria? — retrucou. — E que porra de lugar é esse? Eu acabei de acordar.
Wuan Beilu era outro afamado na tribo, tinha cerca de dezesseis anos, famigerado pelas
suas capacidades em combate extremamente violentas e pujantes, domando os adversários e
fazendo-os beijar seus pés, sempre humilhando-os.
Li Ping ficou embasbacado, como esse cara acordou somente agora? Mais da metade dos
capturados já haviam acordado faziam umas horas, e este louco deu as caras somente agora. Li
Ping lembra que no momento em que os guardas passavam para construir as matrizes, ouviu um
falando da jaula ao lado, que esse moleque dormia feito um porco, desajeitado, agora sabia o
porquê, não era ninguém senão Wuan Beilu.
— Diz logo, fedelho, ou vai ficar aí me encarando?
Li Ping logo voltou à realidade.
— Eu não tenho muito tempo, então vou resumir: nós estamos presos…
— AAAAAAAAAAH, SE VOCÊ NÃO DISSESSE EU NÃO IRIA SABER.
— Deixa eu falar, cara.
— Vai logo.
— Bem, nós estamos presos, sabe-se lá por quem, mas eu ouvi um daqueles homens que…
— Que homens?
— Você vai deixar eu falar, ou não? — sequer deixou-o responder, então prosseguiu. —
Que eles são alguma coisa taoístas. E, por fim, nós seremos leiloados.
— Taoístas… — ponderou Wuan Beilu — Então são vocês, seus filhos da puta, esperem só
até eu conseguir circular meu chi, vou matar todos vocês.
— Receio que você não vá conseguir — falou Li Ping —, esses caras lutaram contra nossa
tribo inteira e fizeram um massacre. Depois eu que sou maluco.
— Cala a boca, fedelho — disse Wuan Beilu —, Você não viu nada. Inclusive, eu só vejo
pirralhos aqui, cadê os adultos e os adolescentes da nossa tribo?
— Eu não sei. Na verdade, a maioria dos engaiolados aqui são crianças, eu vi poucos
adolescentes e nenhum adulto.
— Então é assim… — Wuan Beilu tornou a silenciar-se por alguns instantes, só para então
ver um enjaulado Li Ping desvanecer-se aos poucos.
— Ei, cara, você tá bem? Você não tá morrendo não, né? — perguntou, um pouco
preocupado.
— Você — Li Ping assustou-se com tamanha ignorância — esqueceu que vamos ser
leiloados? É óbvio que eu estou indo para… para o Leilão.
— Para o palanque, garoto — disse Wuan Beilu, completando o que o garotinho queria
falar, afinal, descobrira de imediato que ele sequer sabia como os leilões eram realizados, quanto
aos locais, decerto não sabia como era.
— Isso, isso.
— Bem, boa sorte. Não sei como chegamos nessa situação miserável, mas só nos resta
sobreviver a essa crise — falou. — Eles nos deram a chance de sobreviver, então só nos resta
retaliar quando pudermos. Espera só, fedelho, quando eu me livrar de quem seja lá que for me
comprar, eu vou resgatar todos vocês.
O garotinho sentiu-se como Rui Zinan, antes da própria partir, ao escutar as palavras de seu
veterano. Olhou com olhos repletos de admirado.
— Você tem mais alguma coisa a dizer? Se não, para de ficar me encarando, esquisito.
— Ah, eu esqueci de te dizer mas… — Li Ping reforçou as informações, antes de sumir
totalmente — Ao que tudo indica, não seremos todos nós que vamos ser leiloados, alguns vão
para algum… Canto.
— Ótimo. Agora some vai, você tá cheirando a merda, moleque.
E, magicamente, um Li Ping engaiolado sumiu, deixando somente um rastro de poeira para
trás.

De repente surgiu num edifício amplo, rodeado por salas privadas atreladas ao teto cuja
silhuetas de pessoas trespassava o painel de vidro, os quais escondiam-se figuras poderosas; mais
embaixo, ao centro esférico, tal qual dispunha-se do apresentador do evento e os itens leiloados,
pessoas circundavam o círculo que sobressaltou-se do chão como que um palanque. Um pouco
desnorteado, com uma tontura, nunca havia experimentado tal método de locomoção, era
vertiginoso.
— Outra vez — anunciou o apresentador —, este é um membro da tribo dos bárbaros, cujo
foi temida mundo afora. Meus caros, assim como citado anteriormente, esta criança, assim como
as quatro leiloadas anteriormente, é valiosíssima para nós. Os lances iniciais são de cinquenta mil
taéis de ouro. Mas vocês se perguntam: "Ancião Qianrou, este não é só um pirralho? Porquê seu
preço é tão alto?", eu lhes respondo que a razão é porque, repito, assim como os outros quatro
vendidos anteriormente, este fedelho pode ser treinado como uma armas de combate e
assassinato, movido pelos instintos de matança, é como um monstro em batalha, isso, claro, ao
menos que sejam instruídos de forma correta, e, para que não se vinguem, ensinem-os o
verdadeiro significado de medo, cheguem até mesmo a ameaçá-lo de morte, pois este é ardiloso,
este moleque em especial… Ele chegou a machucar um dos nossos cultivadores no estágio pré-
celestial.
Li Ping ficou desacreditado. Como podia um ancião mentir tão descaradamente?
Pessoas comuns que podiam ferir alguém no estágio pré-celestial eram citadas somente em
mitos de lendas que saíram da roça, completamente desconhecidas e conforme evoluíam em seu
cultivo, eram descritos como forças imparáveis.
— O quê? Uma criancinha como essa? Isso é impossível — falou alguém na multidão de
pessoas.
— Você só pode estar brincando!
— Não pense que nós somos tão inocentes, Velho Qianrou.
— Calúnia! Isso é uma calúnia!
As pessoas começaram a balbuciar palavras contra o ancião, desacreditadas e desconfiadas
quanto as habilidades do moleque.
— O que vocês acham não importam — falou Qianrou, calando a multidão. — Comecem
os lances.
— Cinquenta e cinco mil taéis de ouro! — arriscou um na multidão.
— Setenta e cinco mil taéis de ouro! — falou outro.
— Oitenta e sete mil taéis de ouro!
— Noventa e cinco mil taéis de ouro!
Li Ping plantou-se sobre os pés e encarou a todos na multidão, seus olhos ferozes
emanavam uma intenção assassina, mas nada podia fazer. Uma espiral de ódio rodopiava em seu
peito, de prontidão para irromper num caos de massacre e sangue. Seu olhar arrepiava os
presentes conforme passeava por eles, piscando num escarlate profundo repleto de ameaçar.
— Quinhentos mil taéis de ouro. — Uma voz poderosa penetrou no ambiente, dando um
ultimato aos lances, cessando-os e calando as multidões.
— Muito bem, muito bem — disse o Ancião Qianrou —, alguém dará outro lance?
— Quem é o desvairado que daria outro lance? — murmurou um entre a multidão. — Dar
outro lance somente ofenderia essa pessoa, e se for de uma força incomparável, só poderíamos
rezar à Buda para que desastres não recaíssem sobre nós.
— Quem é esse maluco? Vai gastar isso tudo de dinheiro?
— É só um pirralho, quem gastaria tanto?
— Se atrevendo a gastar quinhentos mil taéis de ouro… Sequer chegamos à metade do
leilão e esse maluco atreve-se realmente a gastar uma quantia tão farta.
— Dole uma, dole duas — Qianrou deu uma pausa dramática, antes de concluir —, dole
três. A criança foi vendida para o Senhor Yuou Tuman, na Cabine Dezesseis, da Ordem de Jade
Real. Levem esta criança à Yuou Tuman, imediatamente — ordenou.
— Então é realmente uma figura tão importante…
— Este não é o Yuou Tuman que serve à Dinastia Dayu diretamente?
— Yuou Tuman, da Dinastia Dayu, dizem que suas riquezas, acumuladas pelas missões ao
longo da vida, superam economias até de alguns reinos menores…
— O que esse homem quer de uma criancinha?
— Loucura, gastar quinhentos mil taéis num pirralho. A grandeza deve ter lhe deixado
demente.
As multidões ao redor do palanque rosnavam, incrédulos, embora o dinheiro gasto não fosse
seu, persistiam em fazer comentários desnecessários.
Dois homens, trajando batinas taoístas, subiram ao palco e estenderam suas mãos rumo à
jaula de Li Ping. A matriz, esculpida na cobertura da gaiola, reluziu numa luz azulada,
desvanecendo quase que de imediato aos olhos de todos presentes, dirigindo-se à cabine
dezesseis do Lorde Yuou Tuman.
Li Ping, ao aterrissar no compartimento privado, massageou as têmporas, não fizera isso
anteriormente, mas uma vertigem superficial estonteou-lhe por alguns átimos. A primeira coisa
que viu foi um homem de costas, olhando através do painel de vidro os itens quais eram
leiloados, flanqueado por um par de pessoas encapuzadas exalando uma aura tirânica, eram
peritos verdadeiros.
— Tirem-no desta jaula — falou o de costas.
A matriz, no momento em que locomoveu-se à sala de Yuou Tuman, dissipou-se por
completo, tornando-se inútil. Os encapuzados acolheram às ordens, precipitando-se calmamente
rumo ao garotinho engaiolado. Foi num tempo de sopro, ambos os misteriosos tocaram com suas
mãos a superfície da jaula e ela desintegrou-se em fuligem ao redor do garotinho, amontoando-se
aos montes no chão.
— Garoto — Yuou Tuman falou, virando o rosto cuidadosamente e olhando para trás por
cima do ombro —, qual seu nome?
Li Ping recolheu-se num estado de perplexo. As costas daquele homem disseminavam uma
atmosfera repleta de glorificada, como que um momento intocável, atravessando as eras
imaculado. Sua voz não era maliciosa, tampouco opressora, longe disso, na verdade, carregada
duma grandeza inestimável. Trajava um hanfu branco, acentuando sua elegância e ar nobre.
— Li… Li Ping — falou, acanhado.
— Muito bem, Pequeno Li — disse, virando-se e aproximando-se do garotinho. — Eu,
Yuou Tuman, como honrado homem que sou, dou-lhe duas escolhas: você irá comigo para a
Capital Yuwan, na Dinastia Dayu, e será levado como meu discípulo; ou, você estará livre,
resumindo: quando chegarmos a capital você fará o que você quiser, daí em diante somos
desconhecidos. Então, o que você prefere?
Yuou Tuman era um homem de rosto viril, pele pálida e um porte físico avantajado. Cerca
de um metro e oitenta e oito de altura, barba por fazer descrita num maxilar quadrado,
acentuando ainda mais sua masculinidade.
Li Ping encarou-o com um semblante repleto de duvidoso, porém logo decidiu-se: jamais
escolheria a segunda opção, pois agora o que mais precisava era de um suporte poderoso, e o
Lorde Yuou Tuman quiçá fosse mais que meramente poderoso, sua ajuda seria mais que
fundamental em seu futuro.
— Eu… — prosseguiu timidamente — eu escolho ir com o Lorde Tuman.
— Muito bem — congratulou. — Eu sabia que você faria a escolha certa, Pequeno Li.
— Sim… Sim!
— Ming'er — falou o lorde —, leve Li Ping à hospedaria onde estamos estabelecidos.
Deixe que ele se limpe e dê a ele roupas novas. — Yuou Tuman vira somente um garotinho
descalço de pele oliva, bronzeada, rosto repleto de fuligem, como se acabado de passar por uma
catástrofe, vestindo um maltrapilho, sabe-se lá o que fosse, mas encobriram seu torso e pernas
aos rasgos esfarrapados.
— Sim, Lorde — disse uma moça, atirando o capuz para trás, revelando uma dama de
figura formosa. De pele pálida, apanhou os cabelos metidos no manto, arremessou-os para trás e
balançou a cabeça, que caíram numa ondulante cascata sedosa de fios negro. Os olhos cinzentos
emoldurados num rosto afilado,sobrancelhas semi arredondadas, nariz empinado e queixo
afinado. Exalava um encanto incomparável, deixando até mesmo o garotinho hipnotizado.
— Li Ping, esta é Yue Ming'er, ela vai te levar onde estamos hospedados, tudo bem?
— Sim… — assentiu timidamente.
— Ming'er, tanto eu quanto Xuanmian vamos ficar para o leilão, que sequer chegou na
metade — disse Yuou Tuman. — Assim que voltarmos, vamos partir de imediato.
— Certo, Lorde Tuman — assentiu ela. — Vamos, Irmãozinho Ping.
— Certo…
Li Ping e Yue Ming'er saíam da sala privada, porém, de repente, o garotinho parou na
metade do caminho, virando-se para o Lorde Yuou Tuman, aguardando que ambos saíssem para
voltar sua atenção ao leilão.
— Irmãozinho Ping? — questionou Yue Ming'er, estranhando a atitude repentina do
pirralho.
— Velhote Tuman — falou o garotinho, ríspido —, esses malditos que me leiloaram… Eles
machucaram meus pais, meus tios, e todos os outros da tribo… Juro pelos três reinos que vou
matar todos impiedosamente assim como eles mataram os membros da minha tribo. Eu espero
que você não me impeça no futuro.
As pupilas de Yuou Tuman estreitaram, contemplando um garotinho jurando vingança
àqueles que feriram sua tribo e permitindo vazar uma tênue insinuação de intenção assassina.
Sua face rija desmanchou-se num sorrir que transformou-se em gargalhadas e olhos admirados.
— Hahahaha. — Deixou escapar risadas. — Eu fiz bem em te trazer para o meu lado. E,
pode deixar, não vou lhe impedir de modo algum.
Yuou Tuman interessou-se mais pelo garotinho, uma criança que era capaz de transbordar
uma vontade de matar em tenra idade, embora fosse um pouco assustador — pois para adquirir
um intento tal qual, teria que assassinar pessoas, presenciar os mais horrendos cenários de
matança —, aquilo fascinava o lorde, que deu um sorriso aprazível para o garotinho, encurtando
a distância entre ambos conforme caminhava rumo ao pequeno.
— Pequeno Li — prosseguiu o lorde, abaixando-se e apoiando-se no chão somente com o
joelho e a outra perna dobrada, pondo os braços sobre a coxa, encarando o pequenino com olhos
repletos de amáveis —, eu não sei quais situações você passou na vida durante seus anos…
Quantos anos você tem?
— Onze anos.
— Onze anos de vida, mas pode ter certeza que você é um jovem com um futuro brilhante.
Caso vá perseguir as estradas dos imortais, assim como este Tuman, não deve guardar rancor
para com ninguém, isso só vai atrasar sua ascensão. Claro, dívidas devem ser retribuídas, boa ou
má, somente não ponha em seu coração demônios. Li Ping, a partir de hoje, em diante, vou lhe
considerar como um filho de sangue meu, independente do que você passe, vou lhe apoiar com
todo meu coração; só espero que você me aceite como um pai, não só como pai, mas um amigo
para a vida toda. Tudo bem, tudo vai levar seu tempo, você passou por tempos difíceis, tem
muito a processar ainda… Eu não direi nada quanto a isso, mas desde que você esteja disposto,
eu lhe acolherei como um verdadeiro filho.
Aquelas palavras soaram maravilhosas, atravessando os tímpanos e atingindo a mente do
garotinho, fazendo-o criar uma figura paternal sobre Yuou Tuman, sentindo-se mais seguro
quanto a este homem de natureza honrável.
— Senhor Tuman… — falou Li Ping, perplexo com as palavras proferidas pelo lorde.
— Agora vá, meu garoto, hoje é um dia longo. — Yuou Tuman afagou a cabeça do
pequenino carinhosamente, bagunçando os seus cabelos pretos e desgrenhados.
O rosto do garotinho escureceu conforme ele abaixou a cabeça. O chão era tocado por
lágrimas que deslizavam pelo rosto de Li Ping e gotejavam. Aos soluços, o pequeno lançou-se
sobre o homem à sua frente e cingiu-o com os braços, abraçando-o. O homem assustou-se pela
ação repentina, mas compreendeu que tudo que este sofrido garotinho precisava era de uma
figura de proteção em sua vida. Yuou Tuman retribuiu, envolvendo-o num abraço.
— Lorde Tuman — disse um encapuzado no canto, observando o decorrer do leilão —, este
item que vai ser leiloado agora pode ser do seu interesse.
— Um momento — exigiu, só para poder separar-se do garotinho após alguns instantes. —
Agora vá, Pequeno Li, este homem aqui tem pendências a resolver.
— Certo! — exclamou. — Tchau, Senhor Yuou Tuman!
Li Ping encaminhou-se à uma moça enxugando olhos lacrimejantes diante da saída,
emocionada pela cena que ocorrera previamente.
— Irmã Ming'er? — perguntou, enxugando os olhos também.
— Va… Vamos… Irmãozinho Li.
Yue Ming'er segurou a mão do garotinho e saiu, enxugando seus olhos conforme caminhava
até secá-los.
— Senhor Tuman — falou Xuanmian —, além do motivo que eu citei para você trazer esse
garotinho, ficou claro que não foi só pelo meu pedido. Qual foi a outra razão de você trazê-lo
para cá?
— Escute bem, Xuanmian — prosseguiu o lorde —, eu passei por algo semelhante, me
identifiquei com o garotinho. Quando criança, um homem me adotou, me instruiu a ser uma
pessoa de verdade… Antes disso… eu era somente mais um perdido no mundo. E, caso eu
tivesse chegado antes no leilão, teria trazido para cá os outros que foram leiloados também, eu
ouvi que seriam leiloados somente cinco nesse leilão… Esse moleque era o último, ao que
parece.
— Eu compreendo seus motivos, Lorde Tuman — falou o outro. — Mas além de tudo,
quando voltarmos, quero fazer um pedido ao mestre em relação a este garotinho.
— Caso esteja dentro do que eu possa fazer, farei o máximo que puder, caso ele esteja de
acordo também.
— Certo, Lorde.
— Quando voltarmos, também, você vai me dizer sobre essa coisa especial que ele possui.
— De acordo, Lorde — assentiu.

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