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Gilmar Francisco Bonamigo

ANTROPOLOGIA
FILOSÓFICA
notas históricas e críticas
Universidade Federal do Espírito Santo Filosofia
Secretaria de Ensino a Distância Licenciatura
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Secretaria de Ensino a Distância

Gilmar Francisco Bonamigo

ANTROPOLOGIA
FILOSÓFICA
notas históricas e críticas

UFES - Vitória
2017
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Diretoria de Educação a Distância B697a Antropologia filosófica [recurso eletrônico] : notas históricas e críticas
DED/CAPES/MEC SEAD / Gilmar Francisco Bonamigo. - Dados eletrônicos. - Vitória : Universidade
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Coordenadora do Curso de Graduação Equipe:
Licenciatura em Filosofia – EAD/UFES Lucas Reis
Claudia Murta

Revisora de Conteúdo
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Revisora de Linguagem
Amanda Poubel Bonamigo
5 POEMA Medições da Vida Humana
SUMÁRIO 6 INTRODUÇÃO
Apresentação da disciplina,
60 MÓDULO 4
História das Concepções do
Homem na Filosofia Ocidental III
programa, percurso, objeto e método O Homem na Idade Moderna
Objeto e Método da Antropologia Filosófica ..........7 (Primeira aproximação) ................................................. 61
O Homem no Pensamento da Idade Moderna
11 MÓDULO 1 (Segunda aproximação) ................................................ 66
Da Abertura Ontológica do Ser Humano
O Problema do Homem ....................................... 12 70 MÓDULO 5
Da Abertura Ontológica do ser Humano ............. 20 História das Concepções do Homem na Filosofia Ocidental I
As Concepções do Homem na Idade
36 MÓDULO 2 Contemporânea (Primeira aproximação) ........................ 71
História das Concepções do O Giro Antropológico (Segunda aproximação) ............... 78
Homem na Filosofia Ocidental
O Homem na Idade Clássica 89 MÓDULO 6 (PARTE I)
(Primeira Aproximação) ...................................... 37 História das Concepções do Homem na
Quem é o Homem? (Segunda Aproximação) ....... 43 Filosofia Ocidental V - A Era Pós-Moderna
O Homem na Era Pós-Moderna e
49 MÓDULO 3 Os Problemas do Habitat Humano ............................... 90
História das Concepções do Um Passo para ‘Baixo’ ................................................. 119
Homem na Filosofia Ocidental II Apontamentos Conclusivos ......................................... 127
O Homem na Era Cristão-Medieval
(Primeira aproximação) ...................................... 50 130 MÓDULO 6 (PARTE II)
O Homem no Pensamento Cristão A Crítica: O Cerne do Humanismo Ocidental desde Lévinas
(Segunda Aproximação) ..................................... 56 No Iinterior do Humanismo Ocidental .......................... 131
Apontamentos Conclusivos ......................................... 142

146 CONCLUSÃO

148 SOBRE O AUTOR


MEDI A meditação sobre o Homem
A reflexão sobre SI mesmo
Exige silêncio
Don

Bon

amigo

ÇÕES
Precisa de tempo
Espera pela escuta de
Requer vontade las
É indispensável um desejo imenso.

DE
Fuentes
O olhar sobre si mesmo
Exige um certo grau de solidão Exige a concretude,
Requer largas medidas de atenção; A cadência das ações

VIDA
A escuta da alma Mostra por onde anda a virtude,
Precisa de tato O olhar pelos outros
Como aquele que ausculta o coração; Requer as mãos da solicitude, A alma quando se perde

HU
O amor pelos outros A distância de si mesmo Destrói o caminho de casa
Faz perder da visão todos os outros; O Homem quando não ama
A graça atinge a alma Morre de sede perto das águas.
Mas antes de voltar O olhar sobre o homem

MANA Requer a passagem pelo corpo


As mãos quando se fecham
É um amor que começa
A meditação sobre si mesmo
Esmagam o brilho da face É um amor que nunca termina
O silêncio que sempre começa
Cria as brechas para a entrada
Da estrada do Sentido da Vida!
INTRODUÇÃO
Apresentação
da disciplina,
programa,
percurso,
objeto
e método
1
OBJETO E MÉTODO
DA ANTROPOLOGIA
FILOSÓFICA

As tentativas de tematizar o Homem têm uma história; a concep- Atualmente, temos várias tentativas de definir esse método,
ção do homem atual integra traços, fundamentalmente, da tradição seguindo diferentes inspirações epistemológicas e utilizando certa
clássica e bíblico-cristã. Sinteticamente, é o homem como portador ciência como paradigmática:
de uma razão universal e dotado de liberdade de escolha, que fun- •  Método empírico-formal: sob o paradigma das ciências
damentam a Ética e a Metafísica. A Antropologia está entre as duas, da natureza;
interligando razão teórica e razão prática. Hoje essa ideia do homem •  Método dialético: sob o paradigma das ciências históricas;
perdeu, de modo aparentemente definitivo, a sua unidade. Proble- •  Método fenomenológico: sob o paradigma das ciências
ma: como recuperar certa ideia unitária do homem? Essa é uma das do psiquismo;
tarefas fundamentais, difíceis e atuais da Reflexão Antropológica e, •  Método hermenêutico: sob o paradigma das ciências da cultura;
para isso, precisa definir com rigor o seu próprio método.1 •  Método ontológico: sob o paradigma da ontologia clássica.
“O discurso filosófico sobre o homem está sujeito ao risco per-
manente do reducionismo, na medida em que um dos polos epis-
1 Indicamos aqui, de modo esquemático, como Henrique C. de Lima Vaz temológicos fundamentais, que definem o espaço da compreensão
põe a questão do método. Para aprofundamento, ver sua obra Antro-
do homem, passa a imprimir uma direção privilegiada na ordem
pologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. Isto serve de contraponto
e pano de fundo para a maneira como aqui trabalharemos as questões do discurso. Esses polos são a Natureza, o Sujeito e a Forma”. A
antropológicas; metodologicamente, praticamos um exercício de her- Antropologia deve coordenar esses três polos de forma equilibrada.
menêutica, em proximidade a Paul Ricoeur e sua hermenêutica crítica.
Fundamentalmente trabalhamos com duas atitudes articuladas dialeti- Ora, se o ‘objeto’ em questão é o homem, que também é sujeito,
camente: a pertença e o distanciamento crítico. Os elementos desenvol- então precisamos considerar a compreensão espontânea e natural
vidos por Lima Vaz vão atravessar o nosso exercício hermenêutico. Para
maior aprofundamento da Hermenêutica Crítica de Paul Ricoeur, ver
que o homem tem de si mesmo – pela qual ele faz uma imagem de
sua obra O Conflito das Interpretações. Paris: Seuil, 1967. si mesmo –, segundo a tradição cultural, com o estilo de vida por

Antropologia Filosófica 7
ele adotado, com os símbolos do seu grupo humano – muitas vezes logicamente, pois o que é tematizado e ‘objetivado’ é justamente o
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

não codificados explicitamente. Trata-se da pré-compreensão de si, conteúdo ontológico, no qual está a resposta à pergunta sobre a possi-
anterior à compreensão fornecida pelas ciências humanas ou ou- bilidade radical do Sujeito como Sujeito. Tal compreensão não é uma
tros sistemas de conhecimento formalizado (filosofias, teologias, compreensão sobre o sujeito, mas do Sujeito – enquanto se conhece e
etc.). A pré-compreensão se enraíza no ‘mundo da vida’ (Lebenswelt se autocompreende como Sujeito – que procura dar razão de si mes-
- Husserl) com sua historicidade. mo, o que o distingue dos outros seres. A compreensão filosófica sis-
Com isso, aparecem três níveis de conhecimento do homem que temática precisa exprimir, a nível conceptual-filosófico, o processo
a Antropologia Filosófica deve levar em conta em seu procedimento real e abrangente do auto constituir-se como Ser-Homem do Sujeito.
metódico para chegar a uma organização sistemática: Nesse sentido, o filósofo seria o intérprete da humanidade.
•  Nível da pré-compreensão: aí está a imagem espontânea do ho-
mem, formada a partir da experiência natural da vida, expres- 2.2.
sa em representações, símbolos, crenças, etc.; As Dimensões da Experiência Antropológica
•  Nível da compreensão explicativa: aí se situam as ciências
humanas, com seus métodos e resultados; A Antropologia Filosófica não busca o ser do homem como subjetivi-
•  Nível da compreensão filosófica ou transcendental: aí entra a dade abstrata do Eu Penso, alcançada pela suspensão entre parênte-
busca das condições de possibilidade da pré-compreensão ses do mundo-da-vida. Trata-se de buscar o homem na sua ‘experiên-
e da compreensão explicativa. Trata-se da tematização da cia situada’, na sua finitude. As dimensões da experiência filosófica
experiência ‘original’ que o homem faz de si mesmo, ‘como ser são as dimensões da situação humana. A experiência humana é uma
capaz de dar razão do seu próprio ser, ou seja, capaz de formu- interpenetração de presenças: o homem é uma presença no mundo,
lar uma resposta à pergunta: “o que é o homem?”, expressa em um ser-com-os-outros, uma presença-a-si-mesmo. Natureza, Socie-
categorias filosóficas. Tais categorias devem ter um conteúdo dade e eu constituem o espaço fundamental da experiência antro-
preciso e devem ser articuladas num discurso sistemático. pológica; mas o homem tem também a experiência de poder abrir-se
ao Transcendente, como Presença ou como Ausência, diante do que
2.1. o discurso filosófico experimenta sua limitação.
Categorias Antropológicas e seu Sistema

Na compreensão filosófica do homem, Sujeito e Objeto se entrecru-


zam – diferença do olhar da ciência, distanciamento – epistemo- 8
2.3. 2.4.
Itinerário Metodológico da Antropologia Filosófica Estrutura do Sujeito na Antropologia Filosófica

O itinerário proposto retoma Aristóteles e sua análise dos momen- Desde o plano da pré-compreensão, o homem se manifesta concreta-
tos do saber: do objeto, do conceito e do discurso, isto é, o que é dado mente como movimento dialético de passagem do dado à expressão,
empiricamente, sua expressão na ética (intencional) e sua articula- ou da Natureza à Forma: é um movimento em que o momento media-
ção discursiva. dor é, justamente, o homem como sujeito. O sujeito está como media-
•  Momento do Objeto: O homem-Objeto e o homem-Sujeito, su- ção entre a pré-compreensão e a compreensão filosófica, procurando
jeito produtor de saber sobre si mesmo, permanecendo sujeito a lógica dialética do seu ser (eu sinto, eu desejo, eu penso, eu quero).
ao objetivar-se pelo saber. É ao nível da compreensão filosófica O Eu do sujeito não é uma forma estática nem fechada em si mes-
que o sujeito é tematizado como sujeito, e nela são integradas a ma, mas sofre e executa em si mesmo um movimento de supras-
pré-compreensão e a compreensão explicativa. sunção do mundo, das coisas no mundo do Sentido. A Antropologia
•  Momento do Conceito: A compreensão filosófica exprime o Ob- Filosófica percorre as formas desse movimento no sujeito ao nível
jeto-Sujeito como Ser, na sua inteligibilidade e na concretude transcendental, e as ordena no discurso respondendo à pergunta so-
9
do homem, aproveitando a contribuição das duas outras for- bre o ser do homem.
mas de compreensão: uma praticamente empírica; a outra pra- O discurso filosófico é fundamental para distinguir os três níveis de
ticamente abstrata. Aqui se trata da concretude de Ser. mediação da constituição do sujeito:
•  Momento do Discurso: As categorias que exprimem o Sujeito de- •  Mediação empírica: âmbito da experiência natural, do mundo-
vem ser articuladas de modo a manifestar o movimento ‘lógi- da-vida, da pré-compreensão expressa na linguagem ordinária
co’ da constituição do sujeito Enquanto sujeito, movimento que em que aparece o pronome eu.
traduz a experiência antropológica original. É uma articulação •  Mediação abstrata: âmbito da compreensão explicativa, resul-
dialética, na qual as categorias são suprassumidas em níveis tado de procedimentos operatórios da observação metódica e
sempre mais profundos de integração da unidade do sujeito, da experimentação; os conceitos e o discurso da Ciência obe-
até atingir o sujeito enquanto Totalidade, o que Vaz chama de decem à regras formais próprias de constituição; o sujeito da
‘nível da pessoa’. mediação abstrata é o sujeito metodologicamente abstrato pre-
sente no conhecimento científico.

Antropologia Filosófica
•  Mediação transcendental: âmbito da compreensão filosófica, 2.6.
da objetivação do sujeito enquanto sujeito – a sua manifesta- Linhas Fundamentais da Antropologia Filosófica
ção como sujeito e sua experiência de sujeito. Isso é articulado
nessa mediação com categorias próprias, como veremos adian- A Antropologia filosófica vê aberto diante de si todo o imenso campo
te. Aqui, o sujeito é visto em sua subjetividade absoluta, irre- do saber sobre si mesmo que o homem vem acumulando ao longo
dutível à Natureza e à Sociedade, como consciência do mun- de sua história, saber esse que, ao mesmo tempo, revela-lhe toda a
do, do outro e de si, procurando dar ‘razão de’. É o âmbito da complexidade estrutural e dinâmica do fenômeno humano (p. 167).
Antropologia Filosófica. A Antropologia Filosófica deve traçar as linhas ou direções do seu
roteiro, acompanhando os esquemas básicos que organizam o saber
2.5. do homem sobre si mesmo. Essas linhas definem o espaço conceptu-
Estrutura da Conceptualização Filosófica al onde se inscreve o ser-homem; nesse caso, conceitos de Estrutura,
Relação e Unidade.
A constituição das categorias da Antropologia Filosófica é um proces- •  Em nível de estrutura, ou níveis ontológicos, a distinção entre: 10
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

so com alguns passos: estrutura somática (corpo próprio), estrutura psíquica (psi-
1. Da determinação do objeto: ‘o que é’. Na Antropologia Filosófi- quismo) e estrutura espiritual (espírito);
ca, o objeto é o próprio ser do homem; faz-se mister levar em •  Em nível de relação: relação com o mundo (objetividade), com o
conta a história do desenvolvimento das diferentes abordagens outro (intersubjetividade) e com o Absoluto (transcendência);
e a problemática atual, bem como o saber científico atual sobre •  Em nível de unidade: como unificação (realização) e como ser-u-
o homem – é o momento aporético: aporética histórica e aporé- no (essência), culminando no conceito de Pessoa.
tica crítica, i.é, rememoração e atualidade. Daí: “O ser que eu-sou não é um conjunto de fenômenos empíri-
2. Da elaboração da categoria: cada qual exprime um aspecto fun- cos, mas um ser dado a si mesmo, irredutível aos fenômenos da na-
damental do ser do sujeito, por ex., ‘corpo próprio’ – a experiên- tureza, uma substância espiritual como espírito livre” - C. Bruaire,
cia do “Eu sou meu corpo próprio”. Pela mediação do Eu trans- L’Être et L’Esprit.
cendental, a aporética é suprassumida no concreto conceptual.
3. Da dialética, ou do discurso articulado sobre as categorias: o
discurso dialético implica uma relação de oposição e de su-
prassunção progressiva dos termos, constituindo um discurso
ordenado e sistemático na forma de um todo.
MÓDULO 1
Da Abertura
Ontológica
do Ser
Humano
1 O PROBLEMA
DO HOMEM

1.1.
Introdução: Algumas Considerações Filosóficas
No dia a dia, tantos papéis nos caem em mãos e, no geral, vão pa-
rar no lixo. Nesses últimos dias, dentre esses papéis, encontrei um
que me chamou especial atenção e julguei-o merecedor de ser o meu E a filosofia como forma de vida;
ponto de partida para esta breve exposição sobre o Homem. Seu con- O afã de Ser Homem
teúdo trata de ‘coisas humanas’, concretamente, do mister de um ho- Implica no trabalho de ser Sábio
mem, e diz assim: E o sofrimento faz parte da Sabedoria
O trabalho de filosofar é Por causa de um Bem-Querer.
DO
tão árduo Compreender a Vida é a primeira tarefa da filosofia
E sofrido FILOSOFAR Querer Bem ao Homem, tarefa de todo homem
Como arrebentar pedras com picaretas Viver estas duas coisas, tarefa do homem Sábio!
Ou o mesmo que arrombar os corações Com os pés na história humana
Empedernidos E com as mãos na Esperança
E as almas embrutecidas Certamente o sábio morrerá
Só com as armas do Bem-Querer e da Razão. Antes do Seu Tempo
O trabalho de filosofar E terá suas Razões;
É o afã de colocar Assim foi,
O trabalho na filosofia Assim parece que sempre será’.

Antropologia Filosófica 12
Na verdade, querer e pretender realizar um discurso sobre o Ora, numa época histórica, em que a ciência reivindica o mono-
Homem em nosso tempo é um empreendimento de bastante risco, pólio acerca da verdade sobre a realidade total e, nela, sobre o ho-
sobretudo porque esse tema não está na moda, a preocupação an- mem, tecer um discurso de outro calibre sobre o mesmo homem é
tropológica e antropocêntrica anda em refluxo e não há um míni- correr, inclusive, o risco de se cair no descrédito e de, a priori, não ser
mo suficiente de consenso sobre ‘Quem É o Homem?’. Mesmo as- ouvido. Porém, se a ciência e seu prolongamento na técnica fossem
sim, julgo de fundamental importância esse tipo de interrogação, suficientes para a melhoria da vida humana e do homem mesmo, en-
pois, se o homem não nos importa, penso que outra coisa pouco tão o homem já não teria tantos problemas. E se a realidade está como
nos deveria importar. E no caso daqueles que dedicam o melhor ela está - e não adianta não querer ver os seus males que aumentam -,
dos seus esforços intelectuais na tentativa de tratar dos problemas então, de novo, parece-me que ainda tem fundamento, importância
do homem, esse tipo de questionamento - mais do que uma sim- e necessidade voltar a refletir e a discursar sobre o homem como par-
ples questão - deveria ser o primeiro na ordem do dia e mesmo uma te de uma busca milenar, ao mesmo tempo em que se cumpre - aqui
tarefa para a vida toda. e agora - mais uma vez o princípio socrático ‘Conhece-te a ti mesmo’.
Com efeito, se queremos contribuir para a melhoria da vida do Com isso, quem sabe, poderemos ajudar efetivamente o homem com
homem, precisamos adentrar sempre mais no conhecimento do ho- seus problemas reais.
13
mem que queremos ver melhor, ‘naquele’ que manifesta problemas,
inclusive para podermos avaliar a nossa pretensa contribuição. De 1.2.
fato, se não sabemos quem é o homem, se não temos consciência das De Alguns Problemas do Homem
estruturas fundamentais constitutivas do ser-homem a serem reali-
zadas na existência, se não fazemos em nós mesmos a experiência Como vai o homem, como vão os homens? Podemos afirmar - sal-
do ‘humano suficiente’, então será muito difícil de avaliar a própria vo raras exceções - ‘o homem, os homens do nosso tempo vão mal’.
eficiência de toda e qualquer vertente e técnica terapêuticas, quer Na verdade, o que assistimos, não como meros espectadores, mas
em psicologia, quer na medicina, quer no magistério ou em qualquer como partícipes, é a uma história que, ao final de outro século e
área científica e da vida comum. Assim, conhecer e experienciar o hu- de outro milênio, vai mal. Para quem quiser tomar consciência - e
mano se põem como condição sine qua non para toda a abordagem só toma quem quer - a nossa experiência aponta para nós mesmos
significativa dos problemas do homem. E, para isso, é preciso cavar como experiência ‘de’ nós mesmos, que, enquanto homens, ‘já-não’
no solo mais fundo, no aquém do edifício automultiplicante das ciên- ou ‘ainda-não’ sabemos quem somos. Essa experiência pode ser dita
cias - mesmo do das ciências ditas humanas - com sua pluralidade de outro modo, como a experiência de estar errante de si mesmo, de
de modelos e visées metodológicas. estar perdido por dentro e por fora, experiência feita, vivida, ardida,

Antropologia Filosófica
de um vazio imenso que atinge, fende e ofende o Ser, experiência do de importância, ou só pode ter importância nas horas de folga das
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

‘esquecimento do Ser’, para usar uma expressão cara a M. Heidegger. 1


coisas de trabalho e a nível privado.
E o caráter eminentemente epistemológico das ciências dificilmente O filósofo contemporâneo Eric Weil descreveu muito bem essa
conseguirá dar conta disso. Tomando emprestado uma expressão de situação do homem em sua obra “Filosofia Política”, a situação do ho-
Paul Ricoeur, o homem do nosso tempo, nós vivemos num ‘tempo mem numa sociedade cujo sagrado é o trabalho. A consequência é
sombrio’, cujo sentido vai muito além e cava no aquém do ‘mal-estar o sentimento profundo de insatisfação e também de impotência. O
na cultura’, de Freud. homem passa a viver segundo os ditames da exterioridade, como ser
Vejamos mais em concreto como vamos, tomando como impor- unidimensional - muito bem tematizado por H. Marcuse3- ou subju-
tantes alguns ‘fatos’ perfeitamente acessíveis a qualquer um que gado por uma segunda natureza (cultura?!) - tematizada por Adorno
queira. O homem do nosso tempo é aquele que está eminentemente e Horkheimer4- mais forte e violenta, com a inexorabilidade de um
ocupado e/ou preocupado com as questões do Trabalho, da sobrevi- determinismo, como a lei da gravidade, mais contundente do que a
vência físico-biológica, em um mundo altamente competitivo que natureza primeira que a ciência e a técnica estão em vias de domi-
cobra eficácia na forma da produtividade. O homem se vê permanen- nar. Na prática, na vida cotidiana, isso quer dizer: se o homem não se
temente ameaçado pelas ‘forças do mercado’, muito bem tematizadas submete, começa a perecer a partir de fora, i.é, pelas necessidades do
por Marx, como forças exteriores que põem praticamente todos os corpo; se se submete, começa morrendo por dentro, pelo sacrifício
homens em sobressalto - não apenas os trabalhadores - dentro de da interioridade. É um dilema introduzido no Ser que, nos dois casos,
um ‘mecanismo’2 de produção-comércio-consumo, que se tornou resultaria em Não-ser.
mundial sem a preocupação efetiva de ser justo. Nisso, o homem é As exigências do trabalho levam os homens a desenvolver uma
reduzido a número social produtivo ou improdutivo, portanto, a mentalidade utilitarista, pragmatista, quer no próprio trabalho, quer
indivíduo, cuja força intelectual e força corporal são o que de fato no conjunto de suas relações.5 O útil se torna sinônimo de Bem, ou,
contam. Quem quiser ter um lugar ao sol nesse mecanismo precisa negativamente, o que não é útil não tem importância real. Com isso,
gastar-se, desgastar-se e sobressair-se dentro das regras desiguais da encorpa-se também uma lógica do Ter-Poder-Prazer, trilogia que,
competência/produtividade. Assim, a ‘parte’ profundamente huma- como ideia reguladora e como fato - simultaneamente -, coordena
na - se se pode falar assim - é relegada a segundo ou terceiro plano
3 Cf. H. Marcuse in: O Homem Unidimensional.
1 Cf. M. Heidegger in: Ser e Tempo. Vozes, 3ª edição, 1989. p. 27. 4 Cf. T. Adorno e M. Horkheimer in: A Dialética do Iluminismo.
2 Expressão importante de E. Weil e que perpassa sua lúcida obra Filosofia 5 Cf. J.G. Caffarena in: Raíces Culturales de la Increencia: Pragmatismo y
Política. São Paulo: Loyola, 1990. Indiferencia. Estudios E. 14
o processo de comercialização-instrumentalização das próprias rela- é o antônimo do homem, a forma mais acabada da perversão do ho-
ções ditas humanas. Numa palavra: o outro homem-indivíduo passa mem. Para o individualista, o outro é, a priori, um rival, um concor-
a ser um meio-para e, cessada a utilidade, cessa o interesse. A com- rente, talvez um lobo - para lembrar T. Hobbes - de quem é preciso
petência profissional na forma de eficácia é condição para a partici- desconfiar, principalmente dentro da lógica social da eficácia. Ser
pação na lógica dessa trilogia ou ‘trindade gestora do nosso tempo’; individualista é outra condição dessa lógica; e se isto é o que vale,
e, para isso, é preciso ser especialista, em detrimento - no geral - de então é compreensível que o homem vá mal.
um horizonte aberto e amplo de compreensão e de experiências ver- Na verdade, são poucos os homens que conseguem resistir e fa-
dadeiramente humanas. A partir dessa lógica da eficácia, publica- zer frente a essa peste mundial; são poucos os homens que - usando
mente o que vale do homem é a especialidade, o curriculum, e não uma expressão de Mounier - chegam a ser ‘pessoas’. No geral, o que
propriamente o homem que sofre desse mal de conhecer até demais há é uma massa anônima que encarna, consciente ou inconsciente-
sobre a ponta da agulha, mas que não aprendeu a colocar a linha nela, mente, o espírito individualista. Esse espírito é geral, mas a expoên-
muito menos a costurar o humano com ela. cia é para poucos nesse império do ego, do eu, do meu sobre o nós.
Se, por um lado, o homem pré-compreende que não dá conta de Como diria Maquiavel acerca da conduta do príncipe: ‘É preferível 15
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

viver só – e a gestação, o nascimento e a própria história do homem fazer-se temer do que amar’7, porque, segundo ele, os homens são
no tempo deveriam ser suficientes para o homem assumir o seu ser- maus e instáveis no amor. Esse princípio maquiavélico - no sentido
comunitário –, por outro lado, o que vemos na maioria dos homens é pejorativo do termo - extrapolou o âmbito político pervertido - que
um ensaio, mais, uma tentativa arrojada de individualismo: individu- não vamos aprofundar aqui - e disseminou-se para todos os âmbitos
alismo em todas as suas formas, culminando com o que Macpherson da vida humana. Se os homens estão assim, é compreensível que, por
chamou de ‘individualismo possessivo’. Tenho para comigo – e ago-
6
aí, o humano se esvai progressivamente.
ra partilho com vocês – que, dentre todas as doenças, pestes ou vírus Dessa lógica da eficácia, e da universalização do espírito indi-
mortíferos que a humanidade já experimentou, o individualismo é vidualista, decorre grande parte dos problemas que afetam corri-
o pior e o mais contundente de todos. Com efeito, o individualismo queiramente o homem, junto com aqueles já apontados. Um deles
mata o humano na raiz e nos frutos, apodrece a seiva, contamina na - que salta aos olhos - é o incremento da violência: violência aberta,
fonte a possibilidade da vida humana em comum, leva o homem a se violência sutil, violência sofisticada, violência velada, violência nas
tornar muito pior do que o mais feroz dos animais. O individualismo ruas, violência dentro das casas, violência fora do homem, violên-
cia no interior do homem, violência oficialmente institucionalizada,

6 Cf. C.B. Macpherson in: A Teoria Política do Individualismo Possessivo de


Hobbes até Locke. Paz e Terra. 7 Cf. Maquiavel in: O Príncipe. Pensadores.
violência aceita a partir da experiência da própria violência, violên- não os valores dos outros, muito menos a possibilidade de valores
cia que o Ter provoca, o Poder executa e o Prazer atrai nas suas in- comuns universalizáveis por seu alcance na forma de efetivo bem.
consequências. Em suma, violência ou desrazão, absurdo do ser que O que vemos é a decadência e a corrosão dos valores que estrutura-
se diz capaz de razão e de se dar razões para viver, portanto, capaz de vam tradicionalmente o sentido e a vida em comum dos homens.
razoabilidade. A violência é o sinal – e mesmo o estigma – desse ser Em nome do progresso material, da ciência e da técnica, foi feita a
que tem fracassado na tarefa livre e razoável de ser homem. grande crítica à tradição na aurora da modernidade - e certamente
Com isso, concretamente, temos um companheiro cotidiano, o essa crítica foi necessária - posteriormente continuada pelo assim
medo: Medo do que eu possa sofrer e possa cometer sob a forma da chamado Esclarecimento e seus descendentes. Dessa crítica, pouca
violência. E ainda há quem justifique isso, ‘racionalmente’, como coisa de valioso sobrou a respeito do próprio passado. A verdadei-
normal. Nesse sentido - e em tantos outros -, não podemos dizer que ra história e o verdadeiro conhecimento da humanidade teriam co-
o homem é um animal, pois as violências de que o homem é capaz meçado com o advento da moderna ciência experimental; o que a
ultrapassam de longe as dos animais. E se o distintivo do homem humanidade viveu antes disso seria a sua pré-história, lugar do pré-
for apenas a racionalidade, então estamos em situação pior ainda, conceito, da superstição, da dependência ao transcendente, da ‘mi-
pois teríamos que afirmar em nós - contraditoriamente - uma ra- noridade humana’.8
cionalidade irracional, i.é, absurda. E se formos adiante, ainda seria Com essa crítica de caráter eminentemente negativo, entraram
possível a pergunta pelas condições de possibilidade dessa constata- progressivamente em crise os referenciais subjetivos, intersubjetivos
ção e desse julgamento. e sociais de compreensão e de interpretação do homem. O que valia
Outro problema do homem do nosso tempo, decorrente dos ele- no passado torna-se sinônimo de arcaísmo, de coisa retrógrada. E se
mentos já citados e que se liga ao problema da violência, é o que a preocupação com valores comuns, com uma vida ética, virtuosa,
chamo de problema ético. A nossa experiência mostra - dentro e fora - pelo menos ao nível do discurso - foi importante no passado, isso
da Universidade – que, hoje em dia, falar de ética, de moralidade, foi perdendo progressivamente sua incidência histórica e na história.
mostrar a exigência de uma vida ética e, sobretudo se se tocar na O relativismo ético tem a ver com a lógica do interesse particular -
palavra virtude, implica - com raras exceções - distar disposto a en- no máximo de grupos -, uma das poucas coisas que, paradoxalmen-
frentar sérias resistências. O homem do nosso tempo - e já faz al- te, são universais.9 Com isso, na lacuna e na ausência de referências
gum tempo - tem aderido ao chamado relativismo ético, seguindo a
esteira do individualismo. O relativismo ético é mais uma versão 8 Expressão kantiana in: Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo?.
e uma mediação pela qual o individualismo se concretiza. O que 9 Cf. M. Perine in: Ética e Política: Irredutibilidade e Interação de Relações
importa são os meus ‘valores’ e o que eu determino que tem valor, Assimétricas. Síntese, nº 48.

Antropologia Filosófica 16
valorativas éticas a nível comum - público -, o homem é arremessado forma da partilha - apesar de suas conhecidas deficiências -, a famí-
a si mesmo na tarefa de ser humano. E aí, historicamente esvaziado lia tem se reduzido a um lugar problemático de coabitação.
dessas referências, acaba acolhendo o que tem importância a nível De fato, o reconhecimento do valor incondicional da pessoa - mesmo
público, i.é, as coisas da lógica da eficácia e, em concreto, a forma que por vezes pautado no pressuposto do sangue do sangue - anda
individualista de vida. E com isso o homem perde até o humano que raro também na família. Sob o pretexto de um machismo tradicional
julgava Ser ou pelo menos Ter. e de um feminismo dito moderno, lá se vai, se instala e se incrusta
Outro problema advém em decorrência: o da progressiva dimi- mais uma forma de individualismo. Certamente, não é preciso citar
nuição das experiências mais significativas, nas quais o humano se aqui nenhum exemplo de ‘desavença familiar moderna’ ou mesmo
fez se faz e aparece. Eis novamente o vírus do individualismo em ‘pós-moderna’, nem mesmo os casos em que se busca fora o que não
ação. Com efeito, hoje em dia está muito difícil de encontrar esse se tem em casa. Miseravelmente, a família que não reflete e não se
tipo de experiência, daquelas que deixam os homens que as vivem posiciona criticamente soçobra diante da avalanche individualista,
verdadeiramente contentes - e por que não felizes! -, acrescidos em e põe-se sempre mais longe de um lar, do primeiro berço do advento
seu ser. Refiro-me às verdadeiras experiências de solidariedade, que do humano. Um ser humano se forma desde o berço; ora, se a famí- 17
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

são em essência e, por sua vez, o antônimo concreto do individualis- lia falha, fica severamente comprometido o homem que se quer por si
mo, o seu antídoto. mesmo ser humano. Com certeza, se não houver no horizonte de cada
Se essas experiências andam raras e difíceis de serem feitas - por- um alguma experiência significativa do humano que sirva de refe-
que o seu princípio implica em transcender o individualismo -, en- rência, fica difícil de saber o que se pode e o que se deve querer como
tão é preciso admitir que o contentamento anda raro, e, com isso, o mediação do contentamento.
próprio ente humano concreto. A solidariedade é uma das faces do Esse problema aponta para outro: a incompetência humana na ca-
humano que se expressa na história humana pessoal e comum; se pacidade de ouvir. Se J. Habermas falou com propriedade da ‘com-
não houvesse um mínimo dela, a humanidade já teria sucumbido na petência comunicativa’,10 condição do entendimento razoável e do
violência. E se a violência aumenta a olhos vistos, é porque a solida- consenso fundamentado em razões, parece-me que isso implica
riedade se torna rara. Com efeito, a família já não tem sido o mesmo outra pré-condição – que é a capacidade de ouvir – como elemento
lugar antropológico e antropocêntrico. A crítica à tradição não deixou imprescindível para a emergência do humano enquanto tal e, por
de fora este mais que laboratório de experiências humanas pratica- extensão, do entendimento entre os homens. Tenho para comigo
mente naturais, ou pelo menos mais espontâneas. A crítica à famí- que, mesmo que o discurso do outro, a sua língua, não me sejam
lia como mais uma das instituições burguesas também deixou suas
sequelas; de lugar privilegiado da experiência da solidariedade na 10 Cf. J. Habermas in: Teoria da Ação Comunicativa.
compreensíveis, se assumo o outro na sua condição de ser huma- homens, mas tem a certeza desgraçante de que continua anônimo e
no, incondicionalmente, posso perfeitamente interpretá-lo na sua só. Com isso, o seu próprio olhar tende a se tornar fundo, mas vazio.
precisão - necessidade - se sou competente, antropologicamente, Parece-me que esse é um dos motivos pelos quais há uma procu-
em ouvi-lo. Numa palavra, saberei do que ele precisa e descobrirei ra em massa por terapeutas, psicólogos, medicinas diferentes, etc.
alguma maneira de ajudá-lo. A verdade é que poucos homens conseguem dar conta de si, daí a
Mas a capacidade de ouvir anda mais rara do que o próprio enten- necessidade de profissionais pressupostamente competentes em
dimento, que, quando ocorre, nem sempre leva à ação, ou nela pode ‘humanidade’, para aliviar certo lugar interior que anda dolorido de
falhar. Com efeito, um ser que se quer humano Ouve, não apenas vazio e que ainda não foi preenchido. E muitas vezes o ‘doente de hu-
escuta, pois escutar - sem a intenção de ofender nem os homens nem manidade’ fica anos num divã ou em tratamento e não consegue as
os animais - já é próprio dos animais. O que geralmente experimen- ‘luzes’ que esperava! E por que será? Até o fato e o ato de ter de pagar
tamos é que ‘só se ouve o que interessa’, como mais uma forma de por esse tipo de trabalho mostra àquele que procura solidariedade e
individualismo, como um – segundo uma expressão de M. Perine importância humana efetiva que - tantas vezes - do outro lado tam-
– ‘diálogo de surdos’. bém há o padecimento - em maior ou menor escala - do mesmo mal. A
Nessa lacuna de experiências humanas imprescindíveis - como gratuidade seria uma porta de entrada para outra qualidade relacio-
18
a de ser ouvido -, cresce outra experiência eminentemente dolori- nal, mas ela também anda rara, e há muitas justificativas por aí de
da e negativa, que é a experiência da solidão profunda e, com ela, do que ela nem é mais possível. Com isso, a solidão é um dos preços que
vazio.11 Muitas vezes, ela vem à tona na forma da agressividade para paga aquele que incorpora o espírito do individualismo como ‘espíri-
consigo e/ou para com os outros, outros que na verdade não estão to do tempo’ e, às avessas, procura e espera o humano.
próximos, ou nas mil e uma formas de adoecimento e mesmo de iso- A partir desse esvaziamento do homem, é também compreensí-
lamento. Outra face é o recurso muitas vezes utilizado da precisão vel que a própria linguagem - como médium do sentido e do entendi-
do barulho, de ambientes muito frequentados e agitados para com- mento, morada do sentido pelo qual o homem exprime o ser - ande
pensar ou abafar o ‘barulho’ que a solidão faz por dentro. Ou ainda o profundamente esvaziada.12 Com efeito, a aspiração de univocidade
recurso aos tranquilizantes e anestésicos que podem assumir a rou- na linguagem, levada a efeito pela ciência, contribuiu para esse esva-
pagem da bebida e das drogas. Essa experiência também pode ser ziamento. A riqueza polissêmica e simbólica foi perdendo seu lugar
dita como aquela em que o homem esbarra no dia a dia com muitos na linguagem significativa, na interpretação da vida e do homem,

12 Cf. P. Ricoeur, Herméneutique des Symboles et Réflexion Philosophique. In:


11 Cf. E. Mounier, Ouvres I, p. 158-159. Le Conflit des Interprétations. Paris: Seuil, 1967.

Antropologia Filosófica
em prol de uma tecnicização crescente. Com o encurtamento da lin- Diante do tipo de expressão religiosa distorcida, certamente ain-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

guagem, encurtou-se a compreensão do ser, do ser do homem. da tem valor a crítica de Marx, para quem a religião seria o ‘ópio do
Muitas palavras tornam-se oficialmente ocas e supérfluas porque povo’, lugar de ‘suspiro’ do indivíduo atribulado. Certamente que
já não significam experiências humanas atuais; muitas palavras e Freud também teria uma pitada de razão ao detectar uma possível
símbolos já não nos levam a pensar - pelo menos espontaneamente relação entre religião e ‘neurose coletiva’. Mas deixemos para outra
- sobre o ser, ou então foram corroídos em seu sentido. Para ilustrar ocasião o problema da dimensão religiosa no que ela tem de essen-
isso, basta um só exemplo: o da Aliança. A aliança, palavra e símbolo, cial e no que ela tem de perversão. O perigo é quando se mata a pró-
já não é mais aquela. No geral, ela já não representa o compromisso pria dimensão por causa das distorções nas manifestações religiosas
e a opção radical e livre de assumir o outro como partícipe de uma (iconoclastia). Importa ainda inserir aqui o problema da multiplica-
história comum na busca do contentamento recíproco e tantas outras ção das religiões, o que aponta para o relativismo religioso, ou da
qualidades do ser que se assentavam nela. A aliança virou conchavo religião segundo o interesse e agrado de cada um, o que não deixa de
e cumplicidade, pervertendo-se no seu começo e no seu fim. ser mais um problema de individualismo com sua marca de solidão.
Se ousarmos um pouco e nos referirmos ao âmbito religioso da A enumeração de problemas do homem do nosso tempo poderia,
vida, o que vemos é uma acentuada e massacrante atitude icono- certamente, se prolongar indefinidamente. Para este momento cito
clasta: morte não apenas aos símbolos de humanidade, morte aos apenas mais um que considero muito importante. Trata-se do fato
mitos, aos ídolos; morte aos deuses e - no caso do ocidente - como de uma crescente crise das utopias, do refluxo dos ideais políticos e
apregoou Nietzsche, ‘morte de Deus’. É o homem concreto tentando sociais, da inércia dos movimentos de reivindicação, denotando a
viver, segundo o mesmo Nietzsche, ‘para além do bem e do mal’. descrença na via pública como caminho de instauração do humano,
Com efeito, o nosso homem - na sua pretensão de senhorio absolu- vivida como frustração coletiva. Parece haver uma simetria - recí-
to sobre o mundo, sobre si, e de contraditória auto suficiência - já proca - entre baixa nas coisas humanas e desencanto público, i.é,
não se refere ao transcendente, quando este ainda permanece no uma coisa traz consigo a outra. Parece que o princípio liberal laissez-
horizonte, numa relação profunda e reconhecedora da finitude hu- faire, laissez-passer, tomou conta dos espíritos como espírito do tem-
mana. Muitas vezes, a dimensão religiosa serve de álibi, de muleta po, embotando a força do possível, que anda junto com a esperança.
para as intempéries da vida; outras vezes, a relação com o divino E, contudo, sabemos que não podemos ceder ao comodismo,
se reduz a um comércio: se a divindade existe, ela já não pode ser o pois teríamos que admitir o absurdo como o caminho da razão.
que ela é, mas segundo as necessidades e projeções do desumani- Decerto é possível de se fazer alguma coisa em qualquer tempo,
zado homem. No outro extremo, quando já não há lugar para a fé, mesmo que seja a reflexão que muitas vezes protelamos, mas que
temos a multiforme teia do ateísmo. agora encontramos um tempo para fazê-la. E se, pela reflexão, 19
2
conseguirmos adentrar no como vão as coisas, então já estaremos DA ABERTURA
andando bem melhor.
Essa parte de nossa exposição sobre o problema do homem pode ONTOLÓGICA DO
SER HUMANO
ser dita sinteticamente em alguns pontos, perfilados a seguir.
1. Se o individualismo fosse o canal, o caminho por excelência da
realização humana, então o homem não iria de mal a pior, não
padeceria de uma estranha doença;
2. O ‘Id’ de Freud se realizou abundantemente sob a forma do li-
beralismo sexual - inclusive no realismo da exploração, uso e 2.1.
abuso da sexualidade -, e nem por isso o mal-estar na cultura
Preâmbulo
diminuiu; ao contrário, alastrou-se prodigiosamente, sem que
possamos depositar a culpa no ‘Superego’, que gradativamente Quem é o Homem? Esta é uma pergunta que se impõe sobre nós, tan-
foi perdendo força; to na vida cotidiana quanto na ciência, na filosofia e em todos os
3. O niilismo ético, defendido por Nietzsche como necessário ao âmbitos do saber e da práxis humana. Nós nos perguntamos pelo
advento do super-homem na sua busca de consumação da von- mundo, pelas coisas, pela matéria, pela vida, por sua essência e por
tade de poder, tornou-se realidade. Entretanto, nem por isso te- suas leis, pelo universo e pelo Infinito; nós nos perguntamos pelo
mos super-homens, mas sim um submundo (des)-humano que sentido de tudo. Mas a pergunta ‘quem é o homem?’ possui caracte-
cresce a olhos vistos. Isso é perceptível sem que precisemos rísticas especiais, porque diz respeito e afeta diretamente ao homem
discursar sobre o medo da violência, que afeta, inclusive, aque- que interroga, porque o homem se põe a si mesmo sobre a mesa de
les que detêm oficialmente o poder; discussão. É o homem se perguntando por sua própria essência, por
4. Se as experiências significativas de uma humana vida se tor- aquilo que faz de cada ser humano alguém pertencente à Humanida-
nam cada vez mais difíceis, então é compreensível a crise de de e radicalmente distinto dos outros seres ou entes da realidade que
Esperança acerca da realização do homem dentro de uma co- o homem experimenta. O ser humano se experimenta como diferen-
munidade razoável, que conseguiu eliminar a violência; te de tudo o que é algo, de tudo o que é isto ou aquilo.
5. Para aquele que adere à lógica da eficácia – mecanismo – e nela A pergunta sobre o Homem – sobre o ser humano em geral – é
se torna individualista, o preço a se pagar - e não é o único - uma questão problemática para o próprio homem, sobretudo em um
será a violência em si mesmo, sob a forma do vazio e da solidão, tempo em que a realidade como um todo ameaça o homem, realida-
mesmo que isso demore. de que põe em dissolução os marcos de referência que estruturavam

Antropologia Filosófica 20
tradicionalmente o sentido e a vida e ameaça o homem com o absur- vem a segunda, como a outra face da primeira: somente posso per-
do, o sem-sentido da existência. Como a vida do homem se faz e se guntar se conheço algo daquilo pelo qual pergunto, sobre o obje-
inscreve no tempo, fazendo dele alguém histórico, e como o tempo to da pergunta, mesmo que seja apenas a palavra que o exprime.
humano sofre constantes e, muitas vezes, profundas mudanças, o A pergunta, toda pergunta, com interesse cognoscitivo, pressupõe
homem precisa sempre, de novo, responder a si mesmo a pergunta sempre uma espécie de pré-conhecimento sobre aquilo que se deseja
sobre o seu ser, sobre o seu lugar no mundo e sobre o sentido – que conhecer. Assim, a pergunta sobre o ser do homem somente é possí-
espera verdadeiro – de sua existência. O homem é, pois, logo de saí- vel dentro de um horizonte explorado anteriormente, que ultrapas-
da, o ser que se interroga: ele pode e deve perguntar, perguntar sobre sa a cada homem tomado em si mesmo, mas que ainda não diz de
a totalidade do que o envolve, perguntar-se sobre o seu Si (Soi). maneira clara – e suficientemente profunda – a resposta que aquele
Pois bem, dos entes de que temos notícias, ou até onde chega que interroga busca.
nosso conhecimento sobre a multiplicidade dos entes no mundo, Se o homem se pergunta por seu próprio ser, é porque ele sem-
só o homem é capaz de perguntar. Com efeito, a planta, as pedras, pre tem um conhecimento prévio de si mesmo, e porque o homem
os animais, etc., são incapazes de perguntar. Esses seres tem uma se manifesta como Consciência e Compreensão de si próprio. Por 21
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

existência que não lhes coloca problemas; em sentido estrito, não isso, o homem é capaz de elevar-se acima da vinculação cega à na-
problematizam a realidade, não ultrapassam o horizonte daqui- tureza, como acontece com os animais. Somente porque o homem
lo que a sua presentidade, ou imediatidade, coloca-lhes. O animal sabe de si mesmo – e se compreende – é possível também que pos-
permanece ligado ao dado concreto de um determinado fenômeno, sa perguntar-se. Mas é também porque não se compreende de um
sem poder elevar-se acima ou perguntar-se pelas razões de ser do modo total – porque continua sendo para si mesmo um mistério,
mesmo. Somente o homem é, por assim dizer, habitado pela possi- um enigma a desvendar – que o homem se pergunta e volta a per-
bilidade e pela necessidade de perguntar. Esse é um traço peculiar e guntar. Por um lado, o homem se sabe como um ser que se pos-
distintivo do homem; por ele, o homem transcende a realidade dada sui espiritualmente, que se compreende a si mesmo; por outro, o
buscando o seu fundamento. homem está ligado, travado na obscuridade da realidade e aconte-
Mas, eis que se impõe, para aquele que reflete sobre si e se perce- cimentos que dificultam e, muitas vezes, o impedem de chegar à
be perguntando, uma questão importante – e mesmo decisiva: quais plena compreensão de si mesmo.
as condições que permitem ao homem a elaboração e formulação da Aquilo que o homem sabe de si mesmo de modo originário, ime-
pergunta? A primeira condição é esta: somente posso perguntar se diato – pela simples experiência de viver no mundo com outros
desconheço aquilo pelo qual pergunto, pois, se eu já conhecesse, homens –, precisa ser trazido à luz e Ter uma expressão reflexiva.
certamente não seria preciso e nem faria sentido perguntar. Logo Em outras palavras, aquela auto compreensão originária, aquele
pré-conhecimento de si mesmo que sempre possibilita, acompanha ações que introduzo na realidade, estão remetidas a mim, ao meu
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

e penetra todos os nossos conhecimentos, a linguagem e as ações, Eu. No que tange às ciências, ao formular suas hipóteses acerca do
deve expor-se, iluminar-se tematicamente por uma reflexão do que homem, elas dão por suposto esse horizonte ao qual se refere o par-
nós somos e do que experimentamos e entendemos continuamen- ticular que elas investigam; todas as ciências são particulares por
te. Essa tematização explícita do pré-conhecimento que sempre nos seu ponto de vista; todas as ciências são parciais em seu conteúdo,
acompanha não é tarefa muito fácil, pois sempre é possível a influ- mesmo que tenham a pretensão à universalidade.
ência de pontos de vista distorcidos – e mesmo errôneos – que fazem Anterior a qualquer conhecimento e compreensão explícitos e de-
parte desse horizonte, e podem conduzir a interpretações unilate- terminados, existem uns dados concretos que constituem um todo
rais, deficientes e redutoras do ser humano. Às vezes, fomos criados ao qual o particular está pré-ordenado. Trata-se de um horizonte ao
num ambiente preconceituoso, e isso incidirá na densidade de nossa qual todo particular está relacionado, e no qual encontra o seu sen-
avaliação e compreensão do humano. Além do mais, a situação do tido. Esse horizonte abarca a nossa conduta, a nossa linguagem; os
homem é provedora de novas profundidades, mistérios e novidades nossos conhecimentos teóricos são condicionados por ele; a nossa
que provocam novas perguntas e, muitas vezes, podem nos desviar vontade, atuação e práticas são afetadas por ele; até mesmo a nossa
daquela pergunta decisiva acerca do nosso ser, ou fazer a nossa tota- capacidade de imaginar e desejar é influenciada por ele em seus con-
lidade girar ao redor de apenas uma experiência do tempo presente. teúdos e registros. Esse horizonte, formado pela nossa compreensão
As diversas ciências que investigam o homem tratam-no como e pré-conhecimento de nós mesmos e do mundo, cresce com nossas
um objeto de estudo, abordam-no sob diferentes e múltiplos prismas experiências, e as nossas experiências são influenciadas por ele. Com
e chegam a muitos resultados. O problema do homem, nas ciências isso, toda vez que quisermos compreender o todo do homem partindo
humanas, é que os resultados a que elas chegam a respeito do mes- de um traço, de um fenômeno particular, estaremos correndo o risco
mo homem são, muitas vezes, contraditórios, esfacelados, centrados de elaborarmos uma falsa interpretação do homem. O ser humano se
numa multiplicidade de pontos de partida onde se elege, a cada vez, significa numa pluralidade essencial de dimensões nas quais experi-
um traço humano como o capital, que serve de chave interpretativa mentamos a nós mesmos e o mundo; o homem se experimenta como
para a totalidade. Será que o homem é essa multiplicidade de resul- uma totalidade concreta que fundamenta a pluralidade numa unidade
tados desconexos? Será que é essa a experiência humana mais fun- estrutural. Essa dialética de mútua implicação entre totalidade e par-
damental? Ora, o homem, antes de tudo, experimenta-se como um ticularidade constitui-se numa situação intransponível do homem.
todo, e tem uma pré-compreensão desse todo que ele é. Nós sabemos Para compreendemos corretamente o homem, temos que, por um
que, por mais que seja variável o leque das nossas ações, todas elas lado, levar em consideração essa problemática do todo do homem, que
estão remetidas a um centro irradiador, que é cada um. Eu sei que as se compreende como unidade; por outro lado, temos que partir sempre 22
do homem concreto, dos fenômenos da auto realização humana, nos Com efeito, de acordo com o primeiro lado da dialética, o homem
quais nos experimentamos e nos entendemos, nos quais o todo do é determinado, em muitos sentidos, pelo mundo das coisas e objetos.
homem se manifesta. Daí, partimos desses fenômenos e nos pergun- Nossa vida corporal e biológica está inserida num mundo vivo, di-
tamos pelas suas condições de possibilidade. Trata-se de buscar – e de nâmico, e está submetida às suas leis físico-químicas. O homem é
se perguntar – pelos traços que constituem cada um dos homens em referido ao mundo que nos oferece alimento e vestuário, no qual tra-
particular e do ser humano em geral. Em outras palavras, buscamos o balhamos para podermos viver como humanos. Sem esse mundo –
universal em cada homem – a constituição ontológica do homem – a sobre o qual os homens põem os seus pés e o transformam com suas
partir da sua manifestação dentro de um determinado mundo, no en- mãos, mas sempre a partir das possibilidades dadas desse mesmo
contro e confronto com os outros homens, dado que a compreensão mundo – o homem não poderia viver. Com isso, pensar o homem im-
sempre ocorre num mundo, de múltiplas maneiras, comum. plica, necessariamente, incluir o lugar e o sentido do mundo para o
homem. Entretanto, o homem é, sobretudo, determinado pelo mun-
2.2. do dos homens; todo homem procede de uma comunidade concreta,
O Homem é um ser-com-os-outros-no-mundo nela nasce e se desenvolve, aprende sua língua, seus costumes, par-
ticipa de seu espírito e de sua cultura. O homem está determinado
O fenômeno fundamental da experiência humana é que nos encon- pelo mundo cultural em que vive; ele é formado na sua condição de
tramos sempre no meio de uma realidade complexa, no meio das sujeito em sociedade e sob as condições históricas, materiais, cultu-
coisas e dos homens, com os quais entramos em contato. Esse fenô- rais e institucionais dessa sociedade. Tais condições determinam,
meno talvez seja o mais esquecido pela maior parte dos chamados em larga medida, a forma de vida, os costumes, o conhecimento, o
humanismos modernos e contemporâneos. De fato, o homem não é, querer, a prática e o sentido de sua vida. A pertença ao mundo dos
originariamente, um sujeito puro, sem história e sem mundo. O ho- homens numa comunidade histórica e atual marca, de forma deci-
mem não é e nem seria capaz de ser num curto-circuito consigo mes- siva, a existência humana, de modo individual. Assim, o homem é
mo; ele não se encontra numa consciência de si fechada; nós sempre referido e é determinado pelo mundo em que vive.
nos encontramos numa rede ilimitada de relações e estruturas que Contudo, segundo o outro lado da dialética, o homem determina
nos situam aqui e agora e que, em grande medida, determinam-nos e o seu mundo. Em verdade, o homem, enquanto vive no mundo, não
nos abrem possibilidades. O homem, inevitavelmente, até para apa- é meramente passivo e determinado por ele. O homem não está
recer no e ter um mundo, é um ser-em-relação, relação – com os ou- simplesmente imerso na exterioridade; o homem é também inte-
tros e com o mundo – que, como veremos a seguir, é dialética. rioridade, sujeito ativo do mundo e da história. Ele tem um mundo
na medida em que o concebe e o realiza. O conhecimento não é

Antropologia Filosófica 23
só receptivo, mas exige engajamento, atuação, confronto e tomada metas de vida. As experiências fazem parte, pois, do nosso mundo, e
de posição julgadora. O homem realiza, objetiva os seus próprios este se torna o horizonte para novas experiências.
planos e ideias, metas e projetos através da ação livre, da obra que Em segundo lugar, o nosso mundo é experimentado como espa-
introduz no mundo, na expressão corporal, no trabalho. O mundo ciotemporal. Isso significa: percebemos o espaço como um todo, no
das coisas se torna então um mundo humano, configurado pelo qual realizamos as coisas e as transformações particulares; perce-
homem, pela ação e pelo sentido que o homem dá às coisas. Dessa bemos o tempo como a totalidade de um decurso unitário, no qual
forma, a natureza se torna cultura, e o homem se mostra, por na- se sucedem os eventos particulares. Tudo tem o seu aqui e agora no
tureza, um ser cultural; o mundo já não se reduz a um conjunto de espaço e no tempo. Nós apreendemos conteúdos de sentido, valores,
fenômenos regulados por leis mecânicas, mas se torna o espaço normas de ação, etc., que ultrapassam o aqui e agora, e constituem o
humano de vida. nosso mundo como horizonte mais amplo; tal horizonte torna pos-
Portanto, o homem é um ser-em-relação com o mundo, mundo sível a compreensão e a análise crítica das situações atuais.
que, por assim dizer, antecede e determina, mas também é determi- Em seguida, e sobretudo, o mundo do homem é um mundo inter-
nado pelo homem. O que o homem experimenta e compreende de si subjetivo. Sem dúvida, a nossa situação, tanto presente quanto cons-
é o resultado dessa relação dialética entre ele e o mundo constituído, titutiva, é uma situação de relação com os outros seres humanos.
entre interioridade e exterioridade. Tal relação é aberta e histórica, É na relação social – e pessoal – com o outro que nós crescemos
exigindo uma compreensão continuada do seu devir e da sua ex- e nos realizamos como seres humanos; é aos outros que estamos
pressividade pelo homem. ligados por uma relação de amor e confiança, ou de desconfiança e
A partir das considerações feitas, vejamos agora o que significa dominação. Antes das diferentes manifestações dessa relação com
propriamente mundo, nos seus aspectos e estruturas fundamentais. o outro, há um factum: nós nascemos de dentro do outro e nós nas-
Em princípio, e de forma genérica, o mundo é a totalidade do nosso cemos dentro do mundo do outro, com suas estruturas, cultura e
espaço concreto de vida e horizonte de compreensão. Quais são, em historicidade, no seu horizonte. Sendo um factum, é algo intrans-
concreto, os elementos constitutivos do mundo do homem? Vejamos. ponível, irremovível, é algo primigênio, é condição do aparecer e do
Em primeiro lugar, o mundo do homem é constituído pela tota- constituir-se do humano. Em concreto, é com os outros que vive-
lidade atual de nossas experiências. Experimentamos o mundo en- mos e agimos no mundo. Nessa relação é que cresce e se desenvolve
quanto o compreendemos pelo nosso conhecimento – e nos apro- um mundo humano; nessa relação é que participamos das experi-
priamos dele e o determinamos pela ação, pela tomada de posição –, ências, ideias e convicções dos outros. Muito do que conhecemos
enquanto apreendemos relações de sentido, enquanto aprendemos e experimentamos dos outros entra em nosso mundo, passando a
e criamos valores, enquanto tomamos decisões e nos propomos fazer parte do horizonte em que cada um determina a sua ação. Esse

Antropologia Filosófica 24
mundo comum aperfeiçoa-se, continuamente, na troca de opiniões, tradição encontra seu lugar e sua expressão. Numa comunidade, o
de conhecimentos, de avaliações na comunidade de experiências. passado tem sentido; pela linguagem é que recuperamos a memó-
Forma-se, pois, um mundo comum de compreensão, sem o qual ria do vivido. Com isso, a linguagem é o elemento fundamental do
não seria possível a nossa formação humana, nem a criação da cul- nosso mundo de compreensão: toda a vida do homem é simbólica,
tura ou a ciência; numa palavra, não seria possível a vida humana os símbolos manifestam o homem; a linguagem é o símbolo por ex-
no mundo. Assim, o mundo humano é intersubjetivo, e o homem é, celência da vida humana.
constitutivamente, referido ao outro. Por fim, e a partir da linguagem, chegamos a mais um elemen-
Em quarto lugar, o mundo do homem é sempre mediatizado pela to constitutivo do mundo humano: o mundo humano é um mundo
linguagem. A linguagem é algo central na vida humana; sem ela, não histórico. Falar em historicidade é falar em presente, passado e futuro.
seria possível a comunidade. Mais do que ter linguagem, o homem Com efeito, a vida – as relações dos indivíduos – é interligada e entre-
é linguagem. O mundo que o homem cria é o mundo das expres- tecida numa realidade histórica mais abrangente; cada indivíduo hu-
sões do homem; a linguagem é a expressão do ser-com-os-outros no mano é influenciado por um passado que opera no presente e deter-
mundo. Os primeiros anos de vida do homem são de aprendizagem; mina interna e externamente nossa existência no mundo, acerca do 25
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

ensinar uma língua a uma criança é transmitir-lhe um mundo cul- que poderemos viver. O passado marca, mas marca definitivamente.
tural, um espírito comum inscrito no tempo. Nesse sentido, toda Eventos históricos, experiências feitas, decisões tomadas continuam
análise compreensiva da realidade humana passa, inevitavelmente, a determinar-nos. A realidade econômica, política, social e cultural é
pela análise da linguagem. De fato, pelo aprendizado de uma língua dada ao indivíduo com a sua situação e densidade históricas. O pas-
determinada, entramos no mundo humano, crescemos no contato sado é o ‘lugar da faticidade’, do imutável: o que foi feito, feito está.
pessoal e na comunicação com os outros, criamos relações inter- Mas à historicidade do homem e do seu mundo pertence também
subjetivas, pensamos, compreendemos e agimos. Sem a linguagem, o saber da história. Em verdade, quanto mais sabemos sobre a nossa
nem poderíamos pensar. Nesse mundo humano mediatizado pela realidade histórica, maior será a nossa visão sobre o presente; rela-
linguagem, a linguagem falada tem primazia sobre as outras, porque ções existentes e concepções vigentes podem mais facilmente ser
ela estabelece sempre uma relação direta com o outro, produz o en- relativizadas, questionadas ou integradas num horizonte ulterior. O
contro e traduz a expressividade das relações. presente ‘é o lugar do aqui e agora’, das nossas decisões e ações, ele
Disso decorre que é pela linguagem que todo homem recebe uma é, propriamente, o instante em que inscrevemos mais experiências e
determinada interpretação do mundo, pois a linguagem é forma- significações no horizonte particular e comum de uma comunidade.
da sempre numa e por uma comunidade histórica, na qual nos são À mesma historicidade do mundo humano pertence também –
transmitidas determinadas formas de pensar e agir, na qual toda a e, sobretudo – a possibilidade de transcender o presente, de criticar
o negativo existente e projetar novas possibilidades históricas de mem e do animal. Enquanto o comportamento, humano na inves-
existência. Sendo o homem capaz de se distanciar do presente, pode tigação científica atual – mesmo depois das tentativas de redução
criticá-lo e vê-lo como não adequado. O futuro ‘é o lugar do possível’, à Genética –, é designado como aberto, o comportamento animal é
daquilo que ainda não é, mas que pode vir-a-ser; por essa dimen- tido como ligado ao ambiente.
são da historicidade do mundo humano, o homem pode levantar os Em primeiro lugar, o comportamento animal é fundamentalmen-
possíveis mais próprios para a sua vida e para a vida da comunida- te caracterizado como ligado ao ambiente. Mas o que é o ambiente?
de, pode projetar seu desejo e suas esperanças, na direção dos quais Ambiente significa um espaço determinado de vida ao qual o animal
pode mover suas decisões e ações. está fixado especificamente. Não se trata apenas de um espaço geo-
Esses cinco elementos constitutivos do mundo humano mostram, gráfico, mas da imediatidade dinâmica das condições e das coisas
pois, que o homem não é puramente condicionado pelo acontecer his- nas quais e com as quais o animal vive. Numa palavra, o ambiente
tórico mais abrangente; cada homem é um ser que tem de configurar do animal é a natureza, ou o mundo natural em sentido estrito.
sua história por sua ação livre, e nessa história precisa realizar a sua Em segundo lugar, o comportamento animal é designado pela
vida. Assim como o homem determina o mundo das coisas, e assim percepção sensível. Com efeito, o animal reage totalmente ou não
também o homem determina a história, o mundo se torna mundo reage; tudo depende de como ele capta – sensivelmente – ou não
humano, e a história uma história propriamente humana. Assim, só um determinado conteúdo do ambiente que ponha em movimento
é compreensível a vida humana como a vida num mundo histórico. a sua instintividade. Nesse sentido, o animal não tem, propriamen-
Temos, então, uma síntese antropológica muito importante: o ho- te, um ‘mundo’.
mem é, essencialmente, um ser-com-os-outros-no-mundo, e o mundo Em terceiro lugar, o animal tem uma memória sensível, que pode
do homem é o espaço concreto de vida formado pela totalidade desses armazenar impressões e vivências que de novo são despertadas por
elementos que constituem o horizonte da compreensão do homem. ocasião semelhante de impressões. É o caso do ‘gato que tem medo
de água fria’. Isso pressupõe no animal um centro sensível de opera-
2.3. ções, que recebe as percepções e dirige a reação. Porém, a percepção
A Abertura como o Modo humano de sensível e as formas de reação permanecem ligadas ao ambiente.
Ser-Com-Os-Outros-No-Mundo Em quarto lugar, o animal é um ser especializado biologicamente
para determinadas condições ambientais. O seu corpo, a formação
Comecemos analisando as condições biológico-corporais humanas de seus membros e o modo de alimentação e de viver são apropria-
que possibilitam a abertura humana propriamente dita. Para tanto, dos para um determinado ambiente; nele, o animal está capacita-
procederemos a um desvio que confronta o comportamento do ho- do para exercer domínio, porque seus membros são formados em

Antropologia Filosófica 26
consonância com o ambiente, como instrumentos e armas para o mundo’. Na prática – e sem dúvida –, cada homem tem também um
ataque e defesa. O animal sofre os processos evolutivos gerais que ambiente limitado, entendido como imediatidade da situação dada.
habitam a natureza e a sua própria espécie, mas permanece ligado Contudo, esse ambiente não é fixo em sua estrutura, nem limitado
às condições do ambiente. Assim, mudanças radicais no ambiente pela especialização biológica ou pela ligação ao instinto e a sua se-
podem provocar a extinção da espécie. gurança. O ambiente do homem é, simplesmente, o ambiente ime-
Em quinto lugar, o animal está ligado ao ambiente porque está diato das pessoas, das coisas, da sociedade, etc., ou seja, o mundo do
ligado ao instinto. Por certo, o animal capta o ambiente de modo homem; esse ambiente humano, por sua vez, é essencial e constitu-
vital, instintivo; o animal só percebe conteúdos que oferecem sa- tivamente aberto à totalidade maior de um mundo que, como vimos,
tisfação ou provocação ao instinto. Sua percepção sensível é refe- forma o horizonte total da experiência e da compreensão.
rida rigorosamente à instintividade; ele tem uma segurança ins- A partir dessa abertura, aparecem as características específicas
tintiva que está a serviço do comportamento ligado ao ambiente. O do comportamento humano. A primeira diz respeito às condições
animal é seguro de sua vida porque o instinto lhe é suficiente para biológico-corporais do homem. Com efeito, o equipamento bioló-
viver no seu ambiente. gico do homem, em comparação ao do animal, apresenta uma au- 27
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Mas o que é o instinto? É um comportamento hereditário, inato, sência de especialização. Em relação ao animal, o homem é um ser
fixado especificamente para a conservação da vida do animal. É um defeituoso, pois, se tivesse que viver como o animal, seria o mais
modo de comportamento que surge com o mesmo ser vivo animal; o despreparado de todos, e desapareceria. O homem se mostra despre-
animal tem certo espaço de movimentos ‘livres’, mas, rigorosamen- parado para o ambiente, sem vestido natural para o calor e para o
te, não pode inventar, criar. frio, sem armas naturais para a sua defesa, sem instrumentos natu-
Por fim, o animal também capta certas experiências práticas, po- rais para prover o alimento.
rém, de novo, isso está ligado ao instinto. Mesmo o comportamento A segunda característica do comportamento humano é que, o
‘inteligente’ do animal não ultrapassa as suas possibilidades instin- que, em relação ao animal, aparece como deficiência, mostra-se, do
tivas; o animal não consegue se distanciar nem do ambiente, nem de ponto de vista da existência humana, a condição de possibilidade
si mesmo, mostrando uma estreita conexão entre comportamento, mais imediata para uma vida livre do ambiente e aberta ao mundo.
instinto e ambiente. Nesse sentido, o animal não é capaz de história Na verdade, na sua configuração biológica, o homem é aberto e capaz
e cultura. (Apesar de gostarem tanto de bananas, os macacos não se de adaptação e acomodação. Os nossos membros, sendo abertos, são
decidiram a plantá-las!). polifacéticos, são a expressão de nós mesmos, capazes de uma mul-
Vejamos agora o comportamento do homem. A tese aqui é a se- tiplicidade de atividades superiores. Por exemplo, a mão recebe o seu
guinte: o comportamento humano se caracteriza pela ‘abertura ao sentido do ser todo do homem, ela pode ser órgão de contato ou de
trabalho, órgão de apropriação das coisas ou símbolo da intervenção assim, o homem precisa confrontar-se, constantemente, com as si-
do homem no mundo, sinal de um gesto de mão estendida ou atitu- tuações dadas, procurar o comportamento mais adequado, encon-
de de fechamento, sinal de oração e de partilha, sinal revelador de si trar as mediações mais apropriadas para satisfazer seus instintos,
e de doação ou sinal de violência e egoísmo. suas necessidades em geral. A natureza do homem é, pois, aberta.
Afirmações semelhantes podemos fazer a respeito do rosto. Isso mostra que o homem é um ser inacabado. Esse inacabamento
Trata-se da parte do corpo humano mais diferenciada morfologi- do homem mostra-se não apenas em sua peculiaridade biológica –
camente e mais finamente modelada do ser humano. O rosto é a que não é especializada para determinados ambientes –, mas em todo
manifestação por excelência da pessoa; é no rosto que a consciên- o seu comportamento, o qual não é determinado por esquemas ins-
cia aflora e se mostra; nele, dizemos nossa tristeza e nosso con- tintivos. Esse inacabamento mostra que o homem tem de conseguir
tentamento, assentimos e acolhemos o outro; nele, dizemos nosso configurar o seu mundo por própria ação, e tem de realizar-se em seu
afastamento e nossa recusa. O rosto é um atestado de si mesmo. O mundo para tornar-se plenamente um ser humano. O homem é dado
homem é o único ser no mundo que tem rosto, porque é o único a si mesmo como uma tarefa a realizar; ao transcender o ambiente e
que, estritamente, pode manifestar-se. O rosto é interpretação e in- o instinto, o homem alcança um horizonte propriamente humano.
terpelação humana, porque cada rosto é único, porque não há dois Podemos designar esse comportamento humano como capacida-
rostos iguais; cada rosto é uma versão inédita. A violência contra o de de distanciar-se. Essa quarta característica inclui e suprassume as
rosto é a que dói mais, porque machuca o que em cada um é único, anteriores. Com efeito, o homem pode distanciar-se das coisas e dos
singular. Porém, como o homem é aberto, o rosto também pode se outros porque ele não experimenta o mundo imediatamente ligado
tornar sinal e lugar de vedetismo, pode transmutar-se em objeto de ao ambiente e ao instinto; o homem pode também distanciar-se de
consumo, em coisa, em mercadoria. si mesmo e, nisso, ultrapassa o seu ser natural instintivo. E, distan-
A terceira característica do comportamento humano é que, com- ciando-se de si mesmo, o homem vê surgir em si a possibilidade
parado ao animal, o ser humano mostra uma pobreza de instintos. de experimentar o seu mundo como a totalidade de uma realidade
Na verdade, o homem carece de verdadeiros instintos. A criança efetiva dada previamente a ele, totalidade feita por outros homens e
precisa, durante muito tempo, de total proteção e ajuda, e precisa, também modelada por ele. Assim, o homem vive na totalidade de um
paulatinamente, aprender a orientar-se no mundo. Os instintos no mundo essencialmente aberto, e o homem é aberto a esse mundo.
homem existem, mas são abertos, não fixados, possuem uma his- Os fenômenos descritos acima mostram uma lei fundamental de
tória, só se formam por costume e educação. É o homem que dá a todo o comportamento humano: o homem vive na mediação. O ani-
significação aos instintos e decide a forma de satisfazê-los ou não. mal vive na imediatidade; o homem, na mediação. O homem, pois, é
Em outras palavras, o instinto no homem é indeterminado; sendo outro tipo de ser, o homem não é um animal.

Antropologia Filosófica 28
Retomemos as características do comportamento humano acima da abertura do homem, que é a abertura para a história. De fato, o ho-
indicadas, mas agora sob o prisma da mediação. Em verdade, o com- mem tem de configurar o seu mundo pela própria ação, autodetermi-
portamento humano pressupõe um distanciamento originário das nar-se; ora, o resultado dessa autodeterminação de seres conscientes
coisas, do ambiente e da própria natureza instintiva. O homem se é o que chamamos de História.
experimenta como um ser distanciado, pelo qual ele é um ser ativo. Um ser que não está determinado por um mundo fixo – e cuja
Tal distanciamento é a condição de possibilidade para um compor- característica fundamental é a automedicação – é um ser que com-
tamento ativo e, como tal, humano. Por esse distanciamento, o ho- preende, um ser consciente de sua situação no mundo. O homem é
mem medeia a sua ação. consciência compreensiva. A consciência, nesse sentido, não é uma
A relação do homem com o mundo é sempre mediatizada, por ele faculdade que se acrescenta ao homem, mas é algo constitutivo do
e para ele. Isso não altera os determinismos do mundo, suas leis; ser do homem. Ele é um ser consciente que compreende a sua rela-
sem dúvida, a existência humana é sempre mediatizada pelo mun- ção com o mundo; para poder viver, o homem precisa compreender
do, mas o mundo é mediatizado pelo homem e para o homem. Nesse a vida. Assim, todos os fenômenos da vida, mesmo os mais banais,
sentido, o homem mesmo é a sua própria mediação, ele introduz são sempre fenômenos com sentido. Os movimentos da vida coti- 29
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

conhecimento no mundo, ele projeta transformações no mundo a diana, como o andar, sentar, comer, as necessidades, os impulsos, as
partir das perspectivas que abre para si mesmo. tendências, são sempre fenômenos compreendidos, interpretados,
Um dos elementos que caracteriza a existência humana – e seu significados; é a compreensão que orienta a sua atividade. Sem cons-
essencial distanciamento – é a capacidade de dizer não. O dizer Não ciência, não existe realidade; para que haja realidade para mim, é
é como uma subversão dos dinamismos do mundo, é a atualização, necessário que eu tome consciência dela.
aqui e agora, do poder de distanciar-se. Essa mediação ativa que ca- Vejamos então como é a estrutura da consciência. Com efeito, por
racteriza o homem é, no fundo, o que, historicamente, chamamos de um lado, o homem é consciência situada. O homem não é consciência
liberdade. Por certo, ela abarca o comportamento total do homem, e o independentemente da experiência, nem consciência como reflexo
homem se experimenta dado a si mesmo como liberdade. O homem do dado experimental; a consciência é sempre situada aqui e agora.
se experimenta como liberdade e como inacabado; daí a tarefa ina- O homem está sempre referido aos dados da experiência, às condi-
lienável de cada homem: configurar sua vida, autoconstruir-se por ções naturais, sociais e culturais de sua existência. Essas condições
sua liberdade. Assim, todo homem é livre para chegar a ser livre – reais são sempre limitadas; os limites podem ser variados, diminuí-
realizando-se em liberdade – por autodeterminação. dos, estendidos, e muitos deles nunca suprimidos.
Se o distanciamento frente ao ambiente e aos instintos era condi- Por outro lado, a consciência do homem é consciência do possí-
ção para um comportamento humano, vejamos agora a especificidade vel. Isso significa: o homem tem consciência de compreender e está
aberto a possibilidades. A consciência, enquanto é capaz de distin- dotado de consciência e linguagem, capaz de transcender, intencio-
guir diversos aspectos objetivos em seu mundo situado, é consciên- nalmente, o dado imediato. A historicidade da consciência se dis-
cia do poder-ser, pelo qual pode distanciar-se de cada situação con- tende, pois, entre o que o mundo lhe oferece, como já o efetivado
creta, criticá-la e superá-la pelo projeto possível. ou dado no tempo, e o conjunto de possibilidades de vida a serem
Assim, o homem se autocompreende na consciência do seu ser- instauradas, também no tempo.
dado e na consciência do projeto possível. O projeto da consciência A necessidade de assegurar o próprio futuro impele o homem a
realiza-se dentro de um espaço delimitado de ação. Nesse projeto, é construir o mundo cultural. O pensamento sobre o futuro tem um
compreendida tanto a interpretação da própria existência na relação imenso poder sobre a fantasia, e esta, sobre a abertura das possibi-
com os outros quanto a interpretação do mundo do homem como lidades. Tal poder tem como condição o fato de que os instintos e
espaço vital da existência, constituído pelas relações com a nature- pulsões humanas nunca chegam, no presente, à sua satisfação defi-
za e pelas relações sociais entrelaçadas nessas condições. Esses dois nitiva. A fantasia antecipa, nos seus desejos e imagens, o futuro que
momentos – consciência situada e consciência do projeto possível pode trazer o que o presente nos nega. E, porque pode transcender
– constituem a existência humana com os outros no mundo, o que o presente, o homem tem também um passado em sentido estrito,
só é possível, como já indicamos, no marco de uma capacidade sim- como o diverso do atualmente dado ou factível. Porém, o passado,
bólico-linguística. Só um ser que compreende pode falar, pois a pre- como lugar da faticidade, do irrevogável, do que não pode ser mu-
sença de possibilidades alternativas supõe a capacidade simbólica, dado, suporta um saber a seu respeito, uma permanente reinterpre-
pela qual o homem se eleva acima do real existente. Nesse sentido, tação e atualização do sentido, que pode ser o vetor da abertura de
só o homem tem, propriamente, futuro. novas possibilidades pela consciência.
Posta a estrutura da consciência, vejamos o seu desdobramento Em outras palavras, se a consciência do homem é consciência
em história. Por certo, pelo fato de o homem ser consciência situa- no tempo, é porque ela se estende numa dupla intencionalidade:
da e consciência do possível num marco simbólico, toda compreen- ela se abre ao futuro com um conhecimento prospectivo das pos-
são é temporal, é histórica. Temporalidade significa que o homem sibilidades, que seguem diante de si para a ação; ela se volta para
vive no tempo: tem passado, presente e futuro, significa que a sua os fatos e resultados efetivados no passado por um conhecimento
existência, tanto pessoal quanto coletiva, se distende no tempo, é retrospectivo, que, por análise reflexiva, tenta reconstruir e inter-
histórica. Um ser que, pela intencionalidade da consciência, pode pretar. Essa dupla intencionalidade da consciência se atua pela de-
distanciar-se do presente e do passado – e tem diante de si uma cisão da liberdade, que introduz uma diferença qualitativa entre o
multiplicidade de possibilidades – é um ser aberto ao futuro, um futuro – como lugar plural de possibilidades de ação – e o passado
ser que tem, propriamente, futuro. O futuro só é possível a um ser – como lugar da necessidade de fato.

Antropologia Filosófica 30
Com isso, a consciência é a identidade consigo mesma enquanto É nesse retorno infinito sobre si que a consciência capta o ho-
portadora de decisões realizadas no passado, e aberta a possíveis de- rizonte universal do Sentido, que possibilita a pluralidade sempre
cisões do futuro. Enquanto é a origem das decisões tomadas, a cons- inacabada de experiências possíveis, e no qual se mostram todos os
ciência é responsável por seus atos, pelos quais ela tem, ela mesma, fenômenos do homem e do mundo. De fato, o homem toma consci-
de responder. E, como as decisões passadas condicionam as possibi- ência de si no mundo porque pode distinguir-se de todas as outras
lidades futuras, a consciência tem que aceitar e assumir as consequ- consciências e do mundo em que vive. Ora, toda distinção se faz den-
ências dos seus atos. Assim, o homem é um ser histórico, aberto ao tro de um horizonte ulterior, que possibilita a compreensão da dis-
que ainda não é e portador de uma tradição, capaz de utopia e capaz tinção. Então, a consciência do homem, pela sua auto reflexão, pode
de rememoração. Contudo, tudo se dá sempre no presente, a vida hu- distanciar-se de toda a situação possível – e distanciar-se de si mes-
mana é sempre vivida em tempo presente; e o presente é o instante, ma, transcendendo até o horizonte incondicionado – que lhe permite
é abertura aqui e agora: o presente atualiza o passado, é no presente afirmar-se absolutamente em seu valor diante das outras consciên-
que o homem, por sua consciência, realiza o futuro. cias e do mundo histórico. É nesse horizonte universal que surgem
O caminho que percorremos até aqui, partindo de certos fenôme- as novas possibilidades de ação, como distintas das já realizadas. É
nos fundamentais da experiência humana no mundo, passando pelo nesse horizonte universal de sentido que se decide o ‘para que’, ou o
confronto entre o comportamento humano e do animal e chegando ‘em vista de quê’, ou o ‘para onde’ vive o homem com os outros no
à consciência e sua historicidade, conduziu-nos à conclusão de que o mundo. Por essa auto reflexividade – como agora aqui exercitamos
homem é um ser radicalmente aberto. A pergunta que se impõe agora é –, a consciência se mostra como radicalmente aberta. Isso significa
pelo fundamento da abertura histórica do homem. O fundamento da também que nenhuma possibilidade concreta, nem a soma das pos-
consciência compreensiva do homem é a sua capacidade de auto re- sibilidades, esgota essa abertura radical, pela qual todas elas podem
flexividade. Com efeito, a consciência do homem, distendida no tem- ser sempre transcendidas.
po, pode transcender toda situação dada e possível, e transcender- Por essa abertura radical é que o homem é dado a si mesmo como
se a si mesma por essa capacidade auto reflexiva. Necessariamente, radicalmente livre. Podemos chamar essa abertura radical do ho-
a consciência sempre está em relação, mas o homem sempre pode mem de liberdade transcendental, pois ela, elevando-se até o hori-
transcender, ultrapassar pela reflexão toda e qualquer situação e re- zonte universal, transcende todas as experiências possíveis e todo
lação dadas concretamente. A consciência tem a capacidade de sair sentido configurado de sua realização histórica, ao mesmo tempo
de si mesma permanecendo ela mesma, mas tem também a capaci- em que as possibilita. Temos que reconhecer e afirmar, pois, que o
dade de retornar a si mesma, e questionar, permanentemente, toda homem é o ser que se transcende, radicalmente, em sua relação com
compreensão e toda realização de si conseguida na história. os outros no mundo.

Antropologia Filosófica 31
Com isso, a vida do homem é caracterizada por uma contradição radicalmente aberto é poder fazer a pergunta, sempre de novo, por
dialética: por um lado, a consciência do homem, pela sua auto refle- tudo e pelo todo, pelo seu sentido; é Ter o poder de buscar a reali-
xividade, é infinitamente aberta ao possível; por outro, o homem con- zação do sentido, pela própria ação e pela força da ação comum. E,
creto está sempre referido aos outros e ao mundo na situação concre- como sempre, ‘somos com os outros no mundo’ – porque somos da-
ta, que só permite possibilidades reais, limitadas. Essa contradição dos ontologicamente assim –, é preciso – como exigência ontológi-
é insuprimível e, como tal, deve ser vivida. E, enquanto contradição ca – realizar a tarefa comum da autoconstrução humana, pois, como
entre abertura infinita e possibilidades reais sempre limitadas, ela já assinalamos, essa tarefa nos é dada em nossa própria estrutura
se impõe ao homem como tarefa permanente. A vida do homem de seres radicalmente abertos.
é a tarefa de tentar encontrar um ajuste entre abertura infinita do Digamos tudo isso com outras palavras. De fato, o homem é
possível e as possibilidades reais limitadas. É no marco referencial uma tensão, um dinamismo infinito, dinamismo aberto que em si
dessa contradição e tarefa que se realizam todas as experiências do mesmo precisa de uma direção. É o homem que deve imprimir a
homem. Em relação ao mundo, surgirão as experiências objetivas; direção, integrando as suas diversas dimensões constitutivas. O ho-
em relação aos outros, as experiências intersubjetivas, com todas as mem é um corpo não especializado para o ataque e defesa, seu com- 32
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

múltiplas regulamentações da sociedade sob as quais se decide, in- portamento não é programado e fixado pelos instintos, nem pelo
clusive, sobre a distribuição dos bens produzidos, sobre as relações ambiente. O homem está no mundo e constrói seu mundo com os
de direito, as relações de dependência, de injustiça, de exploração e outros; o homem pode distanciar-se de toda situação concreta por-
de domínio. E em relação a si mesmo, o homem fará as experiências que é liberdade originária e tem consciência desse distanciamento.
subjetivas, pelas quais tentará realizar essa abertura radical. O homem constrói a própria história porque pode, verdadeiramen-
A compreensão do sentido do homem decide-se, a partir daí, te, agir, não apenas reagir diante das situações concretas; o homem
pelo modo de resolver essa contradição dialética. Vamos nos aco- expressa o seu mundo, o sentido de suas múltiplas relações, porque
modar ao presente? Seguiremos o que exige a nossa auto reflexivi- tem a capacidade da linguagem, pela qual é possível a acumulação
dade? Simplesmente vamos ‘esperar’ uma solução no futuro? O fac- do saber e a memória da história.
tum é que não há como fugir à realização do sentido da própria vida, Todas essas dimensões humanas se dão num entrelaçamento
não há jeito de escapar à responsabilidade pelas próprias escolhas e constante, e tem como fundamento a capacidade ontológica auto
ações, inclusive das próprias omissões. Essa exigência é dada, onto- reflexiva, a partir da qual tudo pode ser compreendido, criticado,
logicamente, junto com a abertura e, nesse sentido, o homem não é transformado. É essa capacidade que mostra a abertura radical do
livre para suprimi-las. Não há nada no mundo humano que permi- homem, inclusive para a pergunta sobre o fundamento de tudo e
ta ou possibilite ao homem escapar de vez à questão do sentido. Ser do todo. A mola que impulsiona, permeia e move todo homem é o
sentido, a busca do sentido, o que em si mesmo indica, retrospec- sentido de sua vida acontece também de uma maneira aberta, pois
tivamente, o inacabamento e a abertura humana. Assim, viver hu- as mediações são sempre eleições que não são pré-determinadas.
manamente é viver com sentido, para o qual tendem todos os nossos O conceito e a experiência da injustiça aparecem no momento em
desejos, aspirações e ações, como possibilidade de auto realização. que o homem tenta reduzir um ao outro os três polos fundamentais
Nesse sentido, o homem não é um ser que apenas tem esperança; o das relações do mesmo homem. Pode acontecer a anulação da sub-
homem é, em si mesmo, esperança. jetividade, a coisificação do outro, a dominação. Entretanto, mesmo
A auto reflexividade humana permite-nos perceber, ao retomar a nessas relações, a abertura permanece como a possibilidade de to-
história dos homens, que uma das experiências que mais nos pleni- mada de consciência sobre a própria situação de injustiça, e como
ficam de sentido – e nos realizam como seres humanos – é a experi- fonte da consciência da dignidade e do desejo de igualdade real. É
ência do amor. Como experiência, ou apenas como desejo de viver tal essa abertura que, historicamente, moveu e move os homens ao en-
experiência, o fato é que ela é um referente da realização humana, gajamento político na direção de mudanças radicais, que promoveu
talvez seja mesmo o referente mais forte para o qual tende a abertu- o levantamento de todas as utopias e Esperanças que a história co-
ra livre de cada homem, e por onde passa, indelevelmente, a busca nheceu. Nesse sentido, a realização de cada homem implica a par-
aberta e livre do Sentido. ticipação no espaço político, onde se tomam as decisões acerca do
33
bem ou do mal comum; se somos ontologicamente com os outros no
2.4. mundo, somos, por consequência, seres políticos.
Apontamentos Conclusivos A realização plena do homem no tempo dar-se-ia no dia em que
fosse possível a sua integração completa com a totalidade dos ou-
Feito esse percurso na direção da abertura radical, ontológica do ho- tros, do mundo e de si mesmo. Mas, como o homem é radicalmente
mem, retomemos alguns dos pontos fundamentais e, a partir dessa aberto – e todo homem é assim –, então a própria totalidade é aber-
mesma auto experiência de ser radicalmente abertos, indicaremos ta. O homem pode pôr-se a pergunta pelo fundamento de tudo, pode
uma questão que também – decisivamente – faz parte da historici- perguntar-se pela condição de ser dado como radicalmente aberto e
dade humana. Trata-se da abertura do homem ao Infinito. pode perguntar-se pelo fundamento da totalidade. E, mais radical-
Com efeito, vimos que o homem é livre do ambiente e do instin- mente ainda, pode levantar a questão sobre o sentido da totalidade,
to, e está referido aos outros nas situações concretas de sua vida; o pelo sentido de sua finitude, pelo sentido do seu desejo de Infinitude.
seu modo de ser é existir radicalmente aberto na busca de um sen- Assim, no mesmo marco da condição de abertura ontológica do
tido, que precisa ser encontrado e realizado na relação com os ou- homem, inscreve-se a pergunta pelo Infinito, pelo que Transcende
tros, numa história aberta. Como e Onde o homem busca e realiza o o tempo em que se dá o acontecer das vidas humanas, finitas. O

Antropologia Filosófica
homem é capaz, pois, a partir de si mesmo, de colocar a questão do decisivos da constituição humana, como a abertura radical e o ser-
Absoluto, que, no Ocidente, recebeu o nome de Deus, mas que é uma com-os-outros-no-mundo. Eis que, nessa mesma condição ontoló-
questão presente em todas as culturas, em todos os tempos. gica, inscreve-se a Ética. Em verdade, se somos com os outros no
Eis, pois, como se ligam Antropologia Filosófica e Filosofia da mundo, e a forma de vivermos com os outros no mundo é uma for-
Religião. Por certo, o escavamento no solo ontológico do homem ma aberta, então é exigência constitutiva a pergunta pelas condições
mostra o ‘lugar’ onde se inscreve a questão do Sentido Primeiro e da realização de todos, e cada um dos seres que vivem abertamente
Último da existência humana, no mundo e do próprio Mundo. O com os outros no mundo. Em concreto, a vida com o outro implica
escavamento ontológico, na parte que nos cabe no Ser, leva-nos a valores e, daí, normas que agilizem e estruturem aquilo que uma co-
tomar consciência e a fazer a experiência acerca do fato de sermos munidade elegeu, abertamente, como o decisivo para a realização de
dados no mundo, de que, no remetimento infinito do homem aos todos e cada um. A dimensão ética é, pois, constitutiva da vida hu-
outros homens, não encontramos, na humanidade, as condições ne- mana e, como tal, não é relativa; relativizável é o que uma comuni-
cessárias e suficientes para fazer aparecer, de maneira primigênia, dade elegeu como decisivo; muitas vezes os conteúdos podem oficia-
os seres humanos. O homem – e isso também aparece nas Ciências lizar a injustiça e os privilégios. Há muitas morais imorais, contudo,
– não é, ontologicamente, a causa de si mesmo e dos dinamismos e elas podem ser transcendidas a partir da abertura e das exigências
exigências que o habitam. E, na outra ponta da experiência de ser inscritas na própria condição humana.
homem com os outros no mundo, emerge a consciência de que o
homem, embora habitado pelo desejo ontológico de Infinitude, não
pode garantir a duração e a continuidade infinita de sua existência.
Tal situação foi expressa ao longo da História como a experiência
do Sagrado. É então que entra a Filosofia da Religião, que talvez se
devesse chamar Filosofia do Sagrado, pois este é anterior à insti-
tucionalização da experiência pelas religiões. Mas, tal disciplina,
enquanto discurso humano sobre o que habita o homem e, ao mes-
mo tempo, o ultrapassa, também experimentará seus limites: o
Sagrado transborda a todo conceito. Daí para frente entra, como ao
longo da História, o logos da Fé.
Temos, assim, uma Antropologia fundada numa Ontologia,
que se mostra sempre insuficiente; mas aí descobrimos elementos

Antropologia Filosófica 34
VIDEOS E
MATERIAIS
DE SUPORTE:
•  filme: Perfume de Mulher/ estrelado por Al Pacino

BIBLIOGRAFIA:
•  coreth, Emerich. Qué es el hombre. Barcelona: Herder, 1991.

•  lima vaz, Henrique Cláudio de. Antropologia Filosófica I. São


Paulo: Loyola, 1991.

•  reale, g; antiseri, d. História da Filosofia. São Paulo: Paulus,


1990, 7 Volumes.

Antropologia Filosófica 35
MÓDULO 2
História das
Concepções
do Homem
na Filosofia
Ocidental
1
O HOMEM NA IDADE
CLÁSSICA (PRIMEIRA
APROXIMAÇÃO)
(A partir da obra de •  Só enquanto dotado de Logos o homem é capaz de entrar em
Henrique Cláudio de Lima Vaz,
relação consensual com seu semelhante e constituir a comuni-
Antropologia Filosófica I.
São Paulo: Loyola, 1991 ) dade política (Pólis);
•  A vida política (bios politikós), vida humana por excelência,
1.1. é exercida pela livre submissão ao logos, estruturado em leis
A Concepção Clássica do Homem justas.
Disso, resulta que o homem possui duas atividades dotadas de
A concepção clássica do homem começa bem antes de Platão e Aris- finalidades específicas:
tóteles. Ela se forma, em seus elementos essenciais, por volta dos •  A atividade de contemplação (theoria);
séculos vii e vi a.C. Desde essa época, ela se organiza como um •  A atividade do agir moral e político (práxis).
universo espiritual coerente, harmônico e com uma riqueza extra- A interação entre essas duas atividades é um dos problemas que
ordinária. O encontro com a cultura romana e com seus elementos a concepção clássica do homem, sob diversas formas, procurou
específicos resultou no que se veio a chamar de ‘cultura clássica gre- resolver.
co-romana’. Esta forneceu à civilização ocidental a primeira e per-
manente constelação de ideais e valores. 1.1.1.
Quanto à concepção de homem, a cultura clássica, de um modo
O Homem na Cultura Arcaica Grega (Traços)
geral, pôs em relevo dois traços fundamentais:
•  O homem como um ser que fala e discorre (zôon logikón) •  Traço Teológico-Religioso: há uma oposição e divisão entre o
•  O homem como ser político (zôon politikón). mundo dos deuses e o mundo dos mortais. Os deuses são
Esses traços se relacionam intimamente, por que: imortais e felizes; os homens, efêmeros e infelizes. O homem
pretende igualar-se aos deuses, mas sucumbe nas malhas im-

Antropologia Filosófica 37
placáveis do destino (moira), provocando o desfecho trágico na luminoso, a presença ordenadora do logos na vida humana,
vida humana. A mitologia grega, especialmente com Hesíodo, orientando para a clareza do pensamento e para a ação razoá-
narra longamente essa questão . Daí os preceitos de modera-
13
vel. O dionisíaco designa o lado obscuro, das forças de Eros, do
ção provindos dos templos de Apolo e Delfos: ‘nada em exces- desejo, da paixão – Platão celebrizará isso no Banquete e terá
so’, ‘conhece-te a ti mesmo’. Com isso, de nada adianta ao ho- uma presença marcante no pensamento de Nietzsche. Em se-
mem ser orgulhoso (hybris). gundo lugar, aparece o tema da Alma (psyché), sopro, o corre-
•  Traço Cosmológico: trata-se da contemplação da ordem do cosmos lato do corpo. Em Homero, ela vai viver em sombras no Hades;
e de admiração diante dessa ordem e beleza do Kosmos. Dessa no orfismo, a alma é uma entidade separada do corpo, reencar-
admiração, segundo Platão e Aristóteles, ter-se-ia originado a fi- nando-se em várias existências. Em terceiro lugar, aparece a
losofia ou a vida teorética. Haveria uma correspondência, uma imagem do Herói, da excelência (areté) guerreira, do fundador
homologia entre a ordem do Kosmos e a ordem humana, repre- da Cidade; progressivamente, vem juntar-se a isso o ethos da
sentada pela Pólis: há uma Justiça no universo; a pólis deve ser excelência do rude trabalho nos campos (cf. Hesíodo em Os tra-
regida por leis justas. O homem é pensado como um microcos- balhos e os Dias). 38
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

mo dentro do macrocosmo, de onde o homem recebe vida e mo- O ponto de intersecção entre esses traços é o temeroso tema do
vimento e se realiza como homem, se conformar sua vida com a Destino (moira). Sobre ele se desenvolveram duas posições:
justeza do cosmos. Daí nasce a ideia de uma Ciência do agir hu- •  Por um lado, o pessimismo: o destino é inexorável, acentua o de-
mano, no que a pólis ocupa um lugar fundamental: é a mediação samparo do homem, a impotência humana ao tentar escapar
por excelência. Esse segundo traço cruza-se com o teológico e de sua determinação;
forma o conceito de Necessidade – inscrita na ordem do mundo •  Por outro, o moralismo: é a descoberta da responsabilidade pes-
e à qual se submetem homens e deuses. Daí o problema da con- soal, do poder de escolha. Essa posição prevalecerá desde a
ciliação entre Necessidade cósmica e Liberdade humana. ‘Odisséia’ de Homero.
•  Traço Antropológico: aqui entra, em primeiro lugar, a oposição
1.1.2.
entre o apolíneo e o dionisíaco. É do que trata Ésquilo nas ‘Eu-
mênidas’ e Eurípedes nas ‘Bacantes’. O apolíneo designa o lado O Homem na Filosofia Pré-Socrática
Diógenes é um dos primeiros a representar um pensamento antro-
13 Sobre esse assunto, cf. J. A. Pessanha (diretor). Mitologia. São Paulo, pológico claramente definido, na filosofia da physis. Exalta a supe-
Abril Cultural, l973. Vol. 2. Cf. também Ivan Domingues O Grau Zero do
Conhecimento (Introdução). São Paulo: Loyola, 1991. Especialmente as
rioridade do homem sobre os animais, o que se manifesta na posição
páginas 17 e 18. vertical e na marcha, no olhar voltado para o alto, para a contempla-
ção dos astros. Celebra a agilidade das mãos, obreiras da téchne, e •  O modelo do progresso: pressupõe um primitivo estado de bar-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

exalta a prerrogativa da linguagem, manifestação do pensamento. O bárie, ultrapassado pela fundação das cidades e pela invenção
homem é, pois, um ente corpóreo-espiritual, cuja natureza se mani- das técnicas.
festa na cultura. É um ser ordenado finalisticamente em si mesmo, Os sofistas levam a efeito a inflexão antropológica grega: o ho-
e para o qual se ordena a própria ordem do cosmos: um microcosmo mem e suas capacidades tornam-se o objeto principal da filosofia,
dentro do macrocosmo, o que será aprofundado pelos pensadores da com algumas características que se tornarão definitivas:
physis. Nos Pitagóricos, encontramos a correspondência entre a es- •  O conceito de uma natureza humana (geral);
trutura matemática do universo e a estrutura matemática da alma, •  O conceito de narração histórica pela investigação e consciên-
harmonia, sobre o que se deve basear toda educação. cia da pluralidade das culturas;
No séc. v a.C., o problema antropológico vai se sobrepondo ao •  Oposição entre convenção (nómos) e natureza (physis) na orga-
cosmológico sob a influência das transformações da sociedade gre- nização da cidade e nas normas do agir individual (convencio-
ga, das guerras pérsicas, da consolidação do regime democrático em nalismo jurídico e ético);
Atenas e outras cidades. Subjacentes à interrogação sobre o homem, •  Individualismo relativista e posição cética quanto à verdade;
aparecem dois grandes problemas, interligados entre si: •  Afirmação de um desenvolvimento progressivo da cultura;
•  O problema da Educação (Paidéia), que gira em torno de uma •  O homem como um ser de necessidade e carência;
nova forma de areté política exigida pela vida democrática ; 14
•  O homem como ser dotado de logos, capaz de demonstrar
•  O problema da Sabedoria, não mais fundada na tradição, mas e persuadir.
na Razão e na téchne.
Esses problemas já se encontravam em Heráclito, em seguida, no 1.1.3.
pensamento Sofista. Para os sofistas, e posteriormente na época áu-
A Transição Socrática
rea, o problema maior é o da Cultura. Para eles, a origem e desenvol-
vimento da cultura são pensados segundo dois modelos: É a época da crise ateniense: guerra do Peloponeso, ideias sofistas,
•  O modelo da decadência: regido pelo mito de uma idade de luta pelo poder e participação política. Com Sócrates, emerge uma
ouro primitiva; nova concepção de homem que comporá a imagem do homem clás-
sico, a nós transmitida em seus traços fundamentais.
Seu grande tema: ‘o que é propriamente o humano?’. O humano

14 Não se pode esquecer aqui de indicar a grandiosa obra de Werner Jae-


deve referir-se a um princípio interior, presente em cada homem:
ger, Paidéia. a alma. 39
O que é a Alma? Ela é a sede de uma areté que vai desde a excelên- nela estaria o finalismo do inteligível, é ela que harmoniza os movi-
cia física e a coragem até a excelência, como habilidade aprendida mentos interiores.
segundo regras. É a sede de uma areté que permite medir o homem O corpo pertence ao mundo sensível e deve sua vida à alma, bem
segundo a dimensão interior, na qual reside a verdadeira grandeza como suas capacidades de operação; ele não é tanto o receptáculo
humana. É o lugar da opção entre o justo e o injusto; ela é a essência da alma, mas algo que está em oposição a ela, chegando a ser com-
do homem. É a ideia de personalidade moral: sobre ela se assenta parado, como lemos no Górgias, a um ‘cárcere’, um túmulo. Quando
todo o edifício da ética e do direito. morre o corpo, é a libertação da alma, pois ele é a raiz do mal, fon-
A partir daí, os traços do homem: te de amores insensatos, paixões, ignorância, loucura... Já na ética,
•  A teleologia do Bem e do melhor como via de acesso para com- Platão não é tão dualista.
preender o mundo e o homem, sobre a qual se funda a natureza No Fédon, lemos que a alma deve fugir sempre mais do corpo. A
ética da psyché; alma não morre, a morte é só do corpo. A morte do corpo traz grande
•  A valorização ética do homem, expressa no preceito ‘conhece- benefício à alma, pois permite a ela unir-se diretamente ao inteligível,
te a ti mesmo’, mediante investigação metódica: ironia, indu- ao bom e verdadeiro. O sábio deve fugir também do mundo, porquanto
ção, maiêutica, para chegar à Sabedoria=Virtude=Ciência; este representa um afastamento do inteligível, o que é o mal da alma.
40
•  A primazia da faculdade intelectual, que conduz e estabelece a A fuga do corpo e a fuga do mundo se efetiva pela virtude e pelo co-
relação fundamental, i.é, a relação Dialógica. nhecimento; praticar a virtude e dedicar-se ao conhecimento é, como
lemos nas Leis, assemelhar-se a Deus, medida de todas as coisas.
1.1.4. Assim, o cuidado da alma é a suprema missão moral do homem.
E cuidar significa purificar, orientar a alma para o inteligível, afas-
Antropologia Platônica
tando-a do sensível através do conhecimento do que é eterno, e daí
É a mais poderosa e influente concepção ainda hoje. É uma síntese a virtude. A dialética é conversão progressiva da alma na direção da
na qual se fundem tradição pré-socrática, tradição sofística e heran- Luz=Bem (cf. A República). Aqui se põe, decisivamente, a importância
ça socrática. da Filosofia da Educação e da Filosofia Política platônicas (duas gran-
A herança cosmológica é assumida numa perspectiva antropo- des mediações para formar a alma). E, como se lê no Timeu, as almas
lógica, do finalismo da inteligência como imanente ao movimento foram geradas pelo Demiurgo, e possuem, em sua natureza, uma afi-
cósmico: a alma move-se a si mesma; o homem é considerado como nidade com as coisas imutáveis e eternas, não estando sujeitas à morte
alma e corpo, com prioridade da alma na definição do homem, pois ou à dissolução. Mas, se não existir a dimensão meta-empírica da rea-
lidade, então cairia também a tese da imortalidade da alma. Enquanto

Antropologia Filosófica
pertence ao mundo sensível, o homem é um ser de carências e está tiva, alma sensitiva (com apetite e movimento), alma intelecti-
referido essencialmente aos outros; é por isso que os homens cons- va (fonte do conhecimento racional).
troem as cidades: ninguém consegue prover-se de tudo aquilo de que •  O homem como Zôon Logikón: o homem pertence à physis, mas
precisa para viver; e, na cidade, cada um com suas capacidades especí- se distingue dos outros seres por seu Logos (linguagem, fala,
ficas cumprem funções que são importantes para todos.15 sentido, discurso, pensamento), transcendendo por ele a natu-
reza. Por isso, o homem não é um ser ‘natural’. O Logos é recep-
1.1.5. tivo e ativo, tem como Fim a Verdade (theoria), o Bem (práxis),
a Utilidade e o Prazer (poíesis), codifica a forma do pensamento
Antropologia Aristotélica
teórico e prático (lógica).
Aristóteles é o fundador da antropologia como ciência, e tentou •  O homem como Zôon Politikón e ético: a dimensão ético-polí-
uma síntese científico-filosófica em sua concepção de homem. Fez tica é um domínio específico da racionalidade. O homem é,
um longo trajeto: de um platonismo da psyché (com a tendência du- essencialmente, destinado à vida em comum na pólis, e so-
alista do Fédon) a um monismo hilemórfico (alma como forma na mente aí se realiza como ser racional. A vida ética e a vida
matéria-corpo). política são artes de viver segundo a razão. As virtudes que a
Trata-se de uma nova tentativa de síntese da mesma herança uti- Ética estuda só encontram o campo de seu pleno exercício na
lizada por Platão. O centro de sua concepção de homem é a Physis, vida política.16
animada pelo dinamismo teleológico da forma – que lhe é imanente •  O Homem como ser de Paixão e Desejo (pathé e órexis): paixão e
– e que, como forma ou eidos, é o seu núcleo inteligível. Aristóteles desejo incidem, decisivamente, na práxis ética e política e na
traz para dentro da physis a inteligibilidade, que, em Platão, perten- poíesis. É o lado do ‘irracional’, do prazer.17
cia ao mundo das ideias. Daí, alguns traços antropológicos: Junto com a visão platônica de homem, esta é decisiva para a ci-
•  Estrutura biopsíquica do homem ou teoria da psyché: Psyché é o vilização ocidental.
princípio vital, o ato, a perfeição de todo ser vivo, a capacidade
de mover-se a si mesmo. A psyché é o ato do corpo organizado.
A função intelectiva é específica do homem. Se todo ser vivo
possui alma, então percebemos a sua tripartição: alma vegeta-
16 Aqui é recomendável a leitura de a Ética a Nicômaco de Aristóteles. São
Paulo: Col. Os Pensadores.
15 Este ponto pode ser aprofundado por uma leitura dos primeiros livros
de A República, de Platão. São Paulo: Nova Cultural, l997. 17 Cf. livro VII da Ética a Nicômaco.

Antropologia Filosófica 41
1.1.6.
suas paixões, advém-lhe a perturbação. A felicidade está na ausên-
Antropologias Helenísticas (iii a.C. – i a.C.) cia de toda paixão; a felicidade é apatia e impassibilidade. O sábio
É o advento do Indivíduo como centro da reflexão; é o declínio da pó- nem deve se comover, nem se envolver; daí o estoico não ser um
lis grega, da comunidade integradora dos cidadãos. Trata-se de um entusiasta pela vida.
individualismo específico: o indivíduo deve inventar outras formas
de vida associativa que possam garantir a eudaimonia. Não há mais
1.1.7.
a pólis; tem-se que criar novo espaço. De um modo geral, a eudai-
monia passa a ser concebida como a plena satisfação das carências e Antropologia Neoplatônica (ii. – iii d.C.):
desejos propriamente humanos, de acordo com a razão. É o estágio final da antropologia clássica. Recolhe os seus principais
No Epicurismo, a eudaimonia é a busca e a conquista do Prazer elementos e já vai abrindo um novo ideal de humanidade, dilatado e
verdadeiro (hedoné). A essência do homem é material, assim como aprofundado pela proposta cristã.
seu bem também o é: o bem é o prazer. O verdadeiro prazer é a au- A unificação do império romano, a mistura das culturas e raças,
sência de dor no corpo (aponía) e a falta de perturbação na alma (ata- a ascensão do cristianismo. O ocidente vive um pouco de ‘paz’. Com
raxia). O verdadeiro prazer está naquilo que é natural e necessário; Plotino, temos o último clarão da filosofia clássica. Seu esquema é
42
deve-se limitar aquilo que é natural e não necessário, e fugir daquilo o da ‘processão e do retorno’, que posteriormente será de enorme
que não é nem um nem outro. A morte não deve ser temida, porque utilidade para St. Agostinho. Porque o uno deseja e quer, ele gera o
é a total dissolução do homem, não restando nada dele, portanto, Nous (espírito), a Alma universal, e daí as almas particulares que di-
a paz, enfim. Há uma desvalorização da vida política – pertencente ferenciarão os seres no mundo. Assim como tudo procede do Uno e
aos prazeres nem naturais, nem necessários – e uma importância à dele recebe o seu princípio de inteligibilidade e de ser, tudo também
vida escondida, com amizades. retorna a Ele, como o fim imanente de cada coisa.
No Estoicismo (Zenão de Cítio), o indivíduo também é o centro. A Com isso, os sentidos colaboram no processo de conhecimento; a
condição principal para a eudaimonia é a autarkéia (senhorio de si estrutura do homem reflete a realidade superior; a alma humana está
mesmo). Há um logos universal que une todos os seres numa sim- voltada para o que lhe é superior e para o que lhe é inferior; a descida
patia universal (providência cósmica). O homem deve conformar-se da alma no corpo é algo natural (o Uno quer); o homem é uno na plura-
ao cosmos e obedecer ao logos a ele imanente. Razão e paixão se lidade; o homem possui o pensamento e a liberdade para transcender
fundem: a paixão é um juízo da razão. O Bem é aquilo que incre- a physis e elevar-se a uma união extática com o Uno; o homem se re-
menta o ser, o logos; o mal, o que o diminui e danifica. O homem é aliza na socialidade por uma vida virtuosa, desligando-se das coisas
cidadão do mundo (cosmopolita). Se o homem julga erroneamente ‘aqui de baixo’ e buscando as ‘lá de cima’, de onde o homem procede.

Antropologia Filosófica
2
QUEM É O HOMEM?
(SEGUNDA
APROXIMAÇÃO)
( A partir da obra de
Emerich Coreth,
Qué es el hombre.
Barcelona: Herder, 1991.
(
afirmação acerca do próprio homem e do modo como se entende a
2.1. si mesmo em seu mundo, na história e no conjunto da realidade. O
pensamento filosófico, tanto por sua origem quanto por sua finali- 43
Arco Histórico
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

dade, está sempre determinado antropologicamente.


O pensamento filosófico, em geral, responde a uma aspiração funda- Porém, na história do pensamento, o tema antropológico não se
mental do homem. O homem não está rigidamente ligado ao aconte- expressa sempre da mesma forma. Daquilo que aparece como total-
cer natural, e deve enfrentar-se com a realidade para configurar nela mente evidente, apenas se fala; só se começa a tratá-lo quando se
sua vida de um modo autônomo e responsável. Daí que o homem se torna problemático. É assim que o homem, em geral, não se conver-
pergunte pelo fundamento e sentido do mundo em que vive. Surge, teu em tema explícito da filosofia, pelo menos em seu tema central.
assim, a problemática filosófica dos primeiros pensadores gregos a Até a idade contemporânea, não existiu uma antropologia filosófica
respeito do princípio de todas as coisas. Essa pergunta assinala a ta- tal como se cultiva no presente. É verdade que a especulação filo-
refa do pensamento filosófico de todos os tempos: interrogar todas sófica reflete desde antigamente sobre o pensamento humano (ló-
as coisas por seu princípio, chegar ao fundamento de tudo. gica) e sobre a atuação moral do homem (ética), assim como sobre
Porém, essa pergunta se põe desde o homem (a partir dele) e em sua posição na natureza (física) e na totalidade do ser (metafísica).
razão do homem: pretende-se analisar a realidade toda na qual o ho- Surgem, continuamente, colocações e pontos de vista autenticamen-
mem se experimenta a si mesmo, e conhecer, depois, seu próprio te antropológicos que, mesmo não tendo alcançado seu pleno desen-
lugar e missão nessa totalidade do ser. Independentemente do modo volvimento metodológico e temático, revelam já uma interpretação
como essa pergunta se formula e se responde, constitui sempre uma e valoração da existência humana.
2.1.1.
O Homem no Pensamento Grego
A filosofia grega antiga está determinada por um pensamento tivo realiza-se uma autoexposição do homem. Pretende com-
preponderantemente objetivo. Seu olhar se orienta ao mundo, ao preender o sentido de sua existência, tanto pela origem divina,
‘cosmos’, ao universo. Pretende estudar o ser, as formas e leis es- de onde procede a alma - que está encarcerada no corpo e foi
senciais das coisas. Estabelece um escalonamento ordenado dos desterrada ao mundo material -, quanto pela meta transmun-
seres, que vai subindo desde as coisas inanimadas até alcançar as dana que a alma deve alcançar algum dia, por um processo de
formas de vida, para culminar nos modos de ser e de operar do purificação com sucessivos nascimentos. Em consequência,
espírito. Dentro dessa ordem universal, ao homem corresponde considera-se a alma como uma realidade superior, por sobre o
uma posição axial. Ele é o centro que unifica, é um ‘microcosmos’, mundo e acontecer mundano; nessa realidade está a verdadeira
para empregar uma palavra que Demócrito pôs em circulação já essência do homem. O primitivo pensamento grego apresenta
no século V a.C. e que percorre a história. É porque, no homem, já uma dualidade fundamental da alma espiritual e corpo ma-
reúnem-se todos os graus do ser e da vida para formar uma uni- terial; ao homem cabe uma responsabilidade por sua conduta;
dade superior, que reflete a do universo. O homem é, sem dúvida, existe o justo e o injusto, a culpa e a expiação, através das quais
uma parte da natureza; com todas as outras coisas cambiantes, o deve alcançar sua perfeição definitiva.
homem pertence ao campo da física (no sentido antigo); porém, o Quando se projeta, sobre esse fundo, o pensamento propriamen-
que o caracteriza e constitui sua própria essência é, única e exclu- te filosófico, parece ficar em segundo plano a pergunta sobre o ho-
sivamente, sua alma. mem. Entre os filósofos jônicos da natureza, já desde Tales de Mileto
O escrito mais importante acerca do homem, para a tradição, que (600 a.C.), trata-se do princípio primeiro (arché), do qual derivam to-
não se deixará de comentar até na idade média, se intitula ‘Sobre a dos os seres e as mudanças. Porém, essa pergunta se coloca desde o
Alma’, de Aristóteles, e não ‘Sobre o Homem’. O título se converte na homem, para descobrir, em todas as mutações, o verdadeiro sentido
expressão chave que reflete a imagem do homem; ou, mais exata- de sua existência.
mente, a doutrina da alma segundo a antiguidade e a tradição sub- Assim, já aparece em Anaximandro, que entende qualquer mu-
sequente. Primordialmente, trata-se da alma, não do homem todo; tação e trânsito como ‘culpa e expiação segundo a ordem do tempo’,
trata-se de uma psicologia, não de uma antropologia. dando-lhe, por conseguinte, uma explicação antropomórfica.
1. Não obstante, no primitivo pensamento grego encontram-se Em Heráclito de Éfeso, aparece um pensamento antropológico
autênticos elementos antropológicos. Nas origens da filosofia ainda mais claro. Segundo ele, o homem se caracteriza pela percep-
subjaz um fundo mítico-religioso, em cujo mundo representa- ção do logos, ou seja, do sentido e lei do mundo. É verdade que os

Antropologia Filosófica 44
homens se mostram, na maioria, surdos frente ao logos; porém, gra- imutável e sempre vinculante, para além de todas as mudanças do
ças ao pensamento, que é a prerrogativa suprema do homem, pos- mundo sensível.
suem a faculdade de entender o sentido dos acontecimentos munda- 2. Essas idéias encontram um ulterior desenvolvimento na meta-
nos, que consistem na luta constante dos contrários. física clássica. Segundo Platão, o homem está ordenado por seu
À filosofia heraclitiana do ser em devir. Parmênides opõe uma espírito ao mundo inteligível. Esse mundo é verdadeira reali-
filosofia do repouso. Sem dúvida, para ele também o homem se ca- dade frente ao mundo aparente e mutável das coisas que se per-
racteriza pela faculdade de pensar; essa faculdade o capacita para cebem pelos sentidos. Por isso, a alma do homem é essencial-
penetrar na mera aparência do mundo mutante e adentrar-se até a mente imortal, pertence ao mundo imutável das ideias e está
verdade do ser. Aqui já assoma um ponto de vista que, através de fundamentalmente para além do mundo cambiante. Platão é o
Anaxágoras e, mais tarde, de Platão e Aristóteles, alcançará seu ple- primeiro que tenta demonstrar, filosoficamente, a imortalida-
no desenvolvimento e se converterá no elemento central da explica- de da alma (cf. Fédon e República).
ção grega acerca do homem. Entende-se o homem, primordialmen- O descobrimento do espírito, de uma realidade espiritual só
te, como um ser racional, com o que ele supera aos demais seres e acessível ao espírito do homem, é, sem dúvida alguma, a grande
acontecimentos do mundo. Logos ou Espírito (nous) passam a ser os conquista – de importância duradoura – que o pensamento grego
45
conceitos fundamentais da ideia que o homem tem de si. conseguiu. Porém, à luz dessa consideração, o espiritual aparece
Enquanto que, até agora, o homem parecia encontrar-se tranqui- como único e verdadeiro ser. A essência e dignidade do homem situ-
lamente em uma ordem mundana objetiva, com a sofística, chega-se am-se, unicamente, no espiritual; o material e corpóreo não podem
à primeira reflexão crítico-cética: somos nós nem mesmo capazes ser entendidos de um modo positivo. Aparece assim, em Platão, um
de conhecer a verdade? Existem normas objetivamente vinculantes dualismo entre espírito e matéria, entre a alma espiritual e o corpo
de nossa conduta? Não será tudo subjetivo e relativo? Não será por material do homem; o corpo se apresenta como o cárcere e cadeia
acaso o homem ‘a medida de todas as coisas’? (Protágoras). da alma. A alma deve libertar-se dos laços e travas que a ligam ao
Chega-se, assim, a uma reflexão direta sobre o homem que mundo material para, assim, retornar à sua existência específica,
Sócrates faz sua, ao mesmo tempo em que supera seu traço cético-re- que é a puramente espiritual.
lativista, indo, sobretudo, na direção dos valores e normas morais. A perfeição do homem consiste, portanto, na maior desmateria-
É Sócrates o primeiro a descobrir a voz divina da consciência. O lização e espiritualização possível da vida. Contudo, o espírito - o
homem, entendido como ser racional - embora aqui com um claro que constitui um traço fundamental do pensamento grego - é enten-
predomínio do aspecto prático e ético -, está ligado à verdade eterna, dido, sobretudo, como conhecimento intelectual. O espírito é razão,

Antropologia Filosófica
de tal forma que, aqui, o espiritualismo vai ligado ao intelectualis- patente. O espírito está ordenado ao geral e necessário, à ideia eterna
mo da imagem do homem. de Platão, cuja essência também se mantém na doutrina aristotélica
Contudo, Aristóteles tenta superar o dualismo platônico entre da forma, embora esta já não seja uma ideia transcendente, mas um
corpo e alma e entender a unidade essencial do homem. Conforme princípio essencial imanente. O ser intramundano, sujeito a nasci-
sua doutrina de matéria e forma, como princípios internos e essen- mento e morte, experimenta certa desvalorização, não é objeto au-
ciais das coisas, Aristóteles entende a alma como forma do corpo, têntico do conhecimento, não constitui um objeto digno da ciência.
ou seja, como o princípio essencial e constitutivo que configura É por isso que a dimensão do histórico ainda não alcançou sua
internamente a matéria, convertendo-a num corpo humano vivo. valorização plena em seu significado para o homem. Isso só se con-
Porém, a matéria é o meio potencial que, de uma parte, recebe a seguirá no marco cristão, no qual o homem é captado em sua histó-
determinação pela forma essencial, enquanto que, de outra parte, ria, embora entendida como história de salvação, como o lugar do di-
confere a individuação para constituir um ser individual e único, álogo entre Deus e o homem, como o marco da ação salvífica divina
determinado no espaço e no tempo. sobre a humanidade. É assim que a história alcança, pela primeira
Com isso, Aristóteles já estabelece a doutrina básica do homem vez, um significado de salvação eterna. 46
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

que, nas afirmações clássicas sobre a anima forma corporis e da unio Aqui aparece uma oposição entre o pensamento grego e o pensa-
substantialis entre alma e corpo, influirá profundamente no pensa- mento cristão, no que diz respeito à valoração da história. Essa opo-
mento cristão, sobretudo através da escolástica aristotélica da idade sição, sem dúvida, não se interpreta hoje, no geral, de um modo
média. Também Aristóteles concebe o homem no sistema geral da concreto. Não é exato dizer que a Antiguidade grega, em geral, não
ordem ontológica, como o centro que une todos os graus do ser, ele- possuía uma consciência histórica. Muito antes de se iniciar a histo-
mento este que, por sua vez, deixar-se-á sentir, de forma decisiva, no riografia propriamente dita, encontram-se interpretações históricas
pensamento ordenador da idade média. de caráter mitológico, com as quais o homem tenta descobrir sua ori-
Com certeza, também Aristóteles não superou por completo a vi- gem. Já nos escritos teogônicos e cosmogônicos da primeira época, o
são platônica do homem. Também nele – como em todo pensamento homem se entende a si mesmo desde os começos como imerso num
grego – o ser espiritual do homem se define, principalmente, pelo processo histórico. O mesmo vale dizer das doutrinas salvíficas ór-
elemento cognoscitivo. O espírito é razão, a faculdade do conheci- ficas e pitagóricas, que postulam uma expiação da culpa primitiva e
mento intelectual. Fica em segundo plano a faculdade da liberdade, uma purificação da alma através de reencarnações sucessivas, para
da decisão e responsabilidade, do amor e comunhão pessoais. É cer- que seja possível alcançar a salvação definitiva. Aqui não nos inte-
to que não se negam esses elementos, porém, ficam muito por de- ressa saber como há que se valorar tais doutrinas, desde os pontos de
trás da razão, de modo que o predomínio de certo intelectualismo é vista filosófico e teológico.
O que é certo é que não se trata de uma interpretação crítica e re- predeterminante. Essa crença no destino inexorável, ao qual estão
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

flexiva da história; continua sendo uma exposição mítica, mas que sujeitos os homens e os deuses, aflora já na filosofia grega primitiva
revela – e isso é o decisivo – como o homem se sabe ligado à sua com Tales e Anaximandro; ela constitui o motivo fundamental da
história, que, para ele, tem uma importância salvífica existencial. tragédia grega, e está também no fundo da metafísica helênica do
Também não é exato atribuir ao pensamento grego, em geral, universal e necessário. A necessidade constitui o horizonte último
uma concepção cíclica do tempo e da história, em contraposição à que tudo abarca, e a partir do qual o homem se entende a si mes-
imagem linear do cristianismo. A doutrina da repetição circular do mo e aos acontecimentos mundanos. A ideia de fazer se encontrar
acontecer aparece certamente em Heráclito, para reaparecer com os esse horizonte último com o pensamento é o propósito determinan-
pitagóricos, com Empédocles e também com Platão. te da filosofia grega, que nos aparece tanto na doutrina heraclitiana
Sob a impressão da alternância regular do dia e da noite, do verão do logos como na doutrina do ser de Parmênides e na teoria platô-
e do inverno, da vida e da morte, pensou-se em um retorno rítmi- nica das ideias. Nesse sentido, os acontecimentos intramundanos
co dos mesmos processos, mas não na fatal repetição dos mesmos e históricos carecem de verdadeira importância, pelo fato de tudo
acontecimentos. Na migração das almas, certamente realiza-se o vir predeterminado de um modo necessário. O homem se sabe sob
retorno rítmico da vida e da morte; porém, esse processo conduz à um destino absoluto, cego e impessoal, e não frente a um Deus vivo
libertação definitiva, que rompe o acontecer circular. e pessoal que, segundo o cristianismo, se revela na história como
Nietzsche foi o primeiro a apresentar o pensamento antigo Deus do amor e da salvação. Aqui é onde se enraíza a oposição mais
como ‘o eterno retorno do mesmo’. Com isso, a singularidade do profunda entre as concepções grega e cristã relativas ao homem.
acontecimento se sacrifica ao eterno processo circular, e a liber-
dade da decisão histórica ficaria aplastada pela rígida necessidade
do acontecer universal. Entretanto, que essa fosse a concepção do
tempo e da história comum aos pensadores gregos é algo que en-
trou, definitivamente, no terreno da lenda. O comum a todos eles
não é o círculo fechado de um eterno retorno, mas uma sucessão
progressiva e à maneira de espiral, cujo ritmo não elimina o curso
do tempo, mas sim que o supõe.
Para o pensamento grego – e aqui sim em contraste com o cristia-
nismo –, é muito mais decisiva a rígida crença no destino – segundo
a qual tudo é regido pela necessidade (ananké) do destino (moira) 47
VIDEOS E
MATERIAIS
DE SUPORTE
•  filme: Odisséia/ estrelado por Armand Assand.

BIBLIOGRAFIA
•  coreth, Emerich. Qué es el hombre. Barcelona: Herder, 1991

•  lima vaz, Henrique Claudio de. Antropologia Filosófica I. São


Paulo: Loyola, 1991.

•  reale, g; antiseri, d. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 48


ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

2003. Vl 1.
MÓDULO 3
História das
Concepções
do Homem
na Filosofia
Ocidental II
O HOMEM NA ERA

1
CRISTÃO-MEDIEVAL
(PRIMEIRA
APROXIMAÇÃO)

( A partir da obra de 1.1.1.


Henrique Cláudio de Lima Vaz, Concepção Bíblica do Homem
Antropologia Filosófica I. (
São Paulo: Loyola, 1991. Entre a concepção bíblica e a concepção clássica, existe uma comu-
nhão temática, fundada na universalidade da experiência humana e
1.1. seus conteúdos fundamentais. Por exemplo, os temas: o homem e o
A Concepção do Homem na Era Cristão-Medieval divino, o homem e o destino, a unidade do homem. Mas, a concep-
ção bíblica tem suas especificidades, a começar pela sua formulação
Esta concepção torna-se predominante a partir do séc. vi ao séc. xv numa linguagem religiosa, a da Revelação. O discurso sobre o ho-
em nossa civilização, influenciando-a até hoje. Trata-se de uma con- mem supõe uma fonte transcendente com uma teologia implícita,
cepção teológica, aproveitando o arsenal conceptual da filosofia gre- e é referido a um fundamento de sua Verdade. Com os conceitos e
ga. São duas as fontes dessa concepção: tradição bíblica e tradição métodos do pensamento filosófico, clássico e medieval, aparecerá
filosófica grega. Da tradição bíblica vem a normatividade, a instân- uma teologia explícita e, em seguida, uma filosofia cristã.
cia última de referência, os valores, a forma de ação, o horizonte de Dentre os traços fundamentais da antropologia bíblica, podemos
compreensão da história. Essa normatividade vive em permanente destacar:
tensão com a filosofia; essa tensão é o fio condutor para a compreen- •  A unidade radical do Ser do homem, definida pela relação
são das antropologias emergentes nessa época. constitutiva que o ordena à Escuta da Palavra. Essa unidade se
põe dentro de uma História de Salvação. O desígnio de salva-
ção é, por parte de Deus, dom; por parte do homem, resposta
- Aceitação. Recusar o dom implica a perda da unidade do ho-

Antropologia Filosófica 50
mem. Daí os temas da criação-queda-promessa-aliança-vida Os autores Giovanni Reale e Dario Antiseri18 apontam, a seu
com Deus. O homem é compreendido nas vicissitudes de suas modo, os elementos específicos do horizonte teocêntrico bíblico, em
situações concretas de existência, sem dualismo ontológico. especial, a partir do advento da proposta cristã. O primeiro elemento
O homem é Carne, enquanto se experimenta frágil e com uma seria o monoteísmo, como uma afirmação histórica, cultural e reli-
existência contingente (transitória); o homem é Alma, en- giosa da época específica de um povo, cujo referencial foi a bíblia;
quanto compensa a fragilidade pelo vigor de sua vitalidade; Deus aparece como uno e único, o resto é idolatria.
o homem é Espírito (ruah) ou manifestação superior do co- Em segundo lugar, estaria o criacionismo. Em oposição à eterni-
nhecimento e da vida, podendo entrar em relação com Deus; dade, ciclicidade temporal, destino e necessidade (moira e ananké),
o homem é Coração, enquanto o interior profundo, raiz da in- pertencentes ao cosmos, tomam lugar o mundo e o homem como
teligência e da vontade, sede das paixões e afetos, no qual tem obras temporais de um ato inaugural que cria, do nada, obra de uma
lugar o pecado e a conversão. Liberdade Absoluta Transcendente, mas que se faz presente na ima-
•  A manifestação progressiva do ser e do destino do homem apa- nência da história como Amor e Providência. Deus seria o Ser por ex-
rece no desenrolar da história da salvação. A concepção bíbli- celência, e a criação, na sua totalidade, participaria do Ser. É a partir 51
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

ca não é uma teoria conceptual demonstrativa; ela é, antes, a dessa relação que o homem e o mundo são compreendidos.
narrativa de uma história, de uma história da Revelação e dos Em terceiro lugar, a afirmação de um Deus nomoteta e a lei como
gestos de Deus que revelam, progressivamente, o homem a si Mandamento. Se, para os gregos, a lei moral e política havia sido
mesmo. Esse processo se consuma com o Evento-Cristo como entendida como o prolongamento do dinamismo do cosmos no âm-
arquétipo e norma absoluta do homem. bito humano, dinamismo ao qual estavam submetidos homens e
•  O Novo Testamento prolonga e aprofunda os temas da antropo- deuses, já não é o que acontece no novo horizonte. O Deus bíblico
logia do Antigo Testamento. Agora a perspectiva é Cristológica, dá a lei ao homem como mandamento, não como algo imposto ou
como é o caso dos escritos paulinos e joaninos, nos quais tam- seguido impreterivelmente, mas como condição da felicidade e sal-
bém já aparece uma terminologia grega transformada em seu vação do homem. A virtude, tão tematizada pela filosofia grega, é
conteúdo: soma, psyché, pneuma; ou as oposições existenciais chamada a coincidir com a santidade, cujo critério é a prática vivida
(não ontológicas): carne/espírito, homem velho/homem novo, do amor gratuito. Deus é Amor e espera que o homem, em liberda-
trevas/luz, mentira/verdade, morte/vida. de, se decida e responda pelo amor; isto é fazer a vontade de Deus,

18 Cf. a obra História da Filosofia, Ed. Paulinas, São Paulo: 1990. Vol. I, pp.
377 a 395.
obedecer ao mandamento como o bem do homem, conformando, Em sexto lugar, a nova dimensão da fé e do espírito. A filosofia
assim, a vontade humana com o querer de Deus, processo que se dá grega havia subestimado o valor da fé e da crença (pístis) – pois per-
a partir do coração. tenceriam ao reino da opinião (doxa) – e favorecido a episteme; o co-
Em quarto lugar, a afirmação de uma Providência Pessoal. Se par- nhecimento, a contemplação, seria a virtude suprema do homem. Já
te da filosofia grega chegou a falar de Providência, como é caso dos a mensagem bíblica põe a fé acima da episteme, e a prática acima da
estoicos, tal conceito se aproximaria mais da noção de destino do contemplação de caráter cognoscitivo. Portanto, compreende-se por-
que de um Deus pessoal. Além de um Deus pessoal, o Deus bíblico que a Cruz significou um escândalo para os próprios judeus, e uma
se dirige ao criado em geral, se importa com a criação em geral, se loucura para os gregos. A sabedoria já não está, necessariamente, no
dirige aos homens individuais, especialmente aos mais necessita- homem que julga ‘conhecer muito’, mas naquele que, amando muito,
dos, humildes e, quase que incompreensivelmente, aos pecadores. pode vir a incluir a presença da cruz em sua vida. A vida, segundo o
Ao homem cabe a preocupação em viver o amor de cada dia, é vã a espírito, é a participação no divino através da fé, mediada pela Escuta
preocupação com a própria vida, porquanto o homem nada pode ga- da Palavra e a transformação dessa escuta em Vida.
rantir em definitivo a seu respeito. Para quem ama – e mesmo para Em sétimo lugar, a diferença entre Eros grego e Ágape cristão.
quem não ama –, sempre haveria um ‘olhar amoroso’ de Deus. Platão elaborou, especialmente em O Banquete, a admirável teoria
52
Em quinto lugar, a introdução da temática e da experiência do pe- de Eros. Eros não seria Deus, porque é desejo de perfeição, é uma ten-
cado. Segundo o próprio mito adâmico, o primeiro e grande pecado são mediadora que torna possível a elevação do sensível ao supras-
do homem teria sido o de ter pretendido ser Deus, não aceitando a sua sensível, força que tende a conquistar a dimensão do divino, a luz da
condição criatural. Daí, teria ficado na história humana o estigma, a beleza. Já o amor bíblico não seria a subida do homem, mas a descida
mancha de uma desobediência que praticamente teria subvertido o de Deus na direção dos homens, não é conquista, mas Dom, não está
sentido da própria criação. No mundo mítico grego, também teria motivado pelo valor do objeto ao qual se dirige, mas sim por algo
havido ‘alguém’ que roubou o fogo dos deuses, e por isso recebeu espontâneo e gratuito. No horizonte teocêntrico, é sobretudo Deus
um ‘certo’ castigo, mas, com uma incidência de caráter mais pesso- quem ama; e se o homem ama, é Graça de Deus no homem, que acei-
al, não com consequências para todo o gênero humano ao longo do ta, em liberdade, assemelhar sua vida à de Deus. Deus não precisa do
tempo, como é o caso bíblico. Por si só, o homem não conseguiria se amor do homem, por isso, seu amor é infinito em gratuidade; mas
salvar; mas, ao longo da história de um povo eleito, Deus fez, muitas Deus, porque ama, espera que os homens se amem e, assim, voltem
vezes, aliança com esse povo, até mandar o Seu Filho que, com sua a participar da vida de Deus. É por isso que o Novo Testamento resu-
morte e ressurreição, resgatou a todos. me, aprofunda e condensa toda a proposta bíblica no mandamento

Antropologia Filosófica
do amor. É daí que se afirma, também, uma nova Ética bem entendi- Por fim, o novo sentido da história. Os gregos não tiveram um
da, a ‘Ética da Caridade’ (muito distante do ‘fazer caridade’). 19
sentido preciso da história, por causa de seu próprio horizonte cícli-
Em oitavo lugar, a revolução de valores. Para o próprio Nietzsche, co eterno. A concepção bíblica é retilínea: no transcorrer do tempo,
um dos maiores críticos da civilização ocidental, a proposta cristã verificam-se eventos que são irrepetíveis, como etapas que destacam
significou, em relação ao mundo grego, a total subversão dos valo- o sentido da história. Há um começo, um meio e um fim, que se des-
res antigos. A apresentação programática desses valores estaria no dobra escatologicamente dentro da eternidade. E assim, o homem
Sermão da Montanha. Segundo o novo quadro, seria preciso retornar se compreende: sabe de onde vem, onde está e onde é chamado a
à simplicidade e pureza da criança, à mansidão, à ‘pobreza’ espiritu- chegar. O cristão se realiza na comunidade de irmãos, e não na pólis,
al, à sede de justiça, à misericórdia, ser amante da paz, querer bem embora a vida política possa ser uma mediação importante para a
mesmo aos que nos tratam como inimigos. A busca da riqueza apa- expansão do Reino de Deus.
rece como empecilho para a realização humana, o poder só se justi-
fica como serviço, o homem está referido à comunidade e se realiza 1.1.2.
na partilha gratuita; já não há mais servos ou senhores no mundo
Antropologia Patrística
humano, mas todos têm um valor incondicional, uma igualdade de
filhos de Deus, afirmando-se a irmanação universal. Nos dois primeiros séculos, o grande problema foi o Gnosticismo.
Em nono lugar, imortalidade e/ou ressurreição. Os gregos já ha- Este aprofunda o dualismo da tradição grega: implica uma condena-
viam afirmado a imortalidade da alma. A nova proposta afirma ção da Matéria como obra do princípio do mal, o que questiona uma
mais: a ressurreição da alma E do corpo, porquanto não há dualismo, das verdades centrais do anúncio cristão; o ‘fazer-se carne’. A Gnose
mas a unidade fundamental do homem. E o destino eterno teria a ver afirmou-se como uma forma específica de conhecimento místico,
com a qualidade da vida de cada homem aos olhos e à luz dos critérios articulando elementos do paganismo tardio (greco-romano) e de
de Deus: o afastamento definitivo de Deus ou a participação da própria algumas seitas tidas como heréticas de inspiração cristã. A Gnose
vida (amor) de Deus. seria uma nova maneira de conhecer Deus, um conhecimento não
mais fundado na razão, mas uma espécie de iluminação direta, sen-
do assim, uma espécie de revelação. Os homens são divididos em
19 A estruturação temática, explícita da ética da caridade vai se fazendo três categorias: os pneumáticos (nos quais predomina o Espírito),
ao longo da filosofia medieval. Seria interessante acompanhar esse psíquicos (nos quais predomina a alma) e hílicos (nos quais predo-
movimento com uma leitura da obra de P. Boehner e E. Gilson, História
da Filosofia Cristã, da Ed. Vozes, Petrópolis: Vozes, 1988. A Introdução é
mina a matéria, hyle). Os últimos são destinados à morte, os primeiros
uma bela apresentação do que seja a ‘filosofia cristã’. à salvação e os segundos têm a possibilidade de salvação se seguirem as

Antropologia Filosófica 53
indicações dos primeiros. Este mundo é mau, obra de um demiurgo mau; •  O homem como ser itinerante: a itinerância é um aspecto da
Cristo é o salvador, mas teria um corpo só aparente; Cristo teria revelado concepção do tempo como caminho para a eternidade que se
a verdade só a poucos: daí uma entidade secreta. A gnose trouxe muitos faz dentro da própria vida humana. Um itinerário da vida or-
problemas para os chamados Santos Padres. denada a Deus, passando pela conversão; itinerário da mente
A Patrística se desenvolve totalmente à luz do Mistério da (inquietude do coração na busca de Deus); itinerário da vonta-
Encarnação, concretizando o tema do ‘à imagem e semelhança’. O de (livre-arbítrio e ação da Graça, como itinerário da beatitude);
primeiro grande teólogo, crítico da gnose, foi santo Irineu, no séc. ii. este seria o itinerário da humanidade num tempo retilíneo;
O pensamento patrístico divide-se em duas grandes correntes, •  O homem como ser para Deus: por sua estrutura (memória, in-
embora o fundo seja comum: teligência, vontade), por sua participação histórica na dialética
•  Patrística grega: a filosofia grega tem grande influência; acentua das Duas Cidades, segundo o Amor que o move.
o caráter ontológico da concepção do homem, gerando proble- A antropologia agostiniana é uma transposição genial da tradi-
mas para o caráter histórico da visão bíblica. O grande expoen- ção platônica nas linhas temáticas da tradição bíblica, especialmen-
te foi Orígenes, e depois Gregório de Nissa. Aí aparecem temas te cristã, já levando em conta os esforços da Patrística anterior. Ela é 54
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

como: a assimilação a Deus, pré-existência da alma (numa in- a matriz da concepção medieval do homem, e influencia até hoje a
terpretação de cunho cristão), subsistência (hypóstasis), pes- visão de Si do homem ocidental.
soa, natureza, essência (ousia), vontade.
•  Patrística latina: O grande expoente é Santo Agostinho. Em sua 1.1.3.
concepção de homem, há a confluência de três fontes: o neo-
Antropologia Medieval:
platonismo – que é a base de sua formação filosófica –, a an-
tropologia paulina – uma visão salvífica do homem, aprofun- Três são suas fontes de inspiração:
dando os temas do pecado original, da graça, da liberdade, do •  A Sagrada Escritura (sacra pagina): autoridade maior;
livre-arbítrio – e a antropologia da narração bíblica da criação – •  Os Padres da Igreja: especialmente Santo Agostinho;
que é o seu tema preferido; aí entra o tema do homem-imagem, •  Os filósofos e escritores gregos e latinos (principalmente Aris-
elaborado a partir da própria experiência e processos existen- tóteles).
ciais –. Traços de sua antropologia: Nesse tempo medieval, há uma surpreendente riqueza de ver-
•  O homem como ser Uno: a unidade do homem é assegurada pela tentes e elementos que engendrarão os tempos modernos, como o
referência ao horizonte teológico;
advento de um novo tempo que teve suas condições de possibilida- corpo que o integra na perfeição essencial do ser-homem; desta uni-
de históricas. 20
cidade deriva a unidade do agir e fazer humanos (faculdades). A alma
No campo filosófico-teológico, Agostinho predomina até o séc. xii, é o princípio primeiro da unidade e perfeição do homem. O Racional
com forte tom platônico. Daí em diante, dentre os clássicos, Aristóteles é a diferença específica do homem, designando: a razão discursiva
será proeminente, mas sempre em tensão com o agostinismo.21 como forma do conhecimento intelectual inferior à inteligência,
Na antropologia medieval, duas questões têm principal impor- própria dos espíritos puros, da qual o homem participa. É pela racio-
tância: a questão da historicidade e a questão da corporalidade do nalidade, com um significado teórico e prático, que o homem pode
homem. No primeiro caso, a natureza humana aparece inserida buscar o seu fim, o qual se abre ao sobrenatural. O homem, por seu
numa situação histórica determinante dos destinos dos indivíduos; corpo e por sua racionalidade, encontra-se entre o tempo e a eterni-
no segundo caso, a compreensão do corpo na unidade de essência dade, numa relação com o cosmos, com o tempo, com a história.
do homem permanece uma exigência fundamental da doutrina da A ideia de imagem se liga à de perfeição: o homem como partici-
criação e da encarnação. A maior síntese antropológica é a de Santo pante da perfeição absoluta, da qual decorre a capacidade de conhe-
Tomás, na qual se consegue um maior equilíbrio entre as teses da cer a verdade e de agir moralmente. O homem está aberto à iniciativa
antropologia clássica e da antropologia bíblico-cristã. Nessa síntese, de Deus e dela é partícipe (analogia). Há uma intrínseca inteligibili-
55
há três coordenadas: dade do existir da criatura na sua dependência do Existir absoluto de
•  O homem como ser racional (clássica); Deus. O tema da imagem é o centro dessa antropologia, ao redor da
•  O homem como ser na fronteira entre o espiritual e o corporal qual se articulam os três estados da existência humana: a natureza,
(neoplatônica); a graça e a glória.
•  O homem como criatura, imagem e semelhança de Deus. Posteriormente, seguem-se outras antropologias, como o volun-
Quanto à contribuição clássica, o grande problema de Tomás é o tarismo (Duns Escoto), o nominalismo, etc., que desembocarão na
da unidade do homem (alma-corpo). A alma é a forma (enteléquia) do moderna concepção do homem.

20 Para um aprofundamento da relação entre a teologia e filosofia medie-


vais com a cultura moderna, sugerimos a leitura do Capítulo iii: Teolo-
gia Medieval e Cultura Moderna, do livro Escritos de Filosofia I, de H. C.
de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 1986
21 Aqui sugerimos a leitura do Capítulo ii: Tomás de Aquino e o Nosso
Tempo - O Problema do Fim do Homem. Da mesma obra de Lima Vaz
apontada na citação anterior.

Antropologia Filosófica
O HOMEM NO

2
PENSAMENTO
CRISTÃO (SEGUNDA
APROXIMAÇÃO)

(A partir da obra de O mal que existe no mundo não tem sua origem em um princí-
Emerich Coreth,
pio mau, de ordem metafísica, mas na decisão livre e pessoal do ho-
Qué es el hombre.
Barcelona: Herder, 1991.
( mem que se revolta contra o preceito de Deus. Desde seu começo,
a história da humanidade se arrasta sob a maldição do pecado; po-
A revelação bíblica do Antigo e do Novo Testamento não aporta uma rém, ao mesmo tempo, está dominada pela ação generosa de Deus,
metafísica do universal e necessário ao estilo com que o faz o pen- que atua na história da salvação e, com um amor livre e pessoal, se
samento grego. Aporta algo muito distinto: a mensagem de salvação compadece do homem. A encarnação e a obra redentora do Filho de
para o homem concreto na história. A consequência é que as doutri- Deus também não respondem a uma lei metafisicamente necessá-
nas capitais da fé cristã estão na esfera de um acontecimento livre e ria da emanação divina, mas obedecem, única e exclusivamente, à
pessoal, que se desenrola entre Deus e o homem no marco da histó- livre vontade salvífica de Deus. No kairos ou, o que é o mesmo, no
ria da salvação. O cristão sabe, pela fé, que o mundo não procede de momento histórico, que o livre desígnio divino havia estabelecido,
uma normativa universal e necessária; não é também o resultado da o Filho de Deus se fez homem para levar a termo – como homem e
evolução imanente de uma matéria eterna, nem uma emanação ou entre os homens, num encontro e comunhão pessoais – a livre auto
despreendimento metafisicamente necessários de Deus. revelação de Deus e operar a redenção, até a voluntária aceitação da
Trata-se, antes, da livre palavra criadora de Deus, que disse ‘Faça- morte na cruz.
se!’ (Gen. 1,3). Também a humanidade, com sua história, tem sua ori- À característica essencialmente pessoal da mensagem de salva-
gem na livre vontade do Criador: ‘Façamos o homem a nossa imagem e ção corresponde que se exijam de cada indivíduo humano aquelas
semelhança!’ (Gen. 1,26). atitudes internas que fluem do núcleo pessoal e limpo, e que cul-
minam na livre entrega pessoal do homem a Deus: fé e amor, com

Antropologia Filosófica 56
os quais o homem responde à revelação da verdade e do amor di- é cunhado, no âmbito cristão, o conceito de pessoa, que tem uma
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

vinos, abrindo-se, assim, à ação salvadora de Deus. Na origem pri- origem puramente teológica. Deriva, de fato, das disputas cristológi-
meira da perfeição suprema da fé cristã, que é radicalmente pessoal, cas e trinitárias dos séculos iv e v, e teve grande importância para a
está o mistério da mesma trindade divina. Deus não é o Unum rígido exposição e valorização da personalidade humana.
que repousa em si mesmo, mas a vida transbordante de três pesso- Nessa panorâmica cristã, os conteúdos da filosofia grega adqui-
as, uma vida em comunhão pessoal, um dar e receber eternamente rem novo valor. O homem se encontra no centro, entre o mundo
renovado da plenitude infinita. Aqui, a vida alcança profundidades material e sensível do corpo e o mundo espiritual e suprassensível;
abissais que nós já não podemos perscrutar; o único que podemos constitui a escala mais alta do mundo corpóreo, compartilha das
fazer é vislumbrá-las de algum modo, através da distante analogia leis da matéria e das forças vitais da planta e do animal; mas, simul-
do ser humano pessoal. taneamente, pertence já à ordem do espiritual através de seu espíri-
Essa característica essencial personalista e histórica da fé cristã to, que, enquanto alma, é o princípio vital do corpo. A alma não se
representa uma mudança na imagem do homem frente ao pensa- concebe como preexistente ao modo da concepção platônica, mas
mento grego. A nova imagem do homem não possui, contudo, um como criação livre de Deus. É imagem e semelhança de Deus, o lugar
desenvolvimento explícito no depósito da revelação, mas está conti- da transcendência para Deus, e é chamada à vida imortal. Também
da e é suposta de modo implícito. Somente depois de três séculos de ela já não é entendida como pura razão, mas é, ao mesmo tempo,
meditação cristã ela encontrará sua formulação aberta e reflexiva. vontade e faculdade de liberdade e amor.
Para isso, teve que se dar um novo horizonte geral; o homem se sente Nesse ponto se distinguem duas concepções dentro do marco
e se entende em um ‘mundo’ distinto do mundo em que se achava o cristão. De um lado, Agostinho vê a faculdade suprema no livre ar-
homem grego pré-cristão. bítrio que se aperfeiçoa no amor, enquanto que o conhecimento só
Quando se estabelece a reflexão filosófico-teológica - por obra tem uma função de mediação ou de serviço. Essa concepção domina
principalmente de Gregório Niseno (394 d. C.) na patrística grega e através da tradição agostiniana em toda a alta idade média, e experi-
de Agostinho (430 d. C.) entre os padres latinos -, certamente são menta uma renovação importante durante o apogeu da escolástica,
muitos os elementos tomados da filosofia grega; porém, são enten- graças a Boaventura (1274) e à escola franciscana que segue seus pas-
didos e manejados de uma forma nova, e se desenvolvem dentro de sos. De outro lado, Tomás de Aquino e a escola dominicana adotam
uma totalidade de sentido também de cunho novo. Numa forma os conteúdos essenciais do pensamento aristotélico e, com eles, a
totalmente estranha ao pensamento grego, acentuam-se o valor e a doutrina de que a faculdade suprema do homem, o que o caracteri-
dignidade do particular, sua singularidade individual, sua vocação za de modo específico, é a inteligência (intellectus), enquanto que a
divina e sua livre decisão frente ao destino eterno. Pela primeira vez liberdade e o amor não são mais do que suas sequências naturais. 57
Mais profunda ainda é outra oposição nas concepções doutrinais. é o todo, como disse Tomás de Aquino comentando Aristóteles. É
Verdade é que, no marco cristão em geral, fica superado o dualismo um microcosmos, como afirma Nicolau de Cusa, ao final da idade
platônico, pelo fato de que a matéria já não é um princípio eterno e média, um microcosmos no qual está contraído o universo todo. O
incriado e, por isso, oposto a Deus, mas sim, que procede da criação homem tem uma posição inequívoca na totalidade do ser; está inse-
divina. Isso é algo que é dado com a doutrina criacionista do cris- rido numa ordem objetiva e universal que se fundamenta em Deus,
tianismo. Porém, no que concerne às relações entre alma e corpo, o Ser absoluto e infinito.
existem duas posturas contrapostas.
Agostinho, cujo pensamento filosófico está profundamente in-
fluenciado por Platão e pelo neoplatonismo, vê, na alma e no cor-
po, duas realidades ou substâncias separadas, que não constituem
uma unidade substancial, mas que simplesmente estão unidas pela
ação recíproca. Essa concepção, na qual o dualismo se percebe cla-
ramente, penetra no pensamento da primeira idade média, e ainda 58
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

encontra um defensor em Boaventura. Com a idade moderna, essa


doutrina voltará a ser admitida, e Descartes a levará ainda mais lon-
ge, influenciando notadamente os pensadores da época.
Tomás de Aquino, ao contrário, adota a doutrina aristotélica,
segundo a qual a alma espiritual é, ao mesmo tempo, o princípio
interno que conforma o corpo; por isso, alma e corpo não são duas
substâncias separadas, mas princípios internos constitutivos que,
unidos substancialmente, dão como resultado a substância total
do único e mesmo homem completo. Com isso, supera-se o dua-
lismo, porquanto a dualidade de elementos se funde na unidade
essencial do homem.
Para além dessas diferenças, no marco geral do pensamento me-
dieval cristão, mantém-se a posição particularíssima do homem. Ele
é o centro do cosmos, no qual se reúnem todos os graus do ser. Pela
abertura universal de seu espírito ao ser, o homem, de certo modo,
VIDEOS E
MATERIAIS DE
SUPORTE:
•  filme: Em Nome de Deus/ estrelado por Kim Thompson
e Derek de Lint.

BIBLIOGRAFIA:
•  coreth, Emerich. Qué es el hombre. Barcelona: Herder, 1991.

•  lima vaz, Henrique Claudio de. Antropologia Filosófica I. São


Paulo: Loyola, 1991.
59
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

•  reale, g; antiseri, d. História da Filosofia. São Paulo: Paulus,


2003. Vl 2.
MÓDULO 4
História das
Concepções do
Homem na
Filosofia
Ocidental III
1
O HOMEM NA IDADE
MODERNA (PRIMEIRA
APROXIMAÇÃO)
A partir da obra de
)
resultando numa pluralidade antropológica sem os pontos funda-
Henrique Cláudio de Lima Vaz,
mentais de uma nova unidade.
Antropologia Filosófica I.
São Paulo: Loyola, 1991. )
1.1.1.
1.1. O Homem no Humanismo:
Antropologia Moderna
A Renascença (xiv - xv) foi assinalada por transformações múltiplas
A concepção moderna do homem vai sendo lentamente gestada nos na Europa, originando um momento civilizatório brilhante; é a ida-
últimos séculos medievais e já é perceptível na Renascença, firma- de do Humanismo:
se no século xv e se completa no século xviii. O homem passa a •  É uma nova sensibilidade em face do homem;
ocupar o centro da história, o lugar hermenêutico da compreensão •  É a redescoberta e a exaltação da cultura clássica, sobretudo la-
da realidade, sendo a matriz das divergentes e plurais antropolo- tina (proliferação do livro impresso);
gias contemporâneas. •  É a ênfase na dignidade do homem (como no caso de Nicolau
A complexidade da história vai se tornando maior; a civilização de Cusa);
ocidental amplia as suas bases materiais e vai experimentando um •  É a ênfase no homem universal.
processo de universalização; a unidade cultural e religiosa da ima- O nominalismo da Escolástica representa a dissolução dos funda-
gem do homem e do mundo é desfeita pelas novas descobertas, pelo mentos metafísicos, do mundo ideal. A renascença tenta recuperar
encontro com a diversidade das culturas e dos tipos humanos; as esses fundamentos em três direções:
ciências vão se desvinculando da filosofia e da autoridade religio- •  Revitalização do pensamento medieval com a Segunda
sa e experimentam significativos avanços. Dentre outros fatores, Escolástica (xvi);
isso gera uma complexidade crescente nas concepções do homem, •  Tendência panteísta (Giordano Bruno e depois Spinoza);

Antropologia Filosófica 61
•  Tendência panenteísta (Nicolau de Cusa): ênfase à imanência problema do Fundamento último da certeza, conduzindo direta-
do divino no mundo e à individualidade humana. mente à metafísica, da qual se deduz a Física (inversão cartesiana).
Reaparece o homem como aquele que contempla (theoria) e age: Quanto ao homem, o método conduz ao fundamento indubitável
do Cogito. Há uma inadequação entre a certeza de ser do Cogito e
Homo – Contemplari Superioridade
a Verdade do Mundo. Para a certeza da última, é preciso recorrer à
Homo – Operari Nisto – Grandeza do Homem
existência de Deus, seguindo a teoria das Ideias Inatas. Há proble-
Dignidade ma com relação ao corpo.
Retoma-se em novos patamares a consciência de humanidade: Traços da concepção racionalista:
o homem com suas características essenciais universais, não mais •  A subjetividade do espírito como Res Cogitans e consciência-
limitado pelas particularidades civis, servis, crentes e pagãs. Põe- de-Si;
se, então, o problema da unidade e igualdade da natureza humana. •  A exterioridade do Corpo (Res Extensa) por relação ao espírito.
Reaparece o problema do direito natural e da tolerância religiosa. O dualismo cartesiano é diferente do clássico: a res cogitans se-
Vai-se rompendo, pois, a imagem medieval do homem, e também para-se do corpo não para contemplar as Ideias, mas para melhor
vai se firmando uma visão racionalista do homem. conhecer e dominar o mundo. Essa antropologia fica dividida entre
62
uma ‘metafísica do espírito’ e uma ‘física do corpo’: cada uma das
1.1.2. substâncias pode subsistir sem a outra.
Isso mostra o aparecimento de uma nova ideia de Razão, centrada
Antropologia Racionalista (xvii - xviii)
na ideia de método, seguindo o modelo matemático (Discurso sobre
No começo do século xvii anuncia-se um novo modo de pensar e o Método). O mundo não é mais a physis com um princípio imanente
sentir, influenciado pela Renascença, pelos grandes moralistas fran- de movimento qualitativo, mas a grande máquina que pode ser ana-
ceses que apregoavam a lei natural e a defesa da natureza como guia lisada pela razão e por ela reproduzida na forma de um modelo ma-
das ações, bem como a observação de si mesmo (especialmente Mi- temático. O homem se assume como o senhor eminente do mundo, a
chel de Montaigne). O Racionalismo prolonga a tradição do Zôon Lo- fonte última do sentido das coisas e dos seres que pertencem à reali-
gikón, dando-lhe um novo conteúdo baseado no modelo da máqui- dade. O corpo humano é integrado entre os artefatos e as máquinas;
na, que explicará a vida e o homem. só a presença do espírito, que se manifesta como razão e linguagem,
O Paradigma da nova antropologia está em Descartes. Este pri- separa o homem do animal máquina.
vilegia o Método como ponto de partida do saber: o saber segue
as regras do método. Em primeiro lugar, o método se aplica ao

Antropologia Filosófica
1.1.3.
Na Inglaterra, o que vai se firmando é o Empirismo, sob a influên-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

O Homem na Idade Cartesiana cia de Hobbes e Bacon, e que será estruturado por Locke. Com Locke,
A Revolução cartesiana, na filosofia, e a revolução galileana, na ci- temos a estruturação do homem liberal ou do burguês, com seu
ência, originaram uma nova ideia de razão, que transforma profun- credo otimista e naturalista na bondade natural do homem (contra
damente a compreensão de si do homem e, posteriormente, abrirá Hobbes) e na sociabilidade natural e espontânea do homem, a partir
espaço para as ciências humanas. de um estado de natureza. Locke rejeita as ideias inatas: o homem
Pascal é representante da experiência dramática do homem mo- já tem em si todas as disposições naturais para, com suas próprias
derno, dividido entre dois abismos: capacidades, conhecer Deus, a natureza e a si mesmo como ser mo-
•  De um lado, contempla o infinitamente grande e o infinita- ral. Há a primazia do indivíduo sobre a sociedade, o que servirá de
mente pequeno na natureza; fundamento para todo o pensamento político liberal.
•  De outro, o homem é chamado a conhecer sua miséria, expressa
1.1.4.
na corrupção de sua natureza e na operação de suas faculdades.
Em Pascal, o Cogito não se volta para a dominação do mundo, Século xvii e as Ciências Humanas
mas para a descoberta das regras morais, da responsabilidade pelo As ciências humanas nascem sob o paradigma do modelo mecani-
destino de si mesmo, da situação do homem, do lado trágico dessa cista. Os instrumentos desse modelo são a observação e a medida,
situação, contra o otimismo cartesiano e seus seguidores. articulados por uma nova ideia de método, com regras definidas
Hobbes aplica o racionalismo à compreensão do homem em sua para o ‘bem pensar’ = bem conhecer. Por um lado, temos o raciona-
relação com a sociedade, não reconhecendo, porém, o estatuto onto- lismo com a Dedução; por outro, o empirismo com a Indução.
lógico do Cogito. Seu materialismo é radical e integral: só o Corpo, Há uma profunda transformação no espírito das ciências da vida,
ocupando o espaço, Existe; o próprio Deus seria corporal. A diferen- com a estruturação do modelo do animal-máquina. Nascem novos
ça dos homens por relação aos outros seres está em ser o artífice de instrumentos de observação (anatomia microscópica com Malpighi),
sua própria humanidade: isto exige que o homem saia do estado de há a descoberta dos glóbulos vermelhos, bactérias (Leuvenhoek) e a
natureza e encaminhe-se para o estado civil, fazendo do Estado e reformulação da história botânica e zoológica.
da Sociedade o horizonte de sua realização. E já é bem conhecida a A antropologia empírica faz seus progressos em três domínios:
relação entre homem naturalmente violento, sociedade necessária, •  Da anatomia do corpo humano: aparecimento da anatomia
pacto de sociedade, alienação de parte da liberdade natural, Estado comparada;
como monopólio da violência (Leviatã). •  Do estudo experimental do psiquismo, da pedagogia experi-
mental (em especial a Ratio Studiorum dos jesuítas). 63
•  Da sistemática zoológica: inclusão do homem na classificação to à filosofia, à ciência, à moral, à religião, à cultura ocidental, num
das espécies animais, noção de raça (etnologia), investigação caminho que se afasta decisivamente das concepções dos séculos
empírica da origem do homem; cristãos e da civilização clássica.
Na investigação empírica do homem, aparecem também as ciên- As influências provêm, sobretudo, de Locke, da mecânica de
cias da linguagem, tendo como objetivo o Texto, e uma hermenêuti- Newton e do racionalismo, articulando-se na questão fundamental
ca crítica, mais profunda do que uma filologia humanista. Reaparece do Conhecimento, onde se conjugam o poder da Razão e o critério da
a filologia bíblica. Há uma forte preocupação com a própria lingua- possível Experiência. O método experimental-analítico-mecanicis-
gem, com uma gramática geral, com os mecanismos elementares ta torna-se o método; a Experiência é o critério e o limite da possi-
da linguagem, com uma língua universal. Inicia-se propriamente bilidade do conhecimento; a Razão é una e universal, e seu intento
a ciência histórica, nessa época, com a historiografia eclesiástica e, é conquistar todos os campos da realidade, tornando-se norma da
depois, com a historiografia crítica, levando a uma nova consciência pedagogia e que deve estender-se a toda a humanidade; a história
histórica e à crise da ‘consciência europeia’. Também há uma preo- é lida segundo os progressos da razão: o progresso técnico é o eixo
cupação científica com o Direito e com o Estado, como é o caso da epistemológico que orienta a direção da história; a ideia de progres-
aplicação do modelo mecanicista ao Estado, em Hobbes, e a elabora- so funda-se na certeza teórica da infalibilidade da razão, articulada
ção da ‘ideologia do individualismo’, em Locke. com um desígnio poético de levar a termo as obras da razão, come-
çando pela própria sociedade; o progresso implica mudanças segun-
1.1.5.
do ‘fins’ racionais, medidas pelo critério do melhor-útil. Como diria
O Homem no Iluminismo Voltaire, ‘Algum dia tudo será melhor - eis a nossa esperança’.
O Iluminismo é um movimento de ideias e um ‘espírito’ que marcou Com isso, o programa iluminista, segundo Adorno e Horkheimer,
toda uma época (+/- 1680 - 1780), conferindo uma fisionomia própria ‘[...] era o de libertar o mundo da magia. Ele se propunha dissolver
a uma civilização. É com ele que se estrutura de vez o horizonte mo- os mitos e derrubar a imaginação com a ciência [...] perseguiu o ob-
derno da subjetividade, do homem no centro e como foco de todo jetivo de acabar com o medo dos homens e torná-los senhores’ (A
sentido da natureza, da vida, do homem, da história. Como disse Dialética do Iluminismo).
Kant, “O Iluminismo é a saída do homem do estado de minorida- Sucintamente, podemos dizer que as ideias fundamentais da
de que ele deve imputar a si mesmo. Minoridade é a incapacidade Ilustração são:
de valer-se de seu próprio entendimento sem a guia de outro... Tem •  Humanidade: este conceito assume um conceito secularizado,
coragem de servir-te de tua própria inteligência! Esse é o lema do não mais cristão. Há um otimismo, um movimento de reapro-
Iluminismo”. O projeto histórico da Ilustração é um desafio propos- priação do homem como matriz de inteligibilidade e de valor.

Antropologia Filosófica 64
A relação com o divino, quando afirmada, não tem mais aquela •  Linha Crítica;
primazia anterior; Deus não é objeto de fé, mas de razão (deís- •  Linha antropológica, submetida à primeira.
mo); ele é o grande relojoeiro do universo e só isso. A primazia Com isso, são dois os panos epistemológicos de sua concepção de
está na relação entre indivíduo e sociedade. O homem é o cen- homem:
tro do sistema do saber. •  O plano de uma ciência da observação: utiliza o procedimento
•  Civilização: ela é um fato e um valor. Designa um estágio avan- analítico para unificar dados da observação, por meio de uma
çado, verificável e mensurável da história de um grupo huma- teoria das faculdades em que o núcleo é Eu, expresso na cons-
no no campo do pensamento e da atividade prático-técnica, ciência-de-si;
uma atitude de otimismo e um ideal de progresso em face da •  O plano de uma ciência a priori (ética e metafísica): determinação
história futura. É a verificação da passagem da Natureza à Cul- da essência do homem.
tura, e desta, à Civilização. Kant conserva o dualismo antropológico; na Crítica da Razão Pura
•  Tolerância: embora, por um lado, a razão exija a afirmação de há o dualismo entre Sensibilidade (receptividade) e Entendimento
Deus, por outro, Deus não é passível de conhecimento nos limi- (espontaneidade). Na Crítica da Razão Prática, dualismo entre cará- 65
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

tes da experiência, do verificável. Assim, diz Voltaire, ‘temos de ter empírico (necessidades, paixões) e caráter inteligível (domínio da
ser tolerantes uns com os outros no campo das religiões, pois liberdade). Traços do homem kantiano:
não há como decidir quem tem razão’. Além do mais, a tolerân- •  Estrutura sensitivo-racional: acompanha o homem como ser cog-
cia, no campo moral e religioso, é fundamental para o progresso. noscente. Como ser da natureza, o homem situa-se no espaço
•  Revolução: a instauração progressiva de uma nova idade da hu- e tempo do mundo; como ser racional, é capaz de formular as
manidade, de progresso e bem-estar (promessa!). ideias de Alma, Mundo e Deus.
•  Estrutura físico-pragmática: acompanha o homem como ser na-
1.1.6.
tural mundano. Físico é o que a natureza opera no homem;
O Homem em Kant pragmático é o que o homem faz de si mesmo, e também a ca-
Kant representa as diversas correntes da Ilustração, aproveitando pacidade de responder à interrogação a respeito do agir moral.
elementos das várias posições modernas, mas já apresenta traços do •  Estrutura histórica: acompanha o homem em duas direções: re-
Idealismo, que marcará a época. Apresenta traços também de influ- ligiosa, que aponta para o fim último do homem; pedagógico-
ência pietista e de Rousseau que, para Voltaire, foi um herege. -política, que aponta para o ordenamento da liberdade no indi-
Em Kant aparecem duas linhas na concepção do homem: víduo e na comunidade, dentro da história — com a presença
de uma teleologia que a habita —.
O HOMEM NO
PENSAMENTO DA

2
IDADE MODERNA
(SEGUNDA
APROXIMAÇÃO)

A partir da obra de
)
crítico-empírica. O humanismo vislumbra um novo sentimento vital,
Emerich Coreth,
que se volta para o homem situado neste mundo, confere uma nova
Qué es el hombre.
Barcelona: Herder, 1991. ) vida à Antiguidade Clássica e a converte em norma ideal da vida hu-
mana e da formação espiritual. Isso provoca, em múltiplos pontos,
Desde o início do pensamento moderno, a filosofia experimenta uma viragem da natureza à natureza e da transcendência à imanên-
uma orientação na direção do sujeito. Enquanto que na Antiguidade, cia. Com a Reforma, rompe-se, ademais, a unidade da fé. Até agora, o
e ao longo da idade média, havia um pensamento objetivo, com o homem ocidental tinha se sentido seguro na fé única da única igreja.
qual o homem tinha consciência clara de sua posição absoluta e de Através das graves crises que a Igreja sofreu ao final da Idade Média,
sua segurança no conjunto do ser, agora impõe-se uma mentalidade chega-se agora ao rompimento da unidade e a uma violenta sacudida
subjetiva, que pretende conseguir e estabelecer um conhecimento da segurança que, até o momento, havia acompanhado a fé da Igreja.
seguro partindo unicamente da imanência da subjetividade. Isso Une-se a isso a derrubada da imagem geral do mundo ante a aco-
comporta desde logo uma mudança radical na imagem do homem. metida da ‘revolução copernicana’, que afeta diretamente o homem
Tal mudança está em estreita conexão com a quebra geral que se e sua posição no universo. Até agora, o homem se sabia no epicentro
observa na passagem da idade média à idade moderna. Com o no- de um mundo perfeitamente ordenado e claro. Sua terra, ao redor
minalismo dos últimos tempos medievais, o pensamento metafísi- da qual giram o sol e as estrelas, era o centro do universo, que se
co-sistemático da escolástica entra em crise e se torna problemá- completa no homem. Porém, agora, quando a terra deixou de ser do
tico; a este fenômeno responde a tendência para uma concepção mundo-universo para tornar-se um dos planetas que giram ao redor

Antropologia Filosófica 66
do sol, o homem se sente como que lançado num universo sem fron- Esse Eu, que toma consciência e está seguro de si mesmo antes
teiras que já não consegue entender, e no qual perdeu toda orien- de todas as demais coisas, não significa o homem concreto, mas
tação e seguridade. O homem já não tem um lugar assegurado no unicamente a razão pura (ratio), que se possui a si mesma de forma
cosmos. A realidade objetiva deixou de garantir-lhe um sentido e a autônoma; e, a partir de si mesma, isto é, a partir de ‘umas ideias
posição de sua existência. Isso faz com que o homem se retraia cada inatas’, pode alcançar toda a verdade. Aqui está o ponto de partida
vez mais sobre si mesmo, sobre o único ponto seguro que lhe é dado; do exacerbado dualismo cartesiano entre corpo e alma; dualismo
isso o obriga, também, a refletir sobre si mesmo, suscitando, assim, que vai muito mais longe que o de Platão e Agostinho. Espírito e ma-
a questão a respeito do ser do homem e do sentido de sua vida. téria, consciência pensante (res cogitans) e mundo corporal extenso
M. Buber referiu-se ao fato de que o problema antropológico ir- (res extensa) constituem realidades radicalmente distintas, que nada
rompe na história sempre que o homem perde o clima familiar e a têm em comum entre si. Com isso, não somente desaparece uma
segurança que, até esse momento, havia desfrutado, quando o mun- unidade substancial, mas também até se elimina a possibilidade de
do e sua própria posição no mundo resultam-lhe problemáticos (Do uma ação mútua entre alma e corpo. Se, apesar de tudo, Descartes
Problema do Homem). É então quando se vê empurrado a pôr-se a admite a existência de ação recíproca, isto não é mais do que uma 67
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

pergunta a respeito de si mesmo, de seu ser pessoal e do sentido de concessão à experiência, porém em contradição com seus próprios
sua existência. Isso acontece, sobretudo, na crise e na ruptura que o princípios, como já foi reconhecido no seu tempo.
Ocidente experimenta nos inícios da idade moderna. A separação taxativa entre res cogitans e res extensa em Descartes
Apesar de tudo isso, o homem moderno não chega a configurar suprime também a possibilidade de uma antropologia que estives-
uma antropologia filosófica. É verdade que o humanismo compor- se em condições de compreender a unidade e totalidade viva do
ta uma ‘virada para o homem’, que agora ocupa o ponto central. homem. Pretende muito mais montar uma psicologia pura, como
Também é certo que a palavra ‘antropologia’ – assim como ‘psico- aparece logicamente em Wolf, ao lado da cosmologia e da teologia
logia’ – tem origem no século XVI, mas não é mais do que o título natural, como uma parte recortada da metafísica especial. Nós a en-
vazio de uma exigência que tardaria muito tempo a se realizar. No contraremos, inclusive, em Kant, que, sob o título de alma, nos apre-
pensamento filosófico da época, a ‘virada para o homem’ estreita- senta a ideia da razão pura ao lado da de mundo e da de Deus.
se até converter-se numa ‘virada para o sujeito’. O homem passa a Porém, com a ruptura entre alma e corpo, entre espírito e matéria,
ocupar o centro, porém como simples sujeito, não como o centro de desencadeia-se uma tensão que percorre todo o pensamento filosó-
uma ordem objetiva do ser, e sim como centro de um mundo de co- fico da idade moderna. De um lado, o racionalismo, subordinado so-
nhecimentos subjetivos, que encontra em Descartes seu mais segu- mente ao espiritual, reduz o ser do homem ao sujeito pensante, que
ro ponto de partida com a pura certeza da consciência (ego cogitans). se entende como ‘razão autônoma’, e que, mais tarde, com o idealismo,
erigir-se-á como ‘razão absoluta’. Toda a realidade vem interpretada specialis e entende o mundo, a alma e Deus como ideias da razão
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

como um acontecer espiritual. De outro lado, o empirismo inglês, su- pura, está entendendo o homem unicamente sob o título de ‘alma’.
bordinado à realidade empírico-material, impõe-se, sob a impressão Nesse esquema não há lugar para o homem total e concreto. Isso di-
das ciências da natureza, como a única realidade objetiva cientifica- ficilmente se justifica com a obra kantiana Antropologia em Sentido
mente demonstrável, nas obras de John Locke e de David Hume, que Pragmático. Enquanto que uma antropologia fisiológica se pergunta
se apoiam exclusivamente na experiência sensível. Semelhante em- ‘o que faz a natureza com o homem’, a antropologia pragmática se
pirismo reduz o conhecimento humano às percepções dos sentidos, coloca a questão ‘o que faz o homem de si mesmo’.
preparando assim o caminho para um materialismo que aparece pela É certo que aqui Kant reflete sobre a autoexperiência prática do
primeira vez com a Ilustração francesa. Quando Lamettrie reduz o homem, mas sua antropologia tem escassa importância comparan-
homem a uma simples máquina (O Homem Máquina), o princípio do com suas grandes obras críticas; não mantém conexão com elas,
mecanicista – que desde Descartes regia a realidade material (res ex- nem objetiva, nem metodológica, e ocupa frente a elas um lugar de
tensa) e depois também toda a vida orgânica (das plantas, dos ani- segunda ordem; trata-se, segundo Landmann, de ‘uma piscina in-
mais e do corpo humano) – aplica-se e estende-se já ao homem todo. fantil para os que não sabem nadar’ (Antropologia Filosófica).
Efetivam-se assim as bases da explicação materialista e mecanicis- Antropologicamente, é mais importante a conhecida referência
ta, que se sentirá durante o século xix e até em nossos dias. Desse ao tema que Kant faz na introdução à sua lógica, e na qual formula
modo, a ruptura da unidade do homem em Descartes inicia também as perguntas fundamentais de uma ‘Filosofia de intenção cosmopo-
o desgarramento da idade moderna entre um pensamento espiritual lita’. São estas: ‘Que posso conhecer?’ ‘O que devo fazer?’ ‘O que posso
e idealístico e outro material e mecanicista. esperar?’ ‘O que é o homem?’; e acrescenta Kant: ‘À primeira pergunta
Kant tenta superar a oposição entre racionalismo e empirismo. responde a metafísica, à segunda, a moral, à terceira, a religião e à
Sua reflexão transcendental sobre a razão pura como condição para quarta, a antropologia, já que as três primeiras estão relacionadas
a possibilidade de um conhecimento objetivo será fundamental em com a última’. Por conseguinte, a questão acerca do homem é o fun-
toda a filosofia posterior. Por isso, suas posições têm uma impor- damento último de toda a filosofia, embora Kant não consiga, pesso-
tância extraordinária. Mas, também não consegue montar uma ima- almente, traçar uma antropologia nesse sentido. Assim, ali apareceu
gem filosófica do homem que possa abarcar a unidade e totalidade a expressão chave: o que é o homem?
do ser humano. Os contrastes entre intuição sensível e pensamento Para Kant, a razão humana está condicionada pela finitude e li-
conceptual, entre conhecimento teórico e atuação prática, entre ci- gada à sensibilidade. De onde se segue a limitação do conhecimen-
ência e fé, não conseguem formar uma unidade. Quando Kant toma to à experiência possível e ao simples fenômeno. Depois de Kant, o
do racionalismo escolástico de Wolf os três setores da metaphysica idealismo alemão lutará para derrubar outra vez essa autolimitação 68
da razão humana, para recuperar um horizonte absoluto de conhe- BIBLIOGRAFIA:
cimento. Porém, depois da virada transcendental que se operou
•  reale, g; antiseri, d. História da Filosofia. São Paulo: Paulus,
com Kant, isso só será possível se o sujeito se estabelece a si mes-
2003. Vl 3.
mo como algo absoluto. Desse modo, referido o conhecimento a um
sujeito absoluto, também adquire valores absolutos. Mas, então, o •  filme: A Missão/ com Robert de Niro.
sujeito transcendental converte-se em um Eu ou em um sujeito ab-
soluto (Fichte). O sujeito finito se converte no lugar da manifestação
e em elemento de desenvolvimento do espírito absoluto (Hegel). O
homem aparece primordialmente, embora não de forma exclusiva,
como um puro ser racional. E a razão finita do homem fica absorvida
num processo racional infinito no qual a individualidade do sujeito
finito acaba por sucumbir.
É verdade que, no idealismo, além do elemento teórico do conhe-
cimento, afloram continuamente outras dimensões distintas: a con-
69
duta moral prática (Fichte), a criação e vivência estéticas (Schelling),
a realidade histórica (Hegel); inclusive, na Fenomenologia do Espírito
hegeliana, a totalidade das experiências da consciência. Mas a reali-
dade concreta do homem no mundo e na história volta a ficar absor-
vida num ‘saber absoluto’, capaz de apreender a realidade total, desde
sua origem absoluta como um desdobramento dialético do absoluto.
No fundo, lateja aqui uma imagem humana que, de um lado,
entende o homem como um ser essencialmente racional, sem to-
mar em conta o homem total e concreto; de outro, eleva e absorve
a razão finita num acontecimento espiritual infinito, com o que a
singularidade pessoal do homem não adquire seu pleno valor em
sua liberdade e responsabilidade. É isso que suscita, precisamente,
o protesto que exige a todo custo um giro do pensamento na direção
do homem concreto.

Antropologia Filosófica
MÓDULO 5
História das
Concepções
do Homem
na Filosofia
Ocidental IV
AS CONCEPÇÕES DO
HOMEM NA IDADE

1
CONTEMPORÂNEA
(PRIMEIRA
APROXIMAÇÃO)
1.1.1.
)
A partir da obra de
Henrique Cláudio de Lima Vaz,
Antropologia Filosófica I. O Homem e o Idealismo Alemão
São Paulo: Loyola, 1991. )
Esta vertente abre a filosofia contemporânea. É uma confluência de
correntes: Aufklärung e Kant, o Romantismo, a Teologia protestante,
1.1.
o Direito Natural moderno, o reencontro da Ética e Política clássicas.
As Concepções do Homem na Filosofia Contemporânea Na questão do homem influi mais o romantismo, um movimento
de Sensibilidade que foi chamado o ‘outro lado do século xviii’. Este
A filosofia contemporânea compreende as correntes emergentes nos possui dois traços essenciais:
séculos xix e xx, dos tempos pós-kantianos ao nosso tempo. Duas •  Resistência à Ilustração, ao mecanicismo, ao empirismo
são as razões para isso: de Locke;
•  Teórica: a maior parte dos problemas do início daquele século •  Primazia do sentimento sobre a razão, do Eu Sensível sobre o
continua até hoje; Cogito, do senso íntimo sobre a universalidade lógica (contra
•  Histórica: as condições para o exercício da filosofia, de lá para o classicismo).
cá, continuam praticamente as mesmas (cultura universitária). A antropologia romântica valoriza, no homem, o Particular, como
ele se exprime na sensibilidade, nas emoções, na Paixão, naquilo que
o encaminha para o Universal: integrar-se numa totalidade orgânica
cuja mediação é a arte; pelo sentimento, comunga-se com o todo. A

Antropologia Filosófica 71
1.1.2.
filosofia da história não se baseia no progresso, mas na presença do
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Absoluto que se particulariza e se manifesta nos povos e culturas. Aí A Concepção Hegeliana


está a presença de Goethe, Schiller e o grande pedagogo Pestalozzi. Hegel constrói um sistema comparável ao de Aristóteles. Nele estão
Mas quem antecipou essa antropologia foram Rousseau e Herder, no dialeticamente articulados os momentos da Natureza, do Espírito
século anterior. Subjetivo (individual), do Espírito Objetivo (o Espírito na História) e
A ideia de homem é o centro da obra de Rousseau. Ela se liga à sua do Absoluto.
própria experiência existencial; o Sentimento é o centro, cuja sede é A concepção de homem se expressa por sua relação aos diversos
o coração ou a consciência moral, mas Rousseau trabalha isso com níveis da realidade:
extremo rigor racional. O homem era naturalmente bom, a socieda- •  Relação do homem com o mundo natural: este é o domínio da
de que o corrompeu; é preciso um novo pacto. Suas grandes ques- imediatidade, oposto ao mundo da mediação, que é o mundo
tões: qual o caminho que levou o homem do estado de natureza ao humano, que suprassume a natureza em Espírito, seja pelo agir
estado de sociedade? Por que o estado de sociedade trouxe ao ho- subjetivo, seja pelas obras objetivas.
mem a corrupção e a perda da bondade inata? Rousseau rejeita toda •  Relação do homem com a cultura: o indivíduo só é humano quan-
ideonomia (Platão) e toda teonomia medieval; defende a imanência do participa no movimento constitutivo da história; tal processo
absoluta da natureza, fonte de todo bem e valor. Daí viria a nova hu- prepara o indivíduo para o universal, a humanização (cultura).
manidade (seguir a natureza, cf. O Emílio). •  Relação do homem com a história: a história é o ‘progresso na
Em Herder, o que define o homem é a Linguagem; tenta unir ra- consciência da liberdade’, o ser do homem na progressiva
zão e sensibilidade; a linguagem é uma criação humana, e não um manifestação; a história não é linear (fatos justapostos), mas
dom divino, é a forma humana da racionalidade: por ela, o homem dialética, um crescente qualitativo do sentido realizado da vida
tem um mundo propriamente humano. humana e a sua consciência.
O idealismo elabora filosoficamente as ideias que alimentavam a •  Relação com o Absoluto: a arte, a religião e a filosofia são as ins-
visão romântica. No caso de Fichte e Schelling, eles se caracterizam tâncias da manifestação do Absoluto; na arte, é a intuição; na
como filósofos da liberdade, tentando colocar-se para além dos dua- religião, a representação; na filosofia, o conceito. É pela filoso-
lismos kantianos e sendo um referencial para a obra hegeliana. fia que o Absoluto se revela como Reconhecimento: A Razão na
História é o progressivo Reconhecimento entre as liberdades, o
que inclui a luta entre senhor e escravo.

72
1.1.3.
O Homem Pós-Hegeliano
Com a morte de Hegel, temos a direita e a esquerda hegelianas. A e animal se definem pelo tipo de reação que os une à natureza,
esquerda utiliza Hegel para uma crítica social e política, acabando como vivem sua vida. O animal é sua própria vida; o homem
por voltar-se contra o próprio Hegel - Feuerbach e Marx principal- precisa produzir a sua. Essa produção vai implicar a consciência-
mente. Feurbach critica, sobretudo, o Espírito Subjetivo de Hegel; de-si, a linguagem, a fabricação de instrumentos, a cooperação
Marx, no entanto, o Espírito objetivo. Em Feuerbach, temos um an- gregária. As duas primeiras seriam exclusivas do homem e mode-
tropocentrismo radical: o mundo do homem é a projeção do ho- lariam as outras.
mem natural dotado de sensibilidade e sentimento; é uma visão A questão da natureza humana está intimamente ligada à ques-
materialista do homem, o homem como ser-sensível. Trata-se de tão das necessidades humanas; estas são necessidades plurifor-
uma desmitologização da teologia: a ideia de Deus é apenas uma mes: biológicas, psicossociais e culturais, sendo elas o fundamen-
projeção da infinitude do homem; o homem é o único deus para o to de um desejo; a plena satisfação dessas necessidades só seria
homem; a religião é a projeção da própria essência do homem, que possível numa sociedade comunista. Junto com a questão das
deve assumir-se diante de si. O Homem define-se por suas carên- necessidades e da satisfação, está o problema da alienação, sendo
cias e, ao relacionar-se com o mundo objetivo, é um ser genérico, elaespiritual e social. Espiritual: deficiência de ser por não alcan-
aberto à relação com os outros. A relação essencial é Eu-Tu, o fun- çar a autorrealização; é a coisificação: haveria a possibilidade con-
damento da ‘religião do homem’.22 creta dessa satisfação, mas ela não ocorre. Social: é o domínio do
Marx, na antropologia, se apoia significativamente em Feuerbach. produto sobre o produtor.
A ideia marxiana de homem aparece mais nos ‘escritos da juventu- O homem, como ser social, tece a dialética entre necessidade, sa-
de’(1839-1849), e de modo bastante fragmentário. A sua preocupação tisfação pelo Trabalho e na relação com os outros na sociedade. A
maior parece ser com a ação revolucionária, a análise econômica, a situação histórica do nível da alienação se mede pela dialética entre
política. A concepção marxiana de homem se relaciona com os se- forças produtivas e relações de produção. No capitalismo, a inade-
guintes tópicos: o homem e a natureza, a natureza humana, as rela- quação é expressa pelo fenômeno da fetichização das relações so-
ções sociais e a filosofia da história. ciais que aparecem como propriedades naturais das coisas. A alie-
O homem tem um fundo de características comum com os ani- nação é um processo histórico, com seu auge no modo capitalista
mais, sobre esse fundo se destaca a sua especificidade. Homem de produção, desdobrando-se em profunda alienação espiritual:
econômica, política, cultural, religiosa (da primeira procedem as
22 Cf. a obra de Feuerbach, A Essência do Cristianismo. outras). O homem alienado produz entidades como se fossem reais

Antropologia Filosófica 73
1.2.1.
(nas relações sociais) e imaginárias (religião), que adquirem existên-
cia independente e dominam seus produtores. Origens da Antropologia Filosófica Contemporânea
A compreensão marxiana do homem se liga a uma filosofia da
história. A história se divide em épocas relacionadas dialeticamen- Fundamentalmente, Kierkegaard e Nietzsche são os referenciais da
te; é o modo de produção dominante que distingue as quatro épo- AF contemporânea. Kierkegaard, um pensador protestante solitário,
cas: modo asiático de produção, escravismo antigo, feudalismo e legou vários conceitos que se tornaram referenciais, como é o caso
capitalismo moderno, que gera necessariamente o socialismo como de sua noção de ‘Existência’ ou indivíduo, irredutível ao sistema
transição para o comunismo. A história tem uma face escatológica: (contra Hegel).
o fim necessário da história é o advento da sociedade sem classes; Em Nietzsche, temos uma crítica radical à cultura ocidental e a
com isso, Marx estaria saindo do âmbito daquilo que a razão pode proposição de uma nova visão da vida humana. Há nele três ques-
garantir e se adentrando na trilha do mito. tões fundamentais:
•  O que foi o homem: sua aparição e sua aparição da natureza
1.2. e da vida; 74
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Ciências Humanas - Filosofia - Século xix •  O que o homem não é, desde que atingido pela doença da cul-
tura e pelo ressentimento ou vingança contra a vida e o devir;
No século XIX, temos um rápido desenvolvimento das ciências hu- •  O que o homem pode e deve ser: o homem em transição para
manas: da vida, da cultura, da sociedade, do psiquismo, da econo- o super-homem.
mia; essas ciências incidirão fortemente na reflexão antropológica. No plano metafísico, a ideia de homem se liga à Vontade de
O espírito científico dessa época foi marcado pela ideia de Evolução, Poder e ao Eterno Retorno do Mesmo. No plano da cultura, o tema
seguindo a esteira de Darwin. É nessa época que predomina o positi- do homem se liga ao Niilismo, como diagnose da cultura ociden-
vismo, que tenta compreender o âmbito humano segundo o modelo tal, à genealogia da moral com a explicitação dos contravalores
determinista-empírico das ciências naturais. É só nos lembrarmos que estão em oposição à vida e com o anúncio do super-homem. O
da ‘física social’. A análise da sociedade tem primazia sobre o indiví- homem nietzscheano está em oposição ao zôon logikón e ao Imago
duo. Spencer e Durkheim dão continuidade e Wundt leva adiante a Dei, rejeitando o conceito de alma espiritual. O Corpo é uma uni-
psicologia experimental. dade superior, a totalidade do indivíduo inserido no eterno retorno
(posição imanentista).
As influências desse pensamento são enormes: em Bergson (fi- •  Antropologias Materialistas: Tais concepções se caracterizam
losofia da Vida), em M. Scheler (fenomenologia afetiva), em Gehlen pelo uso do procedimento metodológico reducionista, ou
(biologicismo) e assim por diante. aquele que, ao interpretar o homem, prioriza o polo da Natu-
reza. Os fatores naturais teriam privilégio diante dos culturais
1.2.2. e simbólicos como princípios explicativos (causadores ou con-
dicionantes) na interpretação do homem. No geral, filiam-se
Modelos da Antropologia Filosófica Contemporânea:
ao ‘homem produtor’ da concepção de Marx (homo faber), com
Há diferentes modelos que servem de referente na composição da destaque para Ernst Bloch. Essas antropologias tomam como
imagem do homem contemporâneo. referência epistemológica certa ciência que passa a ser nor-
•  Antropologia Existencial: a categoria central é a de ‘existência’. mativa; geralmente, são enfatizadas as ciências das origens, a
Em Kierkegaard, trata-se da existência cristã que manifesta a biologia humana, psicologias, linguística, etnologia e, sobretu-
singularidade irredutível do indivíduo à explicação lógica, ao do, as teorias da evolução. Estas também inspiraram antropo-
lançar sua liberdade no salto absurdo da fé. O principal herdei- logias espiritualistas, como a de Berson e T. de Chardin. 75
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

ro seria Karl Jaspers. Este fala da situação-limite na qual a exis-


tência humana é lançada, devendo dar conta de sua existência. 1.3.
Heidegger também se situa nessa perspectiva, ao mesmo tem- O Ser Pluriversal Atual
po em que procura cavar no solo ontológico. O mais conhecido
é Sartre: o homem vive a tensão entre o Em Si e o Para Si, tendo As diversas antropologias apontadas neste percurso têm como
a tarefa de conseguir um em-si; o homem aparece como ser de pressuposto o ‘homem como ser Universal, reflexo ou receptáculo
projeto, ele é o seu próprio projeto. intencional de toda a realidade. Na cultura clássica, o homem é o
•  Antropologia Personalista: É por essa vertente que a categoria de microcosmo dentro do macrocosmo, refletindo a este; na moder-
Pessoa tornou-se central no discurso contemporâneo sobre o nidade, a universalidade do Cogito, o a priori de Kant, o Espírito
homem. A característica comum do personalismo cristão é a hegeliano, o ser genérico de Feuerbach e assim por diante. As an-
afirmação do Deus pessoal transcendente como paradigma e tropologias atuais preferem reconhecer a pluridimensionalidade
fim último da pessoa; os principais representantes são J. Mari- do homem e dos sentidos que a experiência em seu ser revela ao
tain e E. Mounier. Há uma retomada do pensamento de Tomás homem. O ponto de partida é sempre uma perspectiva tida como
de Aquino e Santo Agostinho. privilegiada, pela qual tentam construir um discurso englobante
sobre a totalidade da experiência humana e, daí, uma pluralidade
de discursos sobre a totalidade humana. Segundo Vaz, aí se insere acreditou; passivo: exaustão da força do espírito, que dissolve sem
o pensamento de Paul Ricoeur e André Jacob. remédio os valores fundamentais da vida. E quando for abolido to-
talmente o suprassensível, segundo Nietzsche, terá lugar o niilismo
1.3.1. completo. Aí: ‘Deus está morto’. Estaríamos, ainda, num niilismo in-
completo dominando o nosso tempo.
Alguns Problemas Atuais
Os autores dizem que as faces do niilismo incompleto seriam,
Lima Vaz, na esteira de G. Reale, aponta alguns problemas dos mais
23
mais exatamente, máscaras, pois seriam disfarces de valores
significativos que envolvem o homem do nosso tempo, como pro- perdidos que a frágil memória histórica de uma cultura indiferente
blemas que exigem soluções e remédios. Segundo esses autores, a à tradição não consegue recuperar ou mesmo identificar. Vejamos
linha que une os passos desorientados dos homens de hoje é iden- algumas dessas faces:
tificada como sendo o niilismo, a atitude niilista que se estende, 1. O Cientismo e a redefinição da razão humana em termos de efi-
como premissa ou consequência, a todos os quadrantes da cultura cácia tecnológica. O valor perdido seria a concepção analógica
contemporânea; para onde quer que volvamos nosso olhar, encon- da razão, faculdade do ser.
tramos uma das faces do niilismo, e daí a questão: o que seria uma 2. O Ideologismo e o esquecimento da verdade. A ideologia racio-
76
sociedade do futuro construída sobre o vazio espiritual de valores e naliza os interesses particulares e está a serviço do Poder en-
fins? (recomendamos a leitura da obra de Huxley ‘Brave New World’ quanto instrumento eficaz a ser utilizado, encobrindo o que
e a de G. Orwell ‘1984’). É com um véu. O valor obscurecido é a verdade, aquilo que é
Nietzsche teria sido o profeta, o antecipador, o teórico da idade patente à luz da razão, inclusive o interesse particular.
do niilismo: ‘O que narro é a história dos próximos dois séculos. 3. O praxismo e o produtivismo tecnológico. O fazer e o produ-
Descrevo o que acontecerá, o advento do niilismo’ (Fragmentos zir são absolutizados em detrimento do agir e do contemplar.
Póstumos). ‘niilismo: ausência de fim; ausência de resposta ao por Daí o declínio da Moral e da Política, o seu mascaramento no
quê? O que é o niilismo? A desvalorização dos valores supremos’: hedonismo, utilitarismo e maquiavelismo de um lado e, de ou-
Deus, a verdade, o ser, o bem, o fim último. O niilismo seria ativo tro, na deslegitimação do lazer contemplativo, porque não teria
ou passivo. Ativo: força destrutiva dos valores nos quais até agora se utilidade social. Para o indivíduo, o que importa é o que fazer,
e não o que Ser. Perdeu-se a consciência moral, a virtude e a
contemplação geradora de ser.
23 Cf. Revista Síntese nº. 78, p. 411-420, Atualidade da Sabedoria Antiga.
Trata-se de um comentário à obra de G. Reale, Sagezza Antica: terapia
4. O bem-estar material como substitutivo da felicidade. A equa-
per i mali dell’uomo d’oggi. Milão: Rafaello Cortina, 1995. ção mais usada é consumo = felicidade. De modo que alguns

Antropologia Filosófica
sempre serão mais ‘felizes’, consequência direta do fazer, do entremeio. Eros decaiu, foi condenado a abandonar-se ao
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

produzir, possuir. Perdeu-se a eudaimonia, obscureceu-se a jus- mal infinito do desejo nunca satisfeito.
ta medida e a hierarquia dos bens. 8. O individualismo nos limites do excesso. Este é um dos traços
5. A inundação da violência. Segundo o próprio Nietzsche, o nii- mais inconfundíveis do homem que vive no niilismo. Há os
lismo não apenas contempla o vazio das coisas e não é apenas que buscam compreender o homem firmados sobre o indivi-
a convicção de que tudo deva ser destruído: é um pôr mãos dualismo e caem em contradição pela fragilidade da própria
à obra e tudo destruir. Matar os seus semelhantes tornou-se premissa e sua decorrência do niilismo. Matou-se, exclui-se
para tantos o rito de passagem capaz de marcar uma vida vazia de novo o outro, a comunidade, as utopias, os projetos co-
e sem sentido. Habitantes do nada concluem com uma lógica muns, a ética, a pessoa.
irrefutável que a vida humana não vale nada. Lei do mais for- 9. Perda do sentido do fim. Segundo Nietzsche, a lógica do nii-
te, complexo de Caim são norma e atitude indiscutíveis para a lismo deve levar à abolição de todo tipo de causa final, de toda
Era do vazio. Perdeu-se o valor do outro, da justiça, o respeito representação de um universo ordenado. O niilista deve viver
pelo ser humano. num mundo caótico. Perdeu-se a noção de sentido, do sensato,
6. A perda do sentido da forma. Nietzsche recusava-se a buscar a mesmos que estejamos referidos a ele para percebermos que
felicidade na contemplação da beleza, mesmo tendo suas raízes não há sentido.
nela, pois segundo ele não é à felicidade que estamos destinados 10. Materialismo e esquecimento do ser. É um dos termos mais
e sim à afirmação da vida na vontade de poder. Ele era um cultor usados e suporta muitos sentidos. O niilismo exige o sepulta-
do belo. Hoje, podemos ainda falar de uma função educadora da mento de instâncias suprassensíveis e sua face se mostra como
arte se na sua maior expressividade ela não nos eleva acima da exigência de materialismo. É o reino da imanência absoluta,
banalidade do cotidiano? Segundo os autores, a arte tem preza- do determinismo totalizante. Perdeu-se a liberdade, matou-
do o in-forme e o de-forme. Perdeu-se o poder da arte de comu- se a esperança, matou-se o poder de transcender do homem,
nicação entre os seres, pela contemplação do ser expresso. morrerá também o super-homem: no eterno retorno do mesmo
7. O esquecimento do amor. O niilismo existencial que mais adul- (portanto também do niilismo) ou em algum tipo de lógica da
tera o humano resulta da identificação do amor com a ativida- Necessidade. Eis a sabedoria do tempo.
de sexual. Vivemos numa ‘civilização afrodisíaca’ (cf. Bergson).
O afrodisismo desvairado e violento passou a ser a face mais
agressiva de uma orgulhosa ‘civilização tecnológica’. Perdeu-se
o Eros como a busca de alguma plenitude, como intermediário 77
O GIRO

2
ANTROPOLÓGICO
(SEGUNDA
APROXIMAÇÃO)

2.1.
)
A partir da obra de
Emerich Coreth,
Qué es el hombre. Materialismo e Evolucionismo
Barcelona: Herder, 1991. )
A) O Materialismo, difundido desde os séculos xviii e xix, traz uma
Já no século XVI o termo ‘antropologia’ possui uma orientação que revolução radical da imagem do homem. Até então, toda a tradição
se separa tanto da filosofia especulativa tradicional como da men- havia considerado o espiritual no homem como aquilo que cons-
talidade matemático-científica, postulando uma consideração do tituía propriamente a sua essência, que o caracterizava acima de
homem na sua autoexperiência concreta. Neste sentido, também a qualquer outra qualidade. A tudo isto se opõe o materialismo: o ho-
‘antropologia de intenção pragmática’ de Kant quer ser uma doutrina mem é uma realidade material como todas as outras coisas; nada
empírico-prática do homem sobre a base de uma experiência vital mais existe do que o ser e o acontecer materiais; o homem também
concreta. Esta orientação, que em termos gerais continua, contudo, é constituído pelos mesmos elementos e está sujeito às mesmas
sem ser alcançada, irrompe com uma nova força no século xix como leis do resto do mundo. É preciso também explicar sua vida e sua
uma reação contra o estreitamento racionalista e idealista da ima- consciência a partir daí. Essa concepção, preparada pelo empiris-
gem do homem. Abre-se aqui passagem a um pensamento antro- mo inglês e entendida de uma forma puramente mecânica, segun-
pológico concreto que se desdobra numa pluralidade de aspirações do a explicação naturalista daquela época, aparece pela primeira
muito diversas. Embora esquematizando a questão de forma simpli- vez no marco da Ilustração francesa do século xviii, especialmente
ficada, podemos reduzir essas tendências a três grandes grupos: i) entre os ‘enciclopedistas’ (Lamettrie, Diderot, d’Alembert, Holbach,
Materialismo e evolucionismo; ii) Existencialismo e personalismo; etc.); mas alcança sua maior influência no século xix, por media-
iii) Fenomenologia e ontologia do homem. ção do positivismo.

Antropologia Filosófica 78
O fundador do positivismo foi Auguste Comte (1798-1857). Comte materialismo não consegue se fundamentar a partir de princípios
pretende limitar o conhecimento científico ao terreno ‘positivo’; ou positivistas. Porém, o positivismo vai, em muitos aspectos, mais
o que ele é aos conteúdos da pura experiência e observação. Comte é além do materialismo. Da delimitação metodológica à realidade
o herdeiro do empirismo inglês e da ilustração francesa. A essas fon- empírico-material extrai-se de fato - embora não logicamente - a
tes deve a sua mentalidade empírica e também a sua fé ilimitada no consequência de que somente se dá e pode dar-se uma realidade
progresso, que é fundamentado com razões histórico-sociológicas. empírico-material.
A sua ‘lei dos três estádios’ afirma que o desenvolvimento da huma- Tal concepção se encontra entre os representantes do chamado
nidade passa por um estádio teológico, outro metafísico e um tercei- ‘materialismo científico’ do século xix e, muito especialmente, entre
ro positivo. O homem começa explicando os fenômenos da natureza os alemães C. Vogt (1895), J. Moleschott (1893) e L. Büchner (1899). É
como produto de algumas forças sobrenaturais, que recebem um necessário explicar todos os fenômenos e processos da vida, inclu-
culto religioso. Depois, tenta explicar o mundo de um modo espe- sive da vida consciente e ‘espiritual’ do homem, através de algumas
culativo, através de essências e leis metafísicas. Finalmente, o pen- forças e leis físico-químicas, que operam de um modo puramente
samento se adentra no estádio positivo, no qual supera os prejuízos mecânico. Esta concepção defendeu-se com agudo tom polêmico
religiosos e metafísicos e se limita à investigação científico-positiva contra a imagem religiosa e metafísica do homem, no tempo em que
79
do mundo, chegando assim, pela primeira vez, a um conhecimento esta levantava amplas discussões em torno do materialismo.
puramente objetivo da realidade. Nessa concepção, o homem se con- B) Nessa atmosfera espiritual, aparece a teoria evolucionista, de-
verte no simples objeto de um estudo científico natural empírico, fendida por Charles Darwin, que conduz a uma nova revolução da
psicológico e sociológico. imagem do homem. Certamente que a ideia de uma evolução con-
O positivismo é, de fato, o precursor do materialismo, mesmo tínua não era de todo nova. Os inícios da mesma encontram-se na
que as correntes não sejam idênticas. O positivismo significa a pura primitiva filosofia grega. A ideia evolucionista é também comum na
delimitação metodológica do conhecimento científico ao terreno teologia patrística. No outro lado, a imagem de uma imutabilidade
positivo. Como consequência, não emite afirmação alguma - nem das espécies deriva filosoficamente da doutrina platônica das ideias,
em sentido positivo, nem negativo - que transcenda as fronteiras da no tempo que, teologicamente, se vincula à exposição literal do re-
experiência. Já o materialismo faz esta afirmação: tudo é matéria, lato bíblico da criação. Contudo, nem a filosofia e nem a teologia ja-
existe somente a realidade material. Isso constitui uma tese ‘meta- mais haviam defendido a teoria da constância ou continuidade que
física’ porquanto pretende fazer uma afirmação sobre a realidade excluísse qualquer evolução, com tanta obstinação como a própria
total. Fundamentalmente, vai mais além do princípio metodológi- ciência da natureza fez, especialmente por obra de CH. Linneo (1778),
co do positivismo, então, não pode apoiar-se nesse princípio. Um que considerou absolutamente imutáveis as formas dos seres vivos.

Antropologia Filosófica
J. B. Lamarck (1829) foi, ao contrário, o primeiro que, em sua favor de um puro materialismo, com o qual se pretende superar defi-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Philosophie Zoologique (1809), defendeu uma teoria científico-natu- nitivamente a dualidade entre matéria e espírito, estabelecendo um
ralista da evolução. Explica a aparição das novas espécies por uma ‘monismo’ materialista, que, além do mais, se organiza como uma
adaptação às condições ambientais e pela herança de características ‘liga monista’ com claros traços pseudo-religiosos.
de adaptação alcançáveis por alguns indivíduos. Tal explicação não Não menos influência tem a teoria de Darwin, embora de forma
pode impor-se, porque não era possível demonstrar biologicamente distinta, sobre F. Nietzsche (1844-1900), que vê no homem o produto
essa herança das peculiaridades individuais. de uma evolução; essa evolução, contudo, não conseguiu seu objeti-
A irrupção decisiva se produz graças à obra de Charles Darwin vo, mas há de levar o homem até o ‘super-homem’. Ao mesmo tempo,
(1809-1882): On the Origin of Species by Means of natural Selection. Nietzsche exercita uma dura crítica contra Darwin, pelo fato de que
Darwin aportou material abundante em apoio à evolução das for- a evolução não pode realizar-se de uma forma necessária mediante
mas vivas, e tentou explicá-la mediante a teoria da seleção natu- uma seleção puramente mecânica, mas sim pela livre competência
ral; ou seja, ocorrem algumas mutações casuais da herança, mas (competição) entre os homens numa ‘vontade de poder’. A seleção
a seleção natural se cumpre com luta pela existência. Somente os natural não conduz ao desenvolvimento do superior e do melhor,
indivíduos capazes de viver se mantêm, se reproduzem e se desen- mas fomenta também o medíocre e defeituoso, que é preciso supe-
volvem, enquanto que os indivíduos de vida precária perecem ou rar. Com isso, o super-homem, tão apaixonadamente proclamado
são destruídos. Com tudo isso, Darwin estabelece uma teoria pu- por Nietzsche, não é o produto de um processo mecânico da natu-
ramente científico-natural, sem pretender extrair consequências reza, somente pode ser um produto da liberdade humana. Apesar
filosóficas ou relativas à interpretação do mundo, num sentido dessa crítica, a teoria darwiniana está no fundo da visão profética de
materialista, por exemplo. Nietzsche acerca do homem.
Porém, logo houve tentativas de desviar sua teoria nessa dire- Também Karl Marx e F. Engels estão sob a influência da doutri-
ção. No âmbito linguístico alemão isso ocorre, sobretudo, com E. na de Darwin. No mesmo ano em que se publica a Natural Seleção
Haeckel (1834-1919), um dos discípulos mais importantes de Darwin, (1859), Engels escreve a Marx a respeito da ‘grandiosa tentativa’ de
cuja obra ‘Os enigmas do mundo’ teve ampla difusão. Haeckel trans- Darwin, que destruiu a teologia e demonstrou a ‘evolução histórica
forma a teoria científico-naturalista de Darwin numa doutrina filo- na natureza’. Marx responde que o livro de Darwin ‘contém o funda-
sófica e explicativa de toda a realidade; combate a imagem cristã do mento histórico-natural para a nossa tese’. Marx vê em Darwin uma
mundo e do homem, as doutrinas da alma, da liberdade e da imor- confirmação de seus próprios pontos de vista. É assim que o darwi-
talidade; debocha da fé em Deus (‘o animal vertebrado gaseiforme’). nismo penetra nos supostos fundamentais da concepção marxista
Desse modo, a teoria evolucionista se esgrima como uma arma em materialista do mundo e influi em sua exposição. 80
C) O Materialismo Dialético, que deriva de Marx (1818-1883) e de F. de produção e a força de trabalho. À estrutura econômica respon-
Engels (1820-1895), continuado por W. J. Lenin - e por isso foi chama- de a situação social que, por sua vez, condiciona a ordem jurídica e
do Marxismo-leninismo -, distingue-se, em todas as luzes, do mate- política, assim como tudo o que Marx denomina a ‘montagem ideo-
rialismo positivista. A diferença enraíza-se no elemento dinâmico- lógica’, a saber, a filosofia, a moral e a religião, que constituem uma
-evolutivo que, no que se refere às ciências da natureza, procede de construção teórica posterior, encaminhada a justificar e assegurar
Darwin e, filosoficamente, de Hegel. Aqui se aplica à realidade total, a situação material, econômica e social em benefício da classe do-
tanto à natureza quanto à história. Portanto, o materialismo dialé- minante. ‘A religião é o ópio do povo’, no sentido de que, consolan-
tico acentua constantemente, frente ao positivismo, que pensa não do-se com a fé religiosa em um mais além melhor, o povo suporta
estaticamente, mas sim dinamicamente, não de um modo mecani- pacientemente a injustiça social, a opressão e a exploração, sem se
cista, mas dialético. É aceita a lei dialética de Hegel, mas converten- rebelar contra elas e sem lutar por seus direitos sociais. Marx quer
do a dialética do Espírito na dialética da matéria. Continua sendo um libertar o homem da ‘alienação’ - palavra esta que deriva de Hegel
materialismo porquanto só existe uma realidade material, mas não e que Feuerbach adotou no sentido de uma crítica religiosa - e aju-
se trata de uma matéria estática, unívoca e uniforme, determinada dá-lo em seus direitos sociais. Porém, isso exige a ‘luta de classes’, 81
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

unicamente pela quantidade. Trata-se, antes, de um princípio mate- cuja meta última é a ‘sociedade sem classes’ que o socialismo pos-
rial, que se desenvolve dialeticamente mediante ‘saltos’ qualitativos tula. Antropologicamente, sem dúvida, o verdadeiramente decisivo
em formas superiores de manifestação e de ação. Por isso, a vida não é que Marx entende o homem somente como um ‘conjunto de rela-
reduz simplesmente aos processos da matéria inorgânica, mas re- ções sociais’, de modo tal que o homem concreto, enquanto pessoa
presenta uma forma de desenvolvimento qualitativamente superior individual, fica postergado, convertendo-se em uma simples função
da matéria. Isso vale, sobretudo, em referência ao homem e à vida dentro do progresso da sociedade. Como em Hegel, o indivíduo se
de sua consciência, e constitui, por sua vez, uma forma qualitativa- dilui no geral; porém, esse ‘geral’ ou universal já não é um processo
mente superior da realidade material. Não obstante, continua sendo espiritual absoluto, mas um processo sócio histórico.
simples matéria e, por isso, continua sem resolver o muito discutido Como esse pensamento materialista invoca constantemente a
problema de como se há de explicar a consciência. teoria evolucionista, a teologia e a doutrina eclesiástica, mantive-
A isto se encontra vinculado - desde o próprio Marx - o materia- ram-se reticentes durante longo tempo diante daquela teoria, es-
lismo histórico, que tenta explicar a evolução da história. Para Marx, pecialmente no que se refere à origem do homem, atitude esta que
o autêntico fator forjador da história é o fundamento material da tem mudado nas últimas décadas; agora já se aprendeu a distinguir
vida; ou seja, a situação econômica concreta, a estrutura da forma entre a teoria da evolução científico-naturalista e um evolucionismo
de economia, a relação entre produção e consumo, entre os meios filosófico doutrinal, que promete explicar o homem inteiro somente
através do acontecer material, dando, de forma precipitada e acríti- divina no mundo. Cristo quer assumir o mundo, quer chegar a ser o
ca, uma significação materialista de alcance filosófico universal aos ‘Cristo maior’, o ‘Cristo cósmico’, de tal maneira que o mundo seja
conhecimentos das ciências empíricas. sua plenitude, seu pleroma e, afinal, Deus seja ‘tudo em tudo’.
D) Que seja possível uma síntese entre a teoria evolucionista e o Teilhard encontrou uma acolhida entusiasta, mas também uma
pensamento cristão foi o que demonstrou, com singular claridade, crítica acirrada. Contra sua tese podem ser levantadas objeções tan-
Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Sua obra capital O Fenômeno to científico-naturais como filosóficas e teológicas. Sem dúvida,
Humano aporta uma visão total da evolução no mundo e da vida Teilhard não pretende fazer afirmações metafísicas sobre o homem,
nele. Nesse marco se cumpre uma crescente diferenciação das for- mas descrever o ‘fenômeno do homem’ no marco da evolução total
mas de vida como condição de uma concentração também progres- do mundo e da vida. Com isso, mostra, ao menos, a possibilidade de
siva do acontecimento vital, que conduz à reflexão e à consciência. uma integração filosófica e teológica da teoria científica da evolução.
Segundo Teilhard, isso supõe que na matéria lateja já a consciência, E é ali, precisamente, onde reside o valor de sua vasta síntese.
embora só chegue a um desdobramento crescente mediante a evolu-
ção das formas vitais. A matéria, enquanto elemento primordial di- 2.2.
nâmico carregado de energia, contém em germe todas as formas da Existencialismo e Personalismo
evolução. Nesse processo se forma – segundo a lei de diferenciação e
concentração – a ‘biosfera’, o campo da vida em todas as suas mani- Mais decisiva ainda é a virada na direção do homem concreto – fren-
festações, e a ‘noosfera’, que é o campo do pensamento e da consci- te a todos os cerceamentos que o idealismo e o materialismo pratica-
ência espiritual do homem. ram sobre a imagem do homem – que se realiza na filosofia vitalista,
Ocorre, porém, que a evolução se prolonga na história e conduz o na filosofia existencialista e no personalismo. É certo que tais orien-
futuro da humanidade. Até as guerras e catástrofes do nosso tempo tações ideológicas são distintas, mas, espiritualmente, são aparenta-
Teilhard as vê neste contexto: como o caminho da humanidade na das enquanto apontam para a autoexperiência concreta do homem
direção de uma nova idade. O crescimento gigantesco da humani- e, a partir dela, expõem sua essência.
dade, bem como as novas dimensões que se abrem científica e tec- A) Pode-se assinalar Blaise Pascal (1623-1662) como precursor pró-
nicamente, conduzem a uma aproximação e a um desenvolvimento ximo dessa forma de pensamento. Já em seu tempo opõe-se à estrei-
conjunto dos homens. Na humanidade futura, a força reunificadora, ta visão racionalista de Descartes. Acima da razão, reduzida ao pen-
o amor, chegará a conquistas mais plenas. O objetivo final dessa evo- samento matemático-racional, está o coração, que reúne intuição
lução é o ‘ponto ômega’, a plenitude definitiva, no sentido da teologia e instinto, sentimento e delicadeza, com a penetração do espírito.
cristã. Já a encarnação do Filho de Deus é o começo de uma perfeição Somente ao coração se revela a profundidade e plenitude da realidade.

Antropologia Filosófica 82
Semelhante crítica ao pensamento raciocinador e matemático pene- diante de Deus’. Assim como Pascal, essa visão do homem está in-
trará mais tarde em toda a filosofia da vida e da existência. Pascal vê fluenciada decisivamente pela fé cristã.
o homem em tensão entre a miséria e a grandeza, entre o nada e a Em audaz contradição com tudo isso encontra-se F. Nietzsche
infinitude. O homem experimenta sua discórdia, impotência e nuli- (1844-1900), embora também ele se ocupe do homem. Kierkegaard
dade ao mesmo tempo em que a infinitude de sua transcendência, de tinha feito urgir a necessidade de tomar a sério o cristianismo;
sua vocação e libertação por parte de Deus. Mas não pode entender-se Nietzsche, ao contrário, protesta contra o cristianismo em nome da
somente a partir de si mesmo enquanto imanente, e sim precisa en- humanidade natural. Seu objetivo é a exaltação da vida. Para ele, a
tender-se como transcendente por sua relação a Deus, não apenas em ‘vida’ é o valor supremo, embora considere a vida humana de um
sua dimensão natural, mas também sobrenatural. E aqui tem lugar, modo naturalista, isto é, de um modo puramente biológico natural.
embora mais como colocação do que como desenvolvimento explíci- A vida é a vida corporal: ‘eu sou pura e simplesmente corpo, e nada
to, uma reflexão sobre a autoexperiência existencial do homem. As mais; a alma não passa de uma palavra para indicar algo que há no
colocações de Pascal só alcançarão sua dimensão total muito mais corpo’. Ademais, Nietzsche entende a vida de um modo evolucionís-
tarde, graças, principalmente, à recente filosofia existencialista. tico; trata-se do desenvolvimento da vida humana até metas mais
Uma orientação similar abre passagem no século xix com o di- elevadas: ‘eu lhes ensino o super-homem. O homem é algo que deve
83
namarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), que se converteu no fun- ser superado. O que vocês têm feito para superá-lo?’. O objetivo é o
dador da filosofia existencialista. Ele endereça sua crítica contra o super-homem, um homem senhor e dominador, acima do bem e do
idealismo de Hegel, que dilui o indivíduo no espírito universal e ab- mal. Nietzsche também entende a vida de uma forma voluntarista,
soluto, ao mesmo tempo em que arremessa contra o materialismo pois o desenvolvimento superior não é produto de um acontecer na-
de seu tempo, que não consegue alcançar o propriamente humano, tural e mecânico, mas é sustentado pela vontade de poder para uma
muito menos explicá-lo. O que interessa a Kierkegaard é a ‘existên- exaltação absoluta da vida, que rechaça todos os freios da ‘moral de
cia’; é ele quem acunha esse conceito no sentido da existência hu- escravos’ cristã; pelo mesmo motivo, rechaça a fé em Deus e, em favor
mana, isto é, do homem individual e concreto na totalidade de sua do homem e de sua liberdade, proclama ‘Deus está morto’. Nietzsche,
experiência pessoal, de sua singularidade e autonomia, de sua liber- mais profeta do que filósofo, exerceu uma forte influência sobre a re-
dade e responsabilidade. O homem, com certeza, toma consciência cente filosofia existencialista (Jaspers e Heidegger publicaram livros
de si mesmo na impotência e no sofrimento (quebranto), na culpa e sobre Nietzsche). Está decisivamente no fundo da teologia do ‘Deus
na angústia. Porém, na fé se sabe aberto a Deus e libertado por Deus, morreu’; porém, não se pode dizer que ele faça parte propriamente da
unicamente em quem pode encontrar o sentido de sua existência. filosofia existencialista, mas sim que seja antes um ‘filósofo vitalista’,
A existência humana significa, definitivamente, uma ‘existência na medida em que seja possível colocá-lo em alguma corrente.

Antropologia Filosófica
B) O representante principal da filosofia vitalista é Henri Bergson numerosas. Comum a todas elas é que o conceito de ‘existência’, no
(1859-1941). Ele também está em oposição aberta ao positivismo e ao sentido kierkegaardiano de existência humana concreta, desempe-
materialismo com sua concepção mecanicista. Tal concepção roça nha um papel capital. Trata-se do homem. Porém, a existência hu-
apenas a superfície da realidade, e não a realidade autêntica que ex- mana não se entende nem se analisa racionalmente, mas se explica
perimentamos na consciência. Essa realidade é a ‘vida’, que significa desde a imediatidade da experiência pessoal, desde a compreensão
fluxo contínuo, evolução e crescimento, movimento e desenvolvi- que o homem tem de si mesmo. E, em primeiro plano, aparecem nu-
mento, é evolução criadora sustentada por um élan vital (força ou merosos fenômenos negativos: a finitude e contingência do homem,
impulso vital). Isso experimentamos na vivência do tempo, mas não a angústia e a preocupação (Kierkegaard e Heidegger), o fracasso
apenas do tempo físico, mensurável de modo puramente quantita- (Jaspers), o ser-para-a-morte (Heidegger). É precisamente nesses fe-
tivo, mas do tempo psíquico determinado qualitativamente, que re- nômenos que o homem experimenta o deslizar-se das mudanças su-
presenta uma mudança constante. A realidade viva não é captada ra- perficiais; o homem é lançado a si mesmo e pode compreender origi-
cionalmente. A dinâmica da vida escapa ao estaticismo do conceito. nária e totalmente sua própria existência. Nas formas mais radicais
Antes, precisamos com realizar a fluência da vida, com vivê-la, sen- do existencialismo (Sartre), isso conduz à plena nulidade e sem-sen-
tindo-a e penetrando-a. Isso acontece pela intuição direta enquanto tido da existência humana, enquanto que no existencialismo cristão
oposta à razão conceptual. Esse traço, um tanto irracional, relembra (Marcel) contam também alguns elementos positivos, alcançando-
Pascal e reaparece de diversos modos na filosofia existencialista. se uma filosofia do pessoal, da esperança, da confiança.
No âmbito alemão, destaca-se especialmente o filósofo vitalista O representante mais destacado da filosofia existencialista
W. Dilthey (1833-1911), que elaborou a distinção entre ciências da na- (existencial) é M. Heidegger, nascido em 1889, um dos pensado-
tureza e do espírito, entre ‘explicar’ e ‘compreender’, definindo este res mais profundos do nosso tempo. Entende-se sua filosofia não
último como uma ‘vivência compreensiva’, ou seja, algo similar à como uma ‘antropologia’, mas como uma ontologia. Para ele, o que
intuição bergsoniana. Dilthey deu o empurrão definitivo à ‘psicolo- importa não é o homem, mas o ser. E, como só o homem possui a
gia compreensiva’: ‘explicamos a natureza, mas entendemos a vida inteligência do ser, o sentido desse ser só se pode expor através de
anímica’. Nessa linha também se move Ludwig Klages com sua tese uma análise da existência. A existência humana é essencialmen-
do ‘espírito como contraditor da alma’, e especialmente Max Scheler, te temporal, realiza-se no esquema do tempo, isto é, no constante
sobre o qual voltaremos mais adiante como o fundador de uma nova esquema das próprias possibilidades de ser que – enquanto futu-
antropologia filosófica-fenomenológica. ro – permite chegar a ela. Por isso, a existência é essencialmente
C) A filosofia existencialista, um dos movimentos espirituais histórica, encontra-se sob o destino do ser e tem como horizonte
mais importantes das últimas décadas, apresenta formas muito de sua intelecção uma determinada compreensão do ser, histórica e

Antropologia Filosófica 84
manejável. Essa existência se expressa, especialmente no Heidegger se converte em um existencialismo cristão que outorga todo seu va-
dos últimos anos, mediante a linguagem histórica. Nela fala a voz lor à experiência essencial da comunicação e participação pessoal,
do ser à qual nós havemos de responder. Embora Heidegger trate e que se funda no ser pessoal e absoluto de Deus. (Obras: Ser e Ter;
primordialmente do ser que se nos revela e oculta historicamente, Existencialismo Cristão; O Mistério de Ser).
seu pensamento não somente impulsionou decisivamente a atual Tal doutrina está em conexão com uma ampla corrente de pen-
antropologia filosófica, mas também a remeteu ao seu problema samento que põe em relevo a singularidade do ser pessoal e das re-
ontológico fundamental. lações interpessoais, corrente que se pode compreender sob o nome
O giro ontológico da filosofia existencialista foi logo rechaçado de ‘personalismo’. Não se identifica com a filosofia existencialista,
por K. Jaspers (1883-1968). Pensa que se deve abandonar a tentativa de mas se vincula e entrecruza com ela de múltiplas formas. Nessa cor-
querer encerrar a realização viva e livre do existir dentro de um sis- rente se movem M. Scheler, F. Ebner, M. Buber, A. Bruner; entre os
tema. Essa tentativa é impossível porque o homem está sempre a ca- franceses E. Mounier. E com mais claridade ainda, K. Jaspers e G.
minho e, na autorrealização existencial supera-se constantemente a Marcel, que procedem abertamente da filosofia existencialista.
si mesmo. Jaspers, sem dúvida, empenha-se por uma ‘iluminação da Mesmo sem fazermos aqui uma análise detalhada de cada um 85
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

existência’, que tem seu ponto de arranque nas situações limite, na dos defensores do existencialismo e do personalismo, vamos desta-
experiência do fracasso. O homem tropeça por toda parte nas pró- car brevemente os aspectos principais que tiveram uma importância
prias limitações e se vê lançado contra si mesmo. E, assim, fracassa antropológica. O homem já não é visto isolado como um puro sujei-
também o conhecimento, chocando uma e outra vez com as frontei- to, no sentido em que fizeram o racionalismo (Descartes) ou o idea-
ras de sua possibilidade. A única postura e tarefa que cabe é a von- lismo (de Kant a Hegel). Aparece, antes, como ‘homem em seu mun-
tade de verdade, porém, não uma verdade fixável dogmaticamente. do’. E. Husserl fala do ‘mundo vital’, M Heidegger do ‘estar no mundo’
Daí, Jaspers aponta para a transcendência, enquanto experimenta- como concepção fundamental da existência. O mundo como hori-
mos o universal na realização existencial, mas a transcendência não zonte de compreensão concreto e histórico converte-se numa cate-
se pode entender com conceitos racionais; ela só se abre em ‘cifras’, goria antropológica. Desenvolve-se, assim, uma fenomenologia do
isto é, mediante símbolos que apontam à verdade sem que realmen- mundo; a intelecção de si mesmo e do mundo não está na pura opo-
te possam alcançá-la nem expressá-la. sição mútua de Sujeito-objeto, mas constitui uma unidade dialética,
No âmbito francês, a filosofia existencialista se desenvolveu numa cujas estruturas fundamentais é preciso descobrir.
direção contrária. De um lado, especialmente em J.-P. Sartre (1905), Não obstante, o mundo do homem é primordialmente um mundo
mantém sua forma mais radical de um niilismo ateísta. De outro, e pessoal. Por um lado, como pessoa individual, o homem possui uma
devido sobretudo a G. Marcel (1889-1973), a filosofia existencialista singularidade e irrepetibilidade indeclináveis; constitui a si mesmo
em liberdade, autodecisão e autorresponsabilidade. Por outro lado, 2.3.
também lhe corresponde, e de modo essencial, a relação pessoal Fenomenologia e Ontologia do Homem
com o ‘outro’, a relação intersubjetiva entre o Eu e o Tu. Essa relação
evidencia uma estrutura totalmente diferente da relação com um Todas as posições expostas até agora entram na nova antropologia.
objeto. Mas essa peculiaridade só foi posta em relevo com o perso- Com isso, hoje existe uma pluralidade de ciências empíricas par-
nalismo das últimas décadas. ticulares que estão a serviço da investigação antropológica. Para
Com a relação pessoal vem dada, também, a dimensão social. O distinguir tais ciências do intento filosófico, fala-se então de uma
homem se experimenta não apenas referido a um ‘tu’, mas também ‘antropologia filosófica’ geral, atenta à expressão filosófico-fenome-
ao “nós”. Encontra-se, de antemão, no todo de uma comunidade e nológica do fenômeno em geral da existência humana e à sua pene-
sociedade. Por conseguinte, não fazem justiça ao ser pessoal e social tração e análise metafísico-ontológica.
do homem nem o individualismo, que o considera como um ente A) A nova antropologia filosófica, enquanto não é nem uma psico-
particular e isolado (como o racionalismo e a ilustração), nem tão logia empírica nem uma antropologia científica particular, deve-se
pouco um coletivismo que o dilui por completo no acontecer social fundamentalmente a Max Scheler (1874-1928). Procede da fenomeno-
(como Marx e o comunismo). logia do primeiro Husserl, que leva adiante a tentativa de descrever
O homem e a sociedade humana estão na história; o mundo hu- e analisar o ‘fenômeno’ diretamente dado. Mas, enquanto que no úl-
mano é um mundo histórico. É esta uma ideia que passou a ocupar timo Husserl se coloca o problema transcendental da constituição
o primeiro plano do pensamento filosófico já desde Hegel e, mais do objeto na consciência, muitos de seus discípulos não realizaram
tarde, por obra principalmente de Dilthey e Heidegger. O homem não esse giro e seguem aplicando o método fenomenológico à investiga-
pode coisificar sua história tornando-a um puro objeto. O homem se ção lógica, ontológica ou da filosofia dos valores. Assim, acima de to-
sente e entende a si mesmo desde seu mundo histórico. Sua existên- dos, Scheler, pretende clarear a singularidade do ser espiritual pes-
cia inteira, incluindo seu pensamento e sua vontade, seus valores e soal e a especialíssima posição do homem no conjunto do mundo e
suas ações, está sujeita a algumas condições históricas que ele não da vida. É sobretudo seu livro ‘O lugar do homem no mundo’ (1928)
pode eliminar e que, através de uma linguagem e de uma cultura que, mediante a comparação entre a conduta humana e a do animal,
cunhados historicamente através de algumas formas de pensamen- destaca a ‘abertura do homem ao mundo’ e a ‘vinculação ao entorno’
to, representação e expressão, abrem algumas possibilidades concre- por parte do animal, ao mesmo tempo em que fundamenta a pecu-
tas da existência, embora imponham também algumas limitações, liar posição do homem exclusivamente no ‘espírito’ e suas relações
com o que assinalam a cada um seu lugar histórico. propriamente espirituais. Isso representa, até hoje, um impulso de-
cisivo. Contudo, tem-se mostrado, cada vez com maior claridade,

Antropologia Filosófica 86
que a diferença entre o homem e o animal afeta a toda a existência de suas fases vitais, etc.; prova também que o homem está já biologica-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

daquele (do homem), inclusive no aspecto biológico e morfológico. mente preparado para algumas relações espirituais e culturais, para as
Desde então, a antropologia filosófica converteu-se em uma orien- relações pessoais e sociais e, por conseguinte, para o especificamente
tação central, que se manifesta numa larga série de ensaios e projetos humano, e que se encontra, inclusive, ‘especializado’ em alto grau.
diversos. Tal pluralidade de intentos encontra-se, no geral, diante des- Para estabelecer uma imagem geral do homem em suas estrutu-
ta alternativa: ou a antropologia filosófica parte do vasto material da ras fundamentais partindo da psicologia, conta, sobretudo, o inten-
investigação científica particular para reduzi-lo à síntese de uma ima- to do personalismo psicológico e de seu fundador e paladim W. Stern
gem filosófica do homem, ou estabelece um ponto de partida origina- (Estructura de la Personalidad). Também P. Lersch e A. Vetter, entre
riamente filosófico com uma relativa independência das ciências par- outros, esforçam-se para captar uma imagem psicológica humana
ticulares, enquanto expõe fenomenologicamente a autoexperiência de conjunto, enquanto E. Rothacker e M. Landmann bebem em to-
do homem e esforça-se, a partir daí, por analisar a essência do homem. dos os campos das ciências do espírito, colocando a pergunta acerca
B) Arnold Gehlen (1908) representa o primeiro tipo, recolhendo do homem desde pontos de vista culturais e sócio-antropológicos.
abundante material das ciências empíricas - biologia, investigação No marco do estruturalismo francês, em antítese com o existen-
do desenvolvimento e da conduta, psicologia, sociologia e ciência cialismo de Sartre, Claude Lévi-Strauss (‘O Pensamento Selvagem’)
da linguagem -, especialmente em sua grande obra ‘O homem, sua desenvolve uma antropologia a partir das investigações etnológicas
natureza e sua posição no mundo’. A tese fundamental de Gehlen e sociológicas; antropologia que, sem dúvida, insiste, sobretudo, no
é que, frente à elevada especialização e singularidade instintiva do material empírico e, com isso, torna-se menos filosófica.
animal, o homem se apresenta biologicamente como um ‘ser defi- C) Helmut Plessner adota uma base estritamente filosófica, que
ciente’, por sua falta de especialização, sua imaturidade e sua pobre- lhe permite integrar alguns conhecimentos científicos particulares.
za instintiva. Para poder sobreviver, tem que compensar essa falta Plessner tornou-se um dos fundadores da antropologia filosófica ao
com sua própria ação; e é dali que surgem as mais altas realizações lado de Scheler. Sua tese fundamental é formulada através da ‘posi-
espirituais e culturais do homem. cionalidade excêntrica’ do homem, que se distingue da posição cên-
Tal concepção recebeu numerosas críticas, porque as realizações trica do animal porquanto o homem volta a refletir seu centro vital e
positivas de um grau essencialmente superior não se podem explicar o supera, com o que existe ‘excentricamente’. No fundo, fica signifi-
apenas pelo elemento negativo de uma deficiência. Assim, por exem- cada a dimensão espiritual da existência humana, sua ‘mediatização
plo, Adolf Portmann, partindo da biologia e da investigação da conduta da imediatez’ da vida, como expressa o próprio Plessner com as pala-
comparada, demonstra que a peculiaridade do homem afeta à sua pró- vras de Hegel. Assim, Plessner já se encontra no centro e representa o
pria constituição biológica, a todo o seu comportamento, ao processo trânsito para outro tipo fundamental de antropologia filosófica, que 87
tenta dar uma concepção essencial do homem com uma relativa in- E. Przywara. Muitos outros trabalhos filosóficos e teológicos reve-
dependência diante das ciências particulares, numa forma puramen- lam, de muitos modos, até que ponto a ideia antropológica ocupa, no
te filosófica que parte dos fenômenos da autoexperiência humana. presente, o primeiro plano dos esforços do pensamento.
A essa forma de antropologia pode associar-se uma filosofia do
espírito, tal como foi elaborada, por exemplo, por N. Hartmann ou T. BIBLIOGRAFIA:
Litt. Aqui, também, entra o elemento pessoal o interpessoal. Já nos
•  reale, g; antiseri, d. História da Filosofia. São Paulo: Paulus,
referimos a M. Buber, F. Ebner, G. Marcel e outros, cujas ideias se
2003. Vl 4.
aplicam e são exploradas hoje de muitos modos filosóficos e teoló-
gicos, tendo como viés a ‘essência dialógica do homem’. Possui im- •  filme: Patch Adams: O amor é contagioso/ com Robin Willians.
portância singular para o tempo presente o ponto de partida filosófi-
co-existencial, tanto na forma de iluminação da existência, tal qual
se encontra em K. Jaspers, quanto na forma de uma hermenêutica
existencial-ontológica da existência, ao modo de M. Heidegger, que
encontrou amplo eco no campo propriamente filosófico e também
no campo da teologia e da hermenêutica, como, por exemplo, no
pensamento de R. Bultmann e sua escola.
Também no marco do pensamento neomarxista atual percebe-
se, claramente, uma virada antropológica que - por exemplo em A.
Schaff, L. Kolakowski e outros - apoiando-se no Marx dos escritos
da juventude, apresenta o homem em primeiro plano e o socialismo
como um ‘humanismo’.
E, desde algumas décadas, manifesta-se, não com menor força no
campo da tradição clássica do pensamento cristão – partindo princi-
palmente de Tomás de Aquino, mas admitindo também os pontos de
vista da filosofia atual –, o esforço para chegar a uma valoração meta-
física do ser do homem. As linhas mais notáveis de tal antropologia
foram elaboradas por K. Rahner, Max Müller e outros. Uma exposição
mais sistemática foi levada a feito por A. Dempf, H.E. Hengstnberg e

Antropologia Filosófica 88
MÓDULO 6
PARTE I
História das
Concepções
do Homem
na Filosofia
Ocidental V -
A Era Pós-
Moderna
O HOMEM NA ERA

1
PÓS-MODERNA E
OS PROBLEMAS DO
HABITAT HUMANO

1.1.
proximidade no que restou de comunidades e grupos e, por fim, uma
A Pós-Modernidade
lógica hegemônica coordenadora da vida individual, do existente.
Parece se tratar de quatro lógicas, mas não é assim; o que há de
O silêncio é o resultado
fato, que coordena as quatro grandes esferas da vida humana, é uma
do silenciamento24
Os crimes contra a humanidade são lógica mundial que, como num efeito cascata, imprime certa confi-
sempre crimes da humanidade25 guração da vida e certa tessitura social, determina largamente a qua-
lidade das condutas em todos os níveis e põe em exercício diversos
A obra toda de Bauman – na qual vamos enxertar as contribuições – mas articulados – movimentos de violência. Ali estaria o nó górdio
de Boaventura Santos, Dufour e Forrester – parece indicar quatro maior da causalidade histórica da violência atual. Na verdade, trata-
grandes esferas causais para os problemas vividos em nosso tem- se de um movimento descendente de como uma lógica se realiza,
po, para alguns chamado pós-modernidade, e, para Bauman, mo- vindo da esfera mundial ao mais particular das existências, porém,
dernidade líquida, problemas todos com rosto e mãos de violência. inaugurando e sustentando outros movimentos causais que lhe ga-
Haveria uma lógica hegemônica mundial, uma lógica hegemônica rantem a eficácia em termos de domínio. Faremos a seguir a enun-
dentro das sociedades ainda ou em parte reguladas pelos Estados- ciação das raízes de violência que perpassam essas lógicas ou essas
nação, uma lógica hegemônica coordenando as relações sociais e de esferas, sabendo-se, de antemão, que elas apenas são separáveis me-
todologicamente para fins de clareza, pois que, na prática, isto é, na
24 santos, 2007c, p. 55. vida cotidiana, elas estão intrinsecamente imbricadas. É sobre isso
25 forrester, Viviane, 1997, p. 142. que vamos pensar doravante.

Antropologia Filosófica 90
1.1.1.
Na Violência em Movimento Descendente

1.1.1.1.
De uma Lógica Global
Comecemos com o problema da Globalização, num caminho de lon- Esse percurso extraterritorial de um poder desordenado se impõe
ge para mais perto do movimento descendente. Com efeito, para a todas as pessoas do planeta, sobretudo em seus efeitos, e se realiza
Bauman (1999a, p. 67), através de forças anônimas, que ninguém em particular consegue de-
ter ou controlar. Os mercados financeiros globais, essas forças anôni-
O significado mais profundo transmitido
pela ideia da globalização é o do caráter mas, operam num espaço extraterritorial, transmutam as economias
indeterminado, indisciplinado e de supostamente nacionais em economias porosas e impõem suas leis e
autopropulsão dos assuntos mundiais; preceitos ao planeta. A globalização nada mais é que “[...] a extensão
a ausência de um centro, de um painel de
totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida” (bauman, 2008a,
controle, de uma comissão diretora, de um
gabinete administrativo. p. 239). Os Estados não têm recursos suficientes nem liberdade de
manobra para suportar a pressão – pela simples razão de que “[...]
Isso significa que, se não há ninguém sentado à mesa e tudo acon- alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em co-
tece de modo espontâneo e até mesmo avulso, não há também nin- lapso” (bauman, 1999a, p. 73).
guém que se encarregue da responsabilidade dos resultados finais. Isso funciona de um modo relativamente simples de entender: o
Essa natureza desordenada dos processos sociais mundiais acontece Capital é mundial e é livre, está acima das legalidades internas dos
acima dos territórios modernamente coordenados pelo poder insti- Estados, não quer barreiras. Ora, se um determinado Estado tenta
tucionalizado dos Estados soberanos. Com isso, barrar ou impor condições administráveis de circulação ao capital
extraterritorial ou transnacional, tal Estado é punido pelos merca-
A nova “desordem mundial”, apelidada de
“globalização”, tem um efeito realmente dos mundiais, e sua economia impotente é exposta pelas empresas,
revolucionário: a desvalorização da ordem. também transnacionais, encarregadas de medir os índices de riscos;
[...] No mundo que se globaliza, a ordem normalmente, o primeiro efeito de punição é a retirada de assistên-
se transforma no índice de falta de poder e cia dos bancos mundiais. Daí a importância da fragmentação polí-
subordinação (bauman, 2008a, p. 48-49).
tica nos Estados e a importância de Estados fracos, para não haver
oposição real ao livre mercado.

Antropologia Filosófica 91
não servem mais a qualquer propósito
Bauman, em Comunidade, rediz essas características da globali-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
perceptível. O Estado não mais preside os
zação e acrescenta outras decisivas. Com efeito, processos de integração social ou manejo
sistêmico que faziam indispensáveis a regulação
[...] globalização significa que a rede de
normativa, a administração da cultura e a
dependências adquire com rapidez um âmbito
mobilização patriótica, deixando tais tarefas
mundial – processo que não é acompanhado
(por ação ou omissão) para forças sobre as quais
na mesma extensão pelas instituições passíveis
não tem jurisdição. O policiamento do território
de controle político e pelo surgimento de
administrado é a única função deixada nas
qualquer coisa que se assemelhe a uma cultura
mãos dos governos dos Estados; outras funções
verdadeiramente global. Bem entrelaçado com
ortodoxas foram abandonadas ou passaram a ser
o desenvolvimento desigual da economia, da
compartilhadas e assim são apenas em
política e da cultura (outrora coordenadas no
parte monitoradas pelo Estado e por seus
quadro do Estado-nação) está a separação do
órgãos, e não de maneira autônoma (2003,
poder em relação à política; o poder, enquanto
p. 89-90, grifo nosso).
incorporado na circulação mundial do capital
e da informação, torna-se extraterritorial,
enquanto as instituições políticas existentes A globalização tem tudo a ver com o que se chama comumente
permanecem, como antes, locais. Isto leva de pós-modernidade. Com efeito, no tempo da modernidade que
inevitavelmente ao enfraquecimento do
Bauman chama de pesada, havia um compromisso entre capital e
Estado-nação; não mais capazes de reunir
recursos suficientes para manter suas contas trabalho, compromisso que se autofortificava pela mútua dependên-
em dia com eficiência e de realizar uma política cia entre ambos. Isso quer dizer que os trabalhadores dependiam de
social independente, os governos dos Estados empregos para terem o sustento, e o capital dependia de trabalhado-
não têm escolha senão seguirem estratégias res para sua reprodução e crescimento. Nesse tempo, a fábrica era
de desregulamentação: isto é, abrir mão do
tanto a residência do capital quanto do trabalho, lugar de aumento
controle dos processos econômicos e culturais,
e entregá-los às “forças do mercado”, isto é, do capital e o lugar das esperanças e sonhos dos trabalhadores. Ora,
às forças essencialmente extraterritoriais. O
Essa situação mudou e o ingrediente crucial
abandono daquela regulação normativa, outrora
da mudança é a nova mentalidade de “curto
marca do Estado moderno, torna redundantes
prazo” que veio substituir a de “longo prazo”.
a mobilização cultural/ideológica da população,
[...] “Flexibilidade” é o slogan do dia, e quando
outrora estratégia principal do Estado moderno,
aplicado ao mercado de trabalho significa fim
e a evocação da nacionalidade e do dever
do emprego, [...] trabalhar com contratos de
patriótico, outrora sua principal legitimação: 92
curto prazo, contratos precários, cargos sem número que detém os poderes e para o qual as
estabilidade (bauman, 2003, p. 35-36). vidas humanas que evoluem fora de seu círculo
íntimo só têm interesse, ou mesmo existência,
Isso quer dizer que a modernidade se fez liquefeita, fluente, espa- de um ponto de vista utilitário.
lhada, e executa o rompimento entre capital e trabalho, ou melhor, o Ou seja,
capital rompe sua dependência por relação ao trabalho através de uma Está instalada a era do (neo)liberalismo, que
liberdade de movimento jamais sonhada. Sem ninguém para opor re- soube impor sua filosofia sem ter realmente
que formulá-la e nem mesmo elaborar
sistência, e podendo se locomover abertamente, desvinculando-se de
qualquer doutrina, de tal modo estava ela
regras referentes aos processos do trabalho, instaura-se, globalmen- encarnada e ativa antes mesmo de ser notada.
te, um regime de dominação que “[...] mostra-se cada vez mais violento Seu domínio anima um sistema imperioso,
e imprevisível, aumentando desse modo a vulnerabilidade das regiões, totalitário em suma, mas, por enquanto, em
das nações e dos grupos sociais subordinados e oprimidos” (santos, torno da democracia e, portanto, temperado,
limitado, sussurrado, calafetado, sem nada de
2008, p. 192). Isso implica simplesmente o abandono da justiça social
ostentatório, de proclamado. Estamos realmente
como referente último da convivência social. E assim, “A desregula- 93
na violência da calma (forrester, 1997, p. 45).
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

mentação, que resulta na anarquia planetária, e a violência armada se


alimentam mutuamente, assim como se reforçam e revigoram mutua- O lucro continua pairando por sobre a totalidade da vida, das esfe-
mente” (bauman, 2007a, p. 14). E as instituições locais, o que acontece ras do acontecimento humano, e as penetra de tal forma que se torna
com elas? Ora, elas se sentem e se experienciam como se estivessem um pressuposto tão evidente que não entra no rol daquilo que ainda
em luta numa guerra que não podem vencer, tendo que – na prática – precisa ser justificado. Tudo é organizado, previsto, proibido e susci-
subordinar a política social à política econômica transnacional. tado em razão dele, que, dessa maneira, parece inevitável, como que
Com seu jeito direto de reagir, Forrester (1997, p. 136) sentencia: fundido à própria condição da vida a ponto de não se distinguir dela.
As operações de lucro são feitas à vista de todos, mas, nem por isso a
Se a ferocidade social sempre existiu, ela tinha
limites imperiosos, porque o trabalho oriundo lucratividade é vista por todos.
das vidas humanas era indispensável para A forma como o neoliberalismo transnacional se ativa implica que
aqueles que detinham o poder. Ele não o é mais;
pelo contrário, tornou-se incômodo. [...] Jamais o Uma quantidade importante de seres humanos
conjunto dos seres humanos foi tão ameaçado na já não é mais necessária ao pequeno número que
sua sobrevivência. [...] Pela primeira vez, a massa molda a economia e detém o poder. Segundo
humana não é mais necessária materialmente, e a lógica reinante, uma multidão de seres
menos ainda economicamente, para o pequeno humanos encontra-se assim sem razão razoável
para viver neste mundo, onde, entretanto, eles Bauman (2008a, p. 72-73) indica o desdobrar-se dessa lógica:
encontraram a vida. Para obter a faculdade de
viver, para ter meios para isso, eles precisariam As sociedades que um dia lutaram para que seu
responder às necessidades das redes que mundo se tornasse transparente, à prova de
regem o planeta, as redes dos mercados (redes perigos e livre de surpresas, agora encontram
econômicas privadas, transnacionais). Ora, suas capacidades de atuação atadas aos
eles não respondem [...]. Sua vida, portanto, anônimos mutáveis e imprevisíveis de forças
não é mais “legítima”, mas tolerada misteriosas, como as finanças mundiaise as
(forrester, 1997, p. 27). bolsas de valores, ou observam de maneira
impotente, sem serem capazes de fazer muito,
Nisso, Forrester converge plenamente com a posição de Dufour o contínuo encolhimento do mercado de
(2005, p. 24): “[...] o advento da pós-modernidade não deixa de ter re- trabalho, a crescente pobreza, a irrefreável
lação com o advento do que hoje evocamos com o nome de neoliberalis- erosão da terra arável, o desaparecimento das
florestas, os crescentes volumes de dióxido de
mo”. Para Dufour, a partir da década de sessenta do século passado,
carbono no ar e o aquecimento do planeta. As
o novo capitalismo descobriu e impôs uma maneira muito menos coisas – sobretudo as mais importantes de todas
constrangedora e menos onerosa de garantir a sua continuidade com – estão “escapando ao nosso controle”.
ampliação de domínio: não mais continuar a reforçar a dominação
segunda que produzia sujeitos submissos (das instituições sobre os Isso leva a um definhamento e diluição da vontade política, con-
indivíduos, como nas fábricas), mas quebrar as instituições e, assim, duz a uma descrença de que algo significativo possa ser feito coleti-
encarregar-se plenamente da dominação primeira, de maneira a ob- vamente, traduz-se em corrosão da ação solidária que poderia ala-
ter indivíduos dóceis, precários, instáveis, abertos a todos os modos vancar uma mudança radical no estado das relações humanas.
e todas as variações do mercado. Quem controla as sociedades é um certo setor do planeta, com a
Para o neoliberalismo, o importante é que as mercadorias circu- racionalidade que acabamos de expressar e que Boaventura Santos
lem. Para isso, é decisivo que nenhuma instituição – sobretudo com chama de a racionalidade do Norte; daí que o liberalismo, a glo-
referências culturais e morais – se interponha entre os indivíduos e balização e a pós-modernidade são as faces bem sucedidas de um
as mercadorias. É certamente isso que faz dele um neoliberalismo. determinado localismo que se globalizou. “Vivemos num mundo
Não é difícil compreender o cantado discurso de que é preciso não de localização, tanto quanto vivemos num mundo de globalização”
apenas menos Estado, mas menos de tudo o que poderia entravar a (2008, p. 195). A globalização que parte do Norte faz dos outros lo-
circulação da mercadoria, numa relação direta entre controle sem calismos a globalização dos vencidos: os vencidos se igualam glo-
empecilhos da economia e domínio universal dos indivíduos. balmente ao permanecerem locais sob os efeitos devastadores da

Antropologia Filosófica 94
globalização do Norte, que, ao que ainda parece, vai de vento em se alimenta da energia retirada do corpo dos Estados-nações e de
popa como se fosse inexorável. seus membros. As nações organizadas em Estados perdem sua in-
Enquanto isso, mas dentro disto, fluência na direção geral das coisas e, no processo de globalização,
sofrem o confisco dos meios de que precisariam para orientar seu
Roubar os recursos de nações inteiras é chamado
de “promoção do livre comércio”; roubar destino em termos de justiça interna (dentro da nação) e resistir às
famílias e comunidades inteiras de seu meio pressões exteriores. Em concreto, as sociedades não são mais pro-
de subsistência é chamado “enxugamento” ou tegidas pelos seus respectivos Estados, elas agora estão expostas
simplesmente “racionalização”. Nenhum desses
às múltiplas formas de depredação oriunda de forças que elas não
feitos jamais foi incluído entre os atos humanos
passíveis de punição (bauman, 1999a, p.131). conseguem controlar.
Isso quer dizer, em primeiro lugar, que todos os principais proble-

1.1.1.2. mas – os meta-problemas de uma sociedade, aqueles que condicio-


Dominando os Estados nam o enfrentamento de todos os outros – são, em verdade, globais
e, sendo assim, não admitem soluções locais. “Não há e nem pode ha-
Como dizíamos acima, as raízes de violência estão imbricadas como ver soluções locais para problemas originados e reforçados globalmente”
num efeito cascata. Já apontamos algumas dessas imbricações ao (bauman, 2007a, p. 31). Em outras palavras, grande parte do poder
falarmos da lógica neoliberal de mercado transnacional que se con- de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, não mais
figura concretamente como lógica da transformação de tudo em lhe pertence, e sim se afasta na direção do espaço global; quanto à
mercadoria e da livre circulação das mercadorias. Nessa lógica já política – como a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma
apareceu – em primeira aproximação – o lugar dos Estados nacio- ação comum –, é incapaz de interferir com significância na dimen-
nais e algumas das funções a eles destinadas. Agora trataremos de são global, porque permanece local.
outros aspectos dessa imbricação, já caminhando para novas raízes Em segundo lugar, quer dizer que a ideia de Estado de Bem-Estar
do movimento descendente da violência. é uma forma de poder político que vai ficando no passado. Com efei-
Com efeito, “Há provas esmagadoras da íntima vinculação da to, as instituições do Estado de bem-estar são desmanteladas aos
tendência universal para uma radical liberdade do mercado ao pro- poucos e se tornam inoperantes. Uma nação qualquer – e todas as
gressivo desmantelamento do Estado de bem-estar, assim como entre nações, em princípio – fica sem o exercício efetivo das funções pro-
desintegração do Estado de bem-estar e a tendência a incriminar a tetoras do Estado, em termos de sobrevivência dos indivíduos, em
pobreza” (bauman, 1998b, p. 61). De fato, em sua forma atual, ne- termos de segurança interna e externa e em termos de autonomia
gativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que política; em suma, na sua capacidade de justiça social. Diante das

Antropologia Filosófica 95
pressões e ditames do mercado, o Estado lava as mãos às penúrias de vez mais vazio de questões efetivamente públicas. Isso significa que
seu povo, no sentido de que, na prática, desiste dele. A consequência o Estado não tem mais capacidade, necessidade, nem vontade de li-
mais devastadora – e moralmente criminosa, porque violenta – é a derança espiritual da nação que o fez ser; o Estado deixa correr de
exclusão nas discussões públicas da questão da privação material, propósito ou por omissão, e que cada um se vire como puder. Sem ca-
na qual está a origem mais funda da desigualdade e da injustiça. pacidade: por conta da invasão do global e exigência externa de faci-
Em seguida, significa que, preso às malhas da lógica de mercado litação interna; sem necessidade: porque os indivíduos – muitos – se
transnacional, o Estado deve executar um desvio de foco. Com efeito, sentem atraídos pelo potencial de liberdade aferido pelo neolibera-
lismo, e pretendem dispensar a intromissão de leis, de barreiras, de
O Estado contemporâneo deve procurar
Estado; sem vontade: porque a sociedade neoliberal, pós-moderna,
outras variedades, não econômicas, de
vulnerabilidade e incerteza em que possa basear parou de se questionar, tornou-se progressivamente individualizada
sua legitimidade. Essa alternativa parece ter e pôs em desuso as questões do bem comum, as causas buscadas e
sido localizada, nos últimos tempos, [...] na defendidas em comum (bauman, 1997).
questão da segurança pessoal: ameaçase perigos Em síntese, nas palavras de Dufour (2005, p. 206-207):
aos corpos humanos, propriedades e hábitos
provenientes de atividades criminosas, a conduta [...] o poder atual não “quer” mais nada, nada
antissocial da “subclasse” e, mais recentemente, mais que a melhor adaptação possível a uma
o terrorismo global (bauman, 2005b, p. 68). conjuntura e a uma evolução que o ultrapassem.
A “modernização” (das empresas,da escola, das
instituições...) se apresenta como um gigantesco
É à mídia – também controlada e direcionada globalmente – que
tropismo em escala planetária, uma espécie de
cabe a tarefa de manter esse desvio de foco, pelo alarde e alerta di- lei natural, um empurrão surdo e irreprimível da
ários das violências que estão fora do circuito do mercado: os pro- evolução. É aqui a “força das coisas” que exige
blemas sociais são cada vez mais criminalizados, e as preocupações submissão e adaptação vitais e não os detentores
com a insegurança econômica e com a subsistência passam a ser de de um poder que se tornou frouxo, mole,
secundário e gestionário.
domínio estritamente privado e, normalmente, individual.
Em quarto lugar, significa que, se o poder – monopólio do Estado O Estado deixa de trabalhar o território econômico para a nação
moderno – se distancia das ruas e do mercado, das salas de reuni- e, com isso, perde sua própria razão histórica de ser. E ainda: as so-
ões e dos parlamentos, dos governos nacionais e locais, para fora do ciedades economicamente avançadas não têm o menor interesse em
alcance do controle dos cidadãos, na extraterritorialidade das redes custear os Estados; a lógica frenética de mercado não dá tempo de
eletrônicas, então é compreensível que o espaço público esteja cada pensar em ninguém.

Antropologia Filosófica 96
1.1.1.3.
Dissolvendo os Laços da Sociedade

Vejamos agora uma terceira esfera de raízes de violência em movi- Em segundo lugar, a sociedade moderna, na versão sólida, ao
mento descendente, a que chamaremos de sociedade sem laços. 26
destituir as comunidades históricas e as corporações estreitamente
Vamos aos poucos chegar aos existentes concretos, mas, primeiro, entrelaçadas do seu papel de definidoras das regras de proteção e de
devemos considerar que a Sociedade e o Estado ainda não se acaba- monitoramento de sua aplicação, e ao substituí-las pelo dever indi-
ram, ainda não sucumbiram de vez sob a lógica de mercado global. vidual do interesse, do esforço pessoal e da autoajuda, criou para si
Porém, é certo e sentido que Mercado mundial e Estado domesticado mesma uma areia movediça: a da contingência, na qual se move hoje
achatam a Sociedade e a corroem até o mais íntimo. em sua versão líquida; a insegurança existencial e os temores múlti-
Para começar, na esteira do que já dissemos, a sociedade moder- plos são seus pratos cotidianos. Dito de outro modo:
na se definia como sociedade de trabalho; a sobrevivência das co-
Os vínculos humanos são confortavelmente
munidades históricas teve relação com o advento do Estado e com a
frouxos, mas, por isso mesmo, terrivelmente
organização do trabalho, e os grandes problemas do Estado moderno precários, e é tão difícil praticar a solidariedade
ligaram-se fundamentalmente aos problemas – sobretudo relações quanto compreender seus benefícios, e
– de trabalho. A título de exemplo, o pensamento marxiano é, talvez, mais ainda suas virtudes morais. O novo
a prova cabal. Entretanto, nas sociedades de hoje, a condição primei- individualismo, o enfraquecimento dos vínculos
humanos e o definhamento da solidariedade
ra e básica a tudo, isto é, o sustento de uma pessoa, tornou-se por de-
estão gravados num dos lados da moeda cuja
mais fragilizada, o desemprego nos países ricos, nos países pobres, outra face mostra os contornos nebulosos da
no planeta como num todo tornou-se estrutural: simplesmente não “globalização negativa” (bauman, 2007a, p. 30).
existe trabalho suficiente para todos. Isso significa: “Num mundo
de desemprego estrutural, ninguém pode se sentir seguro [...]. Ninguém Em seguida, o desaparecimento progressivo das outras redes de
pode sentir-se realmente insubstituível [...]. E se os seres humanos não segurança – autotecidas e automantidas – que funcionavam como
contam, os dias de suas vidas também não” (bauman, 2008a, p. 197). uma segunda linha de defesa e proteção social. Trata-se do desman-
telamento das relações próximas de vizinhança e do esfacelamento
da família, onde podíamos nos retirar para curar as feridas deixadas
26 Em diferentes momentos, em sua obra A Pedagogia entre o Dizer e o pelas demandas do trabalho e, em última instância, da sobrevivên-
Fazer, Philippe Meirieu prefere a expressão “sem vínculos sociais”.
Cf. meirieu, Philippe. A Pedagogia entre o Dizer e o Fazer. São Paulo:
cia. A pragmática das relações inter-humanas é agora administrada
Artmed, 2002. Ver especialmente a página 62. e permeada pelo espírito do consumismo, que coloca o Outro como

Antropologia Filosófica 97
fonte potencial de experiências e usos prazerosos, o que inibe a pos- direções, perfazendo conexões e desconexões aleatórias numa quan-
sibilidade de geração de laços duradouros. Experienciamos, hoje, a tidade infinita de permutas. Os indivíduos estão expostos aos capri-
dissipação e o esquecimento das habilidades relacionais com a con- chos do mercado de mão de obra e de mercadorias, o que estimula
sequente desintegração das parcerias, solidariedades e grupos. Isso a divisão, incentiva atitudes competitivas e solapa os alicerces da
significa que os laços e parcerias na versão moderna atual são vistos colaboração e do trabalho em conjunto. O movimento do indivíduo
como coisas a serem consumidas, não produzidas, e, como tal, sujei- para fora de Si e na direção do Outro só anda o tanto proporcional ao
tos aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de benefício pessoal. Não há pensamento de planejamento da vida em
consumo, ou seja, enquanto houver satisfação. comum. Com isso, “[...] uma vida assim fragmentada estimula orienta-
Em quarto lugar, a autonomia da comunidade local, que se basea- ções ‘laterais’, mais do que ‘verticais’” (bauman, 2007a, p. 9).
va na densidade de comunicação dialogada, acompanhada por uma Em seguida, “[...] uma sociedade ‘aberta’ é uma sociedade exposta
intensidade de relações diárias, perde celeremente a importância. O aos golpes do destino” (bauman, 2007a, p. 13). Com efeito, ao se tornar
espetáculo da informação globalmente produzida e transmitida – mais urbana e concentrar altos índices de presença humana – sem
com autoridade pautada nos números e no poder de convencimento – que “estar bem perto” signifique proximidade –, a sociedade torna-se
vence a autoridade local. Com isso, as chances de se formar uma opi- um campo de batalha, uma guerra contínua por espaço. Sem as ân-
nião comunitária autônoma, feita em casa, que coloque os recursos coras locais de convivência e de referência históricas, longe de serem
sob controle comunitário autônomo, tornam-se progressivamente viveiros de comunidades, “[...] as populações locais são mais parecidas
obscuras, quando não nulas. O resultado é a desvalorização do lugar, com feixes frouxos de extremidades soltas” (bauman, 1999a, p. 31).
a segmentação dos laços humanos, a transformação das identidades Em sétimo lugar, a exemplaridade negativa dos shoppings, esses
em máscaras usadas sucessivamente, a transmutação da história de templos de consumo pós-moderno e fenômeno especificamente ur-
vida numa série de episódios que perduram na memória apenas en- bano. Desse modo,
quanto outra novidade episódica não vier ocupar seu lugar. De modo
[...] os shopping são construídos de forma a
que vai sendo bem pouco o que no mundo podemos considerar sóli- manter as pessoas em circulação, olhando ao
do e confiável, e sobre o que possamos traçar um itinerário de vida. redor, divertindo-se e entretendo-se sem parar
Em quinto lugar, “[...] a retração da segurança comunal retira da ação – mas de forma alguma por muito tempo – com
coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e solapa os inúmeras atrações; não para encorajá-las a parar,
a se olhar e conversar, a pensar em analisar
alicerces da solidariedade social” (bauman, 2007a, p. 8). Nesse senti- e discutir alguma coisa além dos objetos em
do, a sociedade, em vez de ser vista como uma estrutura, é cada vez exposição – não são feitos para passar o tempo
mais percebida e tratada como uma rede que se move em múltiplas de maneira comercialmente desinteressada.

Antropologia Filosófica 98
Isto implica em efeitos éticos de degradação
É um estrito problema de agorafobia!
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
dos espaços públicos. Com efeito, os locais
de encontro eram também aqueles em que se Em oitavo lugar,
criavam as normas – de modo que se pudesse
Onde os negócios familiares e comunais tinham
fazer justiça e distribuí-la horizontalmente, assim
capacidade e disposição de absorver, empregar e
(re)unindo os interlocutores numa comunidade,
sustentar todas as pessoas recém-nascidas, e na
definida e integrada pelos critérios comuns de
maioria das vezes assegurar-lhes a sobrevivência,
avaliação. Por isso, um território despojado de
a rendição diante das pressões e a abertura
espaço público dá pouca chance para que as
de seu próprio território à circulação irrestrita
normas sejam debatidas, para que os valores
do capital e das mercadorias tornou tudo isso
sejam confrontados e negociados (bauman,
inviável (bauman, 2005b, p. 92).
1999a, p. 33).

A experiência pós-moderna da vida urbana como um todo é que Dufour (2005, p. 204-205) é aqui bem específico:
indica a desintegração das redes protetoras tecidas pelos laços hu-
A família não socializa mais, tanto tende a
manos; a experiência devastadora do abandono e da solidão, com- se tornar a simples provedora daquilo que a
binada com a de um vazio interior, a experiência de horror aos de- mídia e a publicidade são as prescritoras. No
safios que a vida pode colocar e a experiência da ignorância diante seio dessa entidade afetiva e financeira assim
como no seio da escola, tende a desaparecer a
de opções autônomas e responsáveis. É a expressividade vivida num
diferença geracional, pais e filhos, professores
ambiente que, normalmente, é concebido de modo artificial, sem e alunos doravante tratando-se de igual para
aquela aderência da convivência, sem proximidade continuada. A igual. [...] Tomado no inédito de tal situação,
vida urbana – e nela, simbolicamente, os shoppings – carrega em si o papel parental de representar para os filhos
o cálculo que garante, por um lado, o anonimato e, por outro, a espe- um mundo ao qual frequentemente só se adere
coagido, esse papel, fundamentalmente austero
cialização funcional do espaço. Daí um grande problema:
e tão ingrato, de legatário de um patrimônio
[...] os habitantes da cidade enfrentam um cultural que não se possui como propriedade
problema de identidade quase insolúvel. A se torna quase insustentável. Os velhos são
monotonia impessoal e a pureza clínica do sempre os velhos do velho mundo, condição
espaço artificialmente construído despojaram- necessária a seu necessário ultrapassamento,
nos da oportunidade de negociar significados para que os jovens rejuvenesçam por
e, assim, do know-how necessário para chegar sua própria cabeça e sob sua própria
a um acordo com esse problema e resolvê-lo responsabilidade aquilo que herdaram.
(bauman, 1999a, p. 53). 99
De fato, mesmo que a família ainda se reúna em frente a tela da sociedade civil desabam sob a desregulamentação maciça” (bauman,
televisão e pareça que ali há participação e “estar juntos”, isso pode 2007a, p. 23). E precisamos de comunidade, precisamos dos Outros
não passar de uma arcada de diversão. Praticamente fica soterrada até para começar a viver. “A invasão e a colonização da communitas,
no passado a reunião familiar ou o encontro para a leitura, a conver- lócus da economia moral, pelas forças do mercado consumidor consti-
sa e o canto. Frequentemente, para quem pode – e muitas das vezes tuem o mais aterrador dos perigos que ameaçam a forma atual de con-
quem não pode também gostaria –, há muitas televisões numa casa, vívio humano” (bauman, 2004, p. 94). Em síntese, celeremente nos
superequipadas com estéreos de uso pessoal, ou outras maquinarias encaminhamos para a seguinte situação cartográfica: um mecanis-
para o deleite individual entocadas nos quartos (bauman, 1997). mo econômico mundial atravessando e avassalando uma multidão
Parece-nos que as águas turbulentas vêm de fora, mas já nos habi- universal de indivíduos.
tam em muito por dentro. Com Bauman, estamos sentindo falta da co-
munidade e, sem ela, sentimos falta de segurança para uma vida feliz;
1.1.1.4.
Anulando a Subjetividade
mas, o nosso mundo – do jeito que ele vai – já nem consegue nos pro-
meter essa segurança imprescindível. E, contudo, precisamos de co- Se temos problemas muitíssimo graves advindos de uma Sociedade
munidade, e assim, continuamos sonhando, tentando e fracassando. celeremente sem laços, abandonada a si própria pelo Estado, e am-
bos domesticados pela força invisível, silenciosa e contundente da
A insegurança afeta a todos nós, imersos que
estamos num mundo fluido e imprevisível lógica dos mercados transnacionais, todos esses problemas vêm, de
de desregulamentação, flexibilidade, alguma forma, se abater sobre os existentes. São sempre os existen-
competitividade e incerteza, mas cada um de tes reais que têm problemas, para quem as situações reais da vida
nós sofre a ansiedade por conta própria, como
fazem problema. A subjetividade, a individualidade, a identidade –
problema privado, como resultado de falhas
pessoais e como desafio ao nosso savoir faire e à como queiramos chamar – de cada existente é como o fole da san-
nossa agilidade (bauman, 2003, p. 129). fona que hora se expande (movimenta-se para fora de Si), hora se
contrai (movimento para dentro de Si) para tocar a música da vida
Em suma, para compreender essas oito faces da sociedade, basta de cada Um. Nos tempos em que vivemos, está bem difícil para cada
compreender como e porque acontece uma radical “[...] dissipação Um – em Si mesmo e por Si mesmo – fazer em bom tempo e em bom
das redes comunitárias e a forçosa individualização do destino” (bau- som o duplo movimento de interioridade e exterioridade para cons-
man, 1999a, p. 109). Estamos em relações sem laços ou de laços em truir a partir de Si a música de Si mesmo.
decomposição (bauman, 2008a, p. 198). Estamos em rápido envelheci- Essa esfera de realidade – talvez a única realidade verdadeira,
mento de hábitos (bauman, 2007a, p. 9); “[...] os bastiões de defesa da porque é ali que acontece a vida e a morte – é, por um lado e por

Antropologia Filosófica 100


assim dizer, a depositária de todas as violências vindas das esferas O paradoxo, contudo, é que para oferecer um
maiores da vida em comum; mas, por outro lado, é ela também que mínimo de segurança e assim desempenhar uma
espécie de papel tranquilizante e consolador, a
– por dançar numa certa música repetitiva e hegemônica que vem
identidade deve trair sua origem; deve negar
de fora, de cima e de alhures (movimento descendente da violên- ser “apenas um substituto” – ela precisa invocar
cia) – pode fazer – e faz – das violências recebidas, ou por medo de o fantasma da mesmíssima comunidade a que
recebê-las, um moto suficiente para aumentar a avalanche de vio- deve substituir. A identidade brota entre os
lências da humanidade. O sujeito, o indivíduo, o homem particular, túmulos das comunidades, mas floresce graças à
promessa da ressurreição dos mortos (bauman,
é a quarta esfera de raízes de violência, mas vista neste momento
2003, p. 20).
em sua conjunção com a (s) lógica (s) que, em nosso tempo, pratica-
mente lhe determina(m) o modus de existência. Vejamos, a seguir, A modernidade líquida é o tempo em que os homens e as mulheres
alguns elementos dessa aproximação ao acontecimento problemá- são provocados a trocar uma boa parte de suas possibilidades de se-
tico da existência individual. gurança por um quinhão de felicidade, uma felicidade atrelada à rapi-
Um primeiro e grande problema do indivíduo num mundo como dez da oferta de novidades; daí, a imagem de Si mesmo se parte numa
o nosso é o problema da tessitura da identidade. Identidade talvez coleção de instantâneos, numa maleabilidade infinita, e cada pessoa
101
seja a palavra do dia e a busca mais comum na cidade dos existentes; se torna – por vontade ou por força – a única responsável por exprimir
ela se torna centro de atração e de paixões porque, no fundo, ela é a seu próprio significado. Nas palavras de Bauman (1998b, p. 36):
tentativa de substituir a comunidade: substituta do lar supostamen-
Em vez de construir sua identidade, gradual
te natural ou do círculo de relações aconchegantes para os tempos e pacientemente, como se constrói uma casa,
gélidos do mundo ali fora. Mas o desaparecimento progressivo – e temos uma série de novos começos, que se
talvez irreversível – das comunidades históricas e suas racionalida- experimentam com formas instantaneamente
des alternativas aos ditames do instrumentalismo econômico indi- agrupadas, mas facilmente demolidas, pintadas
umas sobre as outras: uma identidade de
vidualizante deixa, por ora, vazio o lugar a ser preenchido. A busca
palimpsesto. Esta é a identidade que se
de identidade está mais para a ordem da livre imaginação do que ajusta ao mundo.
para a ordem da empiria. Tanto a comunidade quanto a identidade
não estão à disposição, nem rapidamente ao alcance da mão, em E a dificuldade se agrava. O existente jogado pelos ventos da no-
nosso mundo celeremente privatizado, individualizado e globaliza- vidade mercadológica e referido apenas a Si mesmo experimenta
do e, daí mesmo, tanto uma quanto a outra são desejadas com ardor. uma série de problemas, a começar pela preocupação com a sobre-
E eis o problema em forma de paradoxo: vivência e de não ser deixado para trás. O dinamismo que coordena

Antropologia Filosófica
a resolução dos problemas faz com que estes não sejam cumulati- um existente que só tem a Si mesmo – se é que já se tem –, uma aderên-
vos nem sejam enxertados nos problemas dos Outros, na perspec- cia individualista é praticamente uma imposição de sobrevivência:
tiva de desembocarem numa causa comum. A individualização dos
Sou livre se, e somente se, posso agir de acordo
problemas e de suas soluções faz com que a companhia dos Outros com minha vontade e alcançar os resultados
apenas preste o serviço de uma referência em como sobreviver em que pretendo alcançar; isso significa que
nossa própria solidão, ou que os riscos da vida precisam ser enfren- algumas outras pessoas serão inevitavelmente
restringidas em suas escolhas pelos atos que
tados cada um por Si mesmo. A individualização aparece, assim,
eu executei [...]. Assim, a liberdade depende
como corrosão e desintegração da cidadania. Com Joël Roman (1998, fundamentalmente de quem é mais forte
p. 66)27: “[...] o interesse geral não é nada mais do que um sindicato (bauman, 1998b, p. 40).
de egoísmos, envolvendo as emoções coletivas e o medo do vizinho”.
Como não reconhecer que fomos individualizados? Como não Liberdade demais com segurança de menos. O individualismo
reconhecer que podemos experienciar uma liberdade praticamente assume, então, a figura da autorresponsabilidade individual como
ilimitada e, ao mesmo tempo, os temores mais insuportáveis quan- substituto da solidariedade social. Ou assim: sem apoio em soli-
to às possibilidades e usos da mesma liberdade? Bauman (2008a, p. dariedades, “[...] passa a ser tarefa do indivíduo procurar, encontrar e
69) responde: praticar soluções individuais para problemas socialmente produzidos”
(bauman, 2007a, p. 20).
A lacuna entre o direito à autoafirmação e à
capacidade de controlar os cenários sociais que Disso resulta que, hoje, temos uma grande Àgora anônima de in-
tornam tal autoafirmação exequível ou irrealista divíduos solitários ao lado – e não diante de – de Outros indivíduos
parece ser a principal contradição da “segunda solitários, que, ao voltarem para casa, renovam e acrescem a sua pró-
modernidade”; uma contradição que precisamos
pria solidão. Esse é o terceiro elemento problemático da existência
aprender a dominar coletivamente por meio
de tentativas e erros, de reflexão crítica e individual: o paradoxo entre mesma solidão (geral) e solidão pes-
experimentações corajosas. soal. Solidão para prover a continuidade da vida, solidão diante da
insegurança, solidão diante dos medos recorrentes, solidão na an-
Um segundo elemento problemático envolvendo a existência in- gústia diante do risco que os Outros representam, solidão para signi-
dividual, e que se prolonga vindo do primeiro, é a exacerbação do in- ficar a vida e a morte. A mesma solidão em todos e nem por isso vetor
dividualismo como mentalidade e como forma de vida. De fato, para de uma causa comum. Solidão como falta de presenças significantes
abertas como refúgio, solidão como ausência de recurso ou – o que é
27 ROMAN, Joël. La Démocratie des Individus. Paris: Calmann-Lévy, 1998. o mesmo – solidão no aleatório e imprevisível.

Antropologia Filosófica 102


o arrimo de seu fundamento exclusivamente
A incerteza individualiza, divide em vez de unir, e, como não
no real, o da diferença sexual e da diferença
existe jeito de dizer quem sobreviverá, até mesmo a ideia de interes- geracional. Sendo recusada toda referência
ses comuns torna-se anacrônica, nebulosa e, por fim, vazia de signi- simbólica suscetível de garantir as trocas
ficado. Tudo – proposta neoliberal – deve ser vivido sozinho; já vão humanas, há apenas mercadorias que são
trocadas num fundo ambiente de venalidade e de
um tanto longe as organizações militantes da classe trabalhadora
niilismo generalizados no qual somos solicitados
por que: a tomar lugar (dufour, 2005, p. 208).
É bem próprio da “antropologia neoliberal”
reduzir a humanidade a um grupo de indivíduos Eis o neoliberalismo realizando o velho sonho do capitalismo: ex-
calculadores movidos exclusivamente por seus
tensão da mercadoria até os limites do mundo e recuperação para do-
interesses racionais, em concorrência selvagem
uns com os outros (dufour, 2005, p. 203). mínio de velhas questões que pertenciam ao reino do privado, ou até
mesmo da intimidade – como, por exemplo, a subjetivação, a perso-
Aproximamo-nos de um quarto elemento da existência individu- nação, a sexuação...) –, para fazê-las entrar na órbita da mercadoria. Se
al que se envolve com a violência em movimento descendente. Agora tudo vira mercadoria, se mercadoria é para consumir e se consumir 103
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

já nos aproximamos um pouco mais do acontecimento, do movi- é o que dá prazer, então temos, em realidade, a vitória do princípio de
mento na interioridade do existente. Assim, prazer sobre o princípio de realidade, ou a colonização do segundo
pelo primeiro, ou, ainda, a transmutação do primeiro no segundo.
A pós-modernidade não é a simples queda
dos ideais do eu, nem um levante em massa É bem possível que a maioria de nós, pós modernamente indivi-
contra os ídolos. [...] estamos na época da dualizados sem ainda termos sido indivíduos, alinhavados à lógica
fabricação de um “novo homem”, de um sujeito de mercado como consumidores de necessidades criadas, possui na
a-crítico e psicotizante, por uma ideologia
cabeça uma mercadorialogia pela qual o olhar dos olhos imediata-
também conquistadora, mas provavelmente
muito mais eficaz do que o foram as grandes mente vê, distingue e quer se apropriar do que possa aparecer como
ideologias (comunistas e nazistas) do século mercadoria. Lévinas diria de novo que estamos com um tumor na
passado. O que o neoliberalismo quer é um memória, um tumor feito não apenas à imagem e semelhança da
sujeito dessimbolizado, que não esteja mais mercadoria, mas com as propriedades mesmas da mercadoria: o
nem sujeito à culpabilidade, nem suscetível de
próprio pretenso sub-jectum e todos os outros pretensos sujeitos
constantemente jogar com um livre arbítrio
crítico. Ele quer um sujeito incerto, privado de não passam da condição de sujeitados mercadorialógicos. Temos,
toda ligação simbólica; ele tende a instalar um pois, um mecanismo mundial de transformação de tudo em mer-
sujeito unissexo e “não-engendrado”, isto é, sem cadoria e uma multidão universal de casas ambulantes individuais
da mercadoria. Parece que, em termos de constituição de uma sub- por mudá-lo, o passado é só um passado: ele não pode mais ofere-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

jetividade, capaz de simbolizar e significar a si mesma, o tumor na cer fundamentos seguros para uma perspectiva de vida presente
memória é bem maligno. E ele tem o tamanho do confinamento soli- aos existentes flutuantes, à deriva e, como tal, fora de controle de Si
tário do ego (beck, apud bauman, 2008a, p. 69), como uma sentença mesmos. Como pode haver solidez, numa vida sem passado, se “[...]
de massa. mais nenhuma figura do Outro, mais nenhum grande Sujeito vale verda-
Com Dufour, a incapacidade de constituir subjetividade e de sig- deiramente na nossa pós-modernidade?” (dufour, 2005, p. 58). Na luta
nificar a Si mesmo produz a dessimbolização do indivíduo. Isso sig- entre a facticidade e o instante, o último vence em largas passadas.
nifica que O passado, como o tempo que já foi vivido e como lugar das sínteses
O limite absoluto da dessimbolização é que se operaram a partir da vida e operaram a vida dos existentes, é
quando mais nada vem assegurar e assumir o hoje uma voz emudecida, antes mesmo de querer dizer o seu dito ao
encaminhamento dos sujeitos para a função
instante e ao futuro. E sem passado, uma interioridade não se faz e –
simbólica encarregada da relação e da busca
de sentido, [...] quando a relação de sentido se se fizer – não pode durar por falta de tempo para amarrar a âncora
é sempre em detrimento do próprio da do tempo mesmo ao fio do sentido em cada existência.
humanidade, a discursividade, e em proveito A destituição da moralidade nos existentes parece-nos consti-
da relação de forças. O que o novo capitalismo tuir-se no próximo grande problema. De fato, o nosso tempo atin-
visa hoje é o núcleo primeiro da humanidade:
ge os existentes com o pluralismo de valores e de normas, tornan-
a dependência simbólica do homem. Não
é surpreendente, pois, que o nosso espaço do cada escolha moral intrínseca e irremediavelmente, no mínimo,
social se encontre cada vez mais invadido pela ambivalente. Retomemos um problema já dito: a avalanche das ofer-
violência comum, pontuada por momentos de tas que se nos oferecem à liberdade de escolha jamais foi experimen-
acme da hiperviolência, acidentes catastróficos
tada antes, mas também – paradoxalmente – nos lançam em estado
que as condições ambientes tornam, doravante,
sempre possíveis (2005, p. 198). de falta de certeza que chega a beirar à angústia. Sem referências à
comunidade, aos Outros, como desde sempre inclusos na interiori-
Eis, de novo, o tumor na memória, na interioridade toda, como dade, os existentes experimentam a comensurabilidade das morais
mercadoria consumidora e consumível de alma inteira. difusas e difundidas, e escolhem nos marcos do relativismo moral.
Quanto ao quinto elemento, ele diz respeito ao fato de que, para os Ora, se toda norma e valor são relativos, e se toda escolha só vale
existentes de hoje, globalmente individualizados e submersos na ló- para aqui e agora, então a densidade vivida na história – passado –,
gica da mercadoria instantânea, o passado praticamente não conta. que os fez emergir, deve ser esquecida e as consequências das esco-
Com efeito, para o tipo de presente que vivemos, se for vão o esforço lhas ignoradas. Decorre daí, ainda reforçada pela fragmentariedade 104
disseminado nas populações, de recusa de toda
induzida tecnologicamente, que a crise moral transborda em crise
hierarquia de valores [...], até mesmo de recusa
ética, que, por sua vez, obscurece a natureza sistêmica do habitar de todo valor. Tratar-se-ia, nesse “niilismo
humano e desconjunta o eu moral. É assim que a moral deixa de ser cansado”, até mesmo esgotado, de dar lugar
moral e a Ética se torna um discurso paradoxal. A resultante geral é central a “tudo o que alivia, cura, tranquiliza,
entorpece, sob vestimentas diversas” – a
uma sociedade de risco.
mercadoria ocupando hoje essa posição chave.
Se é assim, a destituição da moral é também o que, mais velada-
mente, mas também com contundência, é mais visado pela lógica de Entorpecido, não se torna impossível ao sujeito fundar-se
mercado neoliberal. Com efeito, muitos dos valores morais inseridos sozinho?
e oriundos das culturas possuem um peso histórico que afronta o O oitavo elemento é o resultado, o coroamento de todos os outros
novo espírito do capitalismo em seu ideal de fluidez, de transparên- e a realização vitoriosa mais funda do neoliberalismo na interiorida-
cia, de circulação e de renovação permanentes. Esse espírito precisa de humana. Dufour é de novo, e contra a vontade, o porta-voz dessa
de um existente liberado, no sentido de desligado de toda relação de má notícia. Para ele,
dependência a valores historicamente cristalizados. A moralidade 105
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

No momento da vitória total do capitalismo e


em si mesma é um empecilho ou – no mínimo – um concorrente ao da celebração do “capital humano”, da gestão
domínio neoliberal. Se é para dominar, que o domínio seja comple- esclarecida dos “recursos humanos” e da “boa
to: esse é o espírito do nosso capitalismo! A moralidade é um foco direção ligada ao desenvolvimento humano”,
de resistência à colonização neoliberal e, por isso, ela deve ser aba- essas falas maliciosas guardam todo o seu sal.
Elas muito simplesmente deixam entender que
lada e erradicada lá onde ela renasce, vive, emerge e se exterioriza: o o capitalismo consome também o homem. [...]
existente. Eis uma das grandes vitórias neoliberais: a moralidade no Uma discreta antropofagia perduraria sob o
existente se esvai num movimento duplo de corrosão – de fora para progresso? É bem possível. Mas, então, o que
dentro como relativização e de dentro para fora como esquecimento. hoje o capitalismo consumiria? Os corpos? Eles
já são utilizados há muito tempo e a noção já
Daí, o que Dufour (2005, p. 190-191) chama de niilismo cansado:
antiga de “corpos produtivos” é testemunha
O “niilismo cansado” [...] reenvia a um momento disso (Marx). A grande novidade seria a
incerto onde todos os valores se tornam redução dos espíritos. [...] Esse traço nos parece
cinzentos (o contrário do niilismo lúcido que propriamente caracterizar a virada dita “pós-
critica os falsos valores). Esta circunstância moderna”: o momento em que uma parte da
se apresentaria hoje como um fato social e inteligência do capitalismo se pôs a serviço da
histórico, manifestando-se por um fenômeno “redução das cabeças”(2005, p. 10).
É a confirmação do tumor na memória! determinações do topo social. Mas é preciso lembrar que no acon-
A redução das cabeças, assim determinada, acaba dizendo para tecimento da violência a partir de suas raízes o que aparece, num
onde estamos indo ou corremos o risco de nos tornar. A redução das primeiro momento, como um efeito, como violência feita, pode,
cabeças é a transformação de um ser humano num sujeito psicoti- num segundo momento, aparecer como o início de um novo enca-
zante, isto é, flutuante, aberto a tudo e sem referências de interiori- deamento, de ramificações de novas raízes que, por sua vez, engen-
dade. É quando não há mais cerne na interioridade e todos os ventos dram novas violências. É que no caso da violência há raízes axiais e
neoliberais podem – aí nesse vazio – fazer sua curva mercadológica. pivotantes – como a lógica de mercado mundial – mas também há
Para que o vazio seja ocupado pelo nazismo ou pelos genocídios atu- rizomas do tipo deleuzeano, que em si já contêm as condições para
ais do calmo é apenas uma questão de data! Para que o vazio seja esparramar mais violência. Esses rizomas, ao se instalarem nas di-
ocupado pelas enfermidades pós-modernas ou pelo subterfúgio do ferentes esferas da vida humana, além de se esparramar por todos os
aprisionamento em massa dos pobres por serem criminalmente lados, funcionam como um reforço da lógica hegemônica mundial e
pobres, isso bem que ocorre nas mesmas datas! E, contudo, como lhe permitem uma colonização até o mais recôndito da experiência
pensar a subjetividade de um existente individualizado, sujeitado e humana. Vejamos algumas dessas raízes, a espalhar-se e subir.
vazio? Como construir subjetividades se as pessoas querem fugir à
necessidade de pensar em nossa condição infeliz?
1.1.2.1.
Pelo Enraizamento da Indiferença
1.1.2.
O movimento ascendente da violência começa nos existentes, na in-
Na Violência em Movimento Ascendente terioridade e na exterioridade dos existentes. E, ali, ele se aglutina
Se até aqui tivemos o movimento descendente de compreensão de nas múltiplas formas da indiferença, nas suas condições e na sua
como se estruturam as raízes e acontece a violência, parece-nos efetivação. Em primeiro lugar, como primeira condição da indiferen-
plausível também um caminho de volta, depois de termos visto o ça, o silenciamento do questionamento. Todos os Autores que nos
acontecer do primeiro. Partimos do mundial e descemos à particula- apoiam aqui são unânimes quanto a esse fenômeno. Mas a formu-
ridade da vida dos existentes; agora, vamos indicar outras raízes his- lação de Castoriadis, citada por Bauman, parece-nos decididamente
tóricas da violência partindo dos existentes para chegar ao mundial, contumaz. Ela diz assim:
mas considerando os estragos e as corrosões efetivadas nas diferen-
[...] o problema da condição contemporânea de
tes esferas da realização das vidas humanas pela lógica da transfor- nossa civilização moderna é que ela parou de
mação mercadológica. Esse é um movimento ascendente, como se questionar-se. [...] O preço do silêncio é pago na
pudéssemos fazer um rapel ascendendo das raízes cá embaixo às dura moeda corrente do sofrimento humano.

Antropologia Filosófica 106


[...] Questionar as premissas supostamente
violento e localiza o leito de alguma humanidade no serpenteado
inquestionáveis do nosso modo de vida é
provavelmenteo serviço mais urgente que do rio. Repitamos a seguinte pergunta, como amostra de questiona-
devemos prestar aos nossos companheiros mento: Como construir subjetividades se ‘as pessoas querem fugir à
humanos e a nós mesmos (castoriadis, apud necessidade de pensar em nossa condição infeliz’?
bauman, 1999a, p. 11).
Em segundo lugar, a raiz-indiferença. Esse fenômeno é simples-
Depois que o neoliberalismo conseguiu se tornar hegemônico mente trágico para a vida humana; e ele pode tanto vir antes quan-
nas quatro esferas supracitadas, depois que os Estados deixaram de to depois do silenciamento do questionamento, mas, de qualquer
ser de Bem-Estar, depois que os vínculos e laços sociais e comu- modo, os dois sempre andam juntos. Na voz de Bauman (1998b, p.
nitários foram profundamente corroídos, depois que cada existen- 95): “[...] existe um ensurdecedor silêncio, essa esmagadora indiferença,
te se viu individualizado na tarefa de dar conta da totalidade de Si esse desnorteante alheamento, o ‘lavo as minhas mãos’”. A indiferença
contando só consigo mesmo, depois de o indivíduo ser reduzido à quer dizer que as coisas que dizem respeito aos Outros existentes
mercadoria consumidora de mercadoria e de ser reduzido em sua não me tocam, não me ferem, não me importam. A indiferença é
cabeça, depois de tudo isso e possivelmente mais, não é a toa que virar o Rosto ao Rosto, é deixar escorrer sangue no Rosto e na in-
venha o silêncio do questionamento. Todavia, aquilo que parece terioridade de outrem sem remeximento na própria interioridade e
efeito engendra muitos efeitos, ou seja, produz todos aqueles efei- nas mãos; é a ataraxia (ausência de perturbação da alma) estoica às
tos que Castoriadis põe sob a rubrica da dura moeda corrente do avessas. A indiferença quer dizer que não há morada em mim para
sofrimento humano e que leva junto a conivência de todo aquele e aqueles que estão fora de meus desejos, interesses e objetivos; ela só
de toda aquela que parou de se questionar. pode habitar aquele que já vive um alto grau de individualismo como
Parar de questionar-se significa, em concreto, o laissez-faire, o mentalidade e como forma de vida. Indiferente é aquele que criou
laissez-passer la mort (deixe fazer, deixe passar a morte). A ausência calos grossos em sua sensibilidade, de tal sorte que as dores e mes-
de questionamento, sobretudo sobre o nosso modo de vida, reforça mo os gritos lancinantes vindos de fora, de perto ou de longe, têm
o individualismo, dificulta a construção de novos laços humanos, como contraponto ouvidos moucos para ouvir, olhos fechados para
descarta as possibilidades de resistência às determinações institu- não ver e mãos escondidas para nada fazer. Indiferente é aquele que
cionais violentas, desiste da política das causas comuns e deixa li- consegue “[...] preservar a serenidade da alma no meio de um mundo de
vre curso à lógica mundial intrinsecamente excludente e, como tal, violências e iniquidades” (chalier, 1993, p. 51).
violenta. Parar de questionar-se é, para a condição humana, como A indiferença parece muito passiva, impassível. Porém ela é, em
um rio que destrói o seu leito, porque devora todas as suas mar- verdade, profundamente destrutora. Ela é o começo do fim da mo-
gens. O questionar-se é que põe margens para distinguir o que é ralidade em qualquer existente, porque ela exclui a possibilidade do

Antropologia Filosófica 107


nascimento do mandato moral (commandement). Na esteira do grito pode ser efetivada à distância, e a uma distância sempre crescente
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

lévinasiano, nos dias de hoje, o mandato ético é silenciado no mais do lugar da moralidade, que é a proximidade; a distância da ação
fundo e íntimo da interioridade humana. E sem moralidade, como põe também a responsabilidade pela ação à distância, no sentido de
pode advir um sujeito propriamente humano? Se ninguém “fizer vi- que ninguém se compromete a responder por seus efeitos violen-
ver”, todos já estamos condenados, mesmo que consigamos perma- tos. As ações à distância, mediadas pela ciência e pela tecnologia,
necer vivos. A indiferença, instrumentalmente, é um bom caminho tornam-se adiaforéticas, isto é, moralmente indiferentes. Mas se a
para deixar passar mais morte. violência do adiaforético é retirada da vista, ela não é retirada da
Com a indiferença pode começar ou estancar o questionamen- existência: o silêncio diante da desumanidade organizada faz con-
to no existente; com indiferença não há saída para visitar os Outros tinuar a matança organizada. Não foi assim no Holocausto? Não é
existentes, com indiferença tanto faz que o rio tenha água para os assim hoje? Vencer a indiferença e traumatizar o indiferente talvez
existentes se saciarem ou sangue humano; na indiferença, o que há venha a ser um outro começo pelo meio da vida humana. Só para
de instituições pode se acabar e pode tomar o rumo que quiser; o “sa- quem quiser, a indiferença pode dar o que pensar! Mas deixemos
cro império” do individualismo de quem é indiferente aos Outros diz isso para adiante.
que tudo pode ser consumido pela lógica da mercadoria. Indiferença Na esteira, ou provavelmente no berço da indiferença, há um
é o modo de ser de um existente psicotizante, de cabeça reduzida, terceiro fenômeno. Efetivamente, “Ninguém prepara o caminho
bem nomeado por Dufour; quando os Outros já não existem para para os outros, ninguém espera que os outros venham em seguida”
mim, talvez possa sobrar um pedaço de um Eu! (bauman, 1998b, p. 122). Trata-se do vácuo relacional que se realiza
O terrível é que a indiferença está virando coisa geral. Bauman em cada existente, como a experiência não simplesmente senti-
pontua: da de estar só, mas a experiência de solidão ontológica, isto é, de
Em nossos tempos, deslegitimou-se a ideia de ser só e saber-se efetivamente sozinho. O vazio de alguém em nós
autossacrifício; as pessoas não são estimuladas
por nós: pode haver maior aliado das lógicas colonizadoras do que
ou desejosas de se lançar na busca de ideais
morais e cultivar valores morais. [...] A nossa esse vazio? E como estamos todos em barcos individuais, salve-se
era é era de individualismo não-adulterado e de quem puder, pois a correnteza mundial é grande e os remos são
busca de boa vida, limitada só pela exigência de poucos. Vamos para o precipício do vazio existencial juntos, mas,
tolerância [...] como indiferença (1997, p. 7). paradoxalmente, separados!
A importância perigosa da indiferença moral torna-se particu- Daí os fenômenos da apatia, da resignação, da desolação, de obedi-
larmente aguda em nossa sociedade racionalizada, científica e tec- ência aos comandos imorais. É certo que nossa passividade nos deixa
nologicamente eficiente; com os meios que temos, a ação humana inertes enquanto prisioneiros nas malhas de uma rede econômica 108
– e pelo menos em parte política – que recobre todo o planeta; mas necessidades; é preciso criá-las, sempre bem novas, para serem con-
também é certo que boa parte dos existentes parece participar do sumidas individualmente. Daí se compreende porque vivemos numa
mesmo campo e3 considera o estado atual das coisas como seu es- cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.
tado natural, como o ponto exato onde a história precisaria chegar.
Ou ainda, retomando outro ponto crucial já expresso, mas agora em
1.1.2.2.
Pelo Distanciamento das Elites Intelectuais
movimento ascendente: “O que é visado hoje pelo mercado é essa parte
privada que escapou, há quase três séculos, do sistema da representa- Subamos de volta ao topo um pouco mais. Com efeito, se do ponto
ção política, essa ‘outra parte’ que nada, desde as Luzes, veio calibrar, de vista dos existentes começamos o movimento ascendente, esse
essa parte que se refere ao domínio da ‘pertença a si mesmo’” (dufour, movimento tem outros desdobramentos rizomáticos. Logo acima
2005, p. 184). É que nos tornamos e nos deixamos ser colaboradores, dos existentes, mas implicado neles, está o papel dos intelectuais.
in existentia e in massa, de quem nos colonizou, possivelmente até Já encontramos o vazio no existente; não estará vazio também esse
de vez. Talvez muitos existentes sejam já incapazes de experienciar papel? Ou será um foco de violência? Ou um foco de violência pelo
até mesmo a solidão de Si mesmos. Isso é boa mercadoria humana! vazio? Ou uma forma de violência pela forma de ocupar o vazio?
De um modo bem sintético, podemos dizer que enfim o beha- No entendimento de Bauman, vivemos numa era de uma quase
109
viorismo, mais simples porque radical – ao estilo de John Watson total quebra de comunicação entre as elites instruídas e o populus.
– triunfou economicamente e psicologicamente: sob os estímulos Isso porque grande parte de nossos intelectuais deixou à deriva ou
das necessidades criadas de consumo de mercadoria pela lógica e proscreveu as grandes ambições comuns às elites modernas, ou seja,
pela propaganda neoliberal, nós conseguimos como resposta um in- a de produzir uma ordem nova e melhor, uma alta civilização, uma
divíduo – ou melhor, um existente – que se define como mercadoria alta cultura e uma alta ciência. A primeira tarefa dos intelectuais era
e consumidor de mercadoria. Mas também triunfou sobre a mora- iluminar as pessoas, indicar novos pontos de apoio nas águas turbu-
lidade e sobre a política: ao estímulo do individualismo e do bem- lentas, mediar reflexivamente a travessia e adiantar o ponto de che-
-estar a todos os preços, nós temos a resposta da hemorragia moral gada. E a segunda era auxiliar no trabalho dos legisladores, projetar
e da apatia política, sobretudo pelo comportamento da indiferença. e construir novos ambientes, tendo em vista a ordem social. As duas
Somos de um tempo em que há uma mercadoria para cada desejo, tarefas se ligavam diretamente à construção do Estado-nação, para o
sendo que a mercadoria já (antes) vem estimulando o nascimento de que se requeriam, impreterivelmente, administradores e professores.
infindáveis desejos (que vêm depois, mas devem vir). Com Bauman Mas, como vão nossos intelectuais? Bauman responde (2003, p.
(2003, p. 117): “Para criar valor, basta criar uma intensidade suficiente 115): “Os nossos são tempos de desengajamento”, de uma elite do co-
de desejo”. Temos mais meios para criar mercadorias do que efetivas nhecimento que renunciou a seu papel moderno de esclarecedora,

Antropologia Filosófica
guia e mestra e passou a seguir a liderança do outro setor, de negó- contemporânea onde é ainda possível pensar em longo prazo e agir em
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

cios, da elite global na nova estratégia de separação, distanciamento função dele” (2006b, p. 209). E Bauman (2008a, p. 165) corrobora: a
e desengajamento. Como tantos de seus contemporâneos, os descen- Universidade era “[...] o lugar onde os valores primordiais para a inte-
dentes dos intelectuais modernos querem e procuram mais espaço. gração social eram gerados, o lugar de treinamento dos educadores que
O engajamento com o Outro, por oposição a deixá-lo em liberdade, pretendiam disseminá-los e transformá-los em habilidades sociais. As
reduziria esse espaço em vez de aumentá-lo. duas âncoras, porém, hoje estão flutuando”.
Isso significa, empiricamente, que os existentes concretos, com
todas as lógicas que os entrecruzam e colonizam sua humanidade,
1.1.2.3.
Pela Lacuna de uma Agência Mundial
estão sós também de mestres, de referentes para pensar e entender o
que acontece e, talvez então, levantar alguma bandeira. Há um hiato Nós, existentes, estamos todos desamparados! Por quê? Porque –
violento entre o acontecimento das coisas e a compreensão das coi- como indicamos – a sociedade toda é de desamparo, isso faz parte
sas para a maioria dos existentes; esse hiato, na verdade, é ocupado de sua lógica. Ou pior ainda: um vazio é o que lateja no lugar ocu-
pelos intelectuais, provavelmente em maioria, que aderem à lógica pado pela sociedade. E como também já vimos, o termo sociedade
mundial. Certamente há intelectuais, certamente os intelectuais fa- já representou o Estado, armado com meios de coerção e também
lam e escrevem; mas o que escrevem, em nome de quem falam e para com meios poderosos para corrigir pelo menos as injustiças sociais
quem dizem? É provável que haja um cansaço de luta em alguns, é mais ultrajantes. Como dissemos, esse Estado está sumindo e, sem
provável que haja desistência em outros, é provável que muitos te- essa mediação, não está à vista uma sociedade geral de mútuo aco-
nham aderido – existencialmente e discursivamente – à preocupação lhimento. Isso significa que as velhas estruturas estão desmoro-
apenas consigo mesmos e usem seus discursos como mercadorias. E nando ou têm sido desmanteladas e nenhuma estrutura alternativa
o que acontece? Deixam o mundo vivido do lado de fora, levam logi- com um peso institucional semelhante está pronta para substituí-
camente cegueira para baixo e reforço lógico para cima. -las. Não há padrões dados, eles mesmos são tarefas, tarefas sem
Não é a toa que o locus comum e histórico dos intelectuais está critérios definidos, não há referência nem para agora nem para o
em crise: a Universidade. Em Pela Mão de Alice, Boaventura Santos amanhã. O existente olha para cima e vê a escuridão do vazio, olha
(2006b) detecta a tríplice crise que assola a Universidade: crise de para Si e vê a escuridão movediça da solidão. O vazio institucional
hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional. E lamenta o deixa o espaço à livre competição entre indivíduos autômatos e à
envolvimento da Universidade com o processo produtivo da indús- guerra de todos contra todos.
tria bem como o abandono na formação do caráter. Por outro lado, De fato, se o Estado e outras instituições já não medeiam e já não
vê que “[...] a Universidade é uma das poucas instituições da sociedade presidem a reprodução da ordem sistêmica, se o espaço foi deixado 110
às forças desregulamentadas do mercado transnacional e, assim, Nem mesmo o direito global: ele se liga mais ao poder econômico
não mais se põem como politicamente responsáveis, o centro de gra- do que à política, não é tecido por uma democracia efetiva e ainda
vidade do processo de estabelecimento da ordem, da segurança, do não adquiriu uma forma constitucional. Além do mais, é um gover-
encaminhamento da sobrevivência em comum deslocou-se. E uma no sem governante. Sendo assim, para Bauman (2008a, p. 76-77), é
vez que nenhum órgão tangível e bem definido parece estar encarre- um caso de “ardil 22”:
gado da ordem presente, “[...] é difícil, ou antes impossível, imaginar al-
Uma força política de capacidade realmente
gum poder ainda não existente que debelasse os males da ordem corrente global é necessária para verificar e restringir
no futuro, substituindo-a por outra” (bauman, 1998b, p. 53). Esse vazio os poderes globais hoje incontroláveis – mas
abre as fronteiras para cima e fecha as portas de muitos existentes é o fato de os poderes globais permanecerem
incontroláveis que impede o aparecimento de
para baixo. Esse vazio faz proliferar celeremente a colonização que
instituições políticas efetivas para o nível global.
vem de cima para baixo – porque todas as mediações instrumentali-
zadoras são possíveis, sem barreiras – e aumenta a correria de quem Parece que a responsabilidade pela situação humana foi mesmo
olha de baixo para cima – pela ausência de mediações. privatizada: indefesas diante do furacão global, as pessoas – os exis-
Até agora ainda não temos uma agência mundial capaz de levar o tentes – agarraram-se a Si mesmas e ficam simplesmente indefesas.
mundo adiante. Fica cada vez menos claro o que uma agência deve- Uma vez conseguida – de cima para baixo – a indiferença e seus
ria fazer para melhorar o mundo – na improvável situação de ser po- agregados no existente individualizado e, por ela, a redução das ca-
derosa o bastante para isso. Ainda por agora viajamos sem nenhuma beças (interioridade), a subida da violência se reforça desde ali. Em
ideia de um horizonte para nos guiar, o que deixa cega a procura por efeito, um existente indiferente interrompe a construção de laços
uma sociedade boa e inoperante a esperança de algum dia encontrá- comunitários e sociais, renuncia de bom grado a uma cidadania de
-la. Mesmo os Órgãos Internacionais – como a onu – não possuem fato, não vê motivos para se ocupar com a distância e a pequenez do
força para efetivamente se encarregar da ordem societal mundial. Estado e pouco se lhe dá se a economia mundial é voadora ou suba-
Não há nem mesmo uma localidade com arrogância bastante para quática. Mas, paradoxalmente, cada indivíduo teme pela vida e se
falar em nome da humanidade como um todo ou para ser ouvida e sente incomodado pela proximidade da morte, quando aplicada a ele
obedecida pela humanidade ao se pronunciar, por conta da justiça mesmo. A prova disso é simplesmente a própria violência: a avalan-
que efetivamente poderia vir a propor e a tecer na história. Nem há che de violências que os indivíduos não param de entumecer.
uma questão única que possa captar, aglutinar e agilizar a totalida-
de dos assuntos mundiais em emergência urgentíssima e provocar
uma concordância global.

Antropologia Filosófica 111


1.1.3.
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Na Violência em Movimento Lateral


Vimos até aqui o movimento descendente das raízes da violência e o é que ela consegue afastar da tarefa pública a questão da privação
movimento ascendente de continuidade, reforço e inovação da vio- material, onde começa toda injustiça.
lência. Há também um movimento lateral, que não necessariamente Pela voz de Bauman (2007a, p. 39):
é violento, mas que tem assumido formas violentas. Normalmente As guerras e os massacres tribais, a proliferação
se tratam de reações ou tentativas de reações à dissolução de tudo de “exércitos de guerrilheiros” ou gangues
o que foi ou poderia ser referencial para continuar a vida individual de criminosos e traficantes de drogas [...]
e social num outro sentido que não o da desigualdade progressiva e ocupados em dizimar as fileiras uns dos outros
[...] aniquilando o excedente populacional
da exclusão humana em massa, que não o da igualação maciça e da
– em suma, um “colonialismo regional” ou
anulação das diferenças, que não a redução da vida à guerra de so- “imperialismo dos pobres” – essa é uma das
brevivência, que não a publicização universal dos indivíduos como “quase-soluções locais para problemas globais”,
se não fossem existentes reais e humanos... distorcidas, perversas, a que os retardatários da
A ordem global precisa de muita desordem local para não ter o modernidade são obrigados a recorrer.

que temer. A emergência das questões étnicas em diferentes locais Centenas de milhares de pessoas são expulsas de seus lares, as-
do planeta é uma desordem importante para a lógica global neolibe- sassinadas ou forçadas a fugir o mais depressa possível para fora das
ral. Com efeito, quanto mais pulverizados são os pobres, os nativos fronteiras de seus países. Os Estados periféricos, com seus gover-
locais, os refugiados, os guetificados, quanto mais fracas e diminu- nos fracos – enfraquecidos –, são obrigados a cooperar com as leis
tas as unidades em que se dividem, quanto mais sua ira se gasta em de mercado; tal encurtamento do poder coordenador dos Estados
brigas com vizinhos igualmente impotentes, tanto menor é a chan- dá margem à emergência dos antagonismos intertribais. Na outra
ce de ação comum. Dividir para reinar já era uma das máximas de ponta da briga, os governos das nações ricas endurecem as leis de
Maquiavel em O Príncipe; manter a maioria da população ocupada imigração: fecham até mesmo as janelas aos que procuram empre-
com hostilidades étnicas e religiosas é instrumentalmente prodi- go, mas escancaram as portas para os estrangeiros globais com suas
gioso para os poderes econômicos transnacionais. “Quando os pobres agências que sugam o que podem da economia local e produzem
brigam entre si, os ricos têm todas as razões para se alegrar” (bauman, mais migração. A proliferação de diásporas étnicas – mesmo dentro
2003, p. 95). Como já indicamos anteriormente e retomamos agora, das nações ricas – constitui-se numa reação violenta a um mundo
o decisivo dessa estratégia de pôr os pobres para brigarem entre si que se perdeu do controle.
112
E a imagem sintética e repetitiva da brutalidade autoinfligida Essa lateralidade do movimento de violência também se confir-
entre pobres é altamente noticiada pelos que detêm a mídia, pela ma, segundo Bauman, pela posição dos diversos movimentos so-
pontuação da relação entre pobreza e criminalidade. Essa imagem se ciais. Sendo assim,
solidifica e mesmo se sedimenta na consciência pública, tornando-
De longe os mais numerosos movimentos sociais
se um referencial de autoproteção ao medo, à insegurança e que atua de protesto que a modernidade (líquida) cria
nas interioridades como um aquém e um para além de toda ética e são os que exigem a redistribuição de lucros,
de toda alternativa. e não a revisão da definição de lucro ou o
desmantelamento do mecanismo de fazer lucros
Considerando que, em termos práticos, uma parcela considerável
(bauman, 1997, p. 246).
da população mundial não é mais necessária à produção – mesmo
que virtualmente todos são chamados a ser consumidores e mesmo Normalmente a posição de questões desses movimentos é de
que apenas de alimentos – e considerando que não há efetivamente caráter temático – do tipo uma Causa, um Movimento. Esse tipo
emprego para essa grande parcela, “[...] o confinamento é antes uma de posição tende mais ao fechamento do que à abertura ao diálo-
alternativa ao emprego” (bauman, 1999a, p. 120), uma outra maneira go acerca de causas maiores, profundas, abrangentes e, como tais,
de utilizar ou neutralizar milhões de existentes não-recicláveis para comuns. Ora, inviabilizar causas comuns pelo acento único na cau-
o trabalho e endereçados a esses depósitos de lixo chamados prisões sa própria é reforçar e também continuar a escalada e a descida da
como excedentes e supérfluos. A construção maciça de imensos pre- violência. A trilha sonora dos Movimentos divididos passa a fazer
sídios – inclusive de confinamento máximo, como a californiana parte da sinfonia global socialmente corrosiva do dividir para do-
Pelican Bay – na maioria dos países, sobretudo nos mais desenvol- minar. Acontecendo do lado de quem quer reagir, parece que per-
vidos economicamente, parece uma amostra dessa não contida des- demos a capacidade de nos engajarmos em interações espontâneas
cartabilidade humana (bauman, 2005b). com pessoas reais.
Intrinsecamente ligado ao confinamento prisional anda o fenô- Põe-se ainda outra questão: o que tem ocorrido historicamente
meno chamado guetificação. Esse fenômeno é parte orgânica do com os Movimentos Sociais é que, tendo que priorizar o caráter polí-
mecanismo de disposição de lixo humano, à medida que os pobres tico de organização e pressão para fora, deixaram de lado a discussão
não são mais úteis como reserva de produção e, por serem pobres, e o aprofundamento de aspectos deveras importantes para a tessitu-
consumidores incapazes. A guetificação anda de mãos dadas com a ra da própria identidade e da expansão das construções necessárias
criminalização da pobreza; uma leva à outra: há uma troca constan- para a vida em comum. A formação humana, sobretudo da interiori-
te de população entre os guetos e as penitenciárias. dade, da moralidade, parece-nos uma dessas ausências fundamen-
tais. Não raro – e não sem alguma violência –, a hierarquização e a

Antropologia Filosófica 113


autoridade assumem o lugar dos processos formativos, que são ante- dizer que acontecem crimes reais contra os membros reais da hu-
riores à e o sustentáculo da bandeira de luta. Sem formação interna, manidade; ela quer dizer que membros reais da humanidade fazem
a tendência é o enfraquecimento do mesmo afã de luta e a corrosão acontecer crimes reais contra membros reais da humanidade real;
das relações internas, sem contar a possibilidade de abandono ou ela emite um julgamento real sobre a humanidade real: os crimes
extinção do próprio movimento. da humanidade são obra da humanidade e, como tais, totalmente
A violência vem de cima e se aninha também por movimentos imputáveis à humanidade. No que tange à violência, todo o discurso
laterais; a violência vem de baixo e já está aninhada nos indivíduos que tentar distorcer, mascarar, esconder, tentar dizer outra realidade
que tentam, por todo e qualquer meio, alcançar um lugar ao sol. E a em vez desta e justificá-la é ideologia.
violência... Numa rizomática sem fim. Será que sempre a violência Quando conseguimos esconder a realidade da violência com ou
atrai mais violência? sem discurso, estamos numa perna da ideologia; quando não con-
seguimos esconder a violência, mas conseguimos a justificação ar-
1.1.4. gumentativa da sua existência, ou mesmo da sua necessidade, es-
Na Violência em Movimento Circular tamos na outra perna. Para os dois casos, a ideologia é um discurso 114
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

(centrípeto e centrífugo) totalizante e, dependendo de sua contundência, tanto pode explicar


a realidade quanto modelar a realidade. Normalmente, em termos
Percorremos até agora bastante sinteticamente os três movimentos históricos, a ideologia se liga a lógicas, a visões do homem e do mun-
das raízes da violência – descendente, ascendente e lateral. Ao nosso do e, como tal, sempre se liga a interesses. E, normalmente, ainda
olhar ainda aparece outro – talvez não seja o último–, que é o que em termos históricos, a ideologia se liga a interesses de grupos ou
põe os outros três para funcionar e talvez os pôs para aparecer. O classes que fazem passar aos outros grupos e classes os seus inte-
quarto movimento é o circular centrípeto e centrífugo: a ideologia. resses como se fossem aqueles válidos para todos. Pela sua relação a
Ela é um mecanismo que faz a violência circular e se introduzir em interesses reais particulares, a ideologia está ligada à realidade; seu
todas as esferas da vida; ela é o mecanismo que faz nascer e sair vio- defeito é querer ser total quando não o é. Nesse sentido, toda ideo-
lência de cada esfera da vida; ela é o mecanismo que costura violên- logia é violenta. Bem se vê que a ideologia é capaz de cegar, mas ela
cia para todos os lados e se colhe a si mesma neles mesmos. nunca é cega. Em termos simples: a ideologia é a universalidade dis-
Os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanida- cursiva de interesses particulares. Estamos, pois, bem próximos do
de. Esta afirmação de Forrester (1997, p. 142), já figurada como epígra- conceito marxiano de ideologia.
fe nesta Primeira Parte de nossa escritura, nos acompanhará agora. Para Jean-Marie Muller (2007, p. 135),
Ela quer dizer que acontecem crimes na realidade humana; ela quer
As grandes violências da história – as guerras, os interesses de base que movem o projeto possam se realizar sobre
os massacres e os genocídios – não são os e nos destinatários com uma permissão consentida.
naturais nem espontâneas, foram pensadas
Mas o mais perturbador da relação entre ideologia e violência é
e organizadas. Os ódios e as paixões que as
acompanharam foram gerados por propagandas a violência ideológica da ideologia. Quando Bauman sentencia que
ideológicas e construções políticas. A mola do muitas características da sociedade “civilizada” contemporânea en-
irracional, que orientou o comportamento dos corajam o fácil recurso a holocaustos genocidas é, na verdade, isto
indivíduos para o homicídio, foi acionada por que está em questão: uma cultura que põe não só como passível,
construções racionais.
mas como intrínseca a presença e a utilização da violência como
E para Bauman (1998a, p. 109): “A ideologia e o sistema que deram instrumento civilizador. Dizendo de outro modo: não seria o fato de
origem a Auschwitz permanecem intactos. [...] Muitas características da nossas culturas, dentro e sob coordenação de uma certa civilização
sociedade ‘civilizada’ contemporânea encorajam o fácil recurso a holo- a que chamamos Ocidental, estarem impregnadas da ideologia da
caustos genocidas”. Essas duas afirmações por elas mesmas são pro- violência que estamos sempre na iminência de nos ferirmos uns aos
fundamente heurísticas e claras. outros? Não seria o fato de que nossas culturas se assemelham por
Em primeiro lugar, com as expressões grandes violências e ge- que são todas culturas da violência? Se nossa civilização conhece,
nocídio elas indicam a escala de violência; em segundo lugar, com fez e faz tanta violência é porque é uma cultura violenta; se a cultura
as expressões construções racionais e sistema elas indicam que a (cultivo) da violência necessita recorrer a uma construção racional é
violência é uma questão de engenharia social, uma questão de pro- porque ela precisa justificar a violência. É aqui que intervém a ide-
jeto, uma questão de discurso, uma questão de práticas e uma ques- ologia da violência como dupla violência: justifica a violência pela
tão de estratégias, direcionados e executados num marco maior da dissimulação (faz passar a violência como não-violenta) e justifica
convivência humana que chamamos por vezes comunidade e por a necessidade da violência quando não consegue dissimular a vio-
vezes sociedade. Em terceiro lugar, com a expressão mola do irra- lência como violenta, como no caso da justificação da violência en-
cional elas indicam que em toda violência estão presentes e agentes quanto necessidade para a civilização.
interesses propulsores do engendramento dos projetos, dos discur- De fato, segundo os grandes discursos que dominam nossas socie-
sos, das práticas, das estratégias e dos resultados. Com propagandas dades, é necessário opor à violência inicial da opressão ou da agres-
ideológicas e ideologia elas indicam que é preciso um trabalho do são uma contra violência que possa contê-la e, por fim, vencê-la. As
pensamento e do discurso para fora do projeto, na direção daqueles mesmas ideologias legitimam e justificam essa segunda violência,
a quem o projeto deve acomodar, dar forma e configuração para que sustentando que sua finalidade é estabelecer a justiça ou defender a
liberdade. Ora, o argumento incessantemente alegado para justificar

Antropologia Filosófica 115


a violência é que ela é necessária para lutar contra a violência, pois re- projetos de instauração com suas respectivas versões da dialética?
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

nunciar à violência seria deixar passagem solta e liberada à violência. Ou de Kant e a sua astúcia da razão? Ou de Hobbes ou de Maquiavel?
Mas daí decorre uma irredutível contradição, da ordem do discurso e, Ou do Darwinismo? Ou do massacre da noite de São Bartolomeu? Ou
sobretudo, da ordem da prática: lutar contra a violência pela violência da omissão das Igrejas diante do massacre nazista e stalinista? Em
não permite eliminar a violência, mas aumentá-la. Por esses discur- todos esses e em muitos outros casos, o que a ideologia da violên-
sos, essa prática discursiva contraditória não deve entrar em questão! cia executa é uma qualificação diferenciada da violência de acordo
Na medida em que a violência é legitimada ideologicamente com o fim a que se propõe. Mas, não resta dúvida de que a violência
como um direito do homem para fazer frente à violência, quem dei- continua violência: fazer sangrar alguém é alavancar causas sobre
xará de servir-se desse direito? A tendência cultural é recorrer a ele sangue, seja ele vermelho ou azul, como se fosse preciso matar um
sempre que achar conveniente para fazer valer seus interesses ideo- homem para deixar de matar alguns. Talvez seja por isso que conse-
logicamente defendidos. Na realidade, “[...] a ideologia da violência guimos “justificar” até a pena de morte!
permite a cada indivíduo justificar sua própria violência” (muller, Nossa realidade cotidiana é violenta, sem dúvida. A violência
2007, p. 34). O acontecimento continuado que a história conhece e no acontece de cima, de baixo, dos lados, de dentro e de fora. E ela é
qual se encontra tragada é uma espiral de violências intermináveis. justificada. Todas as formas de violência são transpassadas pela ide-
A violência se realiza como uma reação em cadeia, como violências ologia. Mais violência requer mais ideologia; mais ideologia implica
de uns e de outros, de uns contra os outros, todas legitimadas, tanto aumentar a violência: esse é o círculo vicioso que mata ou então – o
umas quanto as outras, de modo que ninguém mais consegue inter- resultado é o mesmo – deixa morrer. Boaventura Santos nos traz de
rompê-la. E eis que a violência se torna fatalidade: parece que não há volta à vida cotidiana e ilustra o fenômeno ideológico produzindo
outro jeito, a violência chama violência, como uma exigência racio- mazelas como utopia do neoliberalismo. A utopia do neoliberalismo
nal da realidade humana! é conservadora, porque o que se deve fazer para resolver todos os
A ideologia da violência em nossa cultura é tão bem ideológica problemas é radicalizar o presente. Essa é a teoria que está por detrás
que – de modo fácil – torna-se demasiadamente sutil. Com efeito, do neoliberalismo. Ou seja: há fome no mundo, há desnutrição, há
se empregarmos a violência com a intenção de servir a uma causa desastre ecológico; a razão de tudo isso é que o mercado não con-
justa, isso não altera a natureza da violência? Se percorrermos a his- seguiu se expandir totalmente. Quando o fizer, o problema estará
tória da filosofia, das religiões e das ciências ocidentais, veremos resolvido (santos, 2007c, p. 54). E aprofunda:
com mais frequência do que o esperado que nossas ciências, nos-
[...] a ideia de pós-modernidade aponta
sas religiões e nossas filosofias vão se encontrar em apuros diante demasiado para a descrição que a modernidade
dessa questão. O que dizer do hegelianismo e do marxismo e seus ocidental fez de si mesma e nessa medida 116
pode cultar a descrição que dela fizeram os
permanecendo internas – Guerras étnicas – Ausência de Estado
que sofreram a violência com que ela lhes foi
imposta. Essa violência matricial teve um nome: para mediar ou se impor internamente – Migrações em massa –
colonialismo. Esta violência nunca foi incluída na Refugiados – Campos de refugiados – Guetificação. Na outra ponta,
autorrepresentação da modernidade ocidental Embaralhamento dos indivíduos individualizados em multidões –
porque o colonialismo foi concebido como
Solidão e anonimato existencial – Dissolução dos laços e vínculos
missão civilizadora dentro do marco historicista
ocidental nos termos do qual o desenvolvimento humanos de proximidade – Desintegração das solidariedades gru-
europeu apontava o caminho ao resto do mundo, pais – Vazio social e político – Ausência de perspectiva de solução a
um historicismo que envolve tanto a teoria curto prazo. Pelo meio: Indiferença moral e política – Apatia e resig-
política liberal como o marxismo (2008, nação – Ausência de questionamento e de causas comuns. De todos
p. 27-28, grifo nosso).
os lados: Ideologia e Violência.
Em termos lévinasianos, “A justificação das dores do Outro é o co- E, sinteticamente, o que temos?
meço e o caroço duro de toda imoralidade” (lévinas, apud bauman,
Testemunhamos hoje um processo de
p. 126). reestratificação mundial, no qual se constrói
A conjunção de todas as raízes históricas de violência que indi- uma nova hierarquia sociocultural em escala
camos acima nos pede ainda algumas outras considerações, agora planetária. O que é opção livre para alguns
abate-se sobre outros como destino cruel. E
do ponto de vista fenomênico. Vemos algumas poucas nações ri-
uma vez que esses “outros” tendem a aumentar
cas podendo suportar uma densidade populacional elevada porque incessantemente em número e afundar
são centros que drenam recursos, sobretudo as fontes de energia, cada vez mais no desespero, fruto de uma
do resto do mundo, e devolvem, em troca, o refugo poluente, mui- existência sem perspectiva, é melhor falar em
tas vezes tóxico, do processamento industrial que esgota, aniquila “globalização” (pressão global sobre o local) e
defini-lo essencialmente como o processo de
e destrói grande parte dos recursos energéticos do planeta. Vemos
concentração de capitais, das finanças e todos
que, na ausência de uma sociedade politicamente organizada de os outros recursos de escolha e ação efetiva,
âmbito global, os superricos podem operar sem consideração a ou- mas também de concentração da liberdade de se
tros interesses que não os seus. Vemos que há uma sequência causal mover e agir. Se os 358 decidissem ficar cada um
com US$ 5 milhões para se manter e distribuir o
que se realiza por múltiplos movimentos: Globalização econômica
resto, praticamente dobrariam a renda anual de
– Desregulamentação – Sociedade de Consumo e Fim da Sociedade quase a metade da população da Terra
de Trabalho – Estados fracos e nações pobres – Expropriação das (bauman, 1999a, p. 78-79).
comunidades – Dissolução das comunidades – Reações internas

Antropologia Filosófica 117


Certamente eles não farão essa loucura! O que já é certo é que a ele chama de fabricação de sujeitos psicotizantes, já enunciados mais
globalização aumentou as oportunidades dos extremamente ricos acima, ao achatamento das crianças, mas não menos dos adultos.
de ganhar dinheiro mais rápido. Ela se mostra muito benéfica para A consequência antropológica para as crianças é bem esta:
muito poucos, mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da po-
Eles (as crianças, os alunos) não escutam mais.
pulação mundial. Parece um caso típico de mérito deles ou sorte! É E se eles não escutam mais [...] é porque eles
uma boa maneira de justificação! também não falam mais, no sentido em que eles
Não é assim que funcionam os meios de comunicação de mas- sentem a maior dificuldade em se integrar no fio
de um discurso que distribui alternativamente e
sa? Quantas lições de Pica-pau uma criança precisa ter para querer
imperativamente cada um em seu lugar: aquele
sempre levar vantagem? Quantas cenas de violência teleguiadas que fala e aquele que escuta. Ao não falarem
pela Televisão e controladas pelo mecanismo neoliberal – imitando mais segundo a autoridade da palavra, eles
a vida ou forjando a vida – são necessárias para qualquer existente também não podem mais escrever e não podem
ir dormir com espírito, fantasia e até mesmo um inconsciente vio- mais ler (dufour, 2005, p. 134-135).
lento? Quantas propagandas são essenciais para forjar um espírito E o que dizer do ciberespaço ou da redópolis? Certamente que o
individualista e consumidor repleto de mercadorias? Quantos minu- caminho e os efeitos não são muito diferentes daqueles produzidos
tos em frente à televisão são suficientes para desfazer ou não deixar pela tv. A violência vem ao existente ideologicamente também pela
brotar um espírito crítico? Segundo Popper, parece mesmo que “A via digital e virtual (um planeta atravessado por autoestradas da in-
televisão é um perigo para a democracia” (1994, p. 33)28. formação) e se confirma e se reforça pelo tipo de seres humanos que
Certamente, a televisão é hoje o instrumento ideológico mais am- engendra (solitários e individualistas).
plo e eficiente da lógica de mercado, o mais convincente e também o Concordamos com Boaventura Santos (2007c, p. 19) sobre o que
mais destrutor. Como diz Dufour (2005, p. 120), “[...] as crianças que temos: “Temos problemas modernos para os quais não temos solu-
hoje chegam à escola são frequentemente crianças empanturradas ções modernas”. E, contudo, resignar-se é, como vimos, contribuir
de televisão desde sua mais tenra idade. Está aí um fato antropoló- para aumentar esses problemas. Forrester (2001, p. 95)29 pergunta:
gico novo”. De fato, a inundação do espaço familiar, o encolhimento “Recusar a aceitar o que julgamos nocivo, combater sem a certeza, mas
do diálogo, o adestramento precoce para o consumo, as marcas como com a esperança de vencer: não seria essa uma das principais formas de
referências simbólicas, a violência das imagens, tudo conduz ao que otimismo, que consiste primeiramente em nunca se resignar?”

28 popper, Karl. La Télévision: um danger pour La démocratie. Paris: Anató-


lia, 1994. 29 forrester, Viviane. Uma Estranha Ditadura. São Paulo: unesp, 2001.

Antropologia Filosófica 118


2
UM PASSO
PARA
‘BAIXO’

Essas considerações que constituíram - como diria P. Ricoeur - a ‘via Tenho para mim que ‘dependendo da maneira como concebo o
longa’ de nossa abordagem do problema do homem nos deveriam homem - e nisto a mim mesmo - assim tratarei a mim mesmo e aos
‘dar a pensar’ um pouco mais a fundo a questão central da Antropo- outros homens’. Se concebo o homem como um animal, então este
logia Filosófica: ‘Quem é o homem?’. A história conheceu uma multi- será o tratamento dispensado aos homens; se concebo o homem
plicidade de concepções filosóficas acerca do homem, cada uma rei- eminentemente como desejo, sob este prisma o homem será abor- 119
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

vindicando o estatuto de verdade absoluta. A história experimentou dado; se concebo o homem como produto das relações sociais, por
também - já faz algum tempo - a crise dos humanismos, e mesmo o ali passam os meus posicionamentos; se concebo o homem como
seu ocaso. Por sua vez, as ciências – e em ênfase as ciências huma- sendo mau por natureza, as minhas relações terão este fundamento;
nas - têm reivindicado o monopólio da verdade a respeito do homem e assim por diante.
e do mundo, a partir de inflexões e pontos de partida diferentes. O Muitas vezes assumimos posições a respeito do homem sem um
resultado são as múltiplas teorias explicativas e compreensivas no mínimo suficiente de reflexão, e não percebemos os reducionismos
mais das vezes antagônicas entre si. das mesmas; e, de forma alienada, acabamos contribuindo para a
Enquanto assistimos a esse desfilar sucessivo de concepções e atrofia de elementos estruturais do homem; depois, nem consegui-
posições sobre o homem, talvez nós mesmos nos esqueçamos de mos entender os seus e os meus males. Tantas vezes, ao invés de
provar a dureza e a beleza de uma reflexão sobre nós mesmos, so- refletir sobre os nossos pressupostos antropológicos, ficamos inven-
bre as experiências humanas que nos passam desapercebidas, tal- tando teorias que mais atrapalham do que ajudam.
vez porque refletir sobre isso não rende, não é comum, nem mesmo Em verdade, quanto mais dilatado o nosso horizonte de com-
normal. E talvez devêssemos, ainda mais, nos ocupar em Viver Bem, preensão, mais capazes nos tornamos para avaliar as experiências
de modo fundamentado, apreendendo o que há ali de efetivamente humanas e mais qualitativas podem ser as nossas ações, incluin-
humano, já como forma encarnada de vida. do o nosso trabalho. Essa reflexão inclui a autorreflexão, em que as
próprias experiências precisam ser consideradas. Avancemos, pois, Há um horizonte ao qual se relaciona todo o particular; nele se in-
pelo menos um pouco, essa reflexão. sere a nossa conduta, a nossa linguagem, nossos conhecimentos e
Quem é o homem? Esta é uma pergunta que se impõe em qual- experiências significativas; a nossa vontade e a nossa ação referem-
quer âmbito da vida humana. Se, por um lado, nós nos pergunta- se a ele. Porém, essa unidade é vivida concretamente numa plura-
mos por tudo - pelo mundo, pela matéria, pelas coisas, pelos seres, lidade de traços que constituem o homem como suas estruturas
pelos fenômenos, pelas leis, etc., - por outro lado, a pergunta pelo fundamentais.
homem e pelo sentido do homem no mundo é de caráter essencial- Toda vez que procuramos compreender o homem partindo de um
mente diferente. Com efeito, essa interrogação implica em colocar traço particular - eleito o fundamental -, corremos o risco de fazer
o ‘SI’ mesmo sobre a mesa de discussão. Ora, o poder-fazer-pergun- uma interpretação redutora do homem; o homem é, ao mesmo tem-
tas já diz de nós que somos os únicos, dentre os seres que conhe- po, uma pluralidade essencial de dimensões – nas quais experimen-
cemos, que se interrogam; e, sobretudo, o homem é o único capaz tamos a nós mesmos e ao mundo – e uma totalidade concreta, que
de perguntar a si mesmo sobre o seu SI. E, toda vez que pergunta- fundamenta a pluralidade na unidade estrutural que se manifesta
mos acerca do nosso ser, colocamos em exercício as pré-condições simplesmente no fato de cada um ser um só.
de todo perguntar: nesse caso específico, o saber-prévio acerca de Aqui se põe uma dificuldade: por um lado, não podemos cair no
nós mesmos e um não-saber que precisa ser vencido pela busca reducionismo partindo de um traço; por outro, não temos uma intui-
consciente de saber, diante dos problemas e (pró)vocativos que a ção intelectual explícita, direta (via curta) dessa totalidade. A saída
realidade nos põe. é, de novo, a via longa: partir do homem concreto, i.e, dos fenômenos
Se nada soubéssemos do homem - nem mesmo o seu nome -, da autorrealização humana, nos quais nos experimentamos e nos
nada poderíamos perguntar sobre ele (nós); Ao contrário, se tudo entendemos como homens, nos quais essa totalidade se manifesta;
soubéssemos, uma nova pergunta seria supérflua. É porque o ho- diante desses fenômenos, podemos nos perguntar pelas suas condi-
mem já tem uma pré-compreensão de si, e também porque não se ções de possibilidade, ou seja, por aquilo que constitui cada um dos
compreende suficientemente que ele, nós, precisamos levar adiante homens em particular e o homem em geral. Com outras palavras,
a compreensão de nós mesmos numa retomada consciente. Em ge- trata-se de buscar a constituição ontológica, universal, do homem,
ral, é nessa pré-compreensão que estão presentes elementos distor- aqueles traços sem os quais o homem não seria homem, que se ma-
cidos, redutores, ideológicos - dos quais falávamos há pouco - que nifestam no mundo, na existência comum dos homens, pois só nos
precisam sofrer uma kathársis (purificação) mediada pela reflexão. compreendemos dentro de um mundo comum.
Antes de tudo, o homem se experimenta como uma totalidade, Um fenômeno considerável importância da experiência huma-
anterior e subjacente, inclusive, às inflexões das ciências humanas. na é que nos encontramos no meio de uma realidade complexa, no

Antropologia Filosófica 120


meio das coisas e dos homens. O homem não é, originariamente, Aprofundando a noção de mundo humano, nos traços que o cons-
um sujeito puro, sem história e sem mundo, mas se encontra sem- tituem, vão aparecendo também outros traços do próprio homem.30
pre numa rede ilimitada de relações e estruturas que o situam aqui e Com efeito, o nosso mundo é constituído pela totalidade atual de
agora, que o determinam e são também a sua possibilidade de com- nossas experiências, realizadas mediante o conhecimento e a ação
preensão e de autorrealização. livre. O nosso mundo é experimentado como espaço-temporal: vive-
Nesse sentido, por um lado, o homem é determinado pelo mundo mos num aqui e agora no qual se distende a vida de cada um, no qual
das coisas e objetos: nossa vida corporal está inserida num mundo as experiências são feitas e se sucedem, nos elevando a um horizon-
vivo e submetida às suas leis físicas, químicas e biológicas; é o mundo te sempre maior de compreensão e de sentido.
que oferece alimento, vestuário, etc., e nele trabalhamos. O homem é O mundo do homem é, sobretudo, intersubjetivo. É na relação
também - ou sobretudo - determinado pelo mundo dos homens (cul- pessoal e social que crescemos e nos realizamos com os outros ho-
tura): todo homem procede de e se refere a uma comunidade concre- mens. É aos outros que estamos estruturalmente ligados por uma
ta; nela se desenvolve, aprende sua língua, seus costumes, participa relação de amor e confiança, de mútua possibilitação como sujeitos
de seu espírito e de suas criações; é na comunidade que o homem livres, ou então por uma relação de desconfiança e dominação. É
emerge para a condição de sujeito, dentro de determinadas condições com os outros que vivemos e agimos no mundo e, dependendo da
121
históricas, materiais, institucionais e culturais; tudo isso incide dire- qualidade dessa relação, estrutura-se uma certa qualidade humana
tamente na forma de vida do homem, no seu conhecimento, no seu ou desumana do mundo do homem. É nessa relação que participa-
querer, na sua prática, na formulação do sentido da sua vida. mos das experiências, ideias, convicções, valores dos outros, e que
Por outro lado, o homem determina o seu mundo por não ser sim- vão tecendo o horizonte de compreensão da comunidade, tecendo a
plesmente passivo, imediatidade ou exterioridade pura. O homem sua identidade. Sem esse mundo comum não seria possível a nossa
é, também, interioridade, sujeito ativo que tem um mundo na me- tomada de consciência como homens, a nossa formação, a cultura,
dida em que o concebe e o realiza. Estar em relação implica no en- as conquistas científicas, enfim, a vida humana.
gajamento, no confronto, na tomada de posição julgadora, em pro- O mundo humano é sempre mediatizado pela linguagem, como
por planos e ideias a serem realizadas através da ação livre comum, elemento central da vida humana. Sem a linguagem, o entendimen-
do trabalho objetivo, da expressão corporal, etc. Emerge, assim, um to entre os homens não seria possível, não seria possível a própria
mundo configurado pelo homem e pelo sentido que o homem dá às
coisas e aos homens. Daí, a natureza se torna cultura, e o mundo,
30 Aqui se inscreve também o apoio do Curso de Antropologia Filosófica
espaço humano de vida. ministrado pelo professor Xavier Herrero no Centro de Estudos Superio-
res (ces), de Belo Horizonte - MG, em 1988.

Antropologia Filosófica
comunidade e, sem comunidade, não haveria o advento do homem. A sobrevivência, numa íntima conexão com a segurança instintiva. Se
linguagem é a expressão humana do ser-com-os-outros-no-mundo. o homem tivesse de viver como um animal, fatalmente desaparece-
É pela linguagem que recebemos uma determinada interpretação do ria. Porém, isso que se põe como certa deficiência biológica, mostra-
mundo desde os primeiros anos de vida, ela é a expressão da própria se como condição de possibilidade para uma vida livre do ambien-
comunidade em sua história. O homem cria símbolos para exprimir te e aberta ao mundo. Nossos membros são abertos, capazes de um
o seu ser e a linguagem é o símbolo por excelência da vida humana. número sem fim de atividades, possibilitando ao homem adaptação
O mundo humano é, com isso, um mundo histórico, distendido e acomodação a diferentes ambientes. Em nosso corpo, os nossos
como presente, passado, futuro. As decisões e as ações dos homens membros não são opacos, são mediações essenciais da expressão da
se dão sempre dentro de uma comunidade, na qual está presente o totalidade do nosso ser, como é o caso das mãos e do rosto humanos.
caráter da continuidade. O passado é o lugar da facticidade, do que O nosso corpo é a nossa porta de entrada no mundo; é enquanto cor-
não pode ser mudado, apenas reinterpretado; o presente é o lugar da po que primeiro somos percebidos pelos outros e nós mesmos per-
abertura, do aqui e do agora, da decisão e da ação; o futuro é o lugar cebemos os outros como presenças diante de nós. O homem É, pois,
do possível, do que ainda não é, mas que pode vir a ser. Ao mundo Corpo, mas não apenas corpo; ele aponta para as outras estruturas 122
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

humano, pois, pertence a historicidade, o fazer a história no tempo e da constituição humana que vêm nele se manifestar e fazem dele
o saber da própria história. uma presença intencional no mundo. Tanto o corpo é constitutivo
Temos, pois, que o homem é um ser com os outros no mundo e do homem que, uma vez que o corpo morre, cessam as manifesta-
o mundo humano, fundamentalmente, com esses traços constitu- ções das outras estruturas, pelo menos as manifestações normais.
tivos. E aqui se põe o modo especificamente humano de ser com os Em segundo lugar, o homem É um Ser-de-Psiquismo, estrutura
outros no mundo e mais outras condições de possibilidade da emer- dos impulsos, afetos, desejos, cuja satisfação não se prende imedia-
gência dos fenômenos humanos da autorrealização. Nelas reside a tamente ao ambiente. O homem possui instintos, mas são abertos,
resposta à pergunta ‘Quem é o homem?’. Sinteticamente, esse modo passíveis de formação e educação histórica, passíveis de determi-
e essa condição fundamental podem ser expressos pela noção de nação, porém jamais elimináveis. O homem pode distanciar-se das
Abertura Radical. coisas e da própria satisfação imediata de um desejo natural, pode
Em primeiro lugar, o homem É um Ser-Corporal. Se comparado ao decidir a forma de sua satisfação e mesmo protelar a satisfação. Isso
animal, o corpo humano apresenta diferenças essenciais. O nosso aponta para outra estrutura, que vem logo a seguir.
corpo não é especializado física e biologicamente para determina- Esses fenômenos e suas estruturas mostram uma lei funda-
das condições ambientais; o nosso corpo não possui em si mesmo as mental de todo o comportamento humano: o homem vive e age
armas para o ataque e para a defesa como instrumentos naturais da — mesmo que não saiba — n
­ a Mediação. O homem não vive na
imediatidade, mas se experimenta como um ser capaz de distanciar- liberdade. Um psiquismo doentio leva o corpo a trabalhar (funcio-
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

se da realidade exterior e de si mesmo. Isso aponta para: o homem nar) contra si mesmo e deixa o espírito cego e inoperante; um corpo
É um Ser-de-Espírito, i.e, Razão e Liberdade. Aqui estão o horizon- doente tende a deprimir o psiquismo e a limitar o poder do espíri-
te e o fundamento das decisões, das ações, dos projetos, das deter- to; um espírito que ‘esquece’ as exigências do corpo e do psiquismo
minações, abarcando o comportamento total do homem, sempre tende para a contradição de si mesmo, expressa numa vida seca e
dentro de um mundo constituído e abertamente modificável. Aqui insensata (violência).
se radica a possibilidade do conhecimento e da ação, da Verdade e Assim, o homem É ‘uma’ totalidade ‘na’ pluralidade de dimensões
do Reconhecimento ou, ao contrário, do absurdo e da violência. É (estruturas). E há uma tarefa de unificação, pois se tudo já estives-
a partir daqui que o homem pode pôr-se, e põe-se, a pergunta pelo se pronto na existência, não precisaríamos nem mais pensar, nem
Sentido Radical e último da Vida e, nela, de si mesmo, numa palavra, mais sentir, nem mais agir, nem mais trabalhar, nem mais viver.
pelo Fundamento Incondicionado. O homem, a partir daqui, pode Mais que isso: aí já seríamos um outro tipo de ser, não mais um ho-
querer e decidir-se a viver bem, pode dizer Sim, pode dizer Não, pode mem, homens. Encontrar as mediações para a harmonização num
escolher a própria destruição, pode decidir a violência e a negação do mesmo homem entre as suas estruturas plurais é a tarefa histórica
Psiquismo e do Corpo, pode escolher trabalhar o seu corpo e remo- de cada homem, numa busca pessoal e comum. A questão da doença
delar o seu psiquismo, pode buscar processualmente a unificação de passa necessariamente por uma visão holística do homem.
si mesmo e pode encaminhar-se para a loucura. Na existência concreta e num conjunto comum de relações, o
Essas estruturas, esses traços pertencem essencialmente a to- homem procura sentido por toda parte e, em última instância, o
dos os homens, e negá-los é negar-se. Todas elas possuem suas Contentamento. Porém, se nós sempre estamos referidos aos outros,
Exigências inalienáveis. O problema é como realizá-las no homem, sempre dentro de uma comunidade, se a busca do contentamento se
que é um só. Com outras palavras, é na existência concreta, i.e, na põe como aspiração de todos, então o contentamento se põe como
relação com o mundo, na relação com os outros, na relação consigo tarefa comum, na mútua possibilitação de homens que se queiram
mesmo, - e por que não? - na relação com a transcendência que cada unificados numa comunidade sensata. E, com isso, aparece-nos que
homem tem a tarefa de autorrealizar-se por uma unificação crescen- não é possível o contentamento razoável e duradouro de um só, sem
te da qual o homem até pode fugir, mas ela permanecerá como ques- que se instale algum germe da violência. Aí é que se põe o problema
tão não resolvida. da dimensão ética do homem.
Um corpo não harmonizado encaminha-se para a doença; um O problema do homem não está nas suas estruturas com suas res-
psiquismo não harmonizado tende para a neurose e para a loucura; pectivas exigências; o problema está no que fazemos ou deixamos de
um espírito não harmonizado tende a ofuscar a razão e a embotar a fazer com elas na existência concreta. Com efeito, um corpo sadio tem 123
suas pré-condições, um psiquismo sadio tem suas pré-condições, encarnado no ato-a-ato da vida, num progresso infinito. Certa-
um espírito sadio tem suas pré-condições. Ora, se uma é a vida do ho- mente não será preciso exemplificar aqui os efeitos internos e
mem, é tarefa de cada homem encontrar um sentido, de tal qualidade externos da ausência da verdade. E viver na verdade só depende
que seja a espinha dorsal de sua unificação, na existência concreta, de mim, de cada um.
com os outros no mundo. De fato, dificilmente haverá um homem de 2ª. Só é duradouro o contentamento que se pauta num profundo
corpo sadio se não houver um mínimo de cuidado e proteção (e saber Bem-Querer por qualquer homem, incluindo a mim mesmo
que por bons anos foram os outros que nos deram isso!); dificilmente nele. Podemos condensar isso na expressão ‘Reconhecimento
haverá um homem de psiquismo sadio sem um mínimo suficiente de Incondicional’, como decisão a priori do espírito. Este bem-
experiências de Estima ofertada pelos outros e de Autoestima de si querer, este reconhecimento também só depende de mim. É
mesmo; dificilmente haverá um homem de espírito equilibrado sem daí que nascem todas as formas de Gratuidade, Solidariedade,
alguma experiência radical de Reconhecimento de sua dignidade Renúncia em favor de, partilha, justiça sem igualitarismo, en-
fundamental, pelo simples fato de ser um Ser-Humano. E, sem isso, fim, todas as ações que estruturam e sustêm a comunidade.
dificilmente haverá uma comunidade verdadeiramente humana, i.e, 3ª. Só é duradouro o contentamento do homem que se torna capaz
razoável, nem haverá nela homens contentes. de Diálogo permanente e desarmado, porque o seu bem-querer
124
Entretanto, o cuidado do corpo e o redimensionamento das coi- o faz capaz de ouvir e porque quer a verdade, não teme o que
sas do psiquismo apontam para o espírito, enquanto capaz de se dis- será dito. É daí que nascem todos os consensos e todo entendi-
tanciar, decidir, escolher, optar sobre o ‘que e o como’ fazer para a mento sem opressão dentro das relações dos homens entre si e
realização da tarefa de unificação. Certamente, ao longo de uma his- com o mundo.
tória, ocorrem atrofias e lacunas antropológicas em diferentes ní- 4ª. Só é duradouro o contentamento do homem que é capaz de Per-
veis; compete ao homem, que advém para a maioridade, retomar-se doar, porque sabe que, mesmo o mais sábio dos homens, pode
a si mesmo, livre e conscientemente, com a ajuda dos outros, abrin- em algum momento recair na violência, no erro, na falta. E, se
do-se para a consecução daquilo que ficou ausente e fez muita falta todos os homens podem vir a falhar – e falham – então o per-
ao contentamento. E, consciente disso, pode - se quiser - contribuir dão é um elemento imprescindível para a vida em comum.
para o contentamento de tantos, e de forma decisiva. 5ª. Só é duradouro o contentamento do homem que reconhece que
A exigência de unificação e o contentamento de cada um e de to- só os outros homens podem - mesmo que não queiram ou não
dos remetem a mais algumas pré-condições inalienáveis. façam - reconhecê-Lo livre e verdadeiramente como homem
1ª. Só é duradouro o contentamento daquele(s) homem(s) para quem no seu incondicional valor. Quando há esse reconhecimento
a Verdade é assumida como valor intransponível e inadiável - recíproco - o ser se dilata, se preenche na sua exigência e se

Antropologia Filosófica
engrandece; se não, permanece ao nível da espera e da espe- rivalidade os homens vivem aí e se ainda estão vivos é porque ainda
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

rança. Sobre isso se funda, como algo consequente, a questão há algum rudimento de reciprocidade que sustenta a sobrevivência e
do direito e do dever (direito positivo). a coexistência dos mesmos homens; se tivesse visto que os homens,
Tenho para comigo que, por um lado, o corpo e o psiquismo, se além de se coisificarem pelo olhar, podem – se quiserem – o pela
bem conduzidos, não opõem maiores dificuldades a isso; ao contrá- mesma liberdade, se reconhecerem como liberdades na reciprocida-
rio, é nisso que podem encontrar a sua plenificação. Por outro lado, de; então, provavelmente, as conclusões antropológicas de Sartre se-
quando falta uma só destas pré-condições na vida do homem, na riam outras, não haveria talvez o afã de efetuar mais uma vez a morte
vida comum, a violência, o individualismo, o desequilíbrio, a injus- de Deus em nome da liberdade humana e, possivelmente, não teria
tiça, enfim, uma gama sem fim de males começam a se instalar no chegado ao pessimismo existencial do homem como ‘paixão inútil’.
homem e fora dele, como aqueles que eu apontava na primeira parte Esse problema de permanecer nas afecções da situação também
dessa exposição. E porque há tantos males, chegamos a achar que tem atingido muitas das ciências humanas e mesmo muitas verten-
não tem mais jeito, ou mesmo que o mal é o normal. tes terapêuticas. No geral, parte-se de um fenômeno ou conjunto
particular de fenômenos eleitos – não se sabe bem a partir de onde
2.1. – como os mais significativos, formula-se uma hipótese explicativa
Um Passo à Frente e se busca a confirmação empírica. Tenho para comigo que muitas
terapias e teorias conseguem, no máximo, apagar incêndios, sem sa-
Se J.-P. Sartre não tivesse permanecido no âmbito ‘do mundo como ber o que há efetivamente por dentro da casa em chamas, o homem.
ele vai’, talvez não tivesse dito com tanta ênfase que ‘o inferno são os Para aquele que quiser ajudar a um homem doente, é preciso enten-
outros’ . Se ele tivesse partido desse fato banal porque universal de
31
der muito de Humanidade, inclusive para poder avaliar os próprios
que todo homem deseja e espera viver contente, e o contentamento métodos e técnicas terapêuticas. Porque, na verdade, antes do pacien-
implica os outros, talvez tivesse gasto muitas e tão belas forças da te há o homem, antes do médico ou terapeuta há um outro homem.
Razão na procura, na explicitação do que os homens precisam efeti- Se lidar com os homens, viver com os homens estão coisas difí-
vamente para viverem bem, contentes. Se ele não tivesse expurgado a ceis, mais difícil parece ser viver humanamente. Isto que se apre-
comunidade para fora do horizonte da realização da liberdade; se não senta aparentemente dificultoso e antagônico, na verdade, mostra
tivesse tomado a liberdade no seu solipsismo e isolamento na tenta- uma relação de reciprocidade e a dificuldade pelo menos se ilumina.
tiva de autossuficiência; se tivesse conseguido enxergar que antes da Com efeito, quando procuramos viver o verdadeiramente humano -
humano porque humaniza a quem busca e a quem recebe a ação -
31 Cf. J.-P. Sartre in: O Ser e o Nada. São Paulo: Vozes, 1997. fica bem mais fácil de compreender os outros nas suas dificuldades, 125
nos seus males. A ação humana é aquela que aproxima distâncias, uma preocupação séria com o sem-sentido da vida, ou com o lugar
faz até do desconhecido um candidato a priori da convivência, pelo da morte na vida do homem. Às vezes, um diálogo de profundidade,
simples fato de ser um ser humano. Se é assim que desejaríamos ser uma partilha ou a indicação de determinado livro sobre o assunto
tratados, todos e cada um o desejam e, portanto, a ação humana tem ajudam muito mais. O remédio, às vezes, é o apoio, a solidariedade,
um alcance universal pela sua razoabilidade. Isso vale para qual- especialmente quando o medicamento falhar ou não der conta.
quer âmbito, para qualquer profissão, na relação professor-aluno, No âmbito dos tratamentos e das terapias, é visível a importância
médico-paciente, analista-analisado, e assim por diante. Já aquele do trabalho conjunto e da interdisciplinaridade. Isto inclui a pesqui-
que não procura ser humano não pode nem reclamar - sob condi- sa conjunta, o estudo, a avaliação, o questionamento permanente, a
ção de contradição - quando a desumanidade (violência) lhe advém socialização das experiências e mesmo a divulgação de um trabalho
pelas ações dos outros. que deu ou dá certo. É no encontro e no confronto com os outros, no
O bem-querer é, pois, uma exigência e uma condição que se im- embate de opiniões que o nosso próprio horizonte de compreensão
põe a qualquer homem, sobretudo àqueles cujo mister é lidar com do homem se engrandece e nossa eficiência humana se amplia. Mas
as coisas humanas nos homens concretos. E, para preencher essa inclusive para se trabalhar em conjunto, é preciso preencher pro-
condição, possuir muitos conhecimentos não é o suficiente, embora gressivamente aquelas pré-condições de que falávamos há pouco.
seja importante e mesmo necessário para a eficiência. Com outras Se existe um ditado popular que diz ‘médico, cura-te a ti mesmo!’
palavras: não é preciso sacrificar a competência profissional, a qual e outro ‘tira primeiro a trave do teu olho para poder ver melhor!’, po-
deve ser sempre remetida à e fundada na competência humana. deríamos, na mesma esteira, afirmar mais um que, de certo modo, já
Na verdade, quando um homem adoece, é ele todo que adoece, está dentro dos anteriores: ‘terapeutas em geral, mostrem que suas
mesmo que a manifestação se dê em uma das estruturas. Hoje em dia vidas dão certo pelo fato de serem trabalhadas em todas as dimen-
são poucas as formas de tratamento - e porque não de cuidado! - que sões!’. Parece que Sócrates continua tendo razão com seu velho prin-
consideram o homem na totalidade de suas dimensões, na totalidade cípio ‘conhece-te a ti mesmo’ e, talvez, por visar a essência humana
de suas relações, sobretudo quando a medicina, a psicologia, o ma- é que ele era tão profundo e eficiente no seu trabalho de parto do
gistério, etc, experimentam uma multiplicação sem fim de especia- humano (maiêutica) nos homens daquela Grécia, naquela parcela de
lidades. A doença, a dor, o sofrimento ou a angústia podem provir de homens que se abriram para a inesquecível e referencial experiência
experiências pertencentes a certos campos oficialmente relegados à do humano já a partir de si.
desimportância, como é o caso do âmbito religioso da vida. Se não Talvez agora fique mais fácil para mim mesmo e para muitos
se ajudar a partir dali onde o problema surge, não adianta remédio entender o conteúdo daquele breve texto que serviu como ponto de
para gastrite nem certas terapias se o problema for, por exemplo, partida para esta exposição. Com efeito, do jeito que o mundo vai,

Antropologia Filosófica 126


do jeito que os homens estão e o que têm feito de suas vidas, as pi- APONTAMENTOS
caretas antropológicas encontram muita dificuldade em quebrar ou
remover as pedras que entulham e atravancam o caminho do con- CONCLUSIVOS
tentamento, da vida razoável em comum. E todo aquele que quiser
ajudar acaba sofrendo - não de forma masoquista - porque nem
sempre os homens têm ao menos desejado o seu verdadeiro bem. Chegados até aqui, podemos concluir com poucas e breves conside-
Para tanto, é preciso manter na ordem do dia o bem-querer, que não rações. Se as coisas não vão bem com os homens e com o mundo,
depende e não se prende a ganhos e retornos imediatos, pois assim isso não é motivo nem pode ser pretexto suficiente para o desânimo,
vale a pena, pelo menos diante da totalidade de si mesmo, continuar para o pessimismo e muito menos para a acomodação. Na verdade,
a viver e viver contente. há muita coisa para ser feita que pode ser feita e bem-feita, de forma
pessoal, de maneira conjunta. A omissão, quando se tem consciên-
cia da urgência de agir, implica em contribuir para o incremento do
espírito desumanizante do nosso tempo. 127
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Lembremo-nos sempre e mais uma vez das pré-condições do


contentamento, especialmente do bem-querer, chave de ouro do hu-
mano. Com isso, podemos esperar o advento de mais ideais e menos
ideias, mais atitudes e menos teorias, menos enrolação e mais curas
- inclusive a cura de cada um -, menos indivíduos e mais homens. E
há uma boa pedra de toque para isso: colocar a si mesmo em questão
como a melhor para ser a nossa primeira questão. Assim, lógica e
epistemologicamente, poderemos dar porque temos o que dar e, on-
tologicamente, poderemos Doar porque Somos, sem dualismo entre,
sem antagonismo entre: o nosso conhecimento, a nossa vida e o Ser.
VIDEOS E BIBLIOGRAFIA
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

MATERIAIS COMPLEMENTAR:
DE SUPORTE: •  bauman, Zygmunt. A Arte da Vida. Tradução, Carlos Alberto
Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2009a.
•  Documentário: Servidão Moderna/
https://youtu.be/xAVYFYMFAag ______. A Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias
vividas. Tradução, José Gradel. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
•  Documentário: A História das coisas: https://goo.gl/iBhULh
2008a.

BIBLIOGRAFIA ______. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tra-
dução, Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
BÁSICA: Ed., 2004.

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xandre Werneck. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010a.
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Antropologia Filosófica
MÓDULO 6
PARTE II
A Crítica:
O Cerne do
Humanismo
Ocidental
desde Lévinas
1
NO INTERIOR
DO HUMANISMO
OCIDENTAL

1.1.
Colocação do Problema
A compreensão do ser humano hoje – envolto no devir multifacético caminho do Ocidente, possamos encontrar as condições de possibili-
da violência que se esparrama em movimentos desde raízes múlti- dade de nossos tempos sombrios e descubramos que uma barbárie es-
plas – implica bem mais do que os costumeiros retornos científicos teja disfarçada de civilização. 131
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

e filosóficos à Modernidade. Pensamos que é preciso uma nova apro- Mesmo que Rousseau, Marx ou Outros tenham endereçado uma
ximação hermenêutica, pensamos que é preciso um movimento ar- crítica radical à propriedade privada como uma das matrizes da
queológico de penetração no anterior da Modernidade, pensamos que violência que nos põem em cadeias por toda parte (rousseau, 1987a,
não basta compreender a Modernidade para compreendermos com 1987b), eles e outros Pensadores tidos como grandes no Ocidente não
alguma segurança a Pós-Modernidade e o ser humana ali e desde ali. conseguiram de fato, a nosso ver e com Lévinas, desconstruir e des-
Com efeito, estes são dois momentos de nossa História comum que nudar os pilares da nossa Civilização. E isso é compreensível. Com
mereceram e merecem destaque hermenêutico quer nas Ciências, efeito, suas compreensões e suas críticas, suas vontades de instaura-
quer na Filosofia, quer na Literatura ou na Arte. Mas talvez tudo o ção e seus ideais emancipatórios sempre deixaram intactos os pila-
que temos passado e vimos passando, os tumores que nos habitam res, a lógica, a arché e o telos da mesma Civilização porque sempre
e vivem na iminência de eclodir nos puxem o Pensamento – e talvez se moveram na e da mesma matriz e, como tal, seus achados e pos-
até mais do que ele – na direção de raízes mais fundas, de muitos síveis levantados nunca puderam passar de revisões parciais e até
atrativos, de muitas verdades que, em realidade, fizeram ser a reali- mesmo de remendos críticos da Civilização mesma.
dade que a humanidade mesma construiu. Parece-nos que seja pre- Talvez os maiores críticos no Ocidente tenham sido os aclama-
ciso encarar a nossa Civilização, suas matrizes e seus fundamentos, dos mestres da suspeita – Marx, Nietzsche e Freud – por terem bus-
sua lógica maior e suas grandes mediações. Talvez, percorrendo o cado e afirmado um outro atrás da Consciência Subjetiva provedora
e organizadora do Sentido: uma Luta de Classes, uma Vontade de tempo seja visto por Lévinas como um tempo de fim de um mundo.
Poder, o Inconsciente. Mesmo nesses casos, temos ainda um pro- Neste sentido, a recolocação do problema do humano no discurso
longamento e até mesmo a radicalização do Ser-Ocidental. Os hu- e nas práticas conserva sempre um imenso valor, mas também diz
manismos decorrentes de suas proposições interpretam o humano que, se é de novo preciso recolocar a questão do humano, é porque o
ainda como variações e possibilidades da mesma matriz em tempos homem, os homens, a vida humana vai mal, ainda!
históricos diferentes, mas, no fundo, penetrada pela mesma lógica e A obra de Lévinas – e nela a crítica ao Ocidente e seu humanis-
pelos mesmos problemas. mo – localiza-se em três tempos históricos: entre as duas guerras
Parece-nos que é com Lévinas que acontece uma verdadeira, ra- mundiais, durante a segunda guerra – quando sofreu na carne os
dical e ampla arqueologia do Ocidente e de seus humanismos. É que aguilhões do nazismo – e no pós-guerra – quando faz de vez a expe-
para isso é preciso ter mundo, ter experienciações, ter outras referên- riência do fim do mundo ou do fim de um mundo. O ponto de parti-
cias como horizonte interpretativo, habitar e ser habitado por outras da de sua crítica é, pois, a situação de época, de violência extrema-
bases e outra lógica da tessitura da vida; em suma, ter um contra- da que põe em xeque os princípios, a lógica e os fins da Civilização
ponto existencial e de linguagem. O que foi que o mundo europeu Ocidental. Como ele diz,
disse dos índios da América? Terá Rousseau interpretado suficien-
A divergência entre os acontecimentos e a
temente o bom selvagem? Qual seria o dito dos vencidos nos proces- ordem racional, a impenetrabilidade recíproca
sos infindos de colonialismo e neocolonialismo proporcionados pe- de espíritos opacos como a matéria, a
los ocidentais? Certamente as concepções de homem, de mundo, de multiplicação de lógicas que se consideram
mutuamente absurdas, a impossibilidade de que
vida humana são decisivas na configuração que cada comunidade
um Eu encontre um Tu e, consequentemente,
histórica procurou dar à existência concreta. E certamente há em a incapacidade da inteligência para sua função
todas as culturas ideais, referências significantes de valor máximo, essencial são constatações que, no crepúsculo
a partir dos quais são tecidas as lógicas da vida em comum. Qual será de um mundo, despertam a antiga obsessão do
a nossa, Ocidental? Abrimos um tempo, agora, para ouvir Emmanuel fim do mundo. [...] Mas, este termo expressa um
momento do destino humano, momento limite
Lévinas, especifica e propositadamente para ouvir.
que comporta por ele mesmo ensinamentos
Certamente muito se escreveu e se escreve sobre humanismo, so- privilegiados (lévinas, 1998a, p. 21)32.
bretudo quando as horas, o tempo da humanidade não vai bem. Na
verdade, o tema do humanismo é um território histórico do Ocidente,
imensamente problemático, conflitivo, com uma infinidade de so- 32 lévinas, Emmanuel. Da Existência ao Existente. São Paulo: Papirus,
breposições, o que não é exclusivo do nosso tempo, embora o nosso 1998a.

Antropologia Filosófica 132


O transcurso de tantas e tamanhas in-humanidades do nosso tem- Para Lévinas – e isto é o grave – o humanismo greco-romano for-
po – que vão da violência mais velada ao horror – sentidas e sofri- mulou o sentido do humano de maneira errônea e também não o
das por Uns, executadas e “bem-feitas” por Outros, é que põe para protegeu; o sentido do humano não pode se esgotar em suas huma-
Lévinas a necessidade de uma crítica não apenas localizada ou en- nidades. As humanidades ocidentais são curtas e estreitas para fazer
dereçada a um setor do acontecer da vida, mas de uma crítica radical valer realmente o humano. O caráter inumano (violento) dos aconte-
dos humanismos do Ocidente e suas formas de saber e de realização, cimentos do século passado – e a continuidade neste século – con-
segundo ele, responsáveis pelos genocídios e guerras ininterruptas, duziu a uma desconfiança profunda, dentro do mesmo do Ocidente,
do Ocidente contra os outros, do Ocidente contra os ocidentais. De de todo discurso sobre o homem, a uma espécie de anti-humanismo.
fato e em abundância, temos problemas no exercício e nos fins da No fundo, o que está em questão é todo um projeto de cultura que
Ciência, problemas na Filosofia, problemas na administração e na resultou, na verdade, numa crise civilizatória que comprova dras-
Política, problema de massificação e anonimato, problema de violên- ticamente a fraqueza e a insuficiência das fundações desta mesma
cia aberta e diluída, problema da fome em todos os rincões do pla- Civilização e a corrosividade humana de sua própria lógica interna.
neta: crise geral do Ocidente e de seu humanismo. Tudo indica uma De onde Lévinas fala, “O humanismo só deve ser denunciado por-
fragilidade do humanismo dentro da forma de saber ocidental, a in- que não é suficientemente humano” (1999, p. 201). De onde ele fala,
133
capacidade constitutiva para assegurar os princípios de humanidade parece-lhe que “A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia
cujo humanismo se acreditou depositário. do poder” (1971, p. 37). De onde ele fala, parece-lhe que
A obra e a crítica de Lévinas procedem de um outro mundo, de
É necessário encontrar para o homem um
uma outra maneira de experienciar, significar e encaminhar a vida parentesco distinto daquele que o remete ao ser, o
humana, de uma cultura outra, abafada, silenciada pelo Ocidente – qual talvez permitisse pensar esta diferença entre
como tantas outras –, mas que permanece viva e esperando sua vez mim e o outro, esta desigualdade, em um sentido
radicalmente oposto à opressão (1999, p. 257).
de manifestar-se e fazer ver sua luminosidade. Lévinas fala a partir
do mundo bíblico judaico centrado na Thora, nos Profetas e nas in-
1.2.
terpretações do Talmud. Ele fala desde um anterior ao cristianismo
ocidentalizado, de uma lógica cujo sentido fulcral põe desde o início Do Ocidente
o interdito tu não matarás como forma de comando, de mandamen-
to. É porque é possível viver de outro modo, a partir de outro lugar, A crítica lévinasiana ao Ocidente, à Filosofia Ocidental e ao humanis-
que também é possível ver direito se é direito o nosso modo ocidental mo decorrente mostra então toda a sua contundência. Jacques Der-
de fazer a vida e a morte acontecer. rida chega a afirmar que “[...] tal pensamento terá mudado o curso

Antropologia Filosófica
da reflexão filosófica do nosso tempo” (1998, p. 21)33 O que é propria- Com isto, Ocidente significa liberdade de espírito e todas as suas
mente o Ocidente? É, sobretudo, uma forma de pensamento e uma ma- virtudes e boa parte de seus vícios a ela se ligam. Liberdade de espí-
neira de abordar e significar o real, identificado com o Ser. Para Lévinas, rito que significa o cuidado de tecer com a Verdade o laço maior e in-
a história do Ocidente pode ser interpretada como uma tentativa terno: voltar-se para o verdadeiro, mas, neste direcionar-se, agir como
de síntese universal, uma redução de toda a experiência, de tudo o mestre que, diante da evidência, mantém uma suprema liberdade.
que tem sentido, a uma totalidade onde a consciência abraça o mun- Herdeiro da sabedoria grega, o ocidente possui em sua base uma re-
do, nada deixa fora dela e torna-se assim pensamento absoluto. Ser latividade histórica dos valores, pondo-os permanentemente sob sua
consciência de si é ao mesmo tempo ser consciente do todo. Sempre contestação e incessante re-avaliação, bem como um trabalho sem-
essa busca de totalização pela qual a filosofia ocidental mesma se pre inconcluso de fundamentação com o consequente e incessante
define e contra a qual não houve – no transcurso da história – pro- desdobrar-se de uma genealogia da moral (lévinas, 1982c, p. 37)35
testos significativos. Ocidente é sinônimo de Grego:
1.3.
Eu denomino grego [...] a maneira pela qual se 134
exprime ou se esforça por exprimir em todas as Da Filosofia do Ocidente
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

regiões da terra a universalidade do Ocidente,


transpondo os particularismos locais do Como filho do Ocidente, o discurso filosófico reivindica a amplitu-
pitoresco, ou folclórico, ou poético, ou religioso.
de de um englobamento ou de uma compreensão última. Ele obriga
Linguagem sem prevenção, falar que morde
sobre o real, mas sem aí deixar traços e capaz, todo outro discurso a se justificar diante da Filosofia. Essa pretensão
para dizer a verdade, de desfazer os traços à dignidade de discurso último reaparece para a Filosofia ociden-
deixados, desdizer, redizer. Linguagem já meta- tal por conta da busca de coincidência rigorosa entre o pensamen-
linguagem, cuidadosa e capaz de preservar o to – onde a Filosofia se estende – e a ideia de realidade – onde este
dito, as estruturas mesmas de sua língua,
pensamento pensa. “Para o pensamento esta coincidência significa:
que se pretendem categorias do sentido
(lévinas, 1988, p. 158)34. não ter que pensar além disto que pertence ao ‘gesto de ser’; ou pelo
menos não ter que pensar além disto que modifica uma prévia per-
tença ao ‘gesto de ser’” (lévinas, 1998b, p. 94). Como decorrência,
o discurso filosófico deve poder abarcar Deus, se de fato esse Deus
33 derrida, Jacques. Adiós a Emmanuel Lévinas. Trad. de Julián Santos
Guerrero. Madrid: Editorial Trotta, 1998. existe e tem um sentido. Pensado, esse Deus também deve se situar

34 lévinas, Emmanuel. A l’Heure des Nations. Paris: Éditions de Minuit,


1988. 35 lévinas, E. L’au dela du Verset. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982c.
no interior do gesto de ser. Daí, a Filosofia (ocidental) não é somente de Platão onde o Bem está acima do Ser – tem se realizado, o mais
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

conhecimento da imanência, ela é a própria imanência. das vezes, como ontologia, ou seja, como uma redução do Outro ao
Para Lévinas (1976a, p. 262), Mesmo. Assim, “Para a tradição filosófica do Ocidente toda espiritua-
lidade pertence à consciência, à exposição do ser no saber” (lévinas,
Tudo se reduz para a cosmologia antiga ao
mundo; para a teologia medieval, a Deus; 1999, p. 164, grifo nosso).
para o idealismo moderno, ao homem. Esta Ora,
totalização chega ao termo em Hegel: os seres Afirmar a prioridade do ser por relação ao ente
não têm sentido a não ser a partir do Todo da é já se pronunciar sobre a essência da filosofia,
história, que mede sua realidade e que engloba subordinar a relação com “alguém” que é um ente
os homens, os Estados, as civilizações, o próprio (a relação ética) a uma relação com o “ser do ente”
pensamento e os pensadores. A pessoa do que, impessoal, permite o alcance, a dominação
filósofo se reduz ao sistema da verdade do qual do ente (a uma relação de saber), subordina a
ela é um momento [...]. Mas a totalidade não justiça à liberdade. A ontologia heideggeriana,
dá nenhum sentido para a morte; que cada um subordinando à relação com o ser toda a relação
morra por sua conta. A morte é irredutível. com o ente, afirma o primado da liberdade por
relação à ética (lévinas, 1971, p. 36).
O sistema hegeliano representa o acabamento do pensamento e da
história do Ocidente, entendidos como giro de um destino em liber- Com isso, a liberdade surge a partir de uma obediência ao ser: não
dade, a razão querendo e se exercitando como penetração em toda re- é o homem que tem a liberdade, é a liberdade que tem o homem. Mas
alidade ou, pelo menos, querendo aparecer nela. Segundo a expressão a conciliação dialética entre a liberdade e a obediência no conceito
lévinasiana, trata-se simplesmente de um Empreendimento inaudito! de Verdade implica, desde antes, a primazia do Mesmo, por onde se
(LÉVINAS, 1976a). E mais: “A obra hegeliana, onde vêm se lançar todas conduz toda filosofia ocidental e pela qual ela se define.
as correntes do espírito ocidental e onde se manifestam todos os seus A relação com o ser, que se efetua como ontologia, consiste em
níveis, é uma filosofia ao mesmo tempo do saber absoluto e do ho- conhecer e atingir o ente pela sua neutralização. Ela não é uma rela-
mem satisfeito [...]. Acordo e unidade do saber” (lévinas, 1998b, p. 214). ção com o Outro enquanto tal, mas a redução do Outro ao Mesmo. É
Dizendo de outro modo, a Filosofia que nos é transmitida faz re- perfazendo e completando um círculo ao redor do ente que acontece
tornar toda significância – toda racionalidade – ao ser, ao gesto de ser a apreensão do ser do ente. Com efeito,
conduzido pelos seres enquanto se afirmam como seres, ao ser en- Tal é a definição de liberdade: manter-se contra
quanto se afirma como ser, ao ser enquanto ser. Isto significa: a filo- o Outro, apesar de toda relação com o Outro,
sofia ocidental – salvo raras exceções, como na República ou no Fedro assegurar a autarquia de um Eu. A tematização 135
e a conceptualização, inseparáveis, não são Heidegger encontra no pré-socratismo o
paz com o Outro, mas supressão ou possessão pensamento como obediência à verdade do ser.
do Outro [...]. “Eu Penso” torna-se “Eu Posso”, [...] Heidegger, como toda história ocidental,
uma apropriação do que é, uma exploração da concebe a relação com o Outro movendo-se
realidade. A ontologia como filosofia primeira no destino dos povos sedentários, possuidores
é uma filosofia do poder [...]. A verdade que e construtores da terra. A posse é a forma por
deveria reconciliar as pessoas existe aqui excelência sob a qual o Outro torna-se o Mesmo,
anonimamente (lévinas, 1971, p. 37). tornando-se o Meu. Denunciando a soberania
dos poderes técnicos do homem, Heidegger
Segundo Lévinas, a totalização ontológica só é possível pela vio- exalta os poderes pré-técnicos da posse [...].
lência executada por um sujeito luminoso que se coloca no centro A ontologia torna-se ontologia da natureza,
impessoal fecundidade, mãe generosa sem
do pensamento do ser, do ente, e transforma o diferente em insigni-
rosto, mátria dos seres particulares, matéria
ficante, marginal, periférico, uma posse, uma sub-jugação ou uma inesgotável das coisas. Filosofia do poder, a
treva. Com efeito, ontologia como filosofia primeira, que não põe
em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça
O triunfo do Ser é o triunfo do senhor único que
(lévinas, 1971, p. 37-38).
tira dos escravos sua própria voz para afirmar-se
como senhor sobre eles. História de violência, de Em decorrência, a ontologia heideggeriana conduz fatalmente a
marginalização, de escravidão e de segregação
uma outra potência, à dominação imperialista, à tirania. Dar prio-
total, cuja lógica interna não se detém nem
mesmo na demência da destruição absoluta que ridade ao Ser antes do Ente, à ontologia antes da metafísica, é dar
atinge ao próprio destrutor em um estúpido passagem e lugar ao arbítrio – ao arbitrário – antes da justiça.
jogo de “aprendiz de bruxo”. No fundo estão Segundo Lévinas, os conflitos que ocorrem nessa totalidade –
Auschwitz e a ameaça permanente de genocídio fundamentalmente os conflitos entre o Mesmo e o Outro – só podem
nuclear (lévinas, 1999, p. 24).
encontrar um encaminhamento de resolução na teoria, onde o Outro
Como já é possível reter pelas últimas citações, dentre os filóso- é reduzido ao Mesmo, com-preendido. Concreta e historicamente,
fos contemporâneos – que levam a efeito esse processo de totali- tal redução foi efetivada pelo Estado como poder anônimo, trans-
zação, essa redução à mesmidade ontológica, esse pastoreamento do formado ou transfigurado em o inteligível ou na consciência ou na
Ser –, Martin Heidegger e seu Ser e Tempo é o endereço mais agudo racionalidade; o diferente, todo o diferente é enquadrado e abolido na
para onde é enviada a gravidade e a força da crítica lévinasiana. comunidade do Estado-nação. Isto significa:
Com efeito,

Antropologia Filosófica 136


Para a tradição filosófica do Ocidente, toda satisfação dos desejos sem prejuízo para
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
relação entre o Mesmo e o Outro, quando a liberdade e os prazeres dos outros e, por
ela não é mais a afirmação da supremacia do consequência, instauração de uma lei justa,
Mesmo, se reconduz a uma relação impessoal isto é, de um Estado racional e liberal, de um
numa ordem universal. A filosofia ela mesma Estado em paz com os outros Estados e abrindo,
se identifica com a substituição das pessoas sobretudo, aos indivíduos um domínio tão largo
pelas ideias, do interlocutor pelo tema, da quanto possível do privado, no seio do qual a lei
exterioridade da interpelação pela interioridade não entra (lévinas, 1976a, p. 38, grifo nosso).
da relação lógica. Os entes são conduzidos ao
Neutro da idéia, do ser, do conceito (lévinas, Já num sentido mais estrito,
1971, p. 87, grifo nosso).
[...] o humanismo significa o culto a esses
E ali dentro devem se mover. mesmos princípios. A chama interior do
humanismo se reanima no contato com certas
1.4. obras e no estudo de certos livros onde se
exprimiriam pela primeira vez e pelos quais
Do Humanismo na Filosofia Ocidental
se transmitiriam esses princípios, essas
humanidades (lévinas, 1976a, p. 386).
No marco geral do Ocidente e da Filosofia tal como ficou exposto,
se inscreve, como decorrência, a questão do humanismo. Na visão Para Lévinas, o pensamento europeu subordina até mesmo a ge-
lévinasiana, os humanismos do Ocidente – mesmo em ocaso signifi- nerosidade moral às necessidades do pensamento objetivo. É que no
cativo – são os porta-vozes da razão-de-ser mesma do Ocidente e da âmbito da ação se encontra e aparece um dos maiores pilares – talvez
humanidade propugnada, do melhor do humano possível. Mas o que o maior – da mesma Civilização Ocidental e, como tal, ele não pode
é o humanismo? – ou não deve – ser questionado. Todo pensamento e todo discurso,
na verdade, trabalham objetivamente na defesa e engrandecimento
Em sentido geral, humanismo significa o
reconhecimento de uma essência invariável desse pilar. Nessa tradição – que é hegemônica –, “[...] a espontanei-
chamada “homem”, a afirmação de seu espaço dade da liberdade não se põe em questão. Sua limitação seria trági-
central na economia do Real e de seu valor ca e escandalosa” (lévinas, 1971, p. 81-82). Em geral, a liberdade só
dando origem a todos os valores: respeito
é posta em questão se e somente se ela estiver sendo imposta a ela
à pessoa, em si e no outro, importando a
salvaguarda de sua liberdade; afloramento da mesma. Mas, na verdade – como veremos longamente no Segunda
natureza humana, da inteligência na Ciência, Parte –, não é bem assim, ou seja, isso não é bem a verdade. Com
da criação na Arte, do prazer na vida cotidiana; efeito, existe um factum primeiro e decisivo que é deixado de lado em 137
ela torna possível. E sob sua racionalidade, sob
nome da liberdade mesma defendida pelo discurso do Mesmo. O fac-
a racionalidade da lei, suspeita-se de negros
tum é que eu não pude escolher livremente minha existência. Então, desígnios e segredos de guerras clandestinas. E
eu mesmo não posso justificar o advento de mim como liberdade. eis que a libertação do homem não reside mais
Mas, na história do Ocidente e de seus discursos sobre o humano, em sua libertação econômica como seu lugar
privilegiado. Ela está no desejo não cerceado
mesmo que a liberdade fracasse no projeto de justificar a si mesma
e na clareza projetada sobre este desejo. A
por si mesma, a teoria política sempre procurou extrair a justiça do partir daí pode-se seguir o encadeamento das
valor indiscutível da espontaneidade; esta deve ser assegurada pelo consequências, a libertação do desejo movendo
conhecimento do mundo e, na teoria, é ela que poria minha liberda- a lei e a obrigação. A ideia de liberdade progride
de em acordo com a liberdade dos Outros. “Esta posição não admite da seguinte maneira. Da libertação econômica
à liberdade sexual, à educação sexual através
apenas o valor indiscutível da espontaneidade, mas também a possi-
de todos os degraus desta libertação; libertação
bilidade para um ser racional de se situar na totalidade. Ela parte do a respeito das obrigações às quais a hetero-
conhecimento do mundo” (lévinas, 1971, p. 81-82). Daí, o fracasso da sexualidade está ainda naturalmente ligada e
auto-justificação da liberdade é muito bem escamoteado pelo desvio até os êxtases solitários da droga onde não se 138
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

tem mais a necessidade de qualquer relação inter-


de foco na direção do conhecimento e da dominação do mundo.
humana, onde enfim as responsabilidades se
Como funciona e se move no Ocidente, na Filosofia e no huma- rompem! A espiritualização até o fim – não é a
nismo a estruturação da vida em comum assente na inquestionabi- solidão, é o êxtase solitário da droga, o espírito
lidade da espontaneidade da liberdade? Deixemos Lévinas mesmo nos vapores do ópio! O ópio como religião do
contar. O trecho é longo, mas altamente esclarecedor e contundente. povo! Mas existe mais um degrau a descer. Tudo
é permitido, nada é absolutamente interdito.
De fato,
Nada mais é interdito a respeito do outro (lévinas,
Tudo começa sem contestação no respeito ao
1976a, p. 395-396, grifo nosso).
homem e na luta por sua libertação, por sua
autonomia, pela lei que ele se dá a si mesmo,
pela liberdade. [...] Tudo vem, desde então, a Na verdade, se a liberdade – defendida com unhas e dentes – é ca-
uma luta pela liberdade que se faz luta contra paz de tanto, de tornar tudo permitido, o que temos é uma crise radical
a exploração econômica, a qual arruína os do humanismo no seu pilar maior, crise que, segundo Lévinas, mos-
alicerces da autonomia pelas falsas aparências trou sua face tenebrosa nos inumanos acontecimentos da história re-
de um contrato entre patrão e assalariado – de
cente: primeira guerra mundial, pensamento marxiano se renegando
um contrato entre in-iguais – que tem uma parte
de fraude. Luta que é dura e exige leis. Mas eis no stalinismo, o hitlerismo e o Holocausto da segunda guerra mun-
que a lei aparece cerceando a liberdade que dial, bombardeamentos atômicos com seus malefícios incalculáveis
a médio e longo prazo, genocídios atrelados ao neocolonialismo em fatalidade. Repitamos uma citação: “Fragilidade do humano dentro
muitos rincões do planeta, guerras sem fim. E ainda mais: deste humanismo? Sim!” (lévinas, 1976a, p. 391).
[...] uma ciência que quer abraçar o mundo e A visão crítica de Lévinas apreende que o humanismo ocidental
que o ameaça de desintegração. Ciência que nunca quis, de fato e de vez, duvidar dos triunfos, nunca se propôs
calcula o real sem pensá-lo, como se ela se a tarefa de efetivamente compreender os fracassos, nunca encetou
fizesse única dentro dos cérebros humanos sem
deveras um pensamento de uma história na qual os vencidos e per-
o homem, reduzido, pura e simplesmente, aos
campos onde se desenvolvem as operações dos seguidos pudessem suscitar e fazer ouvir algum sentido que tivesse
nomes. Numa outra atmosfera, o ambicioso valor. A teoria política do Ocidente – na qual se inscrevem os maio-
empreendimento filosófico que tem muito res filósofos e sábios maiores, de Platão a Hegel e Marx – não basta
charme entre nós, o ambicioso empreendimento para o equilíbrio de uma humanidade e para salvaguardar o humano.
filosófico em favor do pensamento e contra
Diante disso, pode-se compreender porque há um humanismo
o puro cálculo, mas subordinando o humano
aos jogos anônimos do Ser (nova referência a ambiente bem abalado, de verdade. Desde as fundações do huma-
Heidegger) e malgrado as suas “Cartas sobre nismo ocidental lateja um tumor que a qualquer momento pode ex-
o Humanismo”, leva compreensão ao próprio plodir em violência! Com efeito, o rumo que as coisas humanas têm
hitlerismo. Uma política e uma administração
tomado desde o último século só poderia trazer como consequência
liberais que não suprimem nem a exploração,
nem a guerra. Um socialismo embaraçado uma mentalidade de desconfiança a respeito dos discursos sobre o
dentro da burocracia. Alienação da desalienação homem. Essa mentalidade desconfiada – por vezes expressa em dis-
ela mesma. Que reviravoltas, que inversões, cursos – traduz-se como o anti-humanismo. Trata-se de uma des-
que perversões do homem e de seu humanismo! confiança que não se confunde, de início, com o abandono do ideal
(lévinas, 1976a, p. 390-391, grifo nosso).
humano e consiste, antes de tudo, em pôr em dúvida o humanismo,
Onde estaria, pois, a fragilidade do humanismo? Lévinas responde: no sentido estreito do termo. Com Lévinas:
no liberalismo ocidental. Trata-se de uma incapacidade de fundo para Trata-se de um protesto contra as belas letras
assegurar os princípios de humanidade que o mesmo humanismo se em que são declamadas certas atividades
acreditou porta-voz e defensor. Efetivamente, há provas até demais necessárias, contra a decência onde se refugia a
que indicam que o sentido do humano não somente está mal prote- hipocrisia, contra a antiviolência que perpetua
abusos, mas também contra a violência das
gido, mas sobretudo mal formulado e mal fundado no humanismo indignações verbais dos próprios revolucionários,
greco-romano; que o sentido do humano não se esgota nas humani- que logo se invertem em passa-tempo cultural e
dades do Ocidente, que o sentido do humano – ali – está condenado à que se tornam literatura revolucionária, onde a

Antropologia Filosófica 139


literatura involucra a revolução e, desde Lévinas diz ainda de outra maneira a articulação do fundo do
então, elogia gostos artísticos corrompidos Ocidente com a Filosofia e com o humanismo, indo dos fundamentos,
(lévinas, 1976a, p. 393).
do projeto discursado na Civilização à empiria da vida onde se mani-
Daí: “Nós devemos nos desconfiar de uma persuasão puramente festa a crise da consciência na moderna história da Europa com suas
retórica, da ideologia que elege sua morada no patético” (lévinas, misérias em ascensão. E diz também o que foi que sobrou. De fato,
1976a, p. 384).
A história moderna da Europa atesta a
A crise do humanismo, porém, vai bem além da oposição às belas familiaridade com o definitivo; na oposição à
letras. O anti-humanismo vai além da denúncia da literatura e da ordem estabelecida, familiaridade com uma
eloquência que esconde as misérias. Para Lévinas, a busca da fran- ordem a estabelecer sobre regras universais, mas
queza e da verdade com o desmascaramento do encanto da lingua- abstratas, isto é, políticas, e na subestimação
e esquecimento da unicidade do outro homem,
gem humanista põe a nu em nossa Civilização os embustes e inte-
cujo direito é, não obstante, origem do direito. A
resses espúrios defendidos pelos humanismos e que geraram essas história moderna da Europa é uma permanente
misérias. O aumento da escala da miséria humana e sua visibilidade tentação de um racionalismo ideológico e 140
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

é o que, de fato, transforma a fissura humanista em rachadura, que experiências conduzidas através do rigor da
dedução, da administração e da violência. Uma
acaba se introduzindo nas obras dos filósofos e intelectuais do nos-
filosofia da história, uma dialética conduzindo
so tempo. Com efeito, à paz entre os homens é ainda pensável
Os intelectuais enquanto tais, quando são depois da Goulag e depois de Auschwits? O
verdadeiros intelectuais, têm por missão resgatar testemunho onde todas as garantias de justiça
e medir os possíveis que livram dos escorregões sistemática ficam sem caução e onde o humano
de sentido anunciando os deslizamentos de é desumanizado, re-encontra somente a bondade
terreno, mostrar os pressupostos de uma fenda que vai de um homem a outro homem, a “pequena
ainda invisível a olho nu, muitas vezes de uma bondade”, isto que nós chamamos misericórdia.
fraqueza das fundações. (lévinas, 1976a, Bondade invencível, mesmo sob Stalin, mesmo
p. 394-395, grifo nosso). sob Hitler. Ela não garante nenhum regime,
mas atesta, na essência de nossa Europa, a
consciência nova de um estranho – ou muito
O anti-humanismo ambiente traz à luz o realismo da não-conci- antigo – modo de espiritualidade, ou de uma
liação entre lei e liberdade, faz aparecer a impossibilidade de fundar piedade sem promessas que não torna insensata
o humano na liberdade e indica a necessidade de uma atenção supe- a responsabilidade humana, sempre minha
rior ao humano e de sua abordagem desde outro lugar. responsabilidade (1988, p. 157, grifo nosso).
É pelos efeitos que se operam na vida, no tempo, na história que miséria contínua do Terceiro Mundo; das impiedosas doutrinas e
se mede o valor do humanismo. Mas, que tempo empírico vivido, sen- das crueldades do fascismo e do nacional-socialismo, ou mesmo
tido, pensado é o nosso? Para Lévinas, é um tempo de eterno hoje no supremo paradoxo onde a defesa do homem se inverteu em
onde se alternam trabalho e férias, mesmo com nossos milhões de Hiroshima: a maquinaria da morte continuando operante mesmo
desempregados; tempo onde ser e razão se contemplam mutuamen- depois do fim da guerra. Esse caminho leva à guerra, à continuação
te na equação da satisfação humana, mesmo que a maioria dos exis- e exacerbação da guerra, à laceração da vida. Simplesmente não há
tentes esteja do lado de fora; tempo onde todo o possível é também uma história da paz!
totalmente permitido como corolário do conluio entre ser e razão. De onde a contestação da centralidade da Europa e de sua cultura:
Em duas palavras: tempo de Concentração e Morte (lévinas, 1988).
Uma fadiga da Europa! Fratura da universalidade
O problema então – da Europa e do planeta – é o problema da hu- da razão teorética que era toda elevada no
manidade em nós e, no fundo, o problema da paz; problema que, na “conhece-te a ti mesmo” para investigar o
Europa, vem sendo encaminhado historicamente segundo a sabedo- universo inteiro dentro de si. [...] Contestação da
Europa a partir da Europa mesma. Mas, talvez
ria grega: esperança da paz humana a partir da conquista da Verdade.
por isso mesmo, testemunho de uma Europa
O problema continua como problema por conta de uma paz que não que não é apenas helênica. E daí o problema de
acontece e nem pode acontecer dentro do marco geral do Ocidente. O saber qual é a justa parte daquela numa Europa
tipo de lógica do Ocidente implica inexoravelmente a guerra, a con- que gostaríamos fiel a todas as suas promessas
corrência, a exclusão, a escravatura racional, o domínio da natureza (lévinas, 1995, p. 139-140).
e dos homens entre Si, de modo que a ‘igualdade no discurso torna Os crimes continuam se elevando mesmo quando os conceitos
impossível a igualdade vivida’. Paz impraticável “[...] como retorno concordam, mesmo quando a totalidade teoricamente está em paz.
do múltiplo à unidade” (1995, p. 138-139). O fracasso é simplesmente real, fracasso desde aquém de um projeto
Para Lévinas, esta história de uma paz, de uma liberdade e de um especulativo de tipo hegeliano indiferente às guerras reais, aos as-
bem-estar prometidos a partir de uma luz que um pretenso saber sassinatos reais e aos sofrimentos e misérias reais sustentados numa
universal projetava sobre o mundo e sobre a sociedade humana – e busca livre e individual da felicidade e na livre possessão individual
até sobre as mensagens religiosas que procuram justificação nas do mundo. O fracasso da aspiração à paz, decepção com a Razão e
verdades do saber – esta história da paz não tem como se reconhecer sua luz: angústia real! Nascimento da má consciência: consciência
nas milenares lutas fratricidas, políticas e ensanguentadas, da imoralidade imediata e real de uma história e de uma Civilização,
de imperialismo, de desprezo humano e de exploração, dos para além do perigo que cada Um corre por Si mesmo. Conatus essen-
genocídios, do holocausto e do terrorismo; do desemprego e da di tomado em si mesmo, eis o resumo: saber e liberdade individuais,

Antropologia Filosófica 141


apropriação, acumulação, propriedades, coisificação, mercadoria ge- APONTAMENTOS
ral; a vida no tom dó-lorido da violência.
Então Lévinas se questiona se não seria preciso fazer aparecer um CONCLUSIVOS
outro lugar de onde pudesse vir o pensamento de uma solução. Com
efeito,
Pensando neste momento ético da nossa crise
da Europa [...] pode-se perguntar se a paz não
Toda essa hermenêutica civilizatória de Lévinas diz a destrutivida-
tem de responder a um apelo mais urgente que
aquele da verdade e de início distinto do apelo da de de que os homens são capazes, sobretudo quando são formados
verdade [...]. Não se trata mais da paz burguesa para isso, incentivados por grandes fundamentações racionais que
do homem que está em sua casa atrás das portas constituem o arcabouço da nossa civilização hegemônica. O dis-
fechadas, rejeitando isto que, exterior, o nega; curso lévinasiano aqui foi um tanto longo e envolveu muitos as-
não se trata mais da paz conforme a unidade
pectos, ditos ao jeito dele. Mas, no fundo, o problema todo é este:
do Uno que toda alteridade atrapalha (lévinas,
1995, p. 143). o homem ocidental é afirmado como razão e liberdade; é afirmado
como razão e liberdade no indivíduo; o indivíduo, para viver, preci-
Do que é que se trata, afinal? Trata-se de que “Os homens que sa se apropriar do essencial, necessário e suficiente; razão e liber-
vêem não podem desviar seu olhar do sangue inocente que elas (as dade são as duas potências ou faculdades pelas quais o indivíduo
águas) diluem” (lévinas, 1976a, p. 301). Essa outra solução solicitada (pelo Conhecimento e pela Ação) exerce a apropriação. Isso indica
por Lévinas ocupará nosso esforço na Segunda Parte. que a primeira preocupação do homem é consigo mesmo, a preocu-
pação de realizar em Si aquilo que Spinoza chamou em sua Éthica
de conatus essendi, a preocupação em ser, o esforço de ser. Essa é a
lógica ocidental de realização humana.
Mas, se o homem assim afirmado é, por assim dizer, retirado, abs-
traído das relações com os Outros; se o homem é entendido como
autônomo e só depois devolvido à comunidade, às relações com os
Outros; então, primeiro vem a preocupação própria em ser, o meu
conatus essendi, o cuidado de mim mesmo e só depois, se possível,
se der, a comunhão, a realização conjunta da mesma preocupação.
E mais, se a preocupação em ser de cada Um for elevada a referente

Antropologia Filosófica 142


último de significação e se cada Um não medir meios e esforços para ainda existimos, então alguém (o Outro) cuidou de nós. Houve uma
realizar o seu próprio conatus, então está deflagrada, a partir do co- proximidade que só pode ser expulsa e esquecida por abstração. O
natus mesmo, a guerra de todos contra todos. esquecimento dessas coisas primeiras é na verdade o esquecimento
Como falar de justiça – que é, no fundo, o grande tema da filo- ocidental; esse esquecimento pode fazer aparecer, ocidentalmen-
sofia clássica e que se estende até hoje – como realização da Razão, te e não acidentalmente, uma Civilização que – Lévinas diz – “[...]
de uma Razão que universaliza o conatus particular na defesa da merece o nome de bárbara” (lévinas, 1982b, p. 98)36, ela é feita de
espontaneidade e da autonomia – como o universal? Como passar ação violenta e propicia logicamente a ação violenta: “[...] é violenta
de um conatus individual para um conatus comum? A filosofia gre- toda ação na qual atuamos como se estivéssemos sozinhos na ação,
ga clássica praticamente só tem este problema: ela é uma aposta de como se o resto do universo não estivesse ali a não ser para receber
que é possível a justiça no indivíduo (cidadão) e a justiça na polis, a a ação” (lévinas, 1976a, p. 18)37. O acento, o reforço na liberdade – a
polis como formadora da justiça no indivíduo e a justiça no indiví- querida dos nossos humanismos, que não cessam de gastar a Razão
duo como fundamento e garantia da justiça na polis. Não será isto a para dar razões a ela – traz na outra mão as consequências funestas
obra platônica e a obra aristotélica? Com certeza, o esforço para per- do liberalismo ocidental.
severar no ser e acrescê-lo é um traço inelutável da condição huma- Sinteticamente e voltando por dentro da Civilização, poderíamos
na; mas que ele seja tomado individualmente como o mais decisivo dizer com Lévinas que o período clássico de nossa Civilização foi o
ao ponto de se constituir numa lógica civilizacional, este é o ponto de enraizamento da lógica de apropriação liberal; o período medieval
crítico do Ocidente. foi – mesmo que de outro modo, ao modo das apropriações da Igreja
Com efeito, não seria a situação relacional, a referência aos – um período de mais enraizamento e dormência da mesma lógica.
Outros, a referência primeira? O esforço para ser, para perseverar Quanto à modernidade, foi o período de seu crescimento, de criação
no ser e acrescentar ser a Si mesmo não estaria fundamentado de grandes meios (em especial a Ciência, a Técnica e o Estado de
numa situação antropológica anterior, relacional, aquela que faz ser Direito Moderno), de expansão e decolagem geral; já a pós-moderni-
para que, quando Eu mesmo der conta, Eu mesmo venha a enca- dade, ela é o tempo de sua globalização hegemônica e sua penetra-
minhar meu próprio cuidado de mim? Lévinas diria que o exer- ção em todos os domínios da vida humana. O capitalismo – desde
cício efetivo de liberdade individual e de razão individual não se sua florescência moderna até hoje – só poderia ser então o modelo
faz desde de dentro do ventre materno; nós não nascemos grandes;
primeiro, primeiro nós fomos feitos, fomos recebidos, e nos deram 36 lévinas, Emmanuel. De l’Évasion. Montpellier: Fata Morgana, 1982b.
muitas coisas para que o ser se preservasse e continuasse a ser fei- 37 Ver também: lévinas, Emmanuel. Liberté et Commandement. Montpellier:
to em nós. E isto implica outra lógica: se pudemos vir a existir, se Fata Morgana, 1994c. p. 269.

Antropologia Filosófica 143


de apropriação mais apropriado e, como tal, recomendado para re- BIBLIOGRAFIA:
ger todas as relações no planeta. Se são tantos os meios próprios para
•  lévinas, Emmanuel. A l’Heure des Nations. Paris: Éditions de
a apropriação e se a apropriação centrada na liberdade individual
Minuit, 1988.
sempre põe em apuros as relações entre os seres humanos, então
é até fácil compreender a escala das violências atuais. Dito de ou- ______. Altérité et Transcendance. Montpellier: Fata Morgana,
tro modo: “A liberdade do homem que se preocupa apenas consigo 1995.
mesmo perde-se no arbitrário: tudo lhe é permitido (por ele mes- ______. Da Existência ao Existente. São Paulo: Papirus, 1998a.
mo), mesmo o homicídio” (muller, 2007, p. 62). E é isto hegemoni-
______. De Dieu qui Vient à l’Idée. Paris: Vrin, 1998b.
camente que temos!
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Antropologia Filosófica 145


CON
CLU
SÃO
Falar sobre Quem é o Ser Humano nestes nossos tempos pós-moder- as gerações futuras ou, pelo menos, de diminuição significativa de
nos é uma empreitada difícil. Tempos em que vemos a derrocada de suas possibilidades de vida.
todos os referenciais que estruturaram historicamente as comuni- Perda do sentido de Si mesmo, atrofiamento da qualidade das rela-
dades históricas, as sociedades em geral e a vida dos existentes sin- ções com os outros seres humanos e do seu sentido, errância quanto
gulares. Tempos, por um lado, de grandioso progresso nas ciências e à própria pertença à Vida, à vida dos Outros, à vida do Mundo, sofri- 146
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

nas técnicas e, por outro, mais da metade dos existentes do planeta mentos novos e inúteis por conta das nominadas doenças de civiliza-
às voltas com o realismo duro da fome e também da miséria. Tempo ção... são ocorrências e sintomas da insuficiência das apologias que
paradoxal de aumento da longevidade de alguns e da morte preco- foram feitas do ser humano para os seres humanos e se mostram
ce das maiorias. Tempos de comunicação maciça e massiva, por um como o revés real da pequenez e da fraqueza dos conteúdos dos hu-
lado, e, por outro, de isolamento das massas e de sua exclusão vital. manismos que as apregoaram e não as conseguiram sustentar.
Tempos de domínio inaudito do homem sobre a Natureza carregan- A Filosofia, tal qual nos foi e nos é transmitida no Ocidente, tem
do a depredação da mesma e a exaustão de suas forças na contramão. sua dose de responsabilidade na insuficiência histórica dos rumos
Formas inusitadas e generalizadas de violência de seres humanos humanos e nos descaminhos desumanos atuais. As diferentes mo-
contra seres humanos tornam-se normais, como se a própria respi- dalidades de Filosofia Política, de Filosofia da Educação, de Teoria
ração dos existentes devesse ser assumida como naturalmente vio- do Conhecimento..., desenvolvidas na história da Filosofia, são em
lenta; a vida de cada existente perde seu caráter de valor absoluto, larga medida alicerçadas sobre uma lógica comum que move a alma
tanto nas práticas quando na maioria dos discursos que se adaptam das diversas proposições humanas dos humanismos ocidentais.
às situações violentas, ao ponto de afirmar uma natureza violen- Efetivamente, se fôssemos querer realizar tais proposições em sua
ta em cada ser humano. Formas inusitadas de ferimento do habitat completude, ou ainda, se de fato realizássemos os conteúdos dessas
humano tornam-se normais com o consequente risco de morte para proposições, possivelmente nem teríamos chegado até aqui, neste
nosso tempo. Com efeito, a lógica do para-si, cuja face objetiva é a
apropriação de tudo para-si, é o que movimenta as pretensas saídas
humanas do Ocidente, em que a Filosofia se insere. No seu cerne,
está deflagrada “racionalmente” a guerra de todos contra todos. Nessa
lógica, a violência e sua justificação são necessárias!
Resgatar, mesmo que de forma bastante pontuada, algumas das
mais influentes variedades de visões humanistas ocidentais, acom-
panhando por um bom tempo dois estudiosos dessa história das
concepções do homem, foi um dos nossos objetivos neste pequeno li-
vro de Antropologia Filosófica. Mas, uma abordagem sincrônica des-
sa historicidade é apenas uma mediação para a percepção de uma
diacronia, da permanência dos mesmos traços de uma matriz, para
além das variações das posições. Indicar essa diacronia, mesmo que
elementarmente, fez parte das nossas pretensões. E, apontando as
consequências humanamente desastrosas do acontecimento das va-
riantes da matriz cuja lógica interna é a do para-si, levantar a possi-
bilidade de crítica aos humanismos ocidentais. Este foi nosso objeti-
vo maior. Esperamos tê-los preenchido.

Antropologia Filosófica 147


SOBRE
O AUTOR
Gilmar Francisco Bonamigo é Professor Efetivo do
Departamento de Filosofia da Ufes. É graduado e
mestre em Filosofia e Doutor em Educação. Sua
tese doutoral é um tratado de educação moral a
partir da obra do filósofo ético Emmanuel Lévinas.
Seu esforço reflexivo e sua produção intelectual
alinham-se na direção da Antropologia Filosófica, 148
da Ética, da Filosofia Política e da Filosofia da
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Educação. Sempre esteve ligado aos Movimentos


Sociais e ultimamente tem inclinado sua procura
filosófica na direção de uma Filosofia da Terra.
Acredita que, lá onde os conceitos estritamente
filosóficos não conseguem dizer a vida vivida e seus
múltiplos movimentos, uma Poemática Filosófica
pode ir mais longe e cavar mais fundo o Humano.

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