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Josê Ferrater Mora
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Martins Fontes
Este Dicionário de Filosofia contém
uma síntese precisa do grande
Dicionário de Filosofia de José
Ferrater Mora, publicado
originalmente em quatro volumes.
Priscilla Cohn, incumbida da tarefa
de condensar a obra, deixou de
lado os artigos dedicados
individualmente aos filósofos e
compendiou os conceitos dotados
de uma longa história e ainda vivos
nos debates contemporâneos.
Como nota Ferrater Mora no
prólogo, neste resumo “não se
encontra nada que não seja
realmente fundamental, e nada
que seja realmente fundamental foi
deixado de lado”; o repertório
inclui os “ingredientes básicos para
a correta compreensão de uma
enorme quantidade de noções
filosóficas” e permite conhecer os
significados e os usos — no passado
e no presente — de conceitos que,
embora manipulados e discutidos
principalmente por filósofos, foram
Incorporados no vocabulário de
todas as pessoas cultas.
Dicionário de Filosofia
Tradução
ROBERTO LEAL FERREIRA
ÁLVARO CABRAL
Martins Fontes
São Paulo 200|
—
Título original: DICCIONARIO DE FILOSOFÍA
(VERSIÓN ABREVIADA).
Copyright O José Ferrater Mora.
Copyright O 1993, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
—
1º edição
fevereiro de 1994
4º edição
abril de 2001
Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisão gráfica
Maria Cecília K. Caliendo, Laila Dawa,
Márcio Della Rosa, Marise Simões Leal,
Vadim Valentinovitch Nikitin e Dirceu A. Scali Jr.
Produção gráfica
Geraldo Alves
01-1188 CDD-103
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : Dicionários 103
de apresenta. Observe-se que a fór- ção seria: “Uma vez que João é
mula (1) é a mesma utilizada pela ló- maior do que Pedro e Pedro é maior
gica atual para expressar a lei de do que Paulo, então João é maior do
identidade na lógica de classe, na que Paulo”.
qual se usa “A” para designar uma A posteriori (ver A PRIORI).
classe. Apriori (ver).
4, “AU UBV, UC”, etc.) são usa- Ad absurdum. A redução ao ab-
dos para simbolizar classes (““x per- surdo ou ao impossível refere-se a
tence à classe A”, “A classe A está um método de demonstração indire-
incluída na classe B”', etc.). ta que pretende provar a verdade de
5. Lukasiewicz usou “A” para uma proposição pela impossibilida-
simbolizar disjunção. “A” antepõe- de de aceitar as consequências que se
se a uma fórmula: “A p q” lê-se “p derivariam de sua contraditória. Ze-
ouqg” (pvq). não de Eléia, entre outros, utilizou
esse método.
A, AB, AD As preposições latinas a, Ad hoc. Uma idéia, teoria ou ar-
ab e ad aparecem em numerosas lo- gumento ad hoc é aquele que se re-
cuções e frases da literatura filosó- fere a um caso determinado de mo-
fica em latim, especialmente nos tra- do exclusivo.
balhos dos escolásticos; conserva- Ad hominem. Um argumento ad
ram-se no latim original e também hominem pretende ser válido para
se encontram em obras escritas em um homem ou grupo específico. Em
outras línguas. Algumas delas — co- geral, é considerado sem validade pa-
mo a priori, a posteriori, ad homi- ra a argumentação.
nem — são de uso corrente. Enun- Ad ignoratiam. Argumento que se
ciamos em seguida algumas dessas baseia na pretensa ou real ignorân-
locuções: cia de quem o expõe.
A fortiori. Em geral, um argumen- Ad impossibile. Equivalente ao ar-
to a fortiori é aquele que contém gumento ad absurdum.
afirmações que visam reforçar a ver- Ad personam. Um argumento ad
dade da proposição que se trata de personam é aquele que se dirige con-
provar; diz-se então que tal argu- tra um indivíduo em concreto; ba-
mento é a fortiori correto. Num sen- sela-se nos defeitos — reais ou supos-
tido estritamente lógico, um argu- tos — da pessoa em questão.
mento a fortiori é aquele em que se
utilizam adjetivos comparativos co- A PRIORI, A POSTERIORI As ex-
mo “maior do que”, “menor do pressões a priori e a posteriori foram
que”, de modo que a argumentação utilizadas pela primeira vez no sécu-
procede de uma proposição a outra lo XIV por Alberto de Saxônia (Prantl,
pelo caráter transitivo desses adJjet!- IV,78), embora as questões a que fa-
vos. Um exemplo de argumento a zem referência já viessem sendo tra-
Ffortiori entendido nesta última acep- tadas desde a Antiguidade. Entretan-
A PRIORI, A POSTERIORI
fruto da abstração, existem ““na abs- mem. Nesta forma, uma vez abstraí-
tração”* — é» avarçéde (De an. III, da a noção geral, o objeto não per-
43 1 b) — e não em si mesmos (xab' manece; ou se do conceito “homem”
avTa), como crêem Platão e os pi- separarmos a racionalidade, o inte-
tagóricos. Os “objetos matemáti- lecto perderá o dito conceito e fica-
cos” não se acham separados ““me- rá somente o de animal. 2. À abstra-
tafisicamente” ou, propriamente fa- ção da forma a partir da matéria.
lando, não por substâncias, se bem Por exemplo: círculo é algo à parte
que possam separar-se conceitual- de qualquer corpo circular sensível.
mente da matéria; pelo contrário, os Esta classe de abstração não ““des-
“objetos físicos” não são separáveis trói”” nenhum dos dois objetos afe-
de maneira nenhuma da “matéria”. tados por ela: ambos — o círculo
As doutrinas aristotélicas sobre a material e a noção ““circular”* — se
—
tratas”* (“idéias gerais abstratas”); da. Segundo esse autor, tal ativida-
não é possível, disse ele, formarem- de, própria do entendimento (Vers-
se idéias de qualidades sensíveis pres- tand), cerceia a realidade — que é
cindindo da percepção (por exemplo, concreta mas também universal —
não se pode obter uma noção do mo- de sua riqueza; daí o sentido pejo-
vimento senão a partir de um corpo rativo que Hegel dá a essa forma de
que se move). Tampouco das quali- abstração, embora reconheça a sua
dades sensíveis gerais, como a cor — utilidade na marcha rumo à com-
prescindindo de se é vermelho ou preensão ““racional” e “total” da
verde —, a triangularidade (à parte realidade.
a concreção de se é retângulo, obtu- A noção do abstrato e da abstra-
sângulo, isósceles, escaleno, etc.) ou ção desempenha um importante pa-
a extensão, independentemente de se pel no pensâmento do século XX,
se dá numa linha, numa superfície, concretamente em autores como
num sólido. Argumentava Berkeley Whitehead e Husserl. Este último
que “um termo torna-se geral ao ser concebia o abstrato e o concreto não
utilizado como signo, não de uma em virtude de sua respectiva separa-
idéia geral abstrata, mas de todas as ção ou não separação de um todo,
idéias particulares e concretas, algu- quer dizer, em termos de sua subsis-
mas das quais se apresentam à men- tência ou não subsistência. A teoria
te”* (Princípios, Introd., 11). Assim, husserliana da abstração faz parte de
por exemplo, na proposição ““a mu- sua ““teoria das formas puras dos to-
dança de movimento é proporcional dos e das partes”, a qual inclui, além
à força imprimida” está implícita a da noção de ““abstrato””, as de ““con-
noção de movimento em geral, mas creto””, “porção”, “momento” e
isto não significa que seja possível “parte física”. As definições funda-
conceber o movimento sem um cor- mentais são: Chamamos ““porção”
po que se mova, ou a idéia de movi- a toda parte relativamente indepen-
mento sem direção nenhuma ou sem dente em relação a um todo T. Cha-
uma velocidade específica. O princí- mamos “momento” (parte abstrata)
pio aplica-se a qualquer corpo que do mesmo todo T a toda parte não
se mova em qualquer direção (ibid.). independente relativamente ao dito
Portanto, Berkeley não se opõe às todo (Investigação lógicas, III, 8 17).
idéias gerais, mas somente às idéias Segundo Whitehead, há entes que
gerais abstratas, ou seja, às idéias sustentam uma relação com outros
gerais formadas por abstração, entes: denominam-se eventos os su-
(ibid., 12). cessos e podem ser descritos como o
Para Hegel, “abstrair” supõe uma “caráter específico de um lugar atra-
atividade mental que consiste em se- vés de certo período de tempo” (El
parar (Trennung) ou singularizar concepto de naturaleza, 1926, p.
(Vereinzelung) um aspecto concreto 52). Entendem-se tais acontecimen-
a partir de uma realidade determina- tos a partir de uma matriz espaço-
ACADEMIA 10
mos uns aos outros, Deus permane- re, escreveu Severino, um amigo de
cerá em nós e o seu amor em nós se- Santo Agostinho, resumindo o pen-
rá levado à perfeição” (1 João, IV, samento deste). Mas não se pode di-
7-12). Assim, em seu sentido orig!- zer que o amar um bem seja suficien-
nal e autêntico, todo amor se encon- te, Já que o amor a um bem (isto é,
tra no horizonte de Deus; amar, es- a algo particular) só é “lícito” quan-
tritamente falando, é “amar a Deus do é movido pelo amor ao Bem, ou
e por (o poder ou a graça de) Deus”'. seja, a Deus. É nesse sentido que te-
Os termos que Santo Agostinho mos de entender a frase de Santo
emprega são charitas, amor e dilec- Agostinho, segundo a qual a carida-
fio; ocasionalmente com o mesmo de é a virtude que ama o que deve
significado (como na expressão amor ser amado (virtus est charitas qua in
seu dilectio), mas, outras vezes, es- quod diligendum est diligitur [Ep.
tabelecendo distinções entre eles. CLXVII)).
Santo Agostinho considera com fre- Tomás de Aquino define a carida-
quência a caridade como um amor de como uma virtude sobrenatural
pessoal, divino ou humano. O amor que torna possível às virtudes natu-
é sempre bom (ou ““lícito”*), mas po- rais (humanas) serem plenas e verda-
de ser bom ou mal enquanto amor deiras, uma vez que nenhuma virtu-
ao bem ou ao mal, respectivamente. de o é (vera) sem a caridade ((S.
O amor do homem por Deus e de Theol., IIl-a 9, XXIII, a. 7 ad 3).
Deus pelo homem é sempre bom, e Ainda mais, sem a caridade o ho-
nesse âmbito pode entender-se a fa- mem não alcançará a beatitude; não
mosa frase agostiniana: Dilige et nega com 1isso a “autonomia” das
quod vis fac — ama e faz o que qui- virtudes naturais. De fato, podem
seres (citada amiúde como: Ama et
fac quod vis) — que escreveu preci-
existir sem a caridade [sobrenatural],
Já que supor o contrário obrigaria a
samente em seu comentário a São concluir que nenhum homem a quem
João VII. O amor do homem ao seu tenha faltado — ou a quem falte —
próximo pode ser bom — se é por a revelação cristã seria capaz de bon-
amor de Deus — ou mau, se apenas dade. Deus é o fundamento último
se apóia em inclinações meramente de todo o amor verdadeiro. Por seu
humanas (dilectio), desarraigadas do amor, Deus impulsiona a criatura
amor de Deus e em Deus. O amor ao para que alcance o Sumo Bem. Com
bem, enquanto manifestação do estas palavras — tomistas e ao mes-
amor de Deus, move a vontade e, mo tempo aristotélicas — conclui
por esse movimento, a alma é leva- Dante a Divina Comédia: Amor che
da à sua felicidade, a uma bem- muove il Sol e Paltre stelle (o amor
aventurança que só pode ser encon- que move o sol e as demais estrelas).
trada no seio de Deus. O amor en- A diferença essencial entre os con-
quanto amor ao bem não tem medi- ceitos grego (fundamentalmente pla-
da (ipse ibi modo est sine modo ama- tônico) e cristão do amor pode resu-
17 AMOR
co, na qual se mantinha uma rigoro- White, é que não se pode traçar uma
sa distinção entre analítico e sintéti- linha divisória taxativa entre analí-
co, em conformidade com o pensa- tico e sintético, porque não se pode
mento de Hume, e (2) a segunda, em definir com precisão o analítico;
que se descobrem duas tendências qualquer intento nesse sentido se
principais: (a) a que mantém a dico- converte numa explicação de obscu-
tomia (o dualismo) analítico-sintético rum per obscurius. A idéia kantiana
— embora numa forma notavelmente de que o predicado ““pertence”* ou
mais “refinada” do que o dualismo “está contido” no sujeito resulta de-
original da primeira etapa da lógica sesperadoramente vaga, disse Quine,
positivista, e (b) a que rechaça a dÓi- e, embora pudéssemos recorrer à no-
cotomia analítico-sintético, especial- ção de sinônimo, esta última preci-
mente difundida após o criticismo de sa de tanta ou mais explicação do
Quine. Entre os que defendem a pri- que a de analiticidade. Caberia re-
meira posição — desta segunda eta- correr também às regras semânticas,
pa (2 a) — estão Carnap, B. Mates, mas a expressão ““regra semântica”
R. Hartmann, H. P. Grice e P. F. requer de igual modo explicação. A
Strawson; são representantes da se- rejeição, por parte de Quine, da di-
gunda postura (2 b), além do próprio cotomia analítico-sintético está liga-
Quine, M. G. White, A. Pap e — até da à sua idéia de continuum teórico,
certo ponto — Hilary Putnam. Em uma série de balizamentos concei-
alguns casos, introduziram-se nos ar- tuais que somente têm contato com
gumentos da primeira etapa (1) qua- a experiência de formá marginal. É
lificações que a aproximam da segun- O que às vezes se designa como a ““te-
da, em sua primeira postura (2 a). E se Duhem-Quine”. Por outra parte,
também na fase 2 b se respeitam, por Quine sustentava que, “sendo social
vezes, pontos mantidos pelos autores a linguagem” e a analiticidade uma
da posição 2 a. verdade que se baseia na linguagem,
Uma das críticas fundamentais também a analiticidade é “social”,
dos pensadores da primeira etapa (1) O que significa que uma afirmação
— e dos da segunda etapa em sua é analítica se todo indivíduo que a
primeira posição (2 a) — consiste em ouve a aprende como verdadeira ao
denunciar como tautológicos todos aprender suas palavras.
os juízos analíticos. Outra é consi- A analiticidade parece ser questão
derar as expressões analíticas como de graus, embora não se deva con-
regras gramaticais, como meras ““ex- fundir “graus de analiticidade” com
pressões verbais”. “graus de admissibilidade de que es-
A tese de Quine, formulada em ta ou aquela expressão é (ou não é)
1951 como resultado de uma série de analítica”. Isto foi aceito por vários
debates orais e escritos que susten- autores que seguiam a posição 2 b,
tou com R. Carnap, A. Church, N. alguns dos quais foram denominados
Goodman, A. Tarski e Morton G. ““gradualistas” por A. Gewirth. Hi-
27 ANALOGIA
referências metafísicas foram elimi!- rou a analogia uma relação entre siS-
nadas, especialmente nos fenomena- temas de conceitos homólogos que
listas e funcionalistas, os quais aban- podem dar lugar a diferenças ou con-
donaram formalmente a noção de cordâncias cuja força relativa é pos-
substância. Em A System of Logic sível estabelecer-se e medir-se.
(III, xx, 1-3; ed. J. M. Robson e R. A analogia foi considerada, por
F. McRae, 1, 554-61), John Stuart vezes, uma correlação entre um ter-
Mill ressalta que “a palavra Analo- mo cujo conceito denota um fato ob-
gla, como nome de uma forma de ra- servável e verificável, e algum termo
ciocínio, se entende geralmente co- que, embora não denote mediante
mo se fosse uma classe de argumen- conceito algum um fato observável
to que se supõe de natureza induti- e verificável, é indeferível dentro de
va, mas não equivale a uma indução um sistema formal que forneça re-
completa. Mas não há palavras usa- gras para o efeito.
das de maneira mais vaga ou em Na esteira de algumas investiga-
maior variedade de acepções”'. Com ções de Jan Salamucha e de J. Fr.
efeito, usam-se às vezes num senti- Drewsnowski, Il. M. Bocheúski tra-
do de indução muito rigorosa, como tou a questão clássica da analogia em
a “semelhança de relações” de que sentido tomista desde o ponto de vis-
falam os matemáticos, e outras ve- ta da lógica moderna, considerando,
zes aplicam-se a raciocínios funda- primeiro, que a noção de anologia é
mentados em qualquer tipo de seme- importante e suscetível de desenvol-
lhança. Mas ainda que certas seme- vimentos ulteriores; e, segundo, que
lhanças possam proporcionar certo para tal fim podem-se usar com van-
grau de probabilidade, em muitos ca- tagem os refinamentos formais da ló-
sos não é possível chegar a conclu- gica atual. Bocheúski examina, pa-
sões indutivamente aceitáveis. Por- ra tanto, a analogia desde um pris-
tanto, embora se possa usar o racio- ma semântico (não o único possível,
cínio por analogia (cf. infra), só se mas o mais conveniente e também o
deve recorrer a ele quando se veri1fi- mais tradicional, pois do contrário
cam certas condições; juntamente não se compreenderia como pode ser
com as semelhanças, cumpre Inves- tratada a equivocidade, que é uma
tigar diferenças e ver a relação entre relação do mesmo tipo que a analo-
umas e outras no âmbito de um co- gia). Em seu artigo “On Analogy”
nhecimento ““toleravelmente exten- (The Thomist, 11 [1948], 424-47; tex-
so” da matéria. Só quando a seme- to inglês de seu trabalho em polonês
lhança é muito grande e a diferença “Wstep do teoril analogil””, publi-
muito pequena, argumenta |. S. cado em Roczniki filozoficzne, 1
Mill, o raciocínio por analogia pode [1948], 64-82), Bocheúski declara,
aproximar-se de uma indução válida. com efeito, que Isso tem anteceden-
Num sentido não muito diverso do tes no exame feito por Santo Tomás
de J. S. Mill, Ernst Mach conside- da analogia em relação com os no-
31 ANALOGIA
mite porque, se houvesse, se pensa- Embora Kant trate o tema das an-
ria em algo espacial rodeado de al- tinomias na Crítica da Razão Pura
go não espacial. Na segunda antino- e na Crítica da Faculdade de Julgar,
mia afirma-se a impossibilidade de é na primeira destas obras que ele é
uma divisibilidade infinita do sim- tratado mais a fundo.
ples, pois do contrário o existente fi-
caria dissolvido no nada; mas tam- APARÊNCIA ““Aparecer” significa
bém se sustenta a infinita divisibil!- “deixar-se ver”, “manifestar-se”.
dade de qualquer parte, que se não “Aparência” significa “aspecto que
fosse sempre divisível não poderia ser oferece uma colsa quando se deixa
extensa, visto que toda extensão é di- ver, se manifesta, se apresenta (ge-
visivel. Na terceira antinomia de- ralmente à vista)”.
monstra-se que não pode haver uma Muitos filósofos ocuparam-se em
causalidade rigorosa e absoluta, pois averiguar se, e por que, as coisas e,
1SSO seria equivalente à regressão ao em geral, ““a realidade” (pela qual
infinito das causas; mas tampouco se entende “qualquer coisa”) são tal
pode haver um começo sem causa, como aparecem ou não. Afirmar o
último é sustentar que existem dis-
porquanto não se poderia pensar co-
mo objeto de experiência. Finalmen- crepâncias entre as “aparências” e
as “realidades”. Isso não equivale,
te, para a quarta antinomia, efe-
tuam-se as mesmas demonstrações
porém,
a distinguir entre coisas cha-
madas “aparências” e outras chama-
que para a terceira. Segundo Kant, das “realidades”. Como as aparên-
essas contradições devem-se a que cias em questão o são de ““realida-
nas duas primeiras antinomias o es- des”*, a suposta discrepância costu-
paço, o tempo e a simplicidade são ma fundamentar-se numa distinção
considerados como coisas em sl, na entre “aparência de uma realidade”
medida em que somente possuem e ““essa realidade”.
idealidade transcendental. O mundo Os termos ““coisas” e ““realida-
como tal converte-se em objeto do des” devem entender-se aqui num
conhecimento, coisa impossível e que —
rita, o silogismo cujas premissas são No sentido usado por Kant em sua
verdadeiras, e tais que ““o conheci- tábua de juízos, a noção de juízo
mento que temos delas se origina de apodiíctico foi empregada por mui-
premissas primeiras e verdadeiras”. tos lógicos do século XIX.
Esse silogismo também é comumen-
te chamado demonstrativo. APOLOGISTAS Dentro da Patriís-
II. O apodíctico na proposição e tica, receberam o nome de apologis-
no juízo. Como uma das espécies das tas diversos. Padres da Igreja que
proposições morais, as proposições (principalmente durante o século IJ)
apodícticas expressam a necessidade se consagraram a escrever apologias
(a que pode referir-se a impossibili- do cristlanismo. Como para tais fins
dade de que não). Refere-se à neces- apologéticos usaram-se com abun-
sidade de que S$ seja P ou à imposs1- dância temas e argumentos filosófi-
bilidade de que S não seja P. Estu- cos, os apologistas pertencem não só
damos este modo nos verbetes Moda- à história da religião, do cristianis-
lidade e Necessário, e a forma como mo, da teologia e da Igreja, mas
tais proposições modais se opõem a também à da filosofia.
O motivo principal da tendência
outras em Oposição.
O termo ““apodíctico”* na propo- em questão não era tanto defender
o cristianismo contra as correntes fi-
sição e no Juízo foi usado, sobretu- losóficas opostas a ele ou contra as
do, a partir de Kant. O emprego outras religiões, como convencer o
mais conhecido é o que se encontra
Imperador do direito dos cristãos a
na tábua dos juízos como fundamen- uma existência legal dentro do Im-
to da tábua das categorias. Segundo pério. Para 1SSso, era preciso usar o
a primeira, os juízos apodícticos são vocabulário mais familiar às classes
uma das três espécies de juízos de ilustradas do Império, e esse voca-
modalidade. Os juízos apodiícticos bulário coincidia em boa parte com
são juízos logicamente necessários, o filosófico da época helenístico-ro-
expressos na forma ““S$ é necessaria- mana. O uso desse vocabulário e o
mente P”, diferentemente dos Juízos manuseio das correspondentes dou-
assertóricos ou de realidade, e dos trinas tinham, pelo menos no come-
juízos problemáticos ou de contin- ço, uma tendência mais ético-práti-
gência (K. r. V., A 75, B 100). Um ca do que metafísico-especulativa.
emprego menos conhecido de ““apo- Mas, como a formação cultural he-
díctico”* em Kant é o que aplica este lênica de quase todos os apologistas
termo a proposições que estejam e as necessidades da apologética exi-
“unidas à consciência de sua neces- giram a ampliação desses quadros,
sidade”. Os princípios da matemá- logo se passou ao exame de questões
tica (geometria) são, segundo Kant, mais propriamente filosóficas, em
apodiícticos (ibid., B 41). As propo- especial a questão de saber se e até
sições apodícticas são, em parte, que ponto a tradição filosófica gre-
“demonstráveis” e em parte “ime- ga era compatível com a revelação
diatamente certas”. cristã. A resposta foi quase sempre
41 ARBÍTRIO (LIVRE-)
outras atividades também eram ar- co, filosofia e razão intuitiva. A ar-
tes, e como era igualmente arte a te distingue-se dos outros quatro por
criação artística, a poesia, o termo ser “um estado de capacidade para
ficou muito ambíguo e só podia ser fazer algo”, sempre que implique um
corretamente entendido dentro de curso verdadeiro de raciocínio, isto
um determinado contexto. Não obs- é, um método. A arte trata de algo
tante, pode-se concluir que réxvn de- que chega a ser. A arte não trata do
signava um “modo de fazer” algo que é necessário ou do que não po-
[incluindo-se no fazer o pensar]. Co- de ser distinto de como é. Tampou-
mo tal “modo” implicava a idéia de co trata da ação, somente da ““pro-
um método ou conjunto de regras,
havendo tantas artes quanto os tipos
é
dução”. De certo modo, claro, to-
das as atividades em que está impli-
de objetos ou de atividades, organi- cada alguma produção são artes;
zaram-se essas artes de uma manei- portanto, poderia falar-se, em prin-
ra hierárquica, desde a arte manual cípio, da arte do estadista, porque se
ou o ofício até a suprema arte inte- trata de produzir uma sociedade, e
lectual do pensar para se alcançar a até uma “boa sociedade”*. Mas, em
verdade (e, de passagem, reger a so- sentido estrito, só de pode chamar
ciedade segundo esta verdade). arte a um fazer como (o exemplo é
Em Aristóteles, encontramos ma- do próprio Aristóteles) a arquitetura.
neiras análogas de entender o termo. Pode-se continuar falando de ar-
Mas este autor tenta repetidas vezes te mecânica ou manual, de arte mé-
definir de modo mais estrito o senti1- dica, de arte arquitetônica, e assim
do de arte. Inicialmente, escreve na por diante. De certo modo, além dis-
Metafísica (A 1, 980 b 25) que, en- so, o que hoje em dia chamamos as
quanto os animais só têm imagens, artes (enquanto belas-artes) tem um
davrTAaAOIAl, E pouca experiência, éu- componente manual que os gregos
Teoria, OS homens se elevam até a constumavam sublinhar. Mas nas ci-
arte, réxvmn, e até O raciocínio, AoyLo- tadas análises aristotélicas já encon-
nós. Arte, réxvn, e ciência ou saber, tramos a base para entender o ter-
êmioT/un, promanam da experiência mo “arte” como designação para “a
e não do acaso, 1uxn, mas só existe Arte” ou o conjunto das belas-artes:
arte e ciência quando há um juízo pintura, escultura, poesia, arquitetu-
formulado acerca de algo universal. ra e música, para mencionar as cin-
Não parece haver aqui distinção en- co atividades artísticas clássicas. Foi
tre arte e ciência. Mas na Etica a Nr- nesse sentido que as relações entre a
cômaco (VI 3, 1139 b 15ess.), Aris- arte e a natureza foram frequente-
tóteles estabelece uma distinção en- mente debatidas. O comum na maio-
tre vários estados mediante os quais ria dos autores gregos — e, a rigor,
a alma possui a verdade por afirma- até se entrar na época moderna —
ção ou negação. Esses estados são os era ressaltar que a arte imita, de al-
seguintes: arte, ciência, saber prát!- gum modo, a Natureza: 7 téxun
ARTE 48
a
as artes que incluem a expressão ““fi-
Jlosofia da arte”* em seu título são ge-
ralmente de caráter menos ““teórico”
e costumam ocupar-se de determina-
das obras de arte, de estilos artísti-
cos, etc. Não obstante, não há crité-
rios escritos segundo os quais se es-
tabeleça uma divisão de trabalho en-
tre estética e filosofia da arte; am- Figura 3
bas as disciplinas se ocupam, com
muita frequência, dos mesmos pro- Formalmente, uma árvore é um
blemas. conjunto de pontos a cada um dos
quais se atribui, mediante uma fun-
ÁRVORE A árvore de Porfírio é um ção, um número inteiro positivo, que
exemplo clássico do uso da figura de é o nível. Dados dois níveis, x, y, a
uma árvore para fins de distribuição relação xRy lê-se ““x é predecessor de
e classificação. Trata-se, neste caso,
de distribuir uma classe em subclas-
y” e““y é sucessor de x”. Há um só
ponto, de nível 1, que é a origem da
ses, algumas das quais se distribuem, árvore. Todo outro ponto, salvo 1,
por sua vez, em outras subclasses, e tem um predecessor único. Um pon-
assim sucessivamente. to simples tem um único sucessor.
A própria imagem da árvore não Um ponto terminal não tem nenhum
é tão importante quanto a configu-
sucessor, constituindo o fechamen-
ração arbórea. O princípio desta é a to do ramo. Um ponto de bifurca-
ramificação. Seguem-se três exem- ção ou juntura tem mais de um su-
plos de árvores: cessor. Quando não há fechamento
ou encerramento de um ramo, se diz
A
que ele está aberto. As árvores são
finitas ou infinitas segundo tenham,
respectivamente, um número finito
ou infinito de pontos. Uma árvore
A é finitamente engendrada quando ca-
da ponto tem um número finito de
pontos.
A figura 4 ilustra as definições an-
teriores. 1 é o ponto de origem da ár-
vore. 2 é predecessor de 4 e sucessor.
MR de 1. 3 é predecessor de 5 e 6, e é su-
cessor de 1. 5 é sucessor de 3. 6 é pre-
decessor de 7 e 8, e é sucessor de 3.
2 é um ponto simples. 3 e 6 são bi-
Figura 2 furcações. 4, 5, 7 e 8 são pontos
ARVORE 50
A
2 3
pois, dessa disjunção, bifurcando-a
de modo que haja um ramo corres-
pondente a 1 e um ramo correspon-
dente a 2. Por sua vez, | é uma dis-
Junção bifurcável em seus compo-
nentes. 2 é um condicional bifurcá-
vel em seus componentes segundo a
4 5 6 regra indicada em TABELAS (MÉ-
TODO DE). O resultado da bifurca-
ção de 1 são duas fórmulas: uma dis-
junção, bifurcável em seus compo-
7 8 nentes, e uma conjunção, ramificá-
vel em pontos simples. O resultado
Figura 4 das operações sugeridas é a seguinte
árvore:
terminais, os quais podem estar aber- [(Ppvqg) v (DAq)] V (Dq)
tos ou fechados. Quando estão fe-
chados, indica-se com o sinal “X”.
pq
A
A árvore da fig. 4 é diádica, por- (PDvq) v (DAQA)
que nenhuma de suas bifurcações
tem mais de dois ramos. A árvore
tem quatro ramos, constituídos pe- PYq pAdq Pp q
los seguintes conjuntos de pontos:
(1) 1,2,4. /N
Pp q Pp
(2) 1,3,5.
3) 1,3,6,7.
(4) 1,3,6,8. q
As árvores são usadas em lógica Em linguística, a estrutura grama-
para formar tabelas: as tabelas se- tical das orações é formalizada por
mânticas e as tabelas analíticas. Ver meio de regras de substituição da
TABELAS (MÉTODO DE). Para a forma:
confecção de árvores é preciso levar
X— Y
em conta o caráter e a distribuição
das conectivas. Assim, consideran- onde “X”** representa um único ele-
do-se a fórmula: mento gramatical e “Y” representa
um ou mais elementos gramaticais.
IpvYa)vipaDIV EA “—” indica a substituibilidade de
“X” por “Y”. As regras são repre-
temos que | e 2 estão
conectadas por sentáveis em linhas sucessivas de
uma disjunção. Há que se partir, substituibilidade.
51 ÁRVORE DE PORFÍRIO (ARBOR PORPHYRIANA)
o
|
meninopediu
|
A
ONN ver outro gênero mais elevado; o
mais especial é aquele abaixo do qual
não pode haver outra espécie subor-
dinada; os termos intermediários são
o brinquedo OS que estão situados entre ambos e
Este diagrama ilustra a formaliza-
ção chomskyana do modelo de cons-
e
são, ao mesmo tempo, gêneros es-
pécies. Tomando como exemplo
titutivos imediatos, e recebeu o no- uma única categoria — a substância
me de “modelo de frase”. Em gra- — Porfírio mostra quais são os gê-
mática transformacional, se introdu- neros e espécies intermediários e, por
zem regras de transformação mas fim, os indivíduos — ou exemplos de
também novas regras estruturais. indivíduos. Encontra então uma sé-
Embora umas e outras sejam, na rie que dá origem ao esquema desta
maioria dos casos, mais complexas página, empregado no essencial por
do que as usadas para formalizar es- Boécio, e popular desde a exposição
truturas de orações, também podem de Julitús Pacius, em seu Aristotelis
expressar-se diagramaticamente por Organum (1584).
meio de árvores. Do ponto de vista A substância, diz Porfírio, é so-
ÁRVORE DE PORFÍRIO (ARBOR PORPHYRIANA) 52
Diferença |
Composta FT Simples Diferença
A
Gênero Corpo Gênero
subalterno NX subalterno
ED
$
| |
Diferença Vivente Diferença
Gênero Animal
ínfimo
NR
específica Irracional. Diferença
Espécie ou ínfima
especialíssima
ee
Sócrates
VE etc.
sumida por outras noções não ne- mordialmente em referência aos atri-
cessariamente relacionadas com as butos de Deus, reservando-se outros
questões planteadas pelo pensamen- termos (““predicado”, “predicamen-
to aristotélico ou escolástico. Entre- to”, etc.) para os conceitos de ordem
tanto, permita-se mencionar apenas lógica ou ontológica. Entretanto, o
alguns autores do século atual para atributo começava por ser definido,
quem os termos ““ato” e “atualida- em geral, dentro da ordem metafísi-
de”* desempenham um papel funda-
ca, como a propriedade necessária à
mental: Gentile, Whitéhead, Husserl essência da coisa e, por conseguin-
e Lavelle. te, parecia estabelecer-se uma equi-
paração entre a essência e os atribu-
ATRIBUTO Em lógica, é algo que tos. Na verdade, o que ocorria é que
se afirma ou se nega a respeito do su- nas coisas criadas havia, efetivamen-
Jeito. Por isso é que o atributo se te, distinção real entre essência e atr!-
confunde, por vezes, com o predica- butos. Mas na realidade divina não
do. O termo ““atributo”* também se havia tal distinção real entre atribu-
emprega algumas vezes em sentido tos e essência, nem tampouco entre
metafísico para distingui-lo do pre-
os atributos dentro de si mesmos.
dicado lógico; neste caso, o atribu-
Outro foi o uso dado a este termo
to é um caráter ou qualidade da
substância. Segundo Aristóteles, há na época moderna. Assinala Descar-
tes (Princ. Phil., 1, 56) que o atribu-
certos acidentes que, sem pertence-
to é algo inamovível e inseparável da
rem à essência de um sujeito, têm seu essência do seu sujeito, opondo-se
fundamento nessa essência. Está nes-
se caso o fato de um triângulo ter então o atributo ao modo. Escreve
seus três ângulos iguais a dois ângu-
Spinoza que o atributo é “o que o
los retos (Mer., à 30, 1025 a 30). Este intelecto conhece da substância co-
tipo de ““acidente essencial*”* pode mo constituindo a sua essência” (Éfi-
chamar-se ““atributo””. Trata-se de ca, IL, def. IV). Em compensação, o
“predicados por si mesmos”, como modo é o caráter acidental e consti-
disse Aristóteles em outro lugar (An. tui as diferentes formas em que se
manifestam as coisas extensas e pen-
post., IL, 22, 83 b 19). Um mesmo
predicado pode ser essencial ou em santes como individualidades que de-
si mesmo em alguns casos e aciden- vem seu ser à extensão e ao pensa-
tal em outros, como ocorre com o mento, isto é, aos atributos da subs-
predicado ““cor””, o qual pertence ao tância (ibid., def. V). Extensão e
branco por si mesmo, mas só aciden- pensamento são, pois, atributos ou
talmente a Sócrates (Filópono, 252, caracteres essenciais da realidade.
10, cit. por J. Tricot, em trad. de Or- Para Spinoza, a substância infinita
compreende um número infinito de
ganon, IV, 1947, p. 113, nota 6).
Entre os escolásticos, o termo atributos, dos quais o intelecto co-
“atributo”, attributum, se usava pri- nhece somente os citados. Os modos
AUTARQUIA 58
de é uma das formas — ainda que Em alguns casos, estes usos derivam
defeituosa — de ser “si mesmo”. de algum dos autores antes mencio-
Com efeito, as coisas não podem dei- nados. Em outros casos, devem
xar de ser elas mesmas, de ser o que quando menos alguma coisa a cer-
são. Em contrapartida, o homem po- tas tradições de pensamento, de res-
de deixar de ser o que é. to muito diversas entre si, como
Quando o homem chega a ser o ocorre, por exemplo, com a idéia
que é, então sua vida é própria. O pascalina de “distração” (a qual ex-
homem cumpre então com sua vo- pressa a realidade humana em sua
cação radical e com seu ““destino””. inautenticidade), com a idéia hege-
Por vezes, Ortega y Gasset equipara liana (e também marxista) de aliena-
“autencidade” a ““realidade” (op. ção (a qual expressa uma fase de cer-
cit., VI, 400); neste caso, o ser au- to processo ““dialético”* da realida-
têntico equivale ao ser mais real — de Humana). Em El ser y la muerte
(23, 24), J. Ferrater Mora pretendeu
porquanto o sentido de ““é real” é
esclarecer a noção de autenticidade
então, distinto do que tem este pre-
dicado quando se aplica a uma rea- contrastando-a com as de “identida-
lidade não-humana. de” ou “identidade própria”. De
Heidegger falou de autenticidade certo modo ser autêntico equivale a
ser idêntico a si mesmo; entretanto,
(Eigentlichkeit) e inautenticidade
e em outro aspecto o ser idêntico a
(Uneigentlichkeit) como modos de si mesmo afeta por igual coisas e pes-
ser básicos do Dasein. O Dasein po-
SOas, ao passo que o ser autêntico é
de, com efeito, ““eleger-se a si mes-
prerrogativa somente das pessoas e
mo”, quer dizer, “ganhar-se”, e nes- exige um pronome pessoal. Qualquer
te caso se apropria de si mesmo e se X, se X é uma pessoa, é idêntico a
faz ““autêntico”. Também pode s1, porquanto é ele mesmo e não ou-
“não eleger-se a si mesmo”, quer di- tro e, não obstante, X só é autênti-
zer, “perder-se”, e neste caso deixa co se atua como ele mesmo. A iden-
de apropriar-se de si mesmo e se faz tidade é um modo de ser, enquanto
“inautêntico” — não chega a ser o a autenticidade (ou a inautenticida-
que é. Heidegger adverte a respeito de) são tendências, nunca plenamen-
que a inautenticidade [improprieda- te realizadas.
de] não é um modo de ““ser inferior”
a respeito da autenticidade [proprie- AXIOLOGIA Em seu livro Valua-
dade] (Sein und Zeit, $ 3). tion: Its Nature and Laws (1906), es-
Muitos outros filósofos contem- creve Wilbur M. Urban: “A segun-
porâneos (por exemplo, Jaspers e, de da tarefa de uma teoria do valor é
um modo geral, boa parte dos cha- a avaliação reflexiva de objetos de
mados ““existencialistas”) fizeram valor. Não só sentimos o valor de
uso dos termos ““autenticidade” e objetos mas avaliamos esses objetos
“autêntico” ou de variantes suas. e, em última instância, os próprios
AXIOMA 60
valores. Segundo a maior parte dos mente toda qualidade boa (“Sem
autores contemporâneos que se ocu- bondade não chegaremos nunca a
param da axiologia, esta posição nos entender”) ou quando se trata
coincide com a que têm todos os va- de indicar abstratamente que algo é
lores estéticos. Especialmente deta- como deve ser (““A bondade deste
lhadas são, a este respeito, as dou- produto faz com que seja muito ven-
trinas de M. Scheler e de N. Hart- dido”). Ao mesmo tempo, ““o Bem”,
mann. Para o primeiro, os valores “a bondade” e “o bom” (substan-
estéticos (e, por conseguinte, o va- tivação do adjetivo “bom”*) são usa-
lor do belo) constituem uma das dos amiúde como sinônimos.
grande seções em que se dividem os Um exame do significado de “o
valores espirituais, superiores aos va- Bem”, “a bondade” ou “o bom”
lores vitais e aos valores de utilida- não é alheio a um exame do signifi-
de. Por sua vez, os valores estéticos cado de “bom” — quando se diz “x
são, dentro dos valores espirituais, é bom”. A rigor, muitos autores
os valores inferiores, dado que aci- pensam que este último exame é mais
ma deles se encontram os valores importante do que o primeiro, ou até
cognoscitivos, os éticos e os religio- que é o único que se pode executar
sos. Para o segundo, os valores es- com proveito, uma vez que os cha-
téticos ocupam na hierarquia axio- mados “o Bem”, “a bondade” ou
lógica um lugar intermediário entre “o Bom'** podem ser unicamente hi1-
os valores de utilidade, de prazer, vi- póstases ou reificações de uma qua-
tais e morais, por um lado, e os va- lidade, propriedade, característica,
lores cognoscitivos, pelo outro. etc., chamada “bom”.
Estudaremos em seguida diversos
BEM Falou-se às vezes de “o bem” modos como foi concebido o Bem —
— também com maiúscula: ““o expressão que usamos, acompanhan-
Bem — como se esta expressão de-.
signasse alguma realidade ou algum
do a tradição, como cômoda abre-
viatura de diversos modos de expres-
valor. Quando tal realidade ou va- sar o ser bom, o que é bom, a bon-
lor são considerados absolutos, fala- dade, etc. Mais do que considerar di-
se do Bem Supremo, summum bo- versas acepções de “o Bem” (o “é
é
num. “Bem” usado igualmente pa-
ra designar alguma coisa valiosa, co-
bom”, “a bondade”, etc.), distin-
guindo cada uma delas das outras,
mo quando se fala de “um bem” ou consideraremos diversas concepções
de “bens”. Também se usa “bem” filosóficas, cada uma das quais não
para indicar que algo é como deve raro apresenta diversas acepções.
ser (“Esta casa está bem”, “Tomás 1. Pode-se estudar “o problema
faz as coisas bem”). do Bem” desde o ponto de vista de
Muitas vezes, “o Bem” equivale uma análise do significado de “bom”.
“a bondade”, quando com esta úl- Se por “bom” se entende “o Bom”
tima palavra se expressa abstrata- ou “o Bem”', então a análise con-
BEM 68
separação entre o que está em nós e parece haver analogias entre a defi-
O que está fora de nós; o Bem será
nição escolástica do Bem como ob-
ao mesmo tempo imanente, e trans- jeto formal da vontade e a boa von-
cendente. Em contrapartida, autores tade kantiana, embora essas analo-
como Spinoza (que derivou grande gias desapareçam logo que considera-
parte de sua concepção dos estóicos) mos as respectivas ontologias subjJja-
consideraram o Bem como algo sub- centes em cada uma das ditas teorias,
Jetivo, não só por ter insistido na para não citar as diferenças funda-
idéia de que o bom de cada coisa é mentais no tocante à idéia da rela-
a conservação e a persistência em seu ção entre o ético e o religioso. Em
ser, mas também por ter escrito ex- todo caso, é difícil conciliar o cará-
pressamente (Etica, III prop. ix, es-
cólio) que “não nos esforçamos por
ter autônomo da ética kantiana com
o caráter heterônomo e às vezes teô-
fazer uma coisa que não queremos,
não apetecemos nem desejamos
nomoda ética tradicional.
Em segundo lugar, trata-se de sa-
qualquer coisa porque a considera- ber que entidades são as que se Jul-
mos boa; mas, ao contrário, julga- gam boas. As chamadas morais ma-
mos que uma coisa é boa porque ten- teriais consideram que o Bem somen-
demos para ela, porque a queremos, te pode encontrar-se incorporado em
a apetecemos e desejamos”. Muitas realidades concretas. É o que ocor-
das chamadas morais subjetivas, tan- re quando se diz que o bom é o agra-
to antigas quanto modernas, pode- dável, ou o conveniente, ou o hones-
riam adotar como lema a citada fra- to, ou o correto, ou o útil (para a v1-
se de Spinoza. Pelo contrário, outras da), etc. Cumpre advertir que os es-
filosofias destacam a independência colásticos não rechaçavam essa con-
do Bem com relação a nossas ape- dição do Bem quando consideravam
tências, mesmo quando reconhecem que o bom se divide, com uma divi-
que o Bem é apetecível: o platonis- são quase essencial — como a divi-
mo figura entre elas. É difícil, em ge- são do análogo em seus analogados
ral, dar exemplos de concepções ex- — em diversas regiões determinadas
tremas neste problema; muitas das pela razão de apetecibilidade, de mo-
doutrinas podem ser consideradas s1- do que se pode dizer do bom, com
multaneamente subjetivas e objJeti- efeito, que é útil, ou que é honesto,
vas. Finalmente, outras parecem es- ou que é agradável, etc. Mas, ao pas-
tar fora desse dilema. E o caso de so que entre os escolásticos isto era
Kant, pois por um lado a boa von- o resultado de uma divisão do Bem,
tade parece ser um querer e, por con- entre os partidários mais estritos das
seguinte, uma apetência; mas, por morais materiais o Bem se reduz a
outro lado, essa boa vontade, quan- uma ou várias de tais espécies de
do pura, é independente de toda ape- bens. As chamadas morais formais
tência e se rege unicamente por si! (especialmente a de Kant) insistem,
mesma. É curioso comprovar que em contrapartida, em que a redução
BEM 72
Assim,
BOA VONTADE A primeira das
PD
>A três seções em que Kant divide sua
se lê: Fundamentação da Metafísica dos
p se e somente se q. Costumes (Grundlegung zur Meta-
physik der Sitten) começa com estas
Exemplo de “poq” é: palavras: “Neste mundo, e também
Antônio é pai de João se e somen- fora dele, nada é possível pensar que
te se João é filho de Antônio. possa ser considerado como bom
sem restrições a não ser uma só col-
O bicondicional equivale a um par
de condicionais, de modo que: sa: uma boa vontade. *
A idéia de Kant de que a boa von-
(Dq) ((p>q)A(q—>p)) tade, como diz um pouco adiante,
“não é boa por aquilo que promove
Esta fórmula é uma das tautolo-
gias do cálculo sentencial (proposi- ou realiza, pela aptidão para alcan-
cional). A tautologia recebe igual- çar qualquer finalidade proposta,
mente o nome de “bicondicional”'. mas tão-somente pelo querer (allein
Ao bicondicional é dado com fre- durch das Wollen), isto é, em si mes-
quência o nome de ““equivalência ma”, suscitou muitos comentários.
(material)”', de modo que “—” Uns são de caráter exegético e têm
também se lê “é equivalente a”. por objetivo descobrir o verdadeiro
Além de “=”, ainda bastante sentido da expressão ““boa vontade”.
usado — por exemplo, em edições Outros são de caráter crítico e se pro-
anteriores da presente obra —, há poem mostrar que a doutrina kan-
outros sinais (hoje em desuso) para tiana da boa vontade é um exemplo
o bicondicional: “ e”,
“1”,
““&”” Na notação de Hilbert-Acker-
extremo de rigorismo moral, ou um
exemplo extremo de formalismo (mo-
mann, usa-se “—”*º. Na notação de ral), ou peca por uma insuficiente
Lukasiewicz, “—” é representado elucidação do significado de “bom”.
pela letra “E” anteposta às variá- Entre os primeiros figuram os co-
veis. Assim, “pq” se escreve “E
mentários de quem procurou uma
Pp
q. ,
Como se viu no artigo sobre as ta- explicação da doutrina kantiana co-
belas de verdade, a tabela para “ — ” meçando por averiguar em que me-
dá vês (verdades) quando ““p” é ver- dida a boa vontade se relaciona com
dadeiro e “q” é verdadeiro, e quan- os outros bens. A este respeito, ex-
do ““p” é falso e “q” é falso. Nos pôs-se sobretudo o problema de sa-
demais casos, ou seja, quando ““p” ber se outros bens não poderão ser
é verdadeiro e “q” é falso, e quan- também concebidos como bons sem
do ““p” é falso e “q” é verdadeiro limitação. Ora, acompanhando a in-
obtemos efes (falsidades). tenção de Kant, tais comentaristas
75 BOA VONTADE
vo”. Hermann Cohen admite que as neira de pensar o mundo como, além
categorias são condições do pensar, disso, o que o pensamento descobre
mas condições lógicas necessárias, de sobre a constituição última do real.
tal modo que, em última análise, não Os “elementos” parecem situados
se sabe realmente se pertencem ou também entre as categorias e os da-
não ao objeto. Tudo depende, com dos imediatos, entre o transcenden-
efeito, de que o momento constitu- tal e o fenomênico, mas a síntese,
tivo da categoria predomine sobre o que trabalha sobre os dois termos,
regularizador e de que, acima deles, tende a acentuar o momento primei-
predomine ainda a instância reflexi- ro sobre o segundo e, por conseguin-
va. Caminhos análogos para tenta- te, a devolver ao “elemento” o ca-
tivas de mediação e busca de um no- ráter predicamental que lhe faltava
vo fundamento ontológico podem em seu começo.
ser rastreados nas doutrinas catego- Os sistemas de categorias prolife-
riais, apenas fenomentistas e relativis- raram a partir das últimas décadas
tas na aparência, de Renouvier e Ha- do século passado e começos do
melin. Renouvier parte de um qua- atual. Segundo Paul Natorp, há três
dro de nove categorias (relação, nú- tipos de categorias básicas (Grund-
mero, posição, sucessão, qualidade, kategorien): (1) Categorias da moda-
porvir, causalidade, finalidade e per- lidade (repouso, movimento, possi-
sonalidade), a cada uma das quais bilidade, contradição, necessidade,
corresponde uma tese, uma antítese criação, etc.); (2) Categorias da re-
e uma síntese. O propósito deste qua- lação (quantidade, qualidade, ““figu-
dro não é tanto o de estabelecer o ração”, concentração, autoconserva-
conjunto das determinações pelas ção, etc.); (3) Categorias da invidi-
quais se rege o conhecimento, quan- duação (propriedade, quantificação,
to o de solucionar os dilemas meta- continuidade, espaço, tempo, etc.).
físicos capitais e fazer planar acima Estas categorias são “funções pro-
de todas as outras a categoria da pes- dutivas da constituição do ser”. Wil-
soa, que de forma do Juízo se con- liam James esboçou uma trama ca-
verte assim em suprema entidade me- tegorial baseada na relação como al-
tafísica. A tendência para o prima- go pertencente à própria coisa. As-
do da noção ontológica da categoria sim, de menor a maior “intimida-
afirma-se nos trabalhos posteriores de”, as relações ou categorias são:
de Renouvier, sobretudo ao reduzir estar com — simultaneidade e inter-
o quadro às categorias de relação, loó- valo temporal —, ser adjacente no
gicas, de posição e de personalida- espaço e distância — similaridade e
de. Hamelin concebe as categorias diferença —, atividade — mudança,
como ““elementos principais da re- tendência, resistência —, causalida-
presentação””, mas também se pro- de — sistema contínuo do eu. Hein-
põe mostrar como o conjunto das re- rich Meler apresenta uma tábua ca-
lações categoriais é não só uma ma- tegorial na qual se analisam sucessi-
85 CATEGORIA
igualmente que tudo quanto vem a ser Ora, ainda que todas as causas con-
tem uma causa, mas a primeira cau- corram para a produção de algo — a
sa não é puramente mecânica: é tam- produção do efeito — a causa final
bém inteligível. Platão já estabelece, parece ter certo predomínio, já que é
pois, uma distinção entre causas pri1- o “bem” da coisa, e a causa final
meiras, aiTtiaL Ou causas inteligíveis pode, como tal, ser considerada o
(as idéias), e causas segundas, aitiar bem por excelência. Quando Aristó-
devTépaL OU Causas sensíveis e eficien- teles afirma que “tudo o que ocor-
tes (as das realidades materiais e sen- re ocorre a partir de algo”, mav
síveis) (Timeu, 46 C). Além disso, su- TO VILYVOUEVOV VIVVETA... UTO TLVOS
causa é, para Santo Tomás, aquilo acima apontados e que podem ser
a que necessariamente se segue algu- claramente entendidos em seu enun-
ma coisa. Irata-se de um princípio, ciado são: causa adaequata, cau-
mas de um princípio de caráter po- sa inadaequata, causa essendi, cau-
sitivo que afeta a alguma coisa. À sa fiendi, causa cognoscendi, causa
causa distingue-se neste sentido do transiens, causa per se. Cada um dos
princípio em geral. O princípio é quatro tipos de causa foi, além dis-
aquilo de que algo procede (o prin- so, classificado pelos autores tomis-
cipiado) de um “modo qualquer”; tas. Assim, temos na causa eficien-
a causa é aquilo de que algo proce- te, entre outras, as seguintes espécies
de (o causado) de um modo especí- de causa: primeira e segunda; prin-
fico. Princípio e causa são ambos, de cipal e subordinada; unívoca e aná-
algum modo, ““princípios”, mas en- loga (ou ““equivoca””); essencial e aci-
quanto o primeiro o é segundo o in- dental; imanente e transitiva; imedia-
telecto, a segunda o é segundo a coi- ta, mediata, remota e última; total
sa (ou a realidade). Assim se estabe- e parcial; universal e particular.
lece a diferença entre a relação prin- Em geral, os filósofos antigos e
cipio-consequência e causa-efeito, de medievais foram propensos a cons!1-
importância tão fundamental no tra- derar a relação causa-efeito desde
tamento da noção de causa e que tem um ponto de vista predominante-
sido obliterada, às vezes, pelo racio- mente ontológico. Além disso, incl1-
nalismo extremado. A partir destas naram-se com frequência a conside-
definições, Santo Tomás — e diver- rar a noção de causa em estreita re-
sos autores tomistas — introduziram lação com a substância (ver). Isto
numerosas distinções, algumas ba- não significa que todos estes filóso-
seadas em Aristóteles e outras pró- fos estivessem de acordo. Dentro do
prias. Distinguiu-se entre causas pri- estoicismo e do cepticismo encontra-
meiras e causas segundas, como Pla- mos idéias sobre as causas em que se
tão já o fizera. Falou-se também das sublinham muito menos os aspectos
seguintes espécies de causa: causas ontológicos da relação causal. Por
constituintes (matéria e forma); cau- um lado, em vários pensadores me-
sas extrínsecas (eficiente, final, dievais encontram-se análises da no-
exemplar); causas intrínsecas (maté- ção de causa que são distintas tanto
ria e forma); causas acidentais; cau- da concepção ““exemplarista” quan-
sas cooperantes ou concomitantes to da tomista.
(concausas); causas instrumentais Durante o Renascimento, desper-
(subordinadas); causas ocasionais; tou-se o interesse pela noção de cau-
causas imediatas (que produzem di1- sa final, sobretudo entre autores que
reta e imediatamente o efeito). Ex- desenvolveram uma concepção do
pressões em que intervém o termo mundo de caráter “organológico” (J.
causa em outros sentidos distintos B. van Helmont, Agrippa de Nette-
(embora, às vezes, próximos) dos sheim). Em começos da época mo-
CAUSA 90
derna foi-se impondo cada vez mais cia”) e o de razão suficiente (que a
a noção de causa eficiente; dentro relação ““causa-efeito” expressa).
dessa noção impôs-se, ademais, a no- Contudo, a sua tese de que nada
ção de uma causa que, em vez de dar acontece sem razão suficiente não é
razão das próprias coisas, refere-se apenas um princípio causal, mas
a variações de estado e deslocamen- também um princípio lógico (simul-
tos no espaço de acordo com leis ma- taneamente lógico e ontológico).
tematicamente expressáveis. O exem- Com isso, os racionalistas depara-
plo mais destacado a respeito é Ga- ram-se com uma dificuldade. Para
lileu. A física moderna renuncia a ex- entender racionalmente o efeito, es-
plicar a “natureza ontológica” da te há de estar “incluído” na causa
mudança: fornece uma razão men- (se assim não ocorresse, haveria al-
surável do movimento. Para alguns go novo, que seria ininteligível).
autores, 1sso equivale a prescindir da Mas, se está “incluído” na causa,
noção de causa. não há realmente efeito. E verdade
A noção da natureza da causa e de que o princípio racionalista, causa
que realidades são propriamente cau- aequat effectum, ““a causa é igual ao
sas foi discutida de forma abundan- efeito” (literalmente: ““a causa está
te nos séculos XVII e XVIII. Duas no mesmo nível do efeito”), pode
grandes posições se defrontaram. interpretar-se da seguinte maneira:
Uma delas pode ser chamada ““racio- tem de haver uma completa corres-
nalista”*; seus mais conhecidos de- pondência entre a causa e o efeito (Já
fensores são Descartes (cf., por que de outro modo não se entende-
exemplo, Princ. Phil., II, 30, 36; III, ria como foi produzido o efeito).
43, 141 er al.), Spinoza (cf., por Mas, em última análise, o citado
exemplo, Eth., I vii, schol. 2) e Leib- princípio está subordinado ao de
niz (cf., por exemplo, Discours de causa sive ratio.
métaphysique, 19, 22 et al.). A ten- Malebranche e os ocasionalistas
dência mais acentuada entre os ra- viram-se obrigados a resolver o dua-
cionalistas foi a equiparação de lismo entre a substância pensante e
“causa” com ““razão”, segundo a a extensa estabelecida por Descartes,
fórmula causa sive ratio, “causa ou mediante a suposição de que as cau-
razão”. Isto fazia com que a relação sas, pelo menos as segundas, são
causa-efeito fosse muito parecida, se ocasiões e, portanto, só Deus pode
não idêntica, à relação princiípio-con- ser verdadeira causa eficiente.
sequência: se A é causa de B, À é As opiniões dos racionalistas e dos
princípio de B, e vice-versa. Este empiristas a respeito da causalidade
ponto de vista foi defendido de for- diferem abertamente. Em sua Philo-
ma consequente por Spinoza. Leib- sophia prima sive ontologia ($ 881),
niz distinguia entre o princípio de Wolff expressou a tese racionalista
não-contradição (expresso pela cita- afirmando que a causa é um princí-
da relação ““princiípio-consequên- pio (principium) e o causado é algo
91 CAUSA
Deus foi apresentado como causa eque, usando as letras “S”, “P” e
sui por Descartes em sua prova (que “M” da lógica tradicional, pode ser
Kant chamou de ““ontológica”) da expressa mediante o seguinte esque-
existência de Deus. Spinoza começou . ma.
a sua Ética (I, def. 1) com uma defi-
(MeP A SaM)— SeP
nição do conceito de causa sui: “Por
causa de si mesmo entendo aquilo onde aparece claramente a sequên-
cuja essência envolve a existência; cia das letras “E”, “A”, “E”, ori-
ou, por outras palavras, aquilo cuja gem do termo Celarent na ordem
natureza não pode ser concebida se- MP-SM-SP.
não como existente.”* Pode-se dizer
que em Descartes e em Spinoza dá- CESARE É o nome que designa um
se uma definição positiva de causa dos modos válidos dos silogismos da
sui, diferentemente da definição es- segunda figura. Um exemplo de ce-
colástica medieval, que era mais ne- sare pode ser:
gativa, porquanto afirmava que um
ente é causa sui quando não tem cau- Se nenhum pedaço de ferro é
sa (exterior ao ente considerado). À branco
causa sui definida positivamente e todos os flocos de neve são
aplica-se em Descartes à substância, brancos,
mas, como a única substância que então nenhum floco de neve é um
cumpre com todas as condições re- pedaço de ferro,
queridas é a substância infinita, Deus exemplo que corresponde à seguinte
acaba por ser definido como causa lei da lógica quantificacional ele-
sui por excelência. O mesmo ocorre mentar:
em Hegel.
entendendo-se que os cínicos cons!- teria sido possível sem Sócrates, por-
deravam este qualificativo uma hon- quanto foi ele — como sua vida e sua
ra. Segundo Diógenes Laércio, isto morte — quem demonstrou que um
se deve ao fato de que Antístenes — ser humano não admite ser reduz!-
usualmente considerado o ““funda- do a “animal social”. Foi pela ad-
dor” da “escola” — dava suas au- miração suscitada pela independên-
las no Cinosarges, um ginásio situa- cia do modo de vida socrático que
do nas cercanias de Atenas. O sent!1- os cínicos chegaram a proclamar a
do pejorativo que a palavra adqui- máxima importância do indivíduo
riu muito posteriormente deve-se em isolado, ao passo que os convencio-
grande parte ao desprezo que os cíi- nalismos da sociedade nada mais são
nicos manifestavam pelas conven- — diziam — do que vestígios iner-
ções sociais, e em parte aos adversá- tes de um tempo passado, que qual-
rios da escola, sobretudo depois que quer indivíduo não deve ter em gran-
alguns de seus “membros” abando- de conta, já que carecem completa-
naram a característica ascética e 1n- mente de importância. Em linhas ge-
clinaram-se para o hedonismo. Mas, rais, cínicos consideravam com In-
Os
em geral, o cínico era tido como o diferença as coisas deste mundo.
homem para quem as coisas do mun- Mais do que uma filosofia, o cinis-
do eram indiferentes. mo consiste, sobretudo, numa for-
Discutiu-se muito sobre quem fo- ma de vida — aquilo a que Dióge-
ram os fundadores do cinismo. À nes Laércio chamava eévtagis Biouv —,
opinião tradicional é que existe uma um estilo de vida que surgiu num
linha contínua de transmissão do momento de crise do mundo antigo,
pensamento cínico que vai de Antiís- mundo ameaçador se se prestarem
tenes a Diógenes, e deste a seus dis- ouvidos aos temas clássicos das dia-
cípulos, tanto diretos como indire- tribes cínicas, mundo de exílios, es-
tos. Esta linha foi continuada, de cravatura e falta de liberdade. E é
acordo com a citada opinião tradi- para enfrentar essa crise que os cíni-
cional, pelos cínicos dos séculos III cos renunciam à ação e declaram que
e II a.C. Após uma certa interrup- o ideal é a passividade absoluta; mas
ção, o cinismo (sempre considerado como isso não é possível, o cínico de-
como a ““escola cínica”) ressurgiu em dica toda a sua energia numa única
fins do século I e durante o século direção: mostrar desprezo por tudo
II d.C. Outros discípulos, porém, O que seja convencional.
destacaram a importância de Dióge-
nes, considerando-o o autêntico fun- CÍRCULO Este termo pode ser em-
dador da escola, contestando aque- pregado em diversos contextos.
les que atribuíam a Crates de Tebas 1. Para designar, metaforicamen-
a iniciativa. te, uma forma básica, ou até a for-
Independentemente de quem tives- ma básica, de comportamento da
se fundado a escola cínica, isso não realidade em sentido metafísico. Diz-
95 CLARO E DISTINTO
o
A e B; a área marcada com um X re-
presenta a classe de todas as entida-
des que pertencem simultaneamente
aÃeabB.O diagrama:
o
A
mostra o complemento À de A; a
área na qual está À representa a clas-
se de todos os membros que não per-
tencem a A. O diagrama:
mento. Quem quer que seja, pois, empregada. Depois, no fato de que
que duvide de tudo o mais não pode os pressupostos teológicos que ti-
duvidar do que ficou antes dito, nham orientado Santo Agostinho
pois, se isso não fosse assim, não po- parecem estar quase completamente
deria duvidar de nada). ausentes em Descartes. Finalmente,
Em diferentes respostas a essas ob- o fato de que a metafísica de Descar-
servações, Descartes não indicou se tes é uma metafísica do inteligível,
Já tinha encontrado tais passagens que desemboca no mecanicismo, ao
anteriormente às suas próprias fór- passo que a de Santo Agostinho é
mulas, limitando-se a sublinhar: (a) uma metafísica do concreto, a qual
Que enquanto Santo Agostinho se culmina no “animismo”, isto é, no
serve de seus argumentos para pro- “intimismo”.
var a certeza de nosso ser — e, na Já vimos qual é a opinião do pró-
citada passagem de De civitate Dei, prio Descartes a tal respeito: não se
para mostrar que há em nós uma trata apenas, com efeito, de encon-
imagem da Trindade —, ele, Descar- trar uma proposição apodiíctica que
tes, serve-se dos seus para dar a en- sirva de sólido alicerce para o edifi-
tender que o eu que pensa “é uma cio da filosofia, mas também de pro-
substância imaterial”, o que — var ““a distinção real entre a alma e
acrescenta — ““são duas coisas mui- o corpo”, como se diz no título da
to diferentes** (Carta datada de 2 de Meditação Sexta. Mas dentro dessa
novembro de 1640; A.T., II1 247-8). concepção fundamental podem acen-
Portanto, Santo Agostinho não faz tuar-se aspectos distintos. Merleau-
do princípio ““o mesmo uso que eu”* Ponty, por exemplo (cf. Bulletin de
(Carta a Mersenne de 25 de maio de la Société Française de Philosophie,
1637; A.T., 1 376). 1947, 129-30), indicou que propõe os
As opiniões estão divididas entre três aspectos seguintes: (1) O Cogi-
os que fazem francamente de Des- to equivale a dizer que, quando me
cartes um agostiniano, pelo menos apreendo a mim mesmo, limito-me
neste ponto capital, e os que decla- a observar um fato psíquico. Esta
ram não existir vínculos de nenhu- significação predominantemente psi-
ma espécie entre as duas doutrinas. cológica é a que se oferece no pró-
Frente a uns e outros, há autores prio Descartes ao dizer que está cer-
que procuram fazer vingar uma tese to de existir todo o tempo que pensa
intermédia, sustentando (como Gil- nisso. (2) O Cogito pode referir-se
son) que, embora não se possa ne- tanto à apreensão do fato de que
gar a importância dos argumentos penso quanto aos objetos abrangidos
agostinianos e de quem os adaptou por esse pensamento. Em tal caso,
ou transformou, existem de toda ma- o Cogito não é mais certo do que o
neira diferenças fundamentais entre cogitum. Esta significação aparece
os dois grandes filósofos. De imedia- em Descartes quando considera nas
to, elas existem na própria fórmula Regulae o se esse como uma das ver-
106
COGITO, ERGO SUM
terá mais remédio senão admitir que, tras ocasiões, distingue-se entre am-
quando outro diz “eu penso”, está bos os conceitos. Referimo-nos ao
provavelmente certo, mas não se po- último ponto no artigo Númeno. No
de supor que 1sso seja forçosamente mesmo artigo falamos das duas in-
algo certo. terpretações — fenomenista e idea-
lista transcendental — que cabe dar
COISA EM SI Kant chamou ““coisa da crítica kantiana; estas interpreta-
em si” (Ding an sich) — às vezes, ções estão ligadas ao papel que se ou-
“coisas em si” (Dinge an sich) — ao torgue à noção de coisa em si. Estas
que se encontra fora do âmbito da informações podem ser completadas
experiência possível, isto é, ao que com as oferecidas no artigo AN-
transcende as possibilidades do co- TINOMIA.
nhecimento, tal como se encontram Kant parece mais cauteloso em seu
delineadas na ““Estética transcenden- tratamento do conceito de coisa em
tal”* e na “Analítica transcendental” si na 2º edição da Crítica da Razão
da Crítica da Razão Pura. A coisa Pura. Não obstante, persistem nu-
em si pode ser pensada ou, melhor merosas vacilações e incertezas.
dizendo, pode-se pensar o conceito Complementaremos a informação
de uma coisa em si; a rigor, “coisa proporcionada nos artigos citados
em si” é o nome que recebe “um com uma breve resenha do que se
pensamento completamente indeter- chamou ““o destino da coisa em si”
minado de algo em geral” (K. r. V., em algumas filosofias pós-kKkantlanas.
A 253). Mas a coisa em si não pode Num texto que servia de apêndice
ser conhecida, ao ponto de que se lhe a uma obra sobre Hume (1978), Frie-
possa chamar ““o algo, o x, do qual drich Jacobi escreveu uma das fra-
nada sabemos nem, em geral... na- ses mais frequentemente citadas a
da podemos saber” (ibid., À 250). respeito da noção kantiana de coisa
A natureza e função da coisa em em si. Em substância, diz o seguin-
si — ou do conceito de ““coisa em si” te: “sem o conceito de coisa em si
— na filosofia crítica de Kant foi ob- não se pode penetrar no recinto da
jeto de numerosos debates, muitos crítica da razão pura, mas com o
deles provocados pelo caráter impre- conceito da coisa em si não se pode
ciso do vocabulário kantiano. Por permanecer nele”*. Deste modo, Ja-
vezes (na 1º edição da Crítica da Ra- cobi ressaltava o conflito entre a
zão Pura), Kant distingue entre ““coi- idéia que Kant parecia defender às
sas em si” e “objeto transcenden- vezes de que as coisas em si estão
tal”*. Outras vezes (como na 2º? ed!- subjacentes a, ou são inclusive cau-
ção), considera-os em conjunto ou sas das aparências, e a afirmação de
deixa simplesmente de falar do últi- que o conceito de causa, enquanto
mo. À coisa em sl parece ser, oca- um dos conceitos do entendimento
sionalmente, o mesmo que o chama- ou categorias, aplica-se tão-somente
do “Númeno”** (Noumenon); em ou- a fenômenos, isto é, à afirmação de
108
COLETIVO
OU suas variantes em linguagem cor- o que tem sido, com frequência, con-
rente: siderado paradoxal. Tendo-se erro-
Se Romeu fala, Julieta se deleita.
neamente chamado ““implicação” ao
condicional, falou-se dos ““parado-
Julieta se deleita, contanto que
xos da implicação material”, Esses
Romeu fale, etc. paradoxos são eliminados mediante
No condicional “p—q”, “p” é uma ““interpretação estrita da impli-
chamado o ““antecedente” e “gq
“consequente”.
o cação”. Referimo-nos a esta última
no artigo sobre a noção de implica-
Dado “p—-qg”, a fórmula: ção. Ora, os citados “paradoxos da
implicação material”” devem-se à
q—>p confusão criada entre o condicional
e a implicação, pois “—* não deve
é chamada a “conversa” de “p—q”. ler-se “implica”* mas, como acima in-
Por sua vez,
dicamos, ““se... então”. Neste caso,
fica claro que um condicional como:
é chamada a “inversa” de “p — q”. Se Hegel é um filósofo, Baudela!-
Finalmente, re é um poeta,
é um condicional verdadeiro, en-
é chamada a ““contrapositiva”* de quanto:
“D — q.
No artigo TABELAS DE VER-
“Hegel é um filósofo”? implica
“Baudelaire é um poeta”
DADE apresentamos uma tabela pa-
é uma implicação falsa. O motivo
ra “p—q ” da qual resultava que disso é que, diferentemente do con-
quaisquer que fossem os valores de dicional, no qual se usam enuncia-
verdade de “p” e de “q”, os resul-
dos, na implicação usam-se nomes de
tados eram vês, exceto quando ““p” enunciados. Somente quando um
é verdadeira e “q” é falsa. Esta ta-
condicional é logicamente verdadei-
bela se baseava na chamada ““inter-
ro há a implicação do consequente
pretação material”* do condicional pelo antecedente. Exemplo deste úl-
adotada por muitos autores já a par- timo caso é:
tir de Filon de Megara. De acordo
com essa interpretação, há que se de- Se Hegel é um filósofo, e Baude-
clarar verdadeiros condicionais como: laire é um poeta, então Bau-
Se Hegel é um filósofo, Baudelai- delaire é um poeta,
re é um poeta, o que, sendo logicamente verdadei-
Se OS corpos são inextensos, os
ro, permite enunciar:
diamantes são duros,
Se Virgílio foi um poeta norue- “Hegel é um filósofo e Baudelai-
guês, Dostoievski foi um famo- re é um poeta” implica “Baude-
so ciclista, laire é um poeta”.
117 CONHECER
e tais proposiçõessão, portanto, di- até que ponto, o que se diz a respei-
tas “contrárias”. Na lógica clássica, to de algo e, em geral, a própria lin-
a relação de contrariedade afirma guagem que se usa para dizê-lo, é re-
que duas proposições contrárias não sultado de convenções. Se, como
podem ser ao mesmo tempo verda- pensou a maioria dos sofistas, a res-
deiras, mas podem ser ao mesmo posta é positiva, então deve-se re-
tempo falsas. Assim: nunciar a encontrar enunciados, teo-
rias ou doutrinas absolutamente cer-
Se A é verdadeira, E é falsa.
A falsa, E pode tas. O caráter aceitável de um enun-
Se é ser falsa.
E ciado, de uma teoria ou de uma dou-
Se é verdadeira, A é falsa.
trina é função das convenções de
Se E é falsa, A pode ser falsa.
princípio adotadas, ou seja, de que
Na lógica clássica, a distinção da se tenha chegado — não necessaria-
matéria da proposição em matéria mente de um modo explícito — a um
necessária e matéria contingente in- “acordo” no tocante a certas ““ver-
troduz uma restrição na afirmação dades”* básicas. Platão opôs-se ao
“Se A é falsa, E pôde ser também “convencionalismo”* dos sofistas,
falsa.”* Com efeito, considera-se que pelo menos na medida em que po-
quando a matéria é necessária, ou se- dia desembocar num relativismo.
ja, quando P pertence à essência de O convencionalismo próprio de
S, duas proposições contrárias não todo chamado ““contrato social” está
podem ser ao mesmo tempo falsas. destinado a evitar a “proliferação
A relação de contrariedade ocorre anárquica”* de opiniões em matéria
também nos termos e nas propos!- política e social. Entretanto, o ter-
ções modais. Referimo-nos no mes- mo ““convencionalismo*”* foi usado
mo artigo aos dois tipos de proposi- com maior frequência a respeito de
ções contrárias (contrárias simples e discussões sobre a natureza das teo-
contrárias oblíquas) resultantes do rias científicas, embora possa abran-
cubo de oposição proposto por Hans ger discussões sobre a natureza de
Reichenbach (ver “The Syllogism quaisquer teorias.
Revised”, Philosophy of Science,
XIX, 1952). CORPO Entende-se por “corpo”:
(1) Um objeto físico que possui pro-
CONVENCIONALISMO A distin- priedades sensíveis, ou que possui
ção proposta pelos sofistas entre o propriedades tais que causam nos se-
que é por natureza, voe (“por nas- res humanos e, em geral, nos orga-
cimento”, “por sua origem [natu- nismos biológicos, impressões, ou es-
ral”), e o que é por “lei”, vouo, tímulos, ou ambas as coisas. Supõe-
equivale em muitos casos a uma dis- se que um corpo tem determinada
tinção entre “verdadeiro” ou “real” extensão. (2) À matéria orgânica que
(ou ““verdadeiro-real”*) e “conven- constitui o homem e os animais. (3)
cional”. Os sofistas discutiram se, e Especificamente, a matéria orgâni-
CORPO 134
corpo que ““eu existo” é o que “eu son. A peculiar unidade do corpo,
continuamente transcendo para no- distinta da unidade do corpo como
vas combinações de complexos” objeto científico (Phénomeénologie
(L'Étre et le Néant, 5* edição, 1945, de la perception, 1945, pp. 203 e ss.),
p. 390) e por 15so o meu corpo per- não conduz à “redução do corpo”,
tence ““às estruturas da consciência nem no sentido do sensacionismo,
não-tética (de) si mesmo” (op. cit., nem no do idealismo. Na verdade,
p. 394). Na segunda dimensão, o parece que tal fenomenologia do cor-
corpo é para outro (ou então o ou- po, no sentido de Merleau-Ponty, dá
tro é para o meu corpo); trata-se, como resultado o céu aberto por
neste caso, de uma corporalidade ra- Descartes com a separação entre cor-
dicalmente diferente da do meu cor- po e alma, e soluciona todos os de-
po para mim. Pode-se dizer, então, bates havidos durante a época mo-
que “o meu corpo é utilizado e co- derna sobre esta questão. Assim, a
nhecido por outro”. “Mas na medi- “unidade da alma e do corpo — diz
da em que eu sou para outro, o ou- o citado autor — não fica selada por
tro se revela a mim como o sujeito meio de um decreto arbitrário entre
para quem sou objeto. Então eu exis- dois termos exteriores, um objeto
to para mim como conhecido por ou- e o outro sujeito. Ela realiza-se a
tro, em particular em sua facticida- cada instante no movimento da exis-
de mesma. Eu existo para mim co- tência”* (op. cit., p. 105). Com 1s-
mo conhecido pelo outro em forma to, Merleau-Ponty confirma a im-
de corpo” (op. cit., pp. 418-19). Es- possibilidade de estabelecer uma
ta é a terceira dimensão ontológica
do corpo dentro da fenomenologia
dualidade entre “meu corpo” e “mi-
nha subjetividade”, dualidade que,
ontológica do ser para outro e da segundo a observação de Alphonse
existência dessa alteridade. Também de Waelhens (“La Phénoménologie
Merleau-Ponty analisou in extenso o du Corps”, Revue philosophique de
problema do corpo e de sua percep- Louvain, 48 [1950], 371-97), desapa-
ção. O corpo como objeto é, em seu rece assim que se concebe a existên-
mais alto grau, o resultado da inser- cia como um ““ser-no-mundo”. Mas
ção do organismo no mundo do “em a negação da dualidade pode efetuar-
si” (no sentido de Sartre). Tal mo- se por outros caminhos e a partir de
do de consideração é obviamente le- pressupostos muito distintos. É o
gitimo. Mas não pode ser considera- que ocorre no livro de Gilbert Ryle,
do exaustivo e muito menos primá- The Concept of Mind (1949). Ryle
rio. Ora, essa anterioridade da des- opõe-se ao que chama a teoria do
crição fenomenológica do corpo le- “fantasma dentro da máquina” —
va, segundo Merleau-Ponty, a um a “doutrina oficial de toda a psico-
terreno que é anterior àquele a que logia moderna baseada no ““mito
a submissão da análise à descrição cartesiano da separação entre pensa-
dos “dados imediatos” levou Berg-
mento e extensão”. Em última ins-
139 CRENÇA
ção no estoicismo, na medida em que de que fala Kant não é a “fé” mas
se sublinhe o ““voluntarismo” de a razão prática. O terceiro ponto é
Duns Escoto. Essa concepção mani- que, em última instância, não há
festa-se igualmente no racionalismo duas espécies distintas de razão, que
e no empirismo modernos. Assim, sejam além do mais mutuamente in-
para o racionalismo, a crença é a evI- compatíveis, mas uma única espécie
dência de princípios inatos. Para o de razão. Por conseguinte, é errôneo
empirismo, a crença é a “adesão” à supor que Kant esteja manisfetando
vivacidade das impressões sensíveis. aqui O cepticismo anti-racionalista
Por exemplo, em Hume, a noção de ou o ““fideísmo”.
causalidade torna-se aceitável em vir- Os trabalhos relativos às chamadas
tude de uma crença natural que, ao “proposições de crença” — e, tam-
mesmo tempo que destrói a sua uni- bém, mais apropriadamente, “enun-
versalidade a priori, a torna plausi- clados de crença”? — dizem respeito
vel em virtude do hábito. Hume es- a expressões nas quais intervém o ver-
creve que o máximo que podemos fa- bo “crer”, usualmente (ainda que
zer em filosofia “é afirmar que a não necessariamente) na terceira pes-
crença é algo sentido pelo espírito, soa do singular do presente do indi-
que discrimina entre as idéias dos Juí- cativo (““crê que”). Em seu ensaio
ZOS e as ficções da imaginação” (En-
“ÚUber Sinn und Bedeutung”' [Sobre
quiry, V, 2). sentido e referência], em Zeitschrift
Cita-se amiúde uma frase do
fúurPhilosophie und philosophische
“Prólogo” da 2º? edição da Crítica Kritik, 100 (1892), 25-50, Frege cha-
da Razão Pura, de Kant: “tive de
afastar o saber para dar lugar à fé ma atenção para expressões que per-
(Glauben)”. Com esta frase, Kant tencem ao discurso indireto — cita-
parece dar a entender ou que a cren- ções indiretas e cláusulas nominais
ça (especialmente na esfera moral) é
abstratas introduzidas (comumente)
completamente independente do sa- mediante “que”. Trata-se de orações
ber, ou que existe, inclusive, um que contêm uma cláusula subordina-
“primado” da crença sobre o saber da. O problema que se apresenta é o
— o que poderia explicar o tão co- da denotação de semelhante cláusu-
mentado ““primado da razão práti- la. Na oração direta:
ca sobre a teórica”. Entretanto, é
A fruta-do-conde é comestível
preciso levar em conta vários pontos.
O primeiro é que o saber de que fala a denotação é, para Frege, o valor
Kant nessa frase não é o verdadeiro de verdade dessa oração. O mesmo
conhecimento ou a ciência, mas o Ocorre com a oração direta:
pretenso saber propugnado pelos ra-
A nona é comestível.
cionalistas, que faz uso de princípios
ditos supremos sem prévio exame e “Fruta-do-conde” é o nome que
crítica dos limites da faculdade cog- se dá a um fruto que em Santa Ca-
noscitiva. O segundo é que a crença tarina recebe o nome de “nona”.
141 CUIDADO
Não podemos saber, salvo por com- to é, que a crê e se expressa por
O
provação empírica, se a fruta-do- meio da proposição. Exemplos de
conde e a nona são o mesmo fruto. enunciados de crença são:
Se a oração “A fruta-do-conde é co-
mestivel” é verdadeira, e a oração “A “a crê que p”
nona é comestível” é verdadeira, a “a crê que não p”
denotação de ambas as orações é, se- “p é compatível com tudo o que
gundo Frege, o valor de verdade, “o acre.
PO)
seu Sol? Para onde se move agora a 1973. Parece depreender-se desses es-
Terra e para onde nos movemos? Pa- tudos que a morte de Deus é, como
ra longe de todos os sóis? Estamos dizia Nietzsche, um ““processo”, em-
continuamente saltando, para trás, bora um processo em dois sentidos:
para diante, para os lados, em todas no de ser um acontecimento e um
as direções? Resta por acaso alguma “julgamento” a que os “modernos”
coisa acima ou abaixo? Talvez cami- submeteram Deus.
nhemos como seres errantes através Entre outros reflexos do tema da
de um Nada infinito?”* A morte de “morte de Deus” destaca-se o que
Deus é a mais radical expressão de foi proporcionado pela ““teologia
niilismo, um niilismo sem o qual se- sem Deus” ou “teologia radical”, tal
ria impossível dar-se essa inversão de como foi desenvolvida por Thomas
todos os valores. J. J. Altizer, Paul M. van Buren,
Nietzsche expressa um ponto cul- William Hamilton, Herbert Braun,
minante no processo de desdiviniza- Helmut Góllwitzer, Dorothee Sólle
ção, descristianização e secularização e outros autores. Eles diferem con-
do mundo moderno europeu que tem sideravelmente entre s1: uns são mais
sido objeto de detalhadas investiga- “radicais” que outros; uns se inte-
ções históricas, especialmente con- ressam pelos aspectos ““práticos” e
centradas na França, e sobre os mo- outros pelos aspectos ““teóricos” da
dos como em várias regiões e perio- questão. Além disso, cada um deles
dos se enfrentou a idéia da morte, usa métodos próprios e chega a con-
desde a precursora obra de Bernhard clusões distintas. Assim, por exem-
Groethuysen, Die Entstehung der plo, van Buren dedicou-se a um exa-
biúrgerlichen Welt-und Lebens- me lingúístico, influenciado pelo po-
chauung in Frankreich [A formação sitivismo lógico e pelo “último Witt-
das concepções burguesas do mun- genstein”' — dos quais, quanto ao
do e da vida na França], 1927-1930, resto, se aproximou excessivamente
até a síntese de Philippe Ariés, Les — para deles derivar a idéia de que
attitudes occidentales devant la mort a palavra “Deus” carece de signifi-
dês le Moyen Áge jusqu'au présent cado. Isso lhe permitiu destacar os
[As atitudes ocidentais perante a elementos não cognoscitivos da teo-
morte desde a Idade Média até o logia cristã e pôr em relevo ““o sig-
presente], 1970, e a monografia de nificado secular do Evangelho”. Al-
Michel Vovelle, Piété baroque et tizer — que liga seu pensamento ao
déchristianisation en Provence au de Nietzsche, a quem chama um
X VIIF siêcle: Les attitudes devant la “cristão radical”' — rompe com a
mort d'aprês les clauses des testa- tradição das Escrituras, o que o le-
ments [Devoção barroca e descris- va a tratar de restabelecer uma ““co-
tianização na Provença no século munidade da fé” independente da
XVIII: As atitudes perante a morte tradição e em consonância com a si-
segundo as cláusulas de testamentos)], tuação do homem atual, que perdeu
175 DEVER
princípio que não seja o próprio im- creve Kant na Crítica da Razão Prá-
perativo categórico. Assim, basear o tica, no verso de Juvenal:
dever em Deus ou baseá-lo na nor- Et propter vitam vivendi perdere causas
ma de viver de acordo com a natu-
[E por amor à vida perder o que à
reza é dar uma fundamentação “ma-
terial”* (não autônoma) do dever.
torna digna de ser vivida], o qual
mostra que, quando na ação se in-
Para a moral formal que Kant pro- troduz algo de auto-estima, a pure-
põe, o dever não se deduz de nenhum
za de seus motivos fica manchada.
“bem” (Deus, a natureza, à socie- Pois bem, Kant não nega que seja
dade, etc.), por mais alto que seja necessário, por vezes, o auxílio da
considerado. Segundo Kant, o dever
sensibilidade, de modo que, em cer-
— ““*esse grande e sublime nome”
é a forma da obrigação moral.
A tas ocasiões, fazê-la intervir é prefe-
rível a imolar toda ação no altar da
moralidade ocorre deste modo so-
pura santidade do dever. Os tão cri-
mente quando a ação é realizada por ticados rigorismo e formalismo da
respeito ao dever e não apenas em ética de Kant não chegam a tão ex-
cumprimento do dever. Isto equiva- tremadas consequências como para
le a uma identificação do dever com
que o filósofo não perceba que po-
o bem soberano. Como diz em dem dar-se casos em que ““o melhor
Grundlegung zur Metaphysik der Sit- é inimigo do bom”; crer o contrário
ten (Fundamentação da Metafísica é correr o risco de paralisar a ação
dos Costumes), o dever é a necess!- moral.
dade de atuar por puro respeito à lei, Na ética apriorística material (Max
a necessidade objetiva de atuar a par- Scheler), o dever é a expressão do
tir da obrigação, ou seja, a matéria mandato exercido sobre a consciên-
de obrigação. Em suma, se as máxi- cia moral por um certo número de
mas dos seres racionais não coinci- valores. Esse mandato expressa-se
dem por sua própria natureza com
quase sempre em forma negativa. No
o princípio objetivo do agir segun- entanto, pode admitir-se que tam-
do a lei universal, ou seja, de modo bém a intuição dos valores e, em es-
que a vontade possa, ao mesmo tem- pecial, dos valores supremos, produz
po, considerar-se a sil mesma como em certos casos a consciência do de-
se as suas máximas fossem leis uni- ver, da realização e cumprimento do
versais, a necessidade de agir de valioso.
acordo com o dito princípio é a ne-
cessidade prática ou dever. O dever DEVIR A significação deste neolo-
não se aplica, por certo, ao sobera- gismo está longe de ser unívoca. Usa-
no no reino dos fins, mas aplica-se se por vezes como sinônimo de ““vir
a cada um de seus membros. A ““for- a ser”; outras vezes é considerado o
ça” que reside na idéia do dever equivalente de ““r sendo”; e ainda
manifesta-se vivamente, segundo es- Outras vezes emprega-se para desipg-
177 DEVIR
(cf. Física, I e II, passim). Tais con- causalidade. Os gêneros de devir obe-
cepções podem reduzir-se a quatro: decem a uma classificação distinta.
(1) A solução eleática, que pretende Aristóteles dedicou ao assunto um
explicar o devir negando-o; (2) A so- bom número de páginas em suas
lução pitagórica e platônica, que ten- obras. Mencionaremos aqui as pas-
de a estabelecer uma separação en- sagens que nos parecem fundamen-
tre os entes que se movem e as reali1- tais. Em Categorias, 13, 15 a 14,
dades imóveis para depois — sem o Aristóteles apresenta seis classes de
conseguir — deduzir os primeiros devir (por vezes chama-se “mudan-
das segundas; (3) A solução heracli- ça” ou “movimento”, mas recorda-
teana (e sofística), que proclama que mos ao leitor o ponto de vista mais
a realidade é devir; e (4) a solução genérico e neutro que adotamos ao
pluralista, que reduz as distintas for- propor o nosso termo). São as seguin-
mas do devir a uma só, seja ela qua- tes: geração ou gênese, yéveous; des-
litativa (Empédocles, Anaxágoras), truição, pdopá; aumento, avúénors;
seja quantitativa (Demócrito). Os de- diminuição, dios; alteração, ad-
feitos dessas concepções são princi- Aoítwoirs; e traslação, deslocamento,
palmente dois: (a) não advertir que mudança de lugar ou movimento lo-
o devir é um fato que não pode ser cal, poogá. Em Física, 111 1, 201 à
negado ou reduzido a outros ou afir- 5-7, o devir é (1) substancial — pos-
mado como substância (esquecendo se e privação (mas não, observemos,
neste caso que o devir é devir de uma geração e corrupção ou destruição);
substância), e (b) não notar que ““de- (2) qualitativo — como em branco
vir”, assim como ““ser””, é um ter- e preto; (3) quantitativo — comple-
mo que possui várias significações. to e incompleto (aumento e diminui-
Estes defeitos procedem em boa par- ção); (4) local — para cima, para bai-
te de que os filósofos, embora não xo, ou leve, pesado (mas não, obser-
tenham perdido de vista que para vemos, para a direita, para a esquer-
que haja devir seja necessário algum da, uma vez que consideramos o mo-
fator, condição ou elemento, não se vimento local como um movimento
deram conta, em contrapartida, de natural). De fato, indica Aristóteles,
que se necessita de mais de um fa- há tantos tipos de devir quanto há
tor. Por este motivo, o problema do significados para o vocábulo ““é”.
devir inclui a questão das diferentes Na Física, V224 a 21 e ss., o devir
espécies de causa (cf. Física, II 3, 194 é (a) por acidente, (b) a respeito de
b 16, 195 a 3; Da Alma, 11 4, 415 Db, uma outra coisa e (c) em si mesmo.
8-10; Metafísica, À 3, 983 a 26-33; Se considerarmos agora (c), pode-
A 2, 1013 a 24 e ss.). Com efeito, to- mos classificar o devir em quatro
das as formas de causa são operan- classes, que são as que parecem as
tes na produção do devir, o que não mais fundamentais de todas: (1) de
significa, porém, que haja tantos gê- algo a algo, (II) de algo a não-algo,
neros de devir quantos os tipos de (III) de não-algo a algo e (IV) de não-
DEVIR 180
algo a não-algo. (IV) deve ser excluí- mudar, à parte o Primeiro Motor,
do, pois os termos que nele intervêm que move sem ser movido, é o mo-
não são nem contrários nem contra- vimento circular; só muito mais abai-
ditórios; (III) e (II) são casos de ge- xo, no reino sublunar, registra-se a
ração e corrupção (ou gênese e des- ocorrência do devir qualitativo e de-
truição), mas como só o que é pode pois o ciclo da geração e corrupção,
vir-a-ser, somente (1) merece figurar cada um dos quais, como indica
como caso de movimento. De fato, Bergson, é apenas reflexo do primi-
(II) e (III) são formas de (1), e como tivo e perfeito movimento circular
(1) pode ser concebido tanto a res- original. Este tema da primazia de
peito da qualidade quanto a respei- um tipo de devir sobre outro presta-
to da quantidade, somente ficam o se a vastas argumentações. Algumas
movimento qualitativo (alteração) e das dificuldades que são apresenta-
o quantitativo (aumento e diminui- das na doutrina aristotélica podem,
ção). Deve-se adicionar-lhes, porém, entretanto, resolver-se quando se
o movimento local, com o qual ob- precisa que, em alguns casos, Aris-
temos três sentidos primários do de- tóteles fala do devir como uma ques-
vir. Pode-se perguntar agora se al- tão física, ao passo que em outros
gum deles tem primazia sobre os ou- opta por considerá-lo numa dimen-
tros. A resposta a esta indagação é, são metafísica.
sem dúvida, difícil. Por um lado, pa- Os escolásticos de tendência aris-
rece que o devir qualitativo tem a pri- totélica ocuparam-se em refinar e es-
mazia, se prestarmos atenção ao fa- clarecer os conceltos anteriores. As-
to de que Aristóteles parece ter-se sim, Santo Tomás assinalava que a
preocupado, sobretudo, em explicar mudança é a atualização da potên-
o sentido ontológico da mudança, cla enquanto potência e por isso tem
evitando toda redução da mesma ao de devir quando uma causa eficien-
deslocamento de partículas no espa- te leva, por assim dizer, a potência
ço. Se assim o fizermos, então a ex- à atualidade e outorga ao ser sua per-
plicação do devir estará determina- feição como entidade. O sujeito não
da pela famosa definição do movi- muda, assim, por um mero desenvol-
mento como atualização do possível vimento de algo que tinha implícito,
qua possível (Física, III, 1,201 a 9), nem tampouco pelo aparecimento ex
uma definição que requer, para ser nihilo de uma qualidade, mas por
devidamente entendida, uma análi- força da ação de uma causa que, se
se das noções de ato e potência, pois se quiser, se “interioriza” no ser. Daí
o devir ou mudança consiste, em úl- que ato e a potência, enquanto fa-
oO
losofia””, mas não a própria filoso- retórica, o Trivium das artes liberais.
fia. Daí que Aristóteles seja propen- Como tal era uma das artes sermo-
so a considerar num mesmo nível cinales, quer dizer, uma das artes que
discussão, probabilidade e dialética. se referem ao método e não à reali-
A dialética, diz Aristóteles, é discus- dade. Por outro lado, constituiu (por
são e não ciência; probabilidade e exemplo, no Didascalion, de Hugo
não certeza; “indução” e não pro- de Saint-Victor) uma das partes da
priamente “demonstração”. E suce- chamada lógica dissertiva, à que se
de até que a dialética é tomada por propõe elaborar a demonstração
Aristóteles num sentido pejorativo, probatória. Finalmente, constituiu o
não só como um saber do meramente modo próprio de acesso intelectual
provável, mas também como um ao que podia ser conhecido do reino
“saber” (que é, com certeza, um das coisas críveis, dos credibilia. No
“pseudo-saber”*) do aparentemente Renascimento, em compensação, foi
tomado como real. Por isso Aristó- frequente a refutação da dialética,
teles chega a chamar ““dialético”* ao interpretada em muitas ocasiões co-
silogismo ““erístico”, no qual as pre- mo designando o conteúdo formal
missas não são sequer prováveis, da lógica aristotélica.
apenas parecem sê-lo. É corrente, aliás, em vários filó-
O sentido positivo da dialética res- sofos do século XVII, uma crítica
surgiu, em contrapartida, com o neo- dos procedimentos dialéticos. Assim,
platonismo, que a entendeu como o por exemplo, Descartes explica nas
modo de ascensão a realidades supe- Regulae (X) por que omite ““os pre-
riores, ao mundo inteligível. Em par- ceitos pelos quais os dialéticos pen-
ticular, o sistema de Proclo utilizou sam governar a razão humana”,
como método universal a dialética na prescrevendo-lhe certas formas de
forma platônica. A dialética, diz raciocínio que conduzem a conclu-
Plotino, é uma parte da filosofia e sões que a razão não pode deixar de
não um mero instrumento dela. negar.
Também entre os estóicos a dialéti- O sentido pejorativo da dialética
ca era um modo ““positivo”* de co- foi comum no século XVIII. Assim,
nhecimento; segundo Diógenes Laér- Kant considerou a lógica geral en-
cio (VII, 43), a dialética nos estóicos quanto Organon como uma ““lógica
divide-se em “temas do discurso” e da aparência, ou seja, dialética”,
“Tnguagem””, sendo necessário de- pois “nada informa sobre o conteú-
fender esta “dialética” contra os ata- do do conhecimento e limita-se ape-
ques dos cépticos (cf. Epicteto, Dis- nas a expor as condições formais da
cursos, IL, vil, vili, xvil, e especial- conformidade do conhecimento com
mente II, xx, xxv). Na Idade Média, o entendimento” ( K. r. V., B 86).
a dialética foi objeto de sentenças A crítica da aparência dialética cons-
muito variadas. Por um lado, che- titui a segunda parte da lógica trans-
gou a formar, com a gramática e a cendental, título que, segundo Kant,
185 DIALÉTICA
lhe compete “não como arte de sus- uma significação univocamente po-
citar dogmaticamente essa aparência, sitiva. Entretanto, assim que nos de-
mas sim como crítica do entendimen- temos nos resultados mais gerais que
to e da razão em seu uso hipercriíiti- se destacam da filosofia de Hegel,
co” (ibid., B 88). Dai que a terceira percebemos que a dialética represen-
parte da Crítica da Razão Pura, a ta, diante do abstrato, a acentuação
“Dialética Transcendental”, seja a de que essa abstração nada mais é do
critica desse gênero de aparências que a realidade morta e esvaziada de
que não procedem da lógica nem da sua própria substância. Para que 1s-
expefiência, mas da razão na medi- so não suceda, o real precisa apare-
da em que pretende superar os limi- cer sob um aspecto em que se negue
tes impostos pela possibilidade da ex- a si mesmo. Daí que a dialética não
periência — limites traçados na ““Es- seja a forma de toda a realidade, mas
tética Transcendental”' e na “Ana- aquilo que lhe permite alcançar o ca-
lítica Transcendental” — e aspira a ráter verdadeiramente positivo. Isto
conhecer por si só, e segundo os seus foi afirmado de maneira muito ex-
próprios princípios, o mundo, a al- plícita por Hegel em EnzyKklopaádie ($
ma e Deus. 79). Assim, o que tem realidade dia-
É central o papel desempenhado lética é o que tem a possibilidade de
pela dialética no sistema de Hegel. não ser abstrato. Em suma, a dialé-
Contudo, são consideráveis as difi- tica é o que torna possível o desabro-
culdades para compreender o signi- char e, por conseguinte, o amadure-
ficado preciso da dialética neste fi- cimento e a realização da realidade.
lósofo. Com efeito, dialética signi- SÓ neste sentido se pode dizer que,
fica em Hegel, em primeiro lugar, o para Hegel, a realidade é dialética.
momento negativo de toda realida- Mas o que importa nessa dialética do
de. Dir-se-á que, por ser a realidade real é menos o movimento interno da
total de caráter dialético — em vir- realidade do que o fato de essa rea-
tude da identidade prévia entre a rea- lidade alcançar necessariamente sua
lidade e a razão, identidade que faz plenitude em conseqiiência desse seu
do método dialético a própria forma movimento interno. Portanto, é a
em que a realidade se desenvolve — “realidade realizada” o que interes-
esse caráter afeta o que ela tem de sa a Hegel e não apenas o movimen-
mais positivo. E se levarmos em con- to dialético que a realiza.
ta a onipresença dos momentos da A noção de dialética, o método
tese, da antítese e da síntese em to- dialético e, por vezes, a chamada
do o pensamento de Hegel, e o fato “lógica dialética” são centrais no
de que somente pelo processo dialé- marxismo (ver) ou, melhor dizendo,
tico do ser e do pensar pode o con- em muitas das formas que a tradi-
creto ser absorvido pela razão, não ção marxista adotou, incluindo nes-
poderemos deixar de nos inclinar pa- ta certas correntes que alguns con-
ra uma avaliação da dialética sob sideram só parcialmente marxistas.
DIALÉTICA 186
sica que seria a “igualdade dos se- mite defensável em interesse dos de-
res vivos”. mais”. A possível defesa dos animais
Jeremy Bentham (The Principles deriva de sua condição de senciente.
of Morals and Legislation, cap. Portanto, a simples aplicação do
XVII, séc. I, nota ao $ 4) manifes- “princípio de igualdade” seria, se-
tou a opinião de que “pode chegar gundo Singer, suficiente para Jjusti-
o dia em que a população animal re- ficar a solicitação de não causar da-
cupere esses direitos que nunca lhe no — ou causá-lo o menos possível
teriam sido arrebatados a não ser pe- — a todo ser capaz de sentir, incluí-
la força””. Segundo Bentham, esses dos os animais. Isto não significa,
direitos apóilam-se na noção de uma como já se disse antes, que todos os
característica comum a homens e seres com vida tenham o mesmo va-
animais. Se antes — e agora — se lor, mas tão-somente que o ““espe-
afirmava que a razão e a linguagem cieíismo” não constitui critério sufi-
distinguem o homem do animal e lhe ciente para atentar contra a vida de
conferem direitos superiores, Ben- ninguém. Por outras palavras — e
tham argumenta que um cão adulto precisamente porque o ser humano
é mais racional do que uma criança se distingue dos outros viventes —
de um dia, um mês e até um ano, e não há Justificação para que os tra-
que um idiota congênito tampouco temos sem considerar seus interesses
se distingue por sua racionalidade. A e direitos.
questão, para Bentham, não se ori-
gina na capacidade de pensar ou de DISAMIS É o nome que designa um
falar, mas na capacidade de sofrer. dos modos válidos dos silogismos da
Se os animais sofrem o mesmo que terceira figura. Um exemplo de Di-
os humanos, e se se acredita que o samis pode ser:
sofrimento deve ser sempre evitado,
então todo ser vivo tem direito a não Se alguns aviadores são jovens
ser maltratado. e todos os aviadores são tímidos,
Falando com propriedade, o sofri- então alguns tímidos são jovens,
mento é, à semelhança do gozo, uma exemplo que corresponde à seguinte
manifestação da sensibilidade. Ad- lei da lógica quantificacional elemen-
mite melhor a generalização essa ca- tar:
racterística de ser ““senciente””, ou
capaz de sentir, do que a de ser ca- v xX(Gx à Hx) À AX(Gx— Fx)
paz de sofrer. De fato, a maior par- — VX(Fx A Hx)
te dos animais são — tal como o ho-
mem — realidades ““sencientes”.
e que, usando as letras “S”, “P”
e
De acordo com a teoria de Ben-
“M” da lógica tradicional, pode ex-
pressar-se mediante o seguinte esque-
tham, Peter Singer (Animal Libera-
ma:
tion, 1975, p. 9ess.) afirmou que “a
capacidade de sentir... é o único li- (MIP A MaS) — SiP
DISJUNÇÃO 190
onde aparece claramente a sequên- sos. Isto gera confusões. Para evitá-
cia das letras “T””, “A”, “TT”, ori- las, é comum ler:
gem do termo Disamis, na ordem
MP-MS-SP. "PV
assim:
DISJUNÇÃO Há dois conectivos
sentenciais que recebem o nome de p ou q (ou ambos)
“disjunção” (e, por vezes, “alterna- e:
ção”). Um dos conectivos é “ou”,
simbolizado por ““ v ** e que recebeu p%q
o nome de ““disJunção inclusiva”; o como:
outro é “ou...ou””, simbolizado por
“=” e denominado ““disjunção ex- p ou q (mas não ambos).
clusiva””. Assim, Assim:
PYA Emília toca piano ou critica
lê-se: suas amigas;
DpOUqg ou pode entender-se:
Exemplo de ““pvq” pode ser: Emília toca piano ou critica suas
amigas (ou ambas as coisas),
Daniel fala ou fuma.
em cujo caso é um exemplo de “p v
Por sua vez,
prq
qentender-se:
ou disjunção inclusiva, ou pode
q
ou
e neste caso éum exemplo de
Exemplo de' "Pp pode ser:
“p*q ou disjunção exclusiva.
Ou Amélia põe o chapéu ou fica Na notação de Lukasiewicz, “ v ”
em casa.
—
deles [mas não todos] para outros de- por outras palavras, o problema
les [mas não todos]).
Também se considerou que a
é
“fato-norma” paralelo ao proble-
ma ““fato-valor”'.
maior parte dos elementos suscitados Outros autores consideram ser
pela falácia naturalista são devidos inaceitável equiparar “bom” com
à idéia — comum aos que denunciam “deve” e, em geral, não admitem
a falácia e a quase todos os que con- que as valorações sejam equivalen-
sideram que se trata, por sua vez, de tes ou subentendam normas. Segun-
uma falácia: a falácia da falácia na- do eles, como indica Georg Henrik
turalista — de que não se pode en- von Wright (The Varieties of Good-
contrar uma dedução lógica ou, pe- ness, 1963, p. 155), o “abismo” en-
lo contrário, é possível construir uma tre o “é” eo “deve” é distinto do
ponte lógica. Em todos esses casos que há, ou pode haver, entre os fa-
fala-se de dedução lógica. Mas pode- tos e os valores. Esta opinião baseia-
se distinguir entre dedução lógica e se, em parte, na idéia de que “bom”
justificação (moral). Ao mesmo tem- (ver BEM) não é equivalente de
po, pode-se considerar que dedução “moralmente bom”, porque o sen-
lógica e justificação (moral) ou são tido moral de “bom” é secundário
completamente distintas ou só logi- em relação a outros sentidos do mes-
camente diferentes. Esta última é a mo termo. Não obstante, o mesmo
opinião de Ken Witkowski. autor acaba por reconhecer (op. cit.,
Alguns autores consideram que se pp. 176-77) que, dadas certas condi-
uma expressão com “deve” tem um ções, existe relação entre normas e
sentido moral, ou seja, se é norma- valores ou, melhor dizendo, as nor-
tiva, então está ligada a alguma ou- mas podem, em certos casos, ““an-
tra expressão na qual se manifesta al- corar-se”* em valores. As condições
guma preferência moral — expressão são, entre outras, certas necessidades
que, por seu lado, está ligada a ou- naturais e o conhecimento do que se
tra em que se formula alguma valo- pode fazer e não se pode fazer com
ração ou juízo de valor. Assim, ““De- elas quando estão unidas a determi-
ves ajudar o próximo” está ligado a nados fins.
“É preferível ajudar o próximo a Vários autores consideram que o
não ajudá-lo ou a mostrar-se indife- caráter lógico da falácia é inegável,
rente para com ele”, o que está liga- mas só porque se estabeleceu previa-
do a algo como “Ajudar o próximo mente uma separação taxativa entre
é bom (moralmente bom)”. A razão “proposições que enunciam fatos
disso, afirma-se, é que não teria o simples” e “proposições que expres-
menor sentido formular uma norma sam normas simples”. Quando se
moral se não a apoiasse uma valo- considera que há outras classes pos-
ração. Se assim for, o problema da síveis de proposições além das indi-
relação ““é”-“deve” é paralelo ao cadas, sai-se da incomunicação en-
problema da relação “é”-““vale”; tre o “é” e o “deve” — ou entre o
201 ELEATAS
:
(5) Como a saúde está nas coisas ou ter a possibilidade de ser-conheci!-
quentes e frias e, em geral, a forma do. A questão de como os acidentes
está na matéria. estão na substância foi extensamente
(6) Como os assuntos da Grécia es- tratada (ver ACIDENTE). Também
tão no que detém o poder (= depen- deu lugar a numerosas análises a
dem do que tem o poder) e, de um questão de como as coisas ““estão
modo geral, os acontecimentos estão em” Deus. Este último problema re-
no agente (= dependem do agente). vela até que ponto a questão da ““re-
(7) Como algo está em seu bem lação”* entre Deus. e o mundo tam-
(= está subordinado a seu bem) e, bém pode ser analisada à luz do sen-
em geral, está em seu “fim”, ou se- tido, ou sentidos, do “em”*. O mes-
ja, naquilo pelo qual existe. mo ocorre com a questão da ““rela-
(8) No sentido mais estrito, como ção” entre a essência e a existência
uma coisa [um conteúdo] está em seu (ver ESSÊNCIA, EXISTÊNCIA).
continente e, em geral, num lugar Muitos filósofos modernos inte-
(=em seu lugar). ressaram-se -pelo tema de como a
Santo Tomás (4 Phys., 4 a; SS. realidade está “em” o sujeito cog-
Theol., 1, q, XLIL 5ob letal.) se- noscente. Também desempenha um
guiu Aristóteles a este respeito, con- importante papel na filosofia de
siderando que os oito modos citados Heidegger, que aprofunda a análise
de como está o homem em o mun-
de “estar em”* são os modos nos
do e intenta demonstrar como o
quais se diz que algo está em algo, m”* de “ser-em-o-mundo” é an-
quibus aliquid in aliquo dicitur esse. terior a qualquer outra compreen-
O modo (8) inclui, segundo Santo são do “em”.
Tomás, o tempo, uma vez que, as- Também pode entender-se “em”
sim como o lugar é a medida do que como expressão de uma relação, re-
se move (locus est mensura mobilis), lação diádica ou não simétrica. Em
o tempo (ver) é a medida do movi- alguns casos, pode-se considerar o
mento (tempus est mensura motus). “em” uma relação transitiva como,
Tanto em Santo Tomás quanto em por exemplo, se dizemos que o cin-
outros escolásticos é possivel encon- zeiro está no quarto e o quarto na ca-
trar numerosas elucidações do pro- sa, também podemos dizer que o cin-
blema do “estar em”. Às vezes usa- zeiro está na casa. E, no entanto, se-
se, para ISSO, a expressão esse in, que gundo Aristóteles, nesta segunda
pode ser interpretada de vários mo- forma de ““estar em”, a relação
dos; por exemplos, os quatro modos “em” não é transitiva.
seguintes propostos por Ockham: (1) Leibniz analisou esta mesma ques-
estar uma colsa num lugar ou um tão com grande minúcia do ponto de
acidente num sujeito; (2) estar a es- vista lógico, considerando-a primei-
pécie no gênero; (3) ser atribuído ro como relação. entre elementos abs-
(= ser predicado); (4) ser conhecido tratos.
EMANAÇÃO 204
são devida a Willlam James, para em usar certos conceitos como con-
quem, inclusive, as relações são “ex- ceitos-limites, isto é, como não de-
perimentáveis”. Como escreve Ja- notativos de nenhuma realidade e,
ENTELÉQUIA 208
o ato enquanto cumprido, consuma- mas o poder que o corpo tem de fa-
do. Neste sentido, enteléquia distin- zer o que faz o corpo vivo, sua fun-
gue-se de atividade ou atualização, ção (ergon), sua operação (energeia )
Eevépyeia. Na medida em que cons- e sua culminação (entelecheia)”. Nu-
titui a perfeição do processo de atua- ma nota da mesma página, Randall]
lização, a enteléquia é o cumprimen- escreve: ““Estes três termos são uma
to de um processo cujo fim se encon- das famílias aristotélicas de termos
tra na mesma entidade. Por isso po- que querem dizer o mesmo numa es-
de haver enteléquia da atualização cala de intensidade crescente. Ergon,
mas não do simples movimento, o termo grego comum para “traba-
HLVNOLS. lho”, é o que Aristóteles usa para o
Aristóteles não é sempre consis- que chamamos “função. Energeia
tente no uso do termo ““enteléquia”'. significa literalmente “pôr em ação
Em De anima, 1l 1, 412 a 27 b 5, um poder' ou, em latim, sua “ope-
Aristóteles afirmou que a alma é ração. “Poder' e sua “operação”,
uma enteléquia, evreNéxeia. Por ou- dynamis e energeia, são para Aris-
tro lado, em Metaphysica, H, 3, 1043 tóteles conceitos polares, como os
a 35, escreveu que a alma é “ener- correspondentes termos latinos, a
gia”, evépyeia. Os dois termos — atualização de uma potência. Ente-
traduzidos ora por ““atualidade”, léquia (entelecheia) é o termo cunha-
ora por “atividade”, ora transcritos do por Aristóteles para denotar o
como ““enteléquia” e “energia” — mais completo funcionamento ou
parecem ser aqui sinônimos. Em Me- culminação de uma coisa — em la-
taphysica A 6, 1071 a 22, Aristóteles tim “atualidade” .”* O uso por Aris-
descreveu o Primeiro Motor como tóteles de “enteléquia”* em sua defi-
uma evépyeia e em id. 8, 1074 a 36, nição de alma como a primeira en-
descréveu-o como uma EvTENÉXELA. teléquia de um corpo natural que tem
É possível que, no primeiro caso, a vida em potência (De anima, IL, 1,
Aristóteles desejasse ressaltar a atl- 412 a 27, 28) significa que a alma é
vidade do Primeiro Motor e, no se- a “forma” do corpo no sentido de
gundo caso, quisesse destacar a sua que é o princípio da atividade, ou o
perfeição. Em Metaphysica L, 8, que dá ao corpo sua força vital.
1050 a 20 e ss., Aristóteles escreveu Plotino também utilizou a noção
que a ação, éoyov, é o fim ou a fi- de enteléquia, mas não aderiu, pelo
nalidade, r7edos, e que a atualidade, menos no que se refere à sua aplica-
êvépyeia, é a ação. Assim, o termo ção à alma, à doutrina de Aristóte-
“atualidade” (ver ATO, ATUALI- les. Nas Enéades, IV, vii, 8, Plotino
DADE) deriva de “ação” e é equi- assinalou que a alma ocupa no com-
valente a “enteléquia””. J. H. Ran- posto o lugar da forma. Se temos de
dall Jr. (Aristotle, 1960, p. 64) indi- falar de enteléquia, seremos forçados
cou que ““a vida não é uma “coisa” a entendê-la como algo que adere ao
que se acrescenta ao corpo vivente, ser de que é enteléquia. Ora, Ploti-
ENTENDIMENTO 210
nhecimento em seus diversos modos. 614, ed. Luce), embora assinale que
Para ele, o entendimento é o que si- a idéia é “um objeto do entendimen-
tua o homem acima do resto das coi- to” (op. cit., 665), e que o entendi]-
sas sensíveis. O entendimento -é co- mento ““considerado como uma fa-
mo o olho, o qual ““nos faz ver e per- culdade”* não se distingue realmen-
ceber todas as outras coisas, [mas] te da “vontade” (op. cit., 614a). Se-
não se observa a si mesmo; requer gundo Berkeley, o entendimento e a
arte e esforço situá-lo a distância e vontade ficam incluídos no ““espiri-
convertê-lo em seu próprio objeto” to”, por ele entendido como ““tudo
(Ensaio acerca do Entendimento Hu- o que é ativo” (op. cit., 848). O en-
mano, introdução). Os objetos do tendimento é, pois, para Berkeley,
entendimento são as “idéias”, tan- em última análise, algo “espiritual”...
to as de sensação quanto as de refle-
xão (ver IDEIA). Isso mostra que em
Para Hume, o entendimento O
modo de ser do homem como sujei-
é
Loçke o entendimento compreende, to que conhece — ou, se se preferir,
em seu primeiro grau, o que às ve- como cognoscente. A ciência da na-
zes se chama ““sensibilidade””. A con- tureza humana equivale ao “exame
traposição entre sensibilidade e en- do entendimento”, ou seja, ao mo-
tendimento que foi defendida por al- do como ocorrem as percepções na
guns autores modernos consiste, em medida em que se resolvem em im-
boa verdade, numa distinção ““inter- pressões e em idéias (Treatise, L, 1, 1).
na” no seio do entendimento. Este Leibniz distingue entre sensibilida-
pode ser passivo, quando recebe as de e entendimento, mas esta diferen-
impressões, e ativo quando eviden- ça é gradual e não essencial. Com.
cia (brings in sight) as idéias que t1- efeito, conhecer equivale a ter repre-
nham impressas no entendimento sentações, as quais podem ser menos
(Locke, op. cit., II, x, 2). claras (sensibilidade) ou mais claras
Nem sempre fica bem claro em (entendimento propriamente dito, ou
Locke se o entendimento é uma fa- intelecto). A sensibilidade está subor-
culdade que recebe: e manipula dinada ao entendimento, no qual as
“idéias”, ou se é o receber e mani- representações atingem o grau dese-
pular idéias, embora a segunda alter- Jado de claridade e distinção. O en-
nativa seja mais adequada do que a tendimento exerce aqui uma função
primeira se considerarmos a tendên- parecida à da “razão”. cartesiana.
cia de Locke e, em geral, dos empi- Dentro do conceito de entendimen-
ristas em não admitir o caráter inde- to parece, entretanto, haver dois mo-
pendente do entendimento em rela- dos de conhecer: o indireto e o in-
ção com suas “idéias”. Berkeley in- tuitivo (ou direto). Só este último
dica explicitamente que ““o entendi- merece o nome de ““razão” (e, às ve-
mento não é diferente das percepções zes, de “intuição”, no sentido de
particulares ou idéias”* (Philosophi- “intuição intelectual”).
cal Commentaries. Notebook ““A”, Kant opõe-se à idéia leibniziana de
ENTENDIMENTO 212
limites além dos quais não se pode bilidade de um contato com ““a rea-
Ir. Estes limites estão marcados pela lidade em si”* por meio da razão prá-
linha divisória entre o entendimen- tica; era a razão teórica e especula-
to e a razão. Esta não pode consti- tiva a que apreendia o “em s1””. À
tuir o conhecimento; no máximo, noção de ““coisa em si” (ver) era re-
poderá estabelecer certas regras e di- chaçada como um limite, mas rein-
retrizes de caráter muito geral (como, serida como a realidade. Em algumas
por exemplo, a regulação, ou idéia ocasiões, por certo, esta reinserção
reguladora da razão, da unidade da efetuava-se na esteira da razão prá-
Natureza). Ora, a distinção kantia- tica, seguindo-se assim o próprio
na foi aceita por vários autores, co- Kant. Portanto, para Fichte o que há
mo Jacobi, Fichte, Schelling e He- é, antes de tudo, a liberdade. Mas en-
gel, mas ao mesmo tempo foi vira- quanto Kant a considerava dentro do
da do avesso. Considerou-se que, se terreno da moralidade, Fichte fazia
sucedia o que era proposto por Kant, da liberdade o Absoluto metafísico
era porque o entendimento consistia que somente a Razão (e não o enten-
numa faculdade inferior, que não dimento) pode apreender.
pode comparar-se em poder e majes- Hegel seguiu as pegadas de Jaco-
tade com a razão. Considerou-se que bi e Fichte. Mas em vez de subordi-
esta última podia penetrar naquele nar o entendimento à razão de um
domínio que Kant colocara fora dos modo romântico, procurou Integrá-
limites do conhecimento (teórico) los e hierarquizá-los de um modo sis-
por meio da intuição — bem enten- temático. Hegel concebe o entendi-
dido, uma ““intuição intelectual”, in- mento como a razão abstrata, em
tellektuelle Anschauung. Jacobi pro- contraste com a razão concreta, a
clamou este poder da razão (como única que pode ser propriamente de-
“razão intuitiva”) com grande vigor nominada razão (Vernunft). “En-
e em todos os tons, o que motivou quanto o entendimento é à mesma
uma reação adversa de Kant contra razão identificadora que foge do
“certo tom elegante que se observa concreto ou que, no máximo, quer
“atualmente' na filosofia” (“Von er- assimilar as diferenças do concreto,
nem neuerdings erhabenen vorneh- a razão é absorção do concreto pelo
men Ton in der Philosophie”, 1796). racional, identificação última do ra-
Os protestos de Kant, no entanto, cional com o real mais além da sim-
pesaram pouco: Jacobi indicou repe- ples identificação abstrata. Assim o
tidas vezes que o entendimento deve expressa Hegel no início da Lóvegica:
subordinar-se à razão e que esta é so- “O entendimento determina e atém-
berana. O mesmo fizeram Fichte, se às determinações; a razão é nega-
Schelling, F. A. Schlegel, Hegel e to- tiva e dialética porque dissolve as de-
dos os filósofos chamados ““român- terminações do entendimento no na-
ticos” ou, no mínimo, “idealistas”. da, e é positiva porque produz o ge-
Já não se tratava de afirmar a possi- ral e nele concebe o singular.” A ra-
ENTIA NON SUNT MULTIPLICANDA PRAETER NECESSITATEM 214
das outras, de modo que a continui- tre Berkeley e Leibniz, do que entre
dade não pode ser separada nem real Descartes e Leibniz, Locke e Ber-
nem mentalmente (ibid., II, xiii, 13). keley.
As idéias de Locke a respeito têm A discussão sobre a natureza do
uma consegiiência: que embora a no- espaço foi (em conjunto com a dis-
ção de espaço tenha uma origem em- cussão sobre a natureza do tempo
pírica, o espaço é concebido como al- [ver]) muito animada durante a se-
go “em si”. Isto se compreende gunda metade do século XVIll e o
quando se tem presente que Locke primeiro terço do século XVIII. Em-
insistiu muito na diferença entre qua- bora muitos autores contribuíssem
lidades primárias e secundárias (ver para essas discussões, elas gravita-
QUALIDADE); a extensão e seus vam sobretudo em redor da polêmi-
modos é uma qualidade primária e, ca travada entre Newton (e Clarke)
por conseguinte, constitui uma das e Leibniz. Alguns autores sustenta-
“propriedades mecânicas” -subjacen- ram posições distintas das dos men-
tes nas propriedades sensíveis. Pode- cionados autores; outros, em contra-
se concluir que as opiniões de Locke partida, aproximaram-se muito de-
são psicologicamente empiristas mas les e até os precederam. E singular
ontologicamente ““racionalistas” e o caso de Gassendi, o qual manifes-
“realistas”, Berkeley assinalou-o cla- tou uma idéia de espaço semelhante
ramente. Considerar o espaço uma à newtoniana (cf. Syntagma philoso-
“qualidade primária” é supor que o phicum, parte II, sec. 1, livro II, c. 1).
espaço existe com independência do Newton definiu o espaço do se-
ser percebido. Mas se ser é ser per- guinte modo: ““O espaço absoluto,
cebido, o espaço é uma idéia, tal co- em sua própria natureza, sem rela-
mo as qualidades secundárias — cor, ção com nenhuma coisa externa per-
sabor, etc. Isto não significa que o manece sempre similar e imóvel. O
espaço seja uma ilusão; o espaço é espaço relativo é uma dimensão mo-
uma realidade — ou, melhor, uma vível ou medida dos espaços absolu-
“idéia real”. Mas dizer “o espaço tos, que os nossos sentidos determi-
existe” não é dizer que existe algo nam mediante sua posição em rela-
que transcende o ser percebido ou a Ção aos corpos, e que é vulgarmente
possibilidade de ser percebido. Te- considerado como espaço imovível”
mos aqui uma concepção simulta- (Principia, escólio para a def. viil).
neamente empirista, fenomenista e A interpretação mais corrente dessas
idealista do espaço. Mas o empiris- fórmulas é a seguinte: o espaço é pa-
mo de Berkeley é, como se vê, subs- ra Newton uma medida absoluta e
tancialmente distinto do de Locke; até uma “entidade absoluta”. Visto
na verdade, é o inverso exato do de que as medidas no espaço relativo
Locke. Num certo sentido, há mais são função do espaço absoluto, po-
semelhanças, por um lado, entre de-se concluir que este último é o
Descartes e Locke, e, por outro, en- fundamento de toda dimensão espa-
223 ESPAÇO
cial. No Escólio Geral dos Principia, Kant. Este tratou de explicar o mo-
Newton indica que, embora Deus do como a noção de espaço é usada
não seja espaço, encontra-se em to- na mecânica newtoniana, sem ade-
da a parte, de modo que constitui o rir por isso, no entanto, à concepção
espaço (e a duração). O espaço é, as- realista de Clarke e de outros. Pre-
sim, sensorium Dei, órgão sensorial cedido pelas especulações de autores
da divindade. Esta idéia de espaço como Tetens e Lambert, Kant acom-
foi rejeitada por Berkeley, Huygens panhou primeiro as orientações leib-
e Leibniz, assim como, mais tarde, nizianas. Mas, embora sustentasse,
por Ernst Mach. Foi defendida, em à semelhança de Leibniz, que o es-
contrapartida, por Clarke, especial- paço é uma relação, fez desta últi-
mente em sua correspondência com ma não uma ordem ideal, mas uma
Leibniz. ordem transcendental. As idéias kan-
Stephen Toulmin (““Criticism in tianas sobre o espaço encontram-se
the History of Science: Newton on sobretudo em sua Dissertação Inau-
Absolute Space, Time and Motion. gural de 1770 e na ““Estética trans-
1”, Philosophical Review, 68 [1959], cendente” da Crítica da Razão Pu-
1-29; ibid, II, 203-27) alega não ser ra. O espaço é para Kant (assim co-
evidente, de modo nenhum, que mo o tempo) uma forma da intuição
Newton sustentasse uma noção de sensível, ou seja, uma forma a prio-
espaço como coisa, entidade ou rea- ri da sensibilidade. Não é “um con-
lidade absoluta. Embora a letra do celto empírico derivado de experiên-
“Escólio” para a definição vili pu- clas externas, porque a experiência
desse dar margem a essa Interpreta- externa só é possível pela represen-
ção, o modo como as idéias newto- tação do espaço”. “É uma represen-
nianas são aplicadas nos Principia e, tação necessária a priori, que serve
sobretudo, a estrutura lógica dos de fundamento para todas as intui-
Principia tornam-na duvidosa. Se- ções externas”, porque ““é impossí-
gundo Toulmin, a concepção newto- vel conceber que não exista espaço,
niana do espaço tem um caráter cla- se bem que possamos pensá-lo sem
ro: é uma definição operacional. que contenha objeto algum”. O es-
Mas seria errôneo imaginar que paço é, em suma, “a condição da
nessa época houve somente as duas possibilidade dos fenômenos”, ou
opiniões mencionadas: O espaço co- seja, “uma representação a priori,
mo algo real (e ainda absoluto) e o fundamento necessário dos fenôme-
espaço como algo ideal. Assim, Bos- nos”. O espaço não é nenhum con-
covich examinou o problema do es- ceito discursivo, mas uma intuição
paço (e, como todos os autores cita- pura e, finalmente, o espaço é repre-
dos, do tempo) como realidade e co- sentado como um quantum determi-
mo idealidade. Ora, a mais famosa nado. Na exposição transcendental
teoria sobre o espaço, formulada demonstra-se, por sua vez, que ““o
pouco depois de Boscovich, é a de espaço não representa nenhuma pro-
ESPAÇO 224
tempo) são inadequadas para descre- rar o espaço como aquela realidade
ver processos microfísicos. Por 1sso na qual todas as coisas estão (tam-
foram propostas várias concepções bém os sujeitos), ou então vê-lo co-
descontínuas do espaço-tempo (Bohr, mo uma construção, independente-
Heisenberg, L. de Broglie, Schwin- mente de posteriores interpretações.
ger). O segundo grupo também abriga
Diferentemente das teorias cientí- duas posições diferentes: a que vê o
ficas sobre o espaço antes menciona- espaço como pura ““exterioridade”,
das e das doutrinas metafísicas que na qual sucede a tradicional consti-
— de um modo ou de outro — es- tuição de partes ex partes, e aquela
tão vinculadas aos resultados e con- outra que reconhece o espaço em si
cepções da ciência, Heidegger afir- mesmo, como possuidor de certa
ma que a noção de espaço é ““pré- “interioridade”, embora esta se en-
científica”, e afirma que deve-se en- tenda unicamente como um predica-
tender a espacialidade a partir da do por analogia.
própria existência, como portadora
das características de ““des-afasta- ESPECIEÍSMO Este termo, deriva-
mento” (Ent-fernung) e direcionali- do da palavra “espécie”, foi criado
dade (Ausrichtung). De acordo com para indicar a atitude segundo a qual
esta concepção, o espaço não está no a própria espécie, ou espécie huma-
sujeito — como pretende o idealis- na, é privilegiada relativamente às
mo —, nem o mundo está no espa- outras espécies, e possui direitos que
ço — como sustenta o realismo —; as demais espécies não têm, ou
ocorre, sim, que o espaço está em o supõe-se que não devam possuir. O
mundo, porquanto o ser-no-mundo, especieísmo é a respeito da espécie
constitutivo da existência, deixou humana inteira o que o racismo é em
“livre” o espaço (Ser e Tempo, & relação a uma determinada raça; ser
24). Desta forma, Heidegger inverte especieista é ser “racista humano”.
o tratamento da noção de espaço de O especieísmo é uma versão do an-
um modo semelhante a como o faz tropocentrismo quando se interpre-
com a questão do mundo exterior. ta este como resultado de um juízo
O problema do espaço — como de valor sobre o homem. Cumpre
tantos outros temas fundamentais da observar que o especieísmo não é,
filosofia — dá lugar a posturas ex- necessariamente, apenas o reconhe-
tremas. Podemos distinguir aqui, ba- cimento de que todos os homens
sicamente, dois grupos de teorias: constituem uma espécie ou de que o
aquelas em que o problema do espa- seu ser é “ser espécie” no sentido de
ço é tratado em relação a um sujeito Feuerbach. Este reconhecimento po-
de consciência, e aquelas outras que de ser uma superação dos interesses
se ocupam do espaço considerado
em si mesmo. O primeiro grupo des- por conseguinte, uma superação de
e,
particulares de grupos particulares
por quidditas. Parece designar a es- tidade abstrata (um universal) equi-
sência e também a forma. vale a adotar certa posição ontoló-
É necessário levar em conta duas gica que não pode ser subscrita por
coisas. Por um lado, desde Aristó- todos os filósofos. Por conseguinte,
teles considera-se como essência o pode-se também voltar à ““realida-
quê de uma coisa, ou seja, não que de” e alegar que a essência é um
a coisa seja (ou o fato de ser a coi- constitutivo metafísico de qualquer
sa), mas o que é. Por outro lado, realidade — pelo menos, de qualquer
considera-se que a essência é um cer- realidade que se suponha possuir es-
to predicado por meio do qual se diz sência. As respostas dadas ao proble-
O que é a coisa, ou se define a coisa. ma da essência dependeram em gran-
No primeiro caso, temos a essência de parte do aspecto que se tenha su-
como algo real. No segundo, como blinhado e, em especial, se foi subli-
algo “lógico”, ou conceitual. Os nhado o aspecto “lógico” (concei-
dois sentidos estão intimamente re- tual), ou o aspecto ““metafísico”
lacionados, mas tende-se a ver o pri- (real), ou porventura uma combina-
meiro desde o segundo. Por isso o ção de ambos. Assim, se se define a
problema da essência tem sido com essência como um predicado, inda-
frequência o problema da predica- ga-se se é necessário ou suficiente. Se
ção. Nem todos os predicados são es- se define como um universal, pode-
senciais. Dizer “Pedro é um estudan- se perguntar se se trata de um gêne-
te” não é enunciar a essência de Pe- ro ou de uma espécie, ou de ambos.
dro, visto que se pode considerar ““é Se é um constitutivo metafísico, po-
um bom estudante”* um predicado de considerar-se como uma idéia, co-
acidental de Pedro. Dizer “Pedro é mo uma forma, como um modo de
um homem” expressa o ser essencial causa (a causa formal), etc. Por ou-
de Pedro. Mas exprime também o ser tro lado, do ponto de vista metafiísi-
essencial de Paulo, Antônio, João, co, pode considerar-se — como tem
etc. Para saber o que Pedro é teria sido feito com frequência — a essên-
de se encontrar uma ““diferença” que cia como uma ““parte” da coisa em
O separasse essencialmente de Pau- conjunto com a existência. É neste
lo, Antônio, João, etc. Ora, em vis- ponto que se apresenta com mais ur-
ta da dificuldade de encontrar defi- gência a questão da ““relação” entre
nições essenciais para indivíduos, a essência e a existência, tratada de
preferiu-se reservar as definições es- forma tão abundante pelos filósofos
senciais para classes de indivíduos. medievais e, em particular, pelos fi-
Em consegiiência, muitos autores, lósofos escolásticos — inclusive os
a partir de Aristóteles, têm afirma- ““escolásticos árabes”.
do que a essência se predica somen- O termo essentia relacionou-se
te de universais. Entretanto, 1sso estreitamente com o termo esse.
tampouco é completamente satisfa- Assim, em Santo Agostinho, para
tório. Dizer que a essência é uma en- quem ““essência é o nome que se dá
ESSÊNCIA 228
aquilo que é ser (ab eo quod est esse e a existência divina são o mesmo.
dicta est essentia), tal como sapien- Isso é para Santo Anselmo e os au-
tia vem de sapere e scientia de scire. tores ““anselmianos” não só uma
As demais coisas que se chamam es- verdade per se mas também uma ver-
sências ou substâncias envolvem aci- dade quoad nos; daí o argumento
dentes que causam nelas alguma mu- anselmiano. Para Santo Tomás con-
dança” (De Trin., V, 1, 3). Deste tinua sendo uma verdade per se, mas
modo se afirma que Deus é substân- não quoad nos; daí a refutação de
cia ou, se este nome lhe convém tal argumento. Mas além disso, em-
mais, essentia. Enquanto caráter bora continue considerando-se que
fundamental do ser, a essência cor- Deus é esse, não se admite que só
responde aqui somente a Deus. Deus seja propriamente essência. A
Segundo Santo Tomás, chama-se essência convém por analogia (ver)
essência àquilo pelo qual e no qual de atribuição per prius a Deus. Mas
a coisa tem o ser: essentia dicitur se- também convém, ainda que per pos-
cundum quod per eam et in ea res ha- terius, às criaturas. E é nestas onde
bet esse (De ente et essentia, 1). To- se apresenta o problema do modo
das estas definições de essentia pa- como a essência se relaciona com a
recem ser primariamente ““metafísi- existência, ou seja, o problema de
cas”. Podem, contudo, ““dobrar-se” que tipo de distinção deve admitir-
mediante uma caracterização ““lógi- se nos entes criados entre essência e
ca”. Com efeito, a essência pode ser existência.
concebida como algo que ““consti- Da infinidade de opiniões a tal res-
tui” a coisa; a essência responde à peito, destacam-se algumas que são
pergunta quid est ens. fundamentais.
De tudo o acima exposto parece f1- Santo Tomás e os autores por ele
car clara somente uma coisa: que é influenciados afirmam haver distin-
muito difícil saber do que se trata ção real entre a essência e a existên-
quando se diz “essência”. O assun- cia nos entes criados, mas isso não
to esclarece-se um tanto, porém, significa sustentar que a existência
quando se considera nos escolásticos seja um mero acidente adicionado à
medievais (ou em grande número de- essência. Pode ser uma causa eficien-
les) o modo como se entende a essên- te que transcende a essência e, por-
cia em relação com a existência. tanto, algo muito distinto de um ag-
De imediato, é comum considerar gregatum. Assim se opunha Santo
este problema a respeito da ““diferen- Tomás à teoria aviceniana.
ça” entre Deus e as coisas criadas. Segundo esta, a existência agrega-
A tradição vigente ainda em Santo se à essência (ou, se se preferir, o es-
Anselmo afirmava que Deus é pro- Se agrega-se à quidditas). A essência
priamente essência. Na essência di- é a pura realidade da coisa, indepen-
vina (incriada, criadora) seu ser, seu dentemente das determinações lógi-
esse, é seu existir. A essência divina cas do pensamento da coisa. A es-
229 ESSÊNCIA
quase sempre como ““possíveis” que sua doutrina a este respeito asseme-
possuem um conatus que as leva a lha-se em alguns pontos à de Hus-
realizar-se sempre que se acham fun- serl e, em geral, a de todos os auto-
damentadas num ser necessário exis- res que falaram, ou supuseram, um
tente. A razão desta propensio ad “terceiro reino” distinto do das coi-
existendum encontra-se, segundo sas e dos processos mentais (Mei-
Leibniz, no princípio de razão sufi- nong, Husserl, etc.).
ciente. Segundo Husserl, as essências não
Foi corrente na época moderna são entidades metafísicas, mas tam-
distinguir entre essência nominal e pouco se reduzem a ““meros concei-
essência real: a primeira é a expres- tos” “atos mentais”. São “uni-.
são que predica algo de algo: a se- dades ideais de significado*”* que se
gunda é a verdadeira (ou suposta- dão à intuição essencial. Em sua di-
mente verdadeira) realidade intrínse- mensão fenomenológica, as essências
ca (e, por vezes, declarada incognos- são atemporais e a priori, diferen-
cível) de uma coisa. ciando-se assim dos fatos. Não obs-
A noção de essência desempenha tante, essências e atos são, para Hus-
um papel capital na filosofia de He- serl, inseparáveis (Ideen, $ 2) e, em
gel. Segundo este autor, o absoluto todo caso, os segundos apóiam-se
aparece primeiro como ser e depois nas primeiras. “Pertence ao signifi-
como essência. ““A essência é a ver- cado de todo o contingente que há
dade do ser” (Logik, L, livro II). À de possuir uma essência e, portanto,
essência é o ser em e para si mesmo um eidos para ser apreendido em to-
(An-und-Fiir sich sein), ou seja, o ser da a sua pureza” (ibid.).
em si absoluto (absolutes Ansich- Ditas essências podem ser formais
sein). A essência é o lugar interme- ou materiais. As formais pertencem
diário entre o ser e conceito; ““seu a todo tipo de objetos, reais ou
movimento se efetua do ser ao con- Ideais, ao passo que as materiais só
ceito”, com o qual se tem a tríade: afetam as esferas concretas do ser.
Ser, Essência, Conceito. O estudo das primeiras compete à
Para Santayana (cf. The Realm of ontologia “geral” ou “formal”; eo
Essence, 1927), há um ““reino de es- das essências materiais corresponde
sências*' que abrange quanto possa ao que Husserl denomina ““ontolo-
ser apreendido (pensado, concebido, glas regionais”. Também utiliza com
imaginado, etc.). Este domínio, co- frequência o termo ““eidético” para
mo o das essências platônicas, é in- singularizar o que pertence à ordem
temporal. Mas, em contraste com as da essência; assim, ciência eidética
idéias platônicas, as idélas no senti1- vem a ser, portanto, sinônimo de
do de Santayana não foram hipos- ciência das essências.
tasiadas. Pode-se dizer que as essên-
cias em Santayana equivalem a ““sig- ESTÉTICA Enquanto derivada de
nificações”' e que, por conseguinte, atobnois, sensação, Kant chama “Es-
231 ESTÉTICA
Barthes. Mesmo correndo o risco de turas verbais; quer dizer apenas que
que alguns dos traços que se mencio- o modelo repetidamente usado para
narão a seguir não estejam presen- examinar a natureza e o funciona-
tes em alguns autores, ou que vários mento das estruturas é um modelo
deles sejam mais perceptíveis ou es- que, na maioria dos casos, pode
tejam mais desenvolvidos em outros reduzir-se a um modelo de linguagem
autores do que nos ““estruturalistas verbal.
franceses” — Piaget ou Chomsky ou É comum ver-se o estruturalismo
Jakobson — achamos que, com ba- insistir em que se trata de um méto-
se neles, pode-se compreender a ten- do de compreensão da realidade —
dência geral estruturalista. e, de um modo específico, das real1-
Em primeiro lugar, ainda que al- dades humanas socialmente consti-
guns estruturalistas se opusessem ao tuídas —, mas é frequente a ocorrên-
funcionalismo — como ocorre com cia, para além dos programas meto-
Lévi-Strauss em relação a Malinows- dológicos, de pressupostos de natu-
ki — a idéia de função desempenha reza ontológica, de acordo com os
um papel importante no estruturalis- quais as realidades em questão são
mo. Em todo caso, há certas carac- formadas estruturalmente. Não se
terísticas no estruturalismo que estão nega, em princípio, que existam cau-
próximas da noção de função em au- sas e relações causais, nem tampou-
tores como Durkheim. Outras não co que ocorram mudanças — e es-
são inteiramente distintas da noção pecificamente mudanças de caráter
de tipo ideal, tal como foi proposta histórico. Não obstante, é em fun-
e desenvolvida por Max Weber. Vá- ção de relações de significação e de
rias delas estão muito próximas da formações sincrônicas que tanto as
generalização funcionalista de A. R. relações causais quanto os desenvol-
Radcliffe-Brown. O que importa, vimentos diacrônicos são entendidos.
porém, é a idéia de estrutura enten- O estruturalismo opõe-se geralmen-
dida como um sistema ou como um te ao causalismo e ao historicismo.
conjunto de sistemas. Há sistemas de Na maioria dos estruturalistas,
classes muito diversas: o sistema que manifesta-se a tendência para supor
constitui as regras de urbanidade ou que, subjacentes em certas estrutu-
de etiqueta numa sociedade, ou nu- ras que podem ser consideradas su-
ma classe social: o sistema de sinais perficiais, haja estruturas profundas.
de trânsito; o sistema de relações fa- Por um lado, há correlação entre os
miliares; o sistema de linguagem, etc. dois tipos de estrutura. Por outro la-
De certa forma, todos os sistemas do, as estruturas superficiais não são
que constituem uma estrutura são mera manifestação de estruturas pro-
sistemas linguísticos, de modo que fundas. A correlação em questão
estrutura é mutatis mutandis estru- consiste em que para toda e qualquer
tura linguística. Isto não significa estrutura superficial há alguma estru-
que se trate exclusivamente de estru- tura profunda; assim, as estruturas
ESTRUTURALISMO 238
ção eterna ou por todo o tempo, vel do eterno que se move de acor-
ES TÔV QeL Xpóvor, que pertence às do com o número: uévovTOS QLLWVOS
formas (outra passagem de tipo aná-
logo em Rep., X, 608 D). E em Aris-
év
pior
évi xaT cLoDoaAr OLkKWYLOV
senvolvida pelos partidários de Duns futuro e possa dizer-se que são imu-
Escoto. Segundo ela, a eternidade táveis em suas operações — pensa-
não pode ser onissimultânea, pois mentos e “propósitos” —, existe su-
quando as Escrituras se referem a cessão real, ainda que não contínua,
dias e épocas na eternidade, a refe- como no caso do tempo. A eviterni-
rência é no plural. Santo Tomás ale- dade é onissimultânea, mas não é a
ga que, assim como Deus, embora eternidade, pois o antes e o depois
incorpóreo, é nomeado nas Escritu- são compatíveis com ela. Assim, a
ras mediante termos que designam eternidade é uma imobilidade com-
realidades corpóreas, também a eter- pleta, sem sucessão, e a eviternida-
nidade, embora onissimultânea, é de é uma imobilidade essencial, uni-
designada por nomes que implicam da à mobilidade acidental. O tempo
tempo e sucessão. À este argumento tem antes e depois; a eviternidade
pode juntar-se outro de natureza não tem em si antes nem depois, mas
mais filosófica: que a eternidade é estes podem ser conjugados; a eter-
onissimultânea justamente porque é nidade não tem antes nem depois,
necessário eliminar de sua definição nem ambos se coadunam. Por isso
o tempo, ad removendum tempus. a eviternidade não pode, como a
Torna-se possível com isso distinguir eternidade, coexistir com o tempo,
rigorosamente entre a eternidade e o excedendo-o ao infinito, nem coexis-
tempo: a primeira é simultânea e me- tir com os acontecimentos medidos
de o ser permanente; o segundo é su- pelo tempo, exceto no instante em
cessivo e mede todo movimento. que se produzem as operações que
Também se torna assim possível dis- permitem tal medição.
tinguir entre a eviternidade (aevum) Um dos problemas freqiientemen-
e o tempo. Aparentemente trata-se te discutidos na Idade Média e parte
da mesma coisa. Mas não: a eviter- da época moderna foi se o mundo é
nidade difere, segundo Santo To- ou não é eterno: o problema de ae-
más, do tempo e da eternidade co- ternitate mundi. Os autores cristãos
mo o meio entre os extremos. Com admitem como dogma que o mun-
efeito, a eviternidade é a forma de do foi criado do nada; por conse-
duração própria dos espíritos puros. guinte, concluem que o mundo não
Não se pode dizer deles que estão no é eterno e, em todo caso, não tem a
tempo enquanto medida do moviI- eternidade que corresponde a Deus.
mento em função do anterior e do Contudo, nem todos os teólogos e fi-
posterior. Tampouco se pode afir- lósofos cristãos trataram a questão
mar a respeito deles que sejam eter- da mesma maneira. Santo Agostinho
nos, pois a eternidade pertence ex- não se limitou a afirmar que o mun-
clusivamente a Deus. Por isso há que do não é eterno; sustentou poder
se dizer que são eviternos. E 1sso sig- provar-se que não o é. São Boaven-
nifica que, embora em sua natureza tura e outros autores seguiram San-
não haja diferença entre passado e to Agostinho neste ponto. Deste mo-
ETERNIDADE 244
ética e as virtudes éticas iniciamos es- a ocupar a atenção dos filósofos mo-
te verbete. Entretanto, já antes de rais: relação entre as normas e os
Aristóteles vamos encontrar prece- bens; relação entre a ética individual
dentes para a constituição da ética e a social; classificação (precedida
como disciplina filosófica. Entre os pela platônica) das virtudes; exame
pré-socráticos, por exemplo, pode- da relação entre a vida teórica e a vi-
mos encontrar reflexões de caráter da prática, etc. Depois de Aristóte-
ético que já não estão vinculadas à les, muitas escolas filosóficas — co-
aceitação de certas normas sociais vi- mo a cínica, a cirenaica e, em parte,
gentes — ou ao protesto contra tais a estóica — ocuparam-se principal-
normas — mas que, pelo contrário, mente de escrutar os fundamentos da
procuram descobrir as razões pelas vida moral desde o ponto de vista fi-
quais os homens têm de comportar- losófico. Os pensadores pós-aristo-
se de uma certa maneira. Podemos télicos ocuparam-se em especial da
citar a este respeito as reflexões éti- magna questão da relação entre a
cas de Demócrito. Mas, sobretudo, existência teórica e a prática, com
inserem-se neste capítulo as medita- frequente tendência para estabelecer
ções de Sócrates e de Platão a tal res- — se bem que por considerações teó-
peito. Muitos autores consideram ricas — o primado da segunda sobre
Sócrates o fundador de uma reflexão a primeira. O intento de descobrir
ética autônoma, embora reconhecen- um fundamento da ética na nature-
do que a mesma não teria sido pos- za foi comum a muitas escolas da
sível sem o sistema de idéias morais época — como ocorreu com os es-
no seio das quais o filósofo vivia e, tóicos. Por este motivo, muitas cor-
especialmente, sem as questões sus- rentes éticas dessa época podem ser
citadas acerca dessas idéias pelos so- qualificadas de naturalistas, embo-
fistas. Com efeito, ao considerar o ra tendo presente que o termo ““na-
problema ético individual como o turalista”* não deve ser entendido no
problema filosófico central, Sócra- mesmo sentido que viria a ter na épo-
tes pareceu considerar a ética e a dis- ca moderna. Também foi comum à
ciplina em torno da qual gravitavam maior parte dessas escolas a manifes-
todas as reflexões filosóficas. Num tação dos dois traços seguintes: pri-
sentido parecido trabalhou Platão meiro, o de considerar a ética como
nos primeiros tempos, antes de exa- ética dos bens, quer dizer, o de esta-
minar a idéia do Bem (ver) à luz da belecer uma hierarquia de bens con-
teoria das idéias e, por conseguinte, cretos a que o homem aspira e pelos
antes de subordinar, por assim dizer, quais se mede a moralidade de seus
a ética à metafísica. No tocante a atos; segundo, o de buscar a tranqui-
Aristóteles, não só fundou a ética co- lidade de ânimo que, segundo alguns
mo disciplina filosófica mas, além (os estóicos), encontra-se na impas-
disso, formulou a maior parte dos sibilidade, segundo outros (os cíni-
problemas que mais tarde passaram cos), no desprezo pelas convenções,
ÉTICA 248
to efetivo das normas morais, pois salta que o termo “bom” (e também
a origem do ato pode distinguir-se “mau”, embora Moore pouco se
perfeitamente da questão da origem preocupe com este último) não é de-
da lei. Noutros sentidos, foram con- finível mediante outros termos que
trapostas entre si as tendências aprio- possam ser declarados seus sinôni-
rísticas e empiristas, voluntaristas e mos, pois se tal ocorresse então o
intelectualistas, que se referem mais enunciado ““A é bom” seria analíti-
à origem efetiva dos preceitos morais co. Definir “bom” mediante outro
no curso da história ou na evolução termo supostamente sinônimo é co-
da individualidade humana, e que se meter a “falácia naturalista”. A pa-
encontram sintetizadas, com fre- lavra “bom” não é, neste sentido,
quência, numa concepção perspecti- um predicado ““natural”*. Uma con-
vista; nesta concepção, o voluntaris-
cepção que durante um certo tempo
mo e o intelectualismo, o inatismo alcançou grande voga foi a que le-
e o empirismo são considerados me-
vou Ogden e Richards a distinguir
ros aspectos da visão dos objetos entre linguagem indicativa ou decla-
morais, dos valores absolutos e eter- rativa e linguagem não indicativa e
namente válidos, progressivamente não declarativa; é através desta últ!-
descobertos no transcurso da histó-
ria. Quanto ao problema da finali- ma que se expressam atitudes e rea-
ções. Dewey distinguiu entre termos
dade, equivale em parte à própria
valorativos — como ““desejado” —
questão da essência da ética e se re-
e termos descritivos — como ““dese-
laciona com as posições eudemonis-
Jável””. Vários positivistas lógicos
tas, hedonistas, utilitaristas, etc. que destacaram que os enunciados em
respondem à pergunta pela essência,
sempre que esta seja definida de que figuram termos ““morais” não
acordo com um determinado bem. são tautológicos nem verificáveis e,
A “linguagem da ética” foi obje- portanto, carecem propriamente de
to de numerosas Investigações, espe- significação; em todo caso, não se
cialmente (se bem que não exclusi- podem forjar critérios de significa-
vamente) por parte de filósofos de do para tais termos. A. J. Ayer po-
orientação analítica; algumas destas pularizou a idéia de que os juízos
investigações estiveram ligadas ao morais expressam os sentimentos de
desenvolvimento de certos tipos de quem os formula. Ch. L. Stevenson
ética, associado à formulação de re- afirmou que os juízos morais reve-
gras de natureza metaética. Comum lam as atitudes daqueles que os for-
a essas investigações é o estudo do mulam com o propósito, além dis-
tipo de termos e, em geral, do voca- so, de influir sobre as atitudes
bulário usado em ética ou, mais pre- alheias. R. M. Hare assinalou que a
cisamente, na chamada “linguagem linguagem moral não é emotiva,
moral”. Uma das teses mais conhe- tampouco indicativa ou informativa,
cidas é a de G. E. Moore, a qual res- mas prescritiva.
EX NIHILO NIHIL FIT 252
Clavam essas últimas questões era rio das entidades que pareciam ter
frequente supor-se não só que O uma existência real, mas que, no fun-
mundo foi criado do nada, mas, in- do, eram modos ou manifestações de
clusive, que a sua existência depen- tal existência. Dizer que ““o que há”
de de uma creatio continua (Descar- é água, ar, apeiron e até números
tes) Ou, se se quiser, da contínua pre- não é ainda dizer o que é haver al-
sença de Deus como Espírito univer- go, ou seja, o que é existir. Depois,
sal (Berkeley). O princípio de que es- com Parmênides e, sobretudo, com
tivemos nos ocupando neste verbete Platão, o problema da existência co-
serviu de hipótese última para não mo tal foi apresentado por diversas
poucos dos desenvolvimentos da vezes; se o que existe é o inteligível,
ciência natural moderna, em especial o mundo das idéias, e se tal mundo
da mecânica, e em muitas ocasiões não é “o que está aí”, mas “o que
esteve estreitamente vinculado ao de- está mais além de tudo ar”, a ques-
terminismo. Hoje em dia não se é tão tão da natureza da existência e do
dogmático na matéria, mas tão- existir é suscitada com toda a acui-
somente porque se reconhece que um dade. Não obstante, só Aristóteles
princípio como o assinalado é dema- elaborou um sistema de conceitos
siado vasto para enunciar algo deter- que parecia capaz de elucidar o ser
minado sobre os processos naturais; da existência como tal em relação
diz pouco Justamente por pretender com, ou em contraste com, o ser da
dizer demasiado. essência, da substância, etc.
Para Aristóteles, a existência en-
EXISTÊNCIA Enquanto derivada tende-se como substância, ou seja,
do vocábulo latino existentia, a pa- como entidade. Para que algo exis-
lavra “existência” significa “o que ta, tem de possuir um “haver”, uma
está aí”, o que “está fora” — exsis- ousia. Tem, ademais, de ser-lhe pró-
tit. Algo existe porque está na coil- pria. A existência é a substância pri-
sa, in re; a existência neste sentido meira, na medida em que é aquilo de
é equiparável à realidade. que pode dizer-se algo e é aquilo
O termo ““existência” pode referir- “onde” residem as propriedades.
se a qualquer entidade; pode-se fa- Quando a existência se encontra uni-
lar de existência real e ideal, de exis- da à essência, temos um ser. Dele
tência física e matemática, etc. po-
demos saber o que é, justamente
Nos primeiros momentos da his- por-
que sabemos que é. Aristóteles inte-
tória da filosofia grega, os pensado- . Tessa-se por averiguar o que podem
res não pareciam interessados em sa- chamar-se os ““requisitos”* da exis-
ber qual é a natureza do existente; tência. Os conceitos de matéria e for-
ocupavam-se mais em indicar que ma, de potência e ato desempenham
entidade ou entidades eram, no en- a este respeito um papel importan-
tendimento deles, existentes — ou te. Mas, como não se pode falar da
“realmente existentes” — ao contrá- existência a menos que seja inteli-
255 EXISTÊNCIA
zer, Oconceito de algo que pode gaard, tomar uma ““decisão última”
acrescentar-se ao conceito de uma a respeito da absoluta transcendên-
coisa. É meramente a posição (Set- cia divina. Por isso a filosofia não
zung) de uma coisa ou de certas de- é especulação, é ““decisão”*; não é
terminações enquanto existentes em descrição de essência, é afirmação de
si mesmas. Logicamente, é a cópula existências.
de um juízo” (K. r. V., A 598, B 526). O “primado da existência sobre a
Referir-se a algo e dizer desse algo essência”* foi afirmado com tanta
que existe é uma redundância. Se a frequência e com tão diversos tons
existência fosse um atributo, todas as no pensamento contemporâneo que
proposições existenciais afirmativas a frase, fora de seu contexto, pouco
não seriam mais do que tautologias, nos diz. Em seu ensaio O existencia-
e todas as proposições existenciais ne- lismo é um humanismo, Sartre rei-
gativas seriam meras contradições. tera que os existencialistas — tanto
Por outro lado, dizer de algo que é cristãos quanto ateus — afirmam a
não significa dizer que existe. O “é” primazia da existência. Mais adian-
não pode subsistir por si mesmo: alu- te, porém, declarava que esse ensaio,
de sempre a um modo no qual se su- que era uma defesa do ““existencia-
põe que é Isto ou aquilo. E se preen- lisimo”* se revelara excessivamente
chemos o predicado com o existir, di- simplificador.
zendo que determinada entidade ““é Embora ele o negue, Heidegger
existente”, faltará ainda precisar a também tem sido frequentemente
maneira, o “como”, o “quando”
o “onde” da existência. De modo
e considerado um ““existencialista”;
embora seja certo que empregue o
que, de acordo com estas bases, o termo (“existência”), não o faz da
“ser existente”* não pode possuir ne- maneira tradicional. O Da do Dasein
nhuma significação se não se apre- é, com efeito, fundamental para Hei-
sentar dentro de um contexto. O que degger. Contudo, esse Da não signi-
desde logo supõe que o conceito que fica propriamente “aí”, mas abertu-
descreve algo existente e o conceito ra de um ente (o ente humano) para
que descreve algo fictício não são, en- o ser (Sen). Para Heidegger, Dasein
quanto conceitos, distintos: o possí- não é algo que já é, nem algo sim-
vel e o real estão, relativamente ao plesmente dado, mas o poder ser.
conceito, por assim dizer, no mesmo Por outras palavras, o ser de Dasein
modo de referência. é de algum modo defeituoso, falta-
Para Kierkegaard, a existência é, lhe o “ser”. A essência do Dasein
antes de tudo, o existente — o exis- “apóla-se... no fato de que, em ca-
tente humano. Trata-se daquele cujo da caso, tem seu ser-para existir e o
“ser” consiste na subjetividade, quer tem como próprio” (S 2, $ 4). Esta
dizer, na pura liberdade de ““esco- carência ou falta de “ser” é um ““es-
lha””. Não se pode falar de a exis- tado constitutivo do ser Dasein, eis-
tência. Existir significa, para Kierke- so implica que Dasein, em seu ser,
257 EXISTÊNCIA
ontologicamente distinto por ser ele pode ser e deve ser” (Philosophie,
mesmo existente” (ibid.). Deste mo- II, 1). Por isso pode-se dizer que o
do, Heidegger pretende mostrar que meu Dasein não é Existenz, mas que
“Dasein sempre se entende a si mes- o homem é no Dasein da existência
mo em termos de existência — em (Existenz) possível. Não se pode, de
termos da possibilidade de si mesmo: modo algum, apreender o ser da
ser o mesmo ou não... A questão da existência; só se pode viver o existir
existência não se esclarece se não for enquanto é “meu””. A apreensão da
através do próprio existir, do existir existência requer a objetividade, e es-
mesmo.” Toda e qualquer outra coi- ta destrói o caráter irredutível do
sa que não seja o Dasein é, para Heil- existir. Não existe, pois, para Jas-
degger, ou zuhanden (coisas que se. pers, uma ontologia da existência. À
revelam úteis para este ou aquele existência não é um nível de ““reali-
propósito), ou então vorhanden (col- dade”, no máximo é o que religa to-
sas “neutras” dadas pela natureza; dos os níveis.
coisas, desde um ponto de vista teo- Temos, pois, na filosofia atual, di-
Fico). versos significados de ““existência”
Assim, pois, o Dasein não enten- que são, por um lado, distintos dos
de os entes como dados ou indiferen- significados tradicionais e que, por
tes, mas como úteis, daninhos, pe- outro lado, distinguem-se entre si.
rigosos, quebrados, ausentes, etc. Esta distinção pode ser compreendi-
“Zuhanden é o modo pelo qual os da, sobretudo, desde o ângulo des-
seres, tal como são em si mesmos, tas duas possibilidades: uma inter-
são definidos ontológico-categorica- pretação da existência como raiz de
mente” (ibid., 15). Este último en- existir e uma interpretação dela co-
foque dos objetos é primário. mo fundamento de uma ontologia.
Quanto a Karl Jaspers, qualificou Alguns autores parecem participar
sua filosofia de “filosofia da existên- das duas interpretações. É o caso de
cia”, mas devemos nos precaver no Jean-Paul Sartre. A sua noção do
tocante ao vocabulário. Com efeito, “para-si” é, ao mesmo tempo (para
Jaspers chama Dasein ao que existe usar o vocabulário de Heidegger),
no nível do sensível (em nós). O ser ôntica e ontológica. Em vista disso,
do Dasein, assim como o da cons- é lícito perguntar-se se existe algum
ciência, do espírito, da alma, etc., é significado comum no uso atual do
de algum modo ““objetivo””, se bem termo ““existência”', inclusive dentro
que de uma objetividade diferente das filosofias chamadas de um mo-
EXISTÊNCIA 258
conseguirá fazer com que um nome vinculada a semelhante tese. Isso não
seja mais do que só um nome. Por é verdade. Há uma grande varieda-
ISSO, a existência só pode ser signifi- de de opiniões a respeito, dentro da
cativamente afirmada de descrições. mencionada orientação. Alguns au-
Se “q” é um nome, deve denominar tores consideraram que, pelo menos
algo, mas, se não denomina nada, no contexto da linguagem corrente,
então não é um nome mas apenas “existe” é uma expressão legítima no
um símbolo desprovido de signi- sentido de ser plenamente significa-
ficado. tiva; “a existe” quer dizer, segundo
Durante muito tempo, as análises eles, que a é efetivamente real e não
de Russell foram aceitas por muitos (por exemplo) imaginado, meramen-
autores sem mudar nenhum detalhe. te possível, etc. Não obstante, o pre-
Foi comum em numerosos textos de dicado ““é efetivamente real” ofere-
lógica destacar que termos como ce à análise dificuldades análogas, se-
“uma sereia” e “uma moça” não não maiores, do que o predicado
pertencem ao mesmo tipo lógico, “existe” — no caso de se admitir que
ainda que tenham forma gramatical se trata de um predicado. Fo! ressal-
semelhante. Portanto, não se trata tado que é possível afirmar que algo
apenas do fato de não existirem se- podia ter existido e não existiu, ou
relas e, em contrapartida, existirem não existe, e concluiu-se daí que, se
moças. Os que argumentam que cer- é admissível sustentar que não exis-
tas “entidades”* como as sereias exis- te, é Igualmente admissível sustentar
tem de algum modo — por exemplo, que existe (no caso de que exista), já
na imaginação — tratam a proposi- que o último é meramente a negação
ção ““as sereias são imaginadas” co- do primeiro. Se bem que no amplo
mo se tivesse a mesma forma de ““as espectro da filosofia analítica não te-
moças são amadas*'. Mas ser imagi- nha havido muitas teorias da existên-
nado não é propriedade de nenhuma cla comparáveis à de Russell pelo pa-
sereia como ser amada é, ou pode pel central que explicitamente desem-
ser, a propriedade de uma moça. penha nesse pensador a análise da
“As moças são amadas** não pode noção de existência, o certo é que o
ser uma proposição verdadeira se que cabe designar como a ““questão
não existirem moças. “As serelas são da existência” esteve implícita num
imaginadas” pode ser uma proposi- número muito considerável de estu-
ção verdadeira, ainda que não exis- dos lógicos e ontológicos, no seio da
tam serelas. citada orientação.
A tese russelliana tem em comum
com as de Hume e Kant o fato de ne- EXISTÊNCIA (FILOSOFIA DA)
gar que “existe” seja um predicado Pode traduzir-se deste modo a ex-
real (um termo aceitável como pre- pressão alemã Existenzphilosophie,
dicado). Supôs-se, por vezes, que a e usá-la nos seguintes sentidos:
chamada ““filosofia”* analítica está 1]. Para
designar um conjunto de
EXISTÊNCIA (FILOSOFIA DA) 260
riência como apreensão sensível dos Ao supor que existem ““dados ime-
dados “naturais”. (c) A experiência diatos da consciência”, Bergson acei-
como apreensão direta de “dados tou a possibilidade de uma experiên-
imediatos”. (d) A experiência como cia do “imediatamente dado”. Essa
“experiência geral da vida”. Durante experiência primária é a “intuição”.
o mesmo século começou a ser estu- É uma experiência análoga à que an-
dado o problema de se há diversas tes se chamava ““experiência inter-
formas de experiência corresponden- na”, mas não -é apenas experiência
tes a diversos “objetos” ou “modos em si, como também de quanto é da-
de ser” do real. Alguns autores do sem mediação. Embora Bergson
dispuseram-se a desenvolver filoso- não use com frequência a noção de
'
fias que levaram cada vez mais em experiência, sua idéia da intuição
conta amplas “formas de experiên- equivale a uma forma — a forma bá-
cia”. Um desses autores (Dilthey) sica — da experiência. Husserl tam-
procurou desenvolver uma filosofia bém admite uma experiência primá-
que levasse em consideração toda a ria, anterior à experiência do mundo
experiência e que fosse, portanto, natural: é a experiência fenomeno-
uma ““filosofia da realidade”, mas lógica. Há, em todo caso, segundo
sem suposições metafísicas de nenhu- Husserl, uma “experiência pré-pre-
ma espécie e, por conseguinte, de dicativa” que ele identificou ocasio-
uma forma muito diversa da que era nalmente com o fato de serem dados
característica dos idealistas alemães.
A metafísica apresenta-se então sim- com evidência os objetos individuais
plesmente como uma das possíveis
(Erfahrung und Urteil, $ 6). Mas ne-
nhuma experiência é isolada; toda ex-
maneiras de apreender e organizar a
experiência. Outros autores interes- periência se encontra, por assim di-
saram-se por examinar a natureza e zer, alojada num ““horizonte de ex-
as propriedades de cada uma das for- periência”". Os modos da experiência
mas básicas da experiência. No século podem ser entendidos em relação
XX, o Interesse por este último tipo com os diversos horizontes da expe-
de exame foi reavivado e refinado. A riência.
experiência foi classificada em vários As idéias anteriores sobre a expe-
tipos: experiência sensível, experiên- riência são, em alguns aspectos im-
cia natural, experiência científica, ex- portantes, semelhantes à noção de
periência religiosa, experiência artis- experiência elaborada por alguns au-
tica, experiência fenomenológica, ex- tores que consideraram a experiência
periência metafísica, etc. Procurou- a base de toda ulterior reflexão filo-
se averiguar se existe algum tipo de sófica. Segundo estes autores, todo
experiência que seja prévio a todos os saber repousa num mundo prévio de
demais. Examinou-se se há uma ex- experiências vividas. A este respeito,
periência filosófica distinta de qual- pode-se mencionar Gabriel Marcel,
quer outra forma de experiência. sobretudo nas idéias propostas numa
269 EXPERIÊNCIA
ladas por Alquié — haver uma ex- Tal sujeito é, na maioria dos casos,
periência que possa ser considerada um ““sujeito epistemológico”, não,
propriamente filosófica. Quando fa- ou não necessariamente, um ““sujei-
lam de experiência, entendem-na to psíquico”.
unicamente como ““possibilidade de O problema filosófico já clássico
comprovação (objetiva, isto é, na é o da natureza e realidade do mun-
realidade) dos juízos”. Em contra- do exterior — exterior ao sujeito in-
partida, outros filósofos opinam dicado ou à consciência. O proble-
que, se não há uma experiência filo- ma deu origem a várias perguntas do
sófica própria, a filosofia não tem seguinte tipo: “É o mundo exterior
nenhuma razão de ser. independente de ser conhecido?”,
“Como se pode ter uma completa-
EXTERIOR Diz-se que x é exterior da segurança de que existe um mun-
a y quando está fora de y. Por ve- do exterior (exterior a mim)?”, “Co-
zes, diz-se do espaço que está fora, mo pode ser provada a existência do
não porque haja algum espaço de fo- mundo exterior?””, “Está o conhe-
ra, mas porque qualquer parte do es- cimento do mundo exterior determi-
paço é exterior a qualquer outra. À nado, pelo menos em parte, por al-
este respeito, usou-se a expressão gum sistema de conceitos “imposto”
partes extra partes a fim de caracte- (ou “sobreposto”) pelo sujeito?”.
rizar a pura espacialidade. Exemplos clássicos de formulação
Na metafísica e, em especial, na da questão do mundo exterior são os
teoria do conhecimento, tem sido co- de Descartes, Berkeley e Kant. Im-
mum colocar-se a chamada ““ques- portantes são duas posições sobre es-
tão do mundo exterior” ou “questão ta questão — com as quais se entre-
do mundo externo”. Isso pressupõe laçam muitas posições intermediá-
que existe alto — uma realidade, rias —: o realismo e o idealismo.
uma intenção, um conjunto de inten- O realismo (ver) afirma haver um
ções, uma consciência, etc. — a que mundo exterior independente do su-
se atribui a propriedade de ser ““in- Jeito cognoscente, mas há muitos
terior”* ou “interno”. O que se en- modos de defender esta ““indepen-
contra “fora” disso é o “mundo ex- dência”: pode-se afirmar que o que
terior””. Por esse motivo recorre-se na verdade há é o que se chama
às noções de “imanência” e “trans-
cendência”: o citado “mundo exte-
“mundo exterior” ou ““as coisas”,
e que não só tal mundo é transcen-
rior” é transcendente em relação à dente em relação ao sujeito, como
consciência ou ao sujeito cognoscen- também o chamado ““sujeito” é sim-
te, ou seja, é objeto de suas ““inten- plesmente uma parte do mundo que
ções”, pensamentos, etc. Por Isso a se limita a refleti-lo e a agir sobre ele;
consciência ou o sujeito cognoscen- pode-se afirmar que o mundo exte-
te não são concebidos como realida- rior existe e é tal qual existe; pode-se
des, mas sim como atos ou intenções. sustentar que existe, mas que sua rea-
271 EXTERIOR
pm,
das de acentos: “F””, “GG”, “HH”, linguagem que se empregue (ot é£w
Tns Aé£ewws, Ou fallaciae extra dictio-
SEM, eto. Na lógi-
nem [De Soph., E 1, 4, 165 b 231).
ca quantificacional superior, essas Estas últimas também são chamadas
mesmas letras denotam propriedades falácias extralingúísticas, enquanto
e são chamadas ““variáveis pre-
dicados””. as primeiras são também denomina-
das falácias linguísticas. Existem di-
FALÁCIA Denomina-se às vezes versos tipos de falácias lingúísticas,
“falácia” a uma asserção só aparen- como: (1) O equívoco (óuwrvunia),
te (palvouevos Eheyxos) ou ““sofis- o qual supõe a ambiguidade de um
ma” (cogrloTiXOS tam-
ÉAeyxXOS), e termo e de que Aristóteles fornece
bém a uma aparente argumentação vários exemplos. “Os que aprendem
ou silogismo (garvonevos quhhoyLo- sabem; os que compreendem seus
nós) ou silogismo sofista (coproTLIX OS próprios escritos são os que podem
ouMhoyionpos). Estes últimos empre- aprender dos escritos de outros”, é
gam-se para defender um argumen- uma falácia porque o termo “com-
to falso ou para convencer outrem preender”* é ambíguo, já que signi-
do contrário, depois de uma conclu- fica tanto “entender” algo quanto
são dada. Por vezes distingue-se tam- “adquirir conhecimento”. Ou então
bém entre falácia e paralogismo (ver este outro: “O mal é bom porque o
PARALOGISMO para as distinções que necessita existir é bom, e o mal
que foram enunciadas), mas em ge- necessita existir.”* Neste caso, a am-
ral ambos os termos se empregam in- bigúuidade reside em ““necessita exis-
distintamente. tir”. (2) A anfibolia (QueiBoNia) con-
FALÁCIA 278
tro elemento e assim sucessivamen- dência indistinta (ou não clara) são-
te até que fica apenas um que — co- no por confusão. Em suma, cinco es-
mo é óbvio — não constitui uma sé- pécies distintas de falácia. Mill reco-
rie. Então, o problema concreto con- nhece a dificuldade que se apresen-
siste em saber de quantos elementos ta amiúde para a sua classificação,
se compõe uma determinada série, já que quase qualquer falácia pode-
mas tal formulação ignora que, na ria incluir-se entre as que se produ-
o
linguagem comum, termo ““série”
possui um significado muito vago,
zem por confusão, se bem que raras
vezes em algum dos outros grupos.
que não admite determinação quan- Também observou que, “com fre-
titativa. É assim no exemplo de qiiência, um erro concreto é arbitra-
“quantos pêlos faltam para “consti- riamente atribuído a um grupo em
tuir' o rabo de um cavalo” e outros vez de outro” (ibid., p. 745).
semelhantes. (4) A falácia de negar Mill oferece numerosos exemplos
o antecedente, como ““Se Ivã é rus- de cada um dos tipos mencionados
so, então Ivã não é inteligente, mas de falácia, investigando suas origens.
Ivã não é russo, logo Ivã é inteligen- Entre as falácias a priori estão os er-
te”, ou a (5) de afirmar o consequen- ros crassos e os cometidos por pen-
te: “Se Ivã é russo, Ivã é inteligen- sadores que partem de princípios
te. Ivã é inteligente, logo Ivã é considerados evidentes por si mes-
Tusso”. mos (e que não o são). Entre estes,
Em seu livro A System of Logic a noção de que as coisas que podem
Ratiocinative and Inductive, no ca- ser pensadas em mútua relação têm
pítulo sobre a falácia, J. S. Mill for- de existir igualmente relacionadas,
nece uma lista de falácias, algo as- ou que o inconcebível tem necessa-
sim como — em suas próprias pala- riamente de ser falso. Outras falácias
vras — ““um catálogo de aparentes a priori, de natureza filosófica, con-
evidências que não o são, realmen- sistem em atribuir existência objeti-
te”. Excluiu de sua lista aqueles er- va a abstrações, ou a falácia de ra-
ros devidos a um ““lapso casual, por zão suficiente, que Mill explica co-
pressa ou inadvertência”, e distingue mo ““que a natureza realiza algo pa-
dois grupos básicos: falácias de ins- ra o qual não vemos uma razão em
peção e falácias de inferência, das contrário” (ibid., p. 758). As falá-
quais as primeiras o são a priori, ao cias de observação supõem que não
passo que as segundas podem ser evi- se evidenciou algo que deveria ter si-
denciadas de maneira distinta ou in- do visto, ou que foi mal observado.
distinta. As de evidência distinta (evi- As de generalização — que refletem
dente, se se admitir a redundância) o intento de reduzir fenômenos ra-
são indutivas ou dedutivas; as indu- dicalmente distintos a uma única
tivas, por sua vez, de observação ou classe (e são hoje denominadas, com
de generalização; as dedutivas, sem- trequência, “falácias reducionistas' )
pre por raciocínio. As falácias de evi- — implicam a confusão das leis em-
281 FALÁCIA GENÉTICA
OS que não são deriváveis da teoria inclusive, que Popper tratou de ““sal-
correntemente adotada e, em espe- var” esta última tese das numerosas
cial, os que a teoria correntemente objeções de que ela foi alvo — em
adotada contradiz. Depois, procura- grande medida por parte dos pró-
mos uma decisão a respeito desses (e prios positivistas lógicos. Popper
de outros) enunciados derivados, opôs-se energicamente ao que con-
comparando-os com os resultados de sidera uma tergiversação completa
aplicações práticas e experimentos. tanto da função da noção de falsea-
Se essa decisão é positiva, ou seja, bilidade quanto das relações entre o
se ocorre que as conclusões singula- próprio Popper e o círculo de Viena
res são aceitáveis, ou são verificadas, (cf., entre outros, K. R. Popper
então a teoria passou com êxito, de “Reply to My Critics”, em P. A.
momento, em seu teste; não encon- Schilpp (org.), The Philosophy of K.
tramos razão nenhuma para descar- Popper, 2 vols., 1974, especialmen-
tá-la. Mas se a decisão é negativa ou, te o vol. II, pp. 967 e ss.). Enquanto
por outras palavras, se as condições a tese de verificabilidade é um crité-
foram falseadas, então sua falseação rio de significado pelo qual se distin-
também falseia a teoria donde essas gue entre enunciados que são, ao
conclusões tinham sido logicamente mesmo tempo, verificáveis e com
deduzidas” (Logik, etc., p. 33). sentido (ou que têm sentido por se-
Assim, em vez de tratar de verif1- rem verificáveis), e enunciados não
car uma teoria, cumpre fazer todo verificáveis e carentes de sentido (ou
o possível para falseá-la; somente que carecem de sentido por não se-
quando uma teoria resiste aos esfor- rem verificáveis), a tese da falseabi-
ços que se realizam para falseá-la, é lidade é um critério de demarcação
que ela se acha corroborada (De- (Abgrenzungskriterion, criterion of
wãhrt). Uma teoria que não seja, em demarcation: Logik d. F.; Logic of
princípio, falseável, é inaceitável e se S. R., $ 4) entre ciência e não-ciência.
encontra fora do âmbito da ciência. Há enunciados não falseáveis que
É isto o que ocorre, segundo Pop- têm significado. A confusão entre os
per, com teorias como o marxismo dois critérios deve-se, em parte, a que
e a psicanálise, que não são cientifi- os positivistas lógicos usaram seu cri-
cas porque, embora possam ser ve- tério de verificabilidade também co-
rificadas, não podem ser falseadas. mo critério de demarcação, mas is-
Em sua obra Neues Organon (1764), dos tipos de vida moral destinados
Lambert introduz a palavra ““feno- ao estabelecimento de uma hierar-
menologia”. Segundo ele, cabe à fe- quia que não exclua ilegitimamente
nomenologia distinguir entre verda- nenhum dos tipos essenciais que se
de e aparência. A fenomenologia é, manifestaram no decorrer da histó-
pois, como esse pensador a designa, ria humana. O termo ““fenomenolo-
a “teoria da aparência”, o funda- gia” adquiriu um lugar central e um
mento de todo saber empírico. Nos sentido muito preciso também no
Princípios metafísicos da Ciência pensamento de Husserl, Peirce e
Natural, também Kant fala de feno- Stumpf. Para este último, a fenome-
menologia. Referiu-se a uma pheno- nologia é uma ciência neutra que tra-
menologia generalis que deveria pre- ta dos “fenômenos psíquicos em si”,
ceder a metafísica e traçar uma linha quer dizer, enquanto conteúdos sig-
divisória entre o mundo sensível e o nificativos. Embora defenda energ71-
inteligível, a fim de evitar transposi- camente sua “neutralidade”, a feno-
ções ilegítimas de um para o outro menologia de Stumpf encontra-se, de
(Werke, ed. Cassirer, IX, 73; Cor- fato, envolvida em considerável pro-
respondência [com Lambert, 1770] porção com a psicologia, ou pelo
apud E. Cassirer, I. Kant, cap. II, menos com uma psicologia descrit1-
5, no tomo X de Werke). Por sua va. (Já Brentano falava, num con-
parte, ao estabelecer uma distinção texto semelhante, de uma fenome-
entre a psicologia e a lógica, Hamil- nognosia.) O termo ““fenomenolo-
ton assinala que a primeira é uma fe- gia” foi também usado por Peirce —
nomenologia, porquanto se refere ao que o tomou de Hegel — para desig-
que aparece em vez de aplicar-se ao nar uma das três partes em que, se-
pensamento enquanto tal. A feno- gundo ele, se divide a filosofia. A fe-
menologia é, então, uma psicogno- nomenologia — diz Peirce — cons-
sia ou exame das “idéias” tal como titui um estudo simples e não se sub-
de fato surgem e desaparecem no de- divide em outros ramos (Coll. Pa-
correr dos processos mentais. Hegel pers, 1.190). Peirce também chama
chama “fenomenologia do Espirito” à fenomenologia faneroscopia e de-
à ciência que mostra a sucessão das fine esta como a descrição do fane-
diferentes formas ou fenômenos da ron. Este é “o todo coletivo enquan- .
consciência até chegar ao saber ab- to está de qualquer modo ou em
soluto. A fenomenologia do Espiíri- qualquer sentido presente na mente,
to representa, segundo ele, a 1intro- independentemente de se correspon-
dução ao sistema total da ciência: a der ou não a alguma coisa real”
fenomenologia apresenta o ““devir da (1.284). Segundo Peirce, o termo
ciência em geral ou do saber”. Se- “faneron” designa algo semelhante
a
gundo Eduard von Hartmann, “fe-
nomenologia da consciência moral”
ao que os filósofos ingleses chama-
ram idéia, mesmo quando estes res-
equivale a uma descrição e análise tringiram exageradamente o signifi-
FENOMENOLOGIA 290
e a (3), mas difere deles em vários e muitos dos métodos e boa parte da
importantes aspectos. disposição da tradição analítica, no-
6. A diversificação do positivismo vos interesses são suscitados, proble-
lógico, filosófica e geograficamente, mas tradicionais são reinstaurados.
coincide com uma nova fase da aná- Começam mais intensas relações en-
lise, relacionada em grande parte tre a filosofia analítica e outras ten-
com o “último Wittgenstein”. Em dências filosóficas.
alguns, adota a forma do ““positivis- Outra classificação da filosofia
mo terapêutico”. Em outros, a de analítica é devida a L. S. Stebbing,
“análise da linguagem corrente (ou anterior à II Guerra Mundial. Esta
ordinária)”. Com o ““pluralismo lin- autora fala de quatro tipos de análi-
guístico” wittgensteiniano e pós- se — que, na verdade, são formas
wittgensteiniano, conjugam-se os possíveis de análise, mais do que ten-
pensadores do chamado ““Grupo de dências no âmbito da filosofia ana-
Oxford”, o qual inclui várias dire- lítica: (1) a análise como definição
ções: análise “informal” de Ryle; analítica de expressões simbólicas,
análise conceitual de Strawson; feno- tal como é empregada por Russell,
menologia lingúística de Austin. em especial na sua teoria das descri-
7. Juntamente com (6), amplia-se ções: (II) o esclarecimento analítico
o campo de interesses dos filósofos de conceitos (do qual um dos exem-
analíticos. Há consideráveis diferen- plos é a análise einsteiniana de ““é si-
ças entre o positivismo lógico orto- multâneo”*; (III) a análise postulati-
doxo e o “holismo” pragmatista de va usada na construção de um siste-
Quine. Abandona-se quase por com- ma logístico; (IV) a análise ““direti-
pleto o velho reducionismo; desen- va” que produz enunciados ostensi-
volve-se uma ““nova teleologia””. Os vos, cujos símbolos correspondem a
filósofos da ciência Iinteressam-se ca- “fatos atômicos”.
da vez mais pelo papel que desem- Uma das mais difundidas divide
penham os quadros conceituais, pe- praticamente todas as correntes ana-
lo “peso teórico”? dos próprios fa- líticas em duas tendências organiza-
.
tos e por contextos não Inteiramen- das em torno de dois centros de in-
te equivalentes ao de justificação. Ao teresse, que são justamente os mes-
intuicionismo ético dos primeiros mos que caracterizaram o pensamen-
tempos, e ao emotivismo ético da to de Russell e Moore nos começos
época em que ainda exercia influên- do século. Por um lado, há o inte-
cia o positivismo lógico, sucede o resse na constituição de uma lingua-
prescritivismo ético. Chega ao seu gem ideal que permita desfazer as
auge a diversificação de tendências ambiguidades inerentes à linguagem
analíticas. corrente ou ordinária. Por outro la-
8. Desdobram-se tendências que se do, há o interesse no estudo dessa
caracterizaram como ““pós-analíti- linguagem corrente ou ordinária.
cas”, porquanto, sem abandonar Usaram-se com freqiiência, a este
FILOSOFIA ANALÍTICA 300
lo que o carpinteiro adotou é a sua matéria, ainda que nunca tenha exis-
forma. Desde este ponto de vista, a tência separada.
relação entre matéria e forma pode Vários são os problemas que se
ser comparada à relação entre potên- apresentam a respeito da noção aris-
cla e ato (ver). Com efeito, sendo a totélica de forma. Limitar-nos-emos
forma o que é aquilo que é, a forma aqui a mencionar os mais impor-
será a atualidade do que era poten- tantes.
cialmente. Ora, cumpre distinguir Para começar, o problema de se
entre os dois mencionados pares de há ou não formas separadas. Apa-
conceitos. Enquanto a relação ma- rentemente não, visto que toda rea-
téria-forma aplica-se à realidade num lidade é composta de forma e maté-
sentido muito geral e, por assim di- ria. Mas Aristóteles declara que a fi-
zer, estático, a relação potência-ato, losofia primeira tem por missão exa-
por seu lado, aplica-se à realidade minar a forma verdadeiramente se-
enquanto essa realidade está em mo- parável. E é sabido que o Primeiro
vimento (ou seja, em estado de de- Motor é forma pura, sem nada de
vir [ver]). A relação potência-ato faz- matéria. Pode-se admitir, por con-
nos compreender como mudam (on- seguinte, a existência, no âmbito do
tologicamente) as coisas; a relação aristotelismo, do que se convencio-
matéria-forma permite-nos entender nou chamar formas subsistentes por
como as colsas são compostas. Por si mesmas.
este motivo, o problema do par de Em segundo lugar, há o problema
conceitos matéria-forma é equivalen- do significado do termo “forma”
te à questão da composição das subs- dentro do par de conceitos matéria-
tâncias e, a rigor, de todas as real1- Jorma. Ao nosso ver, este significa-
dades. Por exemplo, enquanto as- do compreende-se melhor quanto to-
substâncias sublunares mudam e se mamos, de início, o termo “forma”
movimentam, e os astros se movi- como um termo relativo — relativo
mentam (com movimentos circulares ao termo ““matéria””. Isto permite
locais), e mesmo o Primeiro Motor, entender como uma determinada
embora não se mova, constitua um “entidade” pode ser, segundo os ca-
centro de atração para todo movi- SOS, forma ou matéria. Assim, a ma-
mento, as entidades matemáticas não deira, que é matéria para uma me-
mudam nem se movem, nem const!- sa, é forma relativamente à extensão.
tuem centros de atração para o mo- A extensão, que é matéria para a ma-
vimento. E, não obstante, estas en- deira, é forma relativamente à pos-
tidades também têm matéria, e for- sibilidade. Isso apresenta um proble-
ma; por exemplo, numa linha, a ex- ma a Aristóteles: se não há modo de
tensão é a matéria, e a “pontualida- deter a mencionada sucessão (pois a
de” (ou fato de ser constituída por possibilidade de extensão espacial
uma sucessão ininterrupta de pontos) pode converter-se em forma para a
é forma, a qual pode ser extraída da possibilidade da possibilidade de ex-
FORMA 304
tensão espacial, etc.), cairemos nu- é matéria para uma estátua, uma
ma regressão ao infinito. Para evitá- mesa ou uma casa, não para uma
la, podemos interpretar o par maté- sinfonia; a tinta é matéria para OS sI-
ria-forma em sentido platônico, is- nais, não para os astros, etc. Assim,
to é, conceber a matéria como o de- a matéria é sempre qualificada, não
terminado. Matéria e forma seriam porque tenha sempre certas qualida-
então equivalentes, respectivamente, des dadas, mas porque há sempre,
ao Não-Ser e ao Ser, ao essencial- pelo menos, matéria para certas qua-
mente Incognoscível e ao essencial- lidades que excluem outras quali-
mente Cognoscível. Mas com isso dades.
deveríamos admitir que matéria e (b) A forma pura é pensável, pois
forma não são termos relativos, mas o Primeiro Motor é forma pura. Dir-
realidades plenas. x não seria forma se-á que o Primeiro Motor é uma ex-
a respeito de y, e matéria a respeito ceção, já quê o universo de Aristó-
de w, Já que, pelo contrário, x seria teles parece composto de Primeiro
mais forma do que y, e w seria mais Motor e substâncias compostas. Mas
forma do que x (ou, se se quiser, x se em vez de uma concepção trans-
seria mais real do que y e w mais real cendente do Primeiro Motor afirma-
do que x). Não sendo isso admissí- mos uma concepção imanente dele,
vel à luz da filosofia de Aristóteles, a questão antes apresentada torna-
convém encontrar um modo de evi- se menos aguda.
tar, simultaneamente, a regressão ao Em terceiro lugar, temos o proble-
infinito e ao platonismo. A solução ma de até que ponto a forma consti-
que propomos pode ficar mais clara tui o princípio de individuação prin-
mediante as duas observações se- cipium individuationis).
guintes: Finalmente, pode-se apresentar o
(a) A matéria pura é impensável, problema — a que já se aludiu antes
porquanto não pode ser racional- — das diversas classes de formas. Es-
mente apreendida. Inclusive, a pos- te problema, embora tratado por
sibilidade nunca é mera possibilida- Aristóteles, foi elaborado com mais
de: é sempre ““possibilidade de...”. amplitude e precisão pelos autores
Assim, o receptáculo indeterminado escolásticos, aos quais nos referire-
platônico, disposto a receber qual- mos a seguir. Mencionaremos aqui
quer forma, deve ser excluído. Isto algumas das classes principais. Te-
explica, diga-se de passagem, por mos: (a) formas artificiais, como a
que nem todas as matérias, segundo forma da mesa ou da estátua; (b)
Aristóteles, são igualmente aptas pa- formas naturais, como a alma; (c)
ra receber todas as formas. Há, de formas substanciais, como as que
fato, diferentes classes de matéria compõem as substâncias corpóreas
(matéria para o movimento local; e que são estudadas em detalhe na
matéria para a mudança substancial, doutrina do hilemorfismo; (d) for-
etc.; cf. Phys., 260 b 4). A madeira mas acidentais que se agregam ao ser
305 FORMA
tão, por exemplo, falou muitas ve- é um universal cuja natureza onto-
zes dos gêneros como idéias. Aristó- lógica se trata de determinar; o se-
teles (em Top., I 5, 102 a 31) define gundo é uma forma de predicação.
O gênero, yévos, como o atributo es- Essa distinção é desprezada por mui-
sencial aplicável a uma pluralidade tos autores modernos, os quais usam
de coisas que diferem entre si espe- o termo ““gênero” em ambas as
cificamente; a definição aristotélica acepções mencionadas. As razões
constitui, em linhas gerais, a base pa- (implícita ou explicitamente) aduzi-
ra a concepção que têm do gênero os das para adotar este último uso
lógicos de tendência clássica. Porfií- baseiam-se na idéia de que não é ne-
rio discute o gênero na lsagoge co- cessário separar a questão dos uni-
mo um dos predicáveis; as idéias por- versais numa parte ontológica e numa
firianas sobre as analogias e diferen- outra parte lógica; a questão surge,
ças entre o gênero e os demais pre- com efeito, tão logo ela é formula-
dicáveis foram delineadas no artigo da no campo da lógica, e observa-se
dedicado a este último conceito. Vá- que toda solução requer uma prévia
rias escolas (principalmente os estói- ontologia acerca do status das ent1-
cos) definem o gênero como um con- dades lógicas.
ceito coletivo; outras tendem a iden-
tificar o conceito de gênero com o GÊNIO O problema da natureza do
conceito de universal. Esta última gênio e da genialidade foi tratado em
tendência explica a frequente apre- filosofia especialmente no âmbito da
sentação das diversas doutrinas me- estética e da filosofia da arte. O in-
dievais sobre os universais como teresse pela questão do gênio foi des-
doutrinas relativas à natureza onto- pertado no século XVIII. Nos auto-
lógica dos gêneros, se bem que, por res desse século foi frequente referir-
Vezes, se acrescentem (como fez Por- se a Platão e a Aristóteles a este res-
fírio) os gêneros às espécies para peito. A teoria platônica do gênio
indagar-se acerca do seu status. As expressa-se na doutrina da inspira-
definições que, no âmbito da dispu- ção como loucura divina (Fedro, 244
ta dos universais, se dão do gênero A e ss.). A teoria aristotélica ex-
correspondem às diversas posições pressa-se na doutrina da capacidade
adotadas: os gêneros são apresenta- inventiva, mas não necessariamente
dos, com efeito, como entidades, Irracional ou “louca”, do criador
enunciados (sermones), etc. Isto não artístico. Os autores setencentistas
significa que sempre haja confusão apolaram-se ora em Platão ora em
entre o gênero entendido em senti- Aristóteles, mas isso não significa
do ontológico e o gênero entendido que suas idéias sobre a noção de gê-
em sentido lógico. Muitos autores nio fossem uma simples continuação
medievais estabelecem cuidadosa- das antigas doutrinas sobre a Inspi-
mente a distinção entre o genus na- ração poética. Importante na evolu-
turale e o genus logicum: o primeiro ção das idéias sobre o problema foi
315 GERAÇÃO
Demócrito).
No artigo DEVIR, referimo-nos às rupção em relação com a idéia de
doutrinas de Platão e de Aristóteles privação e, por conseguinte, com re-
a respeito da geração, yévous e à mu- ferência a alguma forma de ““não
dança contraposta à geração: a cor- ser”* — pelo menos, enquanto ““não
rupção, ç0opea. ser algo determinado”. Mais pro-
Além dos textos de Aristóteles priamente se fala de geração e cor-
aduzidos no citado artigo, chama- rupção ““relativas” ou ““qualifica-
mos a atenção para o seguinte: “A das”, porquanto se assume a existên-
mudança de um não-ser para um ser, cia de uma “matéria” ou ““substra-
que é o seu contraditório, é a gera- to*”*
que adota diversas formas subs-
ção, que para a mudança absoluta é tanciais. Assim, pode-se dizer que se
geração absoluta e para a mudança engendra uma substância enquanto
relativa é geração relativa. A mudan- se corrompe (ou destrói) outra subs-
ça de um ser para um não-ser é a cor- tância, e vice-versa.
rupção, que para a mudança abso- A questão da geração e corrupção
luta é corrupção absoluta e para mu- dos corpos e das substâncias do
dança relativa é corrupção relativa” mundo (sensível) foi tratada pela
(Mer., K, 11, 1067 b 20-5). “Abso- maior parte dos autores antigos. Em-
luto” e“relativo” têm aqui os sen- bora se manifestassem muitas opi-
tidos de “não qualificado” e “qua- niões a respeito, elas podem ser di-
lificado”, respectivamente. Em De vididas em três fundamentais: segun-
generatione et corruptione, Aristó- do certos autores, o modo de expli-
teles estuda o “chegar a ser” e o cação aristotélica (embora modificá-
“deixar de ser”, enquanto são ““por vel em certos pontos) é basicamente
natureza”* e podem ser predicados aceitável, pelo menos no que tange
uniformemente de todas as coisas aos entes naturais “sublunares”*; se-
(naturais). Este chegar a ser (gera- gundo outros, há que se aceitar o ti-
ção) e deixar de ser (corrupção) são po de explicação mais simples dado
espécies de mudança estreitamente pelos atomistas; segundo outros ain-
317 GERAL
conceito geral. O conceito geral dis- ca-se, às vezes, com O juízo univer-
tingue-se neste caso do conceito co- sal. Também esta confusão é inad-
letivo, que se aplica a um grupo de missível; com efeito, enquanto é pos-
indivíduos enquanto grupo, mas não sível dizer “é um juízo muito geral”,
aos indivíduos componentes; por não é possível dizer ““é um juízo mui-
exemplo, o conceito Rebanho é um to universal”. Diga-se de passagem
conceito coletivo, mas não geral. Por que o mencionado uso de “geral”
vezes, o termo ““geral”* é usado no aplicado ao juízo fundamenta-se no
mesmo sentido que o termo “univer- caráter vago de sua significação. Por
sal”*. Entretanto, verificou-se que es- este motivo, Lalande recomenda (cf.
ta confusão deve ser evitada na me- Vocabulaire, s.v. “Général”*) não
dida do possível. Com efeito, deve- usar “geral” mas, segundo o caso,
se usar “geral”* (como propõem Go- “universal” ou “genérico” quando
blot e Maritain) somente no sentido se fala de um juízo ou de uma pro-
de “universal enquanto abstrato” e posição.
nunca no sentido de ““universal en-
quanto distributivo””. Deste modo, GNOSIOLOGIA Expusemos nos
O conceito particular opõe-se ao con- verbetes CONHECER e CONHECIT-
ceito univesal distributivo, mas não MENTO os problemas principais da
ao conceito universal enquanto abs- teoria do conhecimento e as diversas
trato. Além do mais, 1sto torna pos- soluções propostas para eles. No pre-
sível que o conceito geral se oponha sente verbete, referir-nos-emos uni-
a um conceito menos geral ou me- camente ao termo ““gnosiologia”.
nos universal, mas não a um concel- O vocábulo ““gnosiologia” foi em-
to particular (cf. Maritain, Petite lo- pregado pela primeira vez no século
gique, cap. [, sec. 2, $ 4). Por exem- XVII (por exemplo, por Valentin
plo, o conceito Homem é mais geral Fromme [1601-1675] em sua Gnos-
do que o conceito Europeu, e o con- teologia, 1631; por J. Micraelius, no
ceito Europeu é mais particular do Lexicon philosophicum terminorum
que o conceito Homem. philosophis usitatorum, 1653, s.v.
(2) Diz-se que um juízo é geral “Philosophia”; e por Georg Gutke
quando se refere a um número fini- em Habitus primorum principorum
to ou indefinido de indivíduos. Por seu intelligentiae, 1666), sob a for-
vezes, confunde-se o juízo geral com ma Gnostologia. Assim designou ele
o juízo coletivo; segundo Goblot, es- uma das disciplinas em que se divi-
ta confusão é inadmissível, porque, de a Metafísica. A Gnostologia ocu-
enquanto o juízo coletivo total ba- pa-se do conhecimento. Escreve Gut-
seia-se nos juízos singulares que to- ke que a missão da gnosiologia é “de
taliza, o juízo geral não procede por apprehensione cognoscibilias & prin-
totalização mas por generalização de cipiis essendi agens”. Em época mais
Juízos singulares (cf. Goblot, Logr- recente, o termo ““gnosiologia” (nas
que, 8 110). O juízo geral identifi- diversas formas das linguagens mo-
319 GNOSTICISMO
pondente a uma fórmula aritmética. cia mais ricas do que O cálculo so-
Pode então provar-se que tal fórmu- bre o qual se pronuncia, e no inte-
la é demonstrável se e somente se a rior do sistema volta a aparecer a di-
negação da mesma fórmula também ficuldade apontada. Em suma, se O
for demonstrável. Trata-se, pois, de sistema é completo, não é consisten-
uma fórmula indecidível. te; se é consistente, não é completo.
É com base nisso que se estabele-
ce então se a locução sintática que GRAÇA O termo ““graça” oferece
afirma a consistência da aritmética interesse filosófico principalmente
pode ser demonstrada. O resultado em dois sentidos: o estético e o teo-
é negativo. Com efeito, a locução de lógico. Há certos elementos comuns
referência pode ser representada me- nos dois sentidos: a graça aparece co-
diante uma fórmula aritmética tal mo um dom, como uma concessão
que, se essa fórmula for demonstrá- que se recebe sem esforço ou mér!-
vel, então a mencionada fórmula in- to, como algo que se tem ou não se
decidível também é demonstrável. tem. Contudo, esses elementos co-
Mas uma vez que se estabeleceu que muns do conceito de graça dizem
a forma indecidiível não é demons- muito pouco a respeito do mesmo.
trável, deve concluir-se que a locu- Além disso, não é por aí que se dis-
ção que afirma a consistência da arit- sipam as importantes diferenças en-
mética tampouco é demonstrável. A' tre o sentido estético e o teológico.
locução que afirma que a aritmética Trataremos, pois, separadamente dos
é consistente é, pois, indecidível. dois.
Embora possa construir-se um sIs- IL. Sentido estético. Já desde
a An-
tema lógico dentro do qual a locu- tiguidade (sobretudo em Platão e
ção que se provara indecidível resulta Plotino) a idéia de graça esteve liga-
decidível, sempre será possível en- da à idéia de beleza. Ambas foram
contrar em tal sistema outra locução frequentemente identificadas: algo é
indecidível. A construção de outro belo, xadhos (e, além disso, bom,
sistema lógico que resolva a dificul- ayados) se tem graça, xúous, e vice-
dade anterior não resolverá, porém, versa. Às vezes, o nome ““graça” foi
a questão de um modo definitivo, dado ao ““aspecto interno” do belo.
pois no interior de tal sistema se en- Esse aspecto interno pode consistir
contrará, pelo menos, outra locução num elemento inteligível ou numa
indecidível. Por mais sistemas lógi- certa proporção ou harmonia, ou em
cos que se construíssem, não se fa- ambas as colsas ao mesmo tempo. A
ria mais do que retroceder indefin!- harmonia, em particular, foi com
damente a descoberta de um supos- frequência estreitamente vinculada à
to cálculo completo e consistente, ca- graça; considerou-se que era difícil
paz de alojar em seu seio a matemá- (ou impossível) que alguma coisa
tica. Todo sistema lógico de tal espé- fosse graciosa e ao mesmo tempo
cie deve possuir regras de inferên- inarmônica.
GRAÇA 322
—
de la nature et de la grâce fondésen do que o sentido que tem a noção
de
raison, $ 15; cf. Monadologia, 8 87). graça enquanto dom especial sobre-
Entretanto, o sentido de “graça” natural.
H
H A letra maiúscula “H” éusada
com frequência para representar o
ram anti-hedonistas. Em geral, o he-
donismo foi frequente objeto de cri-
termo médio no esquema de um juí- tica e, em alguns casos, de menos-
zo ou de uma proposição. Assim, prezo. Tentou-se excepcionalmente
por exemplo: “H” em “Nenhum H defender o hedonismo sem paliat:-
é GC”, “Todos os H são F”'. A letra vos, não tanto por amor ao prazer
“HH” tem, pois, a mesma função que quanto por motivos racionais; é o ca-
a letra “M”. Para o uso de “H”*” na so de W. H. Sheldon em ““The Ab-
lógica quantificacional, ver F. solute Truth of Hedonism”º, The
Journal of Philosophy, XLVIL,
HEDONISMO Hedonismo é o no- 1950, pp. 285-304. Segundo Sheldon,
me que se dá à tendência, na filoso- “o hedonismo ético é o imperativo
fia moral, que identifica o bem com categórico”.
o prazer. O vocábulo ““hedonismo” Houve muitas discussões sobre o
tem tido tantos sentidos quanto o significado, formas, suposições e ra-
termo ““prazer”. zões do hedonismo. Os hedonistas
Se prescindirmos das consideráveis antigos, especialmente os cirenaicos,
diferenças entre os diversos pensado- consideravam que o bem é o prazer
res hedonistas ou as diversas escolas e o mal é a dor. O homem ““deve”
hedonistas, consideraremos que uma dedicar-se a buscar o primeiro e a
moral hedonista foi defendida pelos evitar o segundo. Até que ponto evi-
cirenaicos e os epicuristas antigos, tar a dor seria uma forma de prazer
pelos epicuristas modernos ou neo- tem sido uma questão muito discu-
epicuristas (Gassendi, Valla, etc.), os tida. No tocante ao prazer, os cire-
materialistas do século XVIII, em es- naicos pareciam sublinhar o prazer
pecial os materialistas franceses (Hel- dos sentidos ou ““prazer material”,
vétius, Holbach, La Mettrie, etc.) e nem sempre contra o ““prazer espi-
os utilitaristas ingleses (pelo menos, ritual”, mas como fundamento in-
J. Bentham). De um modo geral, dispensável deste último. Como es-
Spinoza e Hobbes são incluídos en- se “prazer sensível” é algo presen-
tre os hedonistas, mas alguns histo- te, houve a propensão para conside-
riadores divergem dessa opinião. rar que só o prazer atual é um bem
O hedonismo teve muitos inim!- verdadeiro. Contra os cirenaicos ar-
gos, por motivos os mais diversos: gúlu-se que os prazeres podem pro-
Platão, numerosos filósofos cristãos duzir dores. Respondeu-se a isso que
— sobretudo os de tendência ascét!- o “dever” de todo hedonista é bus-
ca —, Kant e outros pensadores fo- car prazeres (ou melhor, a satisfação
HEDONISMO 330
dos desejos) de tal forma que se evi- hedonismo como uma das morais
tem dores subseqiientes. Também se “materiais”; nenhuma dessas morais
argumentou contra os cirenaicos que é capaz de proporcionar completa se-
a doutrina hedonista é egoísta e que gurança sobre os conceitos morais
o prazer de um pode resultar na dor fundamentais, como o faz uma mo-
de outro. Por isso os cirenaicos ral “formal””. Também se criticou o
apontaram para uma doutrina não hedonismo do ponto de vista da cha-
egoísta dos prazeres, mas não pare- mada ““moral dos valores”; nesta
ce que a tenham desenvolvido de for- moral, o hedonismo nem sempre é
ma consequente. Quanto aos epicu- eliminado, mas o prazer é um valor
ristas, destacaram eles a importân- de natureza inferior, que pode, e de-
cia dos “prazeres moderados”, os ve, subordinar-se a outros valores.
únicos que permitem evitar as dores, Uma crítica parecida é formulada
assim como a importância de certa por aqueles que distinguem entre a
“participação nos prazeres” através faculdade inferior do desejo (appe-
de uma comunidade de amigos. Nos titus sensitivus) e a faculdade supe-
epicuristas, os prazeres aparecem co- rior do desejo (appetitus rationalis).
mo de natureza menos ““sensível” Alguns hedonistas, sobretudo os de
que nos cirenaicos; assim, para os tendência epicurista, poderiam ar-
epicuristas, a conversação amistosa guir a essa objeção que, para eles, o
era um dos prazeres que se podia desejo do prazer como bem supremo
buscar sem incorrer-se em dor. é “uma faculdade superior (racio-
Um argumento muito comum nal)” do desejo. Um tipo distinto de
contra o hedonismo é que, na ver- crítica é o de G. E. Moore (Princi-
dade, não se deseja o prazer mas o pia Ethica, LI, III), quando indica que
objeto que proporciona o prazer. o hedonismo é uma forma de natu-
Mas pode-se argumentar a este res- ralismo e comete a “falácia natura-
peito que, se se busca tal objeto (com lista”. O hedonista afirma que só o
atitude hedonista) é porque ele pro- prazer é bom como um fim ou em
porciona prazer — ou espera-se que si mesmo. Com isso esquece que
o proporcione. O prazer como bem “bom” é o nome de uma qualidade
dos hedonistas é, pois, o objeto en- Irredutível. Por outro lado, os hedo-
quanto gozado, não o objeto em si nistas que afirmam (como Sidgwick)
mesmo. Quando os hedonistas dizem que o bem por eles proposto é uma
que o maior bem é o prazer, não que- qualidade irredutível falham em
rem necessariamente dizer que há mostrar intuitivamente tal qualidade.
certo “objeto” passível de ser iden- As objeções ao hedonismo como
tificado com o prazer. manifestação de egoísmo foram ob-
Outras críticas ao hedonismo fo- Jeto de análises por parte de hedo-
ram formuladas desde o ponto de nistas de tendência utilitarista, como
vista de uma moral muito diversa. Bentham, J. S. Mill e Spencer. Para
Assim, por exemplo, Kant critica o Bentham, os prazeres diferem segun-
331 HERMENÊUTICA
Er” e l.
£
que importa é a análise da historici- ria com a qual não esteja de acordo.
dade como constitutivum do real. É A distinção proposta por Popper en-
compreensível que, assim como (1) tre “historicismo” e “historismo”
e (2) se misturam frequentemente, contribui, segundo Carr, para a con-
haja assíduos intercâmbios entre (1) fusão.
e (2) e entre (a) e (b). De qualquer
forma, é frequente que (1) se corre- HISTORIOGRAFIA Entende-se o
lacione com (a) e (2), com (b). Um termo ““história”* em dois sentidos:
problema capital, e possivelmente o (1) “história” como o que aconteceu
mais debatido, é o que se apresenta e, inclusive, está acontecendo aos ho-
no historicismo epistemológico mens, como o objeto de estudo his-
quando se discute a questão de se o
historicismo não estará forçosamente
tórico; (2) “história”* como o estu-
do histórico, o estudo do passado.
condenado ao relativismo. Muitos Em alemão, tem-se usado com Íre-
autores inclinam-se para a afirmati1- quência Geschichte para ambos os
va; outros, como Troeltsch e Man- sentidos, mas às vezes foi sugerida
nheim, sustentam, pelo contrário, uma diferenciação entre Geschichte
que o historicismo lealmente admi- e Historie, correspondentes a (1) ea
tido é o único modo de evitar o rela- (2), respectivamente, de modo que a
tivismo, porquanto os pontos de vis- ambigúidade do termo ““história”
ta só são efetivamente parciais quan- desaparece com o uso destes dois no-
do segmentamos o fluxo contínuo. mes.
Um dos autores que mais insisten- Para distinguir entre “história” no
temente tem combatido o historicis- sentido 1 e “história” no sentido 2
mo é K. R. Popper. Entretanto, nem foram propostas várias soluções.
sempre fica muito claro o que Pop- Uma delas consiste em remeter para
per entende por ““historicismo””. o contexto no qual a palavra foi usa-
Com freqiiência, designa (e acusa) da. Em muitos casos não há ambi-
como historicistas os autores que guidade; são exemplos: “A história
acreditam haver na história leis — as da Irlanda é dominada pela influên-
chamadas. ““leis de desenvolvimento cia do catolicismo”. “A história é
histórico”* — semelhantes em rigor determinada pela luta de classes”
e universalidade às leis físicas ou na- (sentido 1); “Uma história um pou-
turais. Outras vezes, designa como co detalhada do poder da Máfia ocu-
historicistas Os autores para quem a paria muito espaço”, “A história re-
história é completamente distinta da quer muita atenção ao detalhe” (sen-
ciência (natural). É plausível, pois, —
tido 2). Em outros casos pode haver
concordar com Edward Hallett Carr ambiguidade: “Quanto mais se estu-
quando assinala que Popper esva- da a história de Madagascar, tanto
ziou o termo ““historicismo”** de to- mais fácil é dar-se conta de que é de-
do significado ao usá-lo para desig- terminada por sua posição insular”.
nar qualquer opinião sobre a histó- A posição insular de Madasgascar po-
HOMO MENSURA 338
kert, Cohen e outros). Uma das mais lismo perdeu a grande força que pos-
importantes diferenças entre os dois suía durante grande parte da época
tipos de idealismo foi assinalada por moderna e na filosofia contemporãâ-
Theodor Celms ao indicar que, en- nea entre aproximadamente 1870 e
quanto no idealismo fenomenológi!- 1914, não se pode dizer que tenha de-
co ““a consciência pura apresenta-se... saparecido por completo. E isso não
como uma multidão de sujeitos in- só porque ainda há autores influen-
dividuais puros (mônadas)”, no idea- tes que pertencem, de algum modo,
lismo transcendental só existe “uma à tradição idealista (Cassirer, Colling-
consciência pura, única e numerica- wood, etc.), mas também, e sobre-
mente distinta”. Por outro lado, fala- tudo, porque inclusive no seio de cor-
se (nem sempre justificadamente) de rentes não-idealistas surgem, de vez
idealismo em autores como Ernst em quando, problemas que não po-
Mach, sobretudo na medida em que dem ser devidamente tratados sem se
defenderam um ““percepcionismo”*”* levar em conta certos modos de for-
puro e um ““neutralismo”** ontológi- mulá-los e de entendê-los caracteriís-
co. Muitos marxistas, em todo caso ticos dos filósofos idealistas. Assim
(por exemplo, Lênin), atacaram Mach ocorre com o problema da função da
(e Avenarius, entre outros autores) consciência (ou do ““sujeito”*) no co-
como ““idealistas”*; além disso, fala- nhecimento, inclusive se se admite que
ram (em relação a Deborin) de um há, primordialmente, algo a conhe-
“idealismo menchevizante”, expres- cer. Se a consciência ou o sujeito não
são que só tem sentido no quadro do se limitam a refletir o real, há um mo-
desenvolvimento da filosofia soviética. mento de ““constituição deste que pa-
Em virtude do crescente predomínio rece inevitável. Por outro lado, não
de correntes realistas de todas as clas- se pode dar simplesmente por certo
ses na filosofia contemporânea, houve que há o real e que o real é como é
quem opinasse que o idealismo ““se e como se apresenta.
extinguira”'. Alguns autores, como No tocante à classificação das cor-
G. E. Moore, intentaram refutar o rentes ou formas do idealismo, limi-
idealismo por meio do senso comum. tamo-nos a apontar alguns modos de
Outros, como Nicolai Hartmann, Ur- ordenar essas correntes ou formas.
ban, etc., propuseram-se “superar” Em primeiro lugar, pode-se falar
tanto o idealismo quanto o realismo. de idealismo gnosiológico (ou basi-
Essa “superação de idealismo e rea- camente gnosiológico) e de idealismo
lismo”* também se verifica, pelo me- metafísico (ou basicamente metafí-
nos em intenção, na obra de pensa- sico). O idealismo gnosiológico resulta
dores como Ortega y Gasset e Hei- de um exame das condições do co-
degger. Poderiam ser mencionadas nhecimento e não pressupõe nenhu-
muitas outras críticas do idealismo ma tese sobre a estrutura da realida-
(por exemplo, Ottaviano). Contudo, de. Já o idealismo metafísico resul-
embora seja indubitável que o idea- ta de uma suposição acerca da estru-
349 IDÉIA
ligíveis. Uma idéia é sempre uma uni- parado do múltiplo, enquanto, pa-
dade de algo que se apresenta como ra Aristóteles, é algo unido ao muúul-
múltiplo. Por isso, a idéia não é tiplo, xaTt& Tv tohNwr. Em outros
apreensível sensivelmente, só sendo termos, Aristóteles nega que as idéias
“visível” inteligivelmente. As idéias existam num mundo inteligível sepa-
“vêem-se” com o ““olhar interior”. rado das coisas sensíveis; as idéias são
Uma vez admitidas as idéias, cum- “imanentes” às coisas sensíveis. De
pre saber de que coisas pode haver. outro modo não se entenderia como
Em princípio, parece que pode ha- as idéias podem ““atuar” e, de pas-
ver idéias de qualquer coisa. Mas é sagem, explicar a realidade sensível.
duvidoso que haja idéias de “coisas A doutrina platônica das idéias
vis” ou de ““coisas insignificantes”. constitui a base de uma doutrina mui-
Por isso, Platão tende cada vez mais to difundida no final do mundo an-
a reduzir as idéias a idéias de obje- tigo: a doutrina segundo a qual as
tos matemáticos e de certas qualida- idéias são modelos existentes no seio
des que hoje em dia consideramos va- de Deus. Segundo Fílon de Alexan-
lores (a bondade, a beleza, etc.). Além dria, um dos principais promotores
disso, tende a ordenar as idéias hie- de tal doutrina, as idélas — ou
rarquicamente. Uma idéia é tanto “idélas-potências”, como as chama
mais “idéia” quanto mais exprima — são modelos imanentes no Logos
a unidade de algo que aparece como divino que servem de intermediários
múltiplo. Mas se essa unidade é uma entre Deus como Criador e sua cria-
realidade “em st”, coloca-sé a questão ção. O mundo foi criado de acordo
de que tipo de relação existe entre o com as “idéias exemplares”. Estas
uno (ideal) e o múltiplo. É nesse ponto formam um “mundo inteligível” de
que se manifesta a divergência clás- “razões seminais” (conceito que Fí-
sica de opiniões entre Platão e Aris- lon foi buscar nos estóicos). Isso não
tóteles. Este último autor escreve que significa que Deus seja simplesmen-
“não cabe admitir a existência de te um demiurgo no estilo platônico,
idéias, ou do Uno Junto [justapos- ainda que, com a doutrina de refe-
to, exterior] ao Múltiplo” (Segundos rência, sempre se apresente o proble-
analíticos, A, 11,77 a 5 ss.). O que ma de se Deus é ou não completa-
sucede, na realidade, é que “o Uno mente transcendente em relação às
está unido [é imanente] ao Múltiplo” “idéias exemplares”.
(Metafísica, À 9, 990 b 13; cf. tam- Esse problema está relacionado com
bém Metafísica, A 6, 987 b 8). A di- as consequências derivadas de
ferença entre Platão e Aristóteles, a sublinhar-se o caráter absolutamen-
esse respeito, costuma expressar-se te simples de Deus. Os neoplatôni-
com os mesmos termos usados pelo cos tinham reservado a pluralidade
Estagirita. Para Platão, o Uno (ou de idéias para a segunda hipóstase,
seja, a “unidade do múltiplo” antes uma vez que no Uno não podia ha-
referida) é rapa Ta ToNha, algo se- ver pluralidade nenhuma. Santo Agos-
351 IDÉIA
a sua doutrina das idéias, [tal como tratou de averiguar se tais idéias de-
expusera no Livro I do Treatise] ao terminam, segundo princípios, como
indicar que as “percepções do espí- deve empregar-se o entendimento
rito” podem dividir-se em duas ca- quando se refere à totalidade da ex-
tegorias, segundo o seu maior ou me- periência (pois nenhum objeto que
nor grau de força ou de vivacidade: seja congruente ou compatível com
as que possuem menor força e viva- uma idéia pode ser dado aos senti-
cidade são chamadas ““pensamentos dos). O número de idéias ou concei-
ou idéias”. As outras percepções po- tos puros da razão é, segundo Kant,
dem chamar-se impressões. Hume idêntico ao número de classes de re-
observa que, embora as idéias com- lações que o entendimento se repre-
plexas não sejam necessariamente senta mediante as categorias. Como
derivadas de impressões complexas nos conceitos de razão procuramos
(assim, a idéia de uma sereia não é sempre o incondicionado, temos o
derivada da impressão de uma se- incondicionado da síntese categóri-
rela), as idéias simples, por seu la- ca num sujeito, da síntese hipotéti-
do, derivam sempre de impressões ca nos membros de uma série e da
simples e representam-nas exatamen- síntese disjuntiva das partes num
te (Treatise, L, 1, 1). Em outras pala- sistema. A primeira classe de idéias
vras, “todas as nossas idéias ou per- transcendentais contém a unidade
cepções mais fracas são cópias de absoluta (ou incondicionada) do su-
nossas impressões ou percepções jeito pensante (objeto da psycholo-
mais nítidas” (Enquiry, sec. II). As gia rationalis); a segunda, a unida-
idéias podem ser separadas e unidas de absoluta da série de condições da
mediante a imaginação, mas esta é aparência (objeto da cosmologia ra-
guiada por ““certos princípios univer- tionalis); a terceira, a unidade abso-
sais” (Treatise, 1, 1, 4). As idéias luta da condição de todos os obje-
combinam-se mediante os princípios tos do pensamento em geral (objeto
da associação de idéias. da theologia rationalis) (K. r. V., À
Kant considerou que o uso do ter- 334, B 391). Essa classificação das
mo ““idéias” pelos empiristas (em idéias é analítica, começando com o
suas teorias do conhecimento) e pe- que é imediatamente dado à expe-
los racionalistas (em suas especula- riência e passando, pois, da doutri-
ções metafísicas) era claramente abu- na da alma à doutrina do mundo e,
sivo. Quando o conceito se forma finalmente, à doutrina de Deus. Do
com base em noções e transcende a ponto de vista sintético, as idéias, co-
possibilidade da experiência, temos mo objeto da metafísica, são Deus,
uma idéia (Idee) ou conceito de ra- liberdade e imortalidade (B 395 no-
zão (Vernunftbegriff) (K. r. V., À ta). Do seu exame (e, em particular,
320, B 377). do exame dos paralogismos e anti-
Os conceitos puros da razão cha- nomias da razão pura), conclui Kant
mam -se idéias transcendentais. Kant que as idéias transcendentais supe-
355 IDÉIA
tadamente disse Spir, um sentido sin- essa noção se apresenta em várias for-
tético”. É analítico — prossegue Me- mas: é “uma unidade de ser, unida-
yerson — ““quando expressa simples- de de uma multiplicidade de seres ou
mente o resultado de uma análise do unidade de um só ser tratado como
conceito; e sintético, pelo contrário, múltiplo, como quando se diz, por
quando é entendido como uma afir- exemplo, que uma coisa é idêntica a
mação relativa à natureza dos obje- si mesma”. Aristóteles também falou
tos reais. Mas essa relação entre o da identidade do ponto de vista da
princípio da razão determinante e o igualdade (matemática).
de identidade já era perfeitamente Os escolásticos consideraram vá-
clara para Leibniz, como pode com- rios tipos de identidade (identitas).
provar-se pela exposição de Coutou- Cabe falar de identidade real, racio-
rat e como, aliás, indica a maneira nal ou formal, numérica, específica,
pela qual o próprio Leibniz estabe- genérica, extrínseca, causal, primá-
lece um paralelo entre os dois prin- ria, secundária, etc. A distinção mais
cípios na aludida passagem” (Iden- geralmente aceita é a já indicada, de
tité et Réalité, 1908). identidade lógica e identidade onto-
As reflexões de Meyerson sobre a lógica (ou metafísica). Os autores ra-
noção de identidade encontram apoio cionalistas foram propensos a con-
nos autores que adotaram como mo- siderar ambas em conjunto. Isso não
delo a equiparação da idéia de iden- quer dizer que esses autores tenham
tidade lógica à idéia de identidade me- “identificado”* por completo essas
tafísica ou ontológica. Isso parece ter duas formas de identidade, ou te-
ocorrido com Parmênides — a cuja nham derivado a identidade ontoló-
imagem ou idéia da “esfera”* Meyer- gica da lógica ou esta última daque-
son recorre repetidas vezes — ou com la. Quer apenas dizer que se inclina-
alguns dos últimos diálogos (dialéti- ram a pensar que a noção ontológi-
cos) de Platão, nos quais se faz sentir ca ou metafísica de identidade tem
a influência de Parmênides. Não uma forma lógica, e que o princípio
OCOITe, OU OCOITre Menos, com outros lógico de identidade tem um alcance
autores, que distinguem entre identi1- ontológico ou metafísico. Um exem-
dade lógica e identidade metafísica, plo disso é Leibniz, mas, afirman-
ou que falam de diversas noções de do-o, estamos dizendo muito pouco
identidade. acerca das importantes análises des-
Aristóteles não dedicou muita aten- se pensador a respeito da noção de
ção à questão da identidade; nem nos identidade. Algumas dessas análises
seus escritos lógicos, nem na Metafi- tiveram grande repercussão em sub-
sica, encontramos uma análise da sequentes trabalhos lógicos, sobretu-
identidade tão minuciosa quanto a do a partir de Frege. A tal respeito,
análise do princípio de não-contra- destaca-se o princípio leibniziano da
dição. Quando tratou de definir a identidade dos indiscerníveis.
identidade, Aristóteles observou que A noção de identidade metafísica
IDENTIDADE 358
foi criticada por Hume. Sua crítica dida em que é a atividade do sujeito
é a mesma por ele formulada a res- transcendental que permite, por meio
peito da noção de substância. Isso se dos processos de síntese, identificar
verifica principalmente quando Hu- diversas representações (num conceil-
me critica os que pretendem que há to). O problema da identidade pare-
um eu (self) substancial idêntico a si ce insolúvel (ou sua solução, arbitrá-
mesmo, ou idêntico através de todas ria) quando pretendemos identificar
as suas man!ifestações. No Treatise
(IV, v), Hume alegou que a idéia des-
a
coisas em si. Por outro lado, solu-
ção é insatisfatória como quando, se-
sa suposta identidade não deriva de
nenhuma “impressão” sensível. Pe-
a
guindo Hume, baseamos identida-
de na relativa persistência das impres-
netrar no recinto do suposto ““eu” sões. Em contrapartida, a identida-
equivale a encontrar-se sempre com de mostra-se assegurada quando não
alguma percepção particular; os cha- é empírica nem metafísica, mas trans-
mados ““eus” nada mais são do que cendental. Ainda mais: só a noção
feixes (bundles) ou coleções de dife- transcendental da identidade torna
rentes impressões. Para ““sustentar” possível, segundo Kant, um concei-
a persistência das percepções imagi- to de identidade. Isso se aplica não
na-se uma alma, eu ou substância apenas às representações externas,
subjacente a elas; supõe-se, além dis- mas também à questão da ““identi-
so, haver, num agregado de partes dade numérica” da consciência de
em relação mútua, “algo” misterio- mim mesmo em diferentes momentos
so que relaciona as partes indepen- (K. r. V., A 361 e ss.). Não há um
dentemente de tal relação. Mas co- substrato metafísico da identidade
mo, segundo Hume, tais frutos da pessoal que possa ser demonstrado
imaginação ou suposições carecem pela razão. Mas a identidade pessoal
de base, devemos repelir a idéia de aparece na razão prática como uma
que existe uma identidade metafís!- forma de postulado — se a imortali-
ca na noção de substância. Hume dade é um postulado da razão práti-
considerou que o problema da iden- ca, deve implicar a identidade pessoal
do ser imortal.
tidade pessoal (e, por extensão, o
problema de qualquer identidade Os idealistas pós-kantianos fize-
substancial) é insolúvel e contentou- ram da identidade um conceito cen-
se com a relativa persistência de fei- tral metafísico. Assim ocorreu espe-
xes de impressões nas relações de se- cialmente em Schelling, um de cujos
melhança, contiguúidade e causalida- sistemas se baseia na identidade de
de das 1déilas. sujeito e objeto. A identidade é, nes-
Kant aceitou as consequências da te caso, não só um conceito lógico,
crítica de Hume contra a concepção nem apenas o resultado de represen-
racionalista da identidade, mas não tações empíricas unificadas por meio
a solução de Hume. A identidade tor- da consciência da persistência, mas
na-se transcendental em Kant, na me- um princípio que se apresenta logi-
359 IDENTIDADE
camente como vazio, ainda que, me- titãt und Differenz, 1957, pp. 15-34)
tafisicamente, seja a condição de to- indica que a fórmula A=A refere-
do “desenvolvimento” ou ““desdo- se a uma igualdade (Gleichkeit), mas
bramento”* subseqiiente. Hegel dis- não diz que A é como ““o mesmo”
tingue entre a identidade puramente (dasselbe). A identidade pressupõe
formal do entendimento e a identi- que a entidade considerada é igual a
dade rica e concreta da razão. Quan- si mesma ou, como dizia Platão,
do o Absoluto é definido como ““o avTô 6º éauTO TAUTOV, QUE É O MES-
idêntico a si mesmo”', parece não se mo com respeito a si mesmo. Na
dizer nada sobre o Absoluto. Mas a identidade propriamente dita há a
“Identidade concreta” do Absoluto idéia da “unidade consigo mesma”
não é uma identidade vazia. Em re- da coisa — idéia essa já perceptível
sumo, a identidade não expressa (ou, nos gregos, mas desenvolvida somen-
para ser mais exato, não expressa so- te com Leibniz, Kant e, sobretudo,
mente) em Hegel uma relação vazia com os idealistas alemães: Fichte,
e abstrata, tampouco uma relação Schelling e Hegel. A partir deles, já
concreta e carente de razão, mas um não podemos representar a identida-
conceito universal, uma verdade ple- de como mera unicidade (Einerlei).
na e “superior” que absorveu todas A unicidade é puramente abstrata e
as identidades anteriores. A rigor, a nada nos diz sobre o ““ser em si mes-
própria forma do princípio de iden- mo com”, a que o princípio de iden-
tidade já indica, segundo Hegel, que tidade se refere metafisicamente. Co-
há nele mais do que uma identidade mo lei do pensar, o citado princípio
simples e abstrata; há o puro movi- só é válido “enquanto é uma lei do
mento da reflexão (reine Bewegung ser que enuncia: a todo o ente como
der Reflexion) em que ““o outro” tal pertence a identidade, a unidade
surge como ““aparência””. consigo mesma” (die Einheit mit ihm
Na filosofia contemporânea, o selbst).
problema da identidade foi examina- Trataremos agora da noção de
do de modos muito diversos. Uma identidade na lógica.
questão muito debatida foi a da O chamado ““princípio de identi-
“identidade pessoal”. Outra questão
discutida foi a da identificação de
dade” é apresentado como uma
da lógica sentencial, ou da lógica
lei
“objetos”, a qual pode ser — como proposicional, e, portanto, como
assinalou Quine — identificação de uma tautologia. Eis duas leis de iden-
objetos concretos (por exemplo, um tidade na citada lógica:
rio), no decorrer da qual se usam ter-
mos singulares, ou identificação de DP
objetos abstratos (por exemplo, um que se lê:
quadrado) no decorrer da qual se
empregam termos gerais. Heidegger
se p, então p,
(““Der Satz der Identitãt”* em Iden- e
IDENTIDADE 360
zes, a de que não há corpo sem al- to. A objeção contra esse argumen-
ma. De fato, Platão representa uma to — de que pode haver vida, morte
purificação de vários motivos prece- engendrada pela vida e, depois, con-
dentes e, como E. R. Dodds sugeriu, tinuação dessa morte — é contesta-
uma ““racionalização do conglome- da por Platão, indicando que, se as-
rado herdado”. Isso levou-o a defen- sim fosse, deter-se-la o movimento
der uma série de idéias, das quais da Natureza, pois a geração não po-
mencionaremos as principais: de seguir unicamente “uma linha
(1) O corpo é um obstáculo para reta”,
a alma. A alma está destinada a vi- O segundo argumento (72 E, 77 C)
ver num mundo puro, livre de toda consiste na chamada reminiscência.
mácula, mundo que pode ser com- É a afirmação de que, como possuí-
parado — caso não seja o mesmo — mos certos conhecimentos que não
ao das 1déias. podem proceder da percepção senso-
(II) O filósofo — e, em geral, to- rial (é o caso do conhecimento da
do homem — deve aspirar, pois, a igualdade de duas coisas — que não
libertar sua alma do cárcere do cor- pode ser extraído da experiência, vis-
po. Como 1sso ocorre no instante da to que nunca há duas coisas sensíveis
morte, esta pode constituir o mo- rigorosamente iguais — e, em geral,
mento mais feliz da vida e o que pos- do conhecimento das idélas), é neces-
sibilita que a vida seja “uma medi- sário reconhecer que eles procedem
tação acerca da morte”. Entretanto, da recordação que a alma tem de
essa morte não deve ser voluntária, uma vida em que não estava encer-
porque o homem não possui sua pró- rada no corpo. Mas se a alma tem
pria vida, a qual é um bem concedi- essa constituição, a alma é pura for-
do pelos deuses e que só eles podem ma, ou seja, uma entidade imortal.
arrebatar. O terceiro argumento (78 B, 84 B)
(III) Essas idéias podem ser de- é o da simplicidade. Afirma que to-
monstradas por meio da razão. Este das as coisas simples existem para
último ponto é de importância capi- sempre, já que somente as coisas
tal. É com base nele que se formu- compostas se dissolvem e perecem.
lam os famosos quatro argumentos Como a alma é uma coisa simples,
do Fáidon, que em seguida recapi!- deve existir para ser e ser imortal. Es-
tulamos. se argumento permite a Platão sus-
O primeiro argumento (70 C, 72 tentar a doutrina da purificação e
E) é o chamado dos opostos. Con- transmigração das almas até recupe-
siste em afirmar que todas as coisas rarem sua pureza e simplicidade ori-
que têm opostos são engendradas ginais.
desses opostos. São exemplos: o bem O quarto argumento (102 A, 107
e o mal, o justo e o injusto. Pois B) é o da concepção das idéias co-
bem, sendo a vida o oposto da mor- mo causas verdadeiras. Consiste em
te, tem de ser engendrada desse opos- afirmar que, como há coisas boas
IMPERATIVO 368
ta, segundo Kant, é negativa. Pois se rico puro, “teremos que construí-lo
a máxima em questão se convertes- a priori ou, pelo menos, estilizar a
se em lei universal anular-se-ia a si experiência”. Com efeito, a fórmu-
mesma, uma vez que não haveria de- la “é necessário porque é necessário”
pósitos. pode ser imaginada como forjada
Formularam-se várias objeções à num instante em que a inteligência
doutrina kantiana do imperativo ca- expressa a inevitabilidade de uma
tegórico. ação prescrita pelo instinto. Por is-
Baselam-se, umas, no fato de que so, “um imperativo absolutamente
o imperativo categórico padece de in- categórico é de natureza instintiva ou
consistências. Exemplo disso é o ar- sonambúlica: ou é experimentado
gumento de Brentano numa nota como tal em estado normal, ou é
[15] de sua obra A Origem do Co- imaginado assim, quando a reflexão
nhecimento Moral. A clareza com desperta por um momento, o tempo
que esse filósofo o expressou mere- indispensável para formulá-lo, mas
ce que reproduzamos o parágrafo não para buscar-lhe razões” (As
pertinente: “Se, em consequência da Duas Fontes...).
lei, certas ações são omitidas, a lei Outros destacam que do impera-
produz um efeito e, portanto, é real tivo categórico não podem deduzir-
e de nenhum modo fica anulada. Ve- se conseqgiiências éticas. Como indiÓ-
Jam como seria ridículo tratar de um ca Brentano na obra antes citada, J.
modo semelhante a seguinte pergun- S. Mill já formulara essa objeção.
ta: “devo aceder a quem intente su- Mas ela encontra-se em todos os au-
bornar-me?', e respondesse: “sim, tores que criticaram o formalismo
porque se pensasses a máxima oposta ético kantiano. Os que levam essa
elevada a lei universal da Natureza, objeção às suas últimas consequên-
não haveria ninguém que tentasse su- cias indicam que não pode haver ne-
bornar ninguém e, por conseguinte, nhum princípio ético normativo de
ficaria a lei sem aplicação e, portan- caráter universal. Tais princípios, ar-
to, anulada por si mesma' (A Ori- gumentam eles, são completamente
”**
segundo essas objeções, a conse- lismo kantiano, sem por isso abando-
quência da universalização de tal ri- nar o “apriorismo””. Um caminho
gorismo ético. Essa objeção formu- semelhante foi seguido por Nicolai
la-se, por sua vez, a partir de distin- Hartmann.
tos pontos de vista. Uns são pontos Uma reformulação do imperativo
de vista sociológicos (o imperativo kantiano, consistindo em dar uma
categórico é a chave de uma ética do interpretação menos rígida do mes-
homem burguês). Outros são pontos mo que a habitual, foi proposta por
de vista teológicos (o imperativo ca- H. J. Paton, ao assinalar que “Kant
tegórico é o ponto culminante de um não trata de propor uma teoria es-
ética puramente autônoma, que atri- peculativa sobre a maneira como um
bui ao homem a possibilidade de fa- imperativo categórico pode produzir
zer O bem sem uma graça divina). efeitos no mundo fenomênico*' (op.
Outros mais são pontos de vista cit., cap. XIX, 5). Não se trata, pois,
psicológico-filosóficos (o imperativo de explicar como a razão pura pode
categórico faz depender a ética ex- ser prática. Analogamente ao que
clusivamente da vontade, sem aten- ocorre na Crítica da Razão Prática
der a outras possibilidades de percep- e na Fundamentação da Metafísica
ção dos valores éticos). Outros, por dos Costumes, a questão apresenta-
fim, são pontos de vista filosóficos da por Kant é uma questão de vali-
(o imperativo categórico é um impe- dade de certas proposições; nem os
rativo da razão que pode ser contrá- problemas psicológicos, nem as con-
rio aos imperativos da vida). Em to- sequências práticas, teriam, então,
dos esses casos, critica-se o impera- nada a ver em princípio com a for-
tivo categórico kantiano por sua ri- mulação de imperativos. É duvido-
gidez e sua ausência de pressupostos, so, porém, que, pelo menos no que
pelo que esse tipo de objeção coin- tange às consequências práticas, pos-
cide, por vezes, com a que destaca sa resolver-se o assunto duplicando
o excessivo formalismo do impera- o formalismo do imperativo com o
tivo. Sublinhemos que, dentro des- formalismo de sua interpretação.
se último gênero de objeções, pode Vários filósofos e lógicos ocupa-
incluir-se a explicação de um im- ram-se do que se chamou ““a lógica
perativo categórico puro dada por dos imperativos”, ou seja, a lógica
Bergson. que se ocupa das inferências que pos-
As respostas a essas objeções obri- sam ser feitas a partir de expressões
gam ou a refundamentar a ética, ou imperativas como “faz X” ou “obe-
a reformular o imperativo categóri- decer a Y"'. Alguns autores negaram
co kantiano, ou ambas as coisas ao a possibilidade de inferências impe-
mesmo tempo. Assim, Scheler, se- rativas propriamente ditas, mas ou-
guindo em parte Brentano, desenvol- tros (por exemplo, Héctor-Neri Cas-
veu uma “ética material dos valores” tafieda) afirmaram a possibilidade de
que, em seu entender, foge ao forma- tais inferências. Castafieda elaborou
IMPERATIVO 374
ser exatamente duplicado num lugar divisível. Foi dito que o indivíduo é
a Igual distância, no lado oposto do algo indiviso mas não necessaria-
centro da simetria; nesse caso, have- mente indivisível. Entretanto, logo
ria objetos numericamente distintos, que se divide um indivíduo, ele de-
embora indiscerníveis. Ainda outros,
enfim, argumentam que, em seme-
saparece como tal indivíduo. É ra-
zoável, pois, admitir a indivisibilida-
lhante universo, seria possível a in- de (em princípio) do indivíduo.
discernibilidade de dois objetos nu- Segundo R. Eucken (Geschichte
mericamente distintos somente por- der philosophischen Terminologie
que se introduz um ponto de obser- [1879, reimp. 1960], p. 52), Cicero
vação em relação ao qual as duas empregou os termos individuus e di-
metades do universo estão situadas viduus. Mas parece não lhes ter da-
em dois lugares diferentes. do um sentido filosófico técnico. Es-
O princípio dos indiscerníveis é se sentido aparece, no entanto, em
assim formulado: outros autores.
Em De providentia, 5, Sêneca de-
A F(Fx = Fy)—(X=)Y) fine os indivíduos como entidades
Pode-se ver que duas entidades, x nas quais nada pode se separar sem
e y, são idênticas se têm as mesmas que elas deixem de ser tais: quaedam
propriedades (F). Nessa fórmula, separari o quibusdam non possunt,
quantifica-se o predicado, o que é coharent individuae sunt. O sentido
necessário para expressar a indiscer- de “indivíduo” é, aqui, o de qual-
nibilidade das entidades. Se as pro- quer entidade indivisa e indivisível.
priedades se entendem em extensão, O indivíduo não é necessariamente
o princípio é interpretado como ex- um ser singular e isolado, diferente
pressão da pertinência das entidades dos demais, isto é, um ser que existe
às mesmas classes. uma única vez. Em contrapartida,
A fórmula: Porfírio dá na Introdução (Isagoge)
uma definição de indivíduo como en-
AXY(X=Y—-(Fy=Fy)) tidade singular e irrepetível. Segun-
é só aproximada em relação ao prin- do Porfírio, os indivíduos (&rona)
cípio da identidade dos indiscerni- são entidades tais como Sócrates, es-
veis. Expressa a chamada ““lei de te homem, esta coisa, entidades que
substituibilidade da identidade”, se- possuem atributos que só são ditos
gundo a qual se duas entidades, x e de tal entidade determinada. Parece,
y, são idênticas, o que é verdadeiro pois, que os indivíduos, na acepção
para x, é verdadeiro para y. de Porfírio, rá &touna, são os “cada
coisa”, 1à xab' exaota. Entretanto,
INDIVÍDUO Como tradução do ter- ao passo que os indivíduos propria-
mo àrtounos, O vocábulo latino indi- mente ditos são entes completamen-
viduum (= “indivíduo”) designa al- te singulares, os indivíduos designa-
go simultaneamente in-diviso e in- dos pela expressão 1& xab* óxaoTAa
INDIVÍDUO 378
esse ajuste é que surge, segundo Good - da e, talvez, refutada. “Uma verda-
man, “o novo enigma da indução”. deira prova para uma teoria”, escre-
E comum, na época atual, tratar ve Popper em Conjectures and Re-
a questão da indução em estreita re- futations (1962, p. 36) “é o intento
lação com a questão da probabilida- de invalidá-la ou refutá-la. Como
de. Duas escolas se enfrentaram a es- Carnap foi o alvo preferido das crí-
se respeito. Segundo uma delas (re- ticas *antiindutivistas', aludiu-se com
presentada por von Mises e Reichen- frequência aos debates sobre o pa-
bach, entre outros), o problema da pel da indução na ciência como a
“controvérsia Carnap-Popper
7299
indução deve ser tratado do ponto de ..
“tradicional” do juízo, pelo que nos autores indicam que há também juí-
referiremos a ela em maior detalhe: zos singulares; um exemplo dos mes-
é a que distingue, no juízo, a quali- mos é “João é mortal”. A quanti-
dade (ver), a quantidade, a relação dade refere-se usualmente ao concei-
e a modalidade. to-sujeito.
Segundo a qualidade, os juízos Segundo a relação, os juízos di-
dividem-se em afirmativos e negati- videm-se em categóricos, hipotéticos
vos. Exemplo de juízo afirmativo é e disjuntivos. Exemplo de Juízo ca-
“João é bom”. Exemplo de juízo ne- tegórico é ““os suecos são fleumáti-
gativo é “João não é bom”. Segun- cos”. Exemplo do juízo hipotético é
do alguns autores, pode-se falar tam- “se se soltar uma pedra, ela cai no
bé, do ponto de vista da qualidade, chão”. Exemplo de juízo disjuntivo
de Juízos infinitos, igualmente cha- é “Homero escreveu a Odisséia ou
mados “indefinidos”, “ilimitados” não escreveu a Odisséia”. A relação
e “limitativos*””. Na “Lógica trans- refere-se à função secundária da có-
cendental”* da Crítica da Razão Pu- pula, ou seja, à função enunciativa.
ra, Kant distingue juízos infinitos Segundo a modalidade, os Juízos
(unendliche) (que se podem chamar, dividem-se em assertóricos, proble-
como assinalamos, ““ndefinidos”, máticos e apodícticos. Exemplo de
ou, ainda, “limitativos”, porquan- Juízo assertórico é “Antônio é um es-
to estabelecem limites “em relação tudante exemplar”*. Exemplo de jJuí-
com a matéria do conhecimento em zo problemático é ““os turcos são
geral”) e juízos afirmativos. O Juí- provavelmente bebedores de café”.
zo indefinido consiste em excluir um Exemplo de juízo apodíctico: ““os
sujeito da classe dos predicados a Juízos são necessariamente séries de
que o juízo se refere. Exemplo de conceitos formados de três elemen-
juízo indefinido é ““a alma é não- tos”. Discutiu-se muito acerca do
mortal””. Não obstante, muitos au- sentido da modalidade e sobre se es-
tores repelem os juízos indefinidos, ta é de caráter psicológico, lógico ou
pois consideram que, do ponto de ontológico. O sentido lógico tem si-
vista da forma, o juízo ““a alma é do correntemente o mais acentuado,
não-mortal”' é (como já reconhecia mas alguns autores pensam que a
Kant) um juízo afirmativo. A quali- modalidade lógica depende da onto-
dade do juízo refere-se à função pri- lógica.
mária da cópula: a função de refe- As combinações da qualidade com
rência. a quantidade nos juízos dão lugar a
Segundo a quantidade, os Juízos quatro categorias de juízos: univer-
dividem-se em universais e particu- sais afirmativos (A), universais ne-
lares. Exemplo de juízo universal é gativos (E), particulares afirmativos
“todos os homens são mortais”. (1) e particulares negativos (0). As re-
Exemplo de juízo particular é “al- lações entre essas categorias de juí-
guns homens são mortais”. Alguns zos são de quatro tipos: contrária,
JUÍZO (FACULDADE DO) 394
ter formal de ditas leis. Pode-se cha- tros. Segundo o outro princípio, de-
mar Isso de “concepção formal (ou ve haver uma distribuição de bens
positiva) da justiça”.
Tanto Hume como, sobretudo, os
econômicos
e sociais tal que toda de-
sigualdade resulte vantajosa para ca-
utilitaristas consideraram, embora da um, podendo, além disso, ter ca-
por razões distintas, que o justo é o da um acesso, sem obstáculos, a
que está em conformidade com o in- qualquer posição ou cargo (op. cit.,
teresse de todos os membros da so- p. 60).
cledade. A justiça é, pois, equipará- Depois de um exame minucioso do
vel à utilidade pública. Pode-se con- conteúdo desses princípios, Rawls
siderar isso como uma das versões da passa a formular um “enunciado f1-
“concepção material da justiça” — nal da justiça para as instituições”.
“material” no sentido de que se ba- De acordo com tal enunciado, o pri-
sela numa realidade concreta, que é meiro princípio estabelece que ““ca-
a utilidade de todos os cidadãos, ou da pessoa deve ter um direito igual
o maior bem possível para o maior ao sistema total mais extenso de l1-
número possível de indivíduos. berdades básicas iguais compatível
Se os utilitaristas sustentaram que com um sistema similar de liberda-
a Justiça resulta dos interesses públi- de para todos”'. O segundo princi-
cos, John Rawls (A Theory of Jus- pio estabelece: ““as desigualdades
tice, 1971), pelo contrário, afirmou. econômicas e sociais devem estar dis-
que, longe de ser a justiça o resulta- postas de tal modo que ambas (a) se-
do de interesses, por públicos que se- Jam para o maior benefício dos me-
jam, esses interesses são servidos so- nos favorecidos, consistente com o
mente pela justiça. Rawls fala prin- princípio das poupanças justas e (b)
cipalmente, se não exclusivamente, seencontrem agregadas a cargos e
de justiça distributiva, e examina posições abertos a todos em condi-
seus princípios partindo de uma ““po- ções de equitativa igualdade de opor-
sição original” ou estado inicial, por tunidade”, A primeira regra de prio-
meio do qual pode-se assegurar que ridade, que é a regra de liberdade,
os acordos básicos a que se chega estabelece que ““os princípios da jus-
num contrato social são justos e tiça têm que estar dispostos em or-
equitativos. A justiça é entendida co- dem léxica e, portanto, a liberdade
mo equidade (fairness) por ser equi- só pode ser restringida por amor à
tativa a posição original; de não o liberdade. Há dois casos: (a) uma li-
ser, produzir-se-lam injustiças. Na berdade mais ampla de que todos
“posição original”* adotam-se dois participam; (b) uma liberdade me-
princípios fundamentais: segundo o nor, que também deve ser aceitável
primeiro desses princípios, cumpre para os que tenham menos liberda-
assegurar para cada pessoa numa so- de”. A segunda regra de prioridade,
ciedade direitos iguais numa liberda- que é a prioridade da justiça sobre
de compatível com a liberdade de ou- a eficácia e o bem-estar, assevera que
JUSTIÇA 400
—
K A letra “K” é usada por Lukasie-"- por “ A”. “K” antepõe-se às fórmu-
wicz para representar o conetivo “e” las, demodo que “p A q” escreve-se,
ou conjunção, que nós simbolizamos na notação de Lukasiewicz, “Kpq””.
L
LEI A palavra nómos, usada
voupos, esta carece de justificação se não for
pelos gregos, e que se traduz por acompanhada da razão. A referida
“Tel”, tem várias significações: a de razão é considerada, por vezes, uma
“uso”, “costume”, “convenção”, “razão natural”.
“mandato”. Hoje, tende-se a distinguir entre o
Há, grosso modo, dois conceitos sentido não natural (jurídico, social,
de Lei: o da lei humana e o da lei na- moral, etc.) e o sentido natural de
tural. A lei natural é a que corres- “Jei”. Entretanto, como a expressão
ponde à physis. Embora a própria “lei natural” foi, e é, usada também
noção de physis (Natureza) tenha so- para designar a lei fundada na razão
frido mudanças que a fizeram pas- natural, de acordo com a tradição do
sar do reino natural para o humano jusnaturalismo, emprega-se “lei cien-
ou moral, de um modo geral distin- tífica” para mencionar as leis de que
guiu-se entre physis (Natureza) e no- tratam as ciências. A noção de lei
mos (lei); assim, os sofistas pergun- científica mais frequentemente elu-
tavam-se se algo era “por conven- cidada é a atinente às leis nas ciên-
ção”, vojuw, ou “por natureza”, vv- clas naturais, como a física ou a bio-
OEL. logia. Também cabe falar de leis cien-
Da lei enquanto social, humana e tíficas no caso das ciências sociais.
moral, indagou-se se o seu funda- Nem semprese distingue entre ““lei”
mento se encontra na vontade de e “princípio”* — fala-se, por exem-
Deus (seja “arbitrária”,seja “racio- plo, de “lei de inércia” e “princípio
nal”), na de um legislador, no con- de inércia”. Considerou-se, por ve-
senso de uma comunidade (seja ge- zes, que uma lei é uma formulação
ral, seja majoritário), ou nas exigên- de relações constantes observadas
cias de uma razão que se supõe eter- entre fenômenos. A chamada ““pas-
na e idêntica em todos os homens. sagem do fenômeno à lei” é, então,
Segundo se acentue a vontade ou a a passagem de regularidades obser-
razão na origem, no estabelecimen- vadas a uma fórmula que sintetiza
to e na fundamentação das leis, fala- essas regularidades e permite predi-
se de tendência voluntarista ou inte- zê-las no futuro. Essa concepção,
lectualista. Alguns autores negam que tem sua origem em Hume, re-
que a vontade ou a razão possam, quer o chamado “fundamento da in-
por si sós, desempenhar um papel dução”. Mas se o fundamento da in-
determinante ou decisivo e inclinam- dução é o postulado da uniformida-
se a considerar que, embora sem de- de da Natureza, pressupõe-se aqui-
cisão voluntária não possa haver lei, lo que se tratava justamente de de-
LIBERDADE 406
a esse respeito foram propostas nos próprio futuro”. Outros autores (co-
séculos XVI e XVII, abordando, por mo Hobbes, Locke e Voltaire) foram
exemplo, a questão de como Deus mais propensos a destacar o elemen-
move a vontade do homem: se de um to do “que quero” no ““ser livre”.
modo completo, de um modo indi- A discussão entre ““libertários”' e
ferente, por um concurso, etc. Mas, “necessitários*”* adquiriu uma nova
Já desde o século XVI, apresentou-se dimensão no modo como Kant en-
também um problema que, sem ter frentou o problema.
substituído por completo a citada Em Kant, não se tratava de ver se
questão teológica, ocupou muitos fi- a necessidade sufoca a liberdade, ou
lósofos até ao presente: o problema se esta pode subsistir em face da ne-
de saber se se pode dizer que o ho- cessidade; tratava-se de saber como
mem é livre quando se declara que eram possíveis a liberdade e a neces-
há determinismo (ver) na Natureza. sidade. Usando a própria terminolo-
E o famoso problema de ““liberdade gia de Kant, podemos dizer que, no
versus necessidade” (ou ““necessida- seu entendimento, todos os que se
de versus liberdade”). Esse proble- haviam ocupado do problema t1-
ma suscitou a maior parte dos deba- nham errado fundamentalmente, por
tes entre os chamados ““libertários”” uma simples razão: por terem con-
(no sentido de ““defensores da real1- siderado a questão da liberdade uma
dade da liberdade”) e os chamados questão passível de ser decidida den-
“necessitários '* (no sentido de ““de- tro de uma única e determinada es-
fensores da realidade — e universa- fera. Diante disso, Kant estabelece
lidade — da necessidade”). que, no domínio dos fenômenos, que
Alguns autores modernos (sobre- é o reino da Natureza, há um com-
tudo Spinoza; em parte Leibniz; pleto determinismo; é totalmente im-
também em parte, embora por ra- possível “salvar” dentro dele a liber-
zões distintas, Hegel) sustentaram dade. Esta, em contrapartida, apre-
que a liberdade consiste fundamen- senta-se dentro do domínio do nú-
talmente em ““seguir a própria natu- meno (ver), que é fundamentalmen-
reza”, na medida em que essa natu- te o reino moral. A liberdade, em
reza se encontra em estreita relação suma, não é, nem pode ser, uma
(harmonia preestabelecida ou o que “questão física”; é só e unicamente
seja) com toda a realidade. Por 1is- uma questão moral. E podemos di-
so, Spinoza é considerado um dos zer, aqui, não só que há liberdade,
mais obstinados ““deterministas””. como que não pode não haver. A li-
Leibniz tentou conciliar o determi- berdade é, com efeito, um postula-
nismo com a liberdade, enfatizando do da moralidade. Q famoso confli-
sobretudo, no conceito de liberdade to entre a liberdade e o determinis-
(ou, segundo os casos, de livre-arbi- mo, que a “terceira antinomia” (ver)
trio), o momento de ““seguir a pró- expressa, é um conflito aparente. Is-
pria natureza enquanto prenhe do so não significa, por certo, que “a
LIBERDADE 414
troux). Algumas dessa análises con- garam até a dizer que o livre-arbítrio
tinuaram até Bergson, que tratou de pressupõe o determinismo. Por con-
mostrar que a consciência (ou o seguinte, insistiu-se em que a propo-
“eu””) é livre — e mesmo fundamen- sição “X encontra-se causalmente
talmente livre —, porquanto não se determinado” não implica necessa-
rege pelos esquemas da mecanização riamente a proposição ““X não é lI-
e espacialização, mediante os quais vre”'. Ser livre não significa, nesse
se entendem e organizam conceitual- caso, “proceder sem nenhuma cau-
mente os fenômenos naturais. Tam- sa”; não ser livre tampouco signifi-
bém há que levar em conta, nas dis- ca “proceder de acordo com uma
cussões dos filósofos do século XIX causa”. De certo modo, as concep-
sobre a liberdade, os que a trataram ções da liberdade (e, em muitos ca-
de um ponto de vista religioso (co- sos, do livre-arbítrio) que derivam
mo Kierkegaard e, por um diferente das análises a que estamos fazendo
prisma, Rosmini) e os que aborda- menção parecem-se com algumas das
ram a questão do ponto de vista so- mais ““tradicionails”: parecem-se,
cial ou histórico (como Marx e, em por exemplo, com alguns dos modos
geral, os que, sustentando um deter- como Aristóteles considerou a liber-
minismo natural e social, defende- dade. Em todo caso, esses pensado-
ram ao mesmo tempo a possibilida- res estão de acordo com Aristóteles
de de que o homem alcance um dia em que não se pode falar de uma
a liberdade por meio de um ““salto ação ou de um ato, a menos que es-
para a liberdade”). tejam determinados de algum modo;
Os autores de tendência analítica a própria noção de ação ou de ato
inclinaram-se para o exame do que está, portanto, relacionada com a de
significa dizer que um homem age, “determinação”. Acham-se intima-
ou pode agir, livremente. Caracteris- mente relacionados a esse tipo de
tica desse modo de ver a questão é análise os trabalhos dos autores que
a análise da significação de ““é livre” se dedicaram a investigar, sobretu-
oferecida por G. E. Moore. Segun- do, o significado de “posso”. Uma
do esse autor, dizer que um homem análise de “posso” mostra que essa
agiu livremente é simplesmente dizer expressão tem não uma, mas várias
que não estava constrangido ou coa- significações. Essa multiplicidade de
gido, ou seja, que poderia ter agido significações é, de algum modo, pa-
de outro modo se assim tivesse esco- ralela à possível multiplicidade de ex-
lhido [decidido]. Como
é possível di-
Zzer 185850, mesmo no caso em que os
plicações que podem ser oferecidas
para uma ação humana. Os ““analis-
atos do homem em questão fossem tas”* acusam os filósofos ““tradicio-
determinados, não poucos autores nais” de terem reduzido a um só SIg-
chegaram à conclusão de que não há nificado expressões como “posso”,
incompatibilidade entre o livre-arbí- “pude”, “era livre de fazer isto ou
trio e o determinismo — alguns che- aquilo”, etc.; portanto, esses filóso-
417 LIBERDADE
fos deviam decidir-se pelo determi- eu escolho (op. cit., II, 181). Dal
nismo ou pela liberdade. Isso equi- uma diferença entre a liberdade exis-
valia a querer explicar o problema e tencial e as demais formas de liber-
encontrar uma solução definitiva pa- dade. A liberdade formal, disse Jas-
ra ele. Os “analistas”, desde G. E. pers, era poder e livre-arbítrio; a l1-
Moore até J. L. Austin, sustentam berdade transcendental era a auto-
que há vários significados — ou vá- certeza na obediência a uma lei ev1-
rios usos — das expressões mencio- dente; a liberdade como idéia era a
nadas e outras análogas, e que, em vida em seu todo; a liberdade exis-
vez de tratar de explicar, cumpre des- tencial é a autocerteza de uma ori-
crever o que sucede quando se em- gem histórica da decisão. “Só na l1-
pregam expressões relativas a ações berdade existencial, que é simples-
voluntárias ou involuntárias, inten- mente inapreensível, isto é, para a
ções, propósitos, etc. Isso não equi- qual não existe nenhum conceito, a
vale a dizer que os “analistas” solu- consciência da liberdade se realiza”.
cionaram o problema da liberdade; Daí resulta que a liberdade jamais é
equivale, antes, a dizer que se nega- absoluta. Ou, melhor dizendo, só há
a
ram reconhecer que haja propria-
mente um ““problema da liberdade”.
liberdade na medida em que existe
um absoluto em movimento. O ho-
Os autores que se orientaram pa- mem faz-se então na liberdade.
ra um tipo de pensamento ““existen- A idéia de liberdade como um ““fa-
cial”* também usaram a ““análise”, zer a si mesmo (livremente)” é fun-
mas, em muitos casos, não foi uma damental em vários autores, sejam
análise linguística, e sim fenomeno- ou não explicitamente ““existenciais”.
lógica — e, em certa medida, onto- O ““primeiro Heidegger” não mani-
lógica. Comum a todos esses pensa- festara grande (ou detalhado) inte-
dores é a idéia de que a pergunta resse pelo “problema da liberdade”,
acerca da liberdade não é uma per- mas Isso devia-se ao fato de que em
gunta “objetiva”; trata-se menos de seu pensamento ocupava um lugar
saber se alguém é ou não livre, do mais preponderante a noção de
que de saber se “é” ou não liberda- transcendência do Dasein como um
de. Nesse sentido, pôde Jaspers di- “estar-no-mundo”. De todos os mo-
zer que ““a pergunta acerca de se a dos, na medida em que o Dasein se
liberdade existe tem sua origem em encontra sempre “mais além de si”,
mim mesmo, que quero que a haja” cabe dizer não só que é livre, mas que
(Philosophie, II, 175). A liberdade O é necessariamente. Isso soa como
converte-se, então, em liberdade exis- um paradoxo quando se apresenta
tencial. Pois a escolha existencial não dentro do contexto do debate clássi-
é o resultado de uma simples luta de co “liberdade-necessidade”* ou ““li-
motivos, nem a obediência a um im- berdade-determinação”, assim como
perativo objetivamente formulado; quando se entendem em sentido
o decisivo da escolha é o fato de que “não-existencial”* termos como ““ne-
LIBERDADE 418
signa nada; (c) tem que haver tantos compõe de uma série finita (ou infi-
nomes quantas co1lsas há; os sinôni- nita) de nomes independentes entre
mos são, em princípio, impossíveis; si, uma vez que é dada num contex-
(d) pronunciar ou escrever um ““no- to. (b2) A significação não é o mes-
me falso” é o mesmo que pronun- mo que denotação. (c2) Uma lingua-
clar ou escrever uma série de sons ou gem formalizada não é o mesmo que
signos sem qualquer significação. uma linguagem não-formalizada (lin-
Há, pelo menos, uma dificuldade guagem natural ou corrente).
para cada uma das proposições aci- Foram abundantes, entre os estói-
ma. (al) A linguagem compõe-se de cos (que, segundo Poblenz, foram os
partículas que não são nomes: pre- primeiros a analisar filosoficamente
posições, conJunções, etc. Deve-se a linguagem) e os céticos (que trata-
aceitar o “significado” (que logo se- ram em detalhe da teoria dos signos),
rá chamado ““sincategoremático””) as considerações sobre a linguagem
dessas partículas, pois, do contrário, em Aristóteles. Referimo-nos a algu-
não se poderia falar — ou escrever. mas de suas opiniões a tal respeito em
O que Hermógenes pretende é en- outros verbetes, como NOME (ver),
contrar uma linguagem composta de em que apresentamos, além do mais,
puros nomes Justapostos. (b1) A parte das doutrinas sobre a linguagem
maior parte dos nomes têm signifi- defendidas por autores medievais,
cados que vão mudando com o tem- -
modernos e contemporâneos. Foi um
po. (cl) Todos os nomes — exceto traço comum a todas essas doutrinas
os “formalizados** por convenção — (ao menos, às de Aristóteles e dos es-
têm com frequência um significado tóicos) a introdução de outro elemen-
“vago”: o nome não reproduz a rea- to, além da linguagem e da ““realida-
lidade, assim como a imagem não a de”: referimo-nos ao conceito, ou no-
reproduz, pois em tal caso não se- ção, que pode ser entendido como um
riam nome e imagem, mas a própria conceito mental, ou como um concei-
realidade. (dl) Há proposições fal- to lógico (ou, como se disse oportu-
sas que possuem significação, pois namente, “formal”**). Os problemas
esta última ocorre no âmbito de uma da linguagem complicam-se a partir
linguagem e não no âmbito das coisas. dessa época com a questão da relação
2. Suponhamos que os nomes se- entre expressão linguística e concei-
jam convencionais. Isso significa to mental, expressão lingúística e con-
que: (a) os nomes podem ser muda- ceito formal, e entre cada um desses
dos à vontade; (b) cada nome pode conceitos, na medida em que são lin-
designar qualquer coisa; (c) há, em gúuisticamente expressados, e “a rea-
princípio, um número infinito de no- lidade”. Tudo isso concorre para que
mes para cada coisa. os problemas da linguagem deixem de
Há também, pelo menos, uma di- ser estritamente “gramaticais” para
ficuldade para cada uma dessas pro- converterem-se em problemas ““lógi-
posições. (a2) A linguagem não se cos”.
LINGUAGEM 424
a cabeça”.
guagens, podem adotar-se vários 3. As linguagens podem ser clas-
pontos de vista. Podemos distinguir, sificadas segundo três funções: a ex-
para começar, entre uma linguagem pressão, a chamada e a representa-
formalizada e uma linguagem não ção. Esta classificação foi proposta
formalizada; entre linguagem cien- por Karl Búhler. Exemplo de lingua-
tífica e linguagem corrente; entre lin- gem como expressão é a frase “que
427 LINGUAGEM
e, também, a sua idéia dessa lógica plo, Goblot). Segundo eles, a lógica
como uma disciplina que “determi- responde à pergunta: “Como deve-
na” a origem, a extensão e o valor mos pensar para que nosso pensa-
objetivo dos conhecimentos”, que só mento seja correto?”
se ocupa das leis do entendimento e Podem ser qualificadas de meta-
da razão e que tem a ver unicamen- físicas, lato sensu, todas as tendên-
te com ““objetos a priori”, ao con- cias lógicas em que há, explícita ou
trário da “lógica geral”, que trata de implicitamente, uma ontologia sub-
“conhecimentos empíricos ou puros jacente; por exemplo, a citada lógi!-
sem distinção alguma”. Resulta, ca empirista poderia ser metafísica.
pois, que: (a) a lógica (transcenden- Exemplo desse tipo é a lógica dialé-
tal) depende da estrutura da cons- tica de Hegel, assim como as teorias
ciência; (b) a correspondência entre lógicas desenvolvidas por autores
os invólucros lógico-formal e trans- mais ou menos influenciados pelo
cendental não á causal, porque é pos- hegelianismo, como Bradley e Bo-
sibilitada pela “unidade da consciên- sanquet. É típico dessas duas últimas
cla”; (c) ao aplicar-se ao real, a ló- lógicas (que são, antes, doutrinas so-
gICa converte-se numa ciência nor- bre a lógica) o pressuposto de que,
mativa. não havendo na Realidade Absolu-
Uma das mais influentes linhas da ta (ou Absoluto), objeto da metafí-
lógica durante a segunda metade do sica, nenhuma separação entre o que
século XIX e no século XX é a cha- é a coisa e aquilo que a coisa é, a ló-
mada lógica empírica (e, por vezes, gica limita-se a traduzir O caráter
em virtude de sua preocupação prin- “compacto” e impermeável da Rea-
cipal, lógica da indução). Seu repre- lidade por meio de uma identifica-
sentante mais típico é John Stuart ção do sujeito com o predicado, con-
Mill. Essa lógica pressupõe que os firmando a tese da unidade absolu-
objetos de que trata são o resultado ta do Juízo.
de generalizações empíricas. Também podem considerar-se ““ló-
Outra linha é a psicológica, repre- gicas metafísicas”: a “lógica concre-
sentada, entre outros, por Beneke, ta”, a “lógica histórica”, a “lógica
Lipps, Baldwin, Ziehen e, talvez, vital”, a “lógica existencial”, pro-
Cornelius. Os princípios lógicos são, pugnadas por vários autores.
segundo eles, pensamentos, e a lógi- Pode-se perguntar se a ““lógica
ca revela-nos a estrutura objetiva dos dialética” desenvolvida pelo marxis-
mesmos. mo deve incluir-se ou não nesta se-
Uma terceira linha é a normativis- ção como exemplo de uma ““lógica
ta. Constitui uma das dimensões da não normal”. Por um lado, não pa-
idéia kantiana da lógica e foi defen- rece que deva incluir-se nesta seção,
dida, entre outros autores, por Her- Já que é difícil qualificá-la de ““lógi-
bart e numerosos tratadistas do sécu- ca metafísica” stricto sensu. Por ou-
lo XIX e começo do XX (por exem- tro lado, pode inclúir-se nesta seção
LÓGICA 436
vida também por Haskell B. Curry Quine, Hao Wang, Beth, Kleene, pa-
(e logo Robert Feys, em colaboração ra citar apenas uns poucos.
com Curry). Alonzo Church iniciou, O quadro atual da lógica é muito
ao mesmo tempo, a chamada ““lógi- rico, não só pelo número de traba-
ca lambda”, onde a “operação x” lhos realizados e resultados obtidos,
desempenha a abstração de uma fun- mas também pelas áreas exploradas.
ção de seu valor não-especificado. À Toda e qualquer classificação de
“Tógica lambda”* também contém campos lógicos tem forçosamente
combinadores; o chamado ““cálculo que resultar prematura. Fala-se de
de conversaão lambda” é uma lógi- lógica bivalente, por vezes também
ca combinatória cujas relações com chamada ““clássica”, lógica intuício-
a lógica combinatória de Schônfin- nista e lógicas polivalentes, mas 1Sso
kel-Curry foram postas em relevo constitui apenas um primeiro esque-
por J. B. Rosser. Os métodos de de- ma. O número de adjetivos, ou de
dução usados nos Principia Mathe- especificações, que se agregam a ““ló-
matica e durante muito tempo admi- gica” é quase esmagador; além de ló-
tidos por todos os lógicos foram mo- gica bivalente, polivalente e intuício-
dificados por S. Jaskowski e G. nista, fala-se ainda de lógica modal
Gentzen com seu ““cálculo seqgúuen- — a rigor, “lógicas modais** —, ló-
cial”*ou método de dedução natural, gica cronológica ou temporal, lógi-
bastante difundido. O método das ca probabilística, lógica erotética, ló-
tabelas de verdade foi crescentemen- gica deôntica, lógica da ação, lógica
te substituído por outros métodos das preferências, lógica da mudan-
mais simples e, ao mesmo tempo, de ça, lógica de imperativos, lógica epis-
maior alcance, como o das ““tabelas têmica, lógica da crença, lógica da
semânticas”, ou o “método de ár- informação, lógica pressuposicional,
vores”, de que tratamos no verbete lógica livre ou lógica com ““buracos”
sobre método de tabelas. livres, lógica sem pressupostos exis-
Os trabalhos em metalógica, me- tenciais, lógica nublada, lógica da
tamatemática e fundamentação da “relevância”, lógicas desviadas, etc.
matemática contam com resultados Fala-se, por vezes, de lógica ““pa-
importantes; além de Hilbert, Brou- drão””, em contraste com as lógicas
wer, Heyting e Gentzen, já mencio- “não-padrão”, e estas últimas são
nados antes, podem citar-se Gódel, tratadas como ““lógicas desviadas””
Lówenheim, Skolem, Herbrand e
Cohen. Juntam-se a eles as contribuil-
com vários graus de “desvio”
“semidesvio”.
e até
tureza do mal; (III) as doutrinas mais equivale somente a dizer que é mau
destacadas sobre a procedência do porque é mau. “Mav” também se
mal; (IV) as várias classes de males emprega em sentido particular, clas-
admitidos; (V) as distintas atitudes sicamente chamado secundum quid,
e doutrinas propostas para enfrentar ou em relação a algo; é o que sucede
o mal; e (VI) algumas das teorias f1- quando dizemos que uma faca é má
losóficas mais gerais sobre o mal. E [ruim] porque não corta, ou seja,
inevitável que várias dessas seções se porque não corta adequadamente, is-
entrecortem; assim, as seções (II) e to é, “corta mal”.
(III) coincidem em numerosos aspec- (bl) Pode-se estudar o problema
tos, ao passo que a seção (VI) reto- do mal do ponto de vista psicológi-
ma alguns dos pontos apresentados co, sociológico, histórico, etc. Em tal
antes dela. Entretanto, manteremos caso é frequente oferecer uma inter-
a separação em seções, porque con- pretação relativista do mal, pois su-
sideramos que, assim, as explicações põe-se que o que se diga a respeito
e análises oferecidas ganham em cla- deste depende das circunstâncias psi-
reza. cológicas, sociais, históricas, etc.
Il. Aproximações do conceito de (cl) Alguns consideram que o mal
mal. é algo real não só psicológica, socio-
(al) Podem-se estudar os diversos lógica ou historicamente, mas de um
significados e usos de expressões co- modo mais amplo, de tal sorte que
mo ““o mal”* (por vezes, “o Mal”), os males particulares são definidos
MAL 442
como espécies de um mal real gené- de, porque, sem ele, a realidade se-
rico. Faremos referências a tais es- ria incompleta; logo, o mal pode ser
pécies na seção IV deste verbete. concebido como um elemento neces-
(dl) Vários autores declararam sário para a harmonia univesal. São
que o problema do mal é exclusiva- defensores dessa doutrina os estóicos
mente de índole moral; outros, que (ainda que, para eles, o mal seja
é só de natureza metafísica. Em am- principalmente algo ““para nós”,
bos os casos, pode-se ainda insistir 1oôs quas), em parte Plotino (quan-
em que o mal é predominantemente to admite que certos “males” geram
(conforme assinalamos no parágra- certos bens), Leibniz. Pope e vários
fo anterior) uma realidade (ou um otimistas modernos, Bergson (ao de-
ser), ou que é exclusiva ou primor- clarar que quando protestamos con-
dialmente um valor (melhor dito, um tra a criação por causa da experiên-
desvalor ou valor negativo). Conclui- cia do mal manifestamos nossa igno-
se, por vezes, que a definição do mal rância do fato de que o criado im-
como realidade (ou, se se quiser, ne- põe certas condições ao elã criador),
gação ou ausência de realidade) e co- etc. Essa teoria tende a resolver o
mo valor (ou desvalor) não são in- problema da natureza do mal com
compatíveis, pois que realidade e va- base numa resposta prévia — implí-
lor, por um lado, e negação da rea- cita ou explícita — à questão de co-
lidade e desvalor, por outro, são mo pode ser justificada a presença
equiparáveis. (ou a experiência) do mal (assunto
II. As teorias acerca da natureza abordado no final de V).
do mal. (a2-2) O mal é o último grau do
(a2) Segundo um grupo de teorias, ser. Essa pobreza ontológica do mal
o mal não é uma realidade separada é apresentada, habitualmente, atri-
ou separável; faz parte da única rea- buindo-se ao mal todos os valores
lidade verdadeiramente existente negativos (ou considerados negati-
(usualmente concebida em forma VOS) imagináveis: ilimitação, indeter-
monista, mas, por vezes, também em minação, dependência, passividade,
forma pluralista), embora seja o que temporalidade, inestabilidade, mate-
há de menos real dentro do real. O rialidade, etc. Observe-se que esses
mal a que se referem essas teorias é, valores negativos coincidem com os
principalmente, o mal metafísico que algumas teorias dualistas (por
(conferir IV), mas há ocasiões em exemplo, as pitagóricas) apresentam
que o referido mal metafísico se como estando incluídos na “coluna
apresenta sob o aspecto do mal físi- negativa”. Um defensor típico de tal
co ou do mal moral (ou de ambos). doutrina é Plotino, quando escreve
Pois bem, dentro desse grupo de que o mal “está para o bem, assim
teorias há muitas variantes. Apresen- como a falta de medida está para a
taremos algumas delas. medida, como o ilimitado está para
(a2-1) O mal faz parte da realida- o limite, como o ser eternamente de-
443 MAL
to, o “ser que é** não se reduz, para te do ângulo religioso-moral, ou se-
Santo Agostinho, à Idéiá das idéias, Ja, como uma manifestação do pe-
à Idéia de Bem, ao Uno e, em geral, cado. É, pois, uma privação deter.
a nenhuma entidade cuja apreensão minada de um certo bem.
445 MAL
A tese do mal como privação de- a um sujeito bom, mas não o pode
terminada aparece, no entanto, de ser ao bem supremo ou Deus, que é
maneira mais clara, em vários auto- desprovido de todo mal e não pode
res escolásticos, os quais tentaram ser causa do mal — mesmo quando,
elucidar em que consiste a determi- sendo causa de tudo o que é, seja
nação do mal em geral e as determi- possível dizer que é, de certo modo,
nações dos males em particular. Pa- causa de que haja o mal que há. Se
ra esse efeito, eles procuraram levar permitiu que o mal exista, é por ter
em conta não só as duas tradições considerado os requisitos que im-
patrísticas acima aludidas, mas tam- põem a ordem, variedade e harmo-
bém certas contribuições aristotéli- nia do conjunto da criação. Em to-
cas, em particular as observações do caso, se o mal tem uma causa,
aristotélicas sobre as dificuldades não é uma causa eficiente, mas def1-
que apresenta a concepção de que o ciente, malum causam habet non ef-
mal é pura e simplesmente privação ficientem, sed deficientem, como di-
do bem — sobretudo quando, ao zia Leibniz, repetindo uma tese es-
identificar-se o bem com o ser, aca- colástica (Teod., VI, 115, e especial-
ba-se declarando que o mal é priva- mente VI, 122).
ção do ser. Consideremos, com efei- (c2) As teorias resumidas em (a2)
to, a doutrina de Santo Tomás. O e (b2) não são todas de índole mo-
mal também é definido como priva- nista. Algumas são pluralistas; ou-
ção, mas não como privação em ge- tras subentendem certo dualismo que
ral, pois, em tal caso, haveria que su- pode classificar-se de moderado. As
por que a privação num ser de algo teorias a que nos referiremos agora
que não lhe corresponde por natu- caracterizam-se, em contrapartida,
reza (por exemplo, a privação de es- por um dualismo radical; melhor
camas nos cães) faria de tal ser uma .
ainda, por um dualismo baseado na
entidade má. O mal tem de ser, pois, suposição de que os dois princípios
uma privação determinada, de mo- radicalmente opostos, que, em seu
do que o ser mau tem de ser enten- entender, existem no universo, estão
dido secundum quid. Isso é válido in- representados justamente pelo Bem
clusive quando a privação em ques- (ou série de entidades boas ou valo-
tão é muito mais geral do que a que res positivos) e pelo Mal (ou série de
o caso mencionado denota; pode-se entidades más ou valores negativos).
dizer, por exemplo, que existe mal Assim o vemos no zoroastrismo, no
quando há, em geral, uma privação maniqueísmo e no gnosticismo; as-
de ordem. Por outro lado, dado que sim o vemos também na doutrina da
tudo o que é, é (na medida em que tabela de oposições que alguns pi-
participa do ser) algo bom, o sujei- tagóricos apresentaram. Os artigos
to do qual se predica o mal tem de mencionados proporcionam indica-
ser qualificado (na medida em que ções mais detalhadas a respeito. As-
é) de bom. O mal é, pois, inerente sinalemos aqui, porém, que as teo-
MAL 446
forças impessoais regidas por leis ine- modo de explicar (e mudar) a histó-
lutáveis. Se assim fosse, a transição ria, uma série de normas para a ação
de um tipo de sociedade para outra política que devem variar de acordo
seria inevitável, em virtude do desen- com as circunstâncias históricas, uma
volvimento dialético. ideologia, etc. As respostas que se dão
É plausível sustentar que, pelo me- em cada caso dependem, em grande
nos em Marx, não há semelhante de- parte, do modo como se entenda o
terminismo, nem mesmo dissimula- marxismo; mas, ainda assim, é difí-
do sob a forma de um processo dia- cil justificar uma resposta taxativa a
lético. É certo que Marx trata de en- favor de apenas uma das alternativas
contrar as leis que governam a estru- indicadas. Houve no próprio Marx
tura das sociedades e a passagem de mudanças a respeito. Mesmo que se
um tipo de sociedade a outra. Nesse enfatize ao máximo a continuidade de
sentido, as intenções, idéias, ideais seu pensamento, é óbvio que, en-
e atos dos homens enquadram-se em quanto no começo Marx trabalhava
leis. Mas não se trata de leis deter- dentro de limites normalmente con-
ministas de tipo físico. De fato, a siderados ““filosóficos”, seus interes-
evolução da espécie humana é a evo- ses especificamente filosóficos foram
lução e o progressivo desenvolvimen- diminuindo, ou atenuaram-se, em be-
to das possibilidades de influir sobre nefício de seus interesses sociológicos,
as estruturas soclais e, concomitan- políticos e econômicos. Por isso, se
temente, de influir sobre o domínio disse que o marxismo do Marx ma-
que os homens podem ter sobre si duro aspira a ser uma ciência. Embo-
mesmos. Daí a importância da ati!- ra admitindo essas diferenças, há,
vidade humana na configuração e na contudo, uma constante na atitude de
transformação sociais, e a possibili- Marx, que consiste em sua firme con-
dade de que o pensamento marxista vicção socialista e comunista. Na me-
tenha logrado desenvolver-se numa dida em que Marx tratou de dar uma
filosofia da práxis. explicação das mudanças sociais, seu
Subsiste ainda um questão impor- pensamento é de caráter sociológico.
tante, a qual tem sido debatida com O problema é saber se a sociologia de
frequência, não só a respeito do pen- Marx é ou não equivalente a uma
samento de Marx, isto é, a respeito clência social objetiva — na suposi-
do marxismo tal como se expõe nes- ção de que se admita a possibilidade
te verbete e naquele sobre o materia- de tal ciência. Aqueles que admitem
lismo histórico, mas também no to- que sim sublinham o aspecto cienti-
cante a muitas outras formas de mar- fico do marxismo. Os que, como
xIsmo: trata-se da questão de saber Korsch ou Lukács, negam que seja,
se o marxismo é uma concepção do enfatizam o caráter fundamental-
mundo, uma filosofia, uma antropo- mente ““partidista”* do marxismo, o
logia filosófica, uma ciência — espe- qual não é, nesse caso, uma sociolo-
cificamente, uma sociologia —, um gia no sentido “vulgar”, mas a filo-
MARXISMO 456
mesmo que se leve em conta que este va, que se supõe caracterizar ainda
foi materialista, que o seu materialis- as ciências, e estas puderem consti-
mo opôs-se ao materialismo mecani- tuir-se dialeticamente, ou materialís-
cista, que usou um tipo de pensamen- tica-dialeticamente.
to que ocasionalmente exibiu forte Engels desenvolveu o materialismo
cunho dialético e, inclusive, que deu dialético na obra A subversão das
sua aprovação ao que logo veio a ser ciências pelo Sr. Dúhring (Herrn
considerado como uma das leis dia- Duhring Umwalzung der Wissens-
léticas formuladas pelo materialismo chaften, 1878; publicada como uma
dialético, a saber: a passagem da série de artigos em Vorwaárts, 1877),
quantidade à qualidade, segundo o conhecida pelo nome de Anti-Duúh-
modelo da Lógica de Hegel. Entre- ring, bem como numa série de ma-
tanto, nada disso faz de Marx um ma- nuscritos procedentes de 1873-1883
terialista dialético stricto sensu; o ma- e publicados pela primeira vez em
terialismo de Marx é, em contrapar- 1925 com o título de DialekKktik der
tida, um materialismo histórico (ver). Natur (há edições posteriores e mais
A mais simples e influente formu- fidedignas). Embora Engels se opu-
lação do materialismo dialético en- sesse ao idealismo, inclusive ao 1dea-
contra-se em Engels, que, com 1sso, lismo de Hegel, encontrou nesse pen-
acreditou não se desviar de Marx, sador apoio para uma ““filosofia da
ou, em todo caso, acreditou comple- Natureza” que descartava e supera-
tá-lo. A formulação de Engels incor- va o materialismo mecanicista carac-
porou-se ao marxismo qualificado de terístico de grande parte da física
“ortodoxo”, que descrevemos no ar- (mecânica) moderna e, em particu-
tigo MARXISMO (II). Isso não sig- lar, das interpretações filosóficas da
ciência moderna que proliferaram no
nifica que somente os marxistas ““or-
todoxos”* sejam materialistas dialé- século XIX por obra de Ludwig
ticos. É possível sustentar o materia- Búchner e outros autores. Segundo
lismo dialético dentro de formas de Engels, esse materialismo é superfi-
marxismo ““não ortodoxo”? — pelo cial, não leva em conta que os mo-
menos, não ortodoxo a respeito do delos mecânicos não se aplicam a no-
aludido marxismo ortodoxo. Isso vos desenvolvimentos científicos, co-
pode ocorrer de vários modos, entre mo os registrados na química, na
OS quais se destacam como um inten- biologia e, em especial, como se ma-
to de suplementar e sistematizar o nifestam na teoria da evolução das
marxismo numa forma distinta do espécies. O materialismo mecanicis-
conglomerado hoje tradicional ta “vulgar” tampouco leva em con-
“Marx-Engels-Lênin”', ou “marxis- ta O caráter prático do conhecimen-
mo-leninismo”'; ou, então, como to e o fato de que as ciências não são
uma possibilidade para o futuro, independentes das condições sociais
quando se tiver “absorvido” por e das possibilidades de revolucionar
completo a razão analítica e positi- a sociedade.
461 MATERIALISMO DIALÉTICO
a rigor, não poderiam ser entendidas ças nas condições materiais da exis-
muitas teses de A miséria da filoso- tência são o fundamento das mudan-
fia, de 1847, de A ideologia alemã, ças sociais e históricas. As demais
que procede do período de 1845- atividades humanas e produtos des-
1846, e do Manifesto do partido co- sas atividades humanas, como as
munista, de 1848, sem uma dose con- constituições dos Estados, as leis, os
siderável de materialismo histórico, produtos culturais, etc., acham-se
pode este atribuir-se a Marx já em subordinados aos modos de produ-
sua primeira época. Como À ideo- ção.
logia alemã e o Manifesto são de Marx insiste no caráter material da
Marx e Engels, há que atribuir tam- existência humana e de sua relação
bém a Engels a idéia do materialis- com o mundo. Nesse sentido, susten-
mo histórico — alguns autores indi- ta-se um materialismo, assim como
cam, inclusive, que Marx a adotou um naturalismo. Mas o que interes-
estimulado por Engels. Mas atribu- sa a Marx não é só a natureza hu-
indo-se a Engels sobretudo o mate- mana, mas também e sobretudo o
rialismo dialético, pode-se, por ora, que esta faz com o mundo. A natu-
a bem da simplificação, equiparar reza humana é uma abstração; o que
“marxismo” a “materialismo histó- ela faz com o mundo é uma realida-
rico”. A essa simplificação acrescen- de concreta, que muda e evolui. O
tamos outra, que consiste em esbo- materialismo é um método para en-
çar alguns pontos capitais do mate- tender a natureza humana em seu ca-
rialismo histórico em seu conjunto e ráter concreto e histórico. Por isso,
sem levar em conta sua evolução e não se trata de estabelecer leis seme-
suas variedades. lhantes às das ciências positivas da
Uma idéia fundamental é a da Natureza, mas, antes, de compreen-
transformação do mundo material der os mecanismos da formação das
por meio do trabalho. Sobretudo nu- sociedades e as mudanças que nelas
ma sociedade como a capitalista, o ocorrem. Essas mudanças são de na-
trabalhador separa-se do seu traba- tureza dialética, no sentido de que se
lho, ou aliena-o, e este se converte produzem nas sociedades conflitos
num produto suscetível de compra e que se resolvem por meio de trans-
venda. Isso se deve ao modo de pro- formações fundamentais da estrutu-
dução dos meios de existência e às ra. A dialética usada no método do
relações de produção. Entender es- materialismo histórico não é uma
ses modos e essas relações de produ- dialética ontológica. Tampouco é
ção é entender a formação das socie- uma dialética da consciência ou uma
dades. Assim, o mundo material e o dialética conceitual. É uma dialéti-
que os homens fazem com ele cons- ca real, que permite entender que, na
tituem as bases para entender a his- história, enquanto luta de classes, há
tória dos homens como história das negação de uma classe por outra. As-
sociedades. Com efeito, as mudan- sim, as relações de produção ficam
465 MATERIALISMO HISTÓRICO
tafísica”* foi o nome dado por An- Segundo Reiner, toda uma série de
drônico de Rodes no século I a.C. à autores antigos, como Alexandre de
série de livros de Aristóteles, orde- Afrodisia, Asclépio, Temístio e Sim-
nados por letras do alfabeto grego, plício, tinha clara consciência de que
que se referiam ao que o próprio a disposição e o arranjo dos livros
Aristóteles chamou ““filosofia pri- “metafísicos” era função das distin-
meira”, trowTn prhocoÇvLa (prima fi- ções apontadas. Do ponto de vista
losofia), “teologia”, deohloyia, ou da ordem dos princípios, ou o que
“sabedoria”, copia. Como os livros é primeiro por natureza, os livros
em questão foram colocados na clas- metafísicos constituem o que Aristó-
sificação e na publicação de obras do teles chamou ““filosofia primeira”.
Estagirita depois dos oito livros da São, pois, ““anteriores”. Mas do
Física, chamou-se-lhes 1a nero TO ponto de vista do modo como conhe-
quorxa, tá metdá tá physicá, quer di- cemos, isto é, “para nós”, esses |l1-
zer, “os que estão depois da física” vros são posteriores aos físicos; daí
ou, mais exatamente, ““as colsas que serem neta TO QuoLlXA. ASSIM, à
estão depois das coisas físicas”. “metafísica” vem “depois da física”
Considera-se geralmente que essa numa forma mais fundamental do
designação, que teve no começo me- que aparecer casualmente depois
ra função classificatória, resultou “dos (livros) físicos” numa ordem
muito adequada, porque com os es- bibliotecária. Na realidade, Andrô-
tudos que são objeto da “prima fi- nico de Rodes seguiu Eudemo — e,
losofia”* constituiu-se um saber que com ele, o próprio ““espírito aristo-
aspira a penetrar “mais além de” ou télico” — ao empregar o nome ““me-
“depois dos” estudos ““físicos”, 1s- tafísica”, já que ““filosofia primei-
to é, dos estudos referentes à “Na- ra”, embora mais adequado em si,
tureza””, de modo que a metafísica é inadequado na ordem dos conhe-
é um saber que transcende o saber cimentos.
físico ou ““natural”. Segundo parece, Franciscus Patri-
A opinião vigente foi criticada por cius (Francesco Patrizi) (1413-1494)
Hans Reiner em dois artigos: “Die foi um dos primeiros, se não o pri-
Entstehung und urspriúngliche Bedeu- meiro, a manter a origem ““bibliote-
tung des Namens Metaphysik”' (Zeit- cária” de “metafísica” em suas Dis-
schrift fur philosophische Forschung, cussiones peripateticae, |. Uma das
“Die Entstehung
8, 1954, 210-37) e razões que o induziram a sustentar
der Lehre vom bibliothekarischen essa opinião é que a expressão uetax
Ursprung des Namens Metaphysik”, quorxa é posterior a Aristóteles; se
(1bid., 9, 1955,77-99). Que saibamos, este tivesse tido uma idéia definida
da crítica de Reiner só se fez eco Ta- da metafísica como saber que vai
katura Ando em seu livro Metaphy- “além da física”, teria adotado esse
sics: A Critical Survey of its Meaning nome ou outro semelhante, em vez
(1963, 2º edição aumentada, 1974). de falar de “filosofia primeira””. Mo-
METAFÍSICA 468
mos adiante. Tudo isso é tanto mais e o que é anterior para nós, 1tpeos
surpreendente, aponta Reiner, por- nuas, assim como não é o mesmo o
quanto Kant, numas lições sobre me- que é mais conhecido por natureza e
tafísica (ed. M. Heinze, 1894), ex- o que é mais conhecido para nós. São
pressara dúvidas de que o termo anteriores e mais conhecidos para
“metafísica” tivesse uma origem me- nós, segundo Aristóteles, os objetos
ramente bibliotecária, uma vez que mais próximos da sensação, e são an-
resultava apropriado demais para teriores e mais conhecidos, simples ou
atribuí-lo a um acaso. absolutamente, aTthos, os objetos
As opiniões de Reiner podem, por afastados dos sentidos. As causas
sua vez, ser criticadas pelo menos em mais universais são as mais distantes
dois pontos. Dada a tendência de dos sentidos, embora sejam as mais
Aristóteles a usar adjetivos que carac- fundamentais na ordem real. O que
terizam um gênero de investigação, é primeiro para nós, toôs nuas mtooó-
como ocorre com “lógico”, Aoyix, TeQor, Opõe-se ao que é último para
e “físico”, qucixnm, pode-se pergun- nós, 1eôs juas voteRov. Mas o pri-
tar se, houvesse ele tido uma idéia meiro para nós é contrário ao primei-
bem definida sobre o caráter das in- ro por natureza.
469 METAFÍSICA
Segundo Aristóteles, “há uma ciên- que chama ““filosofia primeira” (ou
cia que estuda o ser enquanto ser, “metafísica””), ao ocupar-se do ser
Tô Ov 1 Ov, € O que propriamente lhe
como ser, de suas determinações,
pertence. Esta ciência não se confun- princípios, etc., ocupa-se, portanto,
de com nenhuma das chamadas ciên- de “algo” que é superior, e até su-
clas particulares, pois nenhuma de- premo, na ordem ““do que é” e tam-
las considera em geral o ser enquan- bém na ordem de seu conhecimen-
to ser, mas unicamente uma parte do to. Mas esse ““ser superior ou supre-
mesmo” (Mer., I”, I, 10003 a 20). mo” pode ser entendido de dois mo-
Em contrapartida, essa ciência inves- dos: ou como estudo formal do que
tiga “os primeiros princípios e as depois se chamarão “formalidades”,
causas mais elevadas” (op. cit., 1003 e nesse caso a metafísica será o que
a 25). Merece, por 1sso, ser chama- se chamará depois ““ontologia”, ou
da “filosofia primeira”, rowTN L- como estudo da substância separa-
Aogovia, em contraste com toda ““fi- da e imóvel — o primeiro motor,
losofia segunda”, dévtepa plhoco- Deus —, e nesse caso será, como
via (op. cit., 2, 1004 a 1). A filoso- Aristóteles lhe chama, ““filosofia teo-
fia, diz Aristóteles, tem tantas par- lógica”, prhocoçpia AeohoyLXN, OU SE-
tes quantas substâncias há; assim, a Ja, teologia, Oeohoyia (Met., E, 1,
parte que trata da substância natu- 1026 a 19).
ral é a “física” — uma “filosofia se- Admitam-se ou não os resultados
gunda”. Acima dessas partes, há da investigação de Reiner a que nos
uma ciência na qual se estuda o que referimos acima, parece que a me-
é enquanto é, e não alguma espécie taphysica teve, desde (relativamen-
ou forma particular desse ser. O que te) cedo, dois sentidos: um, ““trans-
é enquanto é tem certos princípios, natural”, o de post physica, e outro
que são os “axiomas”, e estes se “sobrenatural”, o de trans physica.
aplicam a toda substância como O primeiro sentido observa-se em
substância e não a este ou àquele t1- Domingo Gundisalvo, provavelmen-
po de substância. te com base em Avicena (e Averróis).
Desde que Aristóteles determinou No seu tratado De divisione philo-
o objeto da “filosofia primeira” e sophiae, diz que a metafísica é post
desde que se usou, além disso, o ter- physicam, quia id es de eo, quod est
mo ““metafísica”* (metaphysica) co- post naturam. O segundo sentido
mo equivalente a “filosofia primei- encontra-se difuso em vários autores.
ra”, muitos foram os problemas sus- Os dois sentidos pareceram unir-se
citados. Um deles, de que trataremos em Pedro Fonseca, para quem a me-
a seguir, é o do objeto peculiar da tafísica estuda simultaneamente as
“metafísica”. No próprio Aristóte- post naturalia e as super naturalia.
les há certa vacilação, que irá deter- Mas, ao mesmo tempo, nunca se per-
minar muitas das discussões ulterio- deu, no termo “metafísica”, o sen-
res a esse respeito. Por um lado, o tido de uma investigação formal, es-
METAFÍSICA 470
(omnia scit) e a lógica não sabe na- tra a pretensão de alcançar um saber
da (nihil scif). A tendência de outros racional e completo da realidade,
autores foi de estabelecer uma dis- mas, ao mesmo tempo, encarou tam-
tinção entre metaphysica e ontologia. bém a sério o problema da possibil1-
Referimo-nos a esse ponto no arti- dade de uma metafísica. Em particu-
go ONTOLOGIA; apenas assinala- lar, interessou-se Kant por apurar co-
remos aqui que na ontologia se abri- mo é possível fundamentar a metafi-
ga o aspecto mais formal da metafí- sica de um modo definitivo, com a fi-
sica. A ontologia é concebida como nalidade de que deixe de ser o que tem
uma philosophia prima que se ocu- sido até agora: um ““tatear” (Her-
pa do ente em geral. Por 1lsso a on- rumtappen). À metafísica tem sido
tologia pode ser equiparada (como até agora “uma ciência racional es-
logo o seria por autores que fundi- peculativa completamente isolada”,
ram a tradição escolástica com a baseada unicamente nos conceltos, e
wolffiana) a uma metaphysica gene- não, “como a matemática, na apli!-
ralis. As dificuldades que apresenta- cação dos conceitos à intuição” (K.
vam muitas das definições anterio- r. V., B, xiv). A metafísica tem sido,
res de “metafísica” pareciam dissi- até agora, “a arena das discussões
par-se em parte: a metafísica como sem fim”; edificada no ar, só produ-
ontologia não era ciência de nenhum ziu castelos de cartas. Não se pode,
ente determinado, mas podia dividir- pois, continuar pelo mesmo caminho,
se em certos “ramos” (como a teo- dando rédea solta às especulações
logia, a cosmologia e a psicologia ra- sem fundamento. Por outro lado,
cionais) que se ocupam de entes de- não é possível simplesmente aderir ao
terminados, se bem que num sent1- ceticismo: é necessário fundar a me-
do muito geral e como princípio de tafísica para que “chegue a converter-
estudo de tais entes — isto é, num se em ciência”. Para tanto, há que
sentido ““metafísico””. proceder a uma crítica das limitações
A persistente e crescente tendência da razão. Em suma, a metafísica de-
das “ciências positivas” ou “ciências ve submeter-se ao tribunal da crítica,
particulares” em relação à filosofia à qual nada escapa nem deve escapar.
e, em especial, a respeito da parte Kant nega, pois, a metafísica, mas
mais “primeira” da filosofia, isto é, com o propósito de fundá-la. O mo-
a metafísica, aguçou as questões fun- do como, no pensamento de Kant, se
damentais que tinham sido apresen- leva a efeito essa “fundamentação”
tadas acerca da metafísica e, em par- é complexo e não pode ser resumido
ticular, as duas questões seguintes: (1) aqui. Limitamo-nos a indicar que,
se a metafísica é possível (como ciên- para começar, Kant mostra não ha-
cia); (2) de que se ocupa ela. Central ver possibilidade alguma de juízos
na discussão desses dois problemas é sintéticos a priori em metafísica. Por
a filosofia de Kant. Esse pensador le- conseguinte, a metafísica não parece
vôu a sério os embates de Hume con- poder ser uma ““ciência teórica” em
METAFÍSICA 474
nenhum caso. Daí a passagem à ““ra- giram, em fins do século XIX e co-
zão prática”, na qual a metafísica meços do século XX, várias tendên-
parece dar-se não como uma ciência, cias antipositivistas que, embora hos-
mas como uma realidade moral. tis em princípio à metafísica, termi-
Contudo, essa posição tampouco é naram por aceitá-la. O criticismo
satisfatória, se se quiser que a meta- neokantiano é um exemplo particu-
física se converta realmente em ciên- larmente esclarecedor dessa posição.
cia. Parte da obra de Kant, a partir Mas também o é o neocriticismo
da Crítica do Juízo, pode ser enten- francês, em particular o chamado po-
dida como um intento de responder sitivismo espiritualista. Em todos es-
a esse desafio da metafísica como ses movimentos, a metafísica é com
ciência. frequência revalorizada de “dentro
Tal como durante a Idade Média, para fora”, ou seja, desde o interior
a metafísica foi, portanto, durante a de um saber positivo. O mesmo ocor-
Época Moderna (e, depois, durante re em Bergson. A reabilitação Dberg-
a Epoca Contemporânea), um dos soniana da metafísica não pressupõe
grandes temas de debate filosófico. a adesão ao conhecimento racional
E 1sso a tal ponto, que a maior parte do inteligível; pressupõe Justamente
das posições filosóficas, de Kant até a negação ou limitação desse conhe-
hoje, podem ser compreendidas em cimento, e a possibilidade de uma
função de sua atitude diante da filo- apreensão intuitiva e imediata do
sofia primeira. As tendências adscri- real, que a ciência decompõe e me-
tas ao que poderíamos chamar a fi- caniza. Alguns negaram a metafiísi-
losofia tradicional não negaram em ca no sentido tradicional e reconhe-
nenhum momento a possibilidade da ceram, em compensação, a existên-
metafísica. O mesmo ocorreu com o cia de uma aspiração metafísica irre-
idealismo alemão, se bem que o pró- freável no homem. É o que ocorre
prio termo “metafísica” não tenha com Dilthey e com todos os autores
recebido com freqiiência grandes que, de um modo ou de outro, ten-
honras. Em contrapartida, desde o dem a transformar a metafísica nu-
instante em que se acentuou a neces- ma “concepção do mundo”, simul-
sidade de ater-se a um saber positi- taneamente inevitável e indemonstrá-
vo, a metafísica foi submetida a uma vel. Numa direção parecida, embo-
constante crítica. Na filosofia de ra de nenhum modo idêntica, à de
Comte 1sso é evidente, sem dúvida: Dilthey, caminhou Collingwood, ao
a metafísica é um modo de ““conhe- considerar que a única maneira de
cer” próprio de uma ““época da hu- tratar a questão da possibilidade da
manidade”', destinada a ser supera- metafísica é considerar que a meta-
da pela época positiva. Pois bem, es- física deve ter consciência de que é
sa negação da metafísica implicava, história. Outros autores não se ocu-
por vezes, a negação do próprio sa- param explicitamente da questão da
ber filosófico. Por esse motivo sur- natureza e possibilidade da metafísi-
475 METAFÍSICA
Ca, mas seu pensamento filosófico tes de mais nada, um pensar de al-
pode ser considerado fundamental- gum modo ““metafísico”. Em con-
mente metafísico — ou assim é con- trapartida, outras correntes contem-
siderado, pelo menos, por todas as porâneas opuseram-se decididamen-
tendências explicitamente antimeta- te à metafísica, considerando-a uma
físicas. Isso ocorre, por exemplo, pseudociência. É o que sucede com
com o existencialismo e com todas alguns pragmatistas, com os marxis-
as filosofias existenciais. Outros au- tas e, em particular, com os positi-
tores não seguiram, ou seguiram vistas lógicos (neopositivistas) e mur-
pouco, as tendências tradicionais re- tos dos chamados ““analistas*”*. Co-
lativas à natureza, finalidade ou pos- mum aos positivistas é o fato de te-
sibilidade da metafísica, mas desen- rem adotado uma posição sensivel-
volveram um pensamento decidida- mente análoga à de Hume. A posi-
mente metafísico, no qual a metafí- ção de Hume acrescentaram consi-
sica não é “ciência primeira” nem derações de caráter ““lingúístico”.
“ciência do ente”, mas “saber da Assim, sustentou-se que a metafís1!-
realidade radical”. Tal é o caso de ca surge unicamente como conse-
Ortega y Gasset, que pôde afirmar quência das ilusões em que a lingua-
não ser a metafísica propriamente gem nos envolve. As proposições
uma ciência, porquanto é o saber metafísicas não são verdadeiras nem
dentro do qual se dão os demais sa- falsas: carecem simplesmente de sen-
beres (sem que estes, quanto ao mais, tido. A metafísica não é, pois, pos-
derivem necessariamente daquele, Já sível, porque não existe “linguagem
que não é o mesmo ““basear-se em” metafísica”. Em suma, a metafísica
e “estar fundado ou ter raízes em”). é “um abuso da linguagem”.
Um modo de considerar a metafís!- Nos últimos anos, pôde-se obser-
ca em sentido distinto do tradicional var que, mesmo dentro das corren-
ou de muitos dos sentidos modernos tes positivistas e “analíticas” susci-
é, também, o de Heidegger. Com taram-se questões que podem ser
efeito, o conceito de ser, em Heideg- consideradas como metafísicas, ou
ger, não é comparável, ou não é que diminuiu o rigor contra a possi-
comparável em muitos aspectos, ao bilidade de existência de toda e qual-
conceito de ser “tradicional”, pelo quer metafísica. Alguns (Charles
que uma “introdução à metafísica” Morris) admitem a metafísica como
como ““introdução ao ser” não éo uma forma de ““discurso”*: o ““dis-
mesmo que uma introdução à ciên- curso metafísico”, o qual é pareci-
cia do ente enquanto tal. do com o lógico ou com o gramati-
Existencialismo, bergsonismo, atua- cal, mas, ao contrário desses, possui
lismo e muitas outras correntes do um tipo “formativo”. Entretanto, a
nosso século são ou de caráter decla- noção de verdade (ou falsidade) não
radamente metafísico ou reconhecem pode ser aplicada a tal “discurso”,
que o que se faz em filosofia é, an- que tem por finalidade organizar a
METAFÍSICA 476
tônica, pois, como indica Victor Bro- mito e dos mitos: Vico e Schelling.
chard, desapareceriam dela a doutri- Vico fundamentou epistemologica-
nas do mundo, da alma e de Deus, mente a atitude antes esboçada de
assim como parte da teoria das que o mito é “uma verdade históri-
idéias. O mito é, pois, para Platão, ca”; com efeito, o mito é, para Vi-
com frequência, algo mais do que co, um modo de pensar que tem suas
uma opinião provável. No entanto, próprias caracteristicas e que condi-
ao mesmo tempo, o mito se apresen- ciona ou, pelo menos, expressa cer-
ta, em Platão, como um modo de ex- tas formas básicas de vida humana.
pressar o reino do Devir. Vico identificou o modo de pensar
Vários autores neoplatônicos tra- mítico com o modo de pensar ““poé-
taram da questão da natureza e das tico” (Scienza nuova, VI). Schelling
classes de mitos, bem como da Jjus- considerou que a mitologia é uma
tificação (filosófica) do caráter divi- forma de pensamento que represen-
no dos mitos. Assim, o filósofo neo- ta um dos modos como se revela o
platônico Salústio considerava, em Absoluto no processo histórico: o mi-
seu Tratado sobre os deuses e sobre to é, portanto, revelação divina (Phi-
o mundo (texto em grego, 529), que losophie der Mythologie, passim).
os mitos podem representar os deu- A noção de mito e o fato de que
ses e as operações realizadas pelos o homem tenha fabricado e continue
deuses no mundo. fabricando mitos suscitaram interes-
Na Antiguidade e na Idade Média, se entre vários filósofos contempo-
prestou-se especial atenção ao pró- râneos, assim como entre sociólogos
prio conteúdo dos mitos e ao seu po- e linguistas, interessados numa inter-
der explicativo. Desde o Renascimen- pretação geral do mito. Ernst Cassi-
to, surgiu um problema que, embo- rer considerou que o mito não é ob-
ra já tratado na Antigúidade, ficara Jeto unicamente de pesquisas empií-
um pouco negligenciado: o problema rico-descritivas, nem tampouco uma
da realidade e, por conseguinte, o manifestação histórica de algo ““ab-
problema da verdade, ou grau de ver- soluto””. Embora sejam necessárias
dade, dos mitos. Na medida em que as pesquisas e descrições empíricas,
múltiplas tendências céticas abalaram estas encontram-se enquadradas pe-
não poucas crenças, também acaba- la idéia do mito como modo de ser
ram por corroer os mitos. Vários au- ou forma da consciência: a ““cons-
tores modernos negaram -se a consi- ciência mítica”, que explica a persis-
derar os mitos como dignos de men- tência, a reiteração e a estrutura sl-
ção; a “verdadeira história”, procla- milar de muitos mitos. Segundo Cas-
maram eles, nada tem de mítico. Por sirer, há um princípio de formação
a
Isso, o historiador deve depurar his-
tória de mitos e lendas.
dos mitos que faz com que estes se-
jam algo mais do que um conjunto
Dois autores modernos deram acidental de imaginações e fabula-
grande importância ao fenômeno do ções. À formação de mitos obedece
MODELO 480
tendência foi defendida, sobretudo, zer que seja uma doutrina monista
por diversos representantes da ciên- stricto sensu. Alguns autores situa-
cia natural, em particular por Ernst dos na mencionada tendência incli-
Haeckel, que designa seu ponto de nam-se, porém, para um monismo
vista como um monismo naturalis- explícito. Isso ocorre sobretudo com
ta. A solução de toda dualidade é ob- o chamado ““monismo primário” de
tida, nesse caso, mediante a afirma- Rudolf Willy, como em tantos ou-
ção da matéria como única realida- tros partidários de Avenarius. Tam-
de, mas, ao mesmo tempo, como a bém é, especialmente, o caso de Bru-
atribuição à matéria das categorias no Wille, cujas doutrinas são, por
do espírito. Esse tipo de monismo vezes, afins das de Mach, mas que
pode ser designado pelo nome de foi mais propriamente influencia-
monismo hilozoísta, pois o proble- do por Fechner. Wille defende um
ma da atividade, da força, da ener- “ecristlanismo monista” e um ““mo-
gia e mesmo do espírito é soluciona- nismo faustiano” de caráter notoria-
do por meio da consideração da ma- mente pampsiquista. Cumpre men-
téria como algo vivo e dinâmico, co- clionar também o movimento monis-
mo o princípio de todas as proprie- ta defendido nos Estados Unidos por
dades. Por isso, Ostwald concebeu Paul Carus.
como realidade única, não a maté- Eucken (op. cit., supra) assinalou
ria, mas a energia, da qual deriva to- que, durante algum tempo, foi co-
da a passividade ulterior. O monis- mum chamar ““monistas” aos que
mo naturalista foi convertido por seguiam as doutrinas de Hegel. Tam-
seus representantes num monismo bém foram qualificados de “monis-
idealista, pois nele se considera que tas” todos os que identificaram a
"a matéria experimenta um processo realidade com algum Absoluto que
de contínua elevação no sentido da se expõe ou se manifesta, quer co-
autoconsciência, até alcançar o au- mo sujeito e objeto, quer como ma-
toconhecimento. No devir da maté-
ria forma-se, segundo esse monismo,
téria e espírito, etc. Um exemplo
pico de monismo é o da doutrina de
tí-
a própria divindade. Bradley. Nela se manifesta de manei-
O monismo também foi defendi- ra muito clara uma característica
do por várias correntes afins do em- fundamental do dualismo metafísi-
piriocriticismo e da filosofia da ima- CO OU, se se quiser, lógico-metafísico:
nência. Trata-se, nesse caso, de um o da chamada ““doutrina das relações
monismo ““neutralista”* que nega a internas”. Com efeito, para todo
diferença entre o físico e o psíquico, monismo, pelo menos do tipo de
e que, de um modo geral, analisa o Bradley, nenhuma relação — de es-
significado de ambos os termos no paço, tempo, causalidade, etc. — po-
contexto de uma descrição neutra de ser exterior a nenhuma realidade;
dos fenômenos, de tal maneira que, se assim fosse, teríamos que susten-
na maioria dos casos, não se pode di- tar a existência de realidades ““inde-
485 MORTE
gir qualquer outra coisa, a supor que ciona dentro de certas limitações. À
as coisas poderiam surgir do acaso concepção segundo a qual do nada
e em ocasiões impróprias. Outros provém o ser criado (ex nihilo fit ens
pensadores, sem porem em dúvida o creatum) destaca a “preeminência”
princípio ex nihilo nihil fit, trataram ou, em todo o caso, a “importância”
de apurar qual a função que uma do nada, não porque o próprio na-
“participação no nada” pode desem- da tenha algum poder ou eficácia,
penhar na concepção dos entes que mas porque, se Deus criou o mun-
são. Encontramos em Platão um do, esse mundo “vem”, de algum
exemplo nesse sentido (cf. especial- modo, do nada.
mente, Parmênides, 162 A). Aristó- Não obstante, cumpre distinguir
teles declara que embora se possa fa- entre o “filosofar a partir do nada”,
lar de privação e de negação, estas a que nos referimos antes, e o estu-
ocorrem no contexto de afirmações, do, por teólogos e filósofos cristãos,
Já que mesmo do não ser pode afir- do conceito de “nada”. Alguns au-
mar-se que é. Em geral, portanto, os tores, como Santo Anselmo, consi-
filósofos gregos abordaram o proble- deraram, seguindo em parte Santo
ma do nada do ponto de vista do ser. Agostinho, que o nome “nada” não
Mas o fato de que se propuseram significa nada, se o que é significa-
examinar a questão do não ser con- do por esse nome não for algo. Deve-
firma, como assinalamos, sua preo- se distinguir, afirma Santo Anselmo,
cupação com o problema. Aliás, a entre a forma de uma expressão e a
“positividade” do nada emergiu em expressão do que é. Essa distinção
diversas ocasiões, por exemplo, equivale à que formula Santo Tomás
quando se suscitou o problema da entre “nada”, como um nome usa-
matéria enquanto pura indetermina- do segundo a forma de falar (secun-
ção e quando se usou essa indeter- dum formam loquendi), e nome
a
Oo
que o conceito supremo de que cos- mo diz Kant, dados vazios para os
tuma partir uma filosofia transcen- conceitos (K. r. V., A 290-293, B
dental é a divisão entre o possível e 346-350). O sentido ontológico da
o impossível. Como toda divisão su- negação e da privação é acolhido e
põe, no entanto, um conceito divi- até acentuado por Hegel quando,
dido, cumpre remontar a este, que, nos começos da Lógica, manifesta
independentemente de se tratar de que o ser e o nada são igualmente in-
um algo ou de um nada, é o concei- determinados: com efeito, ““o ser, o
to de objeto em geral. Kant aplica imediatamente determinado é, na
dessa forma os conceitos categoriais realidade, nada”, e “o nada tem a
a esse objeto em geral. Daí surge o mesma determinação ou, melhor, a
nada como um conceito vazio, sem mesma falta de determinação que o
objeto (ens rationis), como um gê- ser”. Tal identificação é possível, se-
nero sem indivíduo, à maneira dos gundo Hegel, porque o ser foi esva-
noumena, que não podem figurar ziado previamente de toda referên-
entre as possibilidades, mesmo quan- cia, com o fim de alcançar sua ab-
do tampouco possam ser excluídos soluta pureza; assim purificado, diz-
como impossíveis, ou à maneira da- se do ser o mesmo que do não ser —
quelas forças naturais que podem ser por conseguinte, o ser e o nada são
pensadas sem contradições, mas das a mesma coisa. O absoluto imedia-
quais não existem exemplos oriundos tismo do ser coloca-o no mesmo pla-
da experiência. Esse nada pertence à
categoria da quantidade. A de qua-
no que a sua negação
e só o devir po-
derá surgir como um movimento ca-
lidade dá origem a uma idéia do na- paz de transcender a identificação da
da como objeto vazio, sem conceito tese e da antítese. Essa concepção de
(nihil privaticum), como simples ne- Hegel foi criticada por Jacques Ma-
gação e ausência de uma qualidade; ritain. Segundo esse autor, Hegel re-
a de relação, a um nada que é uma correu a uma noção errônea da abs-
intuição vazia, sem objeto (ens ima- tração (ver ABSTRAÇÃO, ABS-
ginarium), com oO
espaço puro e O TRATO); em vez de ater-se a uma
tempo puro; por fim, a de modali- concepção “formal” da abstração,
dade dá origem à idéia do nada co- ateve-se a uma concepção ““nomil-
mo objeto vazio, sem conceito (ni- nal” (ou “total””).
hil negativum), como o contraditó- Spencer e Bergson ocuparam-se do
rio e impossível, tal como uma figu- problema do nada. Spencer afirmou
ra retilínea de dois lados. O primei- que um objeto não existente não po-
ro distingue-se do quarto por ser al- de ser concebido como não existen-
go que não pode figurar entre as pos- te (First Principles, II, $ 4). Bergson
sibilidades, mesmo quando não seja negou toda possibilidade de pensar
contraditório, ao passo que o último o nada. Segundo Bergson, a metafi-
anula a si mesmo. Em contraparti- sica do passado rechaçou a noção de
da, o segundo e o terceiro são, co- que a duração e a existência consti!-
NADA 492
prio ato mediante o qual sustenta- timento de ausência causado pela fal-
mos que um objeto é irreal “coloca” ta de algo considerado útil. A ten-
a existência do real em geral. Em ou- dência da ação a proceder do ““na-
tras palavras, representar-se um ob- da” para o “algo” transpõe-se para
Jeto irreal não consiste em despojar- o domínio especulativo.
se de toda classe de existência, pois De um modo geral, portanto,
a representação de um objeto é ne- Bergson repeliu a possibilidade de
cessariamente sua representação co- “pensar o nada” e recusou-se a ad-
mo existente. Assim, há mais e não mitir que não haja experiência algu-
menos na idéia de um objeto não ma do “nada” — ou, melhor: a im-
existente. Tampouco se pode ““colo- possibilidade dessa experiência elimi-
car” (estabelecer) a existência da rea- na a possibilidade de semelhante
lidade inteira e logo eliminá-la com pensamento. As idéias de Bergson
um “não”, pois afirmação e nega- foram criticadas por Lachelier, en-
ção não são Juízos da mesma classe. tre outros. Lachelier exaltou o rigor
A negação não é um “não” soma- dos argumentos bergsonianos, mas
do a um “sim””. Uma afirmação ex- afirmou ser impossível suprimir a
pressa um Juízo sobre um objeto, en- idéia do nada e, ao mesmo tempo,
quanto uma negação expressa um sustentar a liberdade de um espírito
Juízo sobre outro juízo (ou seja, so- que, Justa e precisamente por ser li-
bre uma afirmação prévia). Assim, vre, pode recusar-se a afirmar a exis-
ao contrário do que ocorre com a tência de um ser qualquer.
afirmação, a negação não afeta di1- As opiniões de Heidegger sobre o
retamente o objeto. A negação afir- presente tema são inversas às de
ma algo de uma afirmação que, por Bergson. Enquanto este procura ex-
si mesma, afirma algo de um obje- plicar por que se afirma que há um
to. Resulta daí que a negação não é nada, Heidegger pergunta-se por que
o ato de um puro espírito separado não há, ou seja, formula-se a mes-
de todo e qualquer motivo e ocupa- ma pergunta de Leibniz: “Por que
do só de objetos enquanto objetos, há algo (“ente”) em vez de nada?”
pois a negação dirige-se a alguém: a Heidegger não tropeça, pois, na au-
nós mesmos ou a outra pessoa. À ne- sência do que procura; além disso,
gação tem um caráter soclal e peda- não procura um ente — o que, aliás,
gÓógico. muda a própria direção da ““pergun-
Bergson considerava que a insis- ta leibnizilana”'. O nada não é, para
tência na noção de que antes de, ou Heidegger, a negação de um ente,
“sob”, todas as coisas não há nada mas aquilo que possibilita o não e a
(ou “há “o Nada”), deve-se a que negação. O nada seria, nesse caso,
os “hábitos de ação” se nos impõem o “elemento” dentro do qual flutua
em nossos processos de pensamento. a Existência, esforçando-se por man-
A ação, afirmou Bergson, é inicia- ter-se à tona. Esse nada é descober-
da por uma insatisfação, por um sen- to por um fenômeno primordial, de
NADA 494
ria ipseidade nem liberdade. Pelo vi- cionado com o ente; no entanto,
gor com que expressou o seu pensa- quando começamos a divisar a for-
mento acerca do nada na conferên- ma em que era “um-com' o ente, ti-
cia (e folheto) de 1929, o conceito do vemos que retroceder de novo para
Nada nesse autor converteu-se numa considerar o significado que tinha
espécie de cause célêbre, chegando a para o Dasein. De qualquer perspec-
se identificar a filosofia de Heideg- tiva que se considere, pois, sem o Na-
ger com uma “filosofia do Nada”. da o Dasein não seria o Dasein. Mas
Por outro lado, encontramos escas- não podemos fechar o círculo por
sas referências ao Nada em O ser e completo sem um conhecimento adi-
o tempo, de 1927, e isso levou alguns
a afirmarem que não há um só pro-
cional: começamos
a ver que, embo-
ra se considere correntemente o Na-
blema importante no tocante ao Na- da como o concelto oposto à nega-
da na citada obra, mas tão-somente ção do ente, uma compreensão mais
na mencionada conferência. Ambas profunda dele mostra-nos a sua es-
as opiniões parecem errôneas. Em treita relação com o Ser.” Isso ex-
seu livro sobre a filosofia de Heideg- plica por que a questão do Nada vol-
ger, Através do nada, Priscilla N. ta a ser apresentada em 1955, ao re-
Cohn mostra que já em O sere o fletir “sobre a questão do Ser” (Zur
tempo a questão do Nada é impor- Seinsfrage).
tante, se não central. A conferência As idéias de Heidegger sobre o
de 1929 precisa e amplia o que se ex- Nada, em particular as expressas em
pressara na obra anterior. Mais ain- sua conferência de 1929, foram cri-
da: o “segundo Heidegger” ou “úl- ticadas por vários autores, especial-
timo Heidegger”* pode ser entendi1- mente por alguns de tendência ana-
do em função do modo como o pen- lítica e, de um modo mais especiífi-
samento do Nada, já claramente ex- co, neopositivista. O mais conheci-
presso em O ser e o tempo, se desen- do exemplo de crítica neopositivista
volve e se amplia, ao mesmo tempo de Heidegger encontra-se em Car-
em que se fundamenta. Desse modo, nap. Segundo esse autor, dizer que
o que poderia chamar-se ““a busca do “o Nada nadifica-se” é, logicamente
Nada” realiza-se a favor da ““per- falando, o mesmo que dizer ““a chu-
gunta pelo Ser”, que, de todo mo- va chove”. Não se trata, em nenhum
do, é, desde o princípio, a pergunta desses casos, de enunciados, mas de
fundamental de Heidegger e que per- ““pseudo-enunciados”'. São, pois,
siste através de seu Kehre: “Em O exemplos de má gramática e de uma
495 NADA
à
In nuce, a tese é que só cabe falar épor natureza” como contraposto
de “o Nada” como uma tendência “o que é por convenção” e, outras
“ontológica” e em expressões como vezes, tratou-se de “Natureza” em
“tanto barulho para nada”, “no contraste com “Arte”, com “Espi-
fundo, não há nada”, etc. Isso ocor- rito”, com “o sobrenatural”, etc.
re quando há algum desequilíbrio O contraste entre que é por na-
““o
notório entre as disposições “ser” e tureza” e “o que é por convenção”
“sentido”. Em princípio, dever-se- foi estudado pelos sofistas (depois,
1a poder falar de “o Nada” ou de
por Platão e outros autores) para dis-
“nada” quando, dada uma realida- tinguir entre aquilo que tem um mo-
de ou complexo de realidades, há ne- do de ser que lhe é próprio e que
las muito pouco ser em relação ao cumpre conhecer tal como efetiva e
sentido, ou muito pouco sentido com “naturalmente” é e aquilo cujo ser
relação ao ser. O autor considera, ou modo de ser foi determinado de
entretanto, adotando um ponto de acordo com um propósito (humano).
vista manifestamente pouco equili- Assim, por exemplo, discutiu-se se os
brado, que só cabe falar de “nada” vocábulos da linguagem, especial-
ou “tendência para o Nada” quan- mente os nomes, são “naturais” ou
do há pouco sentido em relação ao “convencionais”. Também se discu-
ser, O que ocorre quando se pergun- tiu — e continuou-se discutindo até
ta, por vezes, “para que tanto (tan- ao presente — se as “leis”, enquan-
tas coisas)?” e se responde ““para na- to “leis de uma sociedade”, ou a
da (ou pouco menos que nada)”. Es- “constituição”* (de uma comunida-
sa idéia é menos unilateral do que pa- de), derivam de um modo, ou mo-
rece, se se levar em conta que o sen- dos, de ser anteriores, ou se são re-
tido não está confinado a atos hu- sultado de um pacto ou ““contrato
manos. Assim, por exemplo, mesmo social”. Em todas essas discussões,
que não houvesse seres humanos, só a noção de ““ser por natureza” era
o universo material, com sua “enten- próxima da noção de ““ter algo pró-
dibilidade”, suas complexas relações prio de si e por si””. Pois bem, esta
entre elementos, etc., já teria uma última noção não é alheia ao modo
notável proporção de sentido. como Aristóteles propôs suas in-
fluentes diminuições de “natureza”.
NATUREZA O conceito de ““natu- Escreveu Aristóteles que há vários
reza” tem sido entendido em dois sen- sentidos de “natureza” (qvo:s): a ge-
tidos, aliás nem sempre independen- ração do que cresce (qveoda.); o ele-
tes um do outro: o sentido de “natu- mento primeiro de onde emerge o
reza” principalmente como a chama - que cresce; o princípio do primeiro
da “natureza de um ser”, eo sentido movimento imanente em cada um
de “natureza” como ““a Natureza”. dos seres naturais em virtude de sua
A questão complica-se, além disso, própria índole; o elemento primário
porque, às vezes, entendeu-se ““o que do que é feito um objeto ou do qual
497 NATUREZA
mas só Aristóteles forneceu sobre ele ao forum e o que tem quando se diz
precisões cabais. Uma passagem par- que é necessário (necesse est) que O
ticularmente esclarecedora a esse res- sol se mova. Desses três significados,
peito encontra-se em Mer., VII, 1072 pode-se eliminar o primeiro, porque
b ess. Segundo o Estagirita, o con- nada tem a ver com o que Porfírio
ceito do necessário tem os seguintes quer dizer (e, antes dele, Aristóteles)
sentidos: (1) à necessidade resulta da quando emprega o termo ““necessá-
coação; (2) a necessidade é a condi- rio”. Quanto aos dois outros senti-
ção do Bem; (3) é necessário o que dos — segundo e terceiro — mencio-
não pode ser de outro modo e o que, nados, o segundo quer dizer algo co-
por conseguinte, existe somente de mo “útil”; “é necessário irmos ao
um modo. O sentido (3) é o mais per- forum” equivale a “é útil que (ou
tinente para o nosso propósito e o convém que) vamos ao fórum”. SÓ
que exerceu maior influência. Me- o terceiro tem o sentido forte de ““ne-
diante o mesmo podemos distinguir cessidade”. Trata-se, no exemplo in-
entre necessidade, aváyxn, e desti- dicado, de uma necessidade ““real”,
no, eluaonpérm, assim como entre o mas se aquilo a cujo respeito se diz
que sucede por necessidade, xarT'a- que é necessário o for em virtude de
vayxnmv, e O que tem lugar por aci- alguma lei, caberá afirmar que a ne-
dente, xatà& ovupuBeBnxos. Pois bem, cessidade é “ideal”.
mesmo reduzida ao sentido (3), a no- É frequente, em muitos filósofos,
ção de necessidade pode entender-se passar da necessidade ideal à real e
de duas maneiras: (a) como necessi- vice-versa. No primeiro caso, supõe-
dade ideal e (b) como necessidade se haver uma razão que rege o un!-
real. (a) expressa encadeamento de verso. No segundo, que o rigoroso
idéias, enquanto (b), o encadeamen- encadeamento causal pode expres-
to de causas e efeitos. sar-se em termos de necessidade
Outros autores, além de Aristóte- ideal. Para evitar essas confusões, os
les, analisaram o sentido ou sentidos escolásticos propuseram confrontar
de ““necessário”* e ““necessidade”, a noção de necessidade com outras
Por exemplo, Boécio, no Livro [ de noções modais (entendidas em sen-
seus comentários à Isagoge de Por- tido ontológico) e distinguir entre vá-
fírio (In Isagogen Phorphyri Co- rios tipos de necessidade. No que se
menta, em Corpus &Scriptorum Eccle- refere ao primeiro ponto, afirmaram
siaticorum Latinorum, 48), observa que a necessidade inclui a possibili-
que, em latim, necessarius tem, co- dade, é contraditória com a contin-
mo avayxoatov, em grego, vários sig- gência (ver) e é contrária à impossi-
nificados. Entre eles, cabe mencio- bilidade. Quanto ao segundo ponto,
nar três: o que tem em Cícero, quan- propuseram várias distinções no con-
do diz que alguém é familiar seu (ne- ceito do necessário — definido co-
cessarium), o que tem quando se diz mo o que é e não pode não ser, quod
que é necessário (necessarium) irmos est et non potest non esse. Em pri-
NECESSIDADE 502
meiro lugar, há a necessidade lógi- cria as condições para que haja ne-
ca, a física e a metafísica. Em segun- cessariamente o que necessariamen-
do lugar, há a necessidade absoluta te há. Em outros autores, Deus e
(O necessário simpliciter, &vayxatov “necessidade” são aspectos diversos
ú&TNOs) e à necessidade relativa, de uma mesma realidade. Para Sp!-
condicionada ou hipotética (ava- noza, se algo é necessário, é porque
yxaotv é& vmobeécoemws). Em terceiro não há nenhuma razão que lhe im-
lugar, há a necessidade coativa e a peça de existir: necessarium est id
necessidade teleológica. Finalmente, quod nulla rationae causa datur,
há a necessidade determinada pelo quae impendit, quominus existat
próprio princípio de que o necessá- (Ética, 1, prop. XI), definição tau-
rio deriva: da forma, da matéria, etc. tológica somente se não se levar em
Com o que se estabelece uma grada- consideração que a definição do
ção entre formas de necessidade que campo ideal sobrepõe-se exatamen-
vão do absoluto ao mais condiciona- te, em Spinoza, ao que ocorre no
do e que permitem, inclusive, com- campo real. Em sua tentativa de
preender a necessidade condiciona- combinar as concepções modernas
da como uma atenuação da necessi- com as distinções antigas, Leibniz
dade absoluta. Na verdade, só de distingue mais exatamente entre os
Deus é costume dizer que não é pos- conceitos de necessidade metafísica
sível que não seja, non potest non es- ou absoluta; lógica, matemática ou
se. Entretanto, as verdades eternas geométrica; física ou hipotética, e
também são necessárias (pelo menos moral ou teleológica. A primeira ne-
para as concepções ““intelectualis- cessidade o é per se; a segunda, o é
tas”) mesmo quando dependam, se- porque o contrário implica contra-
gundo as concepções mais volunta- dição; a terceira, porque há rigoro-
ristas, da “arbitrariedade” divina. so encadeamento causal condiciona-
De um modo geral, a Epoca Mo- do por um suposto dado; a última,
derna entende a necessidade num porque o ato necessário deriva da
sentido preponderantemente ideal- prévia posição de fins. Não é preci-
racionalista, de tal modo que, em vez so dizer que a escola de Wolff ten-
de distinguir entre a necessidade ab- tou reduzir, também neste caso, as
soluta e a necessidade condicionada, diversas acepções ao conceito racio-
prefere distinguir entre a ideal e a nal, e a definição do necessário, tan-
real, e atribui à primeira um caráter to absoluto quanto condicionado,
absoluto (primeiro para a mente e, àquilo cujo contrário implica contra-
depois, para a própria coisa). Em dição (Wolff, Ontologia, $ 279). Por
Descartes, 1sso se torna possível por outro lado, as tendências empiristas
ter situado previamente Deus fora da descobriram na necessidade algo
esfera da necessidade propriamente muito distinto tanto de um conceito
dita: Deus não faz o que faz porque abstrato, quanto de um princípio on-
ISSO seja necessário, mas o
que faz tológico. Como toda idéia, a neces-
503 NECESSIDADE
que toca a este último ponto, cum- reza dessa relação, mas não há rela-
pre ter presente que o “aniquilamen- ção se as realidades são distintas; e se
to”* e as correspondentes ““negativi- hárelação, então existe somente uma
dades”* (négatités) só são nulismo do realidade, da qual nada se pode pre-
ponto de vista do “em-s1t””. O ““nit- dicar e com a qual nenhuma outra rea-
lismo”* sartreano pouco tem a ver lidade pode relacionar-se.
com o niilismo em qualquer dos sen-
tidos antes apontados. NOÇÃO Cícero (Topica, VII, 31)
Interessante na história do niilis- introduziu o vocábulo notio (=no-
mo moderno é o niilismo russo, o ção) para traduzir os termos gregos
qual tem, em parte, raízes psicoló- Evvota é TooNnvis. Ambos significam
gicas, sociais e religiosas. Uma ex- “pensamento”, “idéia”, “imagem
pressão radical do niilismo encontra- no espírito”, “desígnio”; mas, en-
se em Bakunin, que afirmava que só
quanto évvota foi empregado por
a destruição é criadora. Todavia, a muitos autores gregos com o sIigni-
forma mais radical desse nulismo tal- ficado de “idéia” (em geraD), room
vez se encontre em Dimitri Ivano- Vis foi empregado pelos estóicos e
vitch Pisarév, o qual escreveu que
epicuristas com o significado de uma
“tudo o que pode quebrar-se, há que “idéia” ou “imagem” antecipada
quebrá-lo; o que aguentar o golpe,
será bom; o que rachar, será bom pa- que se forma de um objeto no espí-
rito. Por esse motivo, traduziu-se
ra o lixo. Em todo caso, há que dar TpoNnnVis por ““antecipação””. No
golpes à direita e à esquerda: disso
sentido de “pensamento”, ““idéia”,
nada pode resultar de mau”.
Uma forma de niilismo filosofica- “concelto” e outros vocábulos aná-
mente interessante é o chamado ““bu- logos, o termo ““noção” foi, e con-
dismo niilista”* ou “niilismo budis- tinua sendo, empregado de um mo-
do muito geral: chama-se “noção”
ta”, na forma em que foi desenvolvi-
da por Nagarjuna, no século IT d.C. à idéia ou conceito que se tem de al-
Nagarjuna propôs uma Interpreta- go e, mais especificamente, a uma
ção “justa” ou “média”, Madyvami- idéia ou conceito suficientemente bá-
ka, de Buda, que consiste em negar sico. A noção distingue-se da idéia
toda alternativa para uma posição propriamente dita já que, enquanto
dada e na negação dessa negação. esta última pode ser (segundo certos
Assim, Nagarjuna situou-se no cha- filósofos) o princípio de uma reali-
mado ““vazio”, sunya, o qual é ine- dade, a primeira só pode constituir
fável e é o verdadeiro Absoluto. o princípio do conhecimento de uma
Nagarjuna destacou as contradições realidade. Quando suficientemente
em que cai toda a afirmação de qual- básicas, as noções consideradas equi-
quer (suposta) realidade; se se afirma valem aos princípios, chamando-se
que uma realidade está relacionada nesse caso de “noções comuns” os
com outra, cumpre elucidar a natu- princípios que, segundo se supõe,
NOME 508
pressões que não se referem a real1- o verbo —, sem que nenhuma das
dades — ou seja, que não ““signifi- partes do nome tenha significado dis-
cam” ou “denotam” idélas —, mas tinto do do nome (De int., 1, 1 a 19
que servem, porém, para falar acer- ss.). Aristóteles dá como exemplo
ca de realidades. A noção é um ter- xoNAiTTOS, EM QUE O NOME LTTOS,
mo abstrato ou teórico; pode ser em- “cavalo”, não tem em si mesmo ne-
pregada, mas sempre que se preten- nhum significado, como ocorre com
da referir-se a algo com ela. a expressão xaXhôs utTos, “belo ca-
valo”. Isso é o que sucede nos no-
NOME |[.Epoca antiga e medieval. mes simples. Nos nomes compostos,
Os sofistas trataram com frequência a parte contribui para o significado
do problema da natureza do nome, do todo, ainda que não possua em
ovoua; pretendiam apurar se um no- si mesma qualquer significado. O
me é ““por lei””, vonmw, ou “por con- exemplo é éraxtEoxéNns “barco pi-
venção”; ou, então, se é “por natu- rata”. Segundo Aristóteles, xéMNns,
reza”, pvoer. Os sofistas inclinavam- “barco” nada significa por si mes-
se para a primeira opinião: um no- mo fora do composto. Isso deve ser
me não designa, por sua própria na- entendido do seguinte modo: ““bar-
tureza, a coisa; designa-a porque co” não significa nada fora do com-
fazem-no designar a coisa. É a tese posto, se pensamos no composto,
posteriormente chamada ““nomina- mas pode significar algo se não le-
lismo”* (ou um dos aspectos dessa varmos em conta o composto.
teoria). Hermógenes, personagem do Dentro da escolástica, foram os
Crátilos platônico que representa, no gramáticos especulativos e os termi-
diálogo, as opiniões de Heráclito, nistas que mais interesse mostraram
considerava que os nomes são justos pelo problema do nome. Os primei-
por natureza, mas encontram-se em ros preocuparam-se, sobretudo, com
constante mudança, como todas as
colsas. Platão rechaçou as opiniões
os diversos modosde significar o no-
me, distinguindo entre um modo es-
509. NOME
e fazer dele um predicado; isto pode introduzido mediante uma regra que
expressar-se verbalmente, no caso de se refira exatamente a uma proprie-
Sócrates, quando se diz que há um dade. Segundo Carnap, a distinção
x tal que x “socratiza”. de Frege antes apontada entre o sen-
A doutrina de Wittgenstein-Rus- tido e o denominado, ou nomina-
sell, por um lado, e as de Frege- tum, é uma forma particular do ci-
Church, por outro, parecem incom- tado método da ““relação de nome”.
patíveis. Entretanto, foram realiza- A complexidade do problema dos
dos esforços no sentido de harmoni- nomes e, especificamente, dos nomes
zá-las e de admitir a possibilidade de próprios, mostra-se assim que se for-
que, embora não seja necessariamen- mula a questão, tratada pelo último
te o disfarce de uma descrição, um Wittgenstein, das relações (ou falta
nome próprio pode ter um sentido. de relações) entre nomear e mostrar.
Carnap (cf. Meaning and Neces- Em princípio, parece que se pode sa-
sity, cap. III) analisou o método da ber o nome de algo mostrando o no-
“relação de nomes”. Trata-se, em meado, ou seja, dando uma ““defi-
seu entender, de um método alterna-
nição ostensiva”? do nomeado. Mas
tivo de análise semântica, mais usual
a “mostra” não chega a identificar
que o método da extensão e da in- o objeto que leva o nome proposto,
tensão. Tal método consiste em con- salvo se tem lugar dentro da trama
siderar expressões como nomes de
de uma linguagem comum ao que
entidades (concretas ou abstratas) se-
produz a mostra e ao que trata de
gundo três princípios: (1) cada no-
me tem exatamente um nominatum;
aprender o que é aquilo a que se dá
(2) qualquer enunciado (ou melhor, um nome mostrando um objeto. As
sentença) fala acerca dos nomes que complicações crescem quando se per-
cebe que há nomes que são disfar-
aparecem nele; (3) se um nome que
ces de descrições, mas que outros
aparece numa sentença verdadeira é
substituído por outro nome com o não o são; que há nomes que no-
mesmo nominatum, a sentença con- meiam um objeto existente e outros
tinua sendo verdadeira. Carnap ana- que nomeiam (ou propõem-se no-
lisa os problemas que oferece a du- mear) algo que não existe — ou ain-
plicação desnecessária dos nomes da não existe — e a que se propõe
manifestada em alguns sistemas on- dar um determinado nome; que há
de se usam nomes distintos para pro- nomes próprios usados como nomes
priedades e para as correspondentes comuns e nomes comuns que acaba-
classes. Segundo esse autor, um no- ram por adquirir o status de um no-
me para a propriedade Humano e me próprio, etc. (Cf. para todos es-
um nome distinto para a classe Hu- tes pontos o livro do autor desta
mano não só têm a mesma extensão, obra, Indagaciones sobre el lengua-
mas também a mesma intenção. Um Je, 1970, cap. 8: “Nombrar y mos-
nome para uma classe deve, pois, ser trar”).
513 NOMINALISMO
minismo, etc.
o
nalismo, o convencionalismo, ter- ta de indicar que função têm as su-
postas entidades abstratas.
E frequente ler-se que a filosofia Várias tendências filosóficas con-
moderna foi fundamentalmente no- temporâneas foram explicitamente
minalista. Mas, se nos ativermos a nominalistas. Isso ocorreu, por exem-
uma concepção um pouco estrita do plo, com diversas formas de neopo-
nominalismo, não poderemos dizer sitivismo e, também, com várias es-
que a filosofia moderna (ou moder- pécies de intuicionismo e ““irracio-
na e contemporânea) tenha sido ba- nalismo””. Ernst von Aster (1880-
sicamente nominalista. É muito du- 1948) defendeu o nominalismo (Prin-
vidoso, por exemplo, que tenham s1- zipien der Erkenntnislehre. Versuch
do nominalistas autores como Spino- einer Neubegrindung des Nomina-
za ou Hegel. É óbvio que Husserl lismus, 1913), em oposição à teoria
não o foi. O próprio Locke não foi dos universais de Husserl. Nelson
nominalista, e sim, mais exatamen- Goodman e W. van Quine defende-
te, conceptualista e até realista mo- ram um “nominalismo construtivo”
derado. Nominalistas foram, por (“Steps Toward a Constructive No-
certo, em contrapartida, pensadores minalismӼ, The Journal of Symbo-
como Hobbes, Berkeley e Condillac, lic Logic, XII, 1947, 105-22). Esses
mesmo quando cada um deles o te- autores manifestam ““não acreditar
nha sido em proporções diversas e
em entidades abstratas”, mas reco-
por motivos distintos. Assim, Hob- nhecem que essa declaração de prin-
bes e Condillac foram praticamente
cípios é vaga demais e é imprescin-
“inscricionistas”', ao passo que Ber-
divel empregar termos mais precisos.
keley negava que se pudesse falar
Nelson Goodman, sobretudo, preci-
com algum sentido de idéias abstra-
sou e elaborou a mencionada dou-
tas, mas admitia as “idéias gerais”.
Por outro lado, Hobbes e Condillac trina (“A World of Individuals”, em
Il. M. Bocheúski, A. Church
estribavam seu nominalismo numa e N.
certa idéia da ciência e da linguagem Goodman, The Problems of Univer-
científica, ao passo que Berkeley fun- sals. A Symposium, 1956, pp. 15-31)
damentava o seu nominalismo em como doutrina segundo a qual “o
pressupostos teológicos semelhantes mundo é um mundo de indivíduos”.
aos de Ockham. Pode-se falar de um “O nominalismo, tal como o conce-
nominalismo moderado, de um no- bo — escreveu ele — não equivale à
minalismo exagerado e de um nomi- exclusão de entidades abstratas, es-
nalismo absoluto. Todas essas espé- píritos, insinuações de imortalidade
cies de nominalismo afirmam que ou nada desse tipo; requer unicamen-
não existem entidades abstratas te que, na medida em que é admiti-
(idéias, universais) e que só existem do como uma entidade, seja conce-
entidades concretas (indivíduos). As bido como um indivíduo.”
NOUS 516
NOUS O termo grego vous e sua ele. Não é, contudo, pura forma: o
transcrição nous empregam-se amiú- nous tem matéria e forma, se bem
de em textos filosóficos. Nous é uti- que sua matéria também seja de ca-
lizado em grego em vários sentidos: ráter inteligível. Para alguns neop!-
(1) como faculdade de pensar, inte- tagóricos, o vous é a unidade das
ligência, espírito, memória e, às ve- idéias (e dos números, ou dos
zes, como na Odisséia (VI, 320), sa- “números-idéias””, ou ““délas-
bedoria; (2) como o pensamento ob- números”). Segundo Numênio de
Jetivo, a inteligência objetiva; (3) co- Apaméia, considerado por alguns
mo uma entidade (impregnada de in- como um neopitagórico e por outros
teligência) que rege todos os proces- como um precursor do neoplatonis-
sos do universo. O sentido (1) é fre- mo, há, no ““segundo Deus”,
quente em Aristóteles, que concebe uma tríade: O primeiro vous, que
O nous como a parte superior da al- “nensa por desejo do segundo
ma, Vvuxn. Porém, sendo essa parte Deus”; o segundo vovs, relacionado
comum a todos os seres inteligentes, com o primeiro e criador (pelo dese-
objetiva-se até converter-se no enten- jo) do terceiro; e um terceiro vous,
dimento (ver) agente, com o que ad- relacionado com o pensamento hu-
quire a significação (2). Nesse sen- mano (K. S. Guthrie, Numenius of
tido, traduziu-se com frequência Apamea, The Father of Neo-Plato-
nis, Londres, 1914, Fr. XXXIX,
vous por intellectus, e foi definido
p. 40).
como um hábito (ver) da alma,
quando não como a própria alma en- NÚMENO O termo “númeno” sig-
quanto unidade de todas as suas at1- nifica ““o que é pensado”; no plural,
vidades. Em algumas ocasiões (como “númenos”, as “coisas que são pen-
em Santo Agostinho), o nous repre- sadas”*. Como ““ser pensado” se en-
senta a vida interna do espírito e, tende, nesse caso, no sentido de ““o
nesse sentido, equivale a mens. O que é pensado por meio da razão”
sentido (3) é o que lhe dá Anaxágo- (ou mediante uma intuição intelec-
ras (ver ESPÍRITO). A combinação tual), costuma-se equiparar “núme-
dos sentidos (3) e (2) encontra-se com no” ao “inteligível””. O mundo dos
frequência nos neoplatônicos. Assim
o vemos em Plotino, para quem o
númenos é, assim, o mundus intelli-
gibilis, contraposto desde Platão ao
vous é a segunda hipóstase emanada mundus sensibilis, o mundo dos fe-
do Uno e emanadora da Alma do nômenos. Dentro da (vagamente)
Mundo. O nous plotiniano é, por- chamada ““tradição racionalista” (e,
tanto, o ato primeiro do Bem e está geralmente, também realista), admi-
para o Uno assim como o círculo es- te-se que o mundo numênico ou nu-
tá para o seu centro. O nous é con- menal constitui a realidade última,
cebido então, com frequência, como ou realidade metafísica, que não só
a visão (inteligível) do princípio do essa realidade é cognoscível, mas
Uno, constantemente voltada para também a única plenamente cognos-
517 NUÚUMENO
cível — só essa realidade é objeto pode ser o nome pelo qual se desig-
de saber, em vez de ser mero objeto na a aparência, ou, se se quiser, O
de opinião. Pode suceder que tal sa- conceito de aparência); (2) supondo-
ber nunca se alcance; mas, se existe se que, enquanto a coisa-em-s1i é um
conhecimento verdadeiro, tem ele puro X — uma incógnita (aquilo a
que ser, segundo essa tradição, co- que Kant chama, por vezes, de um
nhecimento do mundo numênico e modo deveras impreciso, dado o uso
inteligível. técnico de ““transcendental””, ““ob-
“Númeno” é um vocábulo técni- jeto transcendental”) —, o númeno
co na filosofia de Kant. Com fre- é o outro aspecto, por certo Incog-
quência, é difícil distinguir em Kant noscível, do fenômeno; (3) supondo-
entre o conceito de númeno e o de se que, enquanto o conceito de coisa-
colsa-em-si (ver). “Númenos” e em-si não pode ter nenhum empre-
“colsas-em-s1””º são expressões que go, o de númeno tem, pelo menos,
designam o que se encontra fora do um emprego regulador; (3) é implau-
quadro de referência da experiência sível dentro do pensamento de Kant;
possível, tal como foi traçado na
“Estética Transcendental” e na
(1)
e 2) são igualmente admissíveis,
porque ambos supõem que não se
“Analítica Transcendental”* da Cri pode ir além dos limites da experiên-
tica da Razão Pura. Não obstante, cia possível. Em (1) admite-se haver
Kant introduziu também a noção de equivalência entre númeno e coisa-
númeno como distinta da coisa-em- em-s1; dado que a coisa-em-si é in-
si. Em K. r. V., A 249, escreveu que cognoscivel, o númeno também é in-
“as aparências (ver APARENCIA), cognoscível. Em (2) pressupõe-se que
na medida em que são pensadas co- o termo “númeno”' refere-se aos |li-
mo objetos, segundo a unidade das mites da experiência possível. Mas,
categorias, chamam-se fenômenos ainda que se possa conhecer tudo o
[phaenomena], ao passo que, se pos- que se encontra “aquém” desses li-
tulo coisas que sejam meros objetos mites, não se pode conhecer o que
do entendimento e que, no entanto, se encontra “além” deles. Como o
podem ser dadas como tais a uma númeno é positivamente incognos-
intuição, embora não a uma intui- cível, também cabe dizer-se dele que
ção sensível — portanto, dadas co- é “negativamente cognoscível”. Is-
ram intuitu intellectualis —, tais col- so equivale a admitir um conceito
sas poderiam ser chamadas númenos negativo de númeno em vez de um
[noumena] (intelligibilia)”. A distin- conceito positivo. Em duas passa-
ção em questão pode entender-se de gens bem próximas, Kant estabele-
vários modos: (1) supondo-se que ce essa distinção entre os sentidos ne-
“númeno” é o nome pelo qual se gativo e positivo de númeno e incli-
designa a colsa-em-sil, ou, se se qui- na-se para o primeiro sentido: ““Se
ser, o concelto da coisa-em-si (de por númeno' queremos dizer uma
modo parecido a como “fenômeno” coisa na medida em que não é um
NUÚUMENO
S18
objeto de nossa intuição sensível e te, “o que não é objeto de nossa in-
abstraída de nossa maneira de intuí- tuição sensível”*. Na medida em que
lo, então trata-se de um númeno no a colsa-em-si é também entendida
sentido negativo da palavra. Mas se como ““o que não é objeto de nossa
entendemos por “númeno' um obje-
to de uma intuição não sensível,
Intuição sensível”*, númeno
e coisa-
em-si são equivalentes. Mas Kant pa-
pressupomos, com isso, uma maneil- rece mais inclinado a admitir o con-
ra especial de intuir, isto é, a intul- ceito de númeno, pelo menos em
ção Intelectual, que não possuímos sentido negativo, do que o de coisa-
e da qual não podemos sequer en- em-si. Em todo caso, não propôs ne-
tender sua possibilidade. Isso seria nhuma distinção entre “sentido po-
o númeno' no sentido positivo da sitivo”* e “sentido negativo” de coi-
palavra” (K. r. V., B 307). “Se, por sa-em-si e nunca disse algo como: ““o
conseguinte, intentamos aplicar as que chamamos “coisa-em-si' deve
categorias a objetos não considera- entender-se unicamente em sentido
dos como aparências, teremos que negativo”.
postular uma intuição distinta da As mesmas razões que levaram al-
sensível, e o objeto será, então, um guns filósofos pós-Kantianos a des-
numeno em sentido positivo. Mas, cartar a noção de coisa-em-si indu-
como essa forma de intuição, a in- ziram-nos também a prescindir do
tuição intelectual, não faz parte da conceito de númeno. Para a inter-
nossa faculdade de conhecimento, pretação de Kant, é fundamental
segue-se que o emprego das catego- precisar o papel que desempenha es-
rias não pode ampliar-se mais do que te último conceito em seu sistema.
aos objetos da experiência. É indu- Se se tende à sua eliminação, ou se
bitável, por certo, a existência de en- se considera que o númeno, enquan-
tidades inteligíveis que correspon- to conceito-limite, é uma pura ““de-
dem às sensíveis. Também pode ha- claração de princípios” sem nenhum
ver entidades inteligíveis com as efeito ulterior na constituição crit1-
quais nada tenha a ver a nossa fa- ca do saber, a teoria do conhecimen-
culdade de intuição sensível. Mas, to de Kant adquire um forte matiz
como os nossos conceitos do enten- fenomenista. Em contrapartida, se
dimento são meras formas de pen- se enfatizar a importância do con-
samento para a nossa intuição sen-
sível, não podem de modo nenhum
ceito de númeno,
a teoria do conhe-
cimento de Kant inclina-se fortemen-
aplicar-se a elas. Portanto, o que te para o idealismo — se bem que
chamamos “númeno' deve entender- para um idealismo transcendental,
se unicamente em sentido negativo e não para um idealismo absoluto
(K. r. V., 308-309). Em suma, o nú- ou dogmático. Em todo caso, a dis-
meno em sentido negativo é um l1- tinção entre fenômeno e númeno é
mite (do nosso conhecimento). Di- importante na filosofia kantiana.
zer “númeno” é dizer, simplesmen- Um exemplo a respeito encontra-se
519 NÚMENO
toricum, de 1655]). Mas, em todo ca- den kann (como escreve Clauberg,
so, é certo que Clauberg destacou a em alemão, dentro da obra latina —
importância da Ontologia — ou On- costume, aliás, cada vez mais fre-
tosophia. A referida obra divide-se quente em obras filosóficas acadêmi-
em quatro partes que tratam: (1) dos cas alemãs do século XVIII). Em
prolegômenos que informam sobre 1694, Clauberg publicou uma edição
a “ciência primeira”; (2) da didáti- anotada dos acima mencionados £Ele-
ca ou método de tal ciência; (3) do menta philosophiae sive ontosophia,
uso da mesma nas demais faculda- com o título de Ontosophia, quae
des e em todas as ciências, e (4) da vulgo Metaphysica vocatur (conten-
diacrítica ou diferença entre ela e as do como apêndice um escrito intitu-
outras disciplinas. Segundo Clau- lado Logica contracta). Nessa obra,
berg, a ontosophia (ou ontologia) é Clauberg indica que o nome ontoso-
uma scientia prima que se refere (por phia, “embora não fosse do gosto
analogia e não univocamente) tanto das pessoas doutas nas letras gregas,
a Deus quanto aos entes criados. fez seu caminho no público” e, de-
Trata-se de uma prima philosophia, polis, reiterou as idélas expressas nos
suscetível de sobrepor-se à mowTn Elementa e os nomes usados na Me-
orrogopia de Aristóteles, ou seja, de taphysica de Ente.
uma scientia quae speculantur Ens, As ““pessoas doutas nas letras gre-
prout Ens. Em 1656, Clauberg pu- gas” eram possivelmente humanis-
blicou uma obra intitulada Metaphy- tas e filólogos; “o público” não po-
sica de Ente, qua rectitus Ontoso- de ser outro senão ““o público filo-
phia, na qual define a ontosophia co- sófico”. E, de fato, esse “público”
mo quaedam scientia, quae contem- respondeu com simpatia ao novo vo-
platur ens quatenus ens est. Irata- cabulário. Em 1653, J. Micraelius
se da mesma ciência que é “comu- publicou um Lexicon philosophicum
mente” chamada Metaphysica, mas terminorum philosophis usitatorum,
que seria “mais apropriado” chamar de que se publicou uma segunda edi-
Ontologia ou scientia Catholica, er- ção em 1662. Embora não inserisse
ne allgemeine Wissenschaft, & Phi- nenhum verbete sobre “Ontologia”
losophia universalis. O ens de que ou “Ontosofia”, falou de óvrohoyia
trata a ontologia pode ser conside- no verbete “Philosophia”. A óovrto-
rado como pensado (intelligibile), co- Aoia foi definida por Micraelius co-
mo algo (aliquid) e como a coisa mo uma peculiaris disciplina philo-
(substantia). Não podemos deter-nos sophica, quae tractat de ente, ao que
aqui em várias e interessantes refle- acrescentou: quod tamen ab aliis sta-
xões de Clauberg, das quais parece tuitur objectum ipsius metaphysica,
deduzir-se que a ontologia é como O que pareceu um ““retrocesso” em
uma “noologia”, pelo menos na me- relação a Clauberg e até em relação
dida em que a ontologia trata de Al- a Caramuel, porquanto sobrepunha
les was nur gedacht und gesagt wer- ontologia a metaphysica. Em 1692,
ONTOLOGIA 526
rede conceitual que apreenda a rea- cla (portanto, não à teoria do signi-
lidade. A ontologia é entendida, as- ficado). Dada uma teoria, cabe per-
sim, como uma ““construção” den- guntar por sua ontologia, mas tam-
tro da qual adquirem sentido certos bém por sua ““deologia” (pelas
conceitos metafísicos fundamentais, idéias que podem expressar-se nela).
como os de realidade, essência, exis- Não há correspondência simples en-
tência, etc. É uma disciplina funda- tre a ontologia de uma teoria e sua
mental que antecede toda investiga- ideologia: “duas teorias podem ter
ção filosófica e científica. a mesma ontologia e uma ideologia
Stanislaw Lesniewski chamou de distinta” (ibid., p. 131). Quine en-
“ontologia” a teoria e o cálculo de tende por “ontologia” a “ontologia
classes e relações. Segundo esse au- de uma teoria”.
tor, a ontologia distingue-se da pro- O autor da presente obra usou
totética (ou cálculo proposicional) e “ontologia” — diferentemente de e,
da mereologia (ou álgebra de classes, inclusive, em oposição a metafísica
com exclusão da classe nula). O de- — para designar toda investigação —
senvolvimento da ontologia dá lugar composta principalmente de análise
a uma “axiomática ontológica”. Se- conceitual, crítica e proposta ou ela-
gundo Kotarbinski e Leon Chwistek, boração de marcos conceituais de re-
a ontologia de Lesniewski, não obs- ferência — relativa aos modos mais
tante seu caráter lógico-formal, tem gerais de entender o mundo, isto é,
531 ONTOLOGIA
ne, que não admite os limites infle- tude de que Deus concede o enten-
xíveis entre verdade lógica e verda- dimento à fé — assinala no capítulo
de fática). Todo o erro consistiria, II que, segundo os Salmos (XIV, 1),
pois, em tratar as ““ “questões' exter- O insensato disse no seu coração:
nas” (que não são propriamente “Não há Deus.” Este Deus é aquilo
“questões”*) como ““ “questões' inter- que nada maior pode ser pensado.
nas”, em vez de referi-las a decisões Mas quando o insensato ouve essa
Justificáveis, em última instância, expressão, entende o que ouve eo
por seus resultados. O ““princípio de que entende ““está em seu entendi-
tolerância” (nas formas lingúísticas) mento”, mesmo quando não enten-
foi invocado, uma vez mais, por da que esse aquilo do que nada
Carnap sem mais restrições do que maior pode ser pensado exista. Pois
a cautela e o espírito crítico nas ope- uma coisa é a presença de algo no en-
rações assertivas. tendimento, outra é entender que o
que está no entendimento existe.
ONTOLÓGICA, PROVA A prova Pois bem, o insensato deve admitir
de Santo Anselmo para a existência que o que ouve e entende está no en-
de Deus foi chamada, a partir de tendimento. Mas, além disso, tem de
Kant, prova ontológica — e também estar na realidade. Com efeito, se
argumento ontológico. Se bem que, aquilo de que nada maior se pode
com razão, se considere essa expres- pensar só estivesse no entendimento
são no mínimo ““desorientadora” e não seria o maior que se pode pen-
se proponha muitas vezes restabele- sar, polis lhe faltaria para 1sso ser
cer o uso da expressão ““prova an- real. “Se aquilo de que nada maior
selmiana”, o fato de que se tenha pode ser pensado [““id quo nihil ma-
continuado empregando na maioria Jus cogitari potest”*] está unicamen-
dos textos filosóficos o nome que lhe te no entendimento — disse Santo
deu Kant torna conveniente limitar- Anselmo —, esse aquilo de que na-
se a esse uso. Como uma das de- da maior pode ser pensado será
monstrações tradicionais da existên- maior que aquilo de que é possível
cia de Deus, deveria ser examinada pensar-se algo.”* Portanto, deve exis-
no artigo correspondente (ver tir, tanto no entendimento quanto na
DEUS. III. Prova de sua existência). realidade, algo maior que aquilo de
No entanto, por sua importância ca- que se possa pensar, e esse algo é pre-
pital, optamos por tratá-la aqui se- cisamente Deus.
paradamente. As diferentes formas assumidas
Tal como foi formulada, especial- pela prova são a repetição, de diver-
mente nos quatro primeiros capitu- sos ângulos, da mesma série de ar-
los do Proslogion, a prova desenvol- gumentos. ““Se se pode pensar a ine-
ve-se da seguinte maneira: Santo An- xiIstência daquilo de que nada maior
selmo — para quem, como
é sabido,
a fé requer o entendimento, em vir-
pode ser pensado, esse aquilo de que
nada maior pode ser pensado não é
533 ONTOLÓGICA, PROVA
na prova anselmiana, mas esta con- ter analítico e tautológico, mas Jja-
tinuou sendo examinada de ângulos mais poderia ter um fundamento
muito diversos na filosofia contem- existencial. Assim, algumas das úl-
porânea. Aqueles que, seguindo He- timas tendências, simultaneamente
gel, consideraram que ““o finito é al- empiristas e analíticas, repeliram a
go não verdadeiro”, reabilitaram a prova — e, de um modo geral, toda
prova, possivelmente porque o fun- argumentação acerca de um princíi-
do desta consiste na afirmação do in- pio transcendente —, não só pela ale-
finito atual como realidade e não, gada impossibilidade de sua compro-
como assinalava Hegel, na contrapo- vação ou verificação empírica, ou
sição da representação e da existên- pelas falhas descobertas na própria
cia do finito ao infinito. Quando os trama da argumentação racional, mas
idealistas negaram o esforço hegelia- também porque as proposições con-
no da prova, 1sso se deu porque, co- tidas nela foram consideradas caren-
mo no caso de Bradley, houve a ten- tes de significação, ou seja, pseudo-
dência a estabelecer uma distinção proposições que não se referem nem
entre a perfeição teórica, cuja de- ao lógico-tautológico, nem ao empi-
monstração se admitiu, e a perfeição ricamente comprovável.
prática, cuja prova se negou (cf. Ap- O interesse pela prova ontológica
pearance and Reality, pp. 149-50). ressurgiu com os trabalhos de Nor-
Alguns tentaram uma demonstração man Malcolm e Charles Hartshorne.
do necessário pelo valioso; assim, Já indicamos antes que Malcolm dis-
Lotze assinala que, desse ponto de tingue entre duas provas (ou dois ar-
vista, ““o contingente conota o que gumentos) em Santo Anselmo. A
realmente existe, mas não tem signi!- prova mais interessante é, segundo
ficação nenhuma em virtude da qual Malcolm, não a primeira — como
necessite existir”; o necessário, em pensou a maioria dos autores —,
contrapartida, “não designa algo mas a segunda. Dela se depreende
que deve ser algo, mas algo tão in- que, se se conceber um ser maior que
condicionalmente valioso que só em o qual nada existe, esse ser é um do
virtude dele merece uma existência qual cabe dizer, em termos de lógi-
incondicional”*. Com o que “somen- ca modal, que é necessário. Que exis-
te nesse sentido pode-se dizer que o ta ou não esse ser, é necessário; é lo-
Princípio do Universo é necessário” gicamente necessário que exista, ou
(Mikrokosmos, IX, cap. iv, $ 2). é logicamente necessário que não
No referente às tendências empi- exista (isto é, é logicamente impos-
ristas, rejeitaram em geral a prova ou sível que exista). Se não há contra-
consideraram que ela, no máximo, dição em admitir que existe, então
remete a um fato suficiente, mas não pode-se concluir que existe necessa-
a uma razão suficiente, que seja, riamente. Hartshorne adere a um ar-
além disso, existente. Pois a razão gumento semelhante, baseando-se nu-
suficiente seria unicamente de cará- ma Idéia, que qualifica de “neoclás-
539 OPINIÃO
sica”, segundo a qual ““a perfeição do devir e, portanto, não pode ser
não é um estado, um actus purus, simplesmente menosprezada. Entre-
mas um devir”". A perfeição é, em tanto, o que caracteriza o filósofo é
suma, perfectibilidade. Assim, quan- o fato de não ser “amigo da opi-
to mais perfeito é um ser, menos nião”, isto é, o fato de estar conti-
atual ele é, de modo que ““o infinito nuamente voltado para o conheci-
absoluto da potencialidade divina” mento da essência imutável. A con-
é a “coincidência (ou co-extensivida- cepção platônica da opinião perma-
de) com a possibilidade como tal”. necia, pois, estreitamente vinculada
Hartshorne recorre às leis da lógica à admissão da existência e do prima-
modal — segundo a qual dizer ““p é do do mundo inteligível; não era sim-
possível”* equivale a dizer “necessa- plesmente uma crença, mas, como
riamente p é possível”, e dizer “é vimos, uma faculdade especial e 1r-
possível que p seja necessário” equi- redutível, algo intermediário para um
vale a dizer “necessariamente p é ne- ser também intermediário. Não obs-
cessário”* — e considera que é váli- tante, o caráter provável da opinião
da a prova ontológica da existência em face da segura certeza da visão
de Deus (que se converte, então, em intelectual do inteligível tornou pos-
“prova modal”). sível a lenta transição para o conceil-
to atual de opinião como algo dis-
OPINIÃO Na República (V, 477-480 tinto, ao mesmo tempo, do saber e
A), Platão assinala que o que é ab- da dúvida; na opinião, não há pro-
solutamente também é cognoscível priamente um saber, tampouco uma
absolutamente, e que o que não exis- ignorância, mas um modo particu-
te absolutamente não é conhecido lar de asserção. Essa asserção está
sob nenhum aspecto. Mas havendo tanto mais próxima do saber quan-
coisas que, ao mesmo tempo, são e to mais prováveis são as razões em
não são, isto é, coisas cujo ser é O que se apóia; uma possibilidade ab-
estar situadas entre o ser puro e o pu- soluta dessas razões faria coincidir a
ro não ser, cumpre postular, para a opinião com o verdadeiro conheci-
compreensão delas, a existência de mento.
algo intermediário entre a ignorân- Segundo os escolásticos, na opi-
cia, à&yvoia, e a ciência, émoTíunm. nião há sempre um assentimento, as-
A esse saber intermédio das coisas Sensus, mas um assentimento em que
também intermédias pertence a opil- existe sempre formido partir oppo-
nião, dota. Trata-se, segundo Pla- sitae, temor do sustentado pela as-
tão, de uma faculdade própria, dis- serção contrária. Por isso os escolás-
tinta da ciência, de uma faculdade ticos assinalam que a razão formal
que nos torna capazes de ““julgar a da opinião, ou seja, aquilo que a dis-
aparência” (477 E). Como conheci- tingue da certeza, é Justamente o ser
mento das aparências, a opinião é o assensus informus seu cum formidi-
modo natural de acesso ao mundo ne contradictorii.
ORFISMO 540
não pode ser considerado como uma ses paralogismos apóia-se nas idéias
concorrência de várias coisas atuan- desenvolvidas na “Analítica trans-
do ao mesmo tempo é uma ação sim- cendental”'. As categorias ou concei-
ples; (b) a alma, ou eu pensante, é tos do entendimento introduzidos na
tal classe de ser; (c) a alma, ou eu “Analítica” não possuem significação
pensante, é simples. objetiva — não são ““aplicáveis” —,
(3) O paralogismo da personalida- salvo na medida em que têm como
de, que diz: (a) aquilo que é cons- matéria as “intuições”. As proposi-
ciente da identidade numérica de si ções de que tratam os paralogismos
mesmo em distintos momentos é em questão não são, entretanto, apli-
uma pessoa; (b) a alma é consciente cáveils a intuições, pois transcendem
da identidade numérica de si mesma a possibilidade de toda experiência.
em diversos momentos; (c) a alma é Segundo Kant, não se pode confun-
uma pessoa. dir a unidade do ““eu penso” (que
(4) O paralogismo da idealidade, acompanha todas as representações)
que diz: (a) a existência do que só se com a unidade transcendental do eu
podeinferir como causa de percepções como substância simples e como per-
dadas tem existência puramente du- sonalidade. Daí decorre que a de-
vidosa; (b) todas as aparências exter- monstração racional da imortalida-
nas são tais, que sua existência não é de, substancialidade e imaterialida-
imediatamente percebida e só podem de da alma baseia-se em paralogis-
ser inferidas como causas de percep- mos. A existência da alma e seus pre-
ções dadas; (c) portanto, a existência dicados só podem ser, para Kant,
de todos os objetos dos sentidos exte- postulados da razão prática.
riores é duvidosa (K. r. V., A 348-81). As objeções formuladas por Kant
Na segunda edição da Crítica da contra as demonstrações — ou pre-
Razão Pura, Kant indica que todo tensas demonstrações — da psycho-
modo de proceder da psicologia ra- logia rationalis são rejeitadas por
cional encontra-se dominado por um quem admite um tipo de intuição ca-
paralogismo. Este pode tornar-se ex- paz de apreender diretamente a rea-
plícito mediante o seguinte silogis- lidade, unidade ou personalidade do
mo: (a) o que não pode ser pensado eu. Assim ocorre com os idealismos
de outro modo, senão como sujeito, pós-kantianos (intuição intelectual)
não existe de outro modo, senão co- e, na época contemporânea, com au-
mo sujeito, e é, portanto, substân- tores como Bergson (intuição direta
cia; (b) um ser pensante, considera- da intuição). Cumpre observar, po-
do meramente como tal, não pode rém, que os autores citados não tra-
ser pensado de outro modo, senão tam de provar a existência da ““al-
como sujeito; (c) portanto, existe so- ma” no sentido tradicional, mas de
mente como sujeito, ou seja, como intuir uma realidade psíquica, ou
substância (K. r. V., B 410-412). psiquico-espiritual, diretamente ex-
A refutação kantiana de todos es- perimentável.
553 PARTICULAR
são usados para se referir a tal par- lhor dizendo, de atributo, a fim de
ticular. lhe incutir um sentido. Isso equivale
Uma questão mais geral é a de o a dizer que, se algo existe, não é um
que cabe entender por “um particu- puro particular, tampouco um feixe
lar” ou “uma entidade particular”. de predicados, mas o que “há” em
Se o particular é “o que é uma deter- cada caso. ““O papel do que se cha-
minada coisa”, ou “aquilo que é uma mou “sujeito” é ser especificável me-
determinada coisa”, 1sto é, “o que” diante o chamado “predicado, mas
ou “aquilo que” tem determinados esse predicado só pode especificar
predicados, então os predicados de- uma coisa especificável, isto é, um
terminam a entidade particular, a sujeito. Assim, o sujeito remete ao
qual deixa de ser particular para se predicado, e este àquele, sem que ne-
converter num feixe de propriedades. nhum deles possa subsistir por si
E, como essas propriedades são ““ge- mesmo. Não são realidades ou par-
rais” ou “universais”, no sentido de tes de realidade, mas pólos onto-
que se aplicam, em principio, a diver- lógicos, cuja confluência permite
sos particulares, resulta nada haver apressar a constituição ontológica e
que seja, stricto sensu, um particular. especificamente entitativa [diferente
Por outro lado, se se sublinha o as- de “significativa ] de qualquer real1-
pecto “último” (ou ““básico”*) do dade.”
particular, ou ““a própria particula-
ridade como tal”, independentemen- PERCEPÇÃO
rios
Os gregos usaram vá-
traduzem
te dos predicados, temos o que foi termos que se por
chamado, por vezes, um “mero par- “percepção”: a&vTINfVis, xaTÁNN-
ticular”* ou um ““puro particular”. Vis. O sentido mais comum desses
Mas um ““mero (ou puro) particular”? termos é o de “recolhimento”, co-
é um substrato do qual não se pode mo ação e efeito de recolher algo
dizer mais do que é um substrato ou (que se reclama). Em latim, percipio
suporte. Se se procurar corrigir essa (percipere) é o mesmo que “tomar
“deficiência”, será necessário, então, posse de”, “cobrar”, “recolher”.
caracterizar de algum modo o parti- Cicero usa a expressão perceptiones
cular, mas isso não parece poder ser animi, dando a entender com ela
feito sem que se recorra a predicados uma “apreensão” de notas intelec-
ou a propriedades. tuais ou traços intelectuais (concei-
Uma solução possível para o con- tuais), isto é, de noções, notiones.
flito apontado pode ser a proposta Num sentido semelhante falavam os
pelo autor (cf. El ser y el sentido, estóicos de xatknvis, catalepsis. À
1967, XI, $ 2), ao indicar que, em- “fantasia cataléptica”, parTacia
bora não haja puros particulares ou xATANnNTTLUXN, É UMA ““Tepresentação
meros particulares, a noção de par- compreensiva”, ““representação
ticular pode ser tratada como uma apreensiva” ou, simplesmente, ““re-
noção-limite, de predicado ou, me- presentação”.
PERCEPÇÃO 556
“percepção”, perceptio, e pode ale- nos referimos antes. No Essay (II, ix,
Bgar-seque existe ambigúidade no seu 1), escreve que “como a percepção
uso desse termo. Em todo caso, em- é a primeira faculdade da mente
bora fale de percepção como incluin- exercida sobre as nossas idéias, é a
do tanto o que se apreende median- primeira e mais simples idéia que te-
te os sentidos quanto a chamada ex- mos da reflexão, e é chamada por al-
perientia vaga (De intellectus emen- guns pensamentos em geral”. Con-
datione, 7), Spinoza considera que a siderando o poder ou potência (po-
percepção, ao contrário do ““conhe- wer) da percepção, esta pode cha-
cimento "*; só apreende coisas singu- mar-se “entendimento”. “A percep-
lares (Etica, II, prop. XL, escol.). ção com que identificamos o ato de
Wolfson chama a atenção para o fa- entendimento é de três classes: (1)
to de Spinoza afirmar que a mens percepção de 1idélas em nossas men-
humana ““deve perceber tudo o que tes; (2) percepção da significação de
ocorre no corpo humano” (Erica, IL, signos; (3) percepção do acordo e de-
prop. XIV, demonst.), o que, segun- sacordo (““conexão” e “repugnân-
do o citado historiador, correspon- cia”) entre as nossas “idéias” .”* (Es-
de a “uma parte do terceiro elemen- say, II, xx1, 5) Hume dividiu todas
to da sensação, tal como foi estabe- as “percepções” em “impressões” e
lecido por Telésio, isto é, a percep- “idéias”: “Essas percepções que in-
ção, mediante a mente, de suas pró- gressam com a máxima violência po-
prias operações e movimentos”. dem ser chamadas impressões, e en-
Fiel à sua idéia de continuidade, tendo por esse nome todas as nossas
Leibnizinclina-se a pensar que a per- sensações, paixões e emoções, na me-
cepção não é uma operação que se l1- dida em que fazem sua primeira apa-
mita à alma humana. Há percepção, rição na alma. Por idéia quero dizer
assim como apetência, nas plantas as tênues imagens daquelas impres-
(Nouveaux essais, II, ix). Pode-se fa- sÕes ao pensar e ao raciocinar...”
lar de um “contínuo da percepção” (Treatise, 1, 1, 1). Em Enquiry, IL,
em Leibniz, que vai das percepções in- Hume fala das impressões como
sensíveis ou pequenas percepções, até “nossas percepções mais vívidas,
o mais elevado grau de percepção, ou quando ouvimos ou vemos, ou sen-
seja, a apercepção (ver). timos, ou amamos, ou odiamos, ou
Não é provável que Telésio tives- desejamos, ou queremos”. À noção
se influenciado os filósofos “empi- de percepção é fundamental no pen-
ristas” da forma que, como se viu, samento de Berkeley, na medida em
influenciou vários autores ““raciona- que, para ele, ser é “perceber ou ser
listas”, mas os problemas tratados percebido”. Uma noção fundamen-
em ambos os casos são semelhantes. tal dessa classe é quase sempre mui-
Locke toma a percepção num senti- to complexa, mas há na percepção
do muito mais amplo, freqiente- em Berkeley vários traços persisten-
mente análogo ao do cogitare a que tes. No que antes se chamou o Com-
PERCEPÇÃO 558
monplace Book e agora tem o título ral, “passivas”, ao passo que as per-
de Philosophical Commentaries, cepções são complexas e geralmente
Berkeley fala da “mente que perce- “ativas”. A distinção entre sensação
be”, na medida em que tem uma e percepção, por um lado, e percep-
“percepção passiva de idéias” (The ção e pensamento, por outro, foi
Works of George Berkeley, ed. por proposta por Kant. A sensação é, pa-
A. A. Luce e T. E. Jessup, [: “No- ra esse autor, como o conteúdo a que
tebook B”', 301); a mente é uma a percepção dá forma, mediante as
““colsa ativa”, isto é, “eu mesmo” intuições do espaço e do tempo. S1-
(1bid., 362 a); percepção é ““a mera multaneamente, as percepções, en-
recepção passiva ou o ter idéias” quanto percepções empíricas, cons-
(1bid., 378; 10; cf. também ““Note- tituem o material ordenado pelos
book A”, 673). Nos Principles of conceitos nos atos do juízo. Os con-
Human Knowledge, IL, Berkeley fa- ceitos sem percepções (intuições) são,
la das sensações ou idéias que só exis- segundo Kant, vazios. Pois bem, en-
tem no espírito que as “percebe”, e quanto Kant considerava que os con-
nos Three Dialogues between Hylas ceitos se impõem, por assim dizer,
and Philonous (Dial. 1) expressa a desde fora ao material das percep-
mesma noção. Embora não o indi- ções (sensíveis), Hegel e, em geral,
que de forma explícita, essa noção os idealistas propunham que há na
só parece ser entendida em relação percepção um elemento de universa-
com a mencionada atividade. Berke- lidade. Os autores cuja tendência em
ley destaca que o ser percebido não epistemologia foi realista sustenta-
é um ““ser inerte”, ao contrário da ram, de um modo geral, que a per-
“matéria” de que falam os “ateus”. cepção tem um caráter mediato. Os
Muitos autores entenderam por autores de propensão idealista des-
“percepção” apenas a percepção tacaram o caráter imediato da per-
sensorial ou percepção pelos órgãos cepção.
dos sentidos. Outros consideraram De um ponto de vista psicológico,
que a percepção inclui não só os cha- assim como epistemológico, foram
mados sentidos ““externos”, mas propostas várias teorias sobre a per-
também os “internos” — o querer cepção e, em especial, sobre o mo-
ou o amar, tanto quanto o ver ou o do como as realidades “externas” se
tocar. Como também se entendeu “apreendem” com as percepções. As
por ““sensação” a ““sensação exter- teorias mais importantes a esse res-
na”, ou esta em conjunto com a “in- peito foram: a teoria realista da per-
terna”, não é fácil estabelecer uma cepção, segundo a qual o conteúdo
distinção entre “sensação” e ““per- das percepções é constituído pelas
cepção”. Entretanto, essa foi uma próprias realidades: a teoria causal
distinção muito comum. Baseou-se da percepção, segundo a qual há
por vezes na idéia de que as sensa- uma diferença entre perfeição e
rea-
ções são operações simples e, em ge- lidade percebida, já que esta é causa
559 PERCEPÇÃO
tradas e armazenadas pela máquina. tampouco nada lhe sobra para ser o
As analogias entre as percepções hu- que é. Nesse sentido, diz-se que al-
manas e as “percepções” da máqui- go é perfeito quando é Justa e exata-
na foram reforçadas por meio de co- mente o que é. Essa idéia de perfei-
nexões relativamente “arbitrárias”, ção inclui a idéia de “limitação”,
semelhantes às conexões que existem “acabamento” e “finalidade pró-
no sistema nervoso e, sobretudo, por pria”, e é uma das idéias que ressur-
meio de conexões em que se dão ““re- gem constantemente no pensamen-
petições” e “redundâncias”. Ainda to grego. Foi dito, inclusive, que
é tema de debate se, neste caso, ha- “perfeito”, “terminado”, “clássi-
vemo-nos com autênticas ““percep- co” e “helênico” são diversos aspec-
ções”, ou se se trata unicamente de tos de um mesmo e único modo de
uma analogia entre dois sistemas, e ser, segundo o qual tudo o que não
não de uma igualdade de natureza é limitado e, por assim dizer, “fecha-
entre eles. Uma teoria completamen- do em si mesmo” é imperfeito.
te “fisicalista” da percepção no sen- Se o perfeito é o que acabamos de
tido apontado, isto é, baseada na dizer, será também o melhor em seu
idéia de que quaisquer percepções gênero, pois nada haverá que possa
sensíveis — e todas as formas da cha- superá-lo; toda mudança no perfeir-
mada ““consciência”* — que se en- to introduzirá nele alguma imper-
contram no homem podem ser pro- feição.
duzidas, em princípio, em máquinas Essas duas significações de ““per-
ou robôs, foi proposta por James T. feito”* foram destacadas por Aristó-
Culbertson (The Minds Robots: Sen- teles em sua análise dos sentidos de
se Data, Memory, Images and Beha- T€ Aetov (Met., à 16, 1021 b 12-1022
vior in Conscious Automata). a 2). À esses dois sentidos, Aristóte-
Também se fala, por vezes, de les acrescentou outro: o sentido que
“percepção extra-sensorial”* para de-
signar as percepções, ou supostas
tem ““perfeito”* quandose refere a al-
go que atingiu o seu fim, enquanto
percepções, que têm lugar indepen- fim louvável. Aristóteles também en-
dentemente dos quadros de referên- fatiza que ““perfeito”* usa-se, às ve-
cla psicológicos e neurofisiológicos zes, metaforicamente, para se refe-
normais. Observemos que, por ve- rir a algo que é mau, como quando
zes, incluíram-se entre as chamadas se diz “um perfeito ladrão”. Que
“percepções extra-sensoriais”* certos Aristóteles considere este último uso
tipos de percepção, especialmente como simplesmente metafórico já in-
aguda, induzida em geral por drogas. dica que em sua idéia de perfeição
e em todas as significações da mes-
PERFEIÇÃO, PERFEITO Diz-se ma está contida a noção de algo que
de algo que é perfeito quando está é bom per se. Com efeito, não deve-
“completado” e “acabado”, de tal ria, em princípio, haver qualquer in-
modo que não lhe falta nada, mas conventente em admitir que algo
565
PERFEIÇÃO, PERFEITO
ou “axiomas” são os nomes que re- dem ser engendrados por meio de
cebem as proposições iniciais dentro processos iguais ou semelhantes aos
do sistema. necessários para a primeira. Por sua
Podemos, entretanto, distinguir vez, (b) pode ser: (1) invenção de cál-
entre “postulado” e “axioma”, se culos para gerar linguagens com a fi-
nos ativermos ao grau de generalida- nalidade de determinar os ramos da
de e aplicabilidade dos sistemas. As- matemática ou ciência; (2) invenção
sim, cabe chamar de ““postulados” e comparação de cálculos que não
as proposições iniciais numa deter- têm nenhuma relação particular com
minada ciência ou ramo da ciência nenhuma linguagem em seu uso em-
— por exemplo, postulados da fisi- pirico ou matemático.
ca óptica — e de “axiomas” as pro-
posições iniciais num sistema dedu- POSTULADOS DA RAZÃO PRÁ-
tivo não interpretado e aplicável a TICA Na Crítica da Razão Pura,
várias ciências. Kant observou que, caso existam leis
O método de postulação (método práticas absolutamente necessárias,
postulativo) é o empregado quando cumpre admitir-se que, se tais leis
se introduzem num sistema novas ex- pressupõem a existência de um ser
pressões que servem de termos pri- que seja a condição da possibilida-
mitivos. O método de postulação de de seu poder obrigatório, a exis-
distingue-se do método de constru- tência de dito ser deve ser postulada
ção (método construtivo), no qual as (K. r. V., A 634, B 662). Assim, a
novas expressões introduzidas no sis- existência de Deus resulta ser um
tema são definidas mediante termos postulado das leis práticas absoluta-
previamente inseridos. Tem havido mente necessárias, o que é distinto
discussões em torno da chamada de — e mesmo oposto a — susten-
“técnica postulativa”, por meio da tar que tais leis pressupõem a exis-
qual se erigem os sistemas postulati- tência de Deus. Na Crítica da Razão
vos (também chamados ““axiomáti- Prática, Kant trata com detalhe do
cos”). Segundo K. Britton (Mind, que chama ““postulados da razão
N.S., 50, 1941, 169 e ss.), podem prática” ou ““postulados da razão
distinguir-se na lógica formal os se- pura prática”. Observa, em primei-
guintes elementos: (a) uma lógica ro lugar, que esses postulados dife-
fundamental, ou seja, uma teoria da rem dos da matemática pura. Estes
dedução que trata da codificação dos têm certeza apodíctica, mas só para
princípios básicos de inferência de- o uso de uma razão prática. Não se
dutiva comuns a toda argumentação; trata, em nenhum caso, de uma cer-
(Db) uma técnica postulativa; (c)
uma teza teórica (K. p. V., ed. da Acade-
série de intentos destinados a mos- mia, V, 12). Kant define “postula-
trar que os princípios da lógica fun- do da razão pura prática” do seguin-
damental engendram os das matemá- te modo: “Uma proposição teórica,
ticas puras, ou que estes últimos po- não demonstrável, contudo, como
POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA 572
exemplo, suas idéias sobre ““a utili- niões semelhantes. A rigor, e para
dade e o prejuízo da história para a não destacar uma única figura, pode-
vida” e sua concepção da verdade se. dizer que o pragmatismo norte-
como equivalente ao que é útil para americano surgiu no seio do ““Me-
a espécie e a conservação da espécie. taphysical Club”* de Boston (1872-
Entretanto, convém reservar o no- 1874), ao qual pertenciam, entre ou-
me “pragmatismo” para caracteri- tros, Chauncey Wright, F. E. Abbot
zar ou identificar as correntes filo- (1836-1903), Peirce e James. Não se
sóficas a que nos referimos no iní- deve desdenhar nessas origens uma
cio e, sobretudo, certas correntes fi1- certa influência de A. Bain, o qual
losóficas nos Estados Unidos e na In- já definira a crença como ““aquilo so-
glaterra. Podem incluir-se entre as bre o que o homem está preparado
tendências explicitamente pragmatis- para agir” — definição esta de que,
tas o chamado ““pragmatismo italia- segundo Peirce, o pragmatismo é um
no”, defendido por autores como “corolário” (cf. Peirce, “The Fixa-
Mario Calderoni (1879-1914: 7l prag- tion of Belief””, publicado em no-
matismo [em colaboração com Gio- vembro de 1877, antes do artigo no
vanni Vailati], 1920, ed. G. Papini. Popular Science Monthly a que nos
— Scritti, 2 vols., 1924 [incomple- referimos infra). Aos supracitados
tos]), Giovanni Vailati e, em sua pri- pensadores cumpre acrescentar ain-
meira época, o escritor Giovanni Pa- da: John Fiske (1842-1891: Outlines
pini (1881-1956), todos eles colabo- of Cosmic Philosophy, 1874. —
radores da revista Leonardo (1903 a Through Nature to God, 1899) e Ol1-
1907), para a qual também colabo- ver Wendell Holmes (1809-1894). Os
raram Peirce — a quem principal- propósitos desses pensadores foram
mente seguiam os pragmatistas 1ta- esclarecidos por Peirce, que formu-
lianos — James e F. C. S. Schiller. lou em seu artigo “How to Make
Mas o pragmatismo italiano (de que Our Ideas Clear” (Popular Science
se ocupa Ugo Spirito) não teve a am- Monthly, 12 [1878], 286-302; em
plitude nem a influência do pragma- Collected Papers, 5:538-40) a chama-
tismo saxão ou anglo-americano. da “máxima pragmática” (pragma-
segundo Edward H. Madeen, o tic maxim: C. P., 5:402), como re-
pragmatismo anglo-americano, ou, sumo das. afirmações de que “toda
mais especificamente norte-america- função do pensamento é produzir
no, foi antecipado por Chauncey hábito de ação” e de que ““o que sig-
Wright, especialmente a propósito de nifica uma coisa é simplesmente os
sua crítica da filosofia de Spencer e hábitos que ela envolve”. Essa má-
com base numa epistemologia empi- xima diz: “Concebemos o objeto de
rista e numa ética utilitarista. Mas, nossas concepções considerando os
na época em que Wright desenvol- efeitos concebíveis como capazes de
via doutrinas de caráter pragmatis- alcance prático. Assim, pois, nossa
ta, começavam a manifestar-se opil- concepção desses efeitos equivale ao
575 PRAGMATISMO
ráter antropológico ou ético, como mando que nem sempre é fácil dis-
as de que o homem persegue, por na- tinguir entre esses dois tipos de pra-
tureza, o prazer e evita a dor, ou que zer; que o prazer corporal, pelo me-
o objetivo do ser humano é aumen- nos nos organismos biológicos rela-
tar ao máximo o prazer e reduzir ao tivamente desenvolvidos, pressupõe
mínimo a dor. Este último objetivo um ““sentimento”* desse prazer, e esse
pode ser entendido de um modo sentiniento é psíquico e não físico;
principalmente subjetivo, caso em por outro lado, não há prazer pura-
que temos uma das formas do hedo- mente psíquico ou mental no senti-
nismo, ou de um modo que inclua do de ser completamente indepen-
todos os indivíduos de uma comuni- dente dos estados do organismo. Al-
dade, caso em que temos o utilita- guns sustentaram que só há prazer,
rismo. ou dor, quando há consciência de-
O nível de generalidade até agora les, mas não é claro o que se enten-
referido quase nunca fo! satisfatório. de por “consciência de”. Se se res-
Em vista disso, proporcionaram-se tringe demasiado o sentido dessa ex-
várias definições de ““prazer” que pressão, chega-se à conclusão (erra-
restringiram o significado desse ter- da) de que os animais não podem
mo. Por exemplo, o prazer consiste sentir prazer nem dor.
na satisfação de necessidades; con- Certas doutrinas morais, especifi-
siste na ausência de mal-estar, sen- camente o hedonismo (ver) e o util1-
do essa ausência de mal-estar um tarismo (ver), enfatizaram que o pra-
bem-estar; consiste numa espécie de zer de que falam tão assiduamente é
euforia, do corpo ou da mente, ou um prazer “moderado”, ou que, em
de ambos, etc. Numerosas objeções todo caso, cumpre ““calcular” o al-
foram apresentadas contra essas de- cance e as possíveis conseqgiiências do
finições e outras similares: podem- prazer, de modo que se possa saber
se satisfazer necessidades sem que se se um determinado prazer não vai
sinta prazer; não é legítimo equipa- produzir dor. Caso produza, descar-
rar “prazer” a “bem-estar”, “satis- ta-se semelhante prazer a fim de pro-
fação”', “alegria”, etc., porque ca- curar outro cujas consequências se-
da um desses termos tem um conjun- Jam o menos dolorosas possível.
to de usos próprios não redutíveis, Num artigo sobre a noção de pra-
de um modo estrito, aos outros. zer, Gilbert Ryle (com W. B. Gail-
Também se indicou que a noção de lie, “Pleasure” em Proceedings of
prazer torna-se menos vaga quando Aristotelian Society, supl. do vol.
se especificam os tipos de prazer. XXXVI, 1954, 135-146, 147-164,
Dois desses tipos têm sido mencio- reimpr. em Dilemas, 1954, pp. 54-67)
nados com frequência: o prazer cor- advertiu contra o que considera duas
poral e o prazer psíquico ou mental, falsas concepções. Uma delas consis-
ou seja, o prazer físico e o prazer es- te em supor que, somado ao compra-
piritual. Respondeu-se a isso afir- zer-se com (ou desfrutar de) algo, há
PREDICADO 580
meiro motor, o conceito de mando considerar que cada um dos céus ne-
deve ser substituído pelo de atração. cessita de um motor imóvel, haven-
3. Discutiu-se se o primero motor do tantos motores imóveis quantos
tem somente conhecimento de si forem os céus (ou, melhor dizendo,
mesmo ou se também o tem do uni- quantos forem os tipos de movimen-
verso. Alguns comentaristas inclina- to). Eudoxos propusera 26 esferas;
ram-se a favor do primeiro ponto. Calipos, 33; Aristóteles fala de 47 ou
Outros (especialmente os aristotél1- 55. Argumentou-se que a teoria da
cos cristãos) aderiram ao segundo pluralidade dos primeiros motores é
ponto, sobretudo ao declarar que o física e astronômica, e não metafís1-
primeiro motor tem conhecimento ca. Jaeger destacou que, especial-
do mundo mediante o conhecimen- mente o capítulo 8 do Livro A da
to que possui de si mesmo. Essa Metafísica, é um corpo estranho na
questão está relacionada a uma ou- obra, adicionado posteriormente,
tra, a de saber em que medida se po- sendo de um estilo distinto do resto
de dizer do primeiro motor que é (com exceção de uma passagem den-
uma Providência. As sentenças a esse tro dele na qual se menciona de no-
respeito foram respectivamente ne- vo a existência de um motor imóvel).
gativas ou afirmativas, de acordo Como sublinha o citado autor, já no
com as duas concepções antes men- livro VIII da Física, Aristóteles che-
cionadas. gou à mesma opinião, mas sem a de-
4, Alguns autores sustentam que o clarar de um modo peremptório.
primeiro motor é uma entidade im- .
ANB=def.X(xeA A xeEB).
PROPOSIÇÃO Consideraremos: (1)
Na álgebra de relações, diz-se que as diferenças entre “proposição” e
uma relação Q é o produto lógico “juízo”; (II) a estrutura e a divisão
das relações R e S, quando Q é a re- das proposições na lógica tradicio-
lação de todas as entidades x com to- nal; (III) a estrutura das proposições
das as entidades y, de tal modo que na fenomenologia (incluindo os pre-
R relaciona x com y e S relaciona x cedentes de Bolzano, Meinong e ou-
com y. O símbolo do produto lógico tros autores); (IV) a estrutura e a di-
de relações também é “ N””. Exem- visão das proposições na lógica mo-
derna ou atual; (V) a classificação
plo de .produto lógico de relações é
epistemológica das proposições; (VT)
a relação cidadão honorário de, que
o problema da interpretação existen-
é o produto das relações cidadão de
cial (e não-existencial) de várias pro-
e homenageado por. O produto ló- posições; (VII) a questão da distin-
gico de relações define-se do seguin- ção entre a lógica dos termos e a das
te. modo: proposições.
(1) Proposição e juízo. A chama-
RNS=def. XP? (xXxRy À xSy).
da lógica ““clássica”* ou ““tradicio-
O produto anterior é, por vezes, nal” (pelo que entendemos, grosso
chamado produto absoluto. O adje- modo, a de inspiração aristotélico-
tivo “absoluto”* emprega-se com a escolástica) distingue entre proposi-
finalidade de distinguir tal produto ção e Juízo (ver). Enquanto o juízo
do chamado produto relativo. Com é o ato do espírito mediante o qual
efeito, chama-se produto relativo de se afirma ou se nega algo a respeito
uma relação S a relação de todos os de algo, a proposição é o produto ló-
x com todos os y, de tal modo que, gico desse ato, ou seja, o pensado
v z(XxRz A ZzRy). O símbolo do pro- nesse ato. Ora se usa, em vez do ter-
duto relativo é ““1”*. O produto rela- mo “proposição”, o vocábulo “enun-
tivo de duas relações define-se do se- clado”* (ver); ora se empregam indis-
guinte modo: tintamente os dois. Em alguns ma-
nuais escolásticos, a doutrina da pro-
RIS = def. Xp v z XRz À zRY). posição apresenta-se assim: De enun-
tiatione seu propositione. Com fre-
O produto e? não é sempre co- qúuência, “enunciado” designa a pro-
mutativo, quer dizer:
posição na medida em que faz parte
(RIS) =(SIR) do silogismo. Por vezes (como em
PROPOSIÇÃO 594
Santo Tomás: 1 anal. 5 b), “propo- gico), não pode esta ser invariavel-
sição”* é tomada em sentido mais es- mente imputada a Aristóteles. Tam-
treito do que “enunciado”: este úl- pouco cremos que possa ser imputa-
timo constitui o aspecto objetivo (no da aos comentaristas aristotélicos e
sentido clássico de ““objetivo””) da escolásticos, que fizeram sua e desen-
proposição. Entretanto, o próprio volveram a interpretação objJetivis-
Santo Tomás equipara, às vezes, ta (na acepção moderna de ““objeti-
“proposição” com “enunciado” (S. vo”) da proposição, dando azo à dis-
Theol., I q. III, 4a 2). “Enunciado” tinção entre proposição e Juízo, tal
usa-se ocasionalmente num sentido como se admite hoje em dia. Em
neutro, indicando-se que o juízo é contrapartida, na época moderna
seu aspecto subjetivo (na moderna registraram-se vários exemplos de
acepção de ““subjetivo”*) e à propo- confusão entre os dois termos. Um
sição, seu aspecto objetivo (na acep- é o da lógica de Port-Royal. Outro,
ção moderna de ““objetivo”*”). Em- o de Kant. Ainda outro, o dos 1dea-
pregamos com frequência o termo listas (como Bradley). E, finalmen-
“enunciado” com essa significação. te, o de alguns autores nominalistas
Quanto à proposição, sempre a dis- (como Hobbes).
tinguiremos de Juízo (ver), assim co- "(IDA estrutura e a divisão das
mo de inscrição e de sentença. proposições na lógica clássica. AÀ
A distinção entre proposição e Juí- proposição define-se, na esteira de
zo, e entre proposição e enunciado, Aristóteles, como um discurso enun-
não se apresenta sempre destacada ciativo perfeito que expressa um juí-
com clareza entre os filósofos. O zo e significa o verdadeiro ou o fal-
próprio Aristóteles refere-se, às ve- so. A proposição é enunciativa, ao
zes, a enunciados no sentido de pro- passo que o Juízo é Judicativo. A pri-
posições, roeotageis, em Top. e em meira expressa a verdade ou a falsi-
An. Pr. Por outro lado, em An. dade per modum repraesentationi; o
Post., há considerações de índole segundo expressa-as per modum as-
psicológico-epistemológica onde os sensus. Um exemplo simples de pro-
enunciados são considerados como posição é:
Juízos, dotar, formulados por um su-
Maximiliano é bom,
jeito. Em De int., a definição da pro-
posição e a divisão das proposições cujo esquema na lógica clássica é:
podem ser interpretadas em um ou SéP,.
outro sentido, embora a interpreta-
ção que está mais próxima da mente Trata-se de uma proposição categó-
do autor seja provavelmente a ““ob- rica atributiva, em que se atribui um
jetivista”*. Isso mostra que (como foi predicado (P) ao sujeito (S) por meio
indicado por Maier e Ross), se hou- da cópula verbal “é”. A proposição,
ve confusão da proposição (objeto em sentido clássico, tem, pois, sujei-
lógico) com o juízo (objeto psicoló- to, verbo (cópula) e atributo. Quan-
595 PROPOSIÇÃO
forjadas nas últimas décadas. O qua- nificam. Outros admitem (5) e (6),
dro abaixo fornece uma idéia dos mas de (5) escolhem entre (7), (8) ou
sentidos em que se emprega ““propo- (9). (8) é usado em sentido bastante
sIÇão” e outros termos relacionados
ambíguo, mas nem sempre se iden-
com ela na maior parte dos textos tifica exatamente com (3). Russell,
contemporâneos. entre outros, considera que (10) tem
uma propriedade chamada ““forma
lógica”. Autores como Donald Ka-
(1) Signo
lish consideram que a forma lógica
T—
Escrito ou (2) Não escrito
é uma propriedade de (3).
Nos atuais tratados não se dedica
Não sentencial um capítulo especial à divisão das
Sentencial proposições, mas admitem-se diver-
(3) Sentença = (4) Enuciado sos tipos delas (que correspondem
aos tipos admitidos de sentenças).
Citaremos os mais habituais.
(5) denota (ou designa)
As proposições podem ser atômi-
(6) Significa
cas ou moleculares. Às proposições
(7) Fatos
atômicas não incluem conjunções; as
proposições moleculares incluem-
(8) Proposições nas. Exemplo de proposição atômi-
(9) Valores
ca é “Zacarias medita”*. Exemplo de
de verdade (o proposição molecular é: ““se Zacarias
Verdadeiro e medita, Helena treme”. A distinção
o Falso) das proposições em atômicas e mo-
leculares aproxima-se da divisão clás-
(10) ObJjetivamente:
proposições sica das proposições em simples e
compostas. As proposições também
(11) Subjetivamente: podem ser quantificadas e não-quan-
Juízos
tificadas. As quantificadas podem
Às vezes, (10) emprega-se como ser particulares e gerais.
equivalente, ou como interpretação, (IV) O problema da interpretação
de (3) ou de (4). (11) é pouco usado existencial e não existencial de várias
na lógica formal moderna, mas não proposições. A relação subalterna
excluído em princípio. (9) expressa entre as proposições deu origem a vá-
a concepção de Frege e Church. A rias sentenças. Discorreremos mais
distinção entre (5) e (6) é análoga à extensamente sobre este ponto daqui
estabelecida por Frege entre Sinn e a pouco, mas antes expressaremos na
Bedeutung (ver REFERÊNCIA). Al- linguagem simbólica da lógica atual
guns autores excluem inteiramente os esquemas das proposições dos ti-
(5), alegando que só as sentenças sig- pos A, E, 1, O.
PROPOSIÇÃO 600
e,
com as letras CW”, x”
ÉS c“
7º
C“
ser e não o nada? etc.), mas, de fato, deixam deter caráter filosófico. Não
—
o questionar radical, já que tão de- se trata, porém, de questionar por
pressa quanto se resolva uma pergun- questionar, nem é tema que envolva
ta, ambas — pergunta e resposta — somente problemas insolúveis.
R
R Na lógica das relações, a letra dizer “é racional”, que é o que se
malúscula ““R” serve como notação tratava de saber. Dizer que o homem
abreviada para os abstratos duplos. é racional, ou é um ser racional, é ca-
Assim, no esquema relacional racterizar o ser humano mediante um
“xXRYy',aletra “R” lê-se “tem a re- predicado que requer, por sua vez,
lação R com” e o esquema comple- explicação.
to lê-se “x tem a relação R com y”*. Um dos usos mais difundidos de
Outras letras usadas com o mesmo “racionalidade” deve-se à introdu-
propósito são “O” e “S”. Diz-se, ção, por Max Weber (“Soziologische
então, “a relação O”, “a relação Grundbegriffe”", nos Gesammelte
R”', “a relação S”. Aufsàãtze zur Wissenschaftslehre, 2º
Para o uso da letra minúscula ““r” edição, 1951, ed. J. Winckelmann,
na lógica sentencial, ver P. pp. 527-65), das expressões Zweck-
rationalitãt (racionalidade dos fins)
RACIONALIDADE O predicado e Wertrationalitãt (racionalidade do
“é racional”* pode ser aplicado de valor). O primeiro tipo de racionali-
modos diversos: Pode-se dizer que o dade refere-se a fins que são meios
mundo é racional, que o homem é para outros fins; é, polis, uma racio-
um ser racional, que os meios que se nalidade ““relativa””. O segundo tipo
utilizam são racionais, que os fins de racionalidade refere-se a valores
que se perseguem são racionais, que preferidos; é, pois, uma racionalida-
uma proposição é racional, etc. Al- de que se supõe, ou se declara, ““ab-
gumas dessas aplicações ou não são soluta””. Uma distinção que teve,
muito claras, ou são demasiado cla- aparentemente, muito efeito na lite-
ras, no sentido de que não chegam ratura filosófica e sociológica con-
a dizer nada. Dizer que o mundo é temporânea é a estabelecida entre
racional equivale a dizer que é inte- “racionalidade dos meios” (que po-
ligível, que é suscetível de ser enten- dem incluir a racionalidade dos fins
dido racionalmente, etc. Mas não se que são meios para outros, ou a
sabe bem o que se quer dizer com 1s- mencionada Zweckrationalitãt webe-
so, ou, se se sabe bem, ou se crê sa- riana) e “racionalidade dos fins” co-
ber bem, é porque se repete o que Já mo tais. Não fica sempre claro o que
foi dito ou pressuposto. Se definimos se entende por ““fins””, menos ainda
“é racional” por “é entendido racio- por que se deve chamar de ““racio-
nalmente”, necessitaremos definir nais” certos “fins”. Se o fim perse-
“é entendido racionalmente”, a me- guido é, por exemplo, uma socieda-
nos que com isso queiramos apenas de economicamente igualitária ou, se
RACIONALIDADE 616
Razão instrumental. A razão ins- tem sentidos diversos que nem sem-
trumental é a que se encontra a ser- pre estão incluídos no conceito de
viço de algum outro tipo de razão “teórico”. À parte o uso que teve em
que se considera ser a principal; as- Aristóteles e nos escolásticos, o que
sim, a razão instrumental é ancilar Kant lhe deu foi o de maior influên-
e subordinada a uma razão ““subs- cia.
tantiva”* ou “substancial””. A razão Segundo Kant, as duas razões —
Instrumental é também chamada a teórica e a prática — não são dois
“razão funcional”. O conceito de ra- tipos distintos de razão, mas a mes-
zão Instrumental é mais sociológico ma razão, a qual difere em sua apli-
e (ocasionalmente) ético do que on- cação. A razão, em seu uso prático,
tológico ou epistemológico. Em prin- ocupa-se das razões determinantes
cÍpio, parece que a razão Instrumen- da vontade, da liberdade, etc., e en-
tal consiste num ““saber como”, dis- tão seu uso é ético ou moral.
tinto de um “saber que”.
Razão mecânica. Alguns autores REALISMO Três sentidos podem
estabeleceram uma distinção entre ser adotados do ponto de vista filo-
“razão mecânica” e “razão dialéti- sófico.
ca”. Essa distinção é, em muitos as- 1. “Realismo” é o nome da atitu-
pectos, semelhante à que foi feita en- de que se limita aos fatos “tal como
tre “razão analítica” e “razão dia- são”, sem pretender sobrepor-lhes
lética””. Entretanto, o conceito de ra- interpretações que os falseiam ou
zão mecânica encontra-se no modo sem aspirar a violentá-los por meio
de pensar mecanicista, segundo o dos próprios desejos. No primeiro
qual a máquina como objeto e a me- caso, o realismo equivale a uma cer-
cânica como ramo da física consti- ta forma de positivismo, já que os
tuem o modelo de explicação racio- fatos a que se faz referência são con-
nal da realidade. A razão mecânica cebidos como ““fatos positivos” —
é, segundo esses autores, uma razão em contraste com as imaginações, as
que se desenvolve mediante partes teorias, etc. No segundo caso, temos
componentes que se articulam num uma atitude prática, uma norma (ou
conjunto, o que a diferencia da ra- conjunto de normas) para a ação. O
zão dialética, que parte de um con- chamado ““realismo político” perten-
junto ou do que se chamou ““totali- ce a esse realismo prático. Alguns
zação”. acreditam que sem esse realismo não
Razão prática (“e” razão teórica). se pode conhecer (e, portanto, domi-
A expressão “razão prática” deve ser nar) nada da realidade e que conhe-
entendida principalmente em con- cer (e dominar) esta última equivale
traste com a expressão ““razão teó- a obedecê-la. Outros argumentam
rica”. Por vezes, esta última é tam- que as idéias e os ideais são tão ope-
bém designada como ““razão especu- rantes, pelo menos, quanto os pró-
lativa””, mas este último vocábulo prios “fatos” e que um ““realismo
REALISMO 620
completo” deveria ser o mesmo que Idade Média, Santo Anselmo e rea-
um ““positivismo total”, ou seja, lista extremo costuma ser considera-
uma posição que não pretendesse ig- do Guilherme de Champeaux. Este
norar nada do que é, em vez de li- último, porém, sustentou uma teo-
mitar o que é a certos aspectos da ria que também pode ser qualifica-
realidade. da de “realismo empírico”*. Como a
2. “Realismo” designa uma das posição realista opunha-se à nomi-
posições adotadas na questão dos nalista (e à conceptualista), um dos
universais: a que sustenta que os uni- melhores modos de entender aquela
versais existem realiter ou que uni- consiste em examinar estas duas úl-
versalia sunt realia. Na realidade, há timas, especialmente o nominalismo.
três formas de realismo: duas extre- Extensas análises nesse sentido são
mas e uma moderada. encontradas em vários autores me-
O primeiro autor que adotou uma dievais, sobretudo em Abelardo.
teoria realista dos universais foi Pla- As idéias de Abelardo prepararam
tão; por 1sso, o realismo foi chama- o caminho para o realismo modera-
do, com certa frequência, “realismo do, o qual aspirava a encontrar um
platônico” ou ““platonismo”. Con- ponto médio entre o realismo extre-
tudo, a doutrina platônica é comple- mo e o extremo nominalismo. O rea-
xa e não pode simplesmente ser iden- lismo moderado é a posição segun-
tificada com uma posição realista, do a qual o universal não está fora
menos ainda com o realismo abso- da mente, como se fosse uma coisa
luto ou exagerado. Atribui-se a Aris- entre outras, mas tampouco está na
tóteles uma posição realista modera- mente, como se fosse apenas um pro-
da que coincide em grande parte com cesso psíquico. O universal está fo-
o conceptualismo, mas também nes- ra da mente, mas só como res con-
se caso deve-se levar em conta que cepta, “coisa concebida”, e está na
se trata de uma simplificação e, em mente, mas só como conceptio men-
boa medida, de uma certa interpre- tis, “concepção mental”, isto é,
tação (principalmente a chamada “conceito”. Ainda que não fora da
“aristotélico-tomista”!) da posição mente, o universal tem um funda-
aristotélica. O realismo agostiniano mentum in re, está fundamentado na
tem muito de platônico, a ponto de colsa ou na realidade, porquanto, se
ser fregiientemente qualificado de assim não fosse, seria mera ““posi-
“realismo platônico-agostiniano”'. ção” de algo ou mera “imagina-
Sua principal característica consiste ção”. O problema que se debate aqui
em que “situa”, por assim dizer, os é o do caráter “separado” (ou ““pre-
universais (ou idéias) na mente div1- ciso””) dos universais. Seguindo a po-
na, em vez de considerá-los existen- sição do realismo moderado, Santo
tes num mundo supraceleste ou in- Tomás expressou o citado caráter
teligível. Realista num sentido mui- nos seguintes termos: “As palavras
to próximo do agostiniano foi, na universal abstracto significam duas
621 REALISMO
cOIlSas: a natureza de uma coisa e sua ciência (ou pelo sujeito). O realismo
abstração ou universalidade. Portan- metafísico afirma que as coisas exis-
to, a própria natureza, à qual ocor- tem fora e independentemente da
re ser entendida ou ser abstraída, ou consciência ou do sujeito. Como se
a intenção de universalidade, somen- vê, o realismo gnoseológico ocupa-
te existe nas coisas singulares, mas se unicamente do mdo de conhecer;
o ser entendido ou o ser abstraído, o metafísico, do modo de ser do real.
ou a intenção de universalidade [o O realismo gnoseológico pode,
ser considerado como universal] es- por sua vez, ser concebido de duas
tão no intelecto” (S. Theol., L, a. maneiras: ou como realismo “ingê-
LXXXV, a 2, ad. 2). nuo” ou “natural”, ou como realis-
3. “Realismo” é o nome que se dá mo científico, empírico ou crítico. O
a uma posição adotada na teoria do realismo ingênuo supõe que o conhe-
conhecimento ou na metafísica. Em cimento é uma reprodução exata
ambos os casos, o realismo não se (uma ““cópia fotográfica”) da reali-
opõe ao nominalismo, mas ao idea- dade. O realismo científico, empír!-
lismo. co ou crítico adverte que não se po-
A contraposição entre realismo e de simplesmente equiparar o perce-
idealismo foi frequente durante a bido com o verdadeiramente conhe-
Época Moderna. No decorrer dessa cido e que é preciso submeter o da-
época, desenvolveram-se várias cor- do ao exame e ver (para depois le-
rentes idealistas (como ocorre, em var em conta quando se formulam
parte, em Descartes, de um modo Juízos definitivos) o que há no co-
mais acentuado em Kant — ou nu- nhecimento que não é mera reprodu-
ma das possíveis interpretações de ção. É fácil verificar que o realismo
Kant — e de um modo decidido nos científico, empírico ou crítico pode
autores do chamado ““idealismo ale- receber o nome de ““realismo mode-
mão”). O realismo gnoseológico rado” e aproximar-se, então, do que
confunde-se, por vezes, com rea-
oO poderia ser classificado como ““idea-
lismo metafísico, mas tal confusão lismo moderado”.
é desnecessária; com efeito, pode-se Depois de ter sido combatido (ou
ser realista gnoseológico e não ser menosprezado) durante boa parte da
realista metafísico, ou vice-versa. O Época Moderna, o realismo, tanto o
realismo gnoseológico afirma que o gnoseológico quanto o metafísico,
conhecimento é possível sem ser ne- recuperou importância no pensa-
cessário supor (como fazem os idea- mento contemporâneo. À maior par-
listas) que a consciência impõe à rea- te dos filósofos desta época aderiu,
lidade — tendo em vista seu conhe- com efeito, explícita ou implicita-
cimento — certos conceltos ou cate- mente, ao realismo. Isso ocorre in-
gorias a priori; o que importa no co- clusive com os autores neokantianos,
nhecimento é o dado, de maneira ne- que transformam seu ““idealismo crií-
nhuma o que é colocado pela cons- tico” de modo a situá-lo numa po-
REALISMO 622
a aparência (ver), o pensar, o devir pensar, mas este último será enten-
(ver), o valor, o dever ser, o ter e o dido, então, como a visão direta do
sentido. que é.
|
ma. Limitando-se aos três primeiros claro que as duas primeiras propo-
tipos dessa classificação, alude-se a sições estão ligadas por uma conjun-
silogismos demonstrativos ou apo- ção. Tampouco é exemplo correto de
dícticos, dialéticos e sofísticos (às ve- silogismo o raciocínio:
zes, denominados erísticos). Os silo- Todos os homens são mortais
gismos demonstrativos são necessá- Sócrates é homem
rios, porquanto a conclusão decor-
Sócrates é mortal,
re necessariamente das premissas. Os
dialéticos são prováveis, isto é, a pois, além de Ihe faltarem os conec-
conclusão tem apenas um certo grau tivos antes assinalados, contém um
de probabilidade a respeito das pre- termo singular (“Sócrates”).
missas. E os silogismos sofísticos são Vemos claramene que um silogis-
falsos. O tipo mais usual de silogis- mo categórico é um condicional que
mo é, sem dúvida, o demonstrativo se compõede três esquemas quanti-
— frequentemente apresentado co- ficados. O antecedente do condicio-
mo categórico. Eis um exemplo: nal compõe-se de dois esquemas,
chamados premissas. A primeira é a
Se todos os homens são mortais
premissa maior, a segunda, a premis-
e todos os australianos são sa menor. O consequente do condi-
homens, cional é outro esquema: a conclusão.
então todos os australianos são Cada esquema tem duas letras pre-
mortais. dicados. Usaremos agora as letras
Observemos que o exemplo ante- “SP, “PU e “M” (por vezes, em-
rior é de um condicional e que todos prega-se “F”, “G” e “FH””). Essas
letras designam os chamados termos
os termos introduzidos (“homens”,
do silogismo. Os nomes que recebem
“mortais”, “australianos”) são un!-
versais. Queremos destacar, com 1s- os termos são os seguintes: termo
médio, termo menor, termo maior.
so, que muitos dos exemplos de si- O termo médio (representado por
logismos dados na literatura lógica
tradicional não são propriamente si- )
“M” está nas duas premissas, mas
não na conclusão. Em nosso exem-
logismos. Por exemplo: plo, “homens” é o termo médio; o
Todos os homens são mortais termo menor é o primeiro dos termos
Todos os australianos são da conclusão; o termo maior, o se-
homens gundo dos termos da conclusão. As-
sim, ““australianos”* e “mortais”
Todos os australianos são mortais,
são, respectivamente, os termos me-
em que o traço horizontal colocado nor e maior do silogismo.
acima da conclusão costuma ler-se No silogismo categórico deve-se
“portanto”, não é um exemplo cor- considerar a figura e o modo.
reto de silogismo, pois não aparece A figura é a maneira como estão
nele a forma condicional, nem se vê dispostos os termos nas premissas.
SORITES 644
percebe idéias, mas não é, ele pró- sumo, a substância é uma ficção, e
prio, uma idéia (op. cit., 1, 135). Em o nome “substância”, um mero no-
suma, aquilo que os filósofos cha- me que não denota nada.
mam de ““substância material” é Em vista do que se disse até aqui,
“inexistente” (Three Dialogues, 1). parece haver apenas duas atitudes
As doutrinas segundo as quais possíveis a respeito da noção de subs-
existem substâncias podem ser cha- tância: aceitá-la ou rejeitá-la. Há,
madas, em geral, de “substancialis- porém, uma terceira atitude: “dedu-
tas”, inclusive quando, como em zi-la”* no sentido de Kant, ou seja,
Locke, fazem da substância uma “iustificá-la”. É o que faz Kant em
idéia muito genérica, ou quando, co- sua “dedução transcendental das ca-
mo em Berkeley, as substâncias se re- tegorias”'. Kant não aceita a idéia
duzem a substâncias espirituais. As metafísica da substância. Por outro
doutrinas segundo as quais a idéia de lado, não admite que a idéia de subs-
substância não tem nenhum funda- tância se resolva numa coleção de
mento podem ser chamadas de ““fe- impressões. Kant “deduz” o concei-
nomenistas”. Hume foi um dos mais to ou categoria de substância dos Juí-
destacados representantes dessa úl- zos de relação chamados categóricos;
tima tendência. Ele rejeita a idéia de a eles pertence a categoria de relação
substância por não encontrar nenhu- denominada ““inerência e subsistên-
ma impressão (de sensação ou de re- cia” (substantia et accidens) (K. r.
flexão) que constitua o seu funda- V., A 80, B 106). O conceito de subs-
mento. As substâncias, ou o que su- tância “sobrepõe-se” a uma multi-
postamente o são, não são percebi- plicidade, ordenando-a de forma que
das pelos sentidos, porquanto não possibilite a formulação de juízos so-
são visíveis, não cheiram, nem pro- bre “algo”, ou seja, sobre entidades
duzem sons. Por outro lado, não são que possuem determinadas proprie-
derivadas das impressões de reflexão, dades. A primeira analogia (ver) é “o
pois essas resolvem-se em nossas pal- princípio de permanência da subs-
xões e emoções, nenhuma das quais tância””. “As substâncias na aparên-
pode representar substância alguma. cia são os substratos de toda deter-
“Por conseguinte, não temos nenhu- minação no tempo” (op. cit., A 188,
ma idéia de substância distinta da de B 231). Quanto ao esquema da subs-
uma série de qualidades particula- tância, consiste na “permanência do
res... A idéia de substância... nada real no tempo” (op. cit., À 143, B
mais é que uma série de idéias sim- 183). Em suma, Kant admite a no-
ples unidas pela imaginação e às ção de subsistência no plano trans-
quais se atribui um nome particular cendental, e o conceito de substân-
por meio do qual podemos recordar- cia é um dos que torna possível o co-
nos de tal série, ou recordá-la a ou- nhecimento dos objetos naturais.
tros” (Tratado sobre os princípios do Portanto, é equivocado rejeitar to-
entendimento humano, 1, 6). Em re- talmente esse conceito. Mas também
SUPER-HOMEM 652
mo for, a idéia nietzscheana de super- tade de poder (Der Wille zur Macht,
homem é a idéia de algo “completo”, 5 V, 1001, na ordem admitida antes.da
de algo que “culmina”, não como um edição coordenada por Karl Schlech-
final, mas sim como os “gonzos” do te), é a meta final do homem. Pode-
eterno retorno. O super-homem é o se dizer que o super-homem é o que
“forte”, o “nobre”, o “senhor”; tam- diz “eu sou”, que é superior a “eu que-
bém é o “legislador” e, por 1sso, pode ro” (1ibid., IV, 940). Por 18So, o super-
ser considerado o “autêntico filóso-
fo”. O super-homem, não a humani-
homem não
se caracteriza por nenhu-
nenhum ato; caracteriza-se
ma crença,
dade, escreve Nietzsche em À von- unicamente por ser.
I
TABELAS DE VERDADE Cha- onde ““V” se lê “verdade” ou “é ver-
mam-se “tabelas de verdade” as que dadeiro” e “F””, “falsidade” ou ““é
podem ser formadas a fim de deter- falso”.
minar “mecanicamente” a verdade Quando se têm duas letras senten-
ou falsidade de uma fórmula senten- ciais, as duas colunas compõem-se de
cial (ou de um enunciado sentencial), quatro linhas por haver quatro pos-
uma vez conhecidos os valores de sibilidades de valores de verdade; as-
verdade das fórmulas componentes. sim, para “p”, “q” são:
Um dos mais frequentes usos das ta-
belas de verdade, em lógica, consis- LL
V
qa
V
te na identificação de tautologias.
As tabelas de verdade podem ser F V
formadas para qualquer fórmula V F
sentencial. Entretanto, convém co- F F
meçar, para efeitos de simplicidade, Construamos, agora, as tabelas de
pela formação de tabelas de verda- verdade correspondentes aos seis co-
de correspondentes aos conectivos nectivos mencionados.
e,EA
e
66
A >,
66
V
e o
LN 66 amo O
Para “1” temos:
Para tanto, coloca-se à esquerda Pp 71p
da tabela a coluna ou colunas que V F
contêm por ordem de aparecimento
F V
as letras de que se compõe a fórmu-
la sentencial e por baixo delas todas Para “ A” temos
as suas possibilidades de verdade ou
falsidade. À esquerda da tabela co-
Pp q PNQ
loca-se a coluna com os valores de V V V
verdade da fórmula sentencial. F V F
Quando se tem uma única letra sen-
V F F
tencial, a coluna compõe-se de duas F F F
linhas, por haver somente dois valo- Para “ v ”*
temos
res possíveis; assim,
luna é:
para ““p” a co- Pp q
V
PY
V
V
Pp
F V V
V V F V
F F F F
TABELAS DE VERDADE 656
Pp
V
F
q V
V
p>4
V
V
pomos averiguar os valores de ver-
dade para as seguintes fórmulas:
(DAq)—-pP
V F F l(p>-(pvqg)
F F V 1(DAQ)
Para “(paq) — p” temos:
Para “—*” temos:
q
q panq (pnqQ-—-Dbp
pq
PDP
Rs
V V V
V V V V
F V F V
F V F V F F V
V F F F F F V
F F V
o que mostra que a citada fórmula
Para ““«&” temos: é uma tautologia, visto que em to-
dos os casos resultam V.
Pp q pD*q
V V F
Para “l(p—-(pvqg))' temos:
F
V.
V
F
V
V pq pva p-(pvga) Ip>-(Ppvo)
F F F VV V V F
FV V V F
Segundo Sheffer, também é pos- VF V V F
sível formar tabelas de verdade pa- FF F V F
ra os conectivos “1” e “1”. o que mostra que a citada fórmula é
Para “|” temos: uma contradição, visto que em todos
q
OS Casos resultam Fºs.
pq
V V
r
V
p-q rvp
V V As colunas para duas letras sen-
F V V V V tenciais, “p” e “q”, são:
V F V F V
F F V V V
V V F V V
F V F V F
V F F F V
F F F V F wLWNNNHWD|a
(Dq)
(FAD) —((r vp)
rnq —-(rvag) —(rvq))
<<<LC<L<L<
A tabela de verdade para ““1”
é:
<mM<<<<<<
<<<<L<L<L<L<
PD O»
1 OO
2 NM
3
MM
=
TABELAS DE VERDADE 658
1 1 ]
Pp q PANA
2 1 2
1 ] ]
3 ] 3
2 1 2 2
1 2
3 1 3
2 2 1
] 2 2
3 2 2
2 2 2 1 3 3
3 2 3
2 3 2
] 3 3
3 3 ]
2 3 3 |
3 3 k A tabela de verdade para ““v” é:
l ] 1 1 2 2
2 ] 1 2 2 3
3 l 1 3 2 2
l 2 1 1 3 1
2 2 2 2 3 2
3 2 2 3 3 3
] 3 1
2
As tabelas de verdade foram usa-
2 3
3
das para mostrar que as fórmulas do
3 3
cálculo sentencial de Whitehead-
A tabela de verdade para “—” é: Russell são decidíveis. Uma fórmu-
la de tal cálculo sentencial pode ser
Pp q p>4q provada se, e somente se, for uma
] tautologia.
l ]
O método das tabelas de verdade
2 ] 1
] 1
constitui um aspecto do chamado
3
2 “método de tabelas” (ver TABE-
] 2
2 LAS, MÉTODO DE). Por outro la-
2 1
cer uma lei geral que permite identi- Pelo uso que se faz nas tabelas de
ficar verdades sentenciais e tautolo- verdade das árvores, fala-se, por ve-
gias. Somente Lukasiewicz, E. Post zes, em “método de árvores”.
e Wittgenstein reconheceriam esta O uso do método de tabelas tem
última. três vantagens sobre o método das
tabelas de verdade. Em primeiro lu-
TABELAS (MÉTODO DE) Um dos gar, este último é quase sempre en-
métodos de tabelas é o das chama- fadonho. Em segundo lugar, o mé-
das “tabelas de verdade” (ver) ou ta- todo das tabelas de verdade não
belas veritativo-funcionais. Entretan- acompanha os modos como se pro-
to, designam-se especificamente por duzem naturalmente os raciocínios
“métodos de tabelas” os que obede- que validam consequências a partir
cem aos procedimentos recomenda- de premissas. Em terceiro lugar, as
dos por Gerhard Gentzen no seu sis- tabelas de verdade só se aplicam à ló-
tema de dedução natural. Podemos gica sentencial (proposicional), sen-
remontar a Gentzen (““Untersuchun- do inoperantes na lógica (quantifica-
gen uúber das logische Schliessen””, Ma- cional) de primeira ordem. Com efei-
thematische Schriften, 39 [1934-1935], to, uma série de enunciados pode re-
176-201, 405-431) os vários métodos sultar consistente em relação à sua
de tabelas hoje empregados. O mé- dimensão veritativo-funcional e in-
todo de prova de ““sequências” de consistente no tocante à sua compo-
Gentzen, junto com o das tabelas de sição quantificacional — e vice-
verdade, encontra-se nas origens da versa. Em contrapartida, o método
formação por Evert W. Beth (Les fon- de tabelas proporciona provas de
dements logiques des mathématiques, consistência-inconsistência na ordem
1950; sobretudo, The Foundations of veritativo-funcional e na ordem quan-
Mathematics, 1959) do que chamou tificacional.
“tabelas semânticas” (tableaux séman- Há várias versões do método de
tiques). Jaakko Hintikka (Two Pa- tabelas, mas em todas elas se faz uso
pers on Symbolic Logic, em Acta phr- de árvores. Podem-se empregar (co-
losophica fennica, 8 [1955]) propôs mo Beth) duas árvores ou (como
um método semelhante ao de Beth Hintikka e Smullyan) uma árvore.
para construir conjuntos-modelos. Ou, empregando-se uma única árvo-
Raymond M. Smullyan (First-Order re, pode-se proceder de modo. que
Logic, 1968) desenvolveu umas tabelas cada ponto da árvore seja (como em
analíticas (analytic tableaux), baseadas Hintikka) um conjunto finito de fór-
nas tabelas semânticas de Beth. Ri- mulas ou (como em Smullyan) uma
chard C. Jeffrey (Formal Logic: Its só fórmula. A tendência parece ser
Scope and its Limits, 1967) deu pela a do uso de uma só árvore com uma
primeira vez ampla circulação ao mé- única fórmula em cada ponto (Smul-
todo de tabelas sob a forma difun- lyan e Jeffrey).
dida de um “método de árvores”. Na versão de Jeffrey e Smullyan
661 TABELAS (MÉTODO DE)
x
V F F Pp E, 7
F V F
Na tabela analítica correspondente —Tq r 8
temos: X DS 9
pNlp Pode-se ver que os três ramos ter-
Pp minais ficam encerrados porque, se-
1p guindo em cada caso o ramo corres-
X pondente a partir de 4, observam-se
TABELAS (MÉTODO DE) 662
Ga—>Ha
cadores. Isso se faz mediante exem-
plificadores. Um caso simples é o de:
Fa— Ha |
TFa Ga WD
A XFX,
A
lFalHa 11
Entre as regras de exemplificação, XxX XX
mencionamos a de que a exemplifi-
cação de quantificadores particula- Os ramos terminais ficam encer-
res e de negação de quantificadores rados. Sendo inconsistentes 1-4, e
universais devem preceder a de quan- sendo 4 a negação da conclusão da-
tificadores universais e negações de da no exemplo, essa conclusão está
quantificadores particulares. implicada pelas premissas (por 1, 2
Consideremos os seguintes enun- e 3).
ciados: O fato de um ramo de uma das ci-
tadas árvores encerrar-se antes de to-
Todos os alemães são europeus das as suas partes componentes te-
Todos os europeus são respon-
Sáveis
rem sido decompostas indica não ser
necessário expor toda a informação
Otto é alemão
(lógica) contida no ramo. O fato de
Nem todos os alemães são 1rres-
um ramo ficar aberto quando se ex-
ponsáveis pôs toda a informação (lógica) cor-
Podemos traduzi-los para o sim- respondente ao mesmo apenas indi-
bolismo da lógica quantificacional e, ca que o terminal é consistente com
ao mesmo tempo, aplicar a regra de todos os níveis de que se compõe o
eliminação de quantificadores me- ramo, mas pode ser inconsistente
diante as exemplificações menciona- com alguns pontos de outro ramo.
das antes. Uma vez escritas as fór- O fato de as árvores ficarem comple-
mulas (e negando a conclusão), in- tamente fechadas indica inconsistên-
troduzem-se as ramificações pert!- cia, mas, como pode haver árvores
663 TAUTOLOGIA
que não ficam fechadas mesmo sen- dava-se o nome de ““tautologias”* so-
do inconsistentes, é necessário seguir mente a algumas fórmulas e, por ve-
regras, de que não nos ocuparemos zes, unicamente a “(p v p)—p”.
aqui, para construir em todos os ca- Hoje em dia, considera-se esse uso
sos uma tabela com árvores que fique pouco recomendável.
fechada, se o conjunto de fórmulas O número de
tautologias é infini-
correspondentes for inconsistente. to. Algumas das tautologias mais im-
portantes são consideradas leis da ló-
TAUTOLOGIA A significação ha- gica sentencial. Damos em seguida
bitual do vocábulo ““tautologia” é de algumas delas:
índole retórica: “tautologia” é o no-
Tla: p—p,
me que recebe a repetição de um
mesmo pensamento em diversas for-
TI1Ib:
T2:
pp,
IDA ID),
mas. Na lógica, chama-se ““tautolo-
gia” a uma fórmula sentencialmen-
TB:
pv Ip,
te válida. São tautologias as fórmu- são as leis de identidade (T 1a, T1D),
las da lógica sentencial que, quando de contradição (T2) e de terceiro ex-
provadas por meio do método de
belas de verdade (ver), dão sempre
ta- cluido (T3).
obstante, verificou-se mais tarde que fins é antiga; entre os filósofos gre-
a equiparação da lógica — para não gos, pode-se encontrar em Anaxágo-
falar da lógica e da matemática — ras, Platão e Aristóteles.
a séries de tautologias reduzia de mo- O Nous, no sentido de Anaxágo-
do considerável o número de fórmu- ras, é um fim, mas não um fim em vir-
las de que se podia dispor. Por isso, tude do qual se produzem as separa-
ele se limitou a admitir como tauto- ções e misturas de acordo com uma
logias somente as fórmulas lógicas ordem. Anaxágoras parece recorrer,
identificáveis por meio das tabelas de pols, ao que mais tarde se chamaria
verdade (ver). Tal identificação é “explicação teleológica”. Entretan-
possível com as fórmulas do cálculo to, numa passagem do Fáidon, Pla-
sentencial (ou proposicional), mas tão faz Sócrates dizer que, embora
não, segundo vimos antes, com to- Anaxágoras falasse do Nous como de
das as fórmulas do cálculo quantifi- um fim, quando chegava o momen-
cacional, já que algumas destas últi- to de explicar alguma coisa — por
mas são válidas do ponto de vista exemplo, algo parecido a por que Só-
quantificacional, mas não do ponto crates se encontrava no cárcere espe-
de vista sentencial, e, por conseguin- rando o momento de beber a cicuta —,
te, não são tautologias. recorria a causas como os tendões, a
Por outro lado, levantou-se a contextura dos músculos, etc., e pres-
questão de o que é que se diz quan- cindia, portanto, de fins ou, no vo-
do se afirma que uma fórmula de- cabulário posterior, de explicações te-
terminada constitui uma tautologia. leológicas. Esse procedimento não
Segundo Reichenbach (Elements of mereceu a aprovação de Sócrates
Symbolic Logic, $ 34), antecipado, (Platão). A introdução por Platão de
segundo parece, por Fries, mesmo “formas”, “idéias”, “paradigmas”,
que uma tautologia seja vazia, O etc., exprimiu uma forte tendência te-
enunciado de que certa fórmula é leológica, já que as formas, idéias,
uma tautologia não é vazio. Tal paradigmas, etc., não são propria-
enunciado constitui um enunciado mente causas, mas modelos.
empírico. Uma das quatro espécies de causas
é, segundo Aristóteles, o que se cha-
TELEOLOGIA O termo ““teleolo- ma ““causa final”. Esta distingue-se
gia” foi empregado por Wolff (Phr- da causa eficiente, se bem que, em
losophia rationalis sive logica, III, Aristóteles, não seja oposta nem 1n-
$ 85) para designar a parte da filo- compatível com ela. Todas as espé-
sofia natural que explica os fins cies de “causa” colaboram na pro-
(rédos = fim) das coisas, ao contrá- dução de um efeito. Se reservarmos
rio da parte da filosofia natural que para a causa eficiente o adjetivo
se ocupa das causas das coisas. So- “causal” e para a causa final nos li-
mente o nome é novo. A própria mitarmos a usar o adjetivo ““final”,
idéia de uma explicação por meio de poderemos recorrer aos vocábulos
TELEOLOGIA 666
último conceito o termo aióávr ao es- que Platão considerasse esse movi-
crever (Tim., 37 D) que o tempo, mento circular como ““a própria eter-
xoovos, é a imagem móvel da eter- nidade”, mas esse seria um assunto
nidade, aiwr; mais tarde, Aristóte- cujo debate nos levaria longe. De
les (De caelo, [I, 9, 279 a 22-30) da- qualquer modo, comparado com
ria ao conceito de “idade” o signi- Aristóteles, Platão disse relativamen-
ficado de “idade do céu inteiro” te muito pouco acerca do tempo. Em
e, por conseguinte, do conceito de contrapartida, Aristóteles esforça-se
“eternidade”; desde então, atcwr ad- por analisar o conceito de tempo sem
quiriu o sentido de “tempo imortal fazer dele uma cópia, imagem ou
e divino, sem princípio nem fim”, sombra de uma ““realidade verdadei-
“totalidade do tempo” e, ainda, ra”. Para tanto, vale-se do movi-
“modelo do tempo”. mento, ou, melhor, do conceito de
Podemos, pois, dizer que, em Pla- movimento. Aristóteles observa que
tão, confirma-se a idéia do tempo o tempo e o movimento são perce-
que passa como manifestação ou bidos juntos. É certo que podemos
imagem móvel de uma Presença que estar na escuridão e não perceber ne-
não passa. A idéia de tempo pode nhum movimento por não enxergar
muito bem desempenhar, na filoso- nenhum corpo que se mova. Mas
fia de Platão, um papel mais impor- basta um movimento na mente para
tante do que até agora se supôs; se- nos darmos conta de que passa o
ria necessário examinar em certo de- tempo. Por conseguinte, o tempo
talhe, por exemplo, o modo como tem de ser movimento ou algo rela-
Platão concebe certos ““passados re- cionado com o movimento. Como
motos” (como possíveis modelos de não é movimento, tem de ser a ou-
um presente), assim como a manei- tra alternativa, isto é, o relacionado
ra como ele entende a evolução da com o movimento (Física, IV, 2, 219
sociedade, antes de se dar um pro- a). Pois bem, no conceito de tempo,
nunciamento definitivo sobre o as- OU, se se quiser, de sucessão tempo-
sunto e de se concluir ou que não há ral, estão incluídos conceitos como
em Platão uma idéia suficientemen- os de “agora”, “antes” e “depois”.
te desenvolvida do tempo, ou que, Estes dois últimos conceitos são fun-
quando tal idéia existe, o filósofo damentais, pois não haveria tempo
tende a ““reduzi-la” a algo que é algum sem um “antes” e um ““de-
atemporal. Cumpre levar em conta, pois”. Donde o tempo pode ser de-
entre outras coisas, que a eternida- finido do seguinte modo: ó xpeóvos
ço de, pelo menos, três modos (co- tempo ““cósmico”* — tinha, em ca-
mo uma realidade em si, indepen- da caso, características distintas. À
dente das coisas; como uma proprie- rigor, tanto os absolutistas quanto OS
dade das coisas e, de forma especial, relacionistas tendiam a considerar
das substâncias; como uma relação que o tempo é contínuo, ilimitado,
ou uma ordem), também se podia não-isotrópico (isto é, tem uma só d!i-
conceber o tempo de três modos: co- reção e uma só dimensão), homogê-
mo realidade absoluta; como pro- neo e fluindo sempre do mesmo mo-
priedade; como relação. do sem que haja outros — o que,
Desses três modos, o que mereceu aliás, parece evidente, pois “mais de-
mais escassa atenção foi o segundo. pressa” ou “mais devagar” só tem
Com efeito, era difícil conceber o sentido em relação ao tempo.
tempo como uma propriedade das Embora as concepções acerca do
coISas — quer se entendesse essa pro- tempo propostas por Newton e Leib-
priedade como algo real, residindo niz sejam mais matizadas do que pa-
nas próprias coisas, quer fosse enten- rece à primeira vista, teremos de sim-
dida como uma idéia, a idéia de uma plificar e declarar que esses filósofos
distância entre várias partes de uma representaram, respectivamente, as
sucessão. Em todo caso, o tempo co- concepções absolutista e a relacionis-
mo propriedade das coisas podia ser ta a respeito do tempo. À concepção
chamado, de modo mais apropriado, absolutista está expressa do seguin-
duração. A existência temporal de te modo: num dos esclarecimentos
uma coisa é a duração dessa coisa. dos Principia: “O tempo absoluto,
Porém, como parecia que se neces- verdadeiro e matemático, por si e por
sitava de uma realidade universal que sua própria natureza, flui uniforme-
servisse de medida para a duração mente sem relação com nada exter-
(pois, do contrário, haveria tantos no, e tamém se lhe dá o nome de du-
“tempos” quantas fossem as ““dura- ração.”* Além desse “tempo absolu-
ções” ou, pelo menos, os “modos de to”* há o “tempo relativo”, o qual
durar”), a atenção concentrou-se nos é descrito do seguinte modo no mes-
outros dois modos de se conceber o mo esclarecimento e após a descri-
tempo: como realidade em si, inde- ção do “tempo absoluto”: “o tem-
pendente das coisas, e como relação. po relativo, aparente e comum, é
A primeira concepção é a chamada uma medida sensível e externa... da
“absoluta” ou ““absolutista” do duração por meio do movimento, a
tempo; a segunda concepção é a cha- qual é comumente usada em vez do
mada ““relacional”' ou ““relacionista” tempo verdadeiro.”* Foi observado
do tempo. Estudaremos brevemen- que Newton fala de um “tempo ab-
te essas duas concepções, mas adver- soluto”*, mas, a rigor, faz uso de um
tindo desde já que a adesão a uma conceito de tempo que não é abso-
delas não equivalia a sustentar que luto, e sim “operacional** (Toul-
o tempo — como tempo ““físico” ou min). O certo, porém, é que Newton
677 TEMPO
tende a fundamentar qualquer idéia explicar que ele não exerce nenhuma
do tempo num conceito absoluto do ação causal sobre as coisas.
tempo como o apresentado antes. O próprio Newton pôde muito
Supõe-se nessa concepção que o tem- bem não insistir demais nas implica-
po é independente das colsas, ou se- ções teológicas e metafísicas dessa
ja, enquanto as coisas mudam, o concepção do tempo, mas os newto-
tempo não muda. As mudanças das nilanos, em particular, Clarke, leva-
coisas são, pois, mudanças em rela- ram essa concepção às suas últimas
ção ao tempo uniforme que lhes ser- consequências teológicas e metafísi-
ve de moldura “vazia”. Em outras cas. É certo que, especialmente em
palavras, as mudanças encontram-se sua discussão com Leibniz, Clarke
no tempo num sentido análogo a co- Interessou-se mais, ao que parece,
mo se supunha que os corpos se en- pela questão do espaço do que pela
contram no espaço. E, tal como su- do tempo. O espaço — o ““espaço
cedia com o espaço, supunha-se que absoluto”? — tinha sido descrito por
o tempo é indiferente às coisas que Newton como sensorium Dei. À es-
contém e às mudanças que têm lu- se respeito, Clarke indica que dizer,
gar nas colsas — ou, se se quiser, in- como fez Newton, que o espaço é O
diferente às coisas cambiantes. O “sensório de Deus” não significa que
tempo era concebido como ““algo” ele seja um “órgão dos sentidos”,
perfeitamente homogêneo; nenhum mas tão-somente ““o lugar da sensa-
instante do tempo difere qualitativa- ção”, porquanto o olho, o ouvido,
mente de qualquer outro instante do etc., não são sensoria, ao que Leib-
tempo. É certo que o tempo difere niz replicou que sensorium significa
do espaço em alguns aspectos impor- “órgão de sensação”. Mas muito do
tantes e, sobretudo, no seguinte: ele que Clarke disse acerca do espaço
“flui” e move-se unidimensional- pode ser cotejado com o que disse,
mente numa única direção. Parece, ou supôSs, a respeito do tempo. Em
pois, que há uma diferença intrinse- todo caso, tanto o espaço quanto o
ca entre momentos do tempo; por tempo são, diz Clarke, “quantidades
exemplo, um momento dado é um reais”; em suma, são “absolutos”.
“antes” e outro momento dado po- Contra 1sso, Leibniz defendeu a
de ser um “depois”. Mas o “antes” mencionada concepção relacional ou
e o “depois” são tais em relação ao relacionista do tempo. Em seu escri-
tempo absoluto. Assim, o tempo ab- to sobre “Os fundamentos metafísi-
soluto é prévio não só às colsas, mas cos da matemática”, uma de suas úl-
também a quaisquer medidas tempo- timas obras, Leibniz indicou que o
ralis. O tempo, além disso, não exer- tempo é ““a ordem de existência das
ce nenhuma ação causal sobre as coi- coisas que não são simultâneas. As-
sas; melhor dizendo, o tempo é con- sim, o tempo é a ordem universal das
cebido do modo antes indicado em mudanças, quando não levamos em
grande parte com o propósito de se conta as classes particulares de mu-
TEMPO 678
de
Y
interessa por essa noção, mas com O único modo como, em nossa expe-
objetivo de mostrar que ela é contra- riência presente, percebemos as co!-
ditória e deve ser, portanto, elimina- sas —, estamos percebendo-o mais
da. Esse autor raciocina da seguinte ou menos como realmente é.” (op.
maneira: cit., II, 333).
As posições no tempo formam Muitos dos filósofos ““temporalis-
duas séries: a série A, constituída pe- tas” contemporâneos entenderam o
lo passado, presente e futuro; e a sé- tempo como ““experiência vivida”,
rie B, constituída pelo “antes” eo como ““duração para”, como mani-
“depois”. As distinções na série B festação de uma ““temporalidade”
são permanentes. Qualquer aconte- mais básica, etc. Em todos esses ca-
cimento, M, estará sempre na mes- sos, o problema do tempo é comu-
ma relação de anterioridade ou pos- mente tratado do ponto de vista me-
terioridade com respeito a outro tafísico. Mas o ponto de vista que
acontecimento, O. Se O ocorreu an- poderíamos chamar ““físico”* — ou,
tes de M, estará sempre na relação se se quiser, o modo como a física
“antes de”* com respeito a M; se O tratou o tempo —, também é impor-
aconteceu depois de M, estará sem- tante para o pensamento filosófico,
pre, com respeito a M, na relação como o fo1, segundo vimos, para a
“depois de”. A distinção entre pas- Epoca Moderna. Não podemos, a es-
sado, presente e futuro é essencial se respeito, fazer muito mais do que
para a noção de tempo, mas resulta
que os três são mutuamente incom-
mencionar algumas concepções al-
e
guns dos problemas por elas susci-
patíveis: se um determinado aconte- tados. Em primeiro lugar, é impor-
cimento é passado, então não é pre- tante, na concepção física do tempo,
sente nem futuro. Apesar disso, ““to- a série de conceitos que tiveram sua
das as três determinações pertencem origem na teoria da relatividade, tan-
a cada acontecimento” (The Nature to especial como geral. Conforme vi-
of Existence, II, 305 e ss.). A série mos oportunamente, também há em
A leva, pois, segundo McTaggart, a Newton um conceito ““relativo”* do
uma contradição e tem de ser rejei- tempo, mas esse concelto encontra-
tada. Mas como a série B está basea- se — pelo menos, na interpretação
da na noção de tempo apresentada “clássica”* do pensamento físico
pela noção A, também deverá ser re- newtoniano — inserido num concei-
pelida. Assim sendo, rejeita-se o pas- to “absoluto”: as medições tempo-
sado, o presente e o futuro, o antes rais são relativas a um tempo abso-
e o depois. “Nada é realmente ante- luto que “flui uniformemente sem
rior ou posterior a outra coisa, nem relação com nada externo”. Na teo-
temporalmente simultâneo a ela. Na- ria especial da relatividade, o tempo
da realmente muda. E nada está real- “relativiza-se” inteiramente ao fa-
mente no tempo. Toda vez que per- zer-se função de um sistema de refe-
cebemos algo no tempo — que é O rência, desde o qual se efetuam to-
683 TEMPO
que ““a vida do Conceito” ficou al- de acordo com as ““três leis dialéti-
guma vez detida em qualquer dos cas” —, o segundo mostra-se mais
pontos dessa tríade. Mas, nesse ca- inclinado a “flexibilizar” a triplici-
so, a expressão ““tese-antitese-sínte- dade de referência num sentido aná-
se” representará sobretudo um obs- logo ao que Hegel se propôs (embo-
táculo para a compreensão desse mo- ra, é claro, numa forma não idealis-
vimento, sendo preferível pô-la de ta) e a “flexibiliza” mais ainda, se
quarentena. Foi dito, por vezes, que tivermos presente que não existe, pa-
Marx e Engels tomaram de Hegel o ra Marx, nenhuma ““necessidade”,
procedimento da tese-antítese-sínte- nem mesmo ““interna”, de que o de-
se e fizeram com ele justamente o
que Hegel criticava em seus prede-
senvolvimento humano
e social obe-
deça do princípio ao fim a um deter-
cessores ou em seus coetâneos. A tal minado esquema. Esse desenvolvi-
respeito, cabe apontar uma impor- mento é, obviamente, ““contraditó-
tante diferença entre Engels e Marx. rio”, “conflitante” e, além disso,
Enquanto o primeiro tende a fazer procede mediante negações e supe-
funcionar uma ““triplicidade” que, ração de negações, mas isso é dife-
apesar do seu declarado caráter dia- rente de supor que há um esquema
lético, parece proceder de forma conceitual triádico explicativo que se
“automática” — em todo caso, a fa- pode manipular mais ou menos ““me-
zer semelhante triplicidade funcionar canicamente”.
U
U Nas exposições clássicas da dou- a Idade Média, é costume colocar-
trina modal, as proposições modais se nesse período a origem explícita
costumam ser simbolizadas com mo- da chamada questão dos universais.
dus negativo e dictum negativo por Essa questão reviveu, de fato, com
meio da letra “UV” (e também, às ve- particular acuidade, desde o instan-
zes, por meio da letra “O0”). “UU” te em que se considerou ser um pro-
representa, pois, proposições do ti- blema capital o apresentado na tra-
po: dução que Boécio fez da Isagoge de
E possível que não p, Porfírio. O filósofo neoplatônico es-
creveu o seguinte: “Como é neces-
onde ““p” simboliza um enunciado sário, Crisaoro, para compreender a
declarativo. doutrina das categorias de Aristóte-
les, saber o que é o gênero, a dife-
UNIVERSAIS Tradicionalmente, os rença, a espécie, O próprio e o aci-
universais, universalia, foram cha- dente, e como esse conhecimento é
mados ““noções genéricas”, “idéias” útil para a definição e, em geral, pa-
e “entidades abstratas”. Costumava- ra tudo o que se refere à divisão e à
se contrapor os universais aos ““par- demonstração, cuja doutrina é mui-
ticulares””, e estes últimos foram to proveitosa, intentarel num com-
equiparados a entidades concretas ou pêndio e à maneira de instrução re-
singulares. sumir o que os nossos antecessores
Um problema capital em relação disseram a tal respeito, abstendo-me
aos “universais” é o de seu status de questões demasiado profundas e,
ontológico. Trata-se de determinar mesmo, detendo-me pouco nas mais
que classe de entidades são os uni- simples. Não intentarei enunciar se
Versais, isto é, qual a sua forma pe- OS gêneros e as espécies por si ou na
culiar de “existência”. Embora, co- Inteligência nua, nem se, no caso de
mo se disse, trate-se primordialmente subsistirem, são corpóreos ou incor-
de uma questão ontológica, ela teve, póreos, nem se existem separados
não obstante, implicações e ramifi- dos objetos sensíveis ou nesses ob-
cações importantes em outras disci- Jetos, fazendo parte dos mesmos. Es-
Plinas: a lógica, a teoria do conheci- se problema é excessivo e requeriria
mento e até a teologia. A questão foi indagações mais amplas. Limitar-
exposta com frequência na história me-ei a indicar o mais plausível que
da filosofia, sobretudo desde Platão
os antigos e, sobretudo, os peripa-
e Aristóteles; mas, como foi discuti-
téticos disseram razoavelmente sobre
da com grande intensidade durante
esse ponto e os anteriores” (Isago-
UNIVERSAIS 690
Todos os M são P
Todos os S são M.
A figura resultante, seguindo as
E: nenhum S é P
Indicações anteriores, é:
VENN, DIAGRAMAS DE 698
—
Silogismo |
Todos os pescadores Todos os
de vara são tranquilos P são M
Alguns jornalistas Alguns S
não são trangúilos não são M
-—
Alguns Jornalistas Alguns S
não são pescadores não são P
de vara
—
Silogismo 3 com a idéia de verdade que prepon-
Todos os pescadores Todos os derou nos primórdios da filosofia.
Os filósofos gregos começaram por
de vara são M são P
buscar a verdade, ou o verdadeiro,
tranquilos
diante da falsidade, da ilusão, da
Alguns leões são Alguns M aparência, etc. A verdade era, nesse
animais africanos são S caso, idêntica à realidade, e esta úl-
Alguns animais tima era considerada idêntica à per-
Alguns S
africanos são são P manência, ao que é, no sentido de
carnívoros “ser sempre” — quer se tratasse de
uma substância material, quer de nú-
S P meros, qualidades primárias, áto-
mos, idéias, etc. O permanente era,
pois, concebido como o verdadeiro
em face do cambiante, do mutável
— que não era considerado necessa-
riamente falso, mas apenas aparen-
temente verdadeiro, sem o ser ““na
verdade”, Como a verdade da reali-
dade — que era simultaneamente
realidade verdadeira — era concebi-
da amiúde como algo acessível uni-
M camente ao pensamento e não aos
sentidos, a tendência foi de se fa-
O silogismo 3 é válido (Datisi, ter-
zer da chamada ““visão inteligível”,
ceira figura).
nous, um elemento necessário da ver-
dade.
VERDADE O vocábulo ““verdade” Esse sentido grego da verdade não
é empregado em dois sentidos: para é historicamente o único possível. Se-
se referir a uma proposição e pa- gundo Von Soden, seguido, entre
ra se referir a uma realidade. No pri- outros, por Zubiri e Ortega y Gas-
meiro caso, diz-se de uma proposi- set, há uma diferença importante en-
ção que é verdadeira, contrapondo-a tre o que o grego entendia por ver-
a “falsa”. No segundo caso, diz-se dade e o que o hebreu entendida por
de uma realidade que é verdadeira, 1sso. Para este último, pelo menos
diferenciando-a de “aparente”, “1lu- em sua época ““clássica”, a verdade
sória”, “irreal”, “inexistente”, etc. (emunah) é primordialmente a segu-
Nem sempre se distingue entre es- rança ou, melhor dizendo, a confian-
ses dois sentidos de ““verdade”', na ça. A verdade das coisas não é, en-
linguagem corrente. Mas pode-se tão, a sua realidade em face da sua
destacar um aspecto da verdade em aparência, mas a sua fidelidade em
relação a outro. Foi o que ocorreu face da sua infidelidade. Verdadei-
VERDADE 700
apresenta-se nas Idéias e nas Medi- da verdade (Vom Wesen der Wahr-
ftações cartesianas. heit, 1943). AÍ se apresenta a essên-
Heidegger nega que a verdade se- cia da verdade como algo evidente-
ja primariamente a adequação do in- mente muito distinto das diversas
telecto à coisa e sustenta, de acordo maneiras possíveis de adequação ou
com o primitivo significado grego, convenientia; a verdade só se torna
que a verdade é a descoberta. A ver- patente na medida em que o juízo
dade converte-se num elemento da mediante o qual se enuncia a verda-
existência, a qual encobre o ser em de de uma coisa se refere a ela, em
seu estado de degradação (Verfallen) que a faça presente e permita expres-
e descobre-o em seu estado de auten- sá-la tal como é. A coisa deve, pois,
ticidade. Por conseguinte, a verda- estar ““aberta” ou, melhor dito, a
de como descoberta só pode se dar coisa deve aparecer num âmbito de
no fenômeno de ““estar no mundo” “abertura” que inclui a “direção pa-
próprio da Existência e nele se radi-
ra a coisa”. Ao referir-se à coisa,
ca o fundamento do ““fenômeno ori-
Oo
é verdadeiro — p
gem sempre que a linguagem em que
se estabeleça a morfologia seja de or- que se lê:
dem superior à da linguagem cuja “p” é verdadeiro se e somente se p,
morfologia é objeto de exame; se a
ordem da linguagem usada para tan- do qual um dos exemplos pode ser
to é, pelo menos, igual à da própria o mesmo indicado por Tarski:
linguagem, não se pode estabelecer “A neve é branca” é verdadeiro se
a semântica da linguagem. e somente se a neve for branca.
É usual apresentar em forma mui-
Os predicados metalógicos ““é ver-
to simplificada — a rigor, muito pró-
xima da linguagem coloquial cujas dadeiro” e “é falso”? são os usados
ambigúidades trata-se Justamente de na lógica bivalente. Numa lógica po-
evitar — a “concepção semântica da livalente, o número de predicados
verdade” proposta por Tarski. Se metalógicos aumenta: há tantos
quisermos dizer que um enunciado quantos os valores de verdade. As-
(por exemplo: “Dante é um poeta sim, aos predicados ““é verdadeiro”
italiano”) é um enunciado verdadei- e “é falso” junta-se, na lógica triva-
verdade fática e verdade lógica. Ou- saber quais são os precedentes da dis-
tra é a que classifica as principais teo- tinção leibniziana e quais são as for-
rias da verdade com expressões co- mas que adotou depois de Leibniz.
mo ““teoria da verdade como corres- A outra é sistemática e consiste em
pondência (ou adequação)”, ““teo- dilucidar a natureza da distinção e as
ria da verdade como coerência”, diversas soluções dadas à relação en-
“teoria pragmatista da verdade”, tre os dois tipos de verdades. As duas
“teoria executiva da verdade”. A es- questões entrelaçam-se, aliás, com
sas expressões deveriam ser acrescen- certa frequência, dado que, como ve-
tadas as de “teoria relativista da ver- remos, na análise sistemática das so-
dade” e “teoria historicista da ver- luções possíveis encaixam-se, como
dade”, que não costumam ser expos- exemplos, diversas posições adotadas
tas na literatura filosófica sobre a no- no curso da história.
ção de verdade, mas que foram su- O primeiro e talvez o mais funda-
mamente importantes e influentes. mental dos precedentes da distinção
Cabe distinguir entre teoria relativis- leibniziana é o platônico. De fato, as
ta (não há verdades absolutas) e teo- verdades de razão podem ser equi-
ria historicista (as verdades estão na paradas às obtidas por meio do sa-
história, isto é, toda verdade é rela- ber rigoroso: seu método é a dialéti-
tiva ao tempo ou época em que é for- ca e seu modelo, a matemática. As
mulada), mas ambas têm em comum verdades de fato são as verdades con-
supor, segundo a consagrada fórmu- seguidas por meio da opinião, que
la, que “a verdade é filha do tem- não se refere ao que é (ao que é sem-
p o”. pre), mas ao que muda, isto é, ao
que oscila entre o ser e o não ser. Em
VERDADES DE RAZÃO, VER- consequência disso, pode-se afirmar
DADES DE FATO Em diversas par- que as verdades de razão são neces-
tes de sua obra, Leibniz estabeleceu sárias; as de fato, contingentes. A di-
uma diferença entre esses dois tipos ferença entre o necessário e.o con-
de verdade. O texto mais conheci- tingente estabelecida por Aristóteles,
do acha-se na Monadologia, $ 33: especialmente a definição do primei-
“Também há duas classes de verda- ro desses conceitos pela exclusão do
de: as de razão e as de fato. As ver- segundo, e vice-versa, permite traçar
dades de razão são necessárias e seu com detalhe a distinção platônica.
oposto é impossível; as de fato são Durante a Idade Média, vários filó-
contingentes e seu oposto é possíi- sofos elaboraram inúmeras distin-
vel.”* Essa doutrina foi desenvolvi- ções parecidas; entre eles, destacou-
da em detalhe na Teodicéia (S$ 170, se Duns Escoto, em particular atra-
174, 189, 280-282, 376, citados pelo vés da doutrina da contingência do
próprio Leibniz). Duas questões se mundo criado. Por sua vez, Suárez
apresentam a esse respeito. Uma É desenvolveu a doutrina da identida-
histórica e consiste especialmente em de do sujeito e do predicado em juí-
VERDADES DE RAZÃO, VERDADES DE FATO 712
zos que expressam verdades eternas por sua distinção entre fatos e rela-
e, portanto, a analiticidade de tais ções de idéias. O segundo, por sua
juízos — uma concepção que se en- distinção entre juízos a priori e Juí-
contra na base da teoria leibniziana. zos a posteriori. As diferenças entre
Entre os filósofos modernos podem as respectivas ontologias permitem
ser citados como predecessores de explicar em que sentidos distintos ca-
Leibniz, conforme indicou F. H.
Heinemann, Descartes e Hobbes. O
da um toma
a distinção leibniziana.
Com algumas variantes, a distinção
primeiro, por sua formulação da di- foi adotada por muitos pensadores,
ferença entre Juízos sobre coisas e tanto racionalistas quanto empiris-
suas tendências, e juízos que expres- tas. J. Stuart Mill serviu-se dela, se
sam verdades eternas. Sem conside- bem que para declarar imediatamen-
rar ainda estes últimos juízos como te que toda verdade de razão podia
analíticos — o que seria explicita- reduzir-se a verdade de fato. Os po-
mente feito por Leibniz —, ele ten- sitivistas lógicos contemporâneos e
deu a equiparar as verdades de ra- pensadores de tendência afim têm-na
zão a verdades conseguidas median- usado para mostrar que, na grande
te um processo calculatório. O se- maioria dos casos, é possível combi-
gundo, por sua diferença entre o co- nar o empirismo com o formalismo,
nhecimento de fatos e o conhecimen- sempre que as verdades de razão se-
to da consequência de uma afirma- jam consideradas puramente analí-
ção relativa a uma outra. Aliás, nem ticas e, por conseguinte, como re-
todos esses filósofos situaram suas gras.
distinções no mesmo marco ontoló- Não obstante, a distinção, tal com
gico. Descartes, por exemplo, fiel ao Leibniz a propôs, está impregnada
racionalismo e ao realismo, conside- de uma metafísica própria, que não
rou os dois tipos de Juízos como re- é fácil de ser aceita pelos demais f1-
dutíveis, em seu mais alto estado de lósofos. É típico de Leibniz conside-
perfeição, a proposições evidentes. rar que a distinção, válida para uma
Hobbes, em contrapartida, fiel ao mente finita, se dissipa numa mente
empirismo e ao nominalismo, con- infinita, a qual pode reduzir a série
siderou toda proposição, em última infinta de verdades de fato a verda-
instância, uma proposição de expe- des de razão e, por conseguinte, po-
riência, pois as que se referem à con- de fazer das verdades empíricas ver-
segiiência de uma afirmação relati- dades analíticas.
va a outra são, a rigor, proposições Quanto ao aspecto sistemático da
relativas ao uso de nomes na lingua- questão, limitar-nos-emos a esboçar,
gem. em suas linhas gerais, duas posições
No tocante à evolução posterior básicas: (I) as verdades de razão e as
da distinção leibniziana, encontra- verdades de fato estão completamen-
mos, primeiramente, reflexos dela te separadas e não há possibilidade
em Hume e em Kant. O primeiro, de reduzir umas às outras, nem de
713 VERIFICAÇÃO
e Aristóteles — assim como as dos Santo Tomás opina que: (1) a von-
neoplatônicos e, em menor medida, tade não está submetida, em nenhum
dos estóicos — pesaram muito na dos seus atos, à necessidade, e 1sso
elaboração da teologia cristã. Além a ponto de vontade e livre arbítrio
disso, em alguns casos, como em (ver) não serem duas potências dis-
Santo Tomás, as doutrinas sobre a tintas, mas uma só; (2) a vontade não
natureza da vontade alicerçaram-se quer necessariamente tudo o que
em bases aristotélicas. Não obstan- quer; (3) embora pareça que, sendo
te, a nova idéia do homem — assim o Bem o objeto formal da vontade,
como a idéia do “homem novo” —, esta tem de ser a mais elevada das
que abre caminho no cristianismo e potências; o objeto do intelecto é
encontra expressão em grande parte mais nobre que o da vontade, pelo
da obra de Santo Agostinho, leva que o intelecto é a potência mais ele-
não poucos autores a destacar a im- vada; (4) o intelecto move a vonta-
portância e a preeminência da von- de, mas como fim; (5) não se pode
tade, tanto no homem como em estabelecer uma distinção entre von-
Deus, e a promover desse modo o tade irascível e concupiscível, como
“voluntarismo”, geralmente contra propõem alguns autores; a vontade
o ““intelectualismo*””. Do papel de- é um apetite superior às potências
sempenhado por esse ““voluntaris- irascíveis e concupiscíveis.
mo” são testemunho, na Idade Mé- Seria errado concluir que Santo
dia, autores como São Pedro Da- Tomás deprecia a vontade em favor
mião, Duns Escoto e Guilherme de do intelecto. Ambos são motores que
Ockham, e, na época moderna, au- atuam de distintas formas: a inteli-
tores como Descartes. Comum a to- gência move a vontade por meio de
dos eles ou, pelo menos, aos três úl- objetos, e a vontade move a si mes-
timos, é a idéia de que há na alma ma em função do fim proposto. En-
ações e paixões, de que entre as ações tretanto, há uma certa preeminência
figuram os atos intelectivos, de que do intelecto em Santo Tomás, que dá
todas as ações se encaixam na, ou 1n- toda a sua força à expressão (calca-
clusive se reduzem à, vontade e de da de Aristóteles) appetitus intellec-
que, portanto, os próprios atos 1n- tualis e à idéia de que não se quer na-
telectivos estão dirigidos pela vonta- da que não se conheça previamente,
de. Em todo caso, só podem ser aju!- nihil volitum quin praecognitum.
zados mediante um ato de vontade. Como é característico de Santo To-
A contraposição entre a tendência más não adotar posições extremas,
para destacar a vontade e a tendên- ele não subordina a vontade, em sua
cia para destacar o intelecto — sem ação, ao intelecto. Este move a von- »
bem que Deus só queira o que é bom. cide, de modo que o ato intelectual
Um filósofo ““voluntarista” do sécu- é um ato da vontade — como o são,
lo XIX, Charles Secrétan, definiu aliás, todos os atos, ou ações, ao
Deus como aquele que pode dizer: contrário das paixões. Zubiri afir-
“Eu sou o que quero ser.” O pensa- mou que o voluntarismo de Descar-
mento de Duns Escoto e o de Gui- tes é paradoxal, porque é um volun-
VONTADE 726
painhas para nos avisar com toda las idéias de James, incluindo O
certeza de que temos a verdade ao al- “pragmatismo” como expressão de
cance da mão, parecerá ser uma fan- um “predomínio do prático”. Con-
tasmagoria ociosa predicar solene- tudo, ao contrário de James, a no-
mente que nosso dever é esperar que ção unamuniana de vontade de crer
soem as campainhas”'. Há tanto pe- tem um aspecto ““conflitante”*: crer
rigo, diz ele, em aguardar quanto em é uma reação salvadora contra a in-
crer. “Em qualquer caso, agimos e credulidade e alimenta-se desta, co-
tomamos nossas vidas nas mãos”. Se mo a fé se alimenta da dúvida.
não por outra coisa, a decisão reli-
giosa é importante porque muda VONTADE DE PODER A idéia de
nossas vidas. poder (Macht) ou potência esteve
Numa nota de rodapé, James de- sempre presente no pensamento de
clarou que a “crença é medida pela Nietzsche, mas tornou-se dominan-
ação” e que a ação requerida pela hi- te, de maneira especial, a partir de
pótese religiosa é distinta da citada Assim falou Zaratustra (Also sprach
pela ““hipótese naturalista”. Admi- Zarathustra, 1883-1891) e de Além
tiu, uma vez mais, que, se esse pres- do bem e do mal (Jenseits von Gut
suposto não é verdadeiro, ““a fé re- und Boóse, 1886), culminando nos
ligosa é mera superfluidade... e os fragmentos póstumos que a irmã de
debates em torno da sua legitimida- Nietzsche coligiu sob o título de A
de são um exemplo de vã futilidade, vontade de poder (Der Wille zur
indigno de ocupar as mentes sérias”. Macht). A mais conhecida expressão
A noção de “vontade de crer” é é a que figura neste último título —
importante no pensamento de Una- “vontade de poder”, por vezes, tam-
muno — que se teria negado, aliás, bém chamada ““vontade de potên-
a aceitar que se trata de uma ““no- cia”. E uma expressão que se lê com
ção”. Entre outros lugares, encon- muita frequência nos citados frag-
tra-se nos capítulos VI e IX de E/ mentos póstumos; neles, fala da von-
sentimiento trágico de la vida. À tade de poder como conhecimento,
vontade de crer está ligada, em Una- na Natureza, como sociedade e in-
muno, à vontade (ou instinto) de vI- divíduo, e como arte.
ver, que é simultaneamente vontade Não é fácil determinar, porém, o
(ou instinto) de sobrevivência. Una- que Nietzsche entendia por ““vonta-
muno referiu-se especificamente a de de poder”; é razoável pensar que
William James, mencionando a obra entendia coisas muito diversas, mes-
The Will to Believe (cf. supra), as- mo quando todas parecem ter uma
sim como Pragmatism, a New Na- característica comum: a de um im-
me for Some Old Ways of Thinking pulso que vai sempre “além”, que
(1907), e The Varieties of Religious não se detém nunca. Achava Nietzs-
Experience: A Study in Human Na- che que a vontade de poder expres-
ture (1902) e manifestou simpatia pe- sava um movimento destinado a
731 VONTADE DE PODER
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Dicionário de Filosofia
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da Filosofia
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