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Diciónário de

ei hofojir
Josê Ferrater Mora


A

E”
à
Martins Fontes
Este Dicionário de Filosofia contém
uma síntese precisa do grande
Dicionário de Filosofia de José
Ferrater Mora, publicado
originalmente em quatro volumes.
Priscilla Cohn, incumbida da tarefa
de condensar a obra, deixou de
lado os artigos dedicados
individualmente aos filósofos e
compendiou os conceitos dotados
de uma longa história e ainda vivos
nos debates contemporâneos.
Como nota Ferrater Mora no
prólogo, neste resumo “não se
encontra nada que não seja
realmente fundamental, e nada
que seja realmente fundamental foi
deixado de lado”; o repertório
inclui os “ingredientes básicos para
a correta compreensão de uma
enorme quantidade de noções
filosóficas” e permite conhecer os
significados e os usos — no passado
e no presente — de conceitos que,
embora manipulados e discutidos
principalmente por filósofos, foram
Incorporados no vocabulário de
todas as pessoas cultas.

CAPA Marcos Lisboa


José Ferrater Mora

Dicionário de Filosofia

Tradução
ROBERTO LEAL FERREIRA
ÁLVARO CABRAL

Martins Fontes
São Paulo 200|

Título original: DICCIONARIO DE FILOSOFÍA
(VERSIÓN ABREVIADA).
Copyright O José Ferrater Mora.
Copyright O 1993, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

São Paulo, para a presente edição.

1º edição
fevereiro de 1994
4º edição
abril de 2001

Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisão gráfica
Maria Cecília K. Caliendo, Laila Dawa,
Márcio Della Rosa, Marise Simões Leal,
Vadim Valentinovitch Nikitin e Dirceu A. Scali Jr.
Produção gráfica
Geraldo Alves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mora, José Ferrater
Dicionário de filosofia / José Ferrater Mora ; [tradução Roberto Leal
Ferreira, Álvaro Cabral]. — 4º ed. — São Paulo : Martins Fontes, 2001.

Título original: Diccionario de filosofía.


ISBN 85-336-1400-4

1. Filosofia — Dicionários I. Título.

01-1188 CDD-103
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : Dicionários 103

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
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Non. Mais 1l faut savoir que tout cet artifice
Ne va directemente qu'a vous rendre service.
Moliêre, L'Etourdi, L, x.
Prólogo
Para usar uma imagem: toda obra didática, em qualquer disciplina, é re-
sultado de um esforço com a finalidade de podar árvores muito frondosas
e reduzi-las a seu tronco. Isto tem um inconveniente notório: os galhos e
as folhas das árvores das ciências não são excrescências inúteis, de modo
que não é pouco o que se perde na empreitada. No entanto, ao se exporem
OS traços mais salientes de uma disciplina, a poda é inevitável — caso con-
trário, não haveria como descrever de maneira inteligível bosques vastos
e densos — e, às vezes, até conveniente para os próprios especialistas, que
assim não se perdem por entre os galhos e têm a oportunidade de enxergar
o bosque inteiro.
Vamos traduzir a imagem para uma linguagem mais clara. Quando uma
obra didática é um dicionário de uma disciplina que abrange muitos temas,
e em muitos casos inclui sua própria história, os esforços de síntese devem
ser redobrados: só o que é essencial, preciso e conciso pode estar contido
na obra. A obra que serve de base a esta, meu Dicionário de filosofia, em
quatro tomos grandes e abundantes, já teve de sacrificar muitos detalhes
em benefício da limpeza do conjunto. O Dicionário abreviado de filosofia
aqui presente teve de fazer muito mais: extrair o essencial das tais sínteses
e sintetizar, por sua vez, não poucas delas.
A autora desta síntese de síntese não poupou esforços para conseguir
realizar esse trabalho. De início, dos dois tipos de entradas (artigos) que
figuram num dicionário desta natureza — conceitos filosóficos, por um la-
do, e nomes de filósofos, por outro —, escolheu o primeiro tipo como o
mais próprio e principal. Um dicionário de filosofia é, com efeito, primor-
dialmente de noções filosóficas. Entre as muitas possíveis, a autora esco-
lheu aquelas que têm uma longa história e que aparecem predominantemente
nos debates filosóficos contemporâneos. Assim, a dimensão histórica — sem
a qual falta às noções tratadas a densidade suficiente — e o interesse atual
— sem o qual elas serão meramente arqueológicas — foram harmonica-
mente combinados. Uma vez tendo à mão os conceitos mais importantes
e interessantes, a autora passou a escolher com bom tino as exposições mais
fundamentadas, a resumir os desenvolvimentos demasiado complexos e a
introduzir todas as ligações necessárias a fim de que o leitor pudesse ter
uma idéia clara de todos os significados básicos e de todos os problemas
fundamentais que cada conceito envolve.
Tenho a satisfação de declarar que a autora alcançou pleno êxito na rea-
lização deste propósito e que o fez da mesma forma como eu mesmo gosta-
ria de ter feito, se fosse capaz de sintetizar tão airosamente como ela meu
próprio trabalho de síntese.
Com este Dicionário abreviado de filosofia o leitor.tem a seu alcance um
repertório ao qual poderá recorrer com a certeza de que encontrará sempre
os ingredientes básicos para a devida compreensão de uma notável quanti-
dade de noções filosóficas. Com muita frequência os grandes repertórios,
mesmo os mais habilmente sintetizados, podem confundir o leitor com a
abundância e a variedade das informações. Neste Dicionário abreviado de
filosofia não se encontrará nada que não seja realmente fundamental, mas
nada de realmente fundamental deixará de estar presente.
Vislumbro para a presente obra, duplamente acessível — em tamanho
e em preço —, um amplo público, que poderia vacilar diante da aquisição
ou da consulta de um repertório ainda amplo demais para satisfazer neces-
sidades urgentes destinadas a conhecer os significados e os usos — no pas-
sado e no presente — de conceitos que, embora principalmente manejados
e discutidos por filósofos, introduziram-se no vocabulário de todas as pes-
soas cultas.
J. Ferrater Mora
À
A A letra maiúscula “A” tem vários é sobretudo se se introduz o cha-
P”,
usos nos textos filosóficos. mado ““quadro de oposição”.
ll. Aristótoles Nos textos escolásticos se diz que
emprega-a muitas
vezes (por exemplo, em Analítica “4” afirma universalmente — asse-
Priora) como predicado de uma pro- rit universaliter ou generaliter. E
posição em fórmulas como “A B”, também se utiliza para simbolizar as
que se Ilê “A é predicado de B”'. Nos proposições modais em modus afir-
silogismos categóricos, a letra “A” mativo e dictum negativo, ou seja,.
forma parte do condicional: “Se A as proposições do tipo:
é predicado de todo B...”. É a pre- ”

missa maior do silogismo no modo E necessário que “p”


Barbara (ver) e que na literatura ló- nas quais “p* representa um enun-
gica posterior se apresenta sob diver- ciado declarativo.
sas formas, algumas das quais exi- 3. Por vezes, utiliza-se “A*1| como
bem uma estrutura condicional evi- um dos termos na fórmula que ex-
dente como em: pressa o chamado ““princípio de
Se todo Bé A
identidade”:
A=A (1)
enquanto em outras, erroneamente,
omite-se: É fregiiente a interpretação de que
Todo B é A.
“A” representa um objeto qualquer.
Neste caso (1), equivale a uma das
2. Os escolásticos e outros trata- chamadas notiones comunes, xowval
distas posteriores empregaram a le- Evvota, a qual enuncia: “Toda coi-
tra “A” (primeira vogal do termo sa é igual a si mesma”. A lógica atual
affirmo) para simbolizar a propos!- expressa (1) mediante as fórmulas:
ção universal afirmativa (affirmatio
universalis) tal como: PDP
PDP
Todos os homens são mortais. se a identidade expressar a lei ou
Em textos escolásticos encontra-se princípio de identidade apresentado
com frequência o seguinte exemplo em lógica sentencial, ou então me-
dado por Boécio: diante a fórmula:
Omnis homo Ilustus est. A (XX) (xX=x)

E em muitos textos lógicos a letra se a identidade se referir à lei de re-


“4” substitui o esquema “Todo S&S
flexividade que a lógica de identida-
A, AB, AD

de apresenta. Observe-se que a fór- ção seria: “Uma vez que João é
mula (1) é a mesma utilizada pela ló- maior do que Pedro e Pedro é maior
gica atual para expressar a lei de do que Paulo, então João é maior do
identidade na lógica de classe, na que Paulo”.
qual se usa “A” para designar uma A posteriori (ver A PRIORI).
classe. Apriori (ver).
4, “AU UBV, UC”, etc.) são usa- Ad absurdum. A redução ao ab-
dos para simbolizar classes (““x per- surdo ou ao impossível refere-se a
tence à classe A”, “A classe A está um método de demonstração indire-
incluída na classe B”', etc.). ta que pretende provar a verdade de
5. Lukasiewicz usou “A” para uma proposição pela impossibilida-
simbolizar disjunção. “A” antepõe- de de aceitar as consequências que se
se a uma fórmula: “A p q” lê-se “p derivariam de sua contraditória. Ze-
ouqg” (pvq). não de Eléia, entre outros, utilizou
esse método.
A, AB, AD As preposições latinas a, Ad hoc. Uma idéia, teoria ou ar-
ab e ad aparecem em numerosas lo- gumento ad hoc é aquele que se re-
cuções e frases da literatura filosó- fere a um caso determinado de mo-
fica em latim, especialmente nos tra- do exclusivo.
balhos dos escolásticos; conserva- Ad hominem. Um argumento ad
ram-se no latim original e também hominem pretende ser válido para
se encontram em obras escritas em um homem ou grupo específico. Em
outras línguas. Algumas delas — co- geral, é considerado sem validade pa-
mo a priori, a posteriori, ad homi- ra a argumentação.
nem — são de uso corrente. Enun- Ad ignoratiam. Argumento que se
ciamos em seguida algumas dessas baseia na pretensa ou real ignorân-
locuções: cia de quem o expõe.
A fortiori. Em geral, um argumen- Ad impossibile. Equivalente ao ar-
to a fortiori é aquele que contém gumento ad absurdum.
afirmações que visam reforçar a ver- Ad personam. Um argumento ad
dade da proposição que se trata de personam é aquele que se dirige con-
provar; diz-se então que tal argu- tra um indivíduo em concreto; ba-
mento é a fortiori correto. Num sen- sela-se nos defeitos — reais ou supos-
tido estritamente lógico, um argu- tos — da pessoa em questão.
mento a fortiori é aquele em que se
utilizam adjetivos comparativos co- A PRIORI, A POSTERIORI As ex-
mo “maior do que”, “menor do pressões a priori e a posteriori foram
que”, de modo que a argumentação utilizadas pela primeira vez no sécu-
procede de uma proposição a outra lo XIV por Alberto de Saxônia (Prantl,
pelo caráter transitivo desses adJjet!- IV,78), embora as questões a que fa-
vos. Um exemplo de argumento a zem referência já viessem sendo tra-
Ffortiori entendido nesta última acep- tadas desde a Antiguidade. Entretan-
A PRIORI, A POSTERIORI

to, o problema do a priori só viria independência deve ser interpretada


a ser plenamente investigado na Ida- não no sentido psicológico, mas no
de Moderna. Nos escritos de Descar- epistemológico, dado que o proble-
tes não se encontra uma exposição ma com que Kant se depara na Cri
formal sobre o tema, mas a sua no- tica da Razão Pura não é o da ori-
ção de idéias inatas (Med. de prima gem do conhecimento mas o de sua
phil., II; Princ. phil., 1, 10) é simi- validade. Embora sustente que os
lar à concepção moderna de uma conceitos e as proposições a priori
“idéia a priori”. A crítica do inatis- são necessárias, a sua necessidade
mo -no Livro I dos Ensaios de Locke não decorre do caráter formal detais
pode ser considerada um ataque con- conceitos e proposições, visto que se
tra a tese de que o conhecimento eles fossem puramente formais seria
contém elementos apriorísticos. impossível a formulação de propo-
A primeira distinção entre tipos de sições universais e necessárias a res-
conhecimento que implica o concei- peito do fenomênico. Por outra par-
to de a priori encontra-se em Hume te, OS conceitos a priori não podem
e Leibniz. A diferenciação proposta ser aplicados à realidade em si mes-
por Hume (Enquiry, 4, 1) entre re- ma nem podem servir de exemplo ou
lações de idéias e questões de fato é, paradigma dessa realidade, porquan-
em grande medida, equivalente à dis- to transcendem a experiência possí-
tinção entre proposições analíticas e vel e são fruto da pura imaginação
sintéticas. As analíticas são plena- racional. Para Kant, o a priori nem
mente apriorísticas: não procedem sempre é analítico, pois também exis-
da experiência nem nos proporcio- tem — segundo ele formula — juí-
nam dados ou fatos de experiência. zoOs sintéticos a priori, sem os quais
Têm seu fundamento no puro racio- seria impossível o conhecimento
cínio formal e são obtidas por ““me- científico rigoroso. Perguntar-se, co-
ra operação do entendimento” (op. mo faz Kant, se há Juízos sintéticos
cit.). Por seu lado, as proposições a priori nas matemáticas e nas ciên-
sintéticas são aquelas que derivam da cias da natureza (físicas) é o mesmo
experiência. Leibniz estabeleceu uma que se perguntar se essas disciplinas
distinção semelhante entre verdades são possíveis como ciências e qual é
de razão e verdades de fato; as pri- a sua verdadeira natureza. Kant sus-
meiras são eternas, inatas e a priori, tenta que ambas as ciências são pos-
as passo que as últimas são empir!- síveis devido ao fato de que o a priori
cas e contingentes. A mencionada refere-se mais à aparência do que à
distinção está muito próxima da es- coisa em sl. Os elementos a priori
tabelecida por Kant em sua concep- condicionam ou possibilitam as pro-
ção do a priori, independente da ex- posições universais e necessárias. Na
periência, e o conhecimento a pos- Crítica da Razão Pura, Kant argu-
teriori, que tem sua origem em fa- menta acerca das formas a priori da
tos de experiência (K. r. V., B2). Tal sensibilidade (o espaço e o tempo) e
ABSOLUTO

dos conceitos a priori do entendi- sejam, ao mesmo tempo, a posteriori


mento ou categorias. Sua doutrina & Necessários.
foi alternadamente discutida e desen-
volvida pelos idealistas alemães pós- ABSOLUTO Em sentido filosófico,
kantianos. Hegel, por exemplo, mos- a palavra “absoluto”* — ““ser abso-
tra-se de acordo com que a razão a luto”? ou ““o absoluto”? — significa
priori seja ao mesmo tempo univer- “aquilo que é por si mesmo”. O ter-
sal e necessária e, em contrapartida, mo ““absoluto*” designou o ““separa-
critica por vagas e carentes de con- do de”* ou independente a respeito
teúdo as expressões a priori e ““sin- de outra coisa, isto é, o incondicio-
tetizar”* (Vorlesungen uúber die Ges- nado. Examinaremos cinco questões
chichte der Philosophie. Tell III, que se referem à natureza do abso-
Abs. B; Gloóckner, 19: 557, e Lo-
111
luto.
gik, Buch [, Abs. II, Kap. il. A. 1.A distinção entre diversos tipos
Amn. 1; Glóockner, 4: 250 resp.). de absoluto. A distinção fundamen-
Husserl considera possível uma in- tal está entre o absoluto puro e o sim-
tuição categorial a priori; com ela se ples (absolutum simplicites), o abso-
Iintuem essências, tanto formais (um luto em si e aquilo que é absoluto por
triângulo) quanto materiais (a cor referência a outro (absolutum secun-
vermelha). Os positivistas negaram dum quid). O primeiro foi identifi-
a possibilidade da existência de Juí- cado com Deus, o Princípio (de to-
zos sintéticos a priori porque, segun- dos os seres), a Causa, o Ser, o Uno,
do eles, somente dois tipos de enun- etc. No tocante ao segundo, pode-
ciados são admissíveis: os formais mos distinguirdiversas classes de ab-
(analíticos e a priori) e os materiais solutos, por exemplo, o absoluta-
(sintéticos e a posterior1). No enten- mente vermelho, o absolutamente re-
der de Saul A. Kripke, cumpre dis- dondo, etc.
tinguir entre as noções de a priori e 2. Tipos de relação entre o absolu-
a posteriori (que são epistemológi- to e os entes que não são absolutos.
cas) e as noções de ““necessário” e O absoluto foi sendo relacionado, de
“contingente” (que são ontológicas); uma parte, com o que é dependente
por outras palavras, a priori não é e, de outra, com o que é relativo. Os
(necessariamente) equivalente a ““ne- autores clássicos, em particular os es-
cessário”, e a posteriori não é (ne- colásticos, inclinaram-se frequente-
cessariamente) equivalente a ““con- mente para o primeiro tipo de rela-
tingente””. Kripke rechaça a divisão ção, ao passo que os modernos pre-
taxativa (admitida com diversas ra- feriram o segundo. O resultado fo-
zões e propósitos por Leibniz, Hu- ram muitas doutrinas metafísicas di-
me e muitos positivistas) entre a prio- versas. Por exemplo, poderia definir-
ri e analítico, por um lado, e a pos- se o monismo como a tentativa dere-
teriori e sintético, por outro. Segun- duzir todo o relativo a um absoluto;
do ele, pode haver enunciados que o fenomenalismo, como a pretensão
ABSOLUTO

de ligar o absoluto a tudo aquilo que riência de natureza especial ou excep-


é relativo; o dualismo ou pluralismo, cional. E ainda outros consideram
como o intento de ““dividir” o ab- que tanto a razão quanto a experiên-
soluto em dois ou mais entes abso- cia não são vias adequadas, uma vez
lutos, etc. que o absoluto não é uma coisa con-
3. A possibilidade de se fazer re- creta e, por conseguinte, não pode
ferência ao absoluto ou a um abso- ser pensada nem ““dita”* — propria-
luto. Muitos pensadores admitiram mente falando —, mas tão-só intuí-
a existência do absoluto ou de um da. Por outra parte, a intuição pode
absoluto, ou pelo menos a possibili- ser intelectual, emocional, volitiva,
dade de se falar significativamente de etc. Outros pensadores advertem que
tal conceito. Por sua parte, um cer- discorrer sobre o absoluto resulta
to número de filósofos, sobretudo inevitavelmente tautológico, por-
contemporâneos, repeliu esse crité- quanto não há como evitar-se a as-
rio; muitos empiristas, por exemplo, serção ““o absoluto é o absoluto”.
negam a existência do absoluto, con- Concluem então que só se pode fa-
siderando essa tese um produto da lar dos aspectos concretos do abso-
imaginação; sustentam que a especu- luto, já que é inútil pretender tratar
lação em torno do absoluto não é f1- de seus aspectos formais. A única diY1-
losófica nem científica, mas, no má- lucidação possível em torno do ab-
x1mo, literária ou poética. Numero- soluto consiste, pols, em mostrar que
sOS racionalistas alegam também que o dito absoluto existe, e não em ten-
não é legítimo desenvolver uma con- tar averiguar a natureza do absoluto.
cepção do absoluto, visto que qual- 5. Diversas formas históricas do
quer intento nessa direção redunda absoluto. A última das teses antes ex-
em irremediáveis antinomias. Ana- postas — nem sempre explicitada —
logamente, a maioria dos neoposit!- tem sido, não obstante, a mais fre-
vistas considera ser impossível, inclu- quente na tradição filosófica. Mes-
sive, a utilização do termo ““absolu- mo aqueles autores que não tiveram
to”* com algum sentido, uma vez que a pretensão de contribuir com uma
lhe falta uma referência observável análise do absoluto incluíram em seu
— quer dizer, o seu uso viola as nor- pensamento conceitos que se referem
mas sintáticas da linguagem. ao que habitualmente se considera
4. Diversos modos de conceber o um ente absoluto. Considere-se, por
absoluto. Nem sempre existe acordo, exemplo, a idéia de Bem em Platão,
inclusive entre os que admitem a pos- o motor imóvel de Aristóteles, o uno
sibilidade de conceber um absoluto. de Plotino, a substância em Spino-
Alguns pensam que se concebe o ab- za Ou a colsa — em si — de Kant,
soluto pela razão, pura ou especula- o Espírito absoluto hegeliano, a von-
tiva; enquanto outros acreditam que tade de Schopenhauer, etc. A acei-
se conhece pela experiência, seja ela tação de qualquer dessas realidades
a experiência comum seja uma expe- fundamentais pode ser considerada
O
' ABSTRAÇÃO, ABSTRATO

equivalente à aceitação de um abso- pátria; abstrahere... de conspeciu


luto. Mais ainda: admitir uma lei na- matris = arrancar alguém dos bra-
tural entendida como a lei do Uni- ços da sua mãe (lit., do olhar mater-
verso também faz parte da história no); senectus a rebus gerendis abs-
do conceito de absoluto. trahit = os anciãos retiram-se da
gestão da coisa pública; omnia in
ABSTRAÇÃO, ABSTRATO ver- duas partes abstracta sunt = o Es-
bo grego àçaroéw (Apareetr), que tado (lit., todos) dividiu-se em duas
se traduz por ““abstrair””, usava-se facções; animus a se corpore abstra-
comumente para designar o ato de hit = a alma está separada do corpo.
extrair algo de algo, separar uma coi- Os termos ““abstrair” e “abstra-
sa de outra, privar alguém de algu- ção”* foram usados pelos filósofos
ma coisa, pôr algo à parte ou sepa- antigos e medievais em diversas acep-
rar algo de alguma coisa. O substan- ções, mas já na época de Aristóteles
tivo correspondente é à&paipears, começaram a adquirir um significa-
que se traduz por abstração e signi- do “técnico” ou ““especializado”,
fica a ação e o efeito de “apartar”', sempre em concordância com a no-
“extrair”, “privar”, “separar”, etc. ção comum de ““colocar separada-
Tanto &ç£argetr como &palpeos mente” (ab (s) trahere). Nesse sent1-
usavam-se em contextos muito diver- do, podemos tomar uma caracteris-
sos, com distintos significados, mas tica ou uma propriedade de um ob-
sempre associados ao ato, ação ou Jeto e considerá-la per se; assim, uma
efeito de ““separar”, “arrancar”, determinada cor ou uma forma po-
etc. Assim, a&&aroeir foi usado pa- dem ser consideradas em abstrato,
ra designar o ato pelo qual um indi- independentemente do objeto em
víduo passava a ser “cidadão”, ou que residem. Pode-se, de igual mo-
seja, saía ou era “extraído” da es- do, separar uma propriedade ou nota
cravidão. O mesmo verbo era tam- característica comum a vários obje-
bém utilizado para indicar a revoga- tos, e assim o obtido pode ser consi-
ção de um decreto, o qual ficava as- derado ““geral”* ou “universal”; por
sim separado do corpo legal onde t1- exemplo, abstrai-se a cor azul a par-
nha figurado até então. Ou ainda co- tir de vários objetos azuis. Ou po-
mo equivalente de “subtrair” nas dem-se separar “objetos” — um cír-
operações aritméticas. culo ou um triângulo — consideran-
De modo semelhante, o verbo la- do-os à parte das coisas circulares ou
tino abstraho (abstrahere) usava-se triangulares.
em diversos contextos para designar Para Platão, o “abstrato” é, en-
operações como ““separar””, “desta- quanto ““universal”', mais real do
car”, “tirar”, “afastar de”, “renun- que o particular e singular. Temos
ciar a” ou “subtrair”. Podem ser então um ““realismo da abstração”.
exemplos disso: abstrahere... e sinu Aristóteles considera que os cha-
patriae = arrancar alguém de sua mados ““objetos matemáticos” são
ABSTRAÇÃO, ABSTRATO:

fruto da abstração, existem ““na abs- mem. Nesta forma, uma vez abstraí-
tração”* — é» avarçéde (De an. III, da a noção geral, o objeto não per-
43 1 b) — e não em si mesmos (xab' manece; ou se do conceito “homem”
avTa), como crêem Platão e os pi- separarmos a racionalidade, o inte-
tagóricos. Os “objetos matemáti- lecto perderá o dito conceito e fica-
cos” não se acham separados ““me- rá somente o de animal. 2. À abstra-
tafisicamente” ou, propriamente fa- ção da forma a partir da matéria.
lando, não por substâncias, se bem Por exemplo: círculo é algo à parte
que possam separar-se conceitual- de qualquer corpo circular sensível.
mente da matéria; pelo contrário, os Esta classe de abstração não ““des-
“objetos físicos” não são separáveis trói”” nenhum dos dois objetos afe-
de maneira nenhuma da “matéria”. tados por ela: ambos — o círculo
As doutrinas aristotélicas sobre a material e a noção ““circular”* — se

abstração foram transmitidas à filo- conservam.


sofia medieval, fundamentalmente Baseando-se em Santo Tomás, es-
através de Boécio em seus comentá- pecialmente na &. Theol., 1, q. XL,
rios a Isagoge de Porfírio. Até o sé- a 3 obj., Cayetano (com. in de ente
culo XIII, numerosos pensadores et essentia, proem. q. 1) e Juan de
sustentavam que a mente pode abs- Santo Tomás (cursus plutos. Logica,
trair “formas”, não significando Pars. 2, q. 2/7, art. 1) propuseram
com 1sso que essas “formas” tives- uma doutrina que contemplava di-
sem uma realidade separada das coi- versas classes e graus de abstração e
sas. Tal tese poderia denominar-se que foi aceita por muitos escolásti-
“conceptualismo da abstração” e, de COS, assim como, em tempos recen-
fato, exerceu influência sobre a qua- tes, por Jacques Maritain (Distinguer
se totalidade dos filósofos cuja po- pour unir ou les degrés du savoir, no-
sição, no que se refere à doutrina dos va edição em 1932, parte [, cap. 2,
universais, era intermediária entre o pp. 71 ess.).
realismo e o nominalismo. Os nomi- A abstração total separa um ob-
nalistas opunham-se à consideração Jeto de cada um dos inferiores de que
de “universal” para o abstrato, sen- é predicável; esta classe de abstração
do esta puramente conceitual. As- é condição geral para as ciências,
sim, por exemplo: Guilherme de uma vez que estas não se ocupam de
Ockham argumentava que o que não indivíduos mas de universais. Assim,
possui existência separadamente a abstração total é “extração” do to-
(abstraído) não pode ser pensado por do universal pela qual tiramos ““ho-
separado (por abstração). mem de “Pedro” e de “Paulo”,
Tomás de Aquino falou de duas “animal” de “homem”, etc., che-
classes de abstração (S. Theol., 1, q. gando-se desse modo a universais ca-
XL, a 3): 1. A abstração do univer- da vez mais amplos (cf. Maritain,
sal a partir do particular. Por exem- op. cit. p. 71). A abstração formal
é a que separa aspectos formais do
plo, animal tomado a partir de ho-
ABSTRAÇÃO, ABSTRATO

que é material ou potencial, fundan- portanto, ser concebidas intelectual-


do assim a inteligibilidade. Median- mente prescindindo dela — a forma
te esta forma de abstração, ““sepa- pura, Deus, etc. Existem ou podem
ramos dos dados contingentes e ma- existir sem a matéria. A substância,
teriais o que pertence à razão formal o ato, a potência, a bondade etc.,
ou à essência de um objeto do saber” dão-se de forma imaterial tanto em
(id., p. 71), e assim obtemos diver- objetos materiais como imateriais.
sos graus de inteligibilidade do ob- É característico deste terceiro grau
Jeto, conforme ele se encontre mais de abstração formal fazer constar
ou menos separado da matéria e das que o que se obtém por intermédio
condições materiais. dela não é uma simples representa-
Cumpre considerar três graus dis- ção formal ou um mero termo, mas
tintos de abstração formal. O primei- uma realidade e, o que é mais, uma
ro grau de abstração, próprio da realidade superior a outras. Quanto
Physica ou ciência da Natureza, a esta acepção, os nominalistas pre-
refere-se a objetos separados somen- feriam geralmente falar de abstração
te da matéria singular, da materia total em vez de abstração formal, e
signata a quantitate, na medida em os pensadores modernos, em sua
que constitui o princípio de indivi- maioria, rechaçam explícita ou im-
duação. Os objetos estão, de fato, plicitamente a abstração metafísica
“impregnados” pela matéria de tal formal. Locke, por exemplo, susten-
modo que não poderiam existir nem tou que a função da abstração é ob-
mesmo ser concebidos sem ela. O ter idéias gerais: “As palavras — di-
que se abstrai são as particularida- zia ele — chegam a ser universais
des individuais e contingentes das porque se separam delas as circuns-
cOIsas. tâncias de tempo e lugar, e qualquer
O segundo grau de abstração, que outra idéia que possa vinculá-las a
pertence à Mathematica, afeta aque- esta ou aquela existência em concre-
les objetos separados da matéria, to”? (Ensaio acerca do entendimen-
não só na medida em que esta é prin- to humano, Livro III, Cap. III, 6).
cípio de individuação, mas também Assim, as idélas gerais representam
da matéria sensível. As entidades as- mais do que um indivíduo; ““a isso
sim resultantes são a quantidade, o se chama abstração”, escreveu Loc-
número e a extensão consideradas ke, “ao fato por meio do qual idéias
em si mesmas, as quais não podem tomadas de indivíduos particulares
existir sem a matéria, mas podem ser chegam a ser representativas de to-
concebidas à margem dela. O terce!- dos os sujeitos de uma mesma clas-
ro grau de abstração, correspondente se” (ibid., II, xi, 9).
à Metaphysica, trata o objeto inde- Berkeley, em contrapartida, con-
pendentemente de. qualquer classe de siderou que Locke — como outros
matéria: refere-se àquelas entidades — estava equivocado ao sustentar
que existem sem a matéria e podem, que era possível obter-se “idéias abs-
ABSTRAÇÃO, ABSTRATO

tratas”* (“idéias gerais abstratas”); da. Segundo esse autor, tal ativida-
não é possível, disse ele, formarem- de, própria do entendimento (Vers-
se idéias de qualidades sensíveis pres- tand), cerceia a realidade — que é
cindindo da percepção (por exemplo, concreta mas também universal —
não se pode obter uma noção do mo- de sua riqueza; daí o sentido pejo-
vimento senão a partir de um corpo rativo que Hegel dá a essa forma de
que se move). Tampouco das quali- abstração, embora reconheça a sua
dades sensíveis gerais, como a cor — utilidade na marcha rumo à com-
prescindindo de se é vermelho ou preensão ““racional” e “total” da
verde —, a triangularidade (à parte realidade.
a concreção de se é retângulo, obtu- A noção do abstrato e da abstra-
sângulo, isósceles, escaleno, etc.) ou ção desempenha um importante pa-
a extensão, independentemente de se pel no pensâmento do século XX,
se dá numa linha, numa superfície, concretamente em autores como
num sólido. Argumentava Berkeley Whitehead e Husserl. Este último
que “um termo torna-se geral ao ser concebia o abstrato e o concreto não
utilizado como signo, não de uma em virtude de sua respectiva separa-
idéia geral abstrata, mas de todas as ção ou não separação de um todo,
idéias particulares e concretas, algu- quer dizer, em termos de sua subsis-
mas das quais se apresentam à men- tência ou não subsistência. A teoria
te”* (Princípios, Introd., 11). Assim, husserliana da abstração faz parte de
por exemplo, na proposição ““a mu- sua ““teoria das formas puras dos to-
dança de movimento é proporcional dos e das partes”, a qual inclui, além
à força imprimida” está implícita a da noção de ““abstrato””, as de ““con-
noção de movimento em geral, mas creto””, “porção”, “momento” e
isto não significa que seja possível “parte física”. As definições funda-
conceber o movimento sem um cor- mentais são: Chamamos ““porção”
po que se mova, ou a idéia de movi- a toda parte relativamente indepen-
mento sem direção nenhuma ou sem dente em relação a um todo T. Cha-
uma velocidade específica. O princí- mamos “momento” (parte abstrata)
pio aplica-se a qualquer corpo que do mesmo todo T a toda parte não
se mova em qualquer direção (ibid.). independente relativamente ao dito
Portanto, Berkeley não se opõe às todo (Investigação lógicas, III, 8 17).
idéias gerais, mas somente às idéias Segundo Whitehead, há entes que
gerais abstratas, ou seja, às idéias sustentam uma relação com outros
gerais formadas por abstração, entes: denominam-se eventos os su-
(ibid., 12). cessos e podem ser descritos como o
Para Hegel, “abstrair” supõe uma “caráter específico de um lugar atra-
atividade mental que consiste em se- vés de certo período de tempo” (El
parar (Trennung) ou singularizar concepto de naturaleza, 1926, p.
(Vereinzelung) um aspecto concreto 52). Entendem-se tais acontecimen-
a partir de uma realidade determina- tos a partir de uma matriz espaço-
ACADEMIA 10

temporal, a qual é obtida pela util1- go de um ““princípio de abstração”.


zação do método que o autor desig- De acordo com alguns lógicos, a abs-
nou como ““abstração extensiva”. tração não se refere a propriedades
Um exemplo de aplicação desse mé- comuns a vários entes, mas a classes
todo é a noção de uma ““série linear de objetos relacionados entre si por
de abstrações”, que se define como alguma propriedade.
um grupo de acontecimentos que sa-
tisfazem determinada condição. Ba- ACADEMIA Foi provavelmente em
seando-se nessa e em outras noções torno de 388-87 a.C. que Platão fun-
fíisico-matemáticas, desenvolve Whi1- dou sua escola — a Academia — no
tehead a sua teoria da hierarquia abs- jardim consagrado ao herói atenien-
trativa, na qual se acha implícita a se Academos. Sua função oficial era
noção dos ““objetos eternos”, que o culto às musas, mas, em conjunto
podem ser captados pelo entendi- a isso ou em torno disso, desenvol-
mento sem necessidade de referir-se veu-se um grande interesse pelas
a ““ocasiões de experiência” ou rea- questões filosóficas e científicas, de-
lidades “concretas”. O abstrato — dicando-se muitas horas ao estudo
e a consequente hierarquia abstrati- das matemáticas, música, astrono-
va — transcendem as situações par- mia, e à divisão e classificação, tu-
ticulares, embora isso não signifique do isso considerado — pelo menos
que ocorram isolados dessas situa- por Platão — como propedêutica à
ções, isto é, do que decorre das mes- dialética. A academia platônica per-
mas. sistiu em suas tarefas até 529 d.C.,
Várias das concepções do abstra- quando foi fechada por um decreto
to e da abstração até aqui mencio- do imperador Justiniano, mais por
nadas possuem uma dimensão lóg1- motivos religiosos do que filosóficos.
ca, embora esta não seja a única nem De acordo com a tradição, a cha-
a mais importante. O aspecto lógico mada época clássica da Academia
predomina em pensadores como Fre- dividiu-se em três períodos: Antigo,
ge, Russell e muitos outros lógicos Médio e Novo. Os principais repre-
e filósofos da matemática. Dai deri- sentantes da primeira etapa foram
vam mudanças importantes na con- Espeusipo, Xenócrates, Pólemon e
cepção da abstração. Frege, por Crates, e durante esse período as ten-
exemplo, considerou que o número dências dominantes concentravam-
cardinal não resulta desse tipo de se, através das noções pitagóricas, no
abstração que separa as proprieda- estudo da percepção e nas investiga-
des dos objetos singulares, nem tam- ções sobre os diversos graus do sa-
pouco — estritamente falando — de ber. O principal representante da
nenhuma outra forma de abstração Academia Média foi Arcesilau, e sua
uma vez que esses números são pro- característica foi o antidogmatismo
priedades de propriedades. Neste ca- e um ceticismo moderado na teoria
SO, trata-se então de evitar o empre- do conhecimento. Não houve uma
11 AÇÃO (PRINCÍPIO DA MÍNIMA)

ruptura brusca entre o pensamento ção entre ação e intenção, delibera-


filosófico da Academia Média e o da ção, eleição e decisão. Discutiu-se
Academia Nova, somando-se o pro- muito, sobretudo, se as ações são In-
babilismo ao antidogmatismo já exis- teiramente explicáveis mediante
tente. Em termos gerais, a tendência “causas” ou podem entender-se so-
de ambos os períodos — Médio e No- mente em virtude de razões. Os que
vO — era diretamente dirigida con- só se referem às causas são OS ““cau-
tra o dogmatismo dos estóicos. Car- salistas”'; os que recorrem a razões
néades de Cirene e Clitômaco foram são os “finalistas” ou “teleologis-
membros da Academia Nova. tas”. Causalismo e finalismo oute-
leologismo não são, em princípio,
AÇÃO Aristóteles definiu a ação equiparáveis, respectivamente, a de-
(atividade, ato) como o processo, e terminismo e indeterminismo, mas
também o resultado, de atuar, que, os partidários do finalismo ou teleo-
segundo esse autor, é consequência logismo falam como se rechaçassem
de uma escolha deliberada. A ética todo e qualquer determinismo.
e a política (ciências práticas) ocu-
pam-se de ações; a ““poética” (em AÇÃO (PRINCÍPIO DA MÍNIMA)
sentido muito amplo) ocupa-se de Este princípio — análogo ao do mí-
produções. nimo esforço (economia do pensa-
Foi muito discutida a relação en- mento) mas referido neste caso aos
tre O ser e a ação, assim como a su- processos da Natureza — pode ex-
posta preponderância de um desses pressar-se da seguinte forma: a Na-
-
termos sobre o outro. Classicamen- tureza sempre opera empregando o
te, sustentava-se que ““o atuar, ou o menor esforço ou energia possíveis
obrar, decorrem do ser (ou existir)”. para alcançar um determinado fim.
Modernamente, surgiu a idéia, mui- Esta asserção pode interpretar-se te-
to difundida pelos românticos, se- leologicamente — como propõe o
gundo a qual a ação precede o ser ou termo “fim” — mas também de um
a realidade. ponto de vista mecanicista, interpre-
e
Pragmáticos, bergsonianos exis-
tencialistas interessaram-se pela no-
tação esta que foi a predominante
durante o século XVIII. Entendido
ção de ação, tanto num sentido ge- neste último sentido, pode-se dizer
ral como na acepção do ““atuar hu- que o princípio da mínima ação foi
mano”. Os filósofos analíticos e pós- Inicialmente formulado por Pierre
analíticos desenvolveram numerosas Louis Moreau de Maupertuis, que o
“teorias” a respeito da natureza e aplicava não só aos fenômenos físi-
dos componentes das ações. Foram cos mas inclusive ao Ser Supremo.
problemas importantes: as caracte- Interpretações mecanicistas seme-
rísticas das chamadas ““ações bási- lhantes podem ser encontradas em
cas” ou últimos componentes de vários autores do mesmo período,
uma ação; a lógica da ação; a rela- como Euler, Leibniz e Fermat.
ACIDENTE 12

Por outra parte, se considerarmos determinado momento e ““não-bran-


o princípio desde o plano teleológi- ca em outro” (Top., I 5, 102 b 4).
co, encontraremos numerosos pre- E num outro texto define-o como “o
cursores. Com efeito, o princípio em que pertence a um ser e pode com
questão encontra-se, com mais ou verdade predicar-se dele, mas não
menos clareza, em todos aqueles ca- necessariamente nem sempre” (Mer.
sos em que se formulou a chamada Lib., V, 1025 a). Assim sendo, o aci-
“lei de parcimônia” da natureza; en- dental distingue-se do essencial e
contramos exemplos disso em Aris- também do necessário, dado que é
tóteles (De gen. et cor II, 10, 336 a fortuito e contingente; tanto pode
27), Averróis (Comm. in Met., XII, existir como não existir.
11, 4; Comm. Venetiis, VIII, f. 144
A doutrina do acidente apresenta-
vb), Roberto Grosseteste (Gr. A. C. da por Porfírio em seu Isagoge exer-
Crombie, Robert Grosseteste and the
ceu grande influência, assim como a
Origins of Experimental Science, de Boécio. Esta noção também foi
1953, pp. 85-86; De Sphaera, ed.
tratada com grande minúcia pelos es-
Baur, 1912) e outros. Um dos pro- colásticos. Em geral, tanto os esco-
blemas que se apresentam ao adotar lásticos quanto os neo-escolásticos
esta última interpretação é se o prin- plantearam o tema desde dois pon-
cípio da mínima ação deve ser enten-
tos de vista: o da lógica e o da onto-
dido como um princípio real da na-
logia. Do ponto de vista da lógica,
tureza ou como simples regra prag-
o acidente apresenta-se — juntamen-
mática, e neste caso se torna equiva-
te com a substância — como um dos
lente ao princípio da economia do
dois gêneros supremos das coisas,
pensamento. Muitas vezes fica difi- entendendo-se por isso os gêneros ló-
cil discernir em que sentido o utili-
gicos e não os transcendentais. O aci-
zam os autores mencionados. dente é, pois, o predicável, o modo
ACIDENTE O que acontece a algu- pelo qual algo ““inere” num sujeito.
Do ponto de vista da ontologia, o
ma coisa, sem constituir elemento es-
sencial ou sem derivar de sua natu- acidente é predicamental ou real, is-
reza essencial, é o acidente, o aciden- to é, expressa o modo pelo qual o en-
tal. Aristóteles definiu-o como ““al- te existe. Um acidente não é em si,
go” que — apesar de não ser defin!- mas em outro, ou seja, não existe por
si mesmo (per se) como.a substân-
ção, nem propriedade nem gênero —
pertence à coisa; algo que pode per- cla, e por 1sso os escolásticos o con-
tencer ou não à mesma colsa — co- sideram realmente distinto da subs-
mo, por exemplo, a postura “estar tância e necessitado de um sujeito.
sentado”* pode pertencer ou não a O ser de um acidente consiste em
um mesmo ser em concreto, ou en- ser-em (esse est inesse), dependên-
tão a “brancura”, porque nada im- cla que foi reafirmada por Santo To-
pede que uma coisa seja branca num más de Aquino (5. Theol., III, 9,
13 AMOR

LXXVII, a 1, ad 2) e o Pseudo-Gros- as idéias completas de uma substân-


seteste, em suas definições de acidente. cia infinita e seus infinitos atributos.
Para os pensamentos modernos, Define explicitamente a 1déia ade-
em especial os metafísicos do século quada como ““aquela que, conside-
XVII, o acidente é um mero aspecto rada em si mesma, sem referência ao
da substância; muitos deles — espe- objeto, tem todas as propriedades ou
cilalmente Spinoza — consideram os denominações internas (denomina-
acidentes modos ou afecções da tiones intrinsecas) de uma idéia ver-
substância. Mas, ao sustentar que o dadeira” (Eth., II, def. 1v). Assim,
acidente se encontra na substância, para Spinoza, as idéias podem ser
ele tende a ser identificado com ela adequadas ou inadequadas; o incom-
e se apaga qualquer possível dis- pleto ou confuso na idéia inadequa-
tinção. da deve-se à intervenção das paixões
na alma. Pelo contrário, a idéia ade-
ADEQUADO Os escolásticos cha- quada é a expressão do conhecimen-
mam ““adequada” (adaequata) à to intuitivo — que ele considera o
idéia que possui correspondência grau supremo de conhecimento.
exata com a própria natureza da coil- A formulação escolástica da ver-
sa. As idéias adequadas são comple- dade como adequatio rei et intellec-
tas, já que exibem claramente as ca- tus (a correspondência entre o inte-
racterísticas constitutivas de um ob- lecto e a coisa) expressa a perfeita
Jeto. Alguns pensadores distinguiram conformidade e correspondência en-
graus de perfeição na “idéia adequa - tre a essência de uma coisa e o enun-
da”. Assim, Leibniz, ao diferençar ciado mental da mesma. Heidegger
o conhecimento claro do obscuro, combate essa noção de verdade in-
diz que as idéias claras são indistin- dicando que esse termo de ““corres-
tas ou distintas, e estas últimas são pondência” em que se baseia é am-
adequadas ou inadequadas, simbó- biguo, já que poderia referir-se tan-
licas ou intuitivas. Para Leibniz, o to à correspondência de uma coisa
conhecimento perfeito era o adequa- com o entendimento (ad intellec-
do e intuitivo, e assinala que será tum), quanto à do entendimento
adequado quando ““cada um dos ele- com a coisa (ad rem). Esta última,
mentos de uma noção distinta for co- aduz ele, só e possível se se baseia na
nhecido distintamente, e se a análi- primeira, quer dizer, a correspon-
se for levada ao extremo” (Medit. de dência entre a coisa e o intelecto hu-
cognitione, veritate et ideis, 1684, mano só resulta possível porque as
Gerhara IV, 4226). idéias concebidas pela inteligência di-
Para Spinoza, idéias adequadas vina fornecem o fundamento para
são aquelas que a alma possui quan- essa correspondência.
do conhece de maneira completa,
sem ser afetada pela falsidade da AMOR Emprega-se o termo “amor”
aparência contingente das coisas, são para designar atividades — ou o
AMOR 14

efeito de atividades — muito diver- fo que utilizou a idéia de amor num


sas; o amor é interpretado como in- sentido cósmico-metafísico; conside-
clinação, afeto, apetite, paixão, as- rava ele que o amor, gitoTNS, E O
piração, etc. Outras vezes tem sido conflito ou luta, vetxos, eram prin-
considerado uma qualidade, proprie- CÍpios, respectivamente, da união ou
dade ou relação. Fala-se do amor das separação dos elementos que cons-
mais diversas formas: amor físico ou tituem o Universo (cf. sobretudo
sensual, amor materno, amizade, Diels, B 17, 7-8) A noção de amor
amor ao mundo, amor à vida, amor é central no pensamento platônico.
de Deus... Foram até consideradas Dizia Sócrates que o amor era o úni-
algumas subdistinções, no âmbito de co que ele era capaz de entender, a
um determinado tipo de amor. As- única coisa de que podia falar com
sim, por exemplo, Stendhal, ao dis- conhecimento de causa (Symp., 177
tinguir entre Oo
amor-paixão e o E). Platão compara-o a uma caçada
amor-simpatia, amor-sensual ou (Soph., 222 E), comparação, aliás,
amor de vaidade, quando trata do frequente nesse pensador, que a apli-
amor entre homem e mulher (Do ca também a outras atividades, co-
Amor, [, 1). São abundantes as ten- mo o conhecer, por exemplo. O
tativas de classificar e ordenar hie- amor, como a loucura (Phaed., 245
rarquicamente as diversas classes de B-C), é um deus poderoso (Symp.,
amor; por exemplo, em The Four 202 E). No mesmo Diálogo, Pausãâ-
Loves (1960), C. S. Lewis descreve nlas fala de um amor terreno e de um
e analisa gostos e amores em relação amor celestial (Symp., 180 A-C); o
ao “infra-humano”** (como o amor amor terreno é o comum, enquanto
aos animais), a amizade, o eros ou O celeste é o que leva ao conhecimen-

a caridade. Muitas das distinções to e o produz. Em outro lugar (Lee.,


propostas empregam diversos termos VIII, 387 A-D), Platão distinguia
(“agrado”, ““afeto”, ““atração”, três classes de amor: o do corpo, o
“desejo”, “amizade”, “paixão”, da alma e outro que é a mistura dos
“caridade”, etc.), mas agrupando- dois; em todo caso, é o desejo de al-
os sob o conceito de “amor”. As dI- go que não se possul. O Amor é o
ficuldades que essa diversidade de luxo da Pobreza e da Abundância,
termos oferece, em conjunto à su- é um oscilar da possessão à não-
posta unidade de significado, ocor- possessão, do ter ao não-ter. Em sua
rem não só nos idiomas modernos aspiração ao objeto amado, o ato de
mas também no grego e no latim. amar é fecundo e gera beleza. Em de-
Em grego há palavras como é€pus, finitivo, o amor às colsas particula-
àyámTn E piNnias; em latim, amor, di- res e aos seres humanos concretos é
lectio, charitas (e também fFEros apenas um reflexo ou participação
quando se refere ao amor personifi- do amor à beleza absoluta, que é a
cado numa deidade). Idéia do Belo em si (Simp., 211 O).
Empédocles foi o primeiro filóso- Sob a influência do amor verdadei-
15 AMOR

ro e puro, a alma ascende à contem- ro, com qualquer classe de amor,


plação do ideal e eterno. As diver- mas somente com a chamada ““cari-
sas classes de beleza — ou reflexos dade” (à&vyani, charitas). À carida-
do Belo — que encontramos no de ou amor em conjunto à fé e à es-
mundo servem como degraus para se perança são as três virtudes ““teolo-
atingir o cume, que é o conhecimen- gais”, e das três o amor é a mais im-
to puro e desinteressado da essência portante. Dizia São Paulo: “Posso
da beleza. Como ““revela”* Diotima falar línguas de homens ou de anjos,
a Sócrates no final do Banquete, o mas se não tenho caridade sou ape-
amor é a pura contemplação da be- nas como o bronze que ressoa ou o
leza pura e absoluta, a contemplação címbalo que retine. Posso ter o dom
da beleza divina, não contaminada da profecia e conhecer todos os mis-
por nada impuro e que transcende térios, posso ter fé capaz de mover
todo o concreto. montanhas, mas se não tenho cari!-
Em quase todos os filósofos gre- dade nada sou. E se repartisse tudo
gos há referências ao tema do amor, o que tenho e desse inclusive o meu
entendido este como princípio que corpo às chamas, se não tenho car!-
governa a união dos elementos na- dade isso de nada me aproveita” (1
turais e como princípio de relação Cor., XIII, 1-3). Tudo há de desa-
entre os seres humanos. Depois de parecer — a profecia, a ciência —
Platão, entretanto, só os platônicos mas o amor, a caridade, permanece.
e os neoplatônicos consideraram o “Subsistem agora três colsas: fé, es-
amor um conceito fundamental. Em perança e caridade, mas das três a
Plutarco (De Tside et Osiride, cap. maior é a caridade” (ibid., 13). Tam-
53), O amor é a aspiração daquilo bém é importante a seguinte passa-
que carece de forma (ou só a tem mi- gem: “Amemo-nos uns aos outros,
nimamente) às formas puras e, em porque o amor vem de Deus. Todo
última instância, à Forma Pura do aquele que ama é filho de Deus, e co-
Bem. Em “As Enéadas”', VI, vu, 21, nhece a Deus. Aquele que não ama
Plotino trata do amor da alma à in- não conheceu a Deus, pois Deus é
teligência, vous; e na sua Epistola ad amor. Nisto se manifestou o amor de
Marcelam (8 24, ed. Nauck, p. 289), Deus por nós, em haver Deus envia-
Porfírio menciona os quatro princí- do o seu Filho unigênito ao mundo,
pios de Deus: a fé, tiotis; a verda- para vivermos por meio dele. Nisto
de, &indeia; O amor, éQqus, € à es- consiste o amor, não fomos nós que
perança, éhTtis. No pensamento neo- amamos a Deus, mas foi Ele que nos
platônico, o conceito de amor tem amou e nos enviou o seu Filho co-
um significado fundamentalmente mo vítima de expiação pelos nossos
metafísico ou metafísico-religioso. pecados. Amados, se Deus de tal ma-
Na concepção cristã, o tema religio- neira nos amou, devemos também
so apresenta-se amiúde em termos nós amarmos uns aos outros. Nin-
“pessoais”; 1sso não ocorre, é cla- guém jamais viu a Deus; se amar-
AMOR 16

mos uns aos outros, Deus permane- re, escreveu Severino, um amigo de
cerá em nós e o seu amor em nós se- Santo Agostinho, resumindo o pen-
rá levado à perfeição” (1 João, IV, samento deste). Mas não se pode di-
7-12). Assim, em seu sentido orig!- zer que o amar um bem seja suficien-
nal e autêntico, todo amor se encon- te, Já que o amor a um bem (isto é,
tra no horizonte de Deus; amar, es- a algo particular) só é “lícito” quan-
tritamente falando, é “amar a Deus do é movido pelo amor ao Bem, ou
e por (o poder ou a graça de) Deus”'. seja, a Deus. É nesse sentido que te-
Os termos que Santo Agostinho mos de entender a frase de Santo
emprega são charitas, amor e dilec- Agostinho, segundo a qual a carida-
fio; ocasionalmente com o mesmo de é a virtude que ama o que deve
significado (como na expressão amor ser amado (virtus est charitas qua in
seu dilectio), mas, outras vezes, es- quod diligendum est diligitur [Ep.
tabelecendo distinções entre eles. CLXVII)).
Santo Agostinho considera com fre- Tomás de Aquino define a carida-
quência a caridade como um amor de como uma virtude sobrenatural
pessoal, divino ou humano. O amor que torna possível às virtudes natu-
é sempre bom (ou ““lícito”*), mas po- rais (humanas) serem plenas e verda-
de ser bom ou mal enquanto amor deiras, uma vez que nenhuma virtu-
ao bem ou ao mal, respectivamente. de o é (vera) sem a caridade ((S.
O amor do homem por Deus e de Theol., IIl-a 9, XXIII, a. 7 ad 3).
Deus pelo homem é sempre bom, e Ainda mais, sem a caridade o ho-
nesse âmbito pode entender-se a fa- mem não alcançará a beatitude; não
mosa frase agostiniana: Dilige et nega com 1isso a “autonomia” das
quod vis fac — ama e faz o que qui- virtudes naturais. De fato, podem
seres (citada amiúde como: Ama et
fac quod vis) — que escreveu preci-
existir sem a caridade [sobrenatural],
Já que supor o contrário obrigaria a
samente em seu comentário a São concluir que nenhum homem a quem
João VII. O amor do homem ao seu tenha faltado — ou a quem falte —
próximo pode ser bom — se é por a revelação cristã seria capaz de bon-
amor de Deus — ou mau, se apenas dade. Deus é o fundamento último
se apóia em inclinações meramente de todo o amor verdadeiro. Por seu
humanas (dilectio), desarraigadas do amor, Deus impulsiona a criatura
amor de Deus e em Deus. O amor ao para que alcance o Sumo Bem. Com
bem, enquanto manifestação do estas palavras — tomistas e ao mes-
amor de Deus, move a vontade e, mo tempo aristotélicas — conclui
por esse movimento, a alma é leva- Dante a Divina Comédia: Amor che
da à sua felicidade, a uma bem- muove il Sol e Paltre stelle (o amor
aventurança que só pode ser encon- que move o sol e as demais estrelas).
trada no seio de Deus. O amor en- A diferença essencial entre os con-
quanto amor ao bem não tem medi- ceitos grego (fundamentalmente pla-
da (ipse ibi modo est sine modo ama- tônico) e cristão do amor pode resu-
17 AMOR

mir-se da seguinte maneira. Na con- ra os gregos o Sumo Bem não outor-


cepção grega, o amor é aspiração do ga necessariamente amor, para os
menos perfeito ao mais perfeito; cristãos pode, inclusive, ser identifi-
-

pressupõe, portanto, a imperfeição cado com o Amor. À própria Justi-


do amante e a (suposta ou atual) per- ça é absorvida pelo amor; amor que,
feição ou maior perfeição do ser por outra parte, não é mera compair-
amado. Quando a perfeição do ama- xão, porquanto se estima que objJe-
do é absoluta, nada mais importa. O to de compaixão é credor de Justiça
objeto do amor é a perfeição em si, ou de piedade. Não, o amado o é por
o sumo bem — ou o belo e o bom si mesmo, em virtude de uma exu-
somados; é ele quem move o aman- berância da qual Deus constitui o
le, Ou O mais perfeito para o menos modelo supremo.
perfeito — exercendo sobre ele uma Além das características já men-
atração. Por sua vez, o amado não cionadas, outros pensadores introdu-
tem por que amar; seu ser consiste ziram importantes variações: o tema
em ser desejável, amável. O movi- do amor como amor de Deus foi, por
mento ““real”* parte do amante, mas exemplo, tratado por muitos autores
o movimento ““final””, a meta que medievais, como Guilherme de Saint-
atrai, está no amado. A relação en- Thierry (De natura et dignitate amo-
tre amante e amado pode ser exem- ris), São Bernardo (De diligendo
plificada em dois seres humanos, Deo). Aelredo de Rielvaux (Specu-
mas esse é apenas um dos casos pos- lum caritatis), Pedro Abelardo (In-
síveis, se bem que muito importan- troductio ad theologiam) e os vito-
te, de uma relação cósmico-metafií- rinos, Hugo e Ricardo de Saint-
sica. O amor pode assim ser descri- Victor. São Bernardo e os vitorinos
to como o movimento de cada coisa (especialmente Ricardo de Saint-
para a sua perfeição (para o Ideal), Victor) ocuparam-se de maneira in-
dentro de uma ordem hierárquica. tensa do problema do amor. Para
Também na concepção cristã o São Bernardo, o amor enquanto pu-
amor se origina no amado, não só ro amor (a-Deus) é, no fundo, uma
como causa final (se bem que possa experiência mística, um êxtase. O
ter este sentido) mas também como predomínio dessa visão espiritual do
um “movimento real””. Em sentido amor sobre outras espécies do amor
estrito, há mais amor no amado do entre os teólogos e místicos medie-
que no amante, já que o autêntico vais não significa que o amor huma-
amor — o modelo de todo amor — no não tenha sido tratado também
é a tendência do superior e perfeito durante esse período; a literatura do
a “descer”, por assim dizer, até o 1n- “amor cortês” floresceu, de fato, no
ferior e imperfeito, com o fim de século XII, ao tempo em que se de-
atraí-lo a si e de o salvar. Portanto, senrolavam todas as implicações do
o amor não é apetite -nem desejo, amor divino com caráter místico; en-
mas superabundância. Enquanto pa- tretanto, por razões de espaço; temos
AMOR 18

de excluir esse material e as múltiplas sos) baseado numa ““natureza huma-


idéias acerca das diversas classes de na” permanente ou, pelo contrário,
amor que são expostas pelos autores tem um devir — como sustentava
renascentistas e modernos. Mesmo Ortega y Gasset — é uma “invenção
nos limitando às considerações pro- humana” ou até mesmo uma criação
priamente filosóficas, nos ditos pe- literária que surge num momento
ríodos a literatura sobre o tema é de- concreto da história. Em fins do sé-
veras abundante. Considerem-se culo XIX e começos do século XX,
pensadores como Marsílio Ficino, houve um grande número de teorias
Leão Hebreu, Giordano Bruno e — — subjJetivistas, reducionistas e na-
mais adiante — Spinoza, com a sua turalistas — sobre o amor; depois,
concepção de amor Intelectual a especialmente quando surgiu a feno-
Deus (ver Amor Dei intellectualis). menologia, houve uma tendência pa-
A maior parte das noções desenvol- ra tratar o tema do amor de um mo-
vidas por esses autores tinha raiz do ““objetivista””, não naturalista e
neoplatônica ou cristã (ou uma com- não reducionista, não necessaria-
binação de ambas). Além de discu- mente “espiritualista”, mas sobretu-
tir o tema do amor numa dimensão do ““historicista””.
teológica e metafísica, muitos dos As idéias de Scheler — expressas
pensadores modernos introduziram principalmente em sua Etica, em Na-
o ponto de vista psicológico ou so- tureza e formas da simpatia, e em
ciológico como uma das ““paixões da seus estudos sobre “O Pudor” e
alma”, uma emoção, um dos possi- “Ordo Amoris”* — têm várias fon-
veis modos de relação para os seres tes. O seu pensamento deriva tanto
humanos na sociedade, etc. Três de Santo Agostinho quanto de Pas-
questões foram tratadas com especial cal, mas apóia-se fundamentalmen-
frequência: 1. Se o amor humano é te na teoria objetivista dos valores
puramente subjetivo; se é, como pre- que ele elaborou. Scheler negava que
tendia Stendhal, resultado de um o amor fosse uma idéia inata, que
processo (em rigor, de dois proces- procedesse exclusivamente da expe-
sos) de ““cristalização”* na alma do riência ou que fosse um impulso ele-
amante, ou se é uma emoção que re- mentar (talvez oriundo da libido).
vela as qualidades e valores do ser Tanto para Scheler como para
amado. 2. Se o amor humano se
sela numa estrutura psicológica ou
ba- Brentano, o amor é um processo 1n-
tencional que transcende na direção
simplesmente filosófica (sobretudo, do ser amado, o qual é amado em ra-
se se baseia exclusivamente no dese- zão de ser valorizado de modo ele-
jo sexual). Possui dito amor autono- vado e positivo. Não se pode, por-
mia a respeito dos processos orgâni- tanto, confundir o amor com a com-
cos, quer dizer, é irredutível a estes? paixão ou a piedade. Enquanto ato
3. Se o amor humano é um processo intencional — ou série de atos —
inalterável (ou uma série de proces- possui as suas próprias leis, que não
19 AMOR DE SI MESMO, AMOR-PRÓPRIO

são psicológicas mas axiológicas. O contingente — na realidade destrói


amor (tal como o ódio) não é uma aquela liberdade que postulava. O
tendência de um sujeito psicológico, conflito que o amor revela é o con-
mas um ato pessoal que se manifes- flito da liberdade.
ta elegendo ou rechaçando valores.
Nem um nem outro se definem, sen- AMOR DE SI MESMO, AMOR -
do intuídos emotivamente e a prio- PRÓPRIO Estas duas expressões
ri. Temos, pois, que para Scheler — usam-se por vezes como sinônimas;
como para Santo Agostinho ou Pas- o amor-próprio é o que uma pessoa
cal — existe um ordo amoris (uma tem por si mesma. Pode-se, contu-
ordem no amor), un ordre du coeur do, proceder a uma distinção entre
(uma ordem do coração); em suma, elas — como entre outros pares se-
o amor não é arbitrário mas sele- melhantes de expressões em outros
tivo. idiomas: em alemão, Selbstliebe e Et-
Jean-Paul Sartre examina o amor genliebe; em francês, amour de soi
em sua análise do ““ser-para-outro”, ou amour de soi-même e amour pro-
1sto é, nas relações concretas do ““pa- pre. Em certos casos, ou em certas
ra si” com “outro” (L'Étre et le línguas, existe uma única expressão
Néant, 1943, III, ill, 1., pp. 431-40). — como em grego, viravtiaA; em la-
Como toda relação concreta, o amor tim, amor sui; em inglês, self-love —
é um conflito que coloca frente a mas então ou se distinguiu entre dois
frente e — ao mesmo tempo — liga sentidos da expressão ou se procu-
os seres humanos, estabelecendo rou alguma outra forma (como o in-
uma relação direta com a liberdade glês benevolence).
do “outro”. Porque cada ser huma - A ewavtia é, literalmente, o
no existe pela liberdade de outro, amor de ou a si mesmo. Em princí-
a liberdade fica comprometida no pio, parece ser reprovável, porque o
amor. O amor é a tendência para ouwravros, isto é, aquele que se ama
“capturar” ou escravizar a conscliên- a si mesmo, atua como se fizesse o
cia do outro, não para transformá- que faz por amor de si mesmo, para
lo num autômato, mas para apro- servir os seus próprios interesses, o
priar-se de sua liberdade como liber- que é egoísmo (ver). Entretanto, e:-
dade. Isso supõe que não se preten- AatutTOs pode conseguir
para si tudo
de atuar sobre a liberdade do outro, o que é bom, o que não é reprovável
mas somente existir a priori como li- mas, pelo contrário, recomendável,
mite objetivo dessa liberdade. O sobretudo se coloca essa bondade a
amor requer a liberdade do amado, serviço de outro. A distinção entre
quer dizer, o amante necessita ser l1- QLIAQAVTLA COMO EgOÍSmMO E pLAQAUTIA
vremente amado pelo objeto do seu como benevolência encontra-se em
amor; entretanto, uma vez que pre- Aristóteles (Eth. Nic. IX, 8, 1168 a
tende ao mesmo tempo ser amado 28-1168 Db
11), que se inclina a dar
necessariamente — e não de modo a qwavtTia um sentido favorável.
AMOR DEI INTELLECTUALIS 20

Num espírito análogo entenderam a Deus — amor Dei intellectualis —


muitos escolásticos a expressão amor em sua Etica (cf. V, prop. XIV). “A
sui. Mas como sempre parece haver mente de Deus — dizia Spinoza —
uma ambiguidade nessa expressão, pode fazer de modo que (efficere ut)
criou-se uma outra: amor privatus. todas as afecções do corpo, ou seja,
O amor sui, ou amor de si mesmo, as imagens das coisas, se refiram à
fo1 favoravelmente julgado; o mes- idéia de Deus.”* Na prop. XV, afir-
mo não aconteceu no caso de amor ma que “aquele que compreende a si
privatus. Este último encaminha-se mesmo e às suas afecções clara e dis-
unicamente para a pessoa que o tem; tintamente ama a Deus, e tanto mais
O primeiro é a estima em que a pes- quanto mais compreende a si e às
soa tem a si mesma e graças à qual suas afecções”. Segundo a prop.
possui força suficiente para comipor- XVI, o amor de Deus deve ocupar lu-
tar-se “moralmente”, gar de privilégio na mente (hic erga
Na época moderna, nem sempre se Deum amor mentem maxime occu-
distinguiu claramente entre amor de pare debet), e conclui que “ninguém
si mesmo e amor-próprio — ou, em pode ter ódio a Deus” (prop. XVIII),
francês, amour de soi ou amour de que “em Deus, no entanto, há neces-
sol-même e amour propre; cada um sariamente uma idéla que expressa a
deles parecia poder dar lugar às duas essência deste ou daquele corpo hu-
interpretações distintas e opostas mano sob a forma da eternidade (sub
mencionadas no início. Contudo, , aeternitatis specie)'” (prop. XXI).
houve a tendência para considerar Assegurava que ““a mente humana
que o amor de si mesmo é um amor não pode ser absolutamente destruí-
natural e equivale ao respeito que a da juntamente com o corpo, mas al-
pessoa tem por si mesma, o qual é guma coisa dela permanece, que é
fonte de bens para si mesma e pa- eterna” (prop. XXIII) e que “quan-
ra os outros. Em contrapartida, o to melhor compreendemos as coisas
amor-próprio foi considerado, com singulares, tanto mais compreende-
muita frequência, equivalente ao mos a Deus” (prop. XXIV). Por con-
egoísmo. Nas definições usuais des- seguinte, Spinoza proclama que ““o
sa expressão, isso se manifesta nas êxito supremo da inteligência e sua
frases “imoderada apreciação de si suprema virtude são compreender as
mesmo”', “excessivo zelo pela pró- coisas pelo terceiro gênero de conhe-
pria reputação ou pundonor”. cimento” (prop. XXV). Tudo isso o
Para alguns autores de tendência leva a sustentar que “tudo o que co-
ascética e quietista, nem sequer o nhecemos pelo terceiro gênero de co-
sentido favorável de “amor de si nhecimento nos deleita (delectamur),
mesmo” pode comparar-se ao ver- e nosso deleite é acompanhado da
dadeiro amor, que é o amor puro. idéia de Deus como causa” (prop.
XXXII). Spinoza explicava que “do
AMOR DEI INTELLECTUALIS terceiro gênero de conhecimento nas-
Spinoza tratou do amor intelectual ce necessariamente o amor intelectual
21 AMOR PURO

de Deus. Com efeito, deste gênero de spiritualis). Wolfson indica que a


conhecimento nasce uma alegria classificação de Santo Tomás pare-
acompanhada da idéia de Deus co- ce fornecer as bases para a de Leão
mo causa, Isto é, o amor de Deus, Hebreu, que distinguiu entre três es-
não enquanto o imaginamos como pécies de amor: natural, sensitivo e
presente, mas enquanto compreen- racional-voluntário (Dialoghi d'Amo-
demos que Deus é eterno; e é a isto re, II), este último também denomi!-
que eu chamo amor intelectual de nado “amor mental” (amore men-
Deus (quod amorem Dei intellectua- tale) ou amor intelectual (amore in-
lem voco)” (prop. XXXII, Cor.). tellettivo, intellettuale). Descartes
Nenhum amor é eterno exceto oO
êmpregou a expressão ““prazer in-
amor intelectual de Deus. Na prop. *telectual”” (gaudium intellectuale)
XXXV, afirmou Spinoza que “Deus (Princ. Phil., IV, 190). Wolfson ex-
ama a Si mesmo com um amor inte- plicou que “como o objeto do amor
lectual infinito”. é Deus, chama-se o amor de Deus.
Harry Austryn Wolfson (The Phi- Além disso, como o amor de Deus
losophy of Spinoza, 1934, vol. II, não é um amor animal ou sensitivo,
cap. XX, 111) descreveu a origem e teremos de chamar-lhe, de acordo
traçou a história da expressão amor com a fraseologia da época, amor 1n-
Dei intellectualis. Entre os seus pre- telectual de Deus (amor Dei intellec-
cedentes citou o comentário de Aris- tualis)... Esta é a origem, história e
tóteles em sua Metafísica: “Todo ho- significado desta frase. É inútil es-
mem deseja conhecer”, como se po- pecular sobre a questão de quem Spi-
de ver pelo “prazer que [o conhecer] noza a tomou; era propriedade co-
proporciona aos nossos sentidos mum da filosofia, tal como poderia
(Mer., I, 1, 980 a 21-22), e o que se sê-lo o termo “substância”. Wolfson
lê na Ética a Nicômaco, quando se chama a atenção para uma frase de
refere ao prazer do “pensamento e Spinoza, similar mas muito menos
da contemplação”. Também Gerso- citada: “o conhecimento intelectual
: nides falou da alegria e do deleite que de Deus” (tntellectualis Dei cognitio)
acompanham o conhecimento. (em Tractatus Theologico-politicus,
Chasday Crescas (Or Adonai, 1, 11, cap. 13), que é o “justo e verdadei-
5 apud Wolfson) afirmava que “a ro conhecimento, alcançado apenas
compreensão é agradável aos que pelos filósofos, da essência absolu-
compreendem”. Santo Tomás (5. ta de:Deus, ou de qualquer atributo
Theol., I-II, a q. XXIV, a 1; q. divino que expresse sua essência ab-
XXVII a2;Il-llagqg. XXVI a3)es- soluta”', diante do mero conheci-
tabeleceu uma classificação do amor mento da relação entre Deus e as coi-
que distingue entre amor natural sas criadas, e diante das obras e pro-
(amor naturalis), sensitivo ou animal messas divinas.
(amor sensitivus, animalis), e intelec-
tual, racional ou espiritual (amor in- AMOR PURO Jeanne-Marie Bou-
tellectivus, intellectualis, rationalis, vier de la Methe — Madame Guyon
ANÁLISE 22

—, nascida em 1684 e autora de uma amour, 1934, p. 84). O grande obs-


Vida (para a qual se inspirou nos es- táculo ao amor puro é o amor-pró-
critos de Santa Teresa) e de várias ou- prio. Aqueles que consideram oO

tras obras de caráter espiritual e mis- amor-próprio uma forma de respei-


tico, como Moyen Court, Torrents, to a si mesmos esquecem-se de que
Commentaire sur VEcriture Sainte, é uma forma de egoísmo; ainda que
Commentaire sur VApocalypse, Com- seja uma amor-próprio refinado,
mentaire sur le Cantique des Canti- nem por Isso é menos prejudicial ou
ques ou Traité ou Purgatoire, teve daninho.
grande influência sobre Fénelon e seu
desenvolvimento da noção do ideal ANÁLISE Na Antiguidade — e ain-
que denominou “amor puro” (pur da durante boa parte da Idade Mo-
amour). Madame Guyon defendia derna — entendia-se o termo “aná-
que até mesmo a oração tem de ser lise” numa acepção matemática. Foi
“desinteressada”, que se devem supe- defendido algumas vezes que teria s1-
rar todos os interesses — toda “pro- do Platão o primeiro a utilizar um
priedade”, como dizia ela. De acor- método para descobrir verdades ma-
do com isso, Fénelon afirmou que o temáticas, método que Teón de Ale-
único e verdadeiro amor é o “amor xandria — que editou (e, segundo al-
puro”; que não existe a bondade de guns historiadores, refez totalmente)
coração sem um amor puro; que os Elementos de Euclides — denomi-
mesmo o que parece generosidade é nou “análise”. Em seu scholium ao
simplesmente um amor-próprio re- livro XIII de Euclides, Teón define
finado. a “análise” como um “tomar o inqui-
O amor puro não é necessariamen- rido como algo admitido a fim de de-
te quietista, embora a sua prática duzir de suas consequências a “sin-
consista numa total renúncia de si tese' que supõe tomar o (Já) admiti-
mesmo que equivale a uma certa for- do e — de suas consequências — che-
ma de quietismo. Fénelon pensou ter gar a algo que se admite como ver-
encontrado antecedentes da sua no- dadeiro”. Definições parecidas de
ção de “amor puro” na tradição cris- “análise” e “síntese” foram propos-
tã, em particular em Clemente de tas por numerosos matemáticos mo-
Alexandria, Santo Agostinho, São dernos, como Viêéte e Galileu.
Basílio, Santo Ambrósio e São Jerô- Descartes empregou o termo “aná-
nimo, assim como na teologia de To- lise” em sentidos distintos. A acep-
más de Aquino, Pedro Lombardo e, ção matemática era semelhante à
inclusive, Francisco Suárez. O amor enunciada mais acima; trata também
puro é o único estável e permanen- da “análise dos geômetras” como al-
te, não tem outro motivo senão o go semelhante à “análise dos anti1-
próprio amor, não busca nem evita gos e à álgebra dos modernos” (Dis-
a injúria ou a felicidade (cf. A. Che- cours, ed. Gilson, p. 17, linha 27).
rel: Fénelon ou la religion du pur Os antigos matemáticos, entretanto,
23 ANALÍTICA, ANALÍTICOS

acrescentaram ao método de análise por referência à “análise” (ver).


procedimentos sintéticos que Descar- Kant, entretanto, utiliza “analítico”
tes julgou desnecessários para uma (Analytik) para designar a primeira
matemática baseada em equações al- parte de sua lógica geral, “a qual re-
gébricas. Tanto ele como muitos ou- solve todo o procedimento formal do
tros pensadores do século XVII sus- conhecer e da razão em seus elemen-
tentavam que enquanto o método s1- tos e os mostra como princípios de
logístico é meramente expositivo, o todo o criticismo lógico de nosso co-
analítico é um método de averigua- nhecimento” (K. r. V., A 60, B 84).
ção. Descartes, além disso, generali- Na Crítica da Razão Pura, a Analí-
zou o método analítico até o ponto tica Transcendental tem por objeto
de entender a análise matemática co- “2a decomposição de todo o nosso
mo um modo de mathesis universa- conhecimento a priori nos elementos
lis ou ciência universal (ver Regulae, do conhecimento puro do entendi-
V, X; Meditationes, passim; Geome- mento” (ibid., A 64, B 89). A Ana-
trie, 1, e Discours, II). O exemplo lítica Transcendental é, como parte
mais difundido da concepção carte- . da lógica transcendental, uma ““ló-
slana de análise como método univer- gica da verdade”. Divide-se em Ana-
sal encontra-se na segunda regra do lítica dos Conceitos e Analítica dos
seu método: ““dividir no maior núme- Princípios. A primeira consiste na.
ro possível de partes cada uma das di!1- “decomposição da própria faculda-
ficuldades que encontre parece ser o de de entender, com o fim de inves-
requisito para resolvê-las da melhor tigar a possibilidade dos conceitos a
maneira possível”, priori procurando-os somente no en-
Num sentido amplo, chama-se fre- tendimento, em sua origem, e anali-
qilientemente ““análise” a qualquer sando o puro uso dessa faculdade”
procedimento que consista em divi- (ibid., A 65, B90). A segunda é “um
dir um todo nas partes que o consti- cânone exclusivamente para a facul-
tuem. Essa divisão pode ser real ou dade de julgar, que ensina a aplicar
conceitual. Por exemplo, ““análise aos fenômenos os conceitos do en-
química” é tomada em sentido real, tendimento que possuem a condição
enquanto conceitual é a divisão de de converter-se em regras a priori”
um conceito em seus subconceitos. (1bid., À 132, B 171).
Em todos estes casos, a análise se Kant empregou também em sen-
contrapõe à síntese, que supõe a com- tido parecido o termo ““analítica” na
posição do que estava previamente Crítica da Razão Prática. Entretan-
separado. Análise e síntese podem ser to, a analítica da razão pura prática
empregadas — e de fato têm sido — vai da Lógica à Estética (utilizando
como métodos complementares. esses termos no estrito sentido kan-
tiano), em vez de ir da sensibilidade
ANALÍTICA, ANALÍTICOS ter-O ao entendimento, como faz a analí-
tica da pura razão teórica. Do mes-
mo ““analítico” pode empregar-se
ANALÍTICO E SINTÉTICO 24

mo modo, a analítica da pura razão negativos: 1. O predicado pertence ao


prática está incluída na Crítica da Fa- sujeito como algo contido nele. 2. O
culdade de Julgar como uma ““analítr- predicado está fora do sujeito ainda
ca da faculdade teleológica de julgar” que — como assinala Kant — man-
e como uma ““analítica do sublime”. tenha relação com ele, pois, se não
Heidegger também emprega o ter- a tivesse, não haveria juízo. Kant
mo ““analítica (Analytic) ao propor chamou ““analítico”* ao primeiro t1-
uma analítica ontológica da existên- po de Juízos, e “sintético” ao segun-
cia, a qual — segundo ele — é como do. Num juízo analítico (afirmativo)
a linha do horizonte para interpretar “a conexão entre sujeito e predica-
o significado do ser em geral (Sein do é pensada mediante identidade”,
und Zeit, $ 5). Segundo Heidegger, ao passo que nos sintéticos tal cone-
com efeito, a analítica da existência xão é pensada sem identidade (K. r.
é Oprimeiro impulso para o estudo V., A7,B 11). O predicado de um
e descoberta do tema do ser, tema Juízo analítico nada acrescenta ao su-
que determina a direção dessa analí- Jeito: simplesmente analisa o sujeito
tica. Trata-se, pois, de uma analíti- nos conceltos que o constituem e que
ca. existencial (Existenzial) prévia a sempre aí estiveram, ainda que, tal-
toda psicologia, antropologia ou bio- vez, de um modo, confuso. Por esse
logia. Destrinçar a analítica da exis- motivo, Kant chamava também ““juí-
tência a respeito das ciências antes cl- zos explicativos” aos juízos analíti-
tadas é, para Heidegger, absoluta- cos. Por outra parte, os Juízos sinté-
mente indispensável (1bid., 10); só as- ticos “ampliam” o sujeito, uma vez
sim será possível iniciar a análise da ' que o predicado acrescenta algo ao
Existência como estar-no-mundo e,
em geral, captá-la em sua existencia-
conceito do sujeito, algo que não
nha sido pensado e que, portanto,
ti-
lidade (Existenzialitát). não podia derivar-se de uma análise
Os dois principais escritos do Or- desse sujeito.
ganon aristotélico são os chamados Juizos como ““todos os corpos são
Primeiros Analíticos e Segundos extensos” são analíticos, visto que —
Analíticos; o primeiro deles — nos li- segundo Kant — não é necessário ir
vros — trata da teoria formal do s1- mais além do conceito de “corpo” pa-
logismo e das condições formais de ra encontrar a noção de “extensão”.
toda demonstração e serve como 1n- Pelo contrário, juízos como ““todos
trodução aos dois livros dos Segun- os corpos são pesados” são sintéticos,
dos Analíticos, os quais tratam da na- porquanto o conceito de “peso” não
tureza da demonstração. está incluído no de “corpo”.
Todos os juízos de experiência são
ANALÍTICO E SINTÉTICO Segun- sintéticos. Se introduzirmos uma no-
do Kant, existem duas maneiras de va distinção — entre Juízos a priori
entender a relação sujeito-predicado, (ver) e a posteriori — veremos que
tanto em juízos afirmativos quanto OS sintéticos são sempre a posteriori e
25 ANALÍTICO E SINTÉTICO

vice-versa, já que somente a partir da nosso conhecimento especulativo a


experiência é possível conhecer que priori baseia-se, segundo Kant, em
este ou aquele sujeito têm um e ou- princípios sintéticos ou “ampliati-
tro predicado. vos”. Os juízos analíticos são impor-
Leibniz classificou as verdades em tantes, e ainda necessários, mas so-
verdades de fato e verdades de razão. mente a fim de se conseguir a máxi-
Hume distinguia entre fatos e rela- ma clareza nos conceitos.
çõe de idéias. Segundo Leibniz, as Embora Kant fale de juízos sinté-
verdades de fato são contingentes e ticos a priori, o seu propósito é des-
empíricas, ao passo que as verdades cobrir elementos apriorísticos nos
de razão são necessárias (e eternas) Juízos matemáticos e nas proposições
e — algumas, pelo menos, destas úl- da ciência natural, especialmente na
timas — inatas. Para Hume, as pro- física. Tais elementos não são verda-
posições referentes a fatos são em- des eternas mas “condições da pos-
píricas; pelo contrário, as relações de sibilidade do conhecimento”, na me-
idéias — como as proposições lógi- dida em que este há de ser universal
cas e matemáticas — ainda que não e necessário.
sejam empíricas, tampouco são ver- Desde Kant que se discute muito so-
dades necessárias e eternas, como em bre se os juízos sintéticos a priori são
Leibniz. São tautologias (ver TAU- ou não admissíveis. A maioria dos
TOLOGIA) e são. desprovidas de neokantianos admite que eles podem
conteúdo fático; são puramente for- e até devem existir. Os empiristas e po-
mais. Se aplicarmos agora a divisão sitivistas, por uma parte, e os racio-
kantiana dos juízos em analíticos e nalistas, por outra, repelem — pelo
sintéticos, a priori e a posteriori, po- contrário — esta possibilidade.
demos concluir que Hume e Leibniz Husserl admitia, sim, a possibili-
coincidem em que os Juízos analít!- dade do juízo sintético a priori
cos são a priori e os sintéticos a pos- (Idéias, $ 16), mas não como perten-
teriori (embora discrepem quanto ao cente à “área do transcendental”.
sentido do termo ““analítico”*). Esses Juízos são mais ontológicos do
Kant difere ao mesmo tempo de que epistemológicos, isto é, segundo
Leibniz e de Hume. Sustenta que há Husserl há um a priori eidético for-
juízos sintéticos a priori, ou seja, Juí- mal — que corresponde à ontologia
zos nos quais o predicado não se en- geral ou formal — e um a priori ei-
contra contido no sujeito, e que são dético material, que é próprio dos
independentes de toda e qualquer ex- “axiomas regionais”.
periência. Esses elementos que não O problema do significado do
provêm da experiência são os que a “analítico” foi alvo de múltiplos de-
fazem possível. As matemáticas e as bates no âmbito da própria filosofia
ciências naturais contêm Juízos sin- analítica (ver). Podemos distinguir,
téticos a priori; a questão é se tam- lato sensu, duas etapas: (1) a primei-
bém são possíveis em metafísica. O ra, dominada pelo positivismo lógi-
ANALÍTICO E SINTÉTICO 26

co, na qual se mantinha uma rigoro- White, é que não se pode traçar uma
sa distinção entre analítico e sintéti- linha divisória taxativa entre analí-
co, em conformidade com o pensa- tico e sintético, porque não se pode
mento de Hume, e (2) a segunda, em definir com precisão o analítico;
que se descobrem duas tendências qualquer intento nesse sentido se
principais: (a) a que mantém a dico- converte numa explicação de obscu-
tomia (o dualismo) analítico-sintético rum per obscurius. A idéia kantiana
— embora numa forma notavelmente de que o predicado ““pertence”* ou
mais “refinada” do que o dualismo “está contido” no sujeito resulta de-
original da primeira etapa da lógica sesperadoramente vaga, disse Quine,
positivista, e (b) a que rechaça a dÓi- e, embora pudéssemos recorrer à no-
cotomia analítico-sintético, especial- ção de sinônimo, esta última preci-
mente difundida após o criticismo de sa de tanta ou mais explicação do
Quine. Entre os que defendem a pri- que a de analiticidade. Caberia re-
meira posição — desta segunda eta- correr também às regras semânticas,
pa (2 a) — estão Carnap, B. Mates, mas a expressão ““regra semântica”
R. Hartmann, H. P. Grice e P. F. requer de igual modo explicação. A
Strawson; são representantes da se- rejeição, por parte de Quine, da di-
gunda postura (2 b), além do próprio cotomia analítico-sintético está liga-
Quine, M. G. White, A. Pap e — até da à sua idéia de continuum teórico,
certo ponto — Hilary Putnam. Em uma série de balizamentos concei-
alguns casos, introduziram-se nos ar- tuais que somente têm contato com
gumentos da primeira etapa (1) qua- a experiência de formá marginal. É
lificações que a aproximam da segun- O que às vezes se designa como a ““te-
da, em sua primeira postura (2 a). E se Duhem-Quine”. Por outra parte,
também na fase 2 b se respeitam, por Quine sustentava que, “sendo social
vezes, pontos mantidos pelos autores a linguagem” e a analiticidade uma
da posição 2 a. verdade que se baseia na linguagem,
Uma das críticas fundamentais também a analiticidade é “social”,
dos pensadores da primeira etapa (1) O que significa que uma afirmação
— e dos da segunda etapa em sua é analítica se todo indivíduo que a
primeira posição (2 a) — consiste em ouve a aprende como verdadeira ao
denunciar como tautológicos todos aprender suas palavras.
os juízos analíticos. Outra é consi- A analiticidade parece ser questão
derar as expressões analíticas como de graus, embora não se deva con-
regras gramaticais, como meras ““ex- fundir “graus de analiticidade” com
pressões verbais”. “graus de admissibilidade de que es-
A tese de Quine, formulada em ta ou aquela expressão é (ou não é)
1951 como resultado de uma série de analítica”. Isto foi aceito por vários
debates orais e escritos que susten- autores que seguiam a posição 2 b,
tou com R. Carnap, A. Church, N. alguns dos quais foram denominados
Goodman, A. Tarski e Morton G. ““gradualistas” por A. Gewirth. Hi-
27 ANALOGIA

lary Putnam defendeu um gradualis- no sentido ainda hoje usual quando


mo diferente, afirmando que, embora se fala de “proporções” ou “razões”
seja possível manter a dicotomia en- em matemática. Este tipo de analo-
tre analítico e sintético, 1sso só é váli- gia refere-se a quantidades, a gran-
do em “casos triviais”; pelo contrário, dezas e a relações entre pontos no es-
é inadmissível em leis científicas, prin- paço. Baseando-se na mesma idéia,
cípios matemáticos ou nos chamados mas aplicando-a a certas realidades
“princípios estruturais”. Nestes casos, com o propósito de estabelecer com-
Já não se trata de asserções analíticas parações, Platão apresentou a idéia
ou sintéticas, uma vez que grande parte de analogia na República, VI 508 (e
delas pode ser considerada analítica também no Timeu, 31 B, 32 A). Pla-
numa das etapas de determinada teo- tão comparou o Bem com o Sol e in-
ria — ou série de teorias — e deixar de dicou que o primeiro desempenha no
ser analítica em outra. mundo inteligível o mesmo papel de-
sempenhado pelo segundo no mun-
ANALOGIA É, em termos muito do sensível. Vários membros da Aca-
gerais, a correlação entre os termos demia Média adotaram e desenvol-
de dois ou vários sistemas ou ordens, veram essas concepções de Platão. O
Ou seja, a existência de uma relação mesmo fizeram Plotino, Proclo e
entre cada um dos termos de um sis- Dionísio, o Areopagita.
tema e cada um dos termos de ou- A chamada toóTns ToU Aóyovu, Ou
tro. A analogia equivale neste caso doutrina da “igualdade de razão”,
à proporção. Falou-se também de foi aplicada por Aristóteles aos pro-
analogia como semelhança entre blemas ontológicos por meio do que
uma coisa e outra. Neste último ca- se chamou ““a anologia do ente”. O
so, a analogia consiste na atribuição ser, declarou Aristóteles, ““diz-se de
dos mesmos predicados a diversos muitas maneiras”', se bem que se di-
objetos, mas essa atribuição não de- ga primeiramente de uma maneira:
ve ser entendida como uma determi- como substância. A doutrina aristo-
nação unívoca destes objetos e sim télica foi aceita e elaborada por gran-
como a expressão de uma correspon- de número de escolásticos sob a
dência, semelhança ou correlação es- rubrica analogia entis. A analogia
tabelecida entre eles. Justamente em (analogia) pode referir-se a coisas,
virtude das dificuldades que oferece falando-se de coisas sinônimas e de
este último tipo de analogia, sublr- coisas unívocas. É usual entre os es-
nhou-se freqiientemente a referência colásticos referir a analogia sobretu-
exclusiva da analogia às relações en- do a nomes ou termos, e discutir
tre termos, ou seja, à expressão de quando se usa ou não um nome ou
uma similaridade de relações. termo univocamente. São Boaventu-
Os matemáticos gregos entende- ra distinguia entre a analogia e a uni-
ram a analogia como uma propor- vocidade (univocatio). O termo ou
ção, ou razão de proporcionalidade, nome comum, predicado de vários
ANALOGIA 28

seres, é univoco quando se aplica a entes numa relação semelhante. Es-


todos eles num sentido totalmente se- ta relação pode ser metafórica —
melhante ou perfeitamente idêntico. quando expressa algo simbólico —
E equívoco quando se aplica a todos ou própria — quando expressa algo
e a cada um dos termos em sent1- real. A relação análoga pode ser,
do completamente distinto (assim, portanto, como dizem os escolásti-
“touro” como animal ou constela- cos, simpliciter diversa ou então se-
ção; “câncer” como enfermidade ou cundum quid eadem. Por outras pa-
como signo do Zodíaco). É análogo lavras, o termo análogo é o que sig-
quando se aplica aos termos comuns nifica uma forma ou propriedade
em sentido não inteira e perfeitamen- que se encontra intrinsecamente num
te idêntico ou, melhor ainda, em sen- dos termos (o analogado principal),
tido distinto, mas semelhante desde encontrando-se, em compensação,
um ponto de vista determinado ou nos outros termos (analogados se-
desde uma certa e determinada pro- cundários) por certa ordem em rela-
porção. Ora, dentro desta divisão ção à forma principal. Partindo des-
Ocorre, por sua vez, uma distinção
ta base, também se pode dizer que
entre várias acepções. Assim, os ter- a analogia é extrínseca (como o ter-
mos unívocos podem prescindir de mo ““são”* mostra) ou intrínseca (co-
mo mostra o termo ““ser””, que con-
suas diferenças, e neste caso — co- vém a todos os entes, incriados ou
mo os gêneros e as espécies — eles criados, substanciais ou acidentais).
são univocamente universais, ou po- Neste último caso, a analogia tam-
dem não prescindir delas, e neste ca- bém é qualificada de metafísica. À
so são chamados — como ocorre analogia extrínseca, por sua vez, po-
com o termo ““ser” a respeito de to- de ser analogia de proporcionalida-
dos os seres de uma certa espécie ou de extrinseca ou metafórica — de
ainda a respeito de todas as substân- muitos a muitos — ou analogia ex-
cias criadas — unívocos transcenden- trinseca de atribuição. E a analogia
tais. No tocante aos próprios termos intrínseca pode ser, por sua vez, de
análogos, a divisão é algo mais com- atribuição ou de proporcionalidade.
plexa. O mais corrente é distinguir Estas distinções foram objeto de
entre a analogia de atribuição e a muitas discussões no seio da escolás-
analogia de proporcionalidade. Cha- tica, sobretudo na medida em que,
ma-se analogia de atribuição àquela sob o seu aspecto estritamente téc-
em que o termo é atribuído a vários nico, afetavam as questões últimas
entes por sua relação com outro (o da metafísica. Assim, embora se
chamado primeiro analogado), como colncidisse quase sempre em que o
ocorre quando se chama “são” a um ente análogo constitui o objeto mais
alimento, um clima, um rosto, etc. próprio da filosofia primeira, com-
Chama-se analogia de proporciona- preendendo também os entes de ra-
lidade àquela em que o termo se atrl- zão e ainda toda privação do ente en-
bui, desde logo, a vários sujeitos ou quanto inteligível, três foram as prin-
29 ANALOGIA

cipais escolas que se formaram. En- exemplo, 1


Eth.,lect. 7, I Sent., 19,
quanto a escola de Suárez indicava 5 2 ad 1, de Potentia 7, 7 e de Veri-
que o ente é formalmente transcen- tate, 21, 4 c ad 30 —, mas é óbvio
dente e que a analogia tem de ser en- que refinou consideravelmente a no-
tendida no sentido da analogia in- ção, sobretudo no que se refere à dis-
trinseca ou metafísica de atribuição, tinção entre o análogo e seus analo-
e não no sentido da analogia intrín- gados, a predicação dos analogados
seca de proporcionalidade, a escola ao análogo e a comparação entre o
de Duns Escoto era propensa a de- análogo e os analogados. De um mo-
fender a univocidade do ente, o qual do geral, podemos dizer que o tomis-
se reduz às noções inferiores median- mo inclina-se fortemente para a ana-
te diferenças intrínsecas, e a escola logia de proporcionalidade, de tal
de Cayetano advogava uma analogia sorte que, segundo ele, compete a to-
de proporcionalidade. Com efeito, dos os entes existirem numa relação
dos três modos de analogia a que, se- semelhante de um modo intrinseca-
gundo Cayetano, podem reduzir-se mente diverso, visto que, sem dúvi-
todos os termos análogos — a ana- da, o ser nunca é um gênero que se
logia de desigualdade, a analogia de determine por diferenças extrínsecas,
atribuição e a de proporcionalidade, mas sustenta, ao mesmo tempo, uma
mencionados por Aristóteles, se bem analogia de atribuição entre o Cria-
que com distinta terminologia, em dor e os seres criados e entre a subs-
Phys., VII 4, 249 a 22: Eth. Nic., 1 tância e os acidentes, dado que o ser
6, 1096 b 26, e Top., 1 17, 108, a 6, destes últimos depende do dos pri-
respectivamente — só o último mo- meiros. Em todo caso, a noção ana-
do constitui, em seu entender, a ana- lógica do ser aspira a resolver um
logia, definindo-se a expressão ““col- problema capital da teologia escolás-
sas análogas por proporcionalidade” tica: o da relação entre Deus e as
mediante ““aquelas coisas que têm criaturas, porquanto, embora na or-
um nome comum e a noção expres- dem do ser Deus exceda a todo o
sa por esse nome é proporcionalmen- criado, como causa suficiente dos en-
te a mesma”, quer dizer, “aquelas tes criados e de todo ser, contém
coisas que têm um nome comum e atualmente suas perfeições.
a noção expressa por esse nome é sl- Na época moderna, o conceito de
milar, de acordo com uma propor- analogia ocupou um lugar menos
ção” (De Nominum Analogia, cap. central do que nas tendências esco-
III). Por sua vez, comoJá vimos, tal lásticas. Ele foi entendido, com fre-
analogia pode ter lugar ou de um quência, em termos relativamente
modo metafórico ou de um modo vagos, como a similaridade de rela-
próprio. Cayetano baseava-se prin- ções entre teores abstratos, ou a se-
cipalmente na doutrina tomista, pois melhança entre coisas. Nem sempre
se encontram em Santo Tomás nu- se fez uma distinção clara entre com-
merosos trechos neste sentido — por preensão analógica e metafórica. As
30
ANALOGIA

referências metafísicas foram elimi!- rou a analogia uma relação entre siS-
nadas, especialmente nos fenomena- temas de conceitos homólogos que
listas e funcionalistas, os quais aban- podem dar lugar a diferenças ou con-
donaram formalmente a noção de cordâncias cuja força relativa é pos-
substância. Em A System of Logic sível estabelecer-se e medir-se.
(III, xx, 1-3; ed. J. M. Robson e R. A analogia foi considerada, por
F. McRae, 1, 554-61), John Stuart vezes, uma correlação entre um ter-
Mill ressalta que “a palavra Analo- mo cujo conceito denota um fato ob-
gla, como nome de uma forma de ra- servável e verificável, e algum termo
ciocínio, se entende geralmente co- que, embora não denote mediante
mo se fosse uma classe de argumen- conceito algum um fato observável
to que se supõe de natureza induti- e verificável, é indeferível dentro de
va, mas não equivale a uma indução um sistema formal que forneça re-
completa. Mas não há palavras usa- gras para o efeito.
das de maneira mais vaga ou em Na esteira de algumas investiga-
maior variedade de acepções”'. Com ções de Jan Salamucha e de J. Fr.
efeito, usam-se às vezes num senti- Drewsnowski, Il. M. Bocheúski tra-
do de indução muito rigorosa, como tou a questão clássica da analogia em
a “semelhança de relações” de que sentido tomista desde o ponto de vis-
falam os matemáticos, e outras ve- ta da lógica moderna, considerando,
zes aplicam-se a raciocínios funda- primeiro, que a noção de anologia é
mentados em qualquer tipo de seme- importante e suscetível de desenvol-
lhança. Mas ainda que certas seme- vimentos ulteriores; e, segundo, que
lhanças possam proporcionar certo para tal fim podem-se usar com van-
grau de probabilidade, em muitos ca- tagem os refinamentos formais da ló-
sos não é possível chegar a conclu- gica atual. Bocheúski examina, pa-
sões indutivamente aceitáveis. Por- ra tanto, a analogia desde um pris-
tanto, embora se possa usar o racio- ma semântico (não o único possível,
cínio por analogia (cf. infra), só se mas o mais conveniente e também o
deve recorrer a ele quando se veri1fi- mais tradicional, pois do contrário
cam certas condições; juntamente não se compreenderia como pode ser
com as semelhanças, cumpre Inves- tratada a equivocidade, que é uma
tigar diferenças e ver a relação entre relação do mesmo tipo que a analo-
umas e outras no âmbito de um co- gia). Em seu artigo “On Analogy”
nhecimento ““toleravelmente exten- (The Thomist, 11 [1948], 424-47; tex-
so” da matéria. Só quando a seme- to inglês de seu trabalho em polonês
lhança é muito grande e a diferença “Wstep do teoril analogil””, publi-
muito pequena, argumenta |. S. cado em Roczniki filozoficzne, 1
Mill, o raciocínio por analogia pode [1948], 64-82), Bocheúski declara,
aproximar-se de uma indução válida. com efeito, que Isso tem anteceden-
Num sentido não muito diverso do tes no exame feito por Santo Tomás
de J. S. Mill, Ernst Mach conside- da analogia em relação com os no-
31 ANALOGIA

mes divinos, e no De Nominum Ana- ta na lógica formal clássica, pois tem


logia, de Cayetano. Para tal fim, as- de usar símbolos que são expressões
sume como noção fundamental a de de expressões, isto é, símbolos de
significação, descrita na fórmula ““a simbolos. O que convém mostrar
expressão a significa na linguagem |/ aqui é que a noção de expressão ana-
/
o conteúdo do objeto x** ou, sim-
bolicamente, ““S (a, /, f, x)” (à situa-
lógica constitui um gênero das ex-
pressões equívocas. Isto confirma a
ção simbolizada dá-se o nome de tradição, pois o instrumento lógico
complexo semântico). “Expressão” empregado permite examinar meta-
refere-se a uma palavra escrita ou logicamente e traduzir exatamente a
outro símbolo escrito (objeto físico fórmula clássica: “a própria analo-
que ocupa uma posição dada no es- gia é analógica”. As dificuldades que
paço e no tempo). “Conteúdo” de- o teólogo pode encontrar em tal
signa a clássica ratio tomista. ““Ob- construção, e o reconhecimento de
jeto” ou “coisa” designam a res no que a analogia de proporcionalida-
sentido tomista clássico (um ““indi- de, uma vez traduzida para a lingua-
víduo”). Aplicam-se à citada relação
gem formal, resulta num significado
as operações elementares da teoria muito pobre das proposições acerca
das relações e obtém-se uma série de de Deus ou do espírito (que se limi!-
termos. Entre dois complexos se-
tam a umas escassas relações formais
mânticos há 16 e só 16 relações nu-
tratadas nos Principia Mathematica),
ma tabela que pode substituir a di- são resolvidas, segundo Bocheúskai,
visão tradicional dos termos em uni-
mediante a descoberta de que se não
VOCOS, equivocos e sinônimos, e Bo-
cheúski analisa particularmente a podemos dar formulações exatas de
univocidade e a equivocidade com muitas propriedades formais impli-
base nas primeiras quatro das 16 re- cadas em relações usadas pela meta-
física e pela teologia, isto se deve à
lações (as mais importantes do pon-
to de vista clássico), mostrando que falta de tais propriedades formais,
já nos Principia Mathematica se exa- quando não ao estado pouco desen-
minava o problema da analogia ao volvido da biologia e de outras ciên-
tratar da questão da “ambiguidade cias, das quais o metafísico e o teó-
sistemática” (equivalente à clássica logo devem extrair suas expressões
aequivocatio a consilio). Verifica-se, analógicas (e os conteúdos das mes-
então, ser a analogia uma relação mas). Assim, “um progresso imen-
heptática entre duas expressões (no- so nas ciências especulativas seria o
resultado da formalização dessas dis-
mes, termos), uma linguagem, dois
conteúdos (sentidos, rationes) e duas ciplinas”. E mesmo em seu estado
coisas (objetos, res), tendo os nomes atual pode-se observar, por exemplo,
a mesma forma e sendo as coisas di- a diferença entre Princípio e Pai por
ferentes. O autor reconhece que tem meios puramente formais: o primei-
de enfrentar uma situação mais com- ro é transativo, o segundo, intransi-
plexa do que aquela que se apresen- tivo (art. cit., p. 443).
ANONYMUS IAMBLICHI 32

Falamos antes do chamado ““ra- de-se o raciocínio em questão segun-


ciocínio por analogia”. Muitos au- do vá do semelhante ao semelhante,
tores modernos, ao falarem de ana- do menos ao mais, e do contrário ao
logia, referiram-se a certos tipos de contrário.
raciocínio. Um é o “quantitativo” (a
rigor, “proporcional”*), consistindo ANONYMUS IAMBLICHI O
na determinação de um quarto ter- Anonymus Iamblichi (Anônimo de
mo de uma proporção em que são Jâmblico), assim chamado por terem
conhecidos os dois primeiros. O ou- sido conservados fragmentos do
tro é o qualificado, por vezes, de mesmo no capítulo 20 do Protrépti-
“qualitativo”. Este foi entendido co ou Exortação (à filosofia) de Jâm-
quase sempre (como se pode ver em blico, é um escrito redigido, segun-
J. S. Mill) como a atribuição de um do parece, por um dos sofistas (Híi-
certo caráter ou de uma certa pro- pias, segundo M. Untersteiner, 7 So-
priedade a um objeto (ou a um gru- fisti, 1949) da segunda metade do sé-
po de objetos) em virtude da presen- culo V a.C., no qual se expressam
ça desse caráter ou dessa proprieda- opiniões derivadas de Protágoras e
de em objetos “semelhantes”. No de Pródico, e onde há valiosos co-.
raciocínio em questão, se deduz da mentários sobre um dos problemas
semelhança de uns objetos, em de- mais debatidos pelos sofistas: a virtu-
terminadas características, sua seme- de e a relação entre natureza (physis)
lhança em outra característica. O es- e lei (nomos).
quema do raciocínio analógico qua-
litativo é: “S tem a característica p; ANTINOMIA “Antinomia” desig-
S e S'" têm as características a, b, c; na, num sentido muito amplo, um
portanto, S' tem provavelmente a ca- conflito entre duas idéias, proposi-
racterística p”'. O raciocínio por ana- ções, atitudes, etc. Fala-se de anti-
logia vai do particular ao particular, nomia entre fé e razão, entre o amor
e nunca possui, do ponto de vista e O dever, entre a moral e a política,
lógico-formal, uma força probatória etc.
concludente, apenas verossímil ou Num sentido mais estrito, “anti-
provável. Classicamente, se distin- nomia” (avrri = contra; vouos = lei)
guia entre vários modos ou espécies designa um conflito entre duas leis.
de raciocínio por analogia. 1º O que Plutarco (Mor. IX, 742 A) escreve
vai do efeito à causa ou vice-versa. que se procede a ““arbitrar uma (ou
2º O que vai dos meios aos fins e o em uma) antinomia”, ôlaLTNOELEV
inverso. 3º O que procede por seme- Tv avTIWOpiav, quando se propõe
lhança. Este raciocínio por analogia um arbítrio em casos de conflito en-
classifica-se igualmente segundo sua tre duas posições, o que sucede quan-
matéria ou sua forma. Pela matéria do duas partes se encontram em
distinguem-se os casos acima citados; disputa e cada uma delas se apóia no
pela forma, em contrapartida, enten- modo de falar usado pela outra —
33 ANTINOMIA

como quando os gregos pediam res- ridas à quantidade e à qualidade) e


tituição porque Páris tinha sido ven- antinomias dinâmicas (referidas à
cido e os troianos se negavam a ce- causalidade e à modalidade).
der porque não o tinham matado. Elas são enunciadas do seguinte
Arbitrar, neste caso, acrescenta Plu- modo, 1º Tese: O mundo tem um
tarco, é assunto não de filósofos ou começo no tempo e limites no espa-
homens de letras (“gramáticos”'), ço. Antítese: O mundo não tem ne-
mas de ““retóricos”' e “oradores” nhum começo no tempo nem limites
amantes da filosofia e das letras (op. no espaço. 2º Tese: Toda substân-
cit., IX, 742 B). cia composta consta de partes sim-
“Antinomia”º usa-se, por vezes, ples, não existindo mais do que o
no lugar de “paradoxo” em expres- simples ou o composto do simples.
sões como ““antinomias lógicas”, Antítese: Nada no mundo se compõe
“antinomias semânticas”, as “anti- de partes simples. 3º Tese: Existe l1-
nomias de Zenão de Eléia”, etc., berdade no sentido transcendental
mas na presente obra a tendência é como possibilidade de um começo
usar em tais casos o termo ““para- absluto e não causado de uma série
doxo”. de efeitos. Antítese: Tudo acontece
Especificamente, emprega-se “an- no mundo segundo leis naturais. 4º
tinomia” dentro da crítica kantiana Tese: Existe no mundo, como sua
dos sistema das idéias cosmológicas parte ou como sua causa, um ser ne-
na ““Dialética transcendental”, da cessário. Antítese: Não existe nem
Crítica da Razão Pura. Kant fala da como parte nem como causa, no
“antinomia da razão pura”, a qual mundo ou fora dele, nenhum ser ne-
consiste em usar idéias transcenden- cessário (K. r. V., A 426-7, B 454-5
tais com o intuito de obter conheci- e ss.). As teses são provadas pela re-
mentos relativos: ao mundo (cos- futação das antíteses e vice-versa.
mos). Segundo Kant, há quatro an- Assim, a demonstração da tese da
tinomias da razão pura, e cada uma primeira antinomia efetua-se, no que
delas consiste numa ““antitética da se refere ao tempo, comprovando
razão pura”, isto é, num “conflito que se a antítese fosse verdadeira,
entre dois juízos dogmáticos, ne- não se poderia falar de um aconte-
nhum dos quais pode aceitar-se com cer no universo, acontecer que re-
mais razão que o outro” (K. r. V., quer um começo e um fim. Em con-
A 420, B 448). A antitética é “uma trapartida, se fosse verdadeira a te-
tese juntamente com uma antítese; se, teria que se admitir um nada an-
assim, cada uma das antinomias terior, do qual nada pode advir. O
kantianas apresenta um conflito en- mesmo ocorre com o espaço: deve
tre uma tese e uma antítese. haver um limite porque, se não hou-
Kant fornece uma lista de quatro vesse, teria que se pensar o mundo
antinomias, divididas em dois gru- como algo infinito e, por conseguin-
pos: antinomias matemáticas (refe- te, não acabado; não pode haver |i-
APARÊNCIA 34

mite porque, se houvesse, se pensa- Embora Kant trate o tema das an-
ria em algo espacial rodeado de al- tinomias na Crítica da Razão Pura
go não espacial. Na segunda antino- e na Crítica da Faculdade de Julgar,
mia afirma-se a impossibilidade de é na primeira destas obras que ele é
uma divisibilidade infinita do sim- tratado mais a fundo.
ples, pois do contrário o existente fi-
caria dissolvido no nada; mas tam- APARÊNCIA ““Aparecer” significa
bém se sustenta a infinita divisibil!- “deixar-se ver”, “manifestar-se”.
dade de qualquer parte, que se não “Aparência” significa “aspecto que
fosse sempre divisível não poderia ser oferece uma colsa quando se deixa
extensa, visto que toda extensão é di- ver, se manifesta, se apresenta (ge-
visivel. Na terceira antinomia de- ralmente à vista)”.
monstra-se que não pode haver uma Muitos filósofos ocuparam-se em
causalidade rigorosa e absoluta, pois averiguar se, e por que, as coisas e,
1SSO seria equivalente à regressão ao em geral, ““a realidade” (pela qual
infinito das causas; mas tampouco se entende “qualquer coisa”) são tal
pode haver um começo sem causa, como aparecem ou não. Afirmar o
último é sustentar que existem dis-
porquanto não se poderia pensar co-
mo objeto de experiência. Finalmen- crepâncias entre as “aparências” e
as “realidades”. Isso não equivale,
te, para a quarta antinomia, efe-
tuam-se as mesmas demonstrações
porém,
a distinguir entre coisas cha-
madas “aparências” e outras chama-
que para a terceira. Segundo Kant, das “realidades”. Como as aparên-
essas contradições devem-se a que cias em questão o são de ““realida-
nas duas primeiras antinomias o es- des”*, a suposta discrepância costu-
paço, o tempo e a simplicidade são ma fundamentar-se numa distinção
considerados como coisas em sl, na entre “aparência de uma realidade”
medida em que somente possuem e ““essa realidade”.
idealidade transcendental. O mundo Os termos ““coisas” e ““realida-
como tal converte-se em objeto do des” devem entender-se aqui num
conhecimento, coisa impossível e que —

sentido muito amplo. Não se trata


torna igualmente falsas as teses e as apenas, necessariamente, de ““obje-
antíteses. Nas duas últimas, em con- tos** (por exemplo, objetos físicos,
trapartida, as teses e as antíteses são como uma pedra, uma maçã); tam-
todas verdadeiras, mas, enquanto as bém podem ser ““estados”, “situa-
antíteses referem-se todas aos fenô- ções”, “processos” e aquilo a que
menos, as teses relacionam-se com os se chama “fenômenos” — como o
númenos ou coisas em sl; sua apa- fenômeno da ““saída”* do sol na di-
rente incompatibilidade nada mais é, reção leste do horizonte e seu ocaso
portanto, do que a incompatibilida- na direção oeste, ou o fenômeno do
de de duas asserções que se referem bastão submerso na água ou, de um
a esferas distintas. modo geral, num líquido ou num
35 APARÊNCIA

meio mais denso do que o ar. Se bem somente representações de coisas


que os fenômenos ou ““aparências” cujo ser em si é desconhecido” (B 164)
não sejam necessariamente realida- — o que parece indicar por um mo-
des, tampouco são necessariamente mento (embora seja essa a doutrina
“ilusões”, uma vez que se forem in- de Leibniz, que Kant repele) que as
terpretados e explicados corretamen- aparências o são de realidades trans-
te revelam suas correspondentes rea- cendentes. Mas, na verdade, as apa-
lidades. Assim, por exemplo, as leis rências são unicamente aquilo a que
ópticas explicam por que um bastão se aplicam primeiro as formas a prio-
mergulhado parcialmente na água ri da sensibilidade e depois, mediante
parece estar quebrado. Essa explica- nova síntese, os conceitos do enten-
ção do aparente em termos de sua dimento. As aparências não são dis-
realidade ““entre linhas” é o que Pla- tintas de suas apreensões (de sua re-
tão chamava ““salvar fenômenos”. cepção na síntese da imaginação),
Em geral, os filósofos ““racionalis- pois ““se as aparências fossem coisas
tas** distinguiram ao máximo entre em sl, e uma vez que só podemos nos
aparência e realidade, e alguns che- referir às nossas representações, Ja-
garam, inclusive, a considerar que a mais poderíamos deixar estabelecido,
segunda transcende absolutamente a com base na sucessão das represen-
primeira, já que uma coisa é a apa- tações, de que modo pode combinar-
rência e outra a realidade “em si se no objeto sua diversidade” (A-
mesma”. Muitos filósofos de ten- 190, B 235). Os conceitos do enten-
dência empirista, fenomenista, etc. dimento são (legitimamente) empre-
foram propensos, pelo contrário, a gados de modo transcendente (no
aproximar ao máximo realidade e sentido ““clássico”* de “transcenden-
aparência, e alguns concluíram que tal”) para as coisas em geral e em si,
não faz o menor sentido a distinção mas são (legitimidade) aplicados de
entre ambas. modo empírico apenas às aparências,
Kant examinou a noção de apa- ou aos objetos da “experiência pos-
rência (Erscheinung) na Crítica da sível”* (A 238, B 298). Quando são
Razão Pura. Escreveu ele (A 20, B pensadas como objetos de acordo
34): “Aparência é o nome que rece- com a unidade das categorias, as
be o objeto não determinado de uma aparências recebem o nome de fenô-
intuição empírica”. Pode-se distin- menos (A 349). Kant chamou à sua
guir entre a matéria e a forma da doutrina, segundo a qual as aparên-
aparência; a primeira é O que na apa- cias são consideradas somente como
rência corresponde à sensação; a for- representações e não como coisas em
ma é o que determina a diversidade s1, idealismo transcendental (no sen-

das aparências a disporem-se numa tido mais especificamente kantiano


ordem segundo certas relações. As de “transcendental” [A 369]), o que
aparências contrapõem-se às coisas a diferencia do realismo transcen-
em si. É certo que
““as aparências são dental e do idealismo empírico —
APARÊNCIA 36

que interpretam as aparências exter- ra outros, como C. D. Broad, mes-


nas como coisas em si. A aparência mo que a mudança se contradiga a
deve distinguir-se, segundo Kant, da si mesma (pelo menos para aqueles
ilusão. Esta última surge quando, filósofos que acreditam que só Oo

contrariando a idéia kantiana da imutável é real e identificam a real!-


idealidade das intuições sensíveis, se dade com a existência), de tal modo
atribui realidade objetiva às formas que todas as mudanças sejam decla-
de representação (espaço e tempo) radas aparentes, resultará que ““as
[B 70]. mesmas colsas que são condenadas
Para Bradley, a aparência ““exis- como aparências, porque mudam,
te”, mas é contraditória consigo devem mudar verdadeiramente se se
mesma pelo fato de não ser absolu- pretender que seja válido o argumen-
tamente subsistente. Só o absoluta- to contra a sua realidade” (Percep-
mente independente pode esquivar- tion, Physics and Reality, 1914, cap.
se às contradições da aparência, mas II, pp. 73-4).
1sso não significa que a aparência O conflito entre o ser e o aparecer
não seja. De certo modo, pode-se di- é negado também pelos fenomenó-
zer dela que é. Mas esse “ser” da logos, para quem o ser se dá nas
aparência tem um sentido diverso do “apresentações” ou Abschattungen
ser da realidade. Com efeito, en- das “aparências”, de modo que, co-
quanto a realidade é um ser no qual mo assinala Jean-Paul Sartre ao ado-
“não há nenhuma divisão entre o tar essa suposição, o fenômeno é um
conteúdo e a existência, nenhum “relativo-absoluto” (L'Étre et le
afrouxamento (loosening) ou disten- Néant, 5* ed., 1943, p. 12) que po-
são entre o quê e o que (Appearance de ser estudado como tal, enquanto
and Reality, p. 225 [Apariencia y é “absolutamente indicativo de si
realidad, trad. esp., 3 vols. 1961])), mesmo”. Outros, como Dewey (Ex-
a aparência é o afrouxamento ou dis- perience and Nature, 1925, p. 137),
tensão do caráter do ser, ““a distin- declaram explicitamente quea apa-
ção da unidade imediata em dois as- rência não é um modo de ser ou um
pectos, um que e um quê” (1ibid., pp. modo de existir, mas um ““estado
187-88). funcional”. A diferença admitida em
Segundo Whitehead (Adventures tal caso não se refere à aparência e
of Ideas, 1933, p. 309), não tem sen- à realidade, mas ao aparecer e ao não
tido perguntar se uma realidade é aparecer; a distinção é, em suma, de
verdadeira ou falsa, autêntica ou caráter “físico” ou “empírico”, de
aparente, pois a realidade é o que é, modo que ““vincular entre si as coi-
e isso de tal modo que a verdade é sas que são imediatas e aparencial-
justamente a conformidade da rea- mente, por meio do que não é ime-
lidade com a aparência ou, por ou- diatamente aparente, criando assim
tras palavras, a maneira de a reali- novas sucessões históricas com novas
dade manifestar-se a si mesma. Pa- iniciações e terminações, é algo que
37 APERCEPÇÃO

depende, por sua vez, do sistema de transcendental. A primeira é própria


sistemas matemático-mecânicos que do sujeito que possui um sentido in-
formam os objetos próprios da ciên- terno do fluxo das aparências. A se-
cia como tal” (op. cit., p. 138). gunda é a condição de toda consciên-
cia, incluindo a consciência empiíri-
APEIRÓN O vocábulo ““apeirón””, ca (K. r. V., À 107). A apercepção
tal como o emprega Anaximandro, transcendental é a pura consciência
significa “sem fim” ou “sem limi- original e inalterável; não é uma rea-
te”; costuma traduzir-se como ““o in- lidade propriamente dita, mas aquela
finito”, o “o indefinido”, “o ilimi- que torna possível a realidade en-
tado”, etc., e lhe foram dadas inter- quanto realidade para um sujeito. Os
pretações diversas entre os seus pró- mesmos conceltos a priori são pos-
prios discípulos. Também outros síveis mediante a referência das in-
pré-socráticos, Platão (Filebo) e Aris- tuições à unidade da consciência
tóteles (Física, III, 203) utlizaram o transcendental, de modo que ““a uni-
termo. dade numérica dessa apercepção é o
fundamento a priori de todos os con-
APERCEPÇÃO É o nome que re- ceitos, da mesma forma que a diver-
cebe a percepção atenta, a percepção sidade do espaço e do tempo é o fun-
acompanhada de consciência. Escre- damento a priori das intuições da
via Descartes: “É certo que não po- sensibilidade” (loc. cit.).
demos querer outra colsa sem aper- Por meio da unidade transcenden-
cebê-la [que nous nºapercevions] pelo tal da apercepção e possível, segun-
mesmo meio que a queremos” (Les do Kant, a mesma idéia de objeto em
passions de l”âme, 1 19). Leibniz dis- geral, a qual não tinha sido ainda
tinguia entre percepção — a qual re- possivel através das intuições do es-
presenta uma multidão na unidade paço e do tempo, e das unificações
ou na substância simples — e aper- introduzidas pelos conceitos puros
cepção — equivalente à consciência do entendimento ou categorias. Re-
(Monadologia, $ 14). Os cartesianos, sulta, assim, que a unidade transcen-
alega Leibniz, só levaram em conta dental da apercepção que se manifes-
"as percepções de que se tem consciên- ta na apercepção transcendental
cia, quer dizer, as apercepções. Mas constitui o fundamento último do
também há percepções confusas e objeto enquanto objeto de conheci-
obscuras, como as próprias de cer- mento (não enquanto coisa em si).
tas mônadas “em estado de aturdi!- Pois ““a unidade da síntese de acor-
mento”. Cumpre distinguir, portan- do com conceitos empíricos seria
to, entre percepção e apercepção, completamente fortuita se não esti-
embora esta última, por se referir à vesse baseada no fundamento trans-
primeira, é contínua a ela. cendental da unidade” (ibid., A
Kant distinguiu entre a apercepção 111). Isto explica o sentido da famo-
empírica e a apercepção pura ou sa Íírase Kkantiana: “As condições a
APETIÇÃO 38

priori de uma experiência possível [appetition] à ação do princípio inter-


em geral são, ao mesmo tempo, as no que provoca a mudança ou a pas-
condições da possibilidade dos obJe- sagem de uma percepção a outra.
tos da experiência” (loc. cit.). Não Embora o desejo não possa obter
se trata de sustentar que a unidade completamente toda a percepção pa-
transcendental da apercepção, como ra que tende, sempre alcança, porém,
síntese última e ao mesmo tempo alguma coisa dela, chegando a novas
fundamentante, torne possíveis os percepções” (Monadologia, $ 15).
objetos como tais; trata-se de susten-
tar que ela torna possíveis os obje- APETITE Em De an., III, 10 433
tos de conhecimento, quer dizer, que a-b, Aristóteles distinguiu entre vous
constitui — como dizem alguns — o e ópetis. O termo vous traduz-se ha-
horizonte epistemológico da noção bitualmente por ““entendimento” e
de objetividade e, portanto, a con- também por ““inteligência”. O termo
dição de todo conhecimento. opetis pode traduzir-se por “desejo”
A unidade sintética original da aper- e também por “apetite”. Preferimos
cepção é, em última instância, o “Eu aqui este último vocábulo por duas
penso? que acompanha todas as re- razões: (1) porque está mais perto do
presentações, pois, “caso contrário, latim appetitus, que os escolásticos
algo seria representado em mim que usaram com consciência de que esta-
não poderia ser pensado, e isso equi- va relacionado com a opeetis aristo-
vale a dizer que a representação se- télica; (2) porque ““desejo”, sobretu-
ria impossível ou, quando menos, do quando é empregado como tradu-
não seria nada para mim” (ibid., B ção do vocábulo latino cupiditas, ex-
131-32). A apercepção transcenden- pressa a idéia de um movimento mais
tal é, pois, o pensar o objeto, pen- violento e apaixonado (como se vê em
sar distinto do conhecer e que fun- cupiditas gloriae e em cupiditas prae-
damenta a possibilidade deste úl- dae). Em todo caso, “apetite” tem
timo. um aspecto, por assim dizer, mais
“técnico”, ao mesmo tempo que
APETIÇÃO O vocábulo ““apetição” mais geral, de modo que enquanto o
pode ser traduzido em termos esco- desejo pode ser descrito como uma
lásticos e especialmente tomistas co- forma de apetite, o apetite não pode
'mo a ação do apetite (ver). Contu- descrever-se, em contrapartida, como
do, a própria noção de apetite Já uma forma de desejo.
comporta uma certa ação, pelo que A mencionada distinção aristoté-
o termo ““apetição”* não chega a de- lica é precedida por uma doutrina das
sempenhar nenhum papel importan- partes da “alma” (ver, entre outras
te nas correntes filosóficas acima ci- passagens, De an., III 9 432 a-b). Es-
tadas. Em contrapartida, possui um sas partes são: o nutritivo, dpeTtTLXOV;
significado fundamental e preciso em O sensitivo, atoôntTiXOr; O imagina-
Leibniz: “Pode-se chamar apetição tivo, parTtaotTikxOV, E O apetitivo,
39 APODÍCTICO

opEeXxTLIXOV.Esta última parece distin- emoção; a concupiscível, uma incli-


guir-se das outras, mas é insepará- nação. Por outro lado, a vontade po-
vel delas, de modo que ““se a alma de ser considerada um apetite inte-
tem três partes, em cada uma delas lectual na medida em que é movida
haverá apetição”. A apetição e o en- pelo entendimento que lhe propõe o
tendimento (prático) parecem ser as bem como fim — sendo o bem ra-
duas únicas faculdades capazes de cionalmente apreendido como tal o
mover (localmente) a alma. Mas co- objeto da vontade (ibid., q. LXXXII,
mo, “na realidade, o objeto apete- a 5).
cível é aquele que move”, resulta que A doutrina sobre a noção de ape-
“uma única coisa é a que move: a fa- tite mais influente na escolástica foi
culdade apetitiva” [ou potência ape- a de Santo Tomás. Foi, ademais,
titiva] (loc. cit.). O apetite pode, 1n- quase integralmente aceita por mui-
clusive, mover em sentido contrário tos autores neo-escolásticos contem-
ao da deliberação, pois “a concupis- porâneos. As idéias tomistas a este
cência [éniôvuia enquanto ““desejo”*] respeito foram também adotadas por
é uma das classes de apetite” (loc. vários filósofos do século XVII, os
cit.). Em suma, o apetite é o que pro- quais consideraram o apetite uma
duz o movimento. das “paixões da alma”. Mas ao que-
Para Santo Tomás, estas potências brar em muitos aspectos o quadro de
são, assim como para Aristóteles, a idéias escolásticas, os autores aludi-
vegetativa, a sensitiva, a apetitiva, a dos deram outros significados a
locomotiva e a intelectual. A potên- “apetite”. Preferimos reservar o ter-
cia apetitiva — ou apetite — não é mo ““desejo”* para nos referirmos
comum a todas as coisas; é somente aos modos como o problema do ape-
própria daquelas realidades que pos- tite foi tratado por alguns autores
suem o conhecimento e estão por cl-
ma das formas naturais (S. Theol,,
modernos — assim como por vários
pensadores antigos e contempo-
q. LXXX, a 1). Há nestas realida- râneos.
des uma inclinação que suplanta a 1n-
clinação natural e é o que faz com APODICTICO Chama-se apodiícti-
que a alma tenha uma potência ape- co ao que vale de um modo necessá-
titiva específica. Segundo Santo To- rio e incondicionado. O termo é em-
más, há um apetite intelectual e um pregado na lógica sob dois aspectos.
apetite sensível, os quais não devem Por um lado, refere-se ao silogismo;
ser confundidos. O nome do apetite por outro, à proposição e ao juízo.
sensível é a sensualidade — a qual é 1. O apodíctico no silogismo. Em
uma só potência genérica (1bid., q, Top., 100 a 27 ss., Aristóteles divi-
LXX-XI, a 2), embora se divida em diu os silogismos em três espécies:
duas potências que são espécies do apodiícticos, dialéticos e sofísticos ou
apetite sensível: a irascível e a con- erísticos. O silogismo apodíctico,
cupiscível. À potência irascível é uma aToderxTLUXOÓS, É, segundo oO
Estagi-
APOLOGISTAS 40 .

rita, o silogismo cujas premissas são No sentido usado por Kant em sua
verdadeiras, e tais que ““o conheci- tábua de juízos, a noção de juízo
mento que temos delas se origina de apodiíctico foi empregada por mui-
premissas primeiras e verdadeiras”. tos lógicos do século XIX.
Esse silogismo também é comumen-
te chamado demonstrativo. APOLOGISTAS Dentro da Patriís-
II. O apodíctico na proposição e tica, receberam o nome de apologis-
no juízo. Como uma das espécies das tas diversos. Padres da Igreja que
proposições morais, as proposições (principalmente durante o século IJ)
apodícticas expressam a necessidade se consagraram a escrever apologias
(a que pode referir-se a impossibili- do cristlanismo. Como para tais fins
dade de que não). Refere-se à neces- apologéticos usaram-se com abun-
sidade de que S$ seja P ou à imposs1- dância temas e argumentos filosófi-
bilidade de que S não seja P. Estu- cos, os apologistas pertencem não só
damos este modo nos verbetes Moda- à história da religião, do cristianis-
lidade e Necessário, e a forma como mo, da teologia e da Igreja, mas
tais proposições modais se opõem a também à da filosofia.
O motivo principal da tendência
outras em Oposição.
O termo ““apodíctico”* na propo- em questão não era tanto defender
o cristianismo contra as correntes fi-
sição e no Juízo foi usado, sobretu- losóficas opostas a ele ou contra as
do, a partir de Kant. O emprego outras religiões, como convencer o
mais conhecido é o que se encontra
Imperador do direito dos cristãos a
na tábua dos juízos como fundamen- uma existência legal dentro do Im-
to da tábua das categorias. Segundo pério. Para 1SSso, era preciso usar o
a primeira, os juízos apodícticos são vocabulário mais familiar às classes
uma das três espécies de juízos de ilustradas do Império, e esse voca-
modalidade. Os juízos apodiícticos bulário coincidia em boa parte com
são juízos logicamente necessários, o filosófico da época helenístico-ro-
expressos na forma ““S$ é necessaria- mana. O uso desse vocabulário e o
mente P”, diferentemente dos Juízos manuseio das correspondentes dou-
assertóricos ou de realidade, e dos trinas tinham, pelo menos no come-
juízos problemáticos ou de contin- ço, uma tendência mais ético-práti-
gência (K. r. V., A 75, B 100). Um ca do que metafísico-especulativa.
emprego menos conhecido de ““apo- Mas, como a formação cultural he-
díctico”* em Kant é o que aplica este lênica de quase todos os apologistas
termo a proposições que estejam e as necessidades da apologética exi-
“unidas à consciência de sua neces- giram a ampliação desses quadros,
sidade”. Os princípios da matemá- logo se passou ao exame de questões
tica (geometria) são, segundo Kant, mais propriamente filosóficas, em
apodiícticos (ibid., B 41). As propo- especial a questão de saber se e até
sições apodícticas são, em parte, que ponto a tradição filosófica gre-
“demonstráveis” e em parte “ime- ga era compatível com a revelação
diatamente certas”. cristã. A resposta foi quase sempre
41 ARBÍTRIO (LIVRE-)

afirmativa, em especial com base no car; a libertas distingue-se da possi-


uso de idéias platônicas e estóicas, bilidade de bem ou mal voluntários.
que se prestavam particularmente ao Em contrapartida, o liberum arbi-
apoio das tendências harmonizado- trium designa a possibilidade de es-
ras. Conseqúuência disso foi a acen- colher entre o bem e o mal; é “a fa-
tuação da inteligibilidade e comuni- culdade da razão e da vontade por
cabilidade das verdades cristãs, com meio da qual é escolhido o bem, me-
sua correspondente universalização. diante o auxílio da graça, e o mal,
A diferença entre o cristianismo e a pela ausência dela” (De lib. arb., 1).
filosofia foi amiúde concebida, como “A oposição é, pois, clara entre o
se vê claramente em São Justino, co- livre-arbítrio do homem, cujo mau
mo a diferença entre uma verdade to- uso não destrói a natureza, e a liber-
tal e uma verdade parcial. Também dade, que é justamente o bom uso
é importante, do ponto de vista filo- do livre-arbítrio”? (Gilson, op. cit.,
sófico ou, melhor dizendo, filosófico- p. 212, nota 2). “Deve-se confessar
teológico, o fato de que através dos que há em nós livre-arbítrio para fa-
escritos apologéticos foram constituí- zer o mal e para fazer o bem” (De
das as bases para uma ulterior preci- corruptione et gratia, L, 2: cit Gil-
são dos dogmas teológicos e, por con- son). Se esta distinção for levada em
seguinte, para o posterior esclareci- conta, pode-se entender o que de ou-
mento dos conceitos filosóficos fun- tro modo seria um paradoxo: que o
damentais usados para a teologia. homem possa ser livre (fiber) — no
Aristides, Justino, Tertuliano e Eu- sentido de possuir libertas — e pos-
sébio de Cesaréia foram alguns dos sa não ser livre — no sentido do li-
mais importantes apologistas. vre-arbiítrio. O homem, portanto,
não é sempre ““livre” quando goza
ARBÍTRIO (LIVRE-) A expressão do livre-arbítrio; depende do uso que
liberum arbitrium, muito usada por faça dele. |

teólogos e filósofos cristãos, tem às Cabe perguntar se o livre-arbítrio


vezes o mesmo significado da expres- é equiparável ou não à vontade (vo-
são libertas (ver LIBERDADE). Em luntas). Santo Tomás trata do assun-
muitos casos, porém, faz-se a distin- to em sua dilucidação da noção de
ção entre uma e outra. Esta distin- livre-arbítrio em S. Theol., 1, q.
ção aparece claramente em Santo LXXXIII. Segundo ele, podem ser
Agostinho (Enchiridion, XXXII; consideradas quatro questões: se o
Op. imperf. contra Julian., VI, 117), homem tem ou não arbítrio; se o
como foi salientado por Gilson (In- livre-arbítrio é um poder (potentia),
troduction à V'étude de Saint Augus- um hábito ou um ato; se, caso seja
tin [1931], 3º ed., 1949, pp. 212 e um poder, é de natureza apetitiva ou
ss.). A libertas (liberdade) designa o cognoscitiva; e, no caso de ser de na-
estado de bem-aventurança eterna tureza apetitiva, se pode distinguir-
(sempiterna) em que não se pode pe- se da vontade.
ARBÍTRIO (LIVRE-)
42

Depois de considerar as dificulda- mesma relação que, no poder inte-


des suscitadas por cada uma dessas lectual cognoscitivo, pode encontrar-
questões, Santo Tomás chega às se- se entre a inteligência e a razão, po-
guintes conclusões: de igualmente encontrar-se, na facul-
(1) O homem tem livre-arbítrio, dade apetitiva, entre a vontade e o
porque de outro modo as exortações, livre-arbítrio. A inteligência apreen-
castigos e recompensas seriam des- de os princípios quando estes são co-
tituídas de sentido (frustra). Além nhecidos por si mesmos, diretamen-
disso, o homem age de acordo com te e sem inferência alguma. Por ou-
o juízo (judicio), o qual pode seguir tro lado, a razão se aplica às conclu-
direções opostas quando se aplica a sões que se extraem claramente dos
fatos contingentes. princípios. De modo semelhante, en-
(2) Embora a expressão ““livre-ar- quanto querer é desejar algo, de for-
bítrio”* designe um ato, o livre-arbíi- ma que a vontade tem como seu ob-
trio é, de fato, o princípio de tal ato, jeto um fim desejado por si mesmo,
o princípio mediante o qual o ho- eleger é desejar algo com o propósi-
mem julga livremente. Daí que o li- to de obter outra coisa. A eleição tem
vre-arbitrio não seja, propriamente por objeto os meios que conduzem
falando, nem ato nem hábito. O li- ao fim. A relação no reino cognos-
vre-arbítrio é um poder “pronto pa- citivo entre os princípios e as conclu-
ra operar” (potentia... expedita ad sões aceitas em razão dos princípios
operandum). volta a ser encontrada no domínio
(3) Já que o livre-arbítrio é um Juí- apetitivo entre o fim e os meios usa-
zo livre, e já que o Juízo é uma for- dos em vista desse fim. Uma vez que
ça (virtus) cognoscitiva, parece que entender (intelligere) e raciocinar (ra-
o livre-arbítrio tem de ser um poder tiocinari) pertencem ao mesmo po-
(potentia) cognoscitivo. Ora, o li- der (potentia) em sentido idêntico
vre-arbítrio escolhe; é eleição (elec- àquele em que repouso e movimen-
tio). Na eleição concorrem elemen- to pertencem à mesma força (virtus),
tos apetitivos e cognoscitivos: os ul- cabe concluir que o mesmo ocorre
timos proporcionam as razões, ou com querer e eleger. Daí que a von-
“conselho” (consilium), mediante as tade (voluntas) e o livre-arbítrio (li-
quais se escolhe um de dois termos berum arbitrium) não sejam dois po-
de uma alternativa; os primeiros le- deres, mas um só — ou, como às ve-
vam à aceitação do que é cognosci!- zes se diz, que o livre-arbítrio seja 1p-
tivamente aceito. sa voluntas.
(4) Como os poderes se conhecem Alega-se algumas vezes que a no-
por seus atos, parece que a eleição, ção de livre-arbítrio é meramente
enquanto ato de livre-arbítrio, é dis- “negativa”, porquanto se a usa pa-
tinta da vontade: da vontade tem por ra designar somente a possibilidade
objeto o fim, ao passo que a eleição, de eleger ou não eleger, ou a possi-
a escolha, conduz a tal fim. Ora, a bilidade de escolher entre dois termos
43. ARBÍTRIO (LIVRE-)

de uma alternativa, sem se propor- da declarada incompatibilidade en-


cionarem os fundamentos ou *““ra- tre a onipotência divina e a liberda-
zÕes” para uma eleição definida. De de humana. Examinamos parte des-
acordo com 1sso, o livre-arbítrio se- sa questão nos artigos consagrados
ria em si mesmo ““indiferente”, mo- ao problema de Deus (especialmen-
tivo pelo qual se falou de liberum ar- te IT. Natureza de Deus), à graça, à
bitrium indifferentiae, e também de liberdade, ao ocasionalismo, à pre-
libertas aequilibri (literalmente, ““l1- "
destinação, à vontade e ao volunta-
berdade de equilíbrio”, liberdade rismo. Acrescente-se agora que os
que não é esta ou aquela liberdade, debates gravitaram sobretudo em
porque deixa sem possibilidade de torno do problema tal como ficou
eleger justa e precisamente, visto apresentado no agostinismo. Uma
que, embora soe paradoxal, deixa so- “solução” que anule um dos dois
mente com a possibilidade de eleger). termos não parece ser uma boa so-
Se assim fosse, ficaria muito difícil, lução. Já Santo Agostinho havia su-
para não dizer impossível, explicar blinhado que a dependência em que
por que se escolhe tal ou tal coisa;
na verdade, resultaria difícil execu-
o ser e a Obra humana se encontram
em relação a Deus não significa que
tar qualquer ação ““livre”. Um exem- o pecado seja obra de Deus. Ora,
plo paradigmático das dificuldades se considerarmos o mal como algo
apontadas encontra-se no paradoxo ontologicamente negativo, resultará
do ““asno de Buridan””. que o ser e a ação que se lhe refere
Muitos escolásticos negaram que carecem de existência. E se o consiI-
o liberum arbitrium, inclusive sob a derarmos como algo ontologicamen-
forma do liberum arbitrium indiffe- te positivo, haverá a possibilidade de
rentiae, conduza necessariamente a deslizarmos para um maniqueísmo.
tais conseqiiências, e manifestaram AÃo mesmo
tempo, não se tratava
que ele é a condição para que todo simplesmente de supor que, uma vez
ato possa chamar-se autenticamen- outorgada a liberdade ao homem, es-
te livre. A maior parte dos autores te podia usá-la sem necessidade de
modernos — pelo menos do século nenhuma intervenção divina. Pelo
XVII (Descartes, Spinoza e Leibniz, menos no que tange ao sobrenatural,
entre outros) — rechaçou a idéia da parecia impossível excluir a ação da
““Tiberdade de equilíbrio (a que cha- graça. Assim, todas as soluções ofe-
maram, por vezes, libertas indiffe- recidas para resolver a questão esqui-
rentiae) como concepção meramern- vavam-se à supressão de um dos ter-
te negativa da liberdade. mos. E talvez somente em duas po-
A noção do livre-arbítrio foi ob- sições extremas se postulasse essa su-
jeto de apaixonados debates duran- pressão: na concepção luterana ex-
te parte da Idade Média e nos sécu- pressa em De servo arbitrio, por um
los XVI e XVII, especialmente por- lado, e na idéia da autonomia radi-
que ela suscitaria a famosa questão cal e absoluta do homem, por outro.
ARBÍTRIO (LIVRE-) 44

Em seu tratado De servo arbitrio bítrio mantiveram-se num âmbito


(1525), Lutero polemizou contra as que eliminava toda solução radical:
idéias desenvolvidas por Erasmo em nem luteranismo nem pelagianismo.
De libero arbitrio AJATPIBH (1524). Entretanto, em certas ocasiões, as
Na verdade, Erasmo não considera- posições adotadas extremaram-se.
va que a questão do livre-arbítrio ti- Por um lado, temos a teoria tomista
vesse a importância que os teólogos da premoção física. Por outro, a
lhe atribuíam. Além disso, sua opi- doutrina molinista do concurso si-
nião a respeito era moderada: ““Con- multâneo baseado na noção de ciên-
cebo aqui o livre-arbítrio como um cia média. Se bem que todas essas
poder da vontade humana por meio doutrinas sejam primariamente teo-
do qual o homem pode consagrar-se lógicas, os conceitos nelas elabora-
às coisas que conduzem à salvação dos são com frequência filosóficos e
eterna ou então afastar-se delas.” podem ser utilizados no tratamento
Assim, Erasmo não negava em prin- dos problemas da causa (ver) e da l1-
cipio o poder e a necessidade da gra- berdade (ver).
ça. Menos ainda sustentava — como Alguns dos problemas que se ti-
fazia O pelagianismo extremo — que nham suscitado a propósito do livre-
o livre-arbítrio fosse absolutamente arbítrio, esvaziados de sua substân-
autônomo
saltava e
“o
decisivo. Mas como res-
poder da vontade huma-
cia teológica, subsistem em discus-
sões relativas ao conceito de liberda-
na”, Lutero considerou que a dou- de (ver) e à contraposição ““liberda-
trina de Erasmo equivalia a uma ne- de-determinismo”*'. Esta contraposi-
gação da graça e constituía uma pe- ção é, em vários casos, equivalente
rigosa forma de pelagianismo. Se- à que existe, ou se supõe que exista,
gundo Lutero, a definição de livre- entre livre-arbítrio, enquanto liber-
arbítrio proporcionada por Erasmo dade de eleição (às vezes, ““liberda-
não é independente das Escrituras e, de da vontade”), e encadeamento
portanto, contrária a estas. Funda- causal. Mas como não há razão pa-
mentando-se nas Escrituras, Lutero ra supor que as chamadas ações ““vo-
sustentava que ninguém pode ser sal- luntárias”', ou efetuadas por livre-
vo se confiar tão-só no livre-arbítrio, arbítrio ou liberdade de eleição, es-
pois um demônio é mais forte do que tejam completamente fora de todo
todos os homens juntos; não só a encadeamento causal, e houve até ra-
graça é necessária, mas o é de for- zões para afirmar que tais ações po-
ma absoluta. Ora, isso não significa dem ser concebidas como começos
para Lutero que o homem se encon- de encadeamentos causais, a tendên-
tre dominado pela necessidade, pois cia foi evitar falar da relação e, com
o poder de Deus não é uma necess!- mais fortes motivos, da contraposi-
dade natural; é um dom. ção entre livre-arbítrio e determina-
Entre os pensadores católicos, os ção causal. O mais habitual foi fa-
debates acerca da noção de livre-ar- lar em termos de ações humanas
45 ARGUMENTO

e de intenções, com o propósito de reimp. em Philosophical Papers,


averiguar se e como cabe distingui- 1961), “voluntário” contrapõe-se a
las de acontecimentos e causas. As- “coativo” (sob coação), muito mais
sim, algumas das questões tratadas do que a “determinado” e até a “in-
classicamente sob o rótulo de ““livre- voluntário”, ao passo que “involun-
arbítrio” são examinadas como ques- tário”* contrapõe-se mais a ““delibe-
tões suscitadas pelo conceito de ação rado”* ou “feito de propósito”* do
(ver), enquanto ação humana, rela- que a “voluntário” (ou a ““livre””).
cionando-se com conceitos como os
de eleição, intenção e decisão, assim ARGUMENTO Referimo-nos a um
como as noções de, por exemplo, sentido especial do termo ““argumen-
responsabilidade e imputação. Uma to” no artizo QUANTIFICAÇÃO.
parte considerável desse exame foi Trataremos aqui do sentido mais ge-
“Tlingúístico”* mas, primordialmen- ral deste termo: o que ele possui co-
te, no sentido de se procurar averi- mo raciocínio mediante o qual se
guar que se quer dizer, e que con-
oO
pretende provar ou refutar uma te-
sequências decorrem de dizê-lo, se, convencendo alguém da veracida-
quando se sustenta que alguém ope- de ou falsidade da mesma.
ra ou atua livremente — ou, simples- Os antigos — sofistas, Platão,
mente, que alguém, chamado ““agen- Aristóteles, cépticos, etc. — haviam
te”, opera ou atua — o que, em ter- prestado considerável atenção à
mos clássicos, equivale parcialmen- questão da natureza dos argumentos
te a averiguar o que ser quer dizer, e de sua validade ou falta de valida-
e que consequências derivam de dizê- de. Alguns dos argumentos estuda-
lo, quando se afirma que um agente dos eram de caráter lógico-formal,
possui livre-arbítrio. O exame lin- mas muitos não se encaixavam ple-
gúístico permitiu chamar a atenção namente dentro da lógica. Isso foi re-
para distinções que não se costumam conhecido por Aristóteles; enquan-
notar quando se apresentam os pro- to nos Analíticos tratou primordial-
blemas do livre-arbítrio, da liberda- mente de argumentos de tipo estri-
de, etc., de um modo demasiado ge- tamente lógico, nos Tópicos e na Re-
ral; assim, por exemplo, chamou a tórica tratou dos chamados argu-
atenção para o significado, ou uso mentos ““dialéticos”* ou argumentos
de expressões como ““S$ decide”, “S meramente prováveis, ou raciocínios
decide-se por”, ““S opta por”, “S a partir de opiniões geralmente acei-
tem a intenção de”, ““S age delibe- tas. Muitos autores modernos acei-
radamente”, ““S age voluntariamen- taram essa divisão ou outra similar.
te”, etc. Certas dicotomias ““cláss1- Assim, Kant distinguiu entre o fun-
cas” desaparecem então, ou atenuam- damento da prova (Beweisgrund) e
se, ou transformam-se; como foi a demonstração (Demonstration). O
indicado por Austin, por exemplo fundamento da prova é rigoroso, ao
(em ““A Plea for Excuses”' 1956-57, passo que a demonstração não o é.
ARTE 46

Também se pode distinguir entre tica ou defesa de um sistema onto-


prova ou demonstração — enquan- lógico do que as considerações ba-
to são logicamente rigorosas — e ar- seadas em fatos”.
gumento — que não o é ou não re-
quer sê-lo. Ao mesmo tempo, quan- ARTE Ainda hoje é possível usar o
do se fala de argumento, pode-se termo ““arte” nos diversos idiomas
considerá-lo aquilo a que Aristóte- modernos em vários sentidos. Fala-
les chamava ““provas dialéticas”* — se da arte de viver, da arte de escre-
por meio das quais se pretende refu- ver, da arte de pensar; “arte” sign!-
tar um adversário ou convencê-lo da fica, neste sentido, certa virtude ou
verdade da opinião sustentada pelo habilidade para fazer ou produzir al-
argumentador — e como raciocínio go. Fala-se de arte mecânica e de ar-
ou pseudo-raciocínio encaminhado, te liberal. Fala-se também de bela ar-
sobretudo, para o convencimento ou te e das belas-artes — em cujo caso
a persuasão. Os limites entre estas “arte” é tomado, em sentido estét1-
duas formas de argumento são im- co, como a “Arte”. Estes significa-
precisos, mas pode-se considerar que dos não são totalmente independen-
a persuasão é demonstrativamente tes; estão interligados pela idéia de
mais “débil” do que o convenci- fazer e, em especial, de produzir al-
mento. go de acordo com certos métodos ou
Eis algumas das diferentes opi!- certos modelos — métodos e mode-
niões sobre a natureza dos argumen- los que, por sua vez, podem ser des-
tos filosóficos: estes devem ser (ou cobertos mediante a arte. Esta simul-
tender a ser) de natureza estritamente tânea multiplicidade e unidade de
lógico-formal; devem ser principal- significado surgiu na Grécia com o
mente (ou exclusivamente) ““retori- termo reéxvn (usualmente traduzido
cos” no sentido antes indicado; de- por “arte”*) e que persistiu no vocá-
vem ““usar” os procedimentos esta- bulo latino ars.
belecidos pela lógica formal, mas Platão fala, por exemplo, de fa-
não estar determinados por eles (sal- zer algo com arte, uet& TEXVnNS, OU
vo no que toca à sua validade ou não sem arte, &vev 7 éxvns (Fédon, 89 D).
validade lógica) e sim por conside- Mas os exemplos dados por Platão
rações de tipo “material”* ou relati- — na esteira de Sócrates — relativos
vas ao “conteúdo” dos problemas à necessidade de fazer as coisas
tratados. Também se indicou que os “com arte” não tardaram em apli-
argumentos filosóficos se baselam car-se a uma arte não manual, mas
sempre em certas suposições final- de natureza intelectual, a arte da pa-
mente indemonstráveis, de modo lavra ou da argumentação: % meot
que, como indica Henry W. John- Tous Aoyous Téxvn (Fédon, 90 A). À
stone Jr., (Philosophy and Argu- arte suprema era, portanto, a ciên-
ment, p. 117), “as considerações ló- cia, a filosofia, o saber e, em última
gicas não exercem mais peso na crí- instância, a dialética. Mas como as
47 ARTE

outras atividades também eram ar- co, filosofia e razão intuitiva. A ar-
tes, e como era igualmente arte a te distingue-se dos outros quatro por
criação artística, a poesia, o termo ser “um estado de capacidade para
ficou muito ambíguo e só podia ser fazer algo”, sempre que implique um
corretamente entendido dentro de curso verdadeiro de raciocínio, isto
um determinado contexto. Não obs- é, um método. A arte trata de algo
tante, pode-se concluir que réxvn de- que chega a ser. A arte não trata do
signava um “modo de fazer” algo que é necessário ou do que não po-
[incluindo-se no fazer o pensar]. Co- de ser distinto de como é. Tampou-
mo tal “modo” implicava a idéia de co trata da ação, somente da ““pro-
um método ou conjunto de regras,
havendo tantas artes quanto os tipos
é
dução”. De certo modo, claro, to-
das as atividades em que está impli-
de objetos ou de atividades, organi- cada alguma produção são artes;
zaram-se essas artes de uma manei- portanto, poderia falar-se, em prin-
ra hierárquica, desde a arte manual cípio, da arte do estadista, porque se
ou o ofício até a suprema arte inte- trata de produzir uma sociedade, e
lectual do pensar para se alcançar a até uma “boa sociedade”*. Mas, em
verdade (e, de passagem, reger a so- sentido estrito, só de pode chamar
ciedade segundo esta verdade). arte a um fazer como (o exemplo é
Em Aristóteles, encontramos ma- do próprio Aristóteles) a arquitetura.
neiras análogas de entender o termo. Pode-se continuar falando de ar-
Mas este autor tenta repetidas vezes te mecânica ou manual, de arte mé-
definir de modo mais estrito o senti1- dica, de arte arquitetônica, e assim
do de arte. Inicialmente, escreve na por diante. De certo modo, além dis-
Metafísica (A 1, 980 b 25) que, en- so, o que hoje em dia chamamos as
quanto os animais só têm imagens, artes (enquanto belas-artes) tem um
davrTAaAOIAl, E pouca experiência, éu- componente manual que os gregos
Teoria, OS homens se elevam até a constumavam sublinhar. Mas nas ci-
arte, réxvmn, e até O raciocínio, AoyLo- tadas análises aristotélicas já encon-
nós. Arte, réxvn, e ciência ou saber, tramos a base para entender o ter-
êmioT/un, promanam da experiência mo “arte” como designação para “a
e não do acaso, 1uxn, mas só existe Arte” ou o conjunto das belas-artes:
arte e ciência quando há um juízo pintura, escultura, poesia, arquitetu-
formulado acerca de algo universal. ra e música, para mencionar as cin-
Não parece haver aqui distinção en- co atividades artísticas clássicas. Foi
tre arte e ciência. Mas na Etica a Nr- nesse sentido que as relações entre a
cômaco (VI 3, 1139 b 15ess.), Aris- arte e a natureza foram frequente-
tóteles estabelece uma distinção en- mente debatidas. O comum na maio-
tre vários estados mediante os quais ria dos autores gregos — e, a rigor,
a alma possui a verdade por afirma- até se entrar na época moderna —
ção ou negação. Esses estados são os era ressaltar que a arte imita, de al-
seguintes: arte, ciência, saber prát!- gum modo, a Natureza: 7 téxun
ARTE 48

nuetrtoa Tv Dior (Aristoteles, FT-


sica, II 2, 194 a 21) — ars imitatur
Tem-se discutido se há diferenças
entre a chamada ““filosofia da arte”
naturam, in quantum potest (Santo e outras disciplinas que também se
Tomás, 1 anal. 1 a). Isso não signi- ocupam da arte, principalmente a es-
fica que todos os autores estivessem tética. Alguns autores trataram de
de acordo com a concepção platôni- introduzir distinções. Assim, J.-P.
ca da obra de arte como imitação de Weber (cf. La psychologie de l'art,
uma Imitação. Mas era comum con- 1958, Introdução) manifestou que
siderar a natureza como ““o real”, não só cumpre distinguir entre esté-
enquanto a arte era sempre algo ar- tica e filosofia da arte, mas também
tificial e artificioso, embora um ar- entre estas e a psicologia da arte, e
tifício “racional”* no sentido amplo entre esta última e a ciência da arte.
deste termo. Segundo esse autor, a estética ocupa-
Na Idade Média, usou-se o termo se de certos Juízos de apreciação na
ars na expressão artes liberales num medida em que se aplicam a certos
sentido equivalente a “saber”. As ar- valores (o feio e o belo) a filosofia
tes liberais distinguiam-se das servis, da arte é uma reflexão filosófica so-
que eram as artes manuais. Estas in- bre a arte e não sobre os objetos ar-
cluíam muito do que se chamou de tísticos como tais; a ciência da arte
“belas-artes*”*, como a arquitetura e ocupa-se das regras (variáveis) que
a pintura. As belas-artes eram prin- presidem à elaboração das obras de
cipalmente uma questão de ““ofício”, arte; a psicologia da arte é o estudo
não havendo praticamente distinção -—
dos estados de consciência e dos fe-
entre belas-artes e artesanato. nômenos inconscientes que concor-
A distinção entre as duas últimas rem na criação e na contemplação da
e
acentuou-se na época moderna cul-
minou no Romantismo, com a exal-
obra artística. Todas e cada uma des-
sas disciplinas distinguem-se, por sua
tação da “Arte”. Ainda hoje, mui- vez, da crítica da arte, que estuda
tos estéticos e filósofos da arte falam obras de arte em relação a princípios
desta como designando exclusiva- estabelecidos pela estética (ou por
mente as ““belas-artes”*, com exclu- uma determinada estética).
são do artesanato, ou considerando Outros autores são menos otimis-
este último uma arte “inferior” ou tas a respeito da possibilidade de dis-
subalterna. Em contrapartida, no sé- tinguir entre essas várias disciplinas,
culo XX, com as numerosas revolu- ou sequer entre filosofia da arte e es-
ções artísticas e a dissolução da ríg!- tética. A literatura pertinente indica
da divisão entre as diversas belas-ar- que enquanto as obras que incluem
tes, apagou-se a distinção entre arte o termo ““estética”* em seu título são
e artesanato. A rigor, tornou-se pro- geralmente de caráter ““teórico”,
blemática a divisão entre “arte” e ocupando-se de questões como lin-
“não-arte” — como mostra a cha- guagens e valorações artísticas, a na-
mada ““arte conceitual”, entre outras. tureza da obra de arte em geral, etc.,
49 ÁRVORE

a
as artes que incluem a expressão ““fi-
Jlosofia da arte”* em seu título são ge-
ralmente de caráter menos ““teórico”
e costumam ocupar-se de determina-
das obras de arte, de estilos artísti-
cos, etc. Não obstante, não há crité-
rios escritos segundo os quais se es-
tabeleça uma divisão de trabalho en-
tre estética e filosofia da arte; am- Figura 3
bas as disciplinas se ocupam, com
muita frequência, dos mesmos pro- Formalmente, uma árvore é um
blemas. conjunto de pontos a cada um dos
quais se atribui, mediante uma fun-
ÁRVORE A árvore de Porfírio é um ção, um número inteiro positivo, que
exemplo clássico do uso da figura de é o nível. Dados dois níveis, x, y, a
uma árvore para fins de distribuição relação xRy lê-se ““x é predecessor de
e classificação. Trata-se, neste caso,
de distribuir uma classe em subclas-
y” e““y é sucessor de x”. Há um só
ponto, de nível 1, que é a origem da
ses, algumas das quais se distribuem, árvore. Todo outro ponto, salvo 1,
por sua vez, em outras subclasses, e tem um predecessor único. Um pon-
assim sucessivamente. to simples tem um único sucessor.
A própria imagem da árvore não Um ponto terminal não tem nenhum
é tão importante quanto a configu-
sucessor, constituindo o fechamen-
ração arbórea. O princípio desta é a to do ramo. Um ponto de bifurca-
ramificação. Seguem-se três exem- ção ou juntura tem mais de um su-
plos de árvores: cessor. Quando não há fechamento
ou encerramento de um ramo, se diz

A
que ele está aberto. As árvores são
finitas ou infinitas segundo tenham,
respectivamente, um número finito
ou infinito de pontos. Uma árvore
A é finitamente engendrada quando ca-
da ponto tem um número finito de
pontos.
A figura 4 ilustra as definições an-
teriores. 1 é o ponto de origem da ár-
vore. 2 é predecessor de 4 e sucessor.

MR de 1. 3 é predecessor de 5 e 6, e é su-
cessor de 1. 5 é sucessor de 3. 6 é pre-
decessor de 7 e 8, e é sucessor de 3.
2 é um ponto simples. 3 e 6 são bi-
Figura 2 furcações. 4, 5, 7 e 8 são pontos
ARVORE 50

A
2 3
pois, dessa disjunção, bifurcando-a
de modo que haja um ramo corres-
pondente a 1 e um ramo correspon-
dente a 2. Por sua vez, | é uma dis-
Junção bifurcável em seus compo-
nentes. 2 é um condicional bifurcá-
vel em seus componentes segundo a
4 5 6 regra indicada em TABELAS (MÉ-
TODO DE). O resultado da bifurca-
ção de 1 são duas fórmulas: uma dis-
junção, bifurcável em seus compo-
7 8 nentes, e uma conjunção, ramificá-
vel em pontos simples. O resultado
Figura 4 das operações sugeridas é a seguinte
árvore:
terminais, os quais podem estar aber- [(Ppvqg) v (DAq)] V (Dq)
tos ou fechados. Quando estão fe-
chados, indica-se com o sinal “X”.
pq
A
A árvore da fig. 4 é diádica, por- (PDvq) v (DAQA)
que nenhuma de suas bifurcações
tem mais de dois ramos. A árvore
tem quatro ramos, constituídos pe- PYq pAdq Pp q
los seguintes conjuntos de pontos:
(1) 1,2,4. /N
Pp q Pp
(2) 1,3,5.
3) 1,3,6,7.
(4) 1,3,6,8. q
As árvores são usadas em lógica Em linguística, a estrutura grama-
para formar tabelas: as tabelas se- tical das orações é formalizada por
mânticas e as tabelas analíticas. Ver meio de regras de substituição da
TABELAS (MÉTODO DE). Para a forma:
confecção de árvores é preciso levar
X— Y
em conta o caráter e a distribuição
das conectivas. Assim, consideran- onde “X”** representa um único ele-
do-se a fórmula: mento gramatical e “Y” representa
um ou mais elementos gramaticais.
IpvYa)vipaDIV EA “—” indica a substituibilidade de
“X” por “Y”. As regras são repre-
temos que | e 2 estão
conectadas por sentáveis em linhas sucessivas de
uma disjunção. Há que se partir, substituibilidade.
51 ÁRVORE DE PORFÍRIO (ARBOR PORPHYRIANA)

Consideremos o exemplo: do “método de árvores”, os proce-


dimentos usados são os mesmos em
O menino pediu o brinquedo (0)
todos os casos.
e leia-se “FN”º para “frase nomi-
nal”, “FV” para “frase verbal”, ÁRVORE DE PORFÍRIO (ARBOR
“A” para artigo, “N” para “nome” PORPHYRIANA). Dá-se este nome
e “V” para verbo. Temos o seguin- ao quadro em que se apresenta a re-
te conjunto de regras de substituição: lação de subordinação (somente 1ó-
gica, segundo uns; lógica e ontoló-
(0) — FN + FV
gica, segundo outros) da substância
FN—A+N considerada como gênero supremo
FVV + FN
A—O aos gêneros e espécies inferiores até
N — menino, brinquedo chegar ao indivíduo. Porfírio trata
deste assunto no capítulo da Isago-
V — pediu.
ge sobre a espécie. Diz nele que “em
Fica mais claro usar um diagrama cada categoria há certos termos que
em forma de árvore. (0) articular- são os gêneros mais gerais; outros
se-á então da seguinte forma: que são as espécies mais especiais, e
(0) Oração
outros que são os intermediários en-
tre os gêneros mais gerais e as espé-
cies especialíssimas”* (ínfimas). O
FN FV termo mais geral é definido como
A N V FN aquele acima do qual não pode ha-
|

o
|

meninopediu
|

A
ONN ver outro gênero mais elevado; o
mais especial é aquele abaixo do qual
não pode haver outra espécie subor-
dinada; os termos intermediários são
o brinquedo OS que estão situados entre ambos e
Este diagrama ilustra a formaliza-
ção chomskyana do modelo de cons-
e
são, ao mesmo tempo, gêneros es-
pécies. Tomando como exemplo
titutivos imediatos, e recebeu o no- uma única categoria — a substância
me de “modelo de frase”. Em gra- — Porfírio mostra quais são os gê-
mática transformacional, se introdu- neros e espécies intermediários e, por
zem regras de transformação mas fim, os indivíduos — ou exemplos de
também novas regras estruturais. indivíduos. Encontra então uma sé-
Embora umas e outras sejam, na rie que dá origem ao esquema desta
maioria dos casos, mais complexas página, empregado no essencial por
do que as usadas para formalizar es- Boécio, e popular desde a exposição
truturas de orações, também podem de Julitús Pacius, em seu Aristotelis
expressar-se diagramaticamente por Organum (1584).
meio de árvores. Do ponto de vista A substância, diz Porfírio, é so-
ÁRVORE DE PORFÍRIO (ARBOR PORPHYRIANA) 52

mente gênero; o homem é a espécie tos; os termos extremos só têm um


especialíssima ou ínfima, e é só es- aspecto ou face. E a espécie especia-
pécie; o corpo é espécie da substân- líssima ou ínfima também tem so-
cia e gênero do corpo animado; o mente um aspecto ou face. É espé-
corpo animado é espécie do corpo e cie dos indivíduos por contê-los, e es-
gênero do animal; o animal é espé- pécie dos termos anteriores — supe-
cie do corpo animado e gênero do riores — por estar contida por eles.
animal racional; o animal racional é Conclui-se, portanto, dizendo que o
espécie do animal e gênero do ho- gênero mais geral é aquele que, sen-
mem; o homem é espécie do animal do gênero, não é espécie; a espécie
racional, mas não gênero dos indÓi- especialíssima, a que, sendo espécie,
víduos, pols — como se disse — é so- não pode ser dividida em espécies; o
mente espécie. Os termos intermediá- indivíduo, aquele que não pode ser
rios têm assim duas faces ou aspec- subdividido em outros termos.

Gênero supremo Substância ou generalíssimo

Diferença |
Composta FT Simples Diferença

A
Gênero Corpo Gênero
subalterno NX subalterno

ED
$
| |
Diferença Vivente Diferença

Gênero Animado Gênero


subalterno
subalterno
DX
Diferença Sensível (insensível) Diferença

Gênero Animal
ínfimo
NR
específica Irracional. Diferença

Espécie ou ínfima
especialíssima

ee
Sócrates

VE etc.

Substância (gênero supremo ou generalíssimo)


Corpo
Corpo animado
Termos intermediários: gêneros e Animal
espécies subordinados: subalternos Animal racional
Homem (Espécie ínfima especialíssima)
Sócrates, Platão, etc. (Indivíduos)
53 ASSERÇÃO

ASNO DE BURIDAN Com este no- gica do citado paradoxo, destacou o


me atribui-se ao filósofo medieval fato de que ele tem uma antiga his-
Jean Buridan a formulação do se- tória, a qual pode resumir-se em três
guinte problema ou paradoxo: “Um fases: o período grego, o árabe e o
asno que tivesse à sua frente, e exa- cristão-medieval-escolástico. Na pri-
tamente à mesma distância, dois fei- meira fase, o paradoxo tem uma for-
xes de feno exatamente iguais não ma cosmológica e está baseado no
poderia manifestar preferência por problema do equilíbrio — do supos-
um ou por outro e, por conseguin- to equilíbrio físico da Terra entre ele-
te, morreria de fome.”* O paradoxo mentos iguais. Essa questão foi tra-
foi formulado para mostrar a dif1- tada por vários autores, como Ana-
culdade do problema do livre-arbi- ximandro e Aristóteles (De caelo, II
trio quando este se reduz a um /libe- 13); este último também discute, por
rum arbitrium indifferentiae. De não semelhança, o problema das motiva-
haver uma preferência, não pode ha- ções iguais. Possivelmente através
ver escolha. dos comentaristas do Estagirita, Oo

Pode-se perguntar se é lícito ado- problema passou aos árabes. Alga-


tar como base um fato empiricamen- zel tratou-o de um ponto de vista teo-
te impossível. Depois se poderá ar- lógico, colocando-se o problema da
guir também com a possível existên- Vontade divina e da razão (caso ha-
cia de certas preferências não mani- Ja) de se haver preferido um mundo
festadas na situação tal como foi des- a outro. Ao criticar Algazel, Aver-
crita: por exemplo, a preferência por róis também se ocupou do problema,
não morrer de fome, o que induzi- assim como Santo Tomás (S. Theol.,
ria o asno a comer qualquer dos dois I-II, q.XIII). Entretanto, os escolás-
feixes de feno. Finalmente, pode-se ticos deram à discussão um enfoque
alegar que as escolhas ou opções não ético — o mesmo que aparece na for-
necessitam ser sempre racionais. Em mulação que hoje se considera clás-
todo caso, porém, há que se reconhe- sica. O próprio Buridan ocupou-se
cer que o paradoxo do asno de Bu- do assunto neste sentido, justamen-
ridan é sumamente instrutivo: ana- te ao comentar o tratado aristotél!-
lisá-lo como é devido requer rever co De caelo, mas não falou de um
por inteiro as difíceis noções de elei- asno e sim de um cão, pelo que, se
ção, preferência, razão, vontade e l1- se quiser continuar atribuindo a Bu-
berdade. ridan a origem do paradoxo, have-
Nicholas Rescher, “Choice With- ria que se falar do “Cão de Bu-
ridan””.
out Preference: A Study of the His-
tory and the Logic of the Problem
of “Buridan's Ass”, Kant-Studien, ASSERÇÃO Em alguns textos lógi-
51 (1959-1960), 142-75 (também em cos foi introduzido um sinal — pro-
separata), que estudou mais a fun- posto por Frege — que se chama ““si-
do do que ninguém a história e a ló- nal de asserção”: é o sinal “|”.
Es-
ASSERTÓRICO 54

te sinal lê-se “É o caso que”, “Afir- juízos e não de proposições, e ainda


ma-se que”, “Estabelece-se que”. que os juízos, em seu sentido, não
'

Em muitos casos, o sinal não é usa- são exclusivamente objetos da lógi-


do por supor-se implicitamente que ca, mas em grande parte da teoria do
todas as fórmulas introduzidas são conhecimento. Neste caso, O asser-
objeto de asserção. O sinal contrá- tórico seria um modo de afirmação,
rio a “HF” é o sinal “HH”, usado por embora fique óbvio que haveria en-
Lukasiewicz, seguindo uma sugestão tão, como sugere Maritain, “um
de Ivo Thomas, como ““sinal de re- abuso de linguagem” em seu empre-
chaço””. “HH” lê-se “Rechaça-se go de tal termo.
que”, “Repele-se que”. A concepção hegeliana dos juízos
assertóricos segue a inspiração kan-
ASSERTÓRICO O uso atual na li- tiana, mas sai ainda mais do que ela
teratura filosófica do termo ““asser- do campo da lógica. O mesmo ocor-
tórico”* provém principalmente da re com a sua concepção dos outros
expressão kantiana ““juízo assertóri- tipos de juízo. Com efeito, Hegel de-
co”. Este Juízo é um dos três tipos fine todos os Juízos desde o seu es-
de Juízo em que, segundo Kant, se pecial ponto de vista metafísico: as-
expressa a Modalidade. ““Nos juízos sim, o Juízo assertórico é, para ele,
assertóricos, a afirmação ou negação um Juízo imediato cujo objeto é um
tem valor de realidade (de verdade)” indivíduo concreto e cujo predicado
(K, r. V., A 75, B 100). E consiste expressa a relação com sua realida-
na afirmação simples “S é P”, de ou determinabilidade do seu con-
“acompanhada da consciência da ceito (Logik, I Abs. II, Kap. D.a.;
realidade”. Os textos lógicos mais di- Glôckner, 5: 112-12).
fundidos do século XIX empregaram
o citado termo na mesma acepção. ATENAS (ESCOLA DE) Na histó-
Em contrapartida, o termo ““asser- ria da filosofia grega, chama-se por
tórico”* não é usado pelos lógicos vezes ““período ateniense” ou tam-
simbólicos contemporâneos nem pe- bém ““período ático” ao que vai de
los lógicos afeiçoados à lógica tradi- meados do século V até fins do sé-
cional. Argumentam estes últimos culo IV a.C. Estão incluídos nesse
que a classificação kantiana dos Juí- período os sofistas, Sócrates, alguns
zos de modalidade em assertóricos, socráticos, Platão, Aristóteles e vá-
problemáticos e apodícticos destrói rios acadêmicos antigos e peripaté-
a divisão tradicional das proposições ticos.
(ver PROPOSIÇÃO) em simples e Chama-se ““Escola de Atenas” a
absolutas e de inesse, na qual não há um dos ramos do neoplatonismo.
nenhum modo que afete a cópula. Trata-se da direção neoplatônica re-
Portanto, as proposições assertóri- presentada por Plutarco de Atenas
cas deveriam excluir-se do modal. (que não deve ser confundido com
Ora, Kant poderia arguir que fala de Plutarco de Queronéia), Siriano,
55 ATO, ATUALIDADE

Domnino, Marino, Isidoro e, sobre- Nessa realização, a mudança é a pas-


tudo, Proclo, Damáscio, Simplício sagem da potencialidade de ser algo
e Prisciano. Esta escola pertence, por ao ato de sê-lo verdadeiramente, a
sua vez à chamada direção metafísi- atualização da potência — ou de
co-especulativa do neoplatonismo. uma potencialidade — de substância.
Caracteriza-se por sua forte tendên- Por isso Aristóteles relaciona a no-
cia teológica e sistemática, por sua ção de ato com a de potência, na me-
aplicação da lógica — ou, melhor di1- dida em que esta última se refere ao
zendo, da dialética — às especula- movimento ou à mudança.
ções metafísicas, por sua tendência Mas Aristóteles também contra-
a desenvolver vários aspectos da teo- põe a noção de ato a outra acepção
logia dialética e pela atenção presta- de “potência”. Na Metafísica, argu-
da à idéia de emanação, especialmen- menta que a “atualidade é a existên-
te através do uso do sistema triádi- cia de algo de modo distinto àquele
co. Somando-se a isso, os neoplatô- como expressamos a potencialidade;
nicos atenienses também se destaca-
por exemplo, quando dizemos que a
ram por seus comentários a obras de estátua de Hermes está em potência
Platão e Aristóteles (e Simplício por
na madeira ou o segmento de linha
seu comentário ao Encheirídion, de
na linha completa, porque pode
Epiceto). A escola ateniense foi fe- extrair-se dela”* (Mer., 0 6, 1048 a
chada em 529 por ordem de Just!- 30-35). É significativo que para ex-
niano.
plicar o “ato” Aristóteles forneça
exemplos: “ato é como o ser que
ATO, ATUALIDADE Para enten- constrói está para o que tem a facul-
der a noção aristotélica de évéoyeia
dade de construir, e como o que es-
— que se costuma traduzir por
tá desperto está para o que dorme,
“ato” ou “atualidade” e ocasional-
e o que vê para o que tem os olhos
mente por ““atividade”* — talvez o
mais simples seja ver a sua relação fechados mas é dotado de visão”
com a potência ou potencialidade (ibid., 1048 b, 1-5). O primeiro ter-
(Svrvauis). A mudança, que para mo de cada uma destas séries de
Aristóteles é apenas uma forma de exemplos é um ato, o segundo uma
movimento, seria ininteligível se o potência. Não dá Aristóteles uma de-
objeto que muda não possuísse, em finição estrita de ambos os termos,
algum sentido, a potencialidade de ato e potência, porque sustenta que
mudar. A mudança é, pois, a passa- “nem todas as coisas se dizem em ato
gem de um estado de potência ou po- no mesmo sentido, mas somente por
tencialidade a outro de ato ou atua- analogia..., pols umas são como o
lização de uma substância. Podemos movimento está para a potência, e
definir a mudança como a realização
do que existe em potência enquanto
outras como a substância está para
uma determinada matéria” (ibid.,
está em potência (Phys., 4, 201 a). 1048 Db, 5-9). No primeiro caso, a no-
ATO, ATUALIDADE 56

ção de ato pertence sobretudo à físi- meta — são um só e o mesmo. Es-


ca; no segundo, à metafísica. tritamente considerados, não são —
Para complicar ainda mais, a no- para Aristóteles — movimento, mas
ção de ato tampouco se aplica no ações ou atualizações; assim enten-
mesmo sentido a todos os “atos”. dido, o ato não remete à ação no sen-
Por exemplo, aprender, andar ou tido de mudança ou movimento, mas
construir são o que Aristóteles cha- refere-se antes ao cumprimento ou
maria movimentos incompletos, pois consecução de uma ação.
não é certo que alguma coisa esteja Portanto, a noção aristotélica de
andando e, simultaneamente, tenha ato não procura somente explicar a
andado, ou que esteja construindo e mudança no tocante à sua descrição,
Já tenha construído (cf. Mer., 1048 b, mas alcança também o imutável e
30-33). O movimento incompleto eterno, como essas entidades cuja
refere-se à ação que se realiza para realidade se aproxima da pura atua-
um fim distinto do do próprio mo- lização de si mesmas, aquelas cujo
vimento; por exemplo, estuda-se, ser só pode ser entendido ““em ato”.
não para estudar, mas para obter co- Essa concepção do ato como per-
nhecimentos e o objetivo da obten- feição dinâmica de uma realidade foi
ção de conhecimentos não está in- utilizada e desenvolvida por vários
cluído no processo de aprendizagem autores neoplatônicos e cristãos. Plo-
— dado que não se incomodaria em tino, por exemplo, distinguia entre
estudar aquele que já possuísse o o significado de “ato” tal como se
desejado conhecimento. Assim, en-- aplica ao mundo sensível e — por
quanto continua o processo de apren- outra parte — ao mundo inteligível.
dizagem, o objetivo ainda não foi al- As noções de ato e atualidade foram
cançado; já que o objetivo é algo ex- elaboradas com grande minúcia pe-
terno à atividade, podemos dizer que los escolásticos, em especial por San-
o movimento é incompleto enquan- to Tomás; estes aplicaram-nas não só
to não contém em si mesmo a sua fi- aos processos naturais — como fize-
nalidade. Pelo contrário, um movi- ra Aristóteles —, mas sobretudo pa-
mento completo é aquele que não ra esclarecer o problema da nature-
busca a sua meta fora, mas leva em za de Deus. Sustentavam que todo
si mesmo o seu fim. Por exemplo, ser mutável é composto de potência
deseja-se a felicidade por ela própria e de ato, ao passo que Deus é Ato
e não por nenhuma outra razão. puro. Os escolásticos não só empre-
Aristóteles propõe o seguinte exem- gavam uma multidão de expressões
plo de movimento completo: “A em que se utilizava a noção de ato,
mesma colsa que, ao mesmo tempo, como também estabeleceram uma sé-
viu e está vendo, ou que pensou está rie de distinções entre vários tipos de
pensando” (ibid., 1048 b, 34). São atos.
movimentos completos porquanto a Em muitos dos sistemas filosófi-
ação e resultado da ação — ou a
oO
cos modernos, a noção de ato é sub-
57 ATRIBUTO

sumida por outras noções não ne- mordialmente em referência aos atri-
cessariamente relacionadas com as butos de Deus, reservando-se outros
questões planteadas pelo pensamen- termos (““predicado”, “predicamen-
to aristotélico ou escolástico. Entre- to”, etc.) para os conceitos de ordem
tanto, permita-se mencionar apenas lógica ou ontológica. Entretanto, o
alguns autores do século atual para atributo começava por ser definido,
quem os termos ““ato” e “atualida- em geral, dentro da ordem metafísi-
de”* desempenham um papel funda-
ca, como a propriedade necessária à
mental: Gentile, Whitéhead, Husserl essência da coisa e, por conseguin-
e Lavelle. te, parecia estabelecer-se uma equi-
paração entre a essência e os atribu-
ATRIBUTO Em lógica, é algo que tos. Na verdade, o que ocorria é que
se afirma ou se nega a respeito do su- nas coisas criadas havia, efetivamen-
Jeito. Por isso é que o atributo se te, distinção real entre essência e atr!-
confunde, por vezes, com o predica- butos. Mas na realidade divina não
do. O termo ““atributo”* também se havia tal distinção real entre atribu-
emprega algumas vezes em sentido tos e essência, nem tampouco entre
metafísico para distingui-lo do pre-
os atributos dentro de si mesmos.
dicado lógico; neste caso, o atribu-
Outro foi o uso dado a este termo
to é um caráter ou qualidade da
substância. Segundo Aristóteles, há na época moderna. Assinala Descar-
tes (Princ. Phil., 1, 56) que o atribu-
certos acidentes que, sem pertence-
to é algo inamovível e inseparável da
rem à essência de um sujeito, têm seu essência do seu sujeito, opondo-se
fundamento nessa essência. Está nes-
se caso o fato de um triângulo ter então o atributo ao modo. Escreve
seus três ângulos iguais a dois ângu-
Spinoza que o atributo é “o que o
los retos (Mer., à 30, 1025 a 30). Este intelecto conhece da substância co-
tipo de ““acidente essencial*”* pode mo constituindo a sua essência” (Éfi-
chamar-se ““atributo””. Trata-se de ca, IL, def. IV). Em compensação, o
“predicados por si mesmos”, como modo é o caráter acidental e consti-
disse Aristóteles em outro lugar (An. tui as diferentes formas em que se
manifestam as coisas extensas e pen-
post., IL, 22, 83 b 19). Um mesmo
predicado pode ser essencial ou em santes como individualidades que de-
si mesmo em alguns casos e aciden- vem seu ser à extensão e ao pensa-
tal em outros, como ocorre com o mento, isto é, aos atributos da subs-
predicado ““cor””, o qual pertence ao tância (ibid., def. V). Extensão e
branco por si mesmo, mas só aciden- pensamento são, pois, atributos ou
talmente a Sócrates (Filópono, 252, caracteres essenciais da realidade.
10, cit. por J. Tricot, em trad. de Or- Para Spinoza, a substância infinita
compreende um número infinito de
ganon, IV, 1947, p. 113, nota 6).
Entre os escolásticos, o termo atributos, dos quais o intelecto co-
“atributo”, attributum, se usava pri- nhece somente os citados. Os modos
AUTARQUIA 58

são, em contrapartida, as limitações se estabelece, sem lugar para dúvi-


dos atributos, as afecções da subs- das, a sua identidade, ou seja, quan-
tância. do se estabelece de modo definitivo
que ele é certa e positivamente o que
AUTARQUIA Uma das condições se supõe ser. Em filosofia, os termos
para se conseguir o estado de eude- “autenticidade” e “autêntico” são
monia — felicidade, tranquilidade aplicados por alguns pensadores es-
ou paz de espírito — era, segundo al- pecialmente, não exclusivamente, à
gumas escolas socráticas e helenísti- existência humana e a outras real1-
cas, a libertação de toda e qualquer dades tão-só na medida em que são
inquietação. Como se supunha que função de tal existência. Diz-se en-
a inquietação era produzida pelo de- tão que um determinado ser huma-
sejo das coisas externas que só po- no é autêntico quando é, ou chega
dem ser alcançadas com esforço e a ser, o que verdadeira e radicalmen-
dissabores, recomendava-se, na me- te é, quando não está alienado. Con-
dida do possível, o desprendimento tudo, em certas ocasiões, pode-se
das colsas externas e o ater-se uni- considerar que a alienação é um dos
camente ao que estiver em mãos. traços essenciais da existência huma-
Deste modo se conseguia o governo na, de modo que, em tal caso, o es-
de si mesmo ou auto-suficiência, que tar alienado, e, de um modo ainda
receberam o nome de autarquia. À mais radical, o não ser em si mesmo,
autarquia foi, portanto, identifica- é uma das características do autên-
da com a felicidade e com a virtude. tico ser.
O ideal autárquico já estava impli- Ortega y Gasset falou com fre-
cito em muitas das recomendações de quência de autenticidade e inauten-
Sócrates. Foi propugnado e elabora- ticidade no homem como caracteres
do sobretudo pelos cínicos, os ep!- ontológicos da realidade humana.
cureus e os estóicos, mas com distin- Em 1916 (Obras, II, 84-85), descre-
tos graus e propósitos. Quanto aos veu um ““eu autêntico” como a ““ba-
métodos usados para produzir a au- se insubornável”* de uma vida huma-
tarquia, também eram diferentes em na; o “eu autêntico” é, a rigor, O
cada escola. Assim, os cínicos se va- “eu insubornável”', isto é, o eu que,
liam, sobretudo, do desprezo pelas no fundo e radicalmente, não pode
convenções; os epicureus, do retrai- deixar de ser o que é. Mas Justamente
mento no círculo dos verdadeiros porque o homem pode ser autênti-
amigos e da satisfação das necess!- co, também pode ser inautêntico;
dades corporais indispensáveis; os es- por outras palavras, a inautenticida-
tóicos, da resistência e do endureci- de é uma das características funda-
mento diante das adversidades. mentais da realidade humana, a par
da autencidade; e pode até dizer-se,
AUTENTICIDADE, AUTÊNTICO reiterando de outro modo o que in-
Diz-se que algo é autêntico quando dicamos antes, que a inautenticida-
59 AXIOLOGIA

de é uma das formas — ainda que Em alguns casos, estes usos derivam
defeituosa — de ser “si mesmo”. de algum dos autores antes mencio-
Com efeito, as coisas não podem dei- nados. Em outros casos, devem
xar de ser elas mesmas, de ser o que quando menos alguma coisa a cer-
são. Em contrapartida, o homem po- tas tradições de pensamento, de res-
de deixar de ser o que é. to muito diversas entre si, como
Quando o homem chega a ser o ocorre, por exemplo, com a idéia
que é, então sua vida é própria. O pascalina de “distração” (a qual ex-
homem cumpre então com sua vo- pressa a realidade humana em sua
cação radical e com seu ““destino””. inautenticidade), com a idéia hege-
Por vezes, Ortega y Gasset equipara liana (e também marxista) de aliena-
“autencidade” a ““realidade” (op. ção (a qual expressa uma fase de cer-
cit., VI, 400); neste caso, o ser au- to processo ““dialético”* da realida-
têntico equivale ao ser mais real — de Humana). Em El ser y la muerte
(23, 24), J. Ferrater Mora pretendeu
porquanto o sentido de ““é real” é
esclarecer a noção de autenticidade
então, distinto do que tem este pre-
dicado quando se aplica a uma rea- contrastando-a com as de “identida-
lidade não-humana. de” ou “identidade própria”. De
Heidegger falou de autenticidade certo modo ser autêntico equivale a
ser idêntico a si mesmo; entretanto,
(Eigentlichkeit) e inautenticidade
e em outro aspecto o ser idêntico a
(Uneigentlichkeit) como modos de si mesmo afeta por igual coisas e pes-
ser básicos do Dasein. O Dasein po-
SOas, ao passo que o ser autêntico é
de, com efeito, ““eleger-se a si mes-
prerrogativa somente das pessoas e
mo”, quer dizer, “ganhar-se”, e nes- exige um pronome pessoal. Qualquer
te caso se apropria de si mesmo e se X, se X é uma pessoa, é idêntico a
faz ““autêntico”. Também pode s1, porquanto é ele mesmo e não ou-
“não eleger-se a si mesmo”, quer di- tro e, não obstante, X só é autênti-
zer, “perder-se”, e neste caso deixa co se atua como ele mesmo. A iden-
de apropriar-se de si mesmo e se faz tidade é um modo de ser, enquanto
“inautêntico” — não chega a ser o a autenticidade (ou a inautenticida-
que é. Heidegger adverte a respeito de) são tendências, nunca plenamen-
que a inautenticidade [improprieda- te realizadas.
de] não é um modo de ““ser inferior”
a respeito da autenticidade [proprie- AXIOLOGIA Em seu livro Valua-
dade] (Sein und Zeit, $ 3). tion: Its Nature and Laws (1906), es-
Muitos outros filósofos contem- creve Wilbur M. Urban: “A segun-
porâneos (por exemplo, Jaspers e, de da tarefa de uma teoria do valor é
um modo geral, boa parte dos cha- a avaliação reflexiva de objetos de
mados ““existencialistas”) fizeram valor. Não só sentimos o valor de
uso dos termos ““autenticidade” e objetos mas avaliamos esses objetos
“autêntico” ou de variantes suas. e, em última instância, os próprios
AXIOMA 60

sentimentos de valor. É claro que in- gativos”). Usa-se mais particular-


tervém aqui um ponto de vista dis- mente em relação a valores éticos e
tinto do psicológico, um ponto de estéticos. A “ética axiológica” é a
vista que não só requer ser claramen- fundamentada na teoria dos valores,
te definido, mas também adequada- tal como foi desenvolvida por Sche-
mente relacionado com o psicológi!- ler e Nicolai Hartmann, com os pre-
co. Se o nosso problema fosse o de cedentes de Ehrenfels, Meinong e,
uma determinação da validade de sobretudo, Brentano.
objetos e processos de conhecimen-
to, o melhor seria descrevê-lo como AXIOMA Um dos significados da
um problema lógico ou epistemoló- palavra “axioma” é “dignidade”.
gico. Mas o termo epistemologia é Por derivação, “axioma” significa
demasiado estreito para incluir o “o que é digno de ser estimado, acre-
problema da avaliação de valores; ditado ou valorado”. Nos An. Post.,
podemos, pois, usar um termo espe- (1, 2, 72 a 19 ss.), de Aristóteles,
cial para definir o problema tal co- o termo “axioma” ainda tem este
mo aqui se apresenta. Em analogia significado: os axiomas são para o
com o termo epistemologia, forja- Estagirita princípios evidentes que
mos o termo axiologia, e podemos constituem o fundamento de toda
desde agora falar da relação entre o ciência. Em tal caso, os axiomas
ponto de vista axiológico e o psico- são proposições irredutíveis, princí-
lógico” (p. 16). Urban examina em pios gerais aos quais todas as demais
seu livro o “problema” e o “méto-
do”* axiológicos (pp. 17 e ss.) e usa
proposições se reduzem e nos quais
estas últimas necessariamente se
expressões como ““suficiência axio-
apólam.
lógica” (p. 405). Desde este ponto de vista, ao des-
J. N. Findlay (Axiological Ethics,
1970) assinala que Urban foi o pr1-
tacar a evidência própria do axioma,
tende-se para uma espécie de intui-
meiro a usar “axiologia” para tra-
cionismo psicológico. Para essas mu-
duzir a expressão alemã Werttheorie
(“teoria do valor”) que o economista danças contribuíram sobretudo a
Von Neumann introduzira como matemática e a metalógica contem-
“teoria do valor econômico”, e que porâneas. Estas distinguem entre
Ehrenfels e Meinong, entre outros, axiomas e teoremas. Os primeiros
haviam tratado como teoria geral de são enunciados primitivos (às vezes
todos os valores. Formado na base também chamados postulados) que
do termo grego átrios (““valioso”, se aceitam como verdadeiros sem
“estimável”, “digno de ser honra- provar sua validade; os segundos são
do”), o vocábulo ““axiologia” é usa- enunciados cuja validade se subme-
do às vezes como equivalente a ““teo- te à prova. Axiomas e teoremas são,
ria dos valores” (incluindo os cha- portanto, elementos integrantes de
mados ““desvalores”* ou “valores ne- todo sistema dedutivo.
61 AXIOMA

Hoje é mais frequente destacar a sua pecialmente desde Hilbert, da axioma-


formalidade e evitar, em contraparti- tização da matemática e, em geral, da
da, adscrever a algum axioma o pre- axiomatização das ciências. A axioma-
dicado ““é verdadeiro”. Falou-se, es- tização é equivalente à formalização.
B
B Ver A. exemplo que corresponde à seguinte
lei da lógica quantificacional elemen-
BAMALIP (Baralipton) É o nome tar:
que designa um dos modos, por mui-
tos autores considerado válido, da (Ax(Gx— Hx) AX(Fx— Gx))
A

quarta figura. Um exemplo, de Ba- — AX(Fx— Hx)


malip (Baralipton) pode ser:
Se todas as frutas são comestíveis
eque, usando as letras “S$”, “P“”
“M” da lógica tradicional, pode
e
E todas as colsas comestíveis são expressar-se mediante o seguinte es-
apetecíveis, quema:
Então algumas coisas apetecíveils
são frutas (MaP A SaM)— SaP
exemplo que corresponde à seguinte onde aparece claramente a sequên-
lei da lógica quantificacional ele- cia das letras “A”, “A”, “A”, or
mentar: gem do termo Barbara na ordem
MP-SM-SP.
(Ax(Hx—Gx) A AX(Gx—Fx))
— VX(FxA Gx)
Aristóteles considerou os modos
da primeira figura como silogismos
e que, usando as letras “S””, “P” e perfeitos, mas reduziu os dois últi-
“M” da lógica tradicional, pode mos — Darii, Ferio — aos dois pri-
expressar-se mediante o seguinte es- meiros: Barbara e Celarent. Lukasie-
quema: wicZ observa a respeito que o uso de
(PaM A MaS)—SiP somente dois silogismos (considera-
onde aparece claramente a sequên- dos como axiomas) para construir a
cia das letras “A”, “A”, “TT”, ori- teoria silogística corresponde à ten-
gem do termo Bamalip (Baralipton) dência que tem a lógica formal mo-
na ordem PM-MS-SP. derna de reduzir a um mínimo o nú-
mero de axiomas numa teoria dedu-
BARBARA É nome que designa um tiva, mas que as leis de conversão uti-
dos modos válidos dos silogismos da lizadas por Aristóteles para reduzir
primeira figura. Um exemplo de Bar- os modos imperfeitos aos modos
bara pode ser: perfeitos não podem ser provadas
Se todos os homens são mortais por meio dos silogismos.
e todos os abissínios são homens,
então todos os abissínios são mor- BAROCO É nome que designa um
tals, dos modos (ver MODO) válidos dos
BELO 64

silogismos da segunda figura. Um de a essa questão mediante defin!-


exemplo de Baroco pode ser: ções ostensivas, assinalando que coil-
Se todas as bebidas alcoólicas são
sas, em seu entender, são belas. À
beleza reduz-se, pois, ao que é belo.
nocivas
Por exemplo: o belo é uma jovem
e algtumas águas minerais não
formosa. A isso responde Sócrates
São nocivas,
então algumas águas minerais não que há outras coisas belas (por exem-
plo, um formoso cavalo); além dis-
são bebidas alcoólicas,
so, diversas realidades não-sensíveis
exemplo que corresponde à seguinte há que podem ser qualificadas de be-
lei da lógica quantificacional elemen- las (leis, ações, almas, etc.). Para não
tar: nos perdermos nesse mar de substân-
cias belas, torna-se necessário, pois,
((AX(Hx—->Gx))A VX(FXA 1Gx))
precisar que coisas são completa-
— VX(FxA | Hx), mente belas e referirmo-nos exclus!-
e que, usando as letras “S”, “P“” e vamente a elas em toda e qualquer
“M” da lógica tradicional,
pode ex- análise da natureza da beleza. Mas
pressar-se mediante o seguinte es- assim que se inicia este novo cami!-
quema: nho descobre-se que todas as respos-
tas concretas são defeituosas ou in-
(PaM A SoM) — SoP suficientes. As respostas dadas por
onde aparece claramente a sequên- Hiípias são, com efeito, da seguinte
cia das letras “A”, “O”, “O”, orl- índole: o belo é o ouro; o belo é aqui-
gem do termo Baroco, na ordem lo que convém; o belo é o que se
PM-SM-SP. mostra belo; o belo é o útil; o belo
é o vantajoso; o belo é o grato... Só-
BELO No diálogo Hiípias Maior, crates (ou seja, Platão) não pode
Platão já formula muita das questões aceitar nenhuma dessas respostas.
que depois foram levantadas, em es- Por exemplo, que algum pareça for-
tética e em filosofia geral, acerca da moso não quer dizer que seja formo-
natureza do belo (da beleza) e acer- so. Hípias pôde dizer que o belo é o
ca das posições fundamentais que se que parece belo porque, para ele, o
podem adotar com respeito a tal na- ser e a aparência são a mesma colsa.
tureza. No citado diálogo, Sócrates Mas Sócrates-Platão mantêm que se
mantém a atitude racionalista e ab- tal equiparação poderia ser aceita pa-
solutista; Hípias, a atitude empiris- ra o reino do sensível, não é admis-
ta e relativista. Eis as principais eta- sível no reino do não-sensível: uma
pas percorridas no transcurso do de- Instituição pode parecer bela e não
bate. o ser. Dai a conclusão: ““Se a apa-
Trata-se de saber o que é beleza, rência é o que faz as coisas belas, en-
a qual — supõe-se — faz com que tão é a Beleza que estamos buscan-
as coisas sejam belas. Hípias respon- do; se a aparência dá somente a apa-
65 BELO

rência de beleza às coisas, então não cológico, o gnosiológico, o axiológi-


é a Beleza que buscamos”. Em su- co, etc. Por exemplo, seria difícil re-
ma, O belo não é idêntico ao predi- duzir à dialética das duas posições
cado ““é belo”; a rigor, não é um pre- mencionadas no começo definições
dicado mas uma realidade inteligível como as seguintes: ““belo fora de mim
que possibilita toda predicação. Di- é tudo o que contém em si algo que
ferindo de Hípias, para quem o be- suscite em meu entendimento a idéia
lo é, no máximo, o nome comum de relações, e belo com relação a mim,
que todas as coisas belas recebem, tudo o que suscita esta idéia” (Dide-
Platão sustenta que o belo é o que rot); a beleza é um instinto social (E.
faz com que haja coisas belas. As- Burke); a beleza é uma realidade per-
sim, para Platão, o belo é indepen- ceptível mediante um sentido especial
dente, em princípio, da aparência do que não exigeraciocínio nem explica-
belo; é uma idéia, análoga às idéias ção (Hutcheson); belo é o que agrada
de ser, de verdade e de bondade. universalmente e sem necessidade de
As análises e as polêmicas de Pla- conceito: finalidade sem fim (Kant);
tão sobre a noção de belo contêm a beleza é o reconhecimento do geral
muitas das linhas fundamentais vi- no particular (Schopenhauer); a bele-
síveis nas ulteriores filosofias da be- za é a unidade na variedade (diversos
leza. Em boa parte, com efeito, es- autores); o belo é um dos princípios
tas filosofias podem classificar-se em espirituais superiores (V. Cousin), etc.
dois grupos opostos: o platônico e o A rigor, o número de definições do
belo dadas na época moderna foi tão
antiplatônico — com as correspon- considerável, que se torna necessário
dentes posições intermediárias. Isto
proceder a uma nova ordenação das
ocorre com a maior parte das def1- mesmas. Para tanto, vários métodos
nições tradicionais, que o leitor agru-
podem ser adotados; nós escolhemos
pará facilmente num lado ou no ou- Oo
que consiste em classificar as opi-
tro. Eis algumas delas: o belo é o que niões sobre o belo segundo o predo-
causa prazer e agrado; o belo é um mínio de uma disciplina filosófica —
atributo imanente nas coisas; o belo ou, melhor dizendo, de uma determi-
é uma aparência; o belo é uma real1- nada linguagem. Consideraremos, as-
dade absoluta; o belo é quase uma
espécie de bem e se fundamenta na
sim, que há os seguintes modos de fa-
lar sobre o belo: (1) o semântico; (2)
perfeição... Ora, seria excessivo re- o psicológico; (3) o metafísico; (4) o
duzir a história das concepções do ético e (5) o axiológico. Estes modos
belo a uma discussão entre as cita- nem sempre são independentes entre s1
das posições extremas. Em todo ca- e, com frequência, podem combinar-
so, ao predomínio tradicional do pon- se. Mas as definições mais habituais
to de vista metafísico na investigação são em grande parte determinadas pe-
do belo sobrepuseram-se, principal- lo predomínio de um destes modos.
mente desde os começos da época mo- Limitar-nos-emos aqui a mencio-
derna, outros pontos de vista; o psi- nar exemplos de cada modo.
BELO 66

(1) Consiste em averiguar que ex- em modo de falar social: a natureza


pressões são sinônimas de ““x é be- do belo depende então do que enten-
lo”*. Podem estabelecer-se numero- de por tal a sociedade — ou uma de-
sas sinonímias: ““x é belo” é sinôni- terminada sociedade, ou uma Socle-
mo de ““x é grato”, de ““x é deseja- dade no decorrer de um determina-
do”, de “x é harmonioso”, etc. De do período de sua história, etc.
fato, o que qualificamos de ponto de (3) Referimo-nos várias vezes a es-
vista semântico pode propriamente te modo nos parágrafos anteriores;
conceber-se como uma análise pré- sua peculiaridade consiste no inten-
via indispensável a qualquer teoria to de reduzir todas as questões rela-
acerca do belo. As diversas interpre- tivas ao belo a questões acerca da na-
tações da significação de ““x é belo” tureza última da beleza em si.
dão origem, com efeito, a outras tan- (4) Este modo é pouco frequente
tas doutrinas filosóficas. Por exem- nas teorias filosóficas, mas não é to-
plo, as duas primeiras sinonímias talmente inexistente; aparece desde
mencionadas conduzem a uma teo- o momento em que se supõe que al-
ria relativista e psicologista; a tercei- go pode ser qualificado de belo so-
ra, a uma teoria objetivista, mas não mente na medida em que oferece
necessariamente absolutista; a quar- analogias com uma noção moral.
ta, a uma teoria absolutista; a quin- (5) O modo de falar axiológico é
ta, a uma teoria formalista ou este- muito frequente no pensamento con-
ticista, etc. Dentro das análises pro- temporâneo. Basela-se nas teorias
porcionadas por (1) acha-se, em par- dos valores. Segundo estas, a beleza
ticular, a discussão entre duas gran- não é uma propriedade das coisas ou
des posições: aquela segundo a qual uma realidade por si mesma, mas um
os juízos de beleza (usualmente cha- valor. Não é uma entidade real, ideal
mados juízos de gosto) são subjeti- ou metafísica, porque tais entidades
vos, e aquela segundo a qual tais Juí- são, enquanto o belo não é, mas va-
zos são objetivos. Tentou-se, com le. Ora, dentro do modo de falar
frequência, mediar entre as duas po- axiológico há diversas teorias possí-
sições afirmando que os Juízos de vels; as mais conhecidas são as teo-
gosto, ainda que subjJetivos, em prin- rias subjJjetivista e objetivista. Quan-
cípio, podem rapidamente converter- do a primeira é levada a um extre-
se em inter-subjJjetivos. mo, desemboca num puro relativis-
(2) Consiste em examinar o pro- mo; quando se leva a um extremo a
blema da natureza do belo de acor- segunda, desemboca num completo
do com a análise dos processos psi- absolutismo. Por isso, foram expe-
cológicos por meio dos quais formu- rimentadas várias posições interme-
lamos juízos estéticos. Acrescente-se diárias. Além disso, examinou-se
que quando o psicológico é entendi- qual é a posição do valor do belo
do em sentido coletivo, o modo de (ou, melhor dizendo, do par ““o be-
falar psicológico pode converter-se lo-o feio”*) dentro da hierarquia dos
67 BEM

valores. Segundo a maior parte dos mente toda qualidade boa (“Sem
autores contemporâneos que se ocu- bondade não chegaremos nunca a
param da axiologia, esta posição nos entender”) ou quando se trata
coincide com a que têm todos os va- de indicar abstratamente que algo é
lores estéticos. Especialmente deta- como deve ser (““A bondade deste
lhadas são, a este respeito, as dou- produto faz com que seja muito ven-
trinas de M. Scheler e de N. Hart- dido”). Ao mesmo tempo, ““o Bem”,
mann. Para o primeiro, os valores “a bondade” e “o bom” (substan-
estéticos (e, por conseguinte, o va- tivação do adjetivo “bom”*) são usa-
lor do belo) constituem uma das dos amiúde como sinônimos.
grande seções em que se dividem os Um exame do significado de “o
valores espirituais, superiores aos va- Bem”, “a bondade” ou “o bom”
lores vitais e aos valores de utilida- não é alheio a um exame do signifi-
de. Por sua vez, os valores estéticos cado de “bom” — quando se diz “x
são, dentro dos valores espirituais, é bom”. A rigor, muitos autores
os valores inferiores, dado que aci- pensam que este último exame é mais
ma deles se encontram os valores importante do que o primeiro, ou até
cognoscitivos, os éticos e os religio- que é o único que se pode executar
sos. Para o segundo, os valores es- com proveito, uma vez que os cha-
téticos ocupam na hierarquia axio- mados “o Bem”, “a bondade” ou
lógica um lugar intermediário entre “o Bom'** podem ser unicamente hi1-
os valores de utilidade, de prazer, vi- póstases ou reificações de uma qua-
tais e morais, por um lado, e os va- lidade, propriedade, característica,
lores cognoscitivos, pelo outro. etc., chamada “bom”.
Estudaremos em seguida diversos
BEM Falou-se às vezes de “o bem” modos como foi concebido o Bem —
— também com maiúscula: ““o expressão que usamos, acompanhan-
Bem — como se esta expressão de-.
signasse alguma realidade ou algum
do a tradição, como cômoda abre-
viatura de diversos modos de expres-
valor. Quando tal realidade ou va- sar o ser bom, o que é bom, a bon-
lor são considerados absolutos, fala- dade, etc. Mais do que considerar di-
se do Bem Supremo, summum bo- versas acepções de “o Bem” (o “é
é
num. “Bem” usado igualmente pa-
ra designar alguma coisa valiosa, co-
bom”, “a bondade”, etc.), distin-
guindo cada uma delas das outras,
mo quando se fala de “um bem” ou consideraremos diversas concepções
de “bens”. Também se usa “bem” filosóficas, cada uma das quais não
para indicar que algo é como deve raro apresenta diversas acepções.
ser (“Esta casa está bem”, “Tomás 1. Pode-se estudar “o problema
faz as coisas bem”). do Bem” desde o ponto de vista de
Muitas vezes, “o Bem” equivale uma análise do significado de “bom”.
“a bondade”, quando com esta úl- Se por “bom” se entende “o Bom”
tima palavra se expressa abstrata- ou “o Bem”', então a análise con-
BEM 68

siste em averiguar que predicados


podem convir-lhe. Este uso de “bom”
é
porque “bom” uma noção simples,
num sentido semelhante a “amare-
ou “o bom” consiste geralmente em lo” é simples. A diferença entre
descrever um único predicado dele, “amarelo” e “bom” reside na for-
Oo
que equivale a transformar ““o ma como cada um é apreendido;
bem” em ““o único bem”, como alguns autores afirmaram que o úl-
quandose diz, por exemplo, ““o úni-
co bem é o prazer”, “o único bem
timo só é apreendido ““intuitiva-
mente”,
é a boa vontade”, “o único bem é 2. Em (1) considerou-se ““o Bem”
a adaptação da espécie ao meio”, — ou, melhor dizendo, “o bom” e
etc. Pode-se discutir então sobre se “bom” — tanto do ponto de vista
o predicado adscrito a ““o bem” é ou dos termos usados quanto do ponto
não Justo, mas em qualquer dos ca- de vista dos conceitos; de algum mo-
sos admite-se que “o bem” é defi-
nível.
é
do, dizer que “bom” definível ou
não é dizer algo acerca do conceito
O problema é se “bom”, usado de “bom”. Entretanto, pode-se des-
como adjetivo, é ou não definível. A tacar ainda mais o aspecto conceitual
este respeito, duas doutrinas se de-
frontam. Um grupo de doutrinas
de “o Bem” e de “bom” e pergun-
tar-se então como se entendem os
afirma que “bom” em frases como correspondentes conceitos. Caso se
“x é bom” pode analisar-se (ou entendam como fenômenos mentais
definir-se) mediante algum predica- — como os que alguém pensa quan-
do, mais ou menos específico, como do pensa no Bem, em “o bom” ou
“x é perfeito (em seu gênero)”, “x em algo “bom” — a tendência é de-
está adaptado à função que lhe com- fender alguma das chamadas teorias
pete exercer”, etc. A maior parte das “subjetivas”. As averiguações per-
teorias sobre o significado de “bom” tinentes podem ser então psicológi-
admite a possibilidade de análise ou cas e adotar até a forma de questio-
definição deste termo. Outras teo- nários. Se os conceitos se entendem
rias, e muito em particular a de G. como ““objetos formais”, distintos
E. Moore — que afirma ter seguido tanto de fenômenos mentais quanto
a este respeito a posição adotada por de coisas reais, a tendência é defen-
Henry Sidgwick em Methods of der alguma teoria chamada ““objeti-
Ethics (I, ill, $S1) —, sustentam que va” — no sentido de “objetivo-
é
“bom” indefinível ou não-analisá-
vel, e que postular o contrário equi-
formal”.
3. Quando o Bem é considerado
vale a proclamar que “bom” é um algo real, convém determinar o tipo
predicado natural. Em Principia de realidade ao qual se adscreve.
Ethica (cap. 1, especialmente $$ 6- Portanto, cumpre saber se se enten-
10 e 14), Moore indica que “o bom” de e Bem como um ente — ou um
é definível, mas que “bom” não
o ser —, como uma propriedade de um
é. “Bom” é o mesmo que “bom” ente — ou de um ser — ou como um
,
69 BEM

valor. Mas, depois de esclarecido es- conseguinte, a doutrina platônica (e


se ponto, é ainda conveniente saber depois, às vezes, plotiniana) do Bem
de que realidade se trata. Três opi- como Idéia absoluta, ou Idéia das
niões distintas se confrontaram — e Idéias, tão elevada e magnífica que,
com frequência se entremesclaram — a rigor, se encontra, como disse Pla-
a respeito: (a) o Bem é uma realida- tão, “mais além do ser”, ênexeiva
de metafísica; (b) o Bem é algo físi- T6s ovoias, de tal modo que as coi-
co; (c) o Bem é algo moral. sas boas somente são boas, pois, en-
4. Considerado como algo real, o quanto participações do único Bem
Bem tem sido entendido ou como absoluto. Com efeito, na concepção
Bem em si mesmo ou como Bem re- aristotélica pode-se dizer que o bem
lativamente a outra coisa. Esta dis- de cada coisa não é — ou não é só
tinção Já se encontra em Aristóteles — a sua participação no Bem abso-
(Etica a Nicômaco, L, 1, 1049 a 18), luto e separado, mas que cada coisa
quando distingue entre o Bem puro pode ter seu próprio bem, isto é, sua
e simples, ayabôr ámThos, e o Bem perfeição.
para alguém ou por algo, &yabôr ri- 5. O Bem em si mesmo é equipa-
vi, ayabov di áddo. Assinala Aris- rado com frequência ao Bem meta-
tóteles que o primeiro é preferível ao físico. Em tal caso, costuma-se dizer
segundo, mas deve-se levar em con- que o Bem e o Ser são uma só e mes-
ta que o Bem puro e simples nem ma colsa, de acordo com as célebres
sempre é equivalente ao Bem abso- teses: Quaecumque sunt, bona sunt
luto; designa um Bem mais indepen- (Sto. Agostinho, Confissões, VIL,
dente do que o Bem relativo. Assim, 12) e Omne ens in quantum ens est,
Aristóteles diz que recuperar a saú- est bonum (Santo Tomás, Theol.,
S&S.

de é melhor do que sofrer uma am- I, q. V, a. 3 ad. 3; cf. também De


putação, visto que o primeiro é bom verit., q. L a. 1), as quais são admi-
absolutamente e o segundo só o é pa- tidas pela maior parte dos filósofos
ra aquele que tem necessidade de ser medievais. Interpretada de um mo-
amputado (Tópicos, III, 1, 116 Db do radical, esta equiparação tem por
7-10). A distinção em questão foi resultado a negação de entidade ao
adotada por muitos escolásticos no mal; entretanto, a fim de evitar as di-
que chamavam a divisão do bem se- ficuldades que isso cria, foi muito
gundo várias razões acidentais; de frequente definir o mal como distan-
acordo com ela, há o bonum simpli- ciamento do ser e, por conseguinte,
citer ou bonum per se, e o bonum se- do Bem. O Bem apresenta-se então
cundum quid, bonum cui, bonum como uma luz que ilumina todas as
per accidens. Consequência dessas coisas. Em sentido estrito, o Bem é,
doutrinas é a negação de que o Bem pois, Deus, definido como summum
seja exclusivamente uma substância bonum. Mas, num sentido menos es-
ou realidade absolutas. Aristóteles e trito, participam do Bem as coisas
muitos escolásticos rechaçavam, por criadas e em particular o homem, es-
7O
BEM

pecilalmente quando atinge o estado físicas de Kant serem postulados des-


da fruição de Deus. Quando esta ta última razão explicam a relação
peculiar entre o Bem metafísico €
O
concepção é elaborada filosofica-
mente, o Bem é definido como um Bem moral dentro do sistema kan-
dos transcendentais, com o conheci!- tlano.
mento resultado de que o Bem é con- 7. Quando o Bem moral é realça-
siderado conversível com o Ser, com do acima das outras espécies de bens,
o Verdadeiro e com o Uno — ens vários problemas se apresentam. Eis
bonum verum unum convertuntur. dois que consideramos capitais.
Cumpre advertir, entretanto, que es- Em primeiro lugar, trata-se de sa-
ta última proposição, embora tenha ber se o Bem é algo subjetivo ou al-
um alcance teológico, está formula- go que existe objetivamente. Muitas
da na linguagem da metafísica (bo- filosofias admitem as duas possibi-
num et ens sunt idem secundum rem: lidades. Assim, Aristóteles e grande
sed differunt rationem tantum: San- número de escolásticos definem o
to Tomás, loc. cit.). Com efeito, a bem como algo que é apetecível e,
linguagem em que costuma expres- neste sentido, parecem inclinar-se pa-
sar-se esta conversibilidade é ““for- ra o subjetivismo. Contudo, deve-se
mal”, no sentido que esta expressão observar que Isso representa somen-
tem quando se diz de Santo Tomás te um primeiro estágio na definição
de Aquino — como dizia Cayetano do Bem. Com efeito, indica-se em se-
— que semper formaliter loquitur. guida que o Bem é algo apetecível
Esta linguagem torna possível que se porque existe algo apetecível. O Bem
fale do bem de cada coisa como sua é, por este motivo, ““o que todas as
perfeição, dando-se o nome de Su- colsas apetecem”', como disse San-
mo Bem (summum bonum) somen- to Tomás (S. Theol., LL q. V, lo),
te ao ens realissimum, isto é, a Deus. porque constitui o termo (““o objeto
6. A concepção do Bem como bem formal”) da aspiração. Isto permite
metafísico não exclui sua concepção solucionar o conflito apresentado
como bem moral; pelo contrário, a por Aristóteles (no começo da Ética
inclui, ainda que o Bem metafísico a Nicômaco) quando se pergunta se
pareça gozar sempre de certa pree- se deve considerar o Bem como idéia
minência, sobretudo na ontologia de certa coisa separada, que subsis-
clássica. O mesmo podemos dizer da te por si isoladamente, ou então co-
filosofia kantiana, por mais que ne- mo algo que se encontra em tudo o
la fique invertida a citada preeminên- que existe e que pode ser chamado
cia. Com efeito, se somente a boa o Bem comum e real. Tomada num
vontade pode ser chamada algo bom sentido demasiado literal, a distinção
sem restrição, o Bem moral aparece apontada fornece-nos, com efeito,
como o Bem supremo. O salto da ra- duas formas de Bem que parecem ja-
zão teórica para a razão prática e o mais se tocar. Mas se o Bem é algo
fato de as grandes afirmações meta- que apetecemos, não poderá haver
71 BEM

separação entre o que está em nós e parece haver analogias entre a defi-
O que está fora de nós; o Bem será
nição escolástica do Bem como ob-
ao mesmo tempo imanente, e trans- jeto formal da vontade e a boa von-
cendente. Em contrapartida, autores tade kantiana, embora essas analo-
como Spinoza (que derivou grande gias desapareçam logo que considera-
parte de sua concepção dos estóicos) mos as respectivas ontologias subjJja-
consideraram o Bem como algo sub- centes em cada uma das ditas teorias,
Jetivo, não só por ter insistido na para não citar as diferenças funda-
idéia de que o bom de cada coisa é mentais no tocante à idéia da rela-
a conservação e a persistência em seu ção entre o ético e o religioso. Em
ser, mas também por ter escrito ex- todo caso, é difícil conciliar o cará-
pressamente (Etica, III prop. ix, es-
cólio) que “não nos esforçamos por
ter autônomo da ética kantiana com
o caráter heterônomo e às vezes teô-
fazer uma coisa que não queremos,
não apetecemos nem desejamos
nomoda ética tradicional.
Em segundo lugar, trata-se de sa-
qualquer coisa porque a considera- ber que entidades são as que se Jul-
mos boa; mas, ao contrário, julga- gam boas. As chamadas morais ma-
mos que uma coisa é boa porque ten- teriais consideram que o Bem somen-
demos para ela, porque a queremos, te pode encontrar-se incorporado em
a apetecemos e desejamos”. Muitas realidades concretas. É o que ocor-
das chamadas morais subjetivas, tan- re quando se diz que o bom é o agra-
to antigas quanto modernas, pode- dável, ou o conveniente, ou o hones-
riam adotar como lema a citada fra- to, ou o correto, ou o útil (para a v1-
se de Spinoza. Pelo contrário, outras da), etc. Cumpre advertir que os es-
filosofias destacam a independência colásticos não rechaçavam essa con-
do Bem com relação a nossas ape- dição do Bem quando consideravam
tências, mesmo quando reconhecem que o bom se divide, com uma divi-
que o Bem é apetecível: o platonis- são quase essencial — como a divi-
mo figura entre elas. É difícil, em ge- são do análogo em seus analogados
ral, dar exemplos de concepções ex- — em diversas regiões determinadas
tremas neste problema; muitas das pela razão de apetecibilidade, de mo-
doutrinas podem ser consideradas s1- do que se pode dizer do bom, com
multaneamente subjetivas e objJeti- efeito, que é útil, ou que é honesto,
vas. Finalmente, outras parecem es- ou que é agradável, etc. Mas, ao pas-
tar fora desse dilema. E o caso de so que entre os escolásticos isto era
Kant, pois por um lado a boa von- o resultado de uma divisão do Bem,
tade parece ser um querer e, por con- entre os partidários mais estritos das
seguinte, uma apetência; mas, por morais materiais o Bem se reduz a
outro lado, essa boa vontade, quan- uma ou várias de tais espécies de
do pura, é independente de toda ape- bens. As chamadas morais formais
tência e se rege unicamente por si! (especialmente a de Kant) insistem,
mesma. É curioso comprovar que em contrapartida, em que a redução
BEM 72

do Bem a um bem ou a um tipo de do como objeto da razão, da intui-


bens (em particular, de bens concre- ção ou da vontade. Estas três con-
tos) converte a moral em algo relati- cepções nem sempre são incompati-
vo e dependente. Há, deste ponto de veis entre si. Foram dados, com efei-
vista, tantas morais materiais quand- to, muitos exemplos de combinação
tos gêneros de bens mas, em com- entre a tese racionalista e a volunta-
pensação, existe somente uma moral rista, se bem que, quase sempre, se
formal. Contra 1sso argumentam as tratasse de subordinar uma à outra.
morais materiais que a moral pura- Assim, a tese de que o Bem é o ob-
mente formal é vazia e não pode for- jeto formal da vontade não exclui o
mular nenhuma lei que não seja uma uso da razão, e a tese de que o Bem
tautologia (ver IMPERATIVO). é apreendido mediante a razão não
8. Uma divisão menos importan- exclui que seja igualmente objeto da
te do Bem, quando considerado ma- vontade. Por outro lado, quando a
terial e moralmente, é à que os so- razão foi entendida como uma pos-
fistas introduziram e foi apresenta- sibilidade de apreensão direta da
da por Aristóteles na passagem já ci- mente, pôde-se conciliar o Bem co-
tada de Tópicos: o Bem pode ser na- mo objeto da razão e como objeto
tural ou convencional. Estima-se da intuição. Em compensação, ou-
usualmente que o Bem natural é uni- tro é o caso quando a intuição é en-
versal e inalterável, mas em princí- tendida como intuição emocional.
pio não está excluído que possa mu- Assim, as doutrinas morais de Bren-
dar. Os partidários da universalida- tano, Scheler, N. Hartmann e outros
de e inalterabilidade do Bem (como autores opuseram-se igualmente ao
OS estóicos) argumentam que sua na- racionalismo e ao voluntarismo dos
tureza é sempre a mesma; os defen- bens. Scheler, em especial, apresen-
sores da mudança (evolucionistas) tou esta concepção com extrema cla-
manifestam que o Bem está subme- reza e radicalismo ao insistir em que
tido ao mesmo desenvolvimento que há uma possibilidade de apreensão
a Natureza. O Bem, enquanto con- Iintuitivo-emocional das realidades
vencional, é sempre considerado re- que se qualificam de boas e más, e
lativo, pelo menos relativo a deter- que tal apreensão é a priori não obs-
minada sociedade, a certa classe so- tante referir-se a realidades “mate-
cial, etc. Não obstante, a concepção riais”, ou seja, concretas e não va-
do Bem (ou dos bens) desde o ponto zias.
de vista convencionalista nem sem- 10. Isto nos leva a um último pro-
pre é equivalente a um historicismo; blema: o já antes apontado [3] refe-
este último, com efeito, pode consi- rente ao tipo de realidade do Bem.
derar absolutos, dentro de cada pe- Como vimos, o Bem pode ser consi-
riodo, os bens correspondentes. derado como um ser, como a pro-
9. O Bem moral (e ocasionalmen- priedade de um ser ou como um va-
te o metafísico) pode ser considera- lor. O habitual nas ontologias cha-
73 BICONDICIONAL

madas clássicas é a primeira opinião, giúística; o realismo extremo o defi-


mesmo quando se reconheça que, ao ne como um absoluto metafísico.
se falar do ser como realidade, não Como o nominalismo extremo não
se enuncia dele o mesmo que quan- permite falar do Bem, e como o rea-
do se fala do ser como bondade. O lismo extremo torna impossível con-
mais comum nas ontologias moder- siderar bom a nada exceto o Bem en-
nas é a segunda opinião, a qual foi quanto tal, o plausível é adotar uma
levada às suas últimas consequências posição intermediária. Mas é inevi-
no que qualificamos de concepção tável adotar uma posição nesta con-
semântica: “bem” é, então, um ter- trovérsia. E, uma vez que qualquer
mo que pode substituir “bom” em posição na doutrina dos universais é
“x é bom”. Muito corrente em vá- o resultado ou de uma decisão pré-
rias éticas contemporâneas é a tercel- via ou de uma ontologia prévia, re-
ra opinião, para entender a qual sulta que a definição dada do Bem
cumpre ver o que indicamos no art1- — na medida em que se efetue no n1-
go sobre o valor. Segundo estas con- vel filosófico e se ponham entre pa-
cepções, o Bem é Irredutível ao ser, rênteses tanto as “crenças” quanto
mas cabe observar que neste tipo de
as conveniências — é essencialmen-
doutrina se fala do Bem, às vezes,
te o resultado de uma decisão ou de
como um dos valores morais e ou-
tras vezes como da preferência por uma ontologia. Isto não signica que
um qualquer valor positivo. tal decisão ou tal ontologia tenham
As análises anteriores não preten- de ser arbitrárias; significa que são
dem esgotar todos os problemas que primárias e que precedem na ordem
a noção de Bem suscita. Tampouco das razões a toda elucidação acerca
prentendem ressaltar todas as dificul- do Bem.
dades que cada uma das concepções
mencionadas oferece. Mas podemos BICONDICIONAL É o nome dado
perguntar se não há algumas supo- à conectiva binária (ou conector bi-
sições básicas das quais dependam as nário) “se e somente se”. O signo
principais teorias éticas. Pode-se res- que corresponde a esta conectiva é
ponder que há, e que são as suposi- “—”. Este signo está sendo cada vez
mais comum no lugar do clássico
ções correspondentes a uma doutri-
na dos universais. Com efeito, quais-
quer que sejam as teses admitidas,
6 = earazão disso é que “—”
3)

permite visualizar melhor a conecti-


haverá sempre que se aderir ou a va de referência em relação com o
uma concepção nominalista ou a signo ““—”*”, ou signo de condicio-
uma concepção realista ou a uma nal (ver); com efeito, as pontas de
concepção intermediária entre nomi- flecha em ambos os extremos da li-
nalismo e realismo do Bem ou dos nha indicam que o condicional é du-
bens. O nominalismo extremo do plo, ou seja, que é um bicondicional,
Bem o reduz a uma expressão lin- Já que se refere simultaneamente à
BOA VONTADE 74

variável da direita e da esquerda de A negação do bicondicional ex-


,
pressa-se mediante o símbolo
2
““&*.
C€

Assim,
BOA VONTADE A primeira das
PD
>A três seções em que Kant divide sua
se lê: Fundamentação da Metafísica dos
p se e somente se q. Costumes (Grundlegung zur Meta-
physik der Sitten) começa com estas
Exemplo de “poq” é: palavras: “Neste mundo, e também
Antônio é pai de João se e somen- fora dele, nada é possível pensar que
te se João é filho de Antônio. possa ser considerado como bom
sem restrições a não ser uma só col-
O bicondicional equivale a um par
de condicionais, de modo que: sa: uma boa vontade. *
A idéia de Kant de que a boa von-
(Dq) ((p>q)A(q—>p)) tade, como diz um pouco adiante,
“não é boa por aquilo que promove
Esta fórmula é uma das tautolo-
gias do cálculo sentencial (proposi- ou realiza, pela aptidão para alcan-
cional). A tautologia recebe igual- çar qualquer finalidade proposta,
mente o nome de “bicondicional”'. mas tão-somente pelo querer (allein
Ao bicondicional é dado com fre- durch das Wollen), isto é, em si mes-
quência o nome de ““equivalência ma”, suscitou muitos comentários.
(material)”', de modo que “—” Uns são de caráter exegético e têm
também se lê “é equivalente a”. por objetivo descobrir o verdadeiro
Além de “=”, ainda bastante sentido da expressão ““boa vontade”.
usado — por exemplo, em edições Outros são de caráter crítico e se pro-
anteriores da presente obra —, há poem mostrar que a doutrina kan-
outros sinais (hoje em desuso) para tiana da boa vontade é um exemplo
o bicondicional: “ e”,
“1”,
““&”” Na notação de Hilbert-Acker-
extremo de rigorismo moral, ou um
exemplo extremo de formalismo (mo-
mann, usa-se “—”*º. Na notação de ral), ou peca por uma insuficiente
Lukasiewicz, “—” é representado elucidação do significado de “bom”.
pela letra “E” anteposta às variá- Entre os primeiros figuram os co-
veis. Assim, “pq” se escreve “E
mentários de quem procurou uma
Pp
q. ,
Como se viu no artigo sobre as ta- explicação da doutrina kantiana co-
belas de verdade, a tabela para “ — ” meçando por averiguar em que me-
dá vês (verdades) quando ““p” é ver- dida a boa vontade se relaciona com
dadeiro e “q” é verdadeiro, e quan- os outros bens. A este respeito, ex-
do ““p” é falso e “q” é falso. Nos pôs-se sobretudo o problema de sa-
demais casos, ou seja, quando ““p” ber se outros bens não poderão ser
é verdadeiro e “q” é falso, e quan- também concebidos como bons sem
do ““p” é falso e “q” é verdadeiro limitação. Ora, acompanhando a in-
obtemos efes (falsidades). tenção de Kant, tais comentaristas
75 BOA VONTADE

mostraram que, enquanto os bens qualquer significação per se e, por


que não são a boa vontade depen- conseguinte, não se pode fundar uma
dem para a sua bondade de uma si- ética sobre a noção de boa vontade.
tuação determinada — o saber é bom Todas estas críticas podem reduzir-
se é usado para um bom fim, o pra- se a três: a fundada numa ética eu-
zer é bom se contribui para o valor demonista, a fundada numa ética
moral, etc. —, a boa vontade não de- axiológica e a fundada numa anál:-
pende de nenhuma situação determi- se semântica. As duas últimas eram
nada. Os defensores da posição de desconhecidas de Kant. A primeira,
Kant sublinharam que este não ne- em compensação, constitui o alvo
gou o fato de haver também outros principal contra o qual se dirige a éti-
bens valiosos, mas que, sendo sem- ca kantiana. Podemos considerar,
pre a situação um limite para eles, pois, as duas últimas como sendo as
não podem ser considerados como o únicas válidas hoje em dia. Para
sumo bem. rebatê-las desde um ponto de vista
Entre os segundos figuram os que, kantiano existem somente duas so-
como Scheler, tentaram demonstrar luções: mostrar que a ética de Kant
que sem os valores e sua hierarquia não é incompatível com uma ética
é incompreensível a noção de boa axiológica na qual a boa vontade te-
vontade, ou os que, como N. Hart- nha a função de um valor de santi-
mann, assinalaram que, não poden- dade, e mostrar que uma análise se-
do um valor ser abstraído de tendên- mântica do termo “bom” não diz
clas naturais ou ditado por um su- nada ainda sobre o fundamento das
Jeito volitivo, a boa vontade não pro- decisões morais. Como a maior parte
picia nenhuma ajuda nas decisões. das grandes questões morais, a que
Relacionada com estas críticas está aqui apresentamos é uma questão
a noção de que a boa vontade como aberta, e sua solução depende prin-
tal é vazia e pode, inclusive, dar ori- cipalmente das suposições básicas
gem a valores negativos. Contra 1s- que tenham sido adotadas. Para ad-
so argumentou-se que a noção kan- mitir a doutrina kantiana da boa
tiana de boa vontade não é equiva- vontade, cumpre aceitar, ao mesmo
lente à noção de boa intenção. Ou- tempo, a idéia de um sujeito moral
tros, como os utilitaristas, indicaram racional. Alguns autores mostraram-
que o termo “bom” só pode adqui- se propensos a aceitar esta idéia, mas
rir significação quando está vincula- tão-somente como uma idéia regula-
do a um sentimento de “prazer” no dora. Há que se ter presente, contu-
indivíduo que não seja incompatível do, que isto está contra o espírito de
com o da comunidade. Outros, co- Kant, que tratou as questões morais
mo os neopositivistas, proclamaram num sentido distinto daquele como
que o vocábulo “bom” não possui tratou as questões cognoscitivas.
C
C Para o uso da letra “C”* na lógica damento é tão remoto que foi quase
das classes, ver A. A letra “C” é usa- esquecido. Mas, ao prolongar qua-
da por Lukaslewicz para representar se indefinidamente suas meditações
a conectiva ““se... então” ou a con- e as meditações sobre as meditações,
dicional (ver) que simbolizamos por os cabalistas judeus desenvolvem
“CC” antepõe-se às fórmulas,
de modo que ““p— q” escreve-se na
muitos temas filosóficos ou, se qui-
serem, metafísico-especulativos.
notação de Lukasiewicz “C p q”. Na Cabala propriamente dita,
distinguem-se duas correntes: a con-
CABALA O termo “Cabala”, gab- templativa de Abraham Abu-lVAfi-
balah, significa em hebraico ““tradi- ya [nasc. em Zaragoza em 1240] e a
ção”. Designa-se com esse termo teosófica, exposta no chamado Zo-
uma série de especulações que é co- har (ou “Esplendor”*), presumivel-
mum considerar como parte da ““fi- mente redigido, ou refeito, por Moi!-
losofia judaica”. A Cabala surgiu no sés de León e publicado na Espanha
século XIII, na Espanha e na Pro- em fins do século XIII. Esta última
vença, como uma doutrina esotéri- corrente é a mais interessante do
ca, embora se reconheçam na Caba- ponto de vista filosófico especulati-
la elementos muito diversos; como vo. A doutrina exposta no Zohar —
indica Georges Vajda, a Cabala in- que contém um comentário ao Pen-
clui a meditação da Escritura e de to- tateuco — é em grande parte ema-
da a tradição oral, da liturgia, das natista (ver EMANAÇÃO). Deus é
superstições populares, etc. No de- considerado no Zohar uma realida-
correr dessas meditações chega-se a de “sem limites” (en sof), cujas ma-
interpretações sutis de textos, de le- nifestações ou atributos são os sefi-
tras, de anagramas, a interpretações roth.
dessas interpretações e dos textos, le- Entre os filósofos que se interes-
tras e anagramas que contêm, as-e
sim sucessivamente, até se alcançar
saram pelas tradições cabalísticas fi-
guram Pico della Mirandola, Jacob
um refinamento incrível que fez Bôhme, Johannes Reuchlin e Agrip-
identificar o cabalismo com uma arte pa de Nettesheis.
supersticiosa ou um cálculo supers-
ticioso, a fim de encontrar sentidos CÁLCULO O cálculo é definido na
textuais. Daí também o sentido or- lógica como um sistema de signos
dinário de “cabalas”* como reflexões não interpretados, diferentemente da
complexas e quase sempre desprovi!- linguagem (lógica), a qual se define
das de fundamento — ou cujo fun- como um sistema de signos interpre-
CALEMES 78

tados. O estudo do cálculo pertence quantificacional elementar, no qual


ao ramo da metalógica chamado sin- se quantificam somente as letras ar-
faxe. Os elementos com os quais se gumentos, e (b2) cálculo quantifica-
edifica um cálculo são os seguintes: cional superior, no qual se quantifi-
(1) Os sinais do cálculo, os quais cam também as letras predicados. Na
podem ser primitivos ou definidos. literatura lógica também se chamou
(2) As expressões ou fórmulas do a (bl) cálculo funcional e a (bl) e
cálculo. (b2), respectivamente, cálculo fun-
Entre estas expressões figuram: cional elementar e cálculo funcional
(3) As expressões bem formadas superior.
ou fórmulas bem formadas do cál- Observemos que (b1) é uma parte
culo obtidas através de regras de for- de (b2). A denominação usual de
mação. (b1) é cálculo quantificacional mo-
Entre as expressões bem formadas nádico de primeira ordem, de segun-
do cálculo figuram: da ordem, de terceira ordem e, em
(4) Os teoremas do cálculo. Um geral, de n ordem.
teorema de um cálculo é definido co- (c) O cálculo de identidade, cujos
mo a última fórmula bem formada sinais são os do cálculo quantifica-
de uma prova num determinado cál- cional mais o sinal de identidade
culo. Para definir em geral a noção (ver).
de teorema de um cálculo é necessá- (d) O cálculo de classes, cujos si-
rio introduzir as noções de axioma nais são as conectivas sentenciais, os
(ver). simbolos booleanos (ver CLASSE) e
Entre os conceitos fundamentais os simbolos de classes.
do cálculo estão os de consistência, (e) O cálculo de relações, cujos si-
completeza, decidibilidade e inde- nais são as conectivas sentenciais, os
pendência. O cálculo é o resultado simbolos booleanos e os símbolos de
da formalização de determinada par- relações.
te da lógica. Os cálculos que ali cos-
tumam apresentar-se são: CALEMES É o nome que designa
(a) O cálculo sentencial, cujos si- um dos modos válidos dos silogismos
nais são letras sentenciais, conectivas da quarta figura. Um exemplo de
e parênteses. Em parte da literatura Calemes pode ser:
lógica, este cáculo é edificado com Se. todas as nuvens são efêmeras
base em proposições e neste caso re-
e nenhuma coisa efêmera é
cebe o nome de cálculo proposi-
vulgar.
cional.
(b) O cálculo quantificacional, cu-
então nenhuma coisa vulgar é
uma nuvem.
jos sinais são letras sentenciais, letras
predicados, letras argumentos, co- exemplo que corresponde à seguinte
nectivas, parênteses e quantificado- lei da lógica quantificacional ele-
res. Este cálculo pode ser (b1) cálculo mentar:
79 CATEGORIA

(Ax(Hx—>Gx) À AX(Gx— Fx)) | CATEGORIA Aristóteles foi o pri-


— AX(Fx— Hx) | meiro a usar xatny0Eetra em sentido
técnico. Algumas vezes, ele conside-
e que, usando as letras ““S”, “P” e
rou as categorias como predicados
“M” dalógica tradicional, pode ser ou predicados de classes (An. Pr., L,
expressa mediante o seguinte esque- 41, b31; Top. 103, b20).
ma: No tratado sobre as categorias
(PaM A MeS) — SeP (Cat., I.l6a 15ess.), Aristóteles di-
vide as expressões em expressões sem
onde aparece claramente a sequên- enlace — como “homem”, “é ven-
cia das letras “A”, “E”, “E”, ori- cedor” — e expressões com enlace
gem do termo Calemes na ordem — como ““o homem corre”, “o ho-
PM-MS-SP. mem é vencedor”. As expressões sem
enlace não afirmam nem negam na-
CAMESTRES É o nome que desig- da por si mesmas, precisando para
Isso estar ligadas a outras expressões.
na um dos modos válidos dos silo-
gismos da segunda figura. Um exem- Mas as expressões sem enlace ou ter-
mos últimos e não analisáveis agru-
plo de Camestres pode ser:
pam-se em categorias, das quais
Se todos os estóicos são filósofos Aristóteles fornece várias listas. À
e nenhum jogador de futebol é mais conhecida é a apresentada em
filósofo Cat., IV 10 26ess., enumerando as
então nenhum jogador de futebol dez categorias seguintes: 1. Substân-
é estóico, cia, ovota, como “o homem” ou ““o
cavalo”; 2. Quantidade, nooóvr, co-
exemplo que corresponde à seguinte mo “duas ou três varas”; 3. Quali-
lei da lógica quantificacional ele- dade, rnovov, como ““branco”; 4. Re-
mentar: lação, como mteoós ti, como ““do-
bro”, “meio”, “maior”; 5. Lugar,
[AX (Hx — Gx) A Ax(Fx— | Gx)| Tov, como ““no Liceu”, “no merca-
— Ax(Fx— Hx) | do”; 6. Tempo ou data, noté, como
e que, usando as letras “S”, “P” e “ontem”; 7. Situação ou postura,
xetoba, como ““deitado””, ““senta-
“M” da lógica tradicional, pode ser do”; 8. Posse ou condição, êxewv,
expressa mediante o seguinte es- como “armado”; 9. Ação, mTtovelv,
quema: como ““corta””, “fala”; 10. Paixão,
(PaM A SeM)— SeP TaoxXeV, como ““cortado””. Outra
lista, também de dez categorias, mas
onde aparece claramente a sequên- na qual a expressão ovota é substi-
cia das letras “A”, “E”, “E”, ori- tuída por 7 éoTti, aparece em Top.,
gem do termo Camestres na ordem IX 103 b 23. E outra lista, de oito
PM-SM-SP. categorias (as antes mencionadas me-
CATEGORIA 80

nos situação e posse), é apresentada categorias expressam flexões ou ca-


em Phys., V 225 b 5-9. Isto parece sos do ser e podem, por conseguin-
dar a entender que Aristóteles não te, ser definidas como gêneros supre-
considerava a lista das categorias fi- mos das coisas, suprema rerum ge-
xada de uma vez para sempre e que, nera. É a opinião tradicional, a qual
em princípio, podia descobrir-se que é admitida não só pelos escolásticos
uma categoria era redutível a uma mas também por muitos historiado-
outra, mas alguns autores não admi- res modernos. (5) Qualquer interpre-
tem essa interpretação e supõem que tação dada à categorias deve levar
as categorias são e devem ser preci- em conta a evolução do pensamen-
samente as dez indicadas. to de Aristóteles a este respeito.
Mencionaremos a seguir vários Pode-se supor, com efeito, a existên-
problemas suscitados pela doutrina cia de uma evolução cujas etapas
aristotélica das categorias. principais e sucessivas estão expos-
O primeiro problema é o da natu- tas nos Tópicos, na Metafísica e nas
reza das categorias. Foram propos- Categorias.
tas várias interpretações, das quais É difícil decidir-se por uma das in-
mencionamos: (1) As categorias são terpretações anteriores. Em nosso
equivalentes a partes da oração e, entender, a interpretação semântica
portanto, devem ser interpretadas e a interpretação ontológica tradicio-
gramaticalmente. (2) As categorias nal são igualmente válidas, pois as
designam expressões ou termos sem categorias não são para Aristóteles
enlace que, como o próprio Aristó- somente termos sem enlace não ana-
teles assinala, significam a substân- lisáveis ulteriormente, mas também
cia, a quantidade, a qualidade, etc. diversos modos de falar do ser co-
Esta opinião (W. D. Ross) baseia-se mo substância, qualidade, quantida-
numa interpretação lingúística ou, de, etc., o que seria impossível se o
melhor dizendo, semântica das cate- ser não estivesse articulado de acor-
gorias e está firmemente alicerçada do com tais modos de predicação. Is-
em muito textos de Aristóteles. (3) to concorda com outras formas usa-
As categorias designam possíveis das por Aristóteles para tratar dos
grupos de respostas a certos tipos de problemas filosóficos: trata-se por
perguntas: “Que é x7”*, “Como é igual de falar do ser e de analisar os
x?2”*, “Onde está x?”, etc. Esta opi- modos como é possível falar acerca
nião também pode ser designada co- daquilo que é.
mo semântica, mas, como tem o In-.
conveniente de não explicar a dife-
O segundo problema
é o da rela-
ção entre a substância e as demais ca-
rença entre a substância e o resto das tegorias. Embora seja certo que se
categorias, deve ser completada in- pode responder ““Sócrates é uma
dicando que as categorias não só ex- substância” à pergunta “Que é Só-
pressam grupos de predicados mas crates?”*, sempre resulta que a cate-
também grupos de sujeitos. (4) As goria de substância é concebida co-
81 CATEGORIA

mo mais fundamental do que as ou- cedentes para a doutrina aristotéli-


tras, em virtude de conhecidos pres- ca. Considera-se usualmente que as
supostos filosóficos do Estagirita. mais importantes encontram-se em
Por outro lado, enquanto a substân- Platão, que considerou o ser, a igual-
cia se divide em substância primeira dade, a alteridade, o repouso e o mo-
e substância segunda, nas demais ca- vimento os gêneros supremos (O So-
tegorias não aparece tal divisão. fista, 254 B), e a igualdade e desr-
O terceiro problema é o do conhe- gualdade, o ser e não ser, o Ímpar e
cimento das categorias. Pode-se per- o par, a unidade e o número, pro-
guntar, com efeito, se o seu conhe- priedades comuns do ser (Teeteto,
cimento é empírico ou não. A solu- 185 A). Muitos autores, entretanto,
ção é intermédia: as categorias são negam-se a admitir que haja equiva-
obtidas mediante uma espécie de per- lência entre essas noções e as cate-
cepção intelectual, distinta da que gorias aristotélicas, ainda quando se-
descobre o princípio de não-contra- ja muito possível que a análise do Es-
dição, mas distinta também da que tagirita deva muito à platônica. Pa-
proporciona o conhecimento sen- rece provável que as noções de subs-
sível. tância, qualidade, modo e relação
Também há uma certa controvér- propostas pelos estóicos fossem uma
sia no que diz respeito ao número de derivação das categorias aristotéli-
categorias. Alguns discípulos afir- cas, mesmo quando esses filósofos as
mam que é indeterminado, ao passo consideravam formas de um único
que a postura tradicional — basea- gênero do ser, pois que todo ser t1-
da na lista de dez categorias — con-
sidera que é um número fixo inva-
e
nha para eles algo de comum, to-
da a forma podia ser compreendida
riável; contudo, nem sempre há ple- num gênero comum. Isto era conse-
no acordo entre eles sobre se as ca- quência da doutrina estóica da ma-
tegorias estão ou não sistematica- téria ou do corpo como princípio pri-
mente relacionadas entre si. meiro, doutrina que produzia gran-
O quarto problema é o já mencio- de assombro entre os neoplatônicos,
nado sobre o número de categorias. os quais não podiam conceber que
As soluções são: (a) Um número 1in- fosse primeiro o que é em potência,
determinado; (b) Um número deter- Invertendo-se assim a hierarquia do
minado. Esta última opinião, que é em potência e em ato. Em contrapar-
a tradicional, atém-se à lista de dez tida, é menos provável que a doutri-
categorias. Mas, por sua vez, esta na categorial dos neoplatônicos seja
opinião pode manifestar-se de dois suscetível de sobrepor-se à aristoté-
modos: (I) As categorias são derivá- Jica, ainda que o fato de terem criti-
veis sistematicamente; (II) As cate- cado a doutrina estóica e admitido
gorias não são deriváveis sistemati- tantos elementos aristotélicos em
camente. suas doutrinas possa permitir supor
Pode-se perguntar agora se há pre- que a relação entre Aristóteles e os
CATEGORIA 82

neoplatônicos tenha sido, a este res- Kant reconhece que o conceito de


peito, bastante grande. categoria provém de Aristóteles, mas
Seguindo em grande parte Platão, adverte que a enumeração aristoté-
Plotino admite como gêneros do ser lica das categorias é confusa. Além
OS seguintes: o ser, o movimento in- disso, Aristóteles inclui entre os con-
teligível, o repouso ou estabilidade, ceitos originários alguns conceitos
a identidade ou o mesmo e a diferen- derivados. Para remediar essas (e ou-
ça ou o outro. O Uno não está in- tras) deficiências, Kant fundamenta
cluído nos gêneros porque se situa
acima deles e constitui seu comum a sua tabela das categorias na tabela
das formas de juízo. A lógica — que
fundamento e princípio.
“não deu desde Aristóteles nem um
O problema das categorias foi tra- passo adiante nem um passo atrás”
tado pelos filósofos medievais como
doutrina dos que, a partir de Boécio, — proporciona um fundamento se-
chamaram-se praedicamenta. Estes guro para saber de uma vez por to-
eram também ““gêneros supremos das que categorias há e como se or-
das coisas”, suprema rerum genera. ganizam. As categorias correspon-
Os predicamentos — ou categorias dem a formas lógicas (do Juízo), mas
— distinguem-se, segundo o que não são essas formas.
Aristóteles já tinha dito, dos predi- O sistema kantiano das categorias
cáveis ou categoremas. compreende as categorias da quanti-
A mais importante doutrina mo- dade (unidade, pluralidade, totalida-
derna das categorias é a de Kant. Na de); as de qualidade (realidade, nega-
“Analítica transcendental”* da Crí ção, limitação); as de relação (substân-
tica da Razão Pura, Kant formulou cla e acidente; causalidade e dependên-
uma doutrina sistemática das catego- cia; comunidade e reciprocidade entre
rias. Estas são ““conceitos puros do agente e paciente); as de modalidade
entendimento” que, como escreve gpossibilidade-impossibilidade); exis-
Kant, “referem-se a priori aos obje- tência-não existência; necessidade-
tos da intuição em geral como fun-
contingência). Estas são as categorias
ções lógicas”. As categorias não são
originárias, em conjunto às quais cum-
para Kant gêneros das coisas. Não
são conceitos gerais nem formas ló- pre mencionar as derivadas, que Kant
gicas. Tampouco são ficções, concei- designou como predicáveis do enten-
tos-limites, etc. Não descrevem a rea- dimento puro em oposição aos predi-
lidade, mas tornam possível explicá- camentos. As categorias são constitu-
la. Assim, a categoria de causalida- tivas, ou seja, constituem o objeto do
de não descreve nenhuma relação conhecimento e permitem, portanto,
que possa haver entre as coisas tal um saber da Natureza e uma verifica-
como estas são em si mesmas; per- ção da verdade como verdade trans-
mite, porém, ligar certos fenômenos cendental. O problema das categorias
a outros, de tal modo que se possam como problema fundamental da crí-
formular leis universais e necessárias. tica da razão conduz ao problema
83 CATEGORIA

da verdade como questão fundamen- ções de possibilidade”. As categorias


tal da filosofia. A dedução transcen- não podem referir-se a coisas em si,
dental das categorias é “a explicação das quais nada podemos saber (ra-
do modo como conceitos a priori se cionalmente). São modos de ordenar
referem a objetos, e distingue-se da e conceituar os fenômenos.
dedução empírica, a qual indica a A noção de categorias, depois de
maneira como um conceito foi ad- Kant, especialmente entre os idealis-
quirido por meio da experiência e de tas alemães que descartaram a dis-
sua reflexão””. O sentido construti- tinção entre coisas em si e fenôme-
vo dos conceitos puros do entendi- nos, adquire de novo caráter meta-
mento tem sua Justificação em que físico. Assim ocorre com Fichte, He-
somente graças a eles pode o sujeito gel, Schopenhauer e Eduard von
transcendental pensar os objetos da Hartmann.
Natureza e concebê-la como uma Para Fichte, as categorias são ge-
unidade submetida a leis. Mas, ao radas pelo Eu no decorrer de sua
mesmo tempo, esse pensamento das “atividade”. São, portanto, concei-
intuições sensíveis por meio das ca- , tos que se referem a um “Absoluto”.
tegorias é possível porque há sujeito Hegel distingue entre formas do ser
transcendental, consciência unitária e formas do pensar. Ambas as for-
ou unidade transcendental da aper- mas (categorias) são “momentos”
cepção. do Absoluto, mas as categorias do
Além da supracitada tábua de ca- ser são especialmente importantes.
tegorias que figura na Crítica da Ra- Podemos considerar como catego-
zão Pura, Kant apresentou uma tá- rias o ser (qualidade, quantidade, me-
bua de categorias da vontade em re- dida), a essência (fundamento, fenô-
lação com as noções de bem e de mal meno, realidade) e o conceito (con-
na Crítica da Razão Prática. Esta tá- ceito subjetivo, conceito objetivo,
bua também foi construída com ba- idéia); trata-se, em todos os casos, de
se nas formas do juízo. Nesta tábua, formas de ser correlacionadas com
acrescenta Kant (K. p. V., 67) a l1- formas de pensar. Schopenhauer re-
berdade é considerada uma forma de duz as categorias kantianas à catego-
causalidade não submetida aos prin- ria única de causalidade, que é a úni-
cípios empíricos de sua determi- ca forma verdadeiramente a priori.
nação. Trendelenburg define as categorias
Até Kant, o conceito de categoria como conceitos que se originam na
tinha sido entendido de vários mo- reflexão sobre as formas do movi-
dos. As categorias podiam ser enten- mento, concebidas como fontes dos
didas como idéias gerais na mente, predicamentos. Mas, ao distinguir
gêneros supremos das coisas, estru- entre categorias reais e categorias
turas gerais linguísticas ou lógicas, modais (estas últimas originadas no
etc. Kant entende-as do ponto de vis- pensar), pretende estabelecer uma
ta transcendental ou como ““condi- ponte entre o objetivo e o ““subjeti-
84
CATEGORIA

vo”. Hermann Cohen admite que as neira de pensar o mundo como, além
categorias são condições do pensar, disso, o que o pensamento descobre
mas condições lógicas necessárias, de sobre a constituição última do real.
tal modo que, em última análise, não Os “elementos” parecem situados
se sabe realmente se pertencem ou também entre as categorias e os da-
não ao objeto. Tudo depende, com dos imediatos, entre o transcenden-
efeito, de que o momento constitu- tal e o fenomênico, mas a síntese,
tivo da categoria predomine sobre o que trabalha sobre os dois termos,
regularizador e de que, acima deles, tende a acentuar o momento primei-
predomine ainda a instância reflexi- ro sobre o segundo e, por conseguin-
va. Caminhos análogos para tenta- te, a devolver ao “elemento” o ca-
tivas de mediação e busca de um no- ráter predicamental que lhe faltava
vo fundamento ontológico podem em seu começo.
ser rastreados nas doutrinas catego- Os sistemas de categorias prolife-
riais, apenas fenomentistas e relativis- raram a partir das últimas décadas
tas na aparência, de Renouvier e Ha- do século passado e começos do
melin. Renouvier parte de um qua- atual. Segundo Paul Natorp, há três
dro de nove categorias (relação, nú- tipos de categorias básicas (Grund-
mero, posição, sucessão, qualidade, kategorien): (1) Categorias da moda-
porvir, causalidade, finalidade e per- lidade (repouso, movimento, possi-
sonalidade), a cada uma das quais bilidade, contradição, necessidade,
corresponde uma tese, uma antítese criação, etc.); (2) Categorias da re-
e uma síntese. O propósito deste qua- lação (quantidade, qualidade, ““figu-
dro não é tanto o de estabelecer o ração”, concentração, autoconserva-
conjunto das determinações pelas ção, etc.); (3) Categorias da invidi-
quais se rege o conhecimento, quan- duação (propriedade, quantificação,
to o de solucionar os dilemas meta- continuidade, espaço, tempo, etc.).
físicos capitais e fazer planar acima Estas categorias são “funções pro-
de todas as outras a categoria da pes- dutivas da constituição do ser”. Wil-
soa, que de forma do Juízo se con- liam James esboçou uma trama ca-
verte assim em suprema entidade me- tegorial baseada na relação como al-
tafísica. A tendência para o prima- go pertencente à própria coisa. As-
do da noção ontológica da categoria sim, de menor a maior “intimida-
afirma-se nos trabalhos posteriores de”, as relações ou categorias são:
de Renouvier, sobretudo ao reduzir estar com — simultaneidade e inter-
o quadro às categorias de relação, loó- valo temporal —, ser adjacente no
gicas, de posição e de personalida- espaço e distância — similaridade e
de. Hamelin concebe as categorias diferença —, atividade — mudança,
como ““elementos principais da re- tendência, resistência —, causalida-
presentação””, mas também se pro- de — sistema contínuo do eu. Hein-
põe mostrar como o conjunto das re- rich Meler apresenta uma tábua ca-
lações categoriais é não só uma ma- tegorial na qual se analisam sucessi-
85 CATEGORIA

vamente as categorias presentativas bito). Finalmente, temos as catego-


(da apreensão e da intuição), noéti- rias cosmológicas, que são: acaso,
cas (da compreensão e da quantida- evolução e continuidade. Estes siste-
de), abstrativas, objetivas e modais. mas categoriais entrelaçam-se, por
Peirce admite vários tipos de catego- vezes (como se vê, por exemplo, nas
rias. Antes de tudo, as categorias fe- noções de acaso, lei e continuidade
nomenológicas ou faneroscópicas, a que aparecem em diversos modos ca-
que Peirce chama Categoria Do Pri- tegoriais). Paul Weiss formulou uma
meiro, Categoria Do Segundo e Ca- teoria dos “modos de ser”* que po-
tegoria Do Terceiro. A Categoria Do de ser considerada uma teoria geral
Primeiro ou qualidade de sensibili- das categorias; segundo este autor,
dade é “a idéia do que é tal qual é, há os quatro modos seguintes: atua-
independentemente de qualquer ou- lidade, idealidade, existência e Deus.
tra coisa”. A Categoria Do Segun- Também B. Petronievich, S. Alexan-
do ou reação é ““a idéia do que é tal der e B. von Brandenstein apresen-
qual é, sendo Segundo a respeito de taram sistemas categoriais.
algum Primeiro, independentemen- Vários dos sistemas categoriais
te de qualquer outra coisa”. A Ca- recém-mencionados são de caráter
tegoria Do Terceiro é “a idéia do que “realista”. As categorias são, nesses
é tal qual é, sendo um Terceiro ou sistemas, modos de ser e não formas
meio entre um Segundo e um Primei- “subjetivas” (nem mesmo ““trans-
.ro” (The Collected Papers of Char- cendentais”*) impostas ao real, como
les Sanders Peirce, ed. por C. Harts- Ocorre nos sistemas categoriais de in-
horne e P. Weiss, vol. 6 p. 32). Es- clinação “idealista”* (por exemplo,
tas categorias também são chamadas nos da maioria de autores neokan-
Primeiridade (Firstness), Segundida- tianos). Tendência realista manifes-
de (Secondness) e Terceiridade tam igualmente vários autores a que
(Thirdness). A Primeiridade é o qua- passamos agora a nos referir.
le ou ser tal qual é. A Segundidade Um deles é Husserl] — pelo menos
é o fato. A Terceiridade é a lei. Tam- em uma fase do seu pensamento.
bém se pode dizer que a Primeirida- Husserl e muitos fenomenologistas
de é a originalidade; a Segundidade, admitem a possibilidade de intuições
a existência ou atualidade; a Tercei- categoriais. Pode-se distinguir, pois,
ridade, a continuidade. A articulação entre categorias como conteúdos da
em três camadas também se apresen- intuição. Um detalhado sistema ca-
ta, respectivamente, como sensibili- tegorial encontra-se em Whitehead.
dade, esforço e hábito. À par das ca- Esse filósofo admite quatro tipos de
tegorias faneroscópicas, há as ca- categorias: 1º As categorias do últi-
tegorias metafísicas. Estas podem
classificar-se em modos de ser (pos- a
mo, como criatividade, a multipli-
cidade e o uno. 2º As categorias de
sibilidade, atualidade, destino) e em existência, por sua vez subdivididas
modos de existência (acaso, lei, há- em olto espécies: (a) entidades atuais,
86
CAUSA

Ou seja, realidades finais ou res ve- acepções já se percebe — apenas va-


rae; (b) preensões ou fatos concre- gamente, é certo — um significado
tos da relacionabilidade; (c) nexos; que logo virá a ser considerado ca-
(d) formas objetivas; (e) objetos eter- racterístico da relação causal: o pas-
nos ou potenciais puros para a de- sar de algo a algo. Entretanto, S1g-
oO

terminação específica do fato; (É) nificado de “causa”, como foi en-


proposições ou potenciais impuros, tendido depois, não podia derivar
isto é, teorias; (g) multiplicidades ou somente dessas acepções jurídicas.
disjunções puras de entidades diver- Desde o momento .em que se em-
sas, e (h) contrastes ou modos de sin- pregou a noção de causa filosofica-
tese de entidades numa preensão. 3º mente, soube-se que não há apenas
As categorias de explicação, em nú- “imputação” a alguém (ou a algo)
mero de 27, que expressam, em últi- de alguma coisa, mas também, e em
ma instância, a constituição do real especial, produção de algo de acor-
sob a forma da relação entre as en- do com uma certa norma, ou o acon-
tidades atuais, os objetos eternos, as tecer algo segundo uma certa lei que
potencialidades, as preensões, os ne- rege todos os acontecimentos da
xos, as “sensibilidades” e a concre- mesma espécie, ou transmissão de
ção. 4º As obrigações categoriais, propriedades de uma coisa a outra
em nove tipos: a categoria de unida- segundo um certo princípio, ou to-
de subjetiva, de identidade objetiva, das essas coisas ao mesmo tempo.
de diversidade objetiva, de valoração Como se produziu a causa, logo se
conceitual, de reversão conceitual, de soube que a causa também era, ou
transmutação, de harmonia subjeti- podia ser, uma razão ou motivo da
va e de liberdade e determinação. produção do efeito. As idéias de cau-
sa, finalidade, princípio, fundamen-
CAUSA O termo grego attia, tra- to, razão, explicação e outras seme-
duzido por “causa”, teve originaria- lhantes relacionaram-se entre si com
mente um sentido Jurídico e signifi- muita frequência e ocasionalmente se
cou ““acusação”º ou “imputação”. confundiram. Além disso, ao tratar
Aitéw significa “acuso”; e alTIÃO- as questões relativas à causa e à ação
nau, “peço”. Supõem alguns auto- e efeito de causar algo — a causali-
res que o termo latino causa prove- dade — indicou-se não poucas vezes
nha do verbo caveo, ““defendo-me”, que coisas ou acontecimentos e até
“aparo o golpe”, “tomo precau- que princípio último podiam ser con-
ções” (contra alguém ou algo) e até siderados como propriamente cau-
“não confio” (em alguém). Parece, sas. Em todo caso, as noções de cau-
pois, que o vocábulo causa também sa, causalidade, relação causal, prin-
tem um prévio sentido Jurídico, em- cípio causal, etc. têm sido fundamen-
bora inverso ao grego: neste se su- tais na filosofia desde os seus pri-
blinha a imputação, ao passo que na- mórdios.
quele se destaca a defesa. Nestas Os pré-socráticos não analisaram
87 CAUSA

a fundo a idéia de causa — a primei- Aristóteles tratou o problema da


ra análise detalhada deve-se a Aristó- causa, de sua natureza e de suas es-
teles —, mas usaram esta idéia em pécies em várias partes de sua obra,
suas explicações da origem, princípio mas principalmente em Mert., A 3.983
e razão do mundo físico. Aristóteles b — 993 a 10; A, 2.1013 a 24 — 1014
observou (Mer., A. 3.983 be ss.) que a 25; e em Phys., Il, 3.194 b 29 ess.
os pré-socráticos fizeram uso de to- A mais célebre e influente doutrina
das as concepções da causalidade, aristotélica a respeito é a classificação
mas cada um deles o fez de um modo das causas em quatro tipos: a causa
parcial. Por exemplo, os pitagóricos eficiente, que é o princípio da mudan-
consideraram os números e as figu-
ras geométricas como causas. Mas
ça, v ox Ts uetraBoNhs; a causa
material, ou aquilo do qual algo sur-
eram somente causas formais — ou ge ou mediante o qual chega a ser, 70
melhor, modelos. Empédocles consi- êÉ 0U yiyveral; a causa formal, que
derou o Amor e à Discórdia (a União é a idéia ou o paradigma, 7ô eiôos xau
e a Separação) como causas, mas so- Tô Taoddiyua e é como a essência em
mente como causas eficientes. Ana- que ““é antes de ter sido”, 1ô 1u fv
xágoras fez do Nous uma causa, mas el va; a causa final ou o fim, 1ô Té
somente uma causa final. Os atomis- Dos, 1ô ob évexa, a realidade para a
tas consideraram que todos os acon- qual algo tende a ser. Há, pois, na
tecimentos se sucedem necessaria- produção de algo o concurso de vá-
mente e, com Isso, que há um princí- rias causas e não só de uma. Por ou-
pio de necessidade que é a universal:1- tro lado, as causas podem ser recípro-
dade do nexo causal. Dizer que nada Cas, xat AAúNNAWY ALTLA, COMO OCOr-
provém do nada equivale a dizer que re com a fadiga que é causa da boa
tudo tem uma causa — se bem que es- saúde e esta o é da fadiga, embora não
sa causa possa interpretar-se também
como uma razão. Platão considerou
do mesmo modo, pois “uma
a outra, princípio do movimento”.
é
fim e

igualmente que tudo quanto vem a ser Ora, ainda que todas as causas con-
tem uma causa, mas a primeira cau- corram para a produção de algo — a
sa não é puramente mecânica: é tam- produção do efeito — a causa final
bém inteligível. Platão já estabelece, parece ter certo predomínio, já que é
pois, uma distinção entre causas pri1- o “bem” da coisa, e a causa final
meiras, aiTtiaL Ou causas inteligíveis pode, como tal, ser considerada o
(as idéias), e causas segundas, aitiar bem por excelência. Quando Aristó-
devTépaL OU Causas sensíveis e eficien- teles afirma que “tudo o que ocor-
tes (as das realidades materiais e sen- re ocorre a partir de algo”, mav
síveis) (Timeu, 46 C). Além disso, su- TO VILYVOUEVOV VIVVETA... UTO TLVOS

bordinou as últimas às primeiras. As (Mer., O 8.1049 b 28), que “é mister


causas primeiras são modelos ou atra- que todo o movido se mova a partir
ções; não causam por sua ação, mas de algo”, &mav Tô xlvovnpnevov UTO
por sua perfeição. TIwOS AváyxN axivetobarl (Phys.,
88
CAUSA

VII, 1.241 b 24), ele sustenta, com “exemplarismo” agostiniano e bo-


efeito, não haver movimento sem naventuriano não se destaca por 1n-
causa, mas 1sso não equivale a afir- teiro a ação das chamadas ““causas
mar um determinismo de tipo mecãâ- segundas”? — as causas que se supõe
nico ou puramente eficiente. Por ou- operarem na Natureza e que são s!-
tro lado, ao afirmar que, quando multaneamente de tipo eficiente e f1-
Ocorre, ocorre por algo, Aristóteles nal. Estas causas são admitidas a par
refere-se explicitamente à noção de das causas primeiras, mas considera-
substância (Met., O 8.1049 b 57). Os se limitada a sua eficácia em virtude
pressupostos do pensamento causal de certa “insuficiência” ontológica
aristotélico e, em geral, do pensa- da Natureza. Causa, em sentido pró-
mento grego não são identificáveis, prio, é somente a Causa criadora, a
de maneira nenhuma, com os pres- qual opera segundo as rationes ae-
supostos do pensamento causal mo- ternae. Isto não significa que a Cau-
derno. Xavier Zubiri indicou que a sa criadora limita-se unicamente a
relação causa-efeito não é no pensa- organizar o real como um artífice ou
mento antigo mera relação. O que demiurgo. A Causa criadora extral
faz com que uma coisa tenha a pos- a realidade do nada, sem que caiba
sibilidade de produzir outras não é, indagar da “razão” de sua produ-
nesse pensamento, tanto o fato de ser ção. Cumpre observar que o termo
causa quanto o fato de ser substân- causa em Santo Agostinho (e possi-
cia. Ser substância significa ser prin- velmente também em São Boaventu-
cíipio das modificações, tanto das ra) é usado com frequência no mes-
próprias quanto das executadas so- mo sentido de “razão” ou “motivo”
bre outras substâncias. As quatro (como em causa... voluntatis Del).
causas aristotélicas podem ser con- No pensamento escolástico, e em
sideradas como os diversos modos especial no tomismo, foi objeto de
em que se manifestam as substâncias minuciosos estudos a doutrina aris-
enquanto substâncias. totélica sobre a natureza da causa e
Na esteira de Aristóteles, numero- as espécies desta. Um certo número
sos pensadores ocuparam-se da noção de afirmações de Santo Tomás são
de causa. Os estóicos desenvolveram paralelas às de Aristóteles. Assim,
uma complexa doutrina causal. por exemplo: Omne quod fit, habet
Muitos filósofos do final do mun- causam (S. Theol., I-II, q. LXXXV.
do antigo e da Idade Média trataram | sed contra); Omne quod movetur,
extensamente da noção de causa. ab alio movetur (ibid., 1. 2, 3). No
Destacaremos duas tendências. Por mesmo caso está a classificação dos
uma parte, o chamado ““exemplaris- tipos de causas (species causarum)
mo” agostiniano e bonaventuriano. em quatro: causa per modum mate-
Por outra parte, uma porção consi- riae; causa formalis; causa movens,
derável do pensamento escolástico, vel efficiens; causa finis (ver em |.
com destaque para o tomismo. No c. lect. 2e em Phys., IT lect. 10). A
89 CAUSA

causa é, para Santo Tomás, aquilo acima apontados e que podem ser
a que necessariamente se segue algu- claramente entendidos em seu enun-
ma coisa. Irata-se de um princípio, ciado são: causa adaequata, cau-
mas de um princípio de caráter po- sa inadaequata, causa essendi, cau-
sitivo que afeta a alguma coisa. À sa fiendi, causa cognoscendi, causa
causa distingue-se neste sentido do transiens, causa per se. Cada um dos
princípio em geral. O princípio é quatro tipos de causa foi, além dis-
aquilo de que algo procede (o prin- so, classificado pelos autores tomis-
cipiado) de um “modo qualquer”; tas. Assim, temos na causa eficien-
a causa é aquilo de que algo proce- te, entre outras, as seguintes espécies
de (o causado) de um modo especí- de causa: primeira e segunda; prin-
fico. Princípio e causa são ambos, de cipal e subordinada; unívoca e aná-
algum modo, ““princípios”, mas en- loga (ou ““equivoca””); essencial e aci-
quanto o primeiro o é segundo o in- dental; imanente e transitiva; imedia-
telecto, a segunda o é segundo a coi- ta, mediata, remota e última; total
sa (ou a realidade). Assim se estabe- e parcial; universal e particular.
lece a diferença entre a relação prin- Em geral, os filósofos antigos e
cipio-consequência e causa-efeito, de medievais foram propensos a cons!1-
importância tão fundamental no tra- derar a relação causa-efeito desde
tamento da noção de causa e que tem um ponto de vista predominante-
sido obliterada, às vezes, pelo racio- mente ontológico. Além disso, incl1-
nalismo extremado. A partir destas naram-se com frequência a conside-
definições, Santo Tomás — e diver- rar a noção de causa em estreita re-
sos autores tomistas — introduziram lação com a substância (ver). Isto
numerosas distinções, algumas ba- não significa que todos estes filóso-
seadas em Aristóteles e outras pró- fos estivessem de acordo. Dentro do
prias. Distinguiu-se entre causas pri- estoicismo e do cepticismo encontra-
meiras e causas segundas, como Pla- mos idéias sobre as causas em que se
tão já o fizera. Falou-se também das sublinham muito menos os aspectos
seguintes espécies de causa: causas ontológicos da relação causal. Por
constituintes (matéria e forma); cau- um lado, em vários pensadores me-
sas extrínsecas (eficiente, final, dievais encontram-se análises da no-
exemplar); causas intrínsecas (maté- ção de causa que são distintas tanto
ria e forma); causas acidentais; cau- da concepção ““exemplarista” quan-
sas cooperantes ou concomitantes to da tomista.
(concausas); causas instrumentais Durante o Renascimento, desper-
(subordinadas); causas ocasionais; tou-se o interesse pela noção de cau-
causas imediatas (que produzem di1- sa final, sobretudo entre autores que
reta e imediatamente o efeito). Ex- desenvolveram uma concepção do
pressões em que intervém o termo mundo de caráter “organológico” (J.
causa em outros sentidos distintos B. van Helmont, Agrippa de Nette-
(embora, às vezes, próximos) dos sheim). Em começos da época mo-
CAUSA 90

derna foi-se impondo cada vez mais cia”) e o de razão suficiente (que a
a noção de causa eficiente; dentro relação ““causa-efeito” expressa).
dessa noção impôs-se, ademais, a no- Contudo, a sua tese de que nada
ção de uma causa que, em vez de dar acontece sem razão suficiente não é
razão das próprias coisas, refere-se apenas um princípio causal, mas
a variações de estado e deslocamen- também um princípio lógico (simul-
tos no espaço de acordo com leis ma- taneamente lógico e ontológico).
tematicamente expressáveis. O exem- Com isso, os racionalistas depara-
plo mais destacado a respeito é Ga- ram-se com uma dificuldade. Para
lileu. A física moderna renuncia a ex- entender racionalmente o efeito, es-
plicar a “natureza ontológica” da te há de estar “incluído” na causa
mudança: fornece uma razão men- (se assim não ocorresse, haveria al-
surável do movimento. Para alguns go novo, que seria ininteligível).
autores, 1sso equivale a prescindir da Mas, se está “incluído” na causa,
noção de causa. não há realmente efeito. E verdade
A noção da natureza da causa e de que o princípio racionalista, causa
que realidades são propriamente cau- aequat effectum, ““a causa é igual ao
sas foi discutida de forma abundan- efeito” (literalmente: ““a causa está
te nos séculos XVII e XVIII. Duas no mesmo nível do efeito”), pode
grandes posições se defrontaram. interpretar-se da seguinte maneira:
Uma delas pode ser chamada ““racio- tem de haver uma completa corres-
nalista”*; seus mais conhecidos de- pondência entre a causa e o efeito (Já
fensores são Descartes (cf., por que de outro modo não se entende-
exemplo, Princ. Phil., II, 30, 36; III, ria como foi produzido o efeito).
43, 141 er al.), Spinoza (cf., por Mas, em última análise, o citado
exemplo, Eth., I vii, schol. 2) e Leib- princípio está subordinado ao de
niz (cf., por exemplo, Discours de causa sive ratio.
métaphysique, 19, 22 et al.). A ten- Malebranche e os ocasionalistas
dência mais acentuada entre os ra- viram-se obrigados a resolver o dua-
cionalistas foi a equiparação de lismo entre a substância pensante e
“causa” com ““razão”, segundo a a extensa estabelecida por Descartes,
fórmula causa sive ratio, “causa ou mediante a suposição de que as cau-
razão”. Isto fazia com que a relação sas, pelo menos as segundas, são
causa-efeito fosse muito parecida, se ocasiões e, portanto, só Deus pode
não idêntica, à relação princiípio-con- ser verdadeira causa eficiente.
sequência: se A é causa de B, À é As opiniões dos racionalistas e dos
princípio de B, e vice-versa. Este empiristas a respeito da causalidade
ponto de vista foi defendido de for- diferem abertamente. Em sua Philo-
ma consequente por Spinoza. Leib- sophia prima sive ontologia ($ 881),
niz distinguia entre o princípio de Wolff expressou a tese racionalista
não-contradição (expresso pela cita- afirmando que a causa é um princí-
da relação ““princiípio-consequên- pio (principium) e o causado é algo
91 CAUSA

principiado (principatum). A relação vismo e de grande parte do positivis-


de causa a efeito aparece, pois, co- mo. Kant aceitou a crítica de Hume
mo uma relação de razão a conse- da noção de causalidade — assim co-
quência de razão. Locke interessou- mo sua crítica da noção de substân-
se pela origem da noção de causa e cia. Essas críticas destroem os pres-
afirmou que ““causa” é ““o que pro- supostos dos racionalistas. Mas, se-
duz qualquer idéia simples ou com- gundo Kant, a ciência natural (a fi-
plexa”* (Essay, XXXVI, 1). Hume sica) não seria possível sem a supo-
considerou não haver razão nenhu- sição de que os fenômenos se sucedam
ma para supor que, dado o que se de acordo com uma estrita relação
chama “efeito”, tenha de haver uma da causa ao efeito. A causalidade
causa invariavelmente unida a ele. não se encontra, ou não pode encon-
Observamos sucessões de fenôme- trar-se, na própria realidade. Mas
nos: à noite segue-se o dia, ao dia a tampouco pode consistir, como pen-
noite, etc.; toda vez que se solta um sava Hume, numa ““crença” funda-
objeto, ele, cai no chão, etc. Em vis- da no “hábito”, visto que, neste ca-
ta da regularidade observada, con- so, as leis científicas não seriam
cluímos que certos fenômenos são “universais e necessárias”, como
causas e outros são efeitos. Entretan- postulava Kant. Para este, a causa
to, só podemos afirmar que um não está ““na realidade”, mas tam-
acontecimento se segue a outro. Não pouco está só “na mente (subjetiva-
podemos compreender que haja al- mente)”: “causa” é o nome de um
guma força ou poder por meio do dos conceitos do entendimento ou
qual opere a chamada ““causa””, e categorias (ver CATEGORIA). A
não podemos compreender que exis- causalidade não pode derivar-se em-
ta alguma conexão necessária entre piricamente, mas tampouco é uma
semelhante ““causa” e seu suposto pura idéia da razão; possui um ca-
“efeito”. As relações necessárias ráter sintético e, ao mesmo tempo,
dão-se somente entre relações de apriorístico. A categoria de causali-
idéias, não entre fatos. Os fatos só dade (causalidade e dependência;
se encontram relacionados de um causa e efeito) corresponde aos juí-
modo contingente. Assim, é certo zos de relação chamados ““hipotéti-
cos*”*. Mas não se trata do esquema
que os. fenômenos cuja sucessão re-
gular observamos estão “unidos”, “vazio” de um juízo condicional.
mas isto não quer dizer que estejam Tampouco é um princípio (ontoló-
“conectados”: conjoined, but never gico) auto-suficiente e cuja evidên-
connected (cf. Enquiry, VIL, 2). cia seja radical. A noção de causali-
A análise de Hume parecia desem- dade permanece assim inatacável,
bocar no cepticismo, se bem que Hu- pois sua aceitação não depende nem
me tenha proposto uma solução pa- de uma suposta evidência ontológi-
ra as “dúvidas cépticas”: é a solu- ca (que, aliás, é vazia de conteúdo),
ção que esteve na origem do induti- nem da demonstração empírica (a
92
CAUSA SUI

qual nunca chega a resultados univer- ferramenta. A causalidade não é o


sais e necessários). Evidentemente, a resultado de uma seqiiência de fenô-
causalidade neste sentido restringe-se menos naturais (como pensa o ho-
ao mundo fenomênico; não se pode mem de ciência), nem é uma cate-
dizer se afeta as coisas em s1, porque goria da razão (como afirmam al-
é impossível ter acesso a tais coisas. guns filósofos), nem é derivada da
Toda a “Analítica transcendental” observação por um sujeito dos atos
na Crítica da Razão Pura de Kant é voluntários (como propõem outros
fundamental para entender a crítica filósofos).
kantiana do racionalismo e do em-
pirismo. CAUSA SUI A expressão causa sul
Depois de Kant, foram abundan- parece ter sido introduzida na litera-
tes as doutrinas sobre a causalidade. tura filosófica medieval por intermé-
Os idealistas alemães voltaram a su- dio de traduções latinas de Al-Farabi
blinhar o caráter metafísico da cau- (cf. Rudolf Eucken, Ges. der phil.
sa, mas num sentido distinto do ra- Terminologie, 1879, reimpr. 1960, p.
cionalismo pré-kantiano. Schelling 68). Também foi indicado que se
aparentou a noção de causa com a de usou pela primeira vez no século XII,
fundamento absoluto. Na filosofia de por exemplo, por Alain de Lille (cf.
Hegel, a causa é apresentada como A. Guzzo-F. Barone, Enciclopedia
aquilo pelo qual um ser pode produ- filosofica italiana, 1, A-Eq, 1957,
zir-se a si mesmo (ver CAUSA SUI), s.v. “Causa sui”, p. 979, col. I). Al-
produzindo deste modo seu desenvol- berto Magno usou a expressão prin-
vimento ““nterno”. Para Schope- cipium sui. Em sua doutrina da Trin-
nhauer, causalidade é a única catego- dade, o Pai é descrito como princr-
ria originária e averigua a raiz quá- pium e não causa do Filho (Eucken,
drupla do princípio de razão suficien- op. cit., p. 91, nota 3). Causa sui foi
te numa forma que permite conservar empregada por Santo Tomás, Suá-
a causalidade como categoria em sen- rez e muitos autores escolásticos, as-
tido kantiano e, ao mesmo tempo, sim como por Descartes e, sobretu-
considerá-la como momento princi- do, Spinoza.
pal do Absoluto, da Vontade. John Originalmente, causa sui não se re-
Stuart Mill, representante da tese em- feria a Deus (Deus era, de preferên-
piricista, sustentava que a causa era cia, principium sul). Causa sul po-
uma soma de condições — positivas dia aplicar-se ao homem enquanto
e negativas — que constituíam um homem livre, significando deste mo-
“antecedente invariável”. do que ele se determinava a si mes-
Dewey tratou de averiguar de que mo, livremente. Dizia-se, porém, que
idéia fundamental deriva a idéia de nada é propriamente causa sul, pois
causalidade. Segundo esse autor, ela todo ente é enquanto tem uma ori-
deriva do modelo da ferramenta e gem distinta de si mesmo, isto é, en-
do trabalho que se executa com uma quanto é causado.
93 CÍNICOS

Deus foi apresentado como causa eque, usando as letras “S”, “P” e
sui por Descartes em sua prova (que “M” da lógica tradicional, pode ser
Kant chamou de ““ontológica”) da expressa mediante o seguinte esque-
existência de Deus. Spinoza começou . ma.
a sua Ética (I, def. 1) com uma defi-
(MeP A SaM)— SeP
nição do conceito de causa sui: “Por
causa de si mesmo entendo aquilo onde aparece claramente a sequên-
cuja essência envolve a existência; cia das letras “E”, “A”, “E”, ori-
ou, por outras palavras, aquilo cuja gem do termo Celarent na ordem
natureza não pode ser concebida se- MP-SM-SP.
não como existente.”* Pode-se dizer
que em Descartes e em Spinoza dá- CESARE É o nome que designa um
se uma definição positiva de causa dos modos válidos dos silogismos da
sui, diferentemente da definição es- segunda figura. Um exemplo de ce-
colástica medieval, que era mais ne- sare pode ser:
gativa, porquanto afirmava que um
ente é causa sui quando não tem cau- Se nenhum pedaço de ferro é
sa (exterior ao ente considerado). À branco
causa sui definida positivamente e todos os flocos de neve são
aplica-se em Descartes à substância, brancos,
mas, como a única substância que então nenhum floco de neve é um
cumpre com todas as condições re- pedaço de ferro,
queridas é a substância infinita, Deus exemplo que corresponde à seguinte
acaba por ser definido como causa lei da lógica quantificacional ele-
sui por excelência. O mesmo ocorre mentar:
em Hegel.

CELARENT É o nome que designa


(Ax(Hx—Gx) A Ax(Fx—
— Ax(Fx— Hx)
| Gx))
um dos modos válidos dos silogismos
da primeira figura. Um exemplo de
eque, usando as letras “S”, “P”“
“M” da lógica tradicional, pode ser
e
Celarent pode ser: expressa mediante o seguinte esque-
Se nenhum africano é europeu ma:
e todos os abissínios são (PeM A SaM) — SeP
africanos,
então nenhum abissínio é onde aparece claramente a sequên-
europeu, cia das letras “E”, “A”, “E”, ori-
gem do termo Cesare, na ordem
exemplo que corresponde a seguinte PM-SM-SP.
lei da lógica quantificacional ele-
mentar: CINICOS A chamada escola cínica
[AX(Gx— Hx) A A x(Fx— Gx)|] | recebe seu nome, segundo alguns au-
— Ax(EFx— | Hx) tores, do vocábulo “cão” QGrúwvr),
94
CÍRCULO

entendendo-se que os cínicos cons!- teria sido possível sem Sócrates, por-
deravam este qualificativo uma hon- quanto foi ele — como sua vida e sua
ra. Segundo Diógenes Laércio, isto morte — quem demonstrou que um
se deve ao fato de que Antístenes — ser humano não admite ser reduz!-
usualmente considerado o ““funda- do a “animal social”. Foi pela ad-
dor” da “escola” — dava suas au- miração suscitada pela independên-
las no Cinosarges, um ginásio situa- cia do modo de vida socrático que
do nas cercanias de Atenas. O sent!1- os cínicos chegaram a proclamar a
do pejorativo que a palavra adqui- máxima importância do indivíduo
riu muito posteriormente deve-se em isolado, ao passo que os convencio-
grande parte ao desprezo que os cíi- nalismos da sociedade nada mais são
nicos manifestavam pelas conven- — diziam — do que vestígios iner-
ções sociais, e em parte aos adversá- tes de um tempo passado, que qual-
rios da escola, sobretudo depois que quer indivíduo não deve ter em gran-
alguns de seus “membros” abando- de conta, já que carecem completa-
naram a característica ascética e 1n- mente de importância. Em linhas ge-
clinaram-se para o hedonismo. Mas, rais, cínicos consideravam com In-
Os
em geral, o cínico era tido como o diferença as coisas deste mundo.
homem para quem as coisas do mun- Mais do que uma filosofia, o cinis-
do eram indiferentes. mo consiste, sobretudo, numa for-
Discutiu-se muito sobre quem fo- ma de vida — aquilo a que Dióge-
ram os fundadores do cinismo. À nes Laércio chamava eévtagis Biouv —,
opinião tradicional é que existe uma um estilo de vida que surgiu num
linha contínua de transmissão do momento de crise do mundo antigo,
pensamento cínico que vai de Antiís- mundo ameaçador se se prestarem
tenes a Diógenes, e deste a seus dis- ouvidos aos temas clássicos das dia-
cípulos, tanto diretos como indire- tribes cínicas, mundo de exílios, es-
tos. Esta linha foi continuada, de cravatura e falta de liberdade. E é
acordo com a citada opinião tradi- para enfrentar essa crise que os cíni-
cional, pelos cínicos dos séculos III cos renunciam à ação e declaram que
e II a.C. Após uma certa interrup- o ideal é a passividade absoluta; mas
ção, o cinismo (sempre considerado como isso não é possível, o cínico de-
como a ““escola cínica”) ressurgiu em dica toda a sua energia numa única
fins do século I e durante o século direção: mostrar desprezo por tudo
II d.C. Outros discípulos, porém, O que seja convencional.
destacaram a importância de Dióge-
nes, considerando-o o autêntico fun- CÍRCULO Este termo pode ser em-
dador da escola, contestando aque- pregado em diversos contextos.
les que atribuíam a Crates de Tebas 1. Para designar, metaforicamen-
a iniciativa. te, uma forma básica, ou até a for-
Independentemente de quem tives- ma básica, de comportamento da
se fundado a escola cínica, isso não realidade em sentido metafísico. Diz-
95 CLARO E DISTINTO

se então que tal realidade opera de sição formulada de modos distintos.


modo circular. Exemplo disso é o 3. Fala-se de “circulo hermenêu-
processo de emanação (ver) e retor- tico”? em vários sentidos, e especial-
no à conversão do espiritual em al- mente nos dois seguintes. Por uma
guns autores neoplatônicos (Plotino parte, há um círculo hermenêutico —
e Proclo, principalmente) ou influí- aliás, “inevitável”* — na interpreta-
dos pelo neoplatonismo (João Esco- ção de um texto e, em geral, de to-
to Erígena). O ponto de partida e o da manifestação simbólica humana.
ponto de chegada coincidem, mani- Com efeito, uma parte do texto, ou
festando às vezes, como em Nicolau do ““sistema simbólico”, só pode
de Cusa, uma coincidentia opposito- entender-se se for referida ao todo,
rum. Também há em Hegel a idéia o qual confere significação à parte.
do círculo, embora o caráter tanto Mas a totalidade do texto, ou do
idealista quanto dinâmico-histórico “sistema simbólico”, também se en-
do sistema hegeliano represente uma tende em função das partes que o
idéia distinta da circularidade. Além constituem.
4. Usa-se “Círculo” em expressões
disso, esta última se acentua em He-
gel pela importância que adquire a que designam algum grupo de filóso-
circularidade de cada tríade. A filo- fos que, sem constituir formalmente
sofia hegeliana pode ser vista como uma escola no sentido tradicional, tra-
balham filosoficamente com base em
o exemplo mais perfeito do modo de
pressupostos comuns ou com Interes-
pensar designado por Hans Leise- ses comuns. São exemplos as expres-
gang como ““o círculo dos círculos”. sões “Circulo de Góttingen”, “Cir-
2. Nas expressões ““círculo na pro- culo de Varsóvia” e, a mais conhe-
va” (circulus in probando) e “circulo cida, “Circulo de Viena”.
vicioso” (circulus vitiosus). O círculo
na prova é um sofisma, uma falácia, CLARO E DISTINTO Os escolásti-
de que são exemplos o chamado cos consideravam que um conceito
“círculo vicioso” e a chamada ““pe- de objeto é claro quando permite dis-
tição de princípio” (petitio principil). tinguir o objeto de outros objetos.
O círculo na prova é um gênero de Um conceito claro pode ser distinto
sofisma, ou falácia (ver FALÁCIA), ou indistinto (um conceito indistin-
de que o círculo vicioso é uma espé- to também se chama ““confuso””).
cie. Por vezes, o círculo, vicioso é O conceito claro de um objeto é
identificado com a petição de prin- distinto quando permite distinguir o
cípio, mas quase sempre se faz uma objeto de outros por meio de deno-
distinção entre ambos: no círculo vi- minações intrínsecas, isto é, exibin-
cioso há duas proposições que se do as características ou notas que o
“demonstram” uma pela outra, € constituem. É indistinto ou confuso
vice-versa, enquanto na petição de quando a distinção se efetua extrin-
secamente.
princípio trata-se da mesma propo-
96
CLARO E DISTINTO

A questão da clareza (e distinção) só critérios lógicos ou critérios epis-


das idéias desempenha um papel fun- temológicos, mas também critérios
damental na filosofia cartesiana. À ontológicos. Isto se deve a que Des-
primeira das regras do método (Dis- cartes considera que a idéia é a proó-
curso, II) consiste em não admitir pria coisa enquanto é vista (direta-
nada a menos que se apresente tão mente intuída), de modo que a cla-
clara e tão distintamente ao espírito reza e a distinção nas idéias é, ao
que não haja ocasião de pô-lo em dú- mesmo tempo, a clareza e a distin-
vida (cf. também Meditações, II). ção nas coisas.
“As coisas que concebemos muito O problema que nos ocupa não foi
clara e distintamente — escreve Des- tão fundamental em outros filósofos
cartes — são todas elas verdadeiras” modernos quanto o foi para Descar-
(Med., IV). Nas Regras para a Dire- tes e Leibniz, mas a maior parte dos
ção do Espirito (III), Descartes fala pensadores dos séculos XVII e XVIII
de “intuição clara e evidente”. E nos tiveram-no, de algum modo, em con-
Princípios de Filosofia (1, 45), de ta. A clareza foi equiparada com
“conhecimento claro e distinto”. muita freqiência ao conhecimento
Nesta mesma passagem, o filósofo completo, adequado, direto, intuit!-
dá uma definição destes termos tão vo, etc. É o caso de Locke, que afir-
usados em sua obra: “Chamo claro ma que o espírito tem uma percep-
ao conhecimento que se encontra ção completa e evidente das idéias
presente e manifesto num espírito claras, sendo as idéias distintas aque-
atento, assim como afirmamos que las em que o espírito percebe uma di1-
vemos claramente os objetos quan- ferença relativamente a qualquer ou-
do, achando-se presentes a nossos tra idéia. Spinoza falava sobretudo
olhos, obram assaz fortemente sobre de idéias adequadas (ver ADEQUA-
eles, e enquanto estes estão dispos- DO) e idéias mutiladas ou confusas
tos a olhá-los. Chamo distinto ao co- (Etica, III, prop. I, dem.). Também
nhecimento que é tão preciso e dife- afirmava que o espírito pode ter
rente de todos os demais que não idéias confusas (ibid., prop. IX). Em
abrange em si senão o que se apre- seu escrito Meditationes de cognitio-
senta manifestamente a quem cons!- ne, veritate et ideis, de 1684 (Ger-
dera tal conhecimento como é devil- hardt, IV. 422-26), Leibniz indica
do.”* Embora fundamentada em que o conhecimento pode ser obscu-
concepções escolásticas, a doutrina ro ou claro. As idéias claras podem
de Descartes não coincide com elas ser indistintas ou distintas; as idéias
a tal respeito. Por isso admite Des- distintas, adequadas ou inadequa-
cartes (Princ. Fil., 1, 46) que um co- das, simbólicas ou intuitivas. O co-
nhecimento pode ser claro sem ser nhecimento perfeito é o que é ao:
distinto, mas não o inverso. Pode- mesmo tempo adequado e intuitivo.
se observar que os critérios de clare- Escreve Leibniz: “O conhecimento
za e distinção em Descartes são não é claro quando é suficiente para
97 CLARO E DISTINTO

permitir-me reconhecer as coisas re- possuíam; (2) a da idéia radicalmente


presentadas.” nova e absolutamente simples, cap-
Não obstante as diferenças entre tada por intuição. A primeira espé-
OS autores acima mencionados, to- cie de clareza não oferece dúvidas;
dos parecem propensos a considerar a inteligência move-se num terreno
a clareza como uma espécie de trans- familiar e passa do menos conheci-
parência e a distinção como uma do ao mais conhecido. A segunda es-
“precisão” (no sentido etimológico pécie de clareza é negada com muita
de “preciso”, isto é, “separado””). frequência; como a dita idéia nova
Outros autores, em contrapartida, é simples e não pode decompor-se
trataram de abordar o problema da em outras, parece à primeira vista in-
clareza de outros modos. Leia-se, compreensível. No entanto, disse
por exemplo, o que Kant escreveu no Bergson, assim que a adotamos pro-
prefácio da 1º edição da Crítica da visoriamente e a “aplicamos” a ter-
Razão Pura: “No tocante à clareza, ritórios distintos dos do conhecimen-
o leitor tem o direito de pedir, sobre- to, descobrimos que tal idéia, ela
tudo, clareza discursiva (lógica) por própria obscura, serve para dissipar
meio de conceitos, e, segundo, cla- obscuridades. Cumpre distinguir,
reza intuitiva (estética) por meio de pois, entre idéias que são luminosas
exemplos 1ilustrativos.”* Aqui, Kant em si mesmas e idéias que iluminam.
usa o termo ““clareza”* como uma A cada espécie de idéia corresponde
forma de compreensibilidade ou coe- uma espécie de clareza: a “interna”
rência. e a “irradiante”, respectivamente. A
A filosofia contemporânea mostra observação de Bergson levanta um
um renovado interesse pela questão problema. Com efeito, as idéias que
da clareza. Os analíticos destacam a não são claras em si mesmas, mas
importância da clareza dos Juízos so- iluminam o pensamento, podem ser
bre a dos conceitos; pretendem acla- interpretadas de vários modos: (a)
rar o significado das expressões lin- como idéias que penetram ““no fun-
gúísticas. Segundo Wittgenstein (Trac- do do real”, ou (b) como idéias que
tatus, 4, 116), “tudo quanto pode ser regulam o nosso conhecimento do
pensado de algum modo, pode ser real, ou (c) como idéias que carecem
pensado claramente”. Esse princípio de toda significação por não poder
é aceito por numerosos pensadores, ser comprovada a sua verdade no
analíticos e linguistas, inclusive por real. A cada uma destas concepções
quem se opõe radicalmente ao
““pri- corresponde uma filosofia distinta.
meiro Wittgenstein”. A concepção de Bergson oscila pro-
Para Bergson (La pensée et le vavelmente entre (a) e (b); Bergson
mouvant, 1934, pp. 31-32), há duas não se atreveu a assimilar que tais
espécies de clareza: (1) a da idéia que idéias são algo mais do que regula-
nos apresenta, dipostas numa nova doras, mas o resto de sua filosofia
ordem, idéias elementares que Já se permite interpretá-las como intuições
98
CLASSE

que propiciam a descoberta do cer- mediante uma função predicativa.


ne da realidade. Daí que a totalidade das classes às
quais se pode dizer significativamen-
CLASSE Definiu-se classe, por ve- te que um dado termo pertence ou
zes, como uma série, grupo, coleção, não é uma totalidade legítima, em-
agregado ou conjunto de entidades bora a totalidade de funções às quais
(chamadas membros) que possuem, se pode dizer significativamente que
pelo menos, uma característica co- pertence ou não um dado termo não
mum. Exemplos de classe podem ser: seja uma totalidade legítima. As clas-
a classe dos homens, a classe de ob- ses às quais um termo dado, a, per-
jetos cuja temperatura em estado só- tence ou não pertence são as classes
lido é inferior a 10ºC, a classe das definidas por funções a; há também
palavras que começam com a letra as classes definidas por funções pre-
“ce” nesta página, etc. dicativas a. Chamar-lhes-emos clas-
Boole (1815-1864) estabeleceu em ses a. Então as classes a formam uma
1854 um cálculo lógico de classes ba- totalidade legítima, derivada da das
seado nas leis a que estão submeti!- funções predicativas a.”
dos os símbolos que representam Para se aceitar a definição anterior
“colsas”, tais como “todos os x” ou é necessário, porém, indicar as con-
“a classe x”. dições que um símbolo deve cumprir
Em 1890, Ernst Schróder (1841- a fim de operar ou servir como clas-
1902) também desenvolveu o cálcu- se. Essas condições são as seguintes:
lo de classes com base nas investiga- (1) Toda função proposicional deve
ções de Boole e de outros autores. O determinar uma classe que pode ser
cálculo de classes apresentado nos considerada como a coleção de to-
tratados lógicos posteriores recebe dos os argumentos que satisfazem à
por Isso, com frequência, o nome de função em questão. (2) Duas funções
álgebra de Boole-Schróder (embora proposionais formalmente equiva-
o nome de Augustus de Morgan tam- lentes devem determinar a mesma
bém devesse ser acrescentado aos classe, e duas que não são formal-
deles). mente equivalentes devem determi1-
Nos Principia Mathematica (LI. Int. nar classes diferentes. A classe fica
Cap. 111 e Parte [, Sec. C, 20), de determinada, pois, pela qualidade de
Whitehead-Russell, a noção de clas- membro (ou fato de pertença). Inver-
se é apresentada da seguinte manei- samente, duas funções proposicio-
ra: “Em virtude do axioma de redu- nais que determinem a mesma clas-.
tibilidade — escrevem estes autores se devem ser equivalentes, do ponto
— , Se q z é qualquer função, há uma de vista formal. (3) É necessário po-
função predicativa formalmente der definir não só classes, mas tam-
equivalente y ! z; então a classe 2 (vy bém classes de classes. (4) Em todos
z) é idêntica à classe 2 (V ! 2), de mo- OS casos deve carecer de significação
do que cada classe pode ser definida (o que não equivale a ser falso) su-
99 CLASSE

por que uma classe é membro de si observaremos que colérico”* po-


““é
mesma e não é membro de si mesma de ser lido de dois modos: (1) “tem
(ver PARADOXO). (5) Deve ser a propriedade de ser colérico”; (2)
possível — se bem que muito difícil “é um membro da classe das entida-
— formular proposições sobre todas des coléricas*”* ou ““pertence à classe
as classes compostas de objetos de das entidades coléricas”*. No primei-
qualquer tipo lógico. Esta última ro caso, o enunciado em questão po-
condição tem sido muito discutida na de expressar-se mediante “Fx”, on-
lógica contemporânea, sobretudo na de “F” é uma letra predicado que
medida em que se pôs em dúvida a se lê “é colérico””. No segundo ca-
validade do princípio russelliano de so, o enunciado em questão pode
redutibilidade. expressar-se mediante:
As classes são consideradas por xXEA
Whitehead e Russell como ““ficções
onde ““€” (abreviatura de eo7é pro-
lógicas” e “símbolos incompletos”.
Escrevem eles: “A seguinte teoria posta por Peano) lê-se “é um mem-
bro da classe” e “A” é uma letra que
das classes, embora proporcione
representa uma classe (no exemplo
uma notação para representá-las, em questão, a classe das entidades
evita a suposição de que haja coisas coléricas). A expressão “x € A” é
que possam chamar-se classes... Os empregada para substituir um abs-
simbolos incompletos que ocupam o trato ou nome de classe. Na lógica
lugar das classes servem para propor- das classes, os abstratos designam,
cionar tecnicamente algo idêntico no com efeito, as classes de todas as en-
caso de duas funções que possuem tidades que têm certas propriedades.
a mesma extensão: sem algo que re- A expressão:
presente classes não podemos, por X Fx
exemplo, contar as combinações que
podem ser formadas com base numa é um abstrato, que se lê “a classe de
série dada de objetos.” todos os x tais, que Fx”. O signo
Alongamo-nos sobre as definições “ A” sobreposto a “x” recebe o no-
e precisões anteriores por serem con- me de “capuz”; por isso “x” é cha-
sideradas a base, já tradicional, em mado ““letra encapuzada”'. O enun-
ciado ““Oscar é colérico”', lido, no
que se apóiam as investigações pos- sentido mencionado em (2), como
teriores acerca da noção de classe.
Ora, a lógica contemporânea cons1- Oscar € colérico
dera que várias das formulações an-
será, pois, igual a:
teriores pecam por falta de rigor.
Passaremos a expor os traços funda- Oscar € X(x é colérico)
mentais da atual lógica das classes.
Se considerarmos o enunciado:
quer dizer:
Oscar é um membro da classe de
Oscar é colérico, todos os x tais que x é colérico. De
100
CLASSE

um modo geral, usam-se na lógica tensão do predicativo ““P” é a pro-


das classes expressões tais como: priedade P; sua extensão é a classe
correspondente. “Intensão” e “pro-
yEeÍ%Fx priedade” são aqui usadas em senti-
x € Z Ow, do objetivo e não mental. Por seu la-
etc., do, Quine assinala que classe e atri-
buto são entidades abstratas, desig-
mas, com o intuito de evitar as com- nadas ambas por termos abstratos.
plexidades dessas notações, prefe-
As noções fundamentais de refe-
rem-se abreviaturas tals como: rência são a de complemento, a de
xE€E A, inclusão, a de identidade, a de soma,
xE€ED, a de produto, a de classe universal
etc. e a de classe nula. Exceto as duas úl-
timas, as demais foram apresentadas
As letras “A”, “B”, “C”, etc. são
e definidas nos artigos corresponden-
empregadas, portanto, para expres-
tes (ver COMPLEMENTO).
sar ““a classe 4”, “a classe B”', “a A classe universal é a classe de to-
classe C”', etc. Observemos que al-
dos os membros do universo do dis-
guns autores preferem as minúscu- curso. Esta classe é simbolizada por
las latinas cursivas “a”, “Bb”, “e”; “VV” (alguns autores usam “1). À
outros, as letras “K”, “L”, etc.; classe universal é definida do seguin-
ainda outros, finalmente (como Whi- te modo:
tehead e Russell), as minúsculos gre-
gas EQ”, “8”, etc. V=def. X(xX=x)
A noção de classe foi confundida
às vezes com as noções de agregado
onde ““x =x” é satisfeito por tudo.
A classe nula (também chamada
ou de todo. Deve-se evitar essa con- vazia) é a classe à qual não pertence
fusão, pois do contrário corre-se o nenhum membro do universo do dis-
risco de equiparar uma entidade con-
curso. Esta classe é simbolizada por
creta com uma entidade abstrata. As “A” (alguns autores usam “O”). A
classes são entidades abstratas, mes- classe nula é definida do seguinte
mo quando os membros de que se modo:
compõem são entidades concretas.
Também se equiparou a noção de A =def. X(x x),
classe com a de propriedade. Esta úl-
tima equiparação tem maior funda-
onde
nada.
“xx” não é satisfeito por

mento. Como disse Carnap, duas A representação gráfica das clas-


classes — correspondentes a dois ses (muito usada para comprovar à
predicativos, por exemplo, “P” e validade ou não validade dos silogis-
“Q” são idênticas se têm os mesmos mos a que nos referimos no artigo
elementos, ou seja, se “P” e “Q” VENN [DIAGRAMA DE)) baseia-
são logicamente equivalentes. A in- se no diagrama:
101 COERÊNCIA

o
A e B; a área marcada com um X re-
presenta a classe de todas as entida-
des que pertencem simultaneamente
aÃeabB.O diagrama:

no qual se representa graficamente


a classe A. O diagrama:

o
A

mostra o complemento À de A; a
área na qual está À representa a clas-
se de todos os membros que não per-
tencem a A. O diagrama:

numa classe, B; todos os membros


de À são, pois, membros de BB. O
diagrama:

representa a identidade de duas clas-


ses, A e B; os membros da classe A
são os mesmos da classe B e vice-
versa.

representa a soma de duas classes, A COERÊNCIA Diz-se que duas ou


e B; há, pois, uma classe composta
de todas as entidades que pertencem
mais coisas são coerentes quando
es-
tão relacionadas entre si e, em espe-
a A ou a B, ou às duas. O diagrama: cial, quando estão relacionadas en-
tre si de acordo com algum padrão
ou modelo. É fregiiente considerar
que as coisas coerentes são compa-
tíveis. De um modo mais particular,
fala-se de coerência de proposições.
Duas ou mais proposições são coe-
rentes quando são compatíveis. A
compatibilidade pode ter diversos
representa o produto de duas classes, fundamentos; fala-se, por exemplo,
COERÊNCIA 102

de coerência lógica, que equivale à procede à verificação. Nas vertentes


consistência de coerência sistemáti- da filosofia da ciência, onde se acen-
ca, de coerência ordenada, etc. Em tua ao máximo o caráter “impreg-
geral, a coerência expressa conformi- nado de teoria” dos termos observa-
dade de proposições ou enunciados cionais, é compreensível que se ten-
a uma regra ou a um critério. da para uma teoria da verdade co-
Usa-se o termo ““coerência”, espe- mo coerência. Isto parece aproximar
cificamente, para falar da ““teoria da tais vertentes do positivismo lógico,
verdade como coerência”, a qual se mas os resultados obtidos em cada
distingue da teoria da verdade como caso têm fontes distintas e até opos-
correspondência. Na teoria da ver- tas; o contraste de teorias com ou-
dade como coerência — a qual po- tras teorias dentro de um complexo
deria também chamar-se ““teoria coe- de teorias alternativas, típico de di-
rencial da verdade” —, uma propo- tas vertentes da filosofia da ciência,
sição é verdadeira ou falsa segundo é muito distinto dos procedimentos
for ou não compatível com um da- de verificação e contraste que são ca-
do sistema de proposições. A teoria racterísticos dos positivistas lógicos.
coerencial da verdade foi desenvol- Embora haja elementos comuns
vida por duas vertentes filosóficas na noção de coerência dentro de to-
muito distintas: por um lado, por vá- das as teorias da verdade como coe-
rias tendências idealistas (entre as rência, e embora todas elas sejam
quais se destaca a de Bradley), e, por suscetíveis do mesmo tipo de obje-
outro, por diversos positivistas lógi- ções — tais como, por exemplo, a
cos. Classicamente, os autores mo- impossibilidade de demonstrar a teo-
dernos racionalistas tenderam para ria da verdade como coerência ten-
a teoria da verdade como coerência, do por base a coerência das propo-
ao contrário dos empiristas, que se sições dentro de um sistema —, cum-
inclinaram mais para a teoria da ver- pre distinguir entre cada uma dessas
dade como correspondência (do teorias e as outras sob vários aspec-
enunciado com a coisa). Os idealis- tos importantes; assim, a teoria da
tas defensores da teoria da verdade verdade como coerência no raciona-
como coerência mostraram-se favo- lismo clássico (Leibniz) é distinta em
ráveis a uma doutrina das relações pontos importantes da mesma teoria
como relações internas. Esta era uma entre os idealistas (e, nestes, entre
doutrina principal, senão exclusiva- Hegel e Bradley), e da mesma entre
mente metafísica. Não ocorre neces- os positivistas lógicos e alguns dos
sariamente o mesmo com os aludi- mais recentes filósofos da ciência.
dos positivistas lógicos; neles, a teo- Nicholas Rescher indica haver
ria coerencial da verdade é conse- duas alternativas para explicar a ver-
quência de suposições metodológicas dade proposicional: a via “definicio-
a respeito dos modos como, dentro nal”* — definição da verdade ou do
de um sistema de proposições, se predicado ““é verdadeiro” — e a via
103 COGITO, ERGO SUM

“criterial”* (ou ““criteriológica”) — pressão Cogito, ergo sum, e com Íre-


especificação de condições para de- qiência sob o simples termo Cogr-
terminar se se pode aplicar ““é ver- to, é uma das teses centrais de Des-
dadeiro” a uma proposição qual- cartes. No Discurso do Método (IV;
quer, p (The Coherence Theory of A.T. VI 32), escreveu ele: “E notan-
Truth, 1973, p. 1). É frequente con- do que esta verdade: penso, logo
fundir estas duas vias, o que é causa existo [Je pense, donc Je suis; no tex-
de equívocos ou de conclusões pre- to latino: Ego cogito, ergo sum sive
cipitadas. Por exemplo, manter a existo], era tão firme e tão certa que
teoria coerencial da verdade como todas as mais extravagantes suposi-
definição e, ao mesmo tempo, como ções dos cépticos não seriam capa-
critério leva a supor que a teoria da zes de a abalar, julguei que podia
coerência é incompatível com (ou ex- aceitá-la, sem escrúpulo, como o pri-
clui) a teoria da correspondência. meiro princípio da filosofia que pro-
Não existe, porém, semelhante in- curava.”* Nas Meditações Metafísi-
compatibilidade ou necessidade de cas (II, A.T. VII 25), conclui: “De
exclusão (op. cit., pp. 27 ess.). Em sorte que, após ter pensado bastan-
geral, e sempre segundo o citado au- te nisso e de ter examinado cuidado-
tor, é conveniente ater-se ao critério samente todas as coisas, cumpre con-
de verdade; mantém-se a distinção cluir, enfim, e ter por constante, que
ou, em todo caso, cumpre distinguir esta proposição, eu sou, eu existo, é
entre o problema do critério e o da necessariamente verdadeira todas as
definição. A chamada ““teoria da vezes que a enuncio ou que a conce-
verdade como coerência” tem sido, bo em meu espírito.”* E, nos Princt-
a rigor, entendida de três modos; co- pios da Filosofia (1A.T. VIII),
7;
mo doutrina metafísica a respeito da indica Descartes que, “não obstan-
natureza da realidade, como defin!- te todas as suposições mais extrava-
ção da verdade e como critério da gantes, não poderíamos deixar de
verdade (op. cit., p. 23). Convém crer que esta conclusão: Eu penso,
distinguir entre estes três modos
evidentemente, não confundir qual-
e, logo eu existo, não seja verdadeira
e, por conseguinte, a primeira e mais
quer dos dois últimos com o primei- certa que se apresenta a quem con-
ro, levando ainda em conta que a ba- duz ordenadamente seus pensamen-
se da teoria da coerência é a idéia de tos.”
sistema (op. cit., p. 31) e que, em úl- Na época de Descartes — como
tima instância, pode pressupor-se o foi investigado por E. Gilson e L.
caráter “sistemático” da realidade e Blanchet, a quem sigo em grande
sua expressão numa teoria coeren- parte a este respeito — chamaram a
cial. atenção do filósofo para o fato de
que a proposição em questão tinha
COGITO, ERGO SUM A proposi1- numerosos antecedentes. Na época
ção usualmente conhecida sob a ex- atual, chegou-se inclusive a falar de
104
COGITO, ERGO SUM

uma possível fonte aristotélica do mo exórdio para a prova da existên-


Cogito; Émile Bréhier, Egon Braun, cia de Deus, se nós próprios existi-
Rodolfo Mondolfo e Pierre-Maxime mos, ele responde: “An tu fortasse
Schuhl! referiram-se a vários textos de metuis, ne in hac interrogatione fal-
Aristóteles (por exemplo: De sensu, laris, cum utique si non esses, falli
VII 488 a 25 e Phys., VIIT 3,254 a omnino non posses” (É se porven-
22) onde o Estagirita mantém que a tura recelas enganar-te nessa pergun-
autopercepção é acompanhada do ta? Mas se tu não existisses, não po-
conhecimento da própria existência, derias de maneira nenhuma enganar-
e que a opinião (eleática) de que o te). Como indica Gilson, Arnauld
movimento não existe implica uma aproximou este texto de um que se
opinião — e, por conseguinte, um encontra nas Meditações Metafísicas
movimento — que existe. Entretan- (II, A.T. VII 25) sobre o problema
to, os próprios historiadores citados da distinção entre a alma e o corpo.
(talvez com a exceção de Mondolfo) O mesmo Arnauld, em carta a Des-
não insistiram demais na importân- cartes de 3 de junho de 1648 (A.T.
cia para Descartes desses anteceden- V 186), indicou outro texto do agos-
tes. Em compensação, os destacados tiniano De Trinitate, livro X, cap.
já na época de Descartes são impor- 10, nota 12, onde consta, entre ou-
tantes. O mais retumbante deles é o tros argumentos, o seguinte: ““Vive-
de Santo Agostinho. O Padre Mer- re se tamen et meminisse, et intelli-
senne indicou a Descartes quanto o gere, et velle, et cogitare, et scire, et
seu argumento era parecido com o Judicare, quis dubitet? Quandoqui-
que consta (segundo o próprio Des- dem etiam si dubitat, vivit; si dubi-
cartes logo precisou; cf. A.T. III 261) tat unde dubitet, meminit; si dubi-
em De civitate Dei, de Santo Agos- tat, dubitare se intelligit; si dubitat
tinho, livro XI, capítulo 26. Ai es- certus esse vult; si dubitat, cogitat;
creveu Santo Agostinho o seguinte: si dubitat, scit se nescire; si dubitat,
“Quid si falleris? Si enim fallor, Judicat non se temere consentire op-
sum”, “E se te enganas? Se me en- portere. Quisquis igitur aliunde du-
gano, sou”, uma proposição conhe- bitat, de his omnibus dubitare non
cida usualmente sob a expressão ““Si debet: qua si non essent, de ulla re
fallor, sum”, “Se erro, existo”. dubitare non posset” (Quem pode
Uma observação análoga foi feita ao duvidar de que vive, recorda, com-
filósofo por autor hoje desconheci- preende, quer, pensa, sabe e julga?
do (A.T. III 247-8). Nas Quartas Ob- Tanto mais que, se duvida, vive; se
às Meditações Metafísicas
JjJeções duvida por que duvida, recorda; se
(A.T. VII 197), Arnauld referiu-se a duvida, compreende que duvida; se
outros textos de Santo Agostinho duvida, quer estar certo; se duvida,
(por exemplo, De libero arbitrio, l1- pensa; se duvida, sabe que não sa-
vro II, cap. 3, nota 7) onde, a pro- be; se duvida, julga que não convém
pósito de perguntar-se ao santo, co- dar temerariamente o seu consenti-
105 COGITO, ERGO SUM

mento. Quem quer que seja, pois, empregada. Depois, no fato de que
que duvide de tudo o mais não pode os pressupostos teológicos que ti-
duvidar do que ficou antes dito, nham orientado Santo Agostinho
pois, se isso não fosse assim, não po- parecem estar quase completamente
deria duvidar de nada). ausentes em Descartes. Finalmente,
Em diferentes respostas a essas ob- o fato de que a metafísica de Descar-
servações, Descartes não indicou se tes é uma metafísica do inteligível,
Já tinha encontrado tais passagens que desemboca no mecanicismo, ao
anteriormente às suas próprias fór- passo que a de Santo Agostinho é
mulas, limitando-se a sublinhar: (a) uma metafísica do concreto, a qual
Que enquanto Santo Agostinho se culmina no “animismo”, isto é, no
serve de seus argumentos para pro- “intimismo”.
var a certeza de nosso ser — e, na Já vimos qual é a opinião do pró-
citada passagem de De civitate Dei, prio Descartes a tal respeito: não se
para mostrar que há em nós uma trata apenas, com efeito, de encon-
imagem da Trindade —, ele, Descar- trar uma proposição apodiíctica que
tes, serve-se dos seus para dar a en- sirva de sólido alicerce para o edifi-
tender que o eu que pensa “é uma cio da filosofia, mas também de pro-
substância imaterial”, o que — var ““a distinção real entre a alma e
acrescenta — ““são duas coisas mui- o corpo”, como se diz no título da
to diferentes** (Carta datada de 2 de Meditação Sexta. Mas dentro dessa
novembro de 1640; A.T., II1 247-8). concepção fundamental podem acen-
Portanto, Santo Agostinho não faz tuar-se aspectos distintos. Merleau-
do princípio ““o mesmo uso que eu”* Ponty, por exemplo (cf. Bulletin de
(Carta a Mersenne de 25 de maio de la Société Française de Philosophie,
1637; A.T., 1 376). 1947, 129-30), indicou que propõe os
As opiniões estão divididas entre três aspectos seguintes: (1) O Cogi-
os que fazem francamente de Des- to equivale a dizer que, quando me
cartes um agostiniano, pelo menos apreendo a mim mesmo, limito-me
neste ponto capital, e os que decla- a observar um fato psíquico. Esta
ram não existir vínculos de nenhu- significação predominantemente psi-
ma espécie entre as duas doutrinas. cológica é a que se oferece no pró-
Frente a uns e outros, há autores prio Descartes ao dizer que está cer-
que procuram fazer vingar uma tese to de existir todo o tempo que pensa
intermédia, sustentando (como Gil- nisso. (2) O Cogito pode referir-se
son) que, embora não se possa ne- tanto à apreensão do fato de que
gar a importância dos argumentos penso quanto aos objetos abrangidos
agostinianos e de quem os adaptou por esse pensamento. Em tal caso,
ou transformou, existem de toda ma- o Cogito não é mais certo do que o
neira diferenças fundamentais entre cogitum. Esta significação aparece
os dois grandes filósofos. De imedia- em Descartes quando considera nas
to, elas existem na própria fórmula Regulae o se esse como uma das ver-
106
COGITO, ERGO SUM

dades evidentes e simples. (3) Pode- so” para a afirmação ““portanto, eu


se entender o Cogito como o ato de sou uma coisa pensante”, ou seja, de
duvidar pelo qual se põem em dúvi- um ato a uma substância. O motivo
da todos os conteúdos, atuais e pos- deste passo foi atribuído ao pressu-
síveis, da minha experiência, excluin- posto substancialista da filosofia de
do-se da dúvida o próprio Cogito. E Descartes. A terceira objeção refere-
a significação que tem o Cogito co- se principalmente ao alcance do Co-
mo princípio da “reconstrução” do gito. Com efeito, foi observado que
mundo. Embora todos estes sentidos a segurança da minha existência pro-
estejam presentes em Descartes, (3) piciada pelo mesmo somente é váli-
é o principal e aquele que mais foi da na medida em que e enquanto
salientado pela tradição. penso. Esta condição já foi indica-
As objeções suscitadas pelo prin- da por Descartes ao escrever na Me-
cípio cartesiano são múltiplas. Mu!i- ditação Segunda: ““Outro [atributo
tos escolásticos argiiram que o Co- da alma] é pensar; e verifico aqui que
gito não pode ser um princípio pri- o pensamento é um atributo que me
meiro no sentido em que o pode ser pertence; só ele não pode ser sepa-
o princípio de contradição, sobretu- rado de mim. Eu sou, eu existo: isto
do à luz de uma das pretensões do é certo; mas por quanto tempo? À
princípio cartesiano: o ser apodíct!- saber, por todo o tempo em que eu
co. Outros assinalavam que no racio- penso; pois poderia, talvez, ocorrer
cínio de Descartes há uma falha: a que, se eu deixasse de pensar, deixa-
supressão da premissa maior, “Tu- ria ao mesmo tempo de ser ou de
do o que pensa, existe”, à qual de- existir””. Mas Descartes não conside-
veria seguir-se a premissa menor, rava que Isso destruísse a sua conclu-
““Eu penso”, e a conclusão: ““Por- são principal: afirmar que sou uma
tanto, eu existo”. O próprio Descar- coisa pensante.

tes já contestou as duas objeções, as Nietzsche dizia (Para Além do


quais são de natureza formal e con- Bem e do Mal, S$16) que na simples
tinuam sendo empregadas pelos es- afirmação ““eu penso” há um mun-
colásticos. Também contestou objJe- do de problemas que o metafísico não
ções de índole distina, das quais nos pode resolver; supõe-se que sou eu o
limitaremos a mencionar três. A pri- que pensa, que deve haver forçosa-
meira é a de que se poderia dizer “Eu mente alguém que pensa, que o pen-
respiro, logo eu existo** com a mes- sar é uma atividade realizada por um
ma justificação que “Eu penso, lo- ser que — supomos — é a causa do
go eu existo”. A resposta dada a ela pensamento, que há um ego e que sei
consiste em mostrar a legitimidade o que é. Portanto, a afirmação ““eu
de se considerar o respirar uma ope- penso? supõe tantas coisas que não
ração tão irredutível quanto o pen- pode ser considerada uma certeza
sar. A segunda é a de que não é legíi- imediata, de tal modo que o filósofo
timo passar da afirmação ““Eu pen- a quem se lhe afirma tal coisa não
107 COISA EM SI

terá mais remédio senão admitir que, tras ocasiões, distingue-se entre am-
quando outro diz “eu penso”, está bos os conceitos. Referimo-nos ao
provavelmente certo, mas não se po- último ponto no artigo Númeno. No
de supor que 1sso seja forçosamente mesmo artigo falamos das duas in-
algo certo. terpretações — fenomenista e idea-
lista transcendental — que cabe dar
COISA EM SI Kant chamou ““coisa da crítica kantiana; estas interpreta-
em si” (Ding an sich) — às vezes, ções estão ligadas ao papel que se ou-
“coisas em si” (Dinge an sich) — ao torgue à noção de coisa em si. Estas
que se encontra fora do âmbito da informações podem ser completadas
experiência possível, isto é, ao que com as oferecidas no artigo AN-
transcende as possibilidades do co- TINOMIA.
nhecimento, tal como se encontram Kant parece mais cauteloso em seu
delineadas na ““Estética transcenden- tratamento do conceito de coisa em
tal”* e na “Analítica transcendental” si na 2º edição da Crítica da Razão
da Crítica da Razão Pura. A coisa Pura. Não obstante, persistem nu-
em si pode ser pensada ou, melhor merosas vacilações e incertezas.
dizendo, pode-se pensar o conceito Complementaremos a informação
de uma coisa em si; a rigor, “coisa proporcionada nos artigos citados
em si” é o nome que recebe “um com uma breve resenha do que se
pensamento completamente indeter- chamou ““o destino da coisa em si”
minado de algo em geral” (K. r. V., em algumas filosofias pós-kKkantlanas.
A 253). Mas a coisa em si não pode Num texto que servia de apêndice
ser conhecida, ao ponto de que se lhe a uma obra sobre Hume (1978), Frie-
possa chamar ““o algo, o x, do qual drich Jacobi escreveu uma das fra-
nada sabemos nem, em geral... na- ses mais frequentemente citadas a
da podemos saber” (ibid., À 250). respeito da noção kantiana de coisa
A natureza e função da coisa em em si. Em substância, diz o seguin-
si — ou do conceito de ““coisa em si” te: “sem o conceito de coisa em si
— na filosofia crítica de Kant foi ob- não se pode penetrar no recinto da
jeto de numerosos debates, muitos crítica da razão pura, mas com o
deles provocados pelo caráter impre- conceito da coisa em si não se pode
ciso do vocabulário kantiano. Por permanecer nele”*. Deste modo, Ja-
vezes (na 1º edição da Crítica da Ra- cobi ressaltava o conflito entre a
zão Pura), Kant distingue entre ““coi- idéia que Kant parecia defender às
sas em si” e “objeto transcenden- vezes de que as coisas em si estão
tal”*. Outras vezes (como na 2º? ed!- subjacentes a, ou são inclusive cau-
ção), considera-os em conjunto ou sas das aparências, e a afirmação de
deixa simplesmente de falar do últi- que o conceito de causa, enquanto
mo. À coisa em sl parece ser, oca- um dos conceitos do entendimento
sionalmente, o mesmo que o chama- ou categorias, aplica-se tão-somente
do “Númeno”** (Noumenon); em ou- a fenômenos, isto é, à afirmação de
108
COLETIVO

nos, representantes do idealismo


ale-
que o conhecimento está limitado ao
mundo fenomênico. Era óbvio, de mão, repeliram a noção de coisa em
si. Um exemplo de rejeição pura e
resto, que enquanto Kant sustenta-
va que não se podem conhecer as col- simples é o dado por Fichte. Tam-
sas em si, falava delas, não para bém o rejeitaram os neokantianos,
descrevê-las e sim — mais Isto Já pa- em particular os da Escola de Mar-
recia excessivo — para referir-se a burgo, assim como Bradley, o qual
elas, ou seja, para introduzir inteli- afirmou que as coisas em si são 1in-
givelmente a expressão ““colsa em Ss cognoscíveis e não se pode sequer sa-
no discurso (embora fosse um meta- ber se existem. Por razões distintas,
discurso) filosófico. Parecia haver rechaçaram a noção de coisa em si
uma razão para isso: se as colsas em os fenomenistas e os idealistas objJe-
si não são reais, isto é, se não há al- tivos. Em contrapartida, alguns au-
go ““verdadeiramente real”, e não tores afirmaram que as coisas em si
apenas fenomênico, então o mundo são acessíveis, se bem que não o se-
de fenômenos carece de “suporte” jam por meio do intelecto. Schope-
e converte-se num mundo sonhado nhauer, por exemplo, identificou a
ou meramente imaginado. coisa em si com a Vontade — talvez
Salomon Maimon mostrou a con- porque não acreditasse haver algu-
tradição que implica pensar algo que ma relação causal necessária entre
não seja pensado na consciência, e número e fenômeno, ou entre o in-
admitir algo (ainda que seja apenas teligível e o sensível.
possível) que se encontre fora da
consciência, afetando-a de algum COLETIVO 1. Lógica. Chama-se às
modo. vezes ““coletivo”* a um termo singu-
De maneira geral, os primeiros lar concreto que designa um conjun-
kantianos trataram de resolver o pro- to de indivíduos detentores de algu-
blema apresentado pela noção de ma propriedade comum. Assim, o
coisa em si eliminando esta noção co- “Partido Comunista húngaro” é um
mo um resíduo de realismo, mas há termo coletivo. Os termos chamados
que se levar em conta que vários dos “coletivos” coincidem com descri-
mais fiéis discípulos de Kant, como ções definidas de entidades compos-
Kiesewetter e Johannes Schultz, que tas por certo número de indivíduos.
foi o comentarista “oficial” de Kant Alexander Pfânder, em sua Lógica,
(cf. Gottíried Martin, Immanuel definiu ““conceito coletivo” como
Kant. Ontologie und Wissenschafts- um conceito que designa um conJjun-
theorie, 1951, 4º edição, 1969), não to ou classe de objetos, ou seja, co-
rechaçaram aquela noção. J. Segis- mo um conceito ““que se refere a um
mund Beck declarou que o conceito todo constituído por uma pluralida-
de coisa em si decorria simplesmen- de de termos homogêneos”. A def1-
te do “modo de exposição” kantia- nição de Pfânder não permite distin-
na. Os mais destacados pós-kantia- guir claramente entre um termo sin-
109 COMPLEMENTO

gular concreto coletivo e um termo 3. Sociologia. Há uma estreita re-


comum coletivo. Em Word and Ob- lação entre certas investigações so-
Ject ($ 19: “Divided Reverence”), ciológicas e certas formas da chama -
Quine falou de “termos de massa” da ““psicologia coletiva” (cf. supra).
ou “termos-massa” (mass terms), A expressão ““consciência coletiva”
tais como “água” e “vermelho”, proposta e desenvolvida por Émile
que possuem ““a propriedade semân- Durkheim é um termo sociológico,
tica de se referirem a algo acumula- mas com implicações psicológicas.
tivamente: qualquer soma de partes Levantou-se amiúde a questão de se
que são água é água”. Gramatical- poder falar propriamente de cons-
mente, acrescenta Quine, são como ciência coletiva. Autores com pro-
termos singulares que resistem à plu- pensões nominalistas e os chamados
ralização e aos artigos (em inglês; “individualistas metodológicos” re-
não em outras línguas, como o por- chaçaram o conceito de consciência
tuguês: “a água” como sujeito em coletiva; pelo menos, negaram que
“A água é líquida”, embora se diga semelhante “consciência” seja outra
coisa senão uma soma de proprieda-
“Quero água”, a menos que se refi-
des e comportamentos de indivíduos.
ra a um determinado ““volume” de
Outros sustentaram que a ““consciên-
água). Do ponto de vista semântico,
são como termos singulares que não cia coletiva”* exibe condutas distin-
dividem, ou não dividem muito, a tas das deriváveis das condutas dos
membros da coletividade ou grupo.
sua referência. Quine lembra que Discute-se se o termo ““consciência””
Nelson Goodman (em Structure of é apropriado, porquanto os proces-
Appearance) chama a um termo que SOS soclais coletivos podem ser — e
tem as características semânticas In- são com frequência — inconscientes,
dicadas ““coletivo” e admite que, mas esta questão é muito mais psi-
“de fato, preferiria “termo coletivo” cológica do que sociológica. O pró-
a “termo de massa' para palavras co- prio Durkheim distinguiu entre cons-
mo “água' e outras semelhantes, se ciência coletiva e consciência social,
ele não se prestasse demasiado a su- mas esta distinção não parece ser
gerir casos impensados como “reba- fundamental, salvo na medida em
nho' e “exército” *. que o termo “social” ressalta mais
2. Psicologia. Falou-se, por vezes, do que o termo ““coletivo”* os aspec-
de “psicologia coletiva”, entenden- tos sociológicos estudados.
do-se com isso diversas colsas: a cha-
mada ““psicologia dos povos** (Vol- COMPLEMENTO O termo ““com-
kerpsychologie) de Wundt e outros plemento”' é usado em lógica prin-
a
autores; a psicologia de grupos; psi- cipalmente com referência a duas
cologia de massas, etc. Com frequên- cOISas.
cia, identificou-se ““psicologia cole- Na álgebra de classes, dá-se o no-
tiva” com ““psicologia social”, em me de complemento de uma classe A
contraste com a psicologia individual. à classe de todos os membros que
COMPLETO, COMPLETEZA 110

não pertencem a A. O símbolo do definições anteriores correspondem


complemento de classes é “—”** co- a dois tipos de completeza e são apli-
locado sobre a letra que designa a cadas, segundo os casos, a diversas
classe, de modo que À se lê “A classes de cálculos.
classe de todas as entidades que não Como ocorre com o conceito de
são membros da classe 4”. Por consistência, o de completeza é tam-
exemplo, se A é a classe das entida- bém um conceito sintático, mas le-
des animadas, A é a classe das enti- vam-se em conta, em sua formulação
dades não animadas. O complemen- e desenvolvimento, considerações de
to de classe define-se do seguinte caráter semântico. Referência à rela-
modo: ção entre consistência e completeza,
A=def. SU E A). no artigo GÓDEL (PROVA DE).
Na álgebra de relações, chama-se COMPOSSIBILIDADE Entre as te-
complemento de uma relação R à re- ses típicas da filosofia de Leibniz en-
lação de todos os x com todos os y, contramos: (1) tudo o que existe de-
tal que não é o caso que R relacione ve ser possível, quer dizer, não con-
x com y. O símbolo do complemen- traditório consigo mesmo; (2) tudo
to de relações também é “—”*”*. Por o que é possível, ou seja, não con-
exemplo, se R é relação idêntico a, traditório consigo mesmo, tende a
R é a relação distinto de.
existir. As dificuldades que (1) ofe-
rece podem ser resolvidas mediante
COMPLETO, COMPLETEZA O
adjetivo “completo” desempenha uma análise do conceito de possibi-
lidade. As dificuldades que (2) apre-
um papel fundamental em metalógi-
ca, ou na metateorla dos cálculos ló-
senta requerem a introdução de ou-
gicos. Para designar a característica tro conceito: o de compossibilidade.
de ser completo um cálculo, forjou- Com efeito, enquanto todas as pos-
se o termo ““completeza” — tradu- sibilidades ou essências são compa-
ção dos vocábulos equivalentes com- tíveis entre si, as realidades ou exis-
pletitud (espanhol), Vollstândigkeit tências não são todas compatíveis en-
(alemão) e Completeness (inglês). tre s1; do contrário, seria preciso su-
Chama-se “completo” a um cál- por que tudo o que é possível é real,

culo, C, se dada uma fórmula bem com a consequência de que o mun-


formada, /, de C, ou esta fórmula do não poderia conter a pletora das
ou sua negação (1/) é um teorema essências atualizadas. Isto explica
de C. Também se chama “comple- por que há uma infinidade de mun-
to”* a um cálculo C quando há um dos possíveis, mas somente um mun-
outro cálculo C' tal que C é incon- do real. Este mundo real foi criado
sistente quando C' é igual a C, exce- por Deus e é, como Leibniz disse re-
to por conter uma fórmula que não petidamente, o melhor de todos os
é suscetível de prova em C. As duas mundos possíveis. Deste modo, a no-
111 CONCEPTUALISMO

ção de compossibilidade explica não um movimento voluntário ou ““pai-


só o ser do mundo, mas também sua xão” que precede a ação corporal e
perfeição — incluindo sua perfeição que, embora seja “interno”, possul
moral. Entretanto, uma vez admiti- determinações e propriedades expri-
da a noção de referência, um proble- míveis mecanicamente. Leibniz con-
ma se apresenta: o do critério da cebeu o conatus como uma força
compossibilidade. Este problema po- (vis) ativa e não apenas como uma
de ser solucionado de vários modos: condição por meio da qual a força
(a) Indicando — como fez Leibniz — opera. O conatus não é mera poten-
que tal critério se encontra na men- cialidade, nem sequer um mero prin-
te divina. (b) Assinalando — como cípio operacional, mas a própria
fez Russell em sua interpretação da operação. A força que implica o co-
filosofia de Leibniz — que o crité- natus não é simplesmente mecânica,
rio consiste na submissão das exis- mas dinâmica. Para Spinoza, cada
tências a leis uniformes. (c) Apon- coisa, enquanto é, esforça-se por
tando — como faz Lovejoy em sua perseverar em seu ser (Etica, III,
obra sobre a idéia de plenitude ou ““a prop. vi) e o esforço (conatus) me-
grande cadeia do Ser”* — que, de fa- diante o qual cada coisa se empenha
to, Leibniz não deu nenhum exem- em perseverar em seu ser é a essên-
plo suficientemente ilustrativo e ine- cia atual da coisa (ibid., prop. vil).
quívoco de tal critério, e que é legí- A noção de conato tem em Spinoza
timo admitir que a noção de compos- uma função mais central do que em
sibilidade constitui somente um ca- Hobbes e mesmo do que em Leibniz.
so especial da noção de possibilida- O conato aparece como vontade
de em geral, de tal maneira que, em quando se refere somente ao espíri-
última instância, a idéia do compos- to (mens), e como apetite quando se
sível não diferencia essencialmente o refere ao espírito e ao corpo; em am-
princípio leibniziano de razão sufi- bos os casos são modos de ser do co-
ciente e a idéia spinoziana de neces- nato ou esforço como determinação
sidade universal. ontológica geral.

CONATO O conceito de conato de- CONCEPTUALISMO O concep-


sempenhou um papel importante em tualismo é definido como aquela po-
vários autores modernos, entre os sição, na questão, dos universais, se-
quais destacamos Hobbes, Leibniz e gundo a qual os universais somente
Spinoza. Hobbes usou o termo co- existem enquanto conceitos univer-
natus principalmente em sentido me- sais em nossa mente (conceitos que
cânico. Em De corpore, o conatus é possuem esse objetivum) ou, se se
apresentado como um movimento quiser, enquanto idéias abstratas. Os
determinado pelo espaço e o tempo, universais ou entidades abstratas não
e numericamente mensurável. Em são, pois, entidades reais nem tam-
De homine, o conatus aparece como pouco meros nomes usados para de-
CONCRETO 112

signar entidades concretas: são con- neokantianos, como Cassirer, pudes-


celtos gerais. O status preciso de tais sem ser considerados conceptua-
conceitos tem sido muito debatido. listas.
Alguns autores indicam que
de conceitos ““já feitos” para
se
trata
distin- CONCRETO O termo grego ovvo-
gui-los dos conceitos “não obstan- Aos, que se traduz por ““concreto”
te” defendidos por vários terminis- significa literalmente “com-tudo”,
tas; outros assinalam que se trata pri- quer dizer, “tudo Junto”, ou “intei-
mordialmente de sermones cuja ca- ro”, “completo”. Aristóteles cha-
racterística principal é a significação. mou 70 ovrvoXovr à substância indivi-
Não menos debatido foi o problema dual, uma vez que esta se compõe de
do tipo de relação que estes concei- um substrato (ou matéria) e de uma
tos gerais mantêm com as entidades forma. As substâncias individuais,
concretas designadas; pode-se est1- como árvore ou homem, são, pois,
mar, por exemplo, que designam es- entidades concretas, ou seja, ““con-
sas entidades ou que as denotam. As cretos”', diferentemente de entidades
diferentes respostas dadas a estas abstratas que são o resultado de
questões fizeram que, em alguns ca- “pôr à parte” (abs-trair) algo do in-
sos, O conceptualismo se aproximas- divíduo singular ou do concreto (ver
se do realismo moderado e que, em ABSTRAÇAO e ABSTRATO). Por
outros, em contrapartida, se confun- Isso, enquanto se identificou amiú-
disse com o nominalismo (pelo me- de o concreto como o singular, parti-
nos, com o nominalismo moderado). cular, individual, etc., o abstrato foi
Isso explica que autores como Pier- identificado com o genérico, o uni-
re Auriol tenham podido ser chama- versal. Em latim, con-cretum é o
dos, por uns, conceptualistas e, por substantivo que corresponde a con-
outros, nominalistas (e até terminis- cresco, que significa literalmente
tas). É recomendável, portanto, que “formar-se por agregação”, “tor-
em cada oportunidade em que se use nar-se espesso”, “endurecer”.
o vocábulo “conceptualismo”* se de- “Concreto” aplica-se muitas ve-
fina, o mais exatamente possível, o zes a algo que é tomado como real
que se entende por ele. O mais co- no sentido de que é efetivo e experi-
mum é usá-lo como posição intermé- mentável pela sensação. O 7ô oúvo-
dia entre o realismo moderado e o hov aristotélico ou a substância in-
nominalismo, e como uma tese que dividual é ““substância sensível”,
acentua o motivo epistemológico (ou ovola aéodntTÁ. Desde este ponto de
criteriológico) sobre o motivo onto- vista, parece que só as propriedades
lógico, predominante na questão dos sensíveis podem chamar-se ““concre-
universais. Não causa surpresa, pois, tas”. Entretanto, uma propriedade
que os neo-escolásticos também tra- ou uma qualidade é um predicado ou
tem a posição conceptualista dentro um “universal”, de modo que só os
da criteriologia e que Kant e alguns entes singulares são, propriamente
113 CONCRETO

falando, sensíveis, e só estes parecem Hegel, em cujo sistema a noção do


poder ser chamados ““concretos”'. De concreto desempenha um papel fun-
acordo com seu sentido originário, damental. Hegel fala de um desenvol-
pelo menos, algo concreto está forma- vimento “rumo ao pensar concreto”,
do por agrupamento de partes. Uma e afirma que ““a consideração racio-
propriedade não é uma ““parte” por- nal” (diferentemente da do entendi1-
que pode ser comum a outros ““con- mento) é “concreta”. Segundo o seu
cretos”'.
Também se falou de termos concre-
a
conteúdo, filosofia é abstrata, mas
na medida em que expressa o desen-
tos e de conceitos concretos, mas nem volvimento dialético da Idéia, é con-
sempre está claro o que se entende por creta. O Espírito é ““o absolutamen-
eles. Se nos ativermos aos sentidos te concreto”. “O abstrato é finito, o
“ontológicos” de “concreto” antes concreto é verdade”, etc. Todas es-
mencionados, um termo concreto é tas e muitas outras e diversas mani-
aquele que designa um conceito con- festações de Hegel em favor do con-
creto, o qual denota (ou, se se quiser, creto estão ligadas ao processo dialé-
denomina ou descreve completa e uni- tico e, em última análise, gravitam em
vocamente) algum indivíduo. O mais torno da noção do ““universal concre-
comum é que o termo ““concreto” se- to”*. Considera Hegel que as abstra-
ja algum nome próprio — como ções próprias da lógica formal, da
“Wamba Skinner” — ou alguma des- matemática ou da “ontologia geral”
crição definida — como ““o psiquia- são unilaterais. Têm um só lado, são
tra mais jovem de Bujaraloz””. Por incompletas e finitas. Também são
outro lado, pode haver certas entida- abstratas as noções de puro ser e de
des particulares como o outono para pura existência. Diante disso, cabe-
referir-nos às quais se usam termos ria perguntar se o único concreto não
que, como ““o outono”, têm um sía- seria, como sustentam os empliristas,
tus linguístico pouco definido — tal- o particular, o singular, o sensível,
vez tão pouco definido quanto o sta- etc. Mas estes carecem de universali-
tus ontológico do próprio outono. dade e também são unilaterais. O úni-
Para muitos autores, um termo co plenamente real é o que é univer-
concreto é uma expressão linguística sal e concreto, ou o universal-concre-
que, se corresponde a um conceito, é to. Irata-se, antes de tudo, do con-
porque o conceito designa então um ceito, Begriff (ver CONCEITO), na
atributo que se encontra no sujeito, medida em que incorpora em si os três
diferentemente do conceito abstrato, “momentos” da universalidade, da
expresso por um termo abstrato. Es- particularidade e da individualidade.
tes últimos dizem respeito a atributos Não se deve confundir a universa-
separados, ou separáveis (mental- lidade do conceito com o universal-
mente), do sujeito. concreto ou com o conceito enquan-
O vocábulo ““concreto”* (Konkref) to plenamente concreto (cf. Lovgik,
foi profusamente empregado por II, 1, ). A rigor, tampouco a indivi-
CONCRETO 114

dualidade é concreta per se, ou é um tos são meramente em si (an sich) e


universal concreto, visto que a “al- são potenciais. As determinações do
ma da individualidade” é “a abstra- conceito (Begriffsbestimmungen) de
ção”. Ora, a incorporação no con- Hegel constituem a contrapartida fun-
ceito dos três “momentos” acima cl- cional das “preensões” de Whitehead.
tados constitui somente um passo no Husserl ocupou-se em detalhe das
desenvolvimento do conceito: o pas- noções de concreto e abstrato na teo-
so ou momento da subjetividade, ria da abstração que figura na tercei-
que se contrapõe ao da objetividade ra de suas Investigações Lógicas. De-
e unicamente se supera ao chegar à la resulta que algo é concreto quando
idéia. é independente de um todo. Exemplos
Assim, a universalidade pode ser de realidades concretas neste sentido
para Hegel abstrata ou concreta. são um pedaço de maneira, uma me-
A universalidade concreta não é nem lodia, a cor amarela, um triângulo
o universal enquanto concreto nem o equilátero. Exemplos de “abstratos”
universal enquanto contém em si ele- em relação com as citadas realidades
mentos concretos imediatamente de- concretas são, respectivamente, o peso
dutíveis daquele; é o universal en- de um pedaço de madeira, um nota
quanto pode realizar-se concreta- musical, a cor, o triângulo. A relação
mente, e 1sso de muitas e diversas concreto-abstrato é paralela à rela-
maneiras. Segundo Hegel, isto ocor- ção todo-parte. Observe-se que, sen-
re com a universalidade da razão e do o conceito básico para a determi-
não com a do entendimento. nação dos sentidos de “concreto” e
G. L. Kline (“Concept and Con- “abstrato” o conceito de “fundação”
crescence”*) indica que o conceito he- e “fundamentação” (Fundierung),
geliano é uma categoria ontológica não se trata em nenhum caso de uma
e não simplesmente epistemológica. espécie de classificação entre ““entida-
Os conceitos em Hegel são concre- des concretas” e “entidades abstra-
tos no particular sentido hegeliano de tas”. Os predicados ““concreto” e
“concreto”, isto é, “multilateral e “abstrato” são adstritos em virtude
adequadamente mediado”, Há inte-
ressantes analogias, assim como di-
das relações de “fundamentação”
de acordo com certo número de teo-
e
ferenças, entre os conceltos concre- remas (princípios) exprimíveis em for-
tos de Hegel e as “concrescências” ma condicional (estes teoremas são
de Whitehead. Estas são ““suscetíveis distintos da expressão de leis causais).
de experimentar e ativamente auto- Assim, por exemplo, dados dois ele-
relacionantes”'. Segundo Kline, tanto mentos, À e M, se À necessita ser su-
OS conceitos hegellanos quanto as plementado por (ou fundado em) M,
concrescências whiteheadianas são então um todo do qual A é uma par-
sujeitos e são plenamente atuais, sen- te, mas do qual M não é necessaria-
do portanto em e por si mesmos (an mente uma parte, necessita ser suple-
und fur sich), ao passo que os obje- mentado por M.
115 CONDICIONAL

Falou-se em filosofia de uma tores são chamados, às vezes, ““con-


“tendência para o concreto” que se dicionistas””.
Dpõe à “tendência para o abstrato”. A seguinte distinção entre dois t1-
Num sentido cada vez mais amplo pos de condição é clássica. Dados
ediluído, incluíram-se na tendência dois elementos, a e b, condicional-
para o concreto correntes filosóficas mente ligados, diz-se que a é uma
de cunho distinto, ou de distintas ori- condição necessária de b quando,
gens, desde que sublinhassem os as- ainda que não houvesse b sem a,
pectos “informais”; assim aconte- continuaria havendo a sem 5; por
ceu, por exemplo, com o segundo outro lado, diz-se que a é condição
Wittgenstein — especialmente em suficiente de b, quando há b sempre
virtude dos ataques por ele desenca- que haja a. A chamada ““condição
deados contra as ““generalizações”” necessária” tem o sentido ““negati-
— e com vários dos filósofos da lin-
vo” antes assinalado; a “condição
suficiente” tem o sentido ““positivo”
guagem corrente.
que a aproxima da causa. Dentro da
noção de condição suficiente costu-
CONDIÇÃO (Para a acepção lógi-
ma estabelecer-se outra distinção en-
ca da palavra “condição”, ver CON- tre condição como conjunto de cir-
DICIONAL.) cunstâncias requeridas para que uma
Alguns autores sustentam haver causa opere, e eliminação dos impe-
uma distinção fundamental entre dimentos na produção da causa; o
causa e condição: a causa, afirmam, último, porém, é muito parecido
tem um sentido ““positivo”, porque com uma condição necessária.
é aquilo em virtude do qual se pro- A noção de condição pode refinar-
duz um efeito, ao passo que a con- se no âmbito de uma lógica da indu-
dição tem um sentido ““negativo”, ção e da probabilidade, e se introdu-
porque é simplesmente aquilo sem o zem então outras distinções. Entre as
qual não se produziria o efeito. Deste mais destacadas figuram as de con-
ponto de vista, a condição é um sine dição suficiente e total.
qua non. Outros autores sustentam
que a distinção entre causa e condi- CONDICIONAL É o nome que re-
ção é ou matéria de debate ou assun- cebe a conectiva binária ““se... en-
to de convenção; dados vários ante- tão”, simbolizada mediante o signo
cedentes, escolhe-se um que, para os “=”, Assim,
efeitos que se tem em vista, é o mais Pp>A
importante e destacado, e chama-se-
lhe “causa”. Ainda outros autores, lê-se:
enfim, frisam a inexistência de qual- p, então q.
se
quer distinção apreciável entre con- Exemplo de “p— q” pode ser:
dição e causa já que esta última na-
da mais é do que uma série ou con- Se Romeu fala, então Julieta se
junto de condições. Estes últimos au- deleita
CONDICIONAL 116

OU suas variantes em linguagem cor- o que tem sido, com frequência, con-
rente: siderado paradoxal. Tendo-se erro-
Se Romeu fala, Julieta se deleita.
neamente chamado ““implicação” ao
condicional, falou-se dos ““parado-
Julieta se deleita, contanto que
xos da implicação material”, Esses
Romeu fale, etc. paradoxos são eliminados mediante
No condicional “p—q”, “p” é uma ““interpretação estrita da impli-
chamado o ““antecedente” e “gq
“consequente”.
o cação”. Referimo-nos a esta última
no artigo sobre a noção de implica-
Dado “p—-qg”, a fórmula: ção. Ora, os citados “paradoxos da
implicação material”” devem-se à
q—>p confusão criada entre o condicional
e a implicação, pois “—* não deve
é chamada a “conversa” de “p—q”. ler-se “implica”* mas, como acima in-
Por sua vez,
dicamos, ““se... então”. Neste caso,
fica claro que um condicional como:
é chamada a “inversa” de “p — q”. Se Hegel é um filósofo, Baudela!-
Finalmente, re é um poeta,
é um condicional verdadeiro, en-
é chamada a ““contrapositiva”* de quanto:
“D — q.
No artigo TABELAS DE VER-
“Hegel é um filósofo”? implica
“Baudelaire é um poeta”
DADE apresentamos uma tabela pa-
é uma implicação falsa. O motivo
ra “p—q ” da qual resultava que disso é que, diferentemente do con-
quaisquer que fossem os valores de dicional, no qual se usam enuncia-
verdade de “p” e de “q”, os resul-
dos, na implicação usam-se nomes de
tados eram vês, exceto quando ““p” enunciados. Somente quando um
é verdadeira e “q” é falsa. Esta ta-
condicional é logicamente verdadei-
bela se baseava na chamada ““inter-
ro há a implicação do consequente
pretação material”* do condicional pelo antecedente. Exemplo deste úl-
adotada por muitos autores já a par- timo caso é:
tir de Filon de Megara. De acordo
com essa interpretação, há que se de- Se Hegel é um filósofo, e Baude-
clarar verdadeiros condicionais como: laire é um poeta, então Bau-
Se Hegel é um filósofo, Baudelai- delaire é um poeta,
re é um poeta, o que, sendo logicamente verdadei-
Se OS corpos são inextensos, os
ro, permite enunciar:
diamantes são duros,
Se Virgílio foi um poeta norue- “Hegel é um filósofo e Baudelai-
guês, Dostoievski foi um famo- re é um poeta” implica “Baude-
so ciclista, laire é um poeta”.
117 CONHECER

Na lógica tradicional, as proposi- la introdução do subjuntivo. Exem-


ções condicionais são consideradas plos de contrafactuais são:
uma das classes em que se dividem Se Júlio César não tivesse cruza-
as proposições formalmente hipoté- do o Rubicão, outra teria sido
ticas, distinguindo-se, portanto, en- a sorte de Roma (1),
tre proposições (formalmente) hipo- Se o vaso tivesse caído, ter-se-la
téticas em geral e proposições con-
quebrado (2).
dicionais. O esquema que se costu-
ma dar destas últimas na citada ló- Como, de acordo com a interpreta-
gica é: ção material do condicional, um con-
dicional é verdadeiro quando seu an-
se Pé S, então Pé OQ.
tecedente e subsequente são falsos,
terá que se concluir que (1) e (2) são
CONDICIONAL CONTRAFAC- verdadeiros. Tendo em vista as dif1-
TUAL O termo ““condicional” tam- culdades que isso apresenta, foi su-
bém tem sido usado com freqgiiência, gerido (por Nelson Goodman) que o
nestes últimos anos, em relação com importante não é examinar (1) e (2)
os chamados ““condicionais contrá- — e outros exemplos análogos — en-
rios aos fatos” ou ““condicionais quanto funções de verdade, e sim es-
contrafactuais” (contrary to facts clarecer o tipo especial de relação que
conditionals, counter factual condi- liga o antecedente ao consequente.
tionals). As numerosas formas ado-
tadas por estes condicionais e os pro- CONHECER No artigo CONHECI-
blemas que apresentam foram exa- MENTO tratamos dos chamados
minados por numerosos autores; “problemas do conhecimento” de
destacam-se, a tal respeito, Nelson acordo com os esquemas clássicos da
Goodman (que formulou a questão teoria do conhecimento, epistemolo-
com particular precisão e amplitude), gia ou gnosiologia. No presente ar-
Roderick Chisholm, C. IL. Lewis, tigo ocupamo-nos sucintamente de
Karl Popper, Stuart Hampshire, R. algumas das questões que foram for-
Weinberg e A. P. Ushenko. Cumpre muladas juntamente com os vários
acrescentar a isso os estudos sobre os sentidos que têm sido dados a ““co-
chamados ““termos disposicionais”' nhecer”.
ou “disposições”, como os que fo- Em português existem os termos
ram levados a efeito por R. Carnap “conhecer” e “saber”. Às vezes
e C. D. Broad, entre outros. podem-se usar indistintamente: “S
Um condicional contrafactual (a conhece o alemão” e ““S sabe ale-
que podemos chamar simplesmente mão”; ““S$ conhece todos os mace-
um ““contrafactual”*) é definido co- tes”* e *““S$ sabe todos os macetes”.
mo um enunciado. condicional no Não há, por vezes, diferenças muito
qual intervém a noção de possibili- apreciáveis: “S sabe que amanhã
dade, expressa gramaticalmente pe- choverá”' e “S conhece que amanhã
118
CONHECER

choverá””. Em ambos os casos, co- (souber) que se p, então p. Contu-


nhece-se ou sabe-se que algo vai do, este “saber que p”* não é um co-
acontecer; entretanto, o conhecer nhecimento por contato ou presen-
que vai chover amanhã parecê su- ça direta. O menos arriscado a este
bentender a razão por que vai cho- respeito é concluir que o conhecer
ver. Por isso é mais apropriado di- por presença direta é o expressado no
zer ““S conhece que vai chover ama- esquema ““S conhece M”', onde M
nhã pela umidade da atmosfera” do representa algo — uma coisa, uma
que dizer, simplesmente, ““S$ conhe- pessoa, uma situação, etc. — e o co-
ce que vai chover amanhã”. Por ve- nhecer por descrição expressa-se no
zes, tem-se que usar ou “conhecer” esquema ““S sabe que p”*. Na maio-
ou “saber”: ““S conhece Roma”, “5 ria dos casos, quando se fala de co-
conhece Júlia”, mas não ““S sabe nhecer, subentende-se que se ““co-
Roma” ou ““S sabe Júlia”. O cha- nhece (sabe) que”.
mado ““conhecimento direto” ou Um problema capital é o conhe-
“imediato” expressa-se mediante cer (saber), no sentido do conhecer
“conhecer”; o chamado ““conheci- (saber) que, é o de se existe diferen-
mento indireto”* ou “mediato”* po- ça entre uma opinião verdadeira e
de expressar-se mediante “conhecer” um conhecimento. O comum é sus-
ou mediante “saber”, mas há maior tentar que há uma diferença. S po-
tendência para usar o último. Assim, de opinar que M é branco, ese M é
se “p” representa um enunciado de- branco, então sua opinião é verda-
clarativo, o fato de alguém, 5S$,
co- deira. Contudo, a opinião de M não
nhecer o que se expressa no enuncia- está fundamentada e por 1sso S não
do expressa-se dizendo que ““$ sabe conhece (sabe), rigorosamente falan-
que p”. do, que M é branco. Para que se pos-
A distinção entre conhecer algo e sa dizer que S conhece (sabe) que M
saber que há tal coisa ou saber que é branco e, em geral, que S conhece
tal coisa possui tais e tais proprieda- . (ou sabe) que p, há que se admitir
des é fundamental e tem se expres- que S tem Justificação (seja direta ou
sado de diversos modos: conheci- indireta) para afirmar p. Isto levou
mento direto, imediato, por conta- a pensar que conhecer ou saber que
to ou presença direta, e conhecimen- p equivale a crer Jjustificadamente
to indireto, mediato ou por descri- que p. Por outro lado, sublinhou-se
ção. Nem sempre há estrita equiva- que é possível — ainda que um tan-
lência entre “direito”, “imediato”, to “perverso” — que S saiba que p
“por contato” e “por presença di- e, ao mesmo tempo, que não creia
S&

reta”, por um lado, e conhecimento que p. Não obstante, nos casos em


“indireto”, “mediato” ou “por des- que Isso ocorre, deve-se ao fato de
crição”, por outro lado. Assim, que as razões que S tem para afirmar
pode-se conhecer (saber) imediata ou que sabe que p não são, ou não pa-
diretamente que p, se se conhecer recem ser, razões suficientes para S.
119 CONHECIMENTO

Se S tem toda a Justificação neces- funções descritivas. Os chamados


sária para afirmar que conhece (sa- “descritivistas”, em contrapartida,
be) que p, resulta surpreendente que opõem-se a Austin e seguem a tradÓ1-
a rechace para dizer que não crê ção de manter que, ao dizer “Sei”,
que p. diz-se algo que é verdadeiro ou fal-
Há acordo hoje em que conhecer so. Observe-se que afirmar o cará-
não é, embora se continue chaman- ter não-descritivo de “Sei” não é in-
do-lhe assim, uma atividade; em to- compatível com sustentar o caráter
do caso, não se diz que S conhece descritivo de ““S conhece” e de “S
(sabe) algo no sentido em que se diz sabe que p”º, mas então a descrição
que S digere algo, e tampouco no não se refere ao conteúdo do que S
sentido em que se diz que S prefere proclama saber ou conhecer, mas ao
algo. Isso ocorre especialmente no fato de que alguém, S, diz que co-
caso do “conhecer (ou saber) que”. nhece algo ou que sabe que p.
Nada disso pressupõe que para co- A partir de Ryle, muito se tem dis-
nhecer (saber) não se necessite exe- cutido se “saber que” é ou não re-
cutar atividades; é provável que não dutível a “saber como”. Parece que,
se possa conhecer algo, nem se pos- em alguns casos, saber (conhecer) al-
sa saber que algo é de tal ou tal mo- go resume-se a saber como é. Assim,
do sem que intervenham processos conhecer uma língua é saber como
de caráter neurofisiológico. Mas a a língua funciona. Por outro lado,
análise de uma expressão como ““S saber como funciona uma língua é
sabe que p”* não é uma análise de conhecer as regras sintáticas e o vo-
processos neurofisiológicos, mas do cabulário dessa língua, ainda que
sentido em que se usa “saber que”. não se seja capaz de explicar tais re-
Neste ponto há diferenças entre os gras nem compilar um dicionário da
filósofos. Austin sustentou que a ex- língua. Por razões distintas das de
pressão ““Sei” não é uma expressão Austin, Ryle opõe-se, como Austin,
descritiva e, portanto, não está sub- às tendências intelectualistas e racio-
metida às condições de verdade (ou nalistas tradicionais relativas ao co-
falsidade) que se adscrevem às des- nhecer (ou saber). De um modo ge-
crições. Dizer “Sei” é, segundo Aus- ral, a atenção aos aspectos pragmá-
tin, dar a própria palavra, de modo ticos e aos problemas da comunica-
semelhante, embora não idêntico, ao ção levam a destacar 'o caráter ““exe-
que ocorre quando alguém diz ““Pro- cutivo” (e não descritivo) e o cará-
meto”. Ao dizer “Sel” executa-se, ter do “saber como” do conhecer (e
segundo ele, uma ação — uma ação do saber). o
linguística —, nos termos de Austin,
faz-se algo com as palavras. Os que CONHECIMENTO Perguntas co-
seguem Austin a este respeito são de- mo ““Que é o conhecimento?”, “Em
nominados ““antidescritivistas”, por- que se fundamenta o conhecimen-
quanto não reduzem a linguagem a to?”*, “Como é possível o conheci-
120
CONHECIMENTO

mento?”, etc. pertencem a uma dis- De imediato, a pura descrição do co-


ciplina filosófica designada de vários nhecimento ou, se se quiser, do co-
nhecer, coloca em destaque a indis-
modos: “teoria do conhecimento”,
“crítica do conhecimento, ““gnosio- pensável coexistência, copresença
de certo modo, cooperação de dois
e,
logia”, “epistemologia”.
Consideraremos em seguida VÁFIOS elementos que não são admitidos
aspectos já clássicos em teoria do co- com o mesmo grau de necessidade
nhecimento: descrição ou fenomeno- por todas as filosofias. Algumas fi-
losofias insistem no primado do ob-
logia do conhecimento; possibilida-
de do conhecimento; fundamentos jeto (realismo em geral); outras, no
do conhecimento; formas possíveis primado do sujeito (idealismo em ge-
do conhecimento. Com relação a este ral); e ainda outras, na equiparação
último aspecto, tratamos também, “neutra” de sujeito e objeto. A fe-
em artigo separado, do problema do nomenologia do conhecimento não
conhecer (ver). reduz nem equipara: reconhece a ne-
Fenomenologia do conhecimento. cessidade do sujeito e do objeto sem
No sentido muito amplo de “pura precisar em que consiste cada um de-
descrição do que aparece ou do que les, ou seja, sem se deter em averiguar
é imediatamente dado”, a fenome- a natureza de cada um deles ou de
nologia do conhecimento propõe-se qualquer suposta realidade anterior
expor o “fenômeno”, ou o “proces- a eles ou consistente na fusão deles.
so”, do conhecer. Pretendeu-se fa- Conhecer é, pois, fenomenologi-
zer isto independentemente de (e pre- camente falando, “apreender”, ou
viamente a) quaisquer interpretações seja, oO
ato pelo qual um sujeito
do conhecimento e a quaisquer ex- apreende um objeto. O objeto deve
plicações que se possam dar das cau- ser, pols, pelo menos gnosiologica-
sas do conhecer. Portanto, a feno- mente, transcendente ao sujeito, pois
menologia do conhecimento não é do contrário não haveria “apreen-
uma descrição genética e de fato, são” de algo exterior: o sujeito se
mas “pura”. A única coisa a que tal “apreenderia” a si mesmo, de algum
fenomenologia aspira é esclarecer o modo.: Dizer que o objeto é transcen-
que significa ser objeto de conhe- dente ao sujeito não significa, po-
cimento, ser sujeito cognoscente, rém, dizer que haja uma realidade in-
apreender o objeto, etc. dependente de todo sujeito: a feno-
Um resultado de tal fenomenolo- menologia do conhecimento, dizíia-
gia parece óbvio: conhecer é o que mos, não adota desde logo nenhuma
acontece quando um sujeito (chama
do “cognoscente”) apreende um ob-
- posição idealista, mas tampouco rea-
lista. Ao apreender o objeto, este es-
Jeto (chamado ““objeto de conheci- tá, de alguma maneira, “no” sujei-
mento” e, para abreviar, simples- to. Mas não está nele física ou me-
mente “objeto”*). Entretanto, o re- tafisicamente; só está nele ““represen-
sultado não é nem óbvio nem simples. tativamentê”'. Por isso, dizer que o
121 CONHECIMENTO

sujeito apreende o objeto equivale a mento de um enunciar ou dizer algo


dizer que o representa. Quando o re- acerca do objeto. Por este motivo,
presenta tal qual o objeto é, o sujei- a apreensão de que se trata aqui é
to tem um conhecimento verdadei- uma representação que proporciona
ro (se bem que possivelmente parcial) o fundamento para enunciados.
do objeto; quando não o representa Em segundo lugar, há o problema
tal como é, o sujeito tem um conhe- de qual seja a natureza de ““o apreen-
cimento falso do objeto. dido” ou do objeto enquanto apre-
O sujeito e o objeto de que se fala endido. Não pode ser o objeto co-
aqui são, pois, o “sujeito gnosioló- mo tal mas, então, há que admitir
gico” e o “objeto gnosiológico”,
que o objeto se desdobra em dois: o
não os sujeitos e objetos ““reais”,
objeto enquanto tal e o objeto en-
“físicos” ou “metafísicos”'. Por is-
quanto representado ou representá-
so o tema da fenomenologia do co- vel. A clássica doutrina das “espé-
nhecimento é a descrição do ato cog- cies*” — espécies sensíveis, espécies
noscitivo como ato de conhecimen- intelectuais — constitui um esforço
to válido, não a explicação genética
desse ato ou sua interpretação me- com vistas à elucidação do proble-
tafísica. ma do objeto enquanto representa-
do ou representável. Também foram
Entretanto, ainda que a fenomeno-
esforços nesta direção as diversas
logia do conhecimento aspire a ““pôr teorias gnosiológicas (e, com fre-
entre parênteses” a maior parte dos
quência, psicológicas e até metafísi-
problemas do conhecimento, já den-
cas) acerca da natureza das ““idéias””
tro dela surgem alguns que não po-
— teorias desenvolvidas pela maior
dem ser solucionados nem sequer es-
clarecidos por meio de uma pura des- parte dos autores racionalistas e em-
piristas modernos. Foram igualmen-
crição. Em primeiro lugar, temos o
te esforços nesta direção as tentati-
problema do significado de ““apreen-
der”. Um objeto pode ser ““apre- vas de conceber a apreensão repre-
endido”' de maneiras muito diversas. sentativa do objeto desde o ponto
de vista causal (como sucedeu nas
Assim, por exemplo, há certa apreen-
são — e apreensão cognoscitiva — de chamadas ““teorias causais de per-
um objeto quando se passa a usá-lo cepção”').
Temos, finalmente, o problema da
para certos fins. Não se pode descar-
tar sem mais esse aspecto da apreen- proporção de elementos sensíveis, in-
são de objetos, porquanto um estu- telectuais, emotivos, etc., na repre-
do a fundo do conhecimento requer sentação dos objetos pelo sujeito. De
muito acordo com os elementos que se su-
que se levem em conta modos
diversos de “capturar” objetos. Con- ponha serem predominantes, pro-
tudo, é característico da fenomeno- pôem-se teorias muito diversas do
logia do conhecimento limitar-se a conhecimento. E possível ver-se,
destacar a apreensão como funda- pois, que assim que se vai um POUuco
122
CONHECIMENTO

mais longe na fenomenologia do co- tica” sobre o conhecimento. Os cép-


nhecimento, logo se suscitam ques- ticos moderados usam com freqiên-
tões que poderiam ser qualificadas cia uma linguagem psicológica ou,
de “metafenomenológicas””. em todo caso, tendem a examinar as
:
Possibilidade do conhecimento. À condições ““concretas” do conheci-
pergunta “É possível o conhecimen- mento. Assim, por exemplo, os limi-
to?” foram dadas respostas radicais. tes de que se fala são limites dados
Uma
é o cepticismo, segundo o qual
o conhecimento não é possível. Isso
pela estrutura psicológica do sujeito
cognoscente, pelas ilusões dos senti-
parece ser uma contradição, pois se dos, a influência dos temperamen-
afirma que se conhece algo e ao mes- tos, os modos de pensar que são fru-
mo tempo que nada é cognoscível. tos de uma época ou das condições
Não obstante, o cepticismo é com sociais, etc. Quando o que resulta é
frequência uma ““atitude” na qual tão-só um conhecimento provável, o
não se formulam proposições, mas, cepticismo moderado adota a cha-
por assim dizer, se estabelecem ““re- mada tese “probabilista”*. Em con-
gras de conduta intelectual”. Outra trapartida, os dogmáticos modera-
resposta radical é o dogmatismo, se- dos usam uma linguagem predomi-
gundo o qual o conhecimento é pos- nantemente ““critico-racional”*: o
sível; mais do que isso: conhecem-se que eles tratam de averiguar não são
as coisas tais como se oferecem ao os limites“abstratos”, ou seja, os li-
sujeito. mites estabelecidos por finalidades,
As respostas radicais não são as pressupostos, etc. É fácil ver que, en-
mais fregqientes na história da teo- quanto os cépticos moderados se
ria do conhecimento. O mais comum ocupam preponderantemente da
é adotar variantes do cepticismo ou questão da origem do conr ecimen-
do dogmatismo: por exemplo, um to, os dogmáticos moderados inte-
cepticismo moderado ou um dogma
tismo moderado, que muitas vezes
- ressam-se especialmente pelo proble-
ma da validade do conhecimento.
coincidem. Com efeito, nas formas Os autores que não aderiram nem
moderadas de cepticismo ou de dog- ao cepticismo nem ao dogmatismo
matismo costuma-se afirmar que o radicais, e que, por outro lado, não
conhecimento é possível, não de um se contentaram com adotar uma po-
modo absoluto, mas só relativamen- sição moderada, por eles considera-
te. Os cépticos moderados costumam da “meramente eclética”, tentaram
sustentar que há limites no conheci- descobrir um fundamento para o co-
mento. Os dogmáticos moderados nhecimento que fosse independente
afirmam que o conhecimento é pos- de quaisquer limitações, suposições,
sível, mas só no âmbito de certos etc. Foi o que ocorreu com Descar-
pressupostos. Tanto os limites quan- tes, ao propor o Cogito, ergo sum
to os pressupostos determinam-se (ver), e com Kant, ao estabelecer o
mediante uma prévia ““reflexão crií- que se pode chamar o ““plano trans-
123 CONHECIMENTO

cendental”*. No primeiro caso, co- adotando-se uma posição empirista


nhecer é partir de uma proposição ou racionalista a respeito, há mui-
evidente (que é, simultaneamente, o tas maneiras de apresentar, elaborar
resultado de uma intuição básica). ou defender a posição corresponden-
No segundo caso, conhecer é, sobre- te. Assim, por exemplo, o empliris-
tudo, ““constituir””, ou seja, consti- mo chamado amiúde ““radical”* pro-
tuir o objeto enquanto objeto de põe que não só o conhecimento da
conhecimento. Referimo-nos com realidade sensível está baseado em
maior minúcia a estes pontos nos ar- impressões, mas que também o está
tigos dedicados a vários conceitos o conhecimento de realidades (ou
fundamentais, pelo que considera- quase-realidades) não sensíveis, co-
mos desnecessário reverter aos mes- mo os números, figuras geométricas
mos. e, em geral, todas as “idéias” e to-
Fundamento do conhecimento. das as “abstrações”. Mas o emplris-
Uma vez admitido que o conheci- mo ““radical” está muito longe de ser
mento. (total ou parcial, ilimitado ou a única forma aceita, ou aceitável,
ltmitado, incondicionado ou condi- do empirismo. Pode aceitar-se um
cionado, etc.) é possível, resta ain- empirismo às vezes chamado ““mo-
da o problema dos fundamentos de derado”* — o qual coincide frequen-
tal possibilidade. temente com o racionalismo também
Alguns autores sustentaram que o chamado ““moderado”', tal como
fundamento da possibilidade do co- ocorre, por exemplo, em Locke —,
nhecimento é sempre ““a realidade” segundo o qual o fundamento do co-
— ou, como às vezes se diz, ““as col- nhecimento se encontra nas impres-
sas mesmas”. Entretanto, a expres- sões sensíveis, mas estas somente
são ““a realidade” não é, de modo proporcionam a base primária do
nenhum, unívoca. Primeiramente, conhecer — uma base sobre a qual
falou-se de ““realidade sensível”, di- se montam as idéias gerais. Pode
ferentemente de uma efetiva ou su- adotar-se um empirismo que às ve-
posta ““realidade inteligível”. Não é zes é rotulado como ““total”*: é o em-
a mesma coisa dizer que o funda- pirismo que recusa ater-se às impres-
mento do conhecimento se encontra sões porque são somente uma par-
na realidade sensível (nas impressões, te, e não a mais importante, da ““ex-
percepções sensíveis, etc.), como fi- periência”'. Para este empirismo a
zeram muitos empiristas, e dizer que “experiência” não consiste apenas
tal fundamento se encontra na rea- em experiência sensível: também po-
lidade inteligível (nas “idéias”, em de ser experiência ““intelectual””, ou
sentido mais ou menos platônico), experiência ““histórica”, ou expe-
como fizeram muitos racionalistas riência “interior”, ou todas estas
(especialmente os que foram ao mes- coisas ao mesmo tempo. Também se
mo tempo ““realistas** na teoria dos pode adotar um empirismo que não
universais). Por outro lado, embora deriva das impressões sensíveis o
CONHECIMENTO 124

conhecimento das estruturas lógicas da uma destas posições é a insistên.


e matemáticas, Justamente porque cia respectiva em tomar um ponto de
considera que tais estruturas não são partida no “objeto” ou no ““sujei-
empíricas e muito menos racionais: to”. Ainda assim, não é fácil escla-
são estruturas puramente formais, recer o significado próprio de ““rea-
sem conteúdo. É o que ocorre no ca- lismo”* e de “idealismo”, em virtu-
so de Hume
e de diversas formas de
positivismo lógico. Ainda se pode
de dos muitos sentidos que os termos
“objeto” e “sujeito”* adquirem den-
aceitar também um empirismo que tro dessas posições. Assim, por exem-
parte do material fornecido às im- plo, no tocante ao ““sujeito”, a na-
pressões sensíveis mas admite a pos- tureza da posição adotada depende
sibilidade de abstrair “formas” des- em grande parte de o sujeito em
sas impressões; é o empirismo de ten- questão ser entendido como sujeito
psicológico, como sujeito transcen-
dência aristotélica e os derivados do
mesmo. No tocante ao chamado dental no sentido kantiano, como
“racionalismo” grosso modo, tam- sujeito metafísico, etc. Em alguns
bém foram adotadas formas muito casos, partir do sujeito pode dar lu-
diversas, de acordo com o significa- gar a um subjJetivismo e até à um so-
do que se tenha dado a expressões lipsismo. Mas em outros casos o ter-
tais como ““realidade inteligível”, mo “sujeito” designa sobretudo
“idéias”, “formas”, “razões”, etc. uma série de condições do conheci-
Com efeito, não é o mesmo um ra- mento como tal, que não são pre-
cionalismo que parte do inteligível cisamente ““subjetivas”. Por isso,
como tal para considerar o sensível quando se fala, por exemplo, de
como reflexo do inteligível, e um ra- idealismo (ver), não é o mesmo
cionalismo para o qual o conheci- entendê-lo em sentido subjetivista ou
mento assenta na razão, mas onde objJetivista, crítico, lógico, etc. Em
esta não é uma realidade inteligível outros casos, partir do objeto pode
e sim um conjunto de pressupostos dar lugar ao que se convencionou
ou ““evidências”, uma série de ““ver- chamar ““realismo fotográfico” mas,
dades eternas”, etc. em muitas ocasiões, admitir-se que
As posições empiristas e raciona- o fundamento do conhecimento se
listas, e suas múltiplas variantes, são encontra no objeto não equivale a
apenas duas das posições fundamen- fazer do sujeito um mero ““reflexo”
tais adotadas na questão do funda- do objeto.
mento do conhecimento. Outras Nem todas as atitudes adotadas no
duas posições capitais são as conhe- problema que nos ocupa podem
cidas com os nomes de ““realismo” classificar-se em posições como as
e “idealismo”. Referimo-nos a am- acima citadas. A rigor, todas estas
bas em maior detalhe nos artigos cor- posições têm em comum dar, de al-
respondentes. Unicamente indica- gum modo, o conhecimento por
mos aqui que o característico de ca- ponto assente. Além disso, quase to-
125 CONHECIMENTO

das tendem a conceber o conheci- so modo ao conhecimento das ver-


mento não só como uma atividade dades de fato e ao conhecimento das
intelectual, mas também como uma verdades de razão. Consideram al-
atividade baseada em motivos inte- guns que tanto o conhecimento sen-
lectuais, isolados ou isoláveis com sível quanto o inteligível são ““intui-
respeito a quaisquer outros motivos. tivos”, mas dão ao termo ““intuiti-
Em compensação, certas posições, vo” um sentido distinto em cada
especialmente desenvolvidas na épo- caso; o chamado ““conhecimento
ca contemporânea, mas precedidas inteligível intuitivo”* é considerado
por alguns autores (entre os quais ca- absoluto, ao contrário do ““conheci-
be mencionar Nietzsche e Dilthey), mento intuitivo sensível”, que é re-
tentaram investigar o fundamento lativo. Outros acham que o conhe-
do conhecimento num sentido distin- cimento intuitivo inteligível não é ab-
to: em função de uma ““experiência” soluto do ponto de vista metafísico,
mais ampla. Como resultado disso, mas é absoluto ou, melhor dizendo,
a teoria do conhecimento deixou de completo ou adequado do ponto de
consistir numa ““filosofia da cons- vista epistemológico.
ciência”* como ““consciência cognos- Também se falou de conhecimen-
cente”*. Exemplos destes intentos são to imediato — que às vezes se equi-
encontrados em vários autores: prag- parou ao mencionado conhecimen-
matistas (Dewey, James), existencia- to sensível — e de conhecimento me-
listas (Sartre) e outros não facilmen- diato — que frequentemente foi
te classificáveis, como Ortega y Gas- equiparado a um conhecimento in-
set, Heidegger, Gilles-Gaston-Gran- teligível, isto é, a um conhecimento
ger, etc. Limitar-nos-emos a subli- de verdades de razão, ou ao conhe-
nhar aqui a doutrina de Ortega, na cimento que se adquire através de in-
qual o conhecimento é examinado ferências.
como um saber: o “saber a que se Falou-se ainda de um conhecimen-
ater”. Nega-se assim que o conhe- to a priori e de um conhecimento a
cimento seja conatural e consubstan- posteriori, de um conhecimento ana-
cial ao homem, isto é, que o homem lítico e de um sintético. Tratamos
seja fundamentalmente “um ser destas questões nos artigos A PRIO-
pensante”. Isto não equivale a de- RI, ANALÍTICO E SINTÉTICO.
fender uma teoria ““irracionalista” Fez-se uma distinção entre formas
do conhecimento; equivale a não ter de conhecimento de acordo com os
o conhecimento como suposto e a se objetos que se trata de conhecer.
perguntar o modo como ““se fun- Voltou-se a falar de novo a este res-
damenta”'. peito, de conhecimento sensível, en-
Formas de conhecimento. Referi- quanto conhecimento de coisas e ob-
mo-nos antes aos chamados ““conhe- Jetos apreensíveis pelos sentidos, co-
cimento sensível” e “conhecimento mo as coisas e os objetos físicos (ou
inteligível”, que correspondem gros- macrofísicos), e de conhecimento in-
CONSCIÊNCIA MORAL 126

teligível, enquanto conhecimento de ram, com efeito, em que sentidos se


relações, objetos abstratos, etc. Al- pode falar de uma voz da consciên-
gumas vezes se classificaram os pos- cia e, sobretudo, qual é — se acaso
síveis objetos de conhecimento em existe — a origem de tal “voz”. No
classes de objetos correspondentes a que tange ao primeiro ponto, mui-
tipos ou, pelo menos, a variedades tas são as definições dadas pelos fi-
de conhecimento. Assim ocorreu lósofos. Para uns (como Sócrates),
quando se falou de conhecimento da a consciência moral pode ser um dos
Natureza, diferente do conhecimen- aspectos do “demônio” que inter-
to do homem e dos “objetos huma- vém em momentos decisivos da exis-
nos” (ações, valorações, experiências tência humana (e aparece, cumpre
individuais, objetos culturais, inst1- notar, não indicando o que se deve
tuições, processos históricos, etc.). fazer, mas o que se deve omitir). Pa-
Deste modo estabeleceu-se a divisão ra outros (como Aristóteles), surge
entre ciências naturais e ciências do como algo oriundo do sentido mo-
espírito (ou ciências sociais, ciências ral; a consciência moral identifica-se
humanas, ciências da cultura, etc.). frequentemente, nos textos do Esta-
O problema das formas de conheci- girita, com à poovnois. Os estóicos
mento neste sentido está relaciona- acentuam a natureza racional da mo-
do com o problema da classificação ral; em conseqiência disso, a cons-
de conhecimentos, ou saberes. ciência moral é, para eles, a voz ra-
Além das formas antes menciona- cional da natureza. Muitos Padres da
das de conhecimento imediato e me- Igreja e muitos escolásticos enten-
diato, falou-se de conhecimento por. dem a consciência moral como uma
contato ou presença direta e de co- sindérese. Além disso, Santo Tomás
nhecimento por descrição. Também fala da consciência moral como um
se distinguiu entre conhecer algo, co- spiritus corrector et paedagogus ani-
nhecer que algo é de tal ou qual mo- mae societatis, espírito que indica se
do e conhecer algo como é. Trata- um ato é justo ou não.
mos desta questão e concomitante- Em Les passions de I'âme (II, art.
mente de algumas formas de conhe- 177), Descartes fala de um remorso
cimentos aludidos nesta seção no de remorso de consciência (remords
verbete CONHECER. de conscience) como de uma ““espé-
cie de tristeza que vem da dúvida so-
CONSCIÊNCIA MORAL O senti- bre uma coisa que se faz ou se fez
do da expressão ““consciência mo- é boa: pois, se estivéssemos inteira-
ral”* foi popularizado através de fra- mente seguros de que o que se faz é
ses como ““voz da consciência”, mau, absternos-íamos de fazê-lo,
““apelo à consciência”, etc. Mas em tanto mais que a vontade só se diri-
seu sentido mais comum, a consciên- ge às coisas que possuem alguma
cia moral aparece como algo dema- aparência de bondade; e, se tivésse-
siado simples; os filósofos investiga- mos a certeza de que aquilo que já
127 CONSCIÊNCIA MORAL

se fez é mau, deveríamos sentir ar- pois isso é consegiiência da educação


rependimento [repentir] e não ape- recebida. Os pensadores ingleses mo-
nas remorso”. À primeira vista, pa- dernos — pelo menos desde Locke
rece que Spinoza opina algo seme- — referiram-se à consciência como
Ihante ao falar de conscientiae mor- O que sanciona ou corrige o compor-
sus, “mordida de consciência” que tamento, ou como a idéia que ante-
define como ““a tristeza que se opõe cipa essa sanção.
à delícia” (gaudium), definida por A dimensão moral da consciência
sua vez como
a alegria (laetitia) ori-
ginada da imagem de uma coisa su-
parece adquirir um perfil mais def1-
nido quando, aproximadamente des-
cedida e de cujos resultados tínha- de Wolff e Kant, essa consciência
mos duvidado (EFfica, III, prop. passou a ser cada vez mais interpre-
XVIII esc. 2). Contudo, pela mesma tada como uma faculdade que julga
definição que Spinoza dá de cons- a moralidade de nossas ações. Kant,
cientiae morsus, pode-se perguntar sobretudo, entendeu esta faculdade
se tem sentido moral. Segundo Bid- de julgar como uma faculdade que
ney (The Psychology and Ethics of se dirige ao próprio sujeito que Jjul-
Spinoza, 1940, p. 198), não é 1sso o ga. Este aspecto imediato da cons-
que ocorre. Trata-se simplesmente ciência moral foi levado às suas úl-
da “pena ou arrependimento que se timas consequências por Fichte e —
sente de que algo que uma vez foi com mais atenção ao ético propria-
meramente objeto de esperança ou mente dito — por Hegel. Vários au-
de temor tenha realmente ocorrido tores, com destaque especial para
— e não a que se sente quando algo Francis Hutcheson, Richard Cum-
teria tido que suceder de um outro berland e Adam Smith, mostraram-
modo. Isso levou alguns tradutores se propensos a identificar a consciên-
a preferirem verter conscientiae mor- cia moral com o sentido moral. Em
sus como “desilusão' em vez de “re- autores do século XX foi frequente
morso?”'. A definição que Spinoza acentuar não a admoestação da
dá de poenitentia (““penitência”, consciência moral a respeito do fu-
“arrependimento”) em “Affectuum turo mas, sobretudo, a respeito do
Definitiones, XXVII” — ““a triste- passado (é o caso de Schopenhauer,
za concomitante com a idéia de al- como Já tinha sido o de Spinoza).
gum ato que cremos ter realizado por Nos últimos cem anos, a concepção
um livre decreto da mente”, parece da consciência moral acompanhou
estar mais perto, segundo Bidney, de com muita fidelidade as linhas gerais
uma noção de consciência moral. O das éticas correspondentes: os neo-
citado autor recorda que para Spi- Kkantianos definiram a consciência
noza “nada há de surpreendente [mi- moral em conformidade com a idéia
rum non essel””, em que a tristeza de dever; os partidários da ética ma-
[tristitia, “pena”, “dor”*] se siga ao terial dos valores definiram-na como
cometimento de atos equivocados, o produto das exigências apresenta-
128
CONSCIÊNCIA MORAL

das por estes últimos; os intuicionis- consciência moral revela-se como o


tas éticos basearam-na na chamada chamado (ou ““vocação”*) do cuida-
intuição moral; os utilitaristas defi- do enquanto ser da Existência, a
niram-na em função do bem-estar do consciência moral é sempre a minha;
maior número, etc. Não faltou quem nenhum homem pode pedir a ajuda
acentuasse o caráter estritamente So- ao outro (ou a outros) para determi-
cial da consciência moral, ou o seu nar qual é o chamado ou vocação
caráter estritamente natural (marxis- que lhe é próprio e que se manifesta
mo, darwinismo ético), ou que ten- pelo ““dizer calando”* de sua cons-
tasse “desmascarar” a consciência ciência moral.
moral como uma traição à ““vida” A descrição anterior segue grosso
(Nietzsche). Scheler considerou que modo a linha histórica. É possível
a noção filosófica de consciência mo- apresentar também a questão de um
ral é um eco deixado pela crença re- modo sistemático atendo-se aos
ligiosa; como eco, é algo de nature- grandes princípios segundo os quais
za “crepuscular” (Ethik, II, 7) e que a consciência moral é definida. Foi
não pode adquirir vida de novo sem o que fizeram Eduard von Hartmann
submergir outra vez na dita crença. e H. G. Stoker. O primeiro classifi-
Heidegger examinou o problema da cou as diversas teorias sobre a cons-
consciência moral num sentido pa- ciência moral segundo o caráter dos
recido ao das outras manifestações princípios morais sustentados. Dai a
da Existência (ver), ou seja, desde sua descrição da consciência moral
um ponto de vista existencial. À pseudomoral (egoísta ou individual-
consciência moral é um chamado, eudemonista, e heterônoma ou au-
um ““vocar” que revela à existência toritária) e da consciência moral au-
sua vocação (Ruf), o que ela é em têntica (moral do gosto ou dos prin-
sua autenticidade. E uma “voz” que cípios morais estéticos, moral do sen-
não diz nada, que permanece silen- timento, moral da razão ou dos prin-
ciosa, porque não vem de fora mas cípios morais racionalistas). O segun-
de dentro da Existência. E, para usar do se ateve a uma fenomenologia da
os termos da versão espanhola de Jo- consciência moral segundo a qual os
sé Gaos, um ““avocar”º ao “ser si diversos modos de aparição desta
mesmo da Existência para que saia consciência condicionam as diversas
de seu estado de perda na ““gente” teorias.
(ou no “se”). A consciência moral Também cabe uma classificação
é, polis, para Heidegger, um fenôme- da noção de consciência segundo a
no existencial que parte da Existên- sua origem. Por esse ângulo, a cons-
cia e se dirige à Existência. Em su- ciência pode ser inata ou adquirida,
ma, a Existência, no fundo de seu es- Isto é, de origem divina ou então de
tado de “inospitalidade” no mundo, fontes humanas (se for humana, po-
é o verdadeiro “vocador da vocação derá ser individual ou social, natu-
da consciência moral”. Por isso, a ral ou histórica); pode-se entender
129 CONTINGÊNCIA

como racional ou irracional, pessoal que defendiam a separação na cria-


ou impessoal, autêntica ou inau- tura e em todo o criado entre a es-
têntica. sência e a existência, acentuavam oO

caráter contingente de todo o cria-


CONTINGÊNCIA Para Aristóteles, do, com a intenção de mostrar mais
o contingente, 7ô evôexóouevor, con- facilmente que o criado — e em par-
trapõe-se ao necessário, 1ô àavary- ticular o homem — dependiam do
xatov. À expressão “É contingente Criador. Assim, a separação comple-
que p”* (em que p representa uma ta entre um ser necessário e os seres
proposição) é considerada em lógi- contingentes seria uma suposição in-
ca uma das expressões modais. O dispensável para a demonstração da
sentido de “E contingente” é discu- existência de Deus. Santo Tomás era,
tido. Alguns consideram que “É segundo parece, inteiramente par-
contingente que p” é o mesmo que tidário desta posição. Entretanto,
“É possível que p” e “É possível que cumpre levar em conta que o uso de
não p*'. Na literatura lógica clássi- contingens, mesmo em Santo To-
ca, é frequente definir a contingên- más, é muito mais complexo do que
cia como a possibilidade de que al- se depreende das análises anteriores.
go seja e a possibilidade de que algo Com efeito, ele afirma, como Já as-
não seja. Se o termo ““algo” se refe- sinalamos, que contingente é ““o que
re a uma proposição, a definição cor- pode ser e pode não ser” (S. Theol.,
responde efetivamente à lógica; se Il, q. LXXXVI, 3 o); diferentemente
“algo” designa um objeto, corres- do necessário, que por sua causa não
ponde à ontologia. pode não ser. Mas quando Santo To-
As definições medievais de ““con- más chega à demonstração da exis-
tingente** podem resumir-se na tese tência de Deus, sustenta haver algo
de Santo Tomás, segundo o qual (co- necessário nas coisas. Essa necessi-
mo vimos a propósito do sentido ló- dade não é, com certeza, uma neces-
gico) o contingente é aquilo que po- sidade absoluta; é uma necessidade
de ser e pode não ser. Neste sentido, per aliud, que implica outro ser, mas
o ens contingens contrapõe-se ao ens não converte a criatura em algo in-
necessarium. Metafisicamente, o en- teiramente dependente em seu ser de
te contingente foi considerado aquele outra realidade, como se não tivesse
que não é em si mas em outro, e isto nenhuma realidade própria. Pois o
de tal forma que todo ens contingens ser contingente puro, sendo corrup-
é um ens ab alio. Estas definições tível, não pode ser aplicado sem mais
suscitaram toda espécie de proble- à alma humana, que não é cor-
mas, sobretudo questões pertinentes ruptível.
à relação entre o Criador e o criado. Os problemas acima citados não
Mencionaremos apenas uma delas a foram abandonados, de todo em to-
título ilustrativo. Diz-se, com efeito, do, na filosofia moderna, e alguns
que os escolásticos, em especial os filósofos, como Leibniz, dedicaram-
CONTRADIÇÃO 130

lhe considerável atenção. Assim, a mes à experiência, mas achamos que


conhecida distinção entre verdades isso seria equivalente à introdução de
de razão e verdades de fato pode ser suposições desnecessárias numa aná-
equiparada a uma distinção entre o lise primária do significado e do sen-
necessário e o contingente. tido fundamentais do princípio. Ob-
servamos que a expressão ““ao mes-
CONTRADIÇÃO Esta noção é tra-
dicionalmente estudada sob a forma
mo tempo e sob a mesma relação”
mencionada acima ao referirmo-nos
de um princípio: o chamado ““prin- ao sentido ontológico do princípio de
cípio de contradição” (que também contradição é absolutamente neces-
poderia chamar-se o ““princípio de sária para que o princípio seja váli-
não-contradição”). Com freqgiência, do; a ausência de tal restrição per-
tal princípio é considerado ontológi- mitiria fáceis objeções contra o
co e, neste caso, enuncia-se da se- mesmo.
guinte maneira: “É impossível que O primeiro pensador a apresentar
uma coisa seja e não seja, ao mes- o princípio de contradição em for-
mo tempo e sob a mesma relação.” ma suficientemente ampla foi Aris-
Outras vezes, é considerado um prin- tóteles. Em sua obra há várias par-
cípio lógico (numa acepção ampla tes consagradas ao tema; citamos,
deste termo) e enuncia-se do seguin- entre as mais destacadas, De inter-
te modo: “Não, ao mesmo tempo, pretatione, 17 a 23, 17 bl6ess.,
p e não p”, onde “p” é símbolo de Analitica posteriora, 77 a 10 ess., 88
um enunciado declarativo. a 35 e ss.; Metaphysica T' 1005 b
Alguns autores sugeriram haver 15 ss., e ibid., 30 e ss. Nem sempre
também um sentido psicológico do o princípio é formulado do mesmo
princípio, o qual se enunciaria então modo. As vezes se apresenta como
assim: “Não é possível pensar ao uma das “noções comuns” ou “axio-
mesmo tempo p e não p” (se o con- mas” que servem de premissa para
teúdo do pensar é lógico) ou então todas as demonstrações, sem que
“não é possível pensar que uma coi- possam essas mesmas noções co-
sa seja e não seja ao mesmo tempo, muns ser demonstradas, às vezes se
e sob a mesma relação” (se o con- apresenta como uma noção comum
teúdo do pensar é ontológico). Por usada para a prova de certas conclu-
nossa parte, consideramos que o sões. Por vezes, se apresenta ainda
“sentido psicológico” deve ser elimi- como a tese segundo a qual se uma
nado; a impossibilidade de pensar al- proposição dada é verdadeira, à sua
go é um fato e não um princípio. negação é falsa, e se uma proposi-
Maior Justificação teria o princípio ção é falsa, a sua negação é verda-
desde o ponto de vista epistemoló- deira, quer dizer, apresenta-se como
gico, enquanto lei “mental”, “sub- a tese segundo a qual duas proposi-
Jetiva” ou “transcendental” que tor- ções contraditórias não podem ser
naria todos os nossos juízos confor- ambas verdadeiras ou ambas falsas.
131 CONTRADIÇÃO

Pois bem, todas as formulações po- lógico e metalógico, em contrapar-


dem reduzir-se às três já citadas in- tida, tratou-se sobretudo de saber se
terpretações: a ontológica, a lógica o princípio deve ser considerado um
e a metalógica. No primeiro caso, o axioma evidente por si mesmo ou co-
princípio refere-se à realidade; no se- mo uma convenção da nossa lingua-
gundo, converte-se numa fórmula ló- gem que nos permite falar acerca da
gica ou numa tautologia da lógica realidade.
sentencial, que se enuncia do seguin- Baseando-se, por um lado, em He-
te modo: gel e, por outro, no exame da real!1-
dade social e histórica (e na ação a
I(DA Ip)
desenvolver sobre essa realidade),
e a que sedá usualmente o nome de Marx propôs uma dialética (ver), na
“lei de contradição”. Sendo uma qual o princípio ou lei de contradi-
tautologia, sua tabela de verdade dá ção era superado. Mais sistematica-
vês para todos os valores de verda- mente, Engels formulou como duas
de de “p”*. No terceiro caso, o prin- das três “grandes leis dialéticas”', a
cípio é uma regra que permite exe- “lei da negação da negação” e a “lei
cutar inferências lógicas. da coincidência dos opostos”. Tam-
As discussões desenvolvidas em bém estas leis, e de uma forma de-
torno do princípio de contradição di- veras determinante, pareciam negar
feriram segundo se tenha ressaltado o princípio lógico da contradição. De
o aspecto ontológico (e principal- um modo geral, tanto os materialis-
mente metafísico) ou o aspecto lógi- tas dialéticos que poderíamos quali-
co e metalógico. Quando predomi- ficar de ““clássicos”* (até a Revolu-
nou o lado ontológico, tratou-se so- ção Soviética de 1917) quanto os
bretudo de afirmar o princípio como marxistas-leninistas e os materialis-
expressão da estrutura constitutiva tas dialéticos das últimas gerações,
do real, ou então de negá-lo por em particular os soviéticos, encara-
supor-se que a própria realidade é ram com desconfiança o princípio de
“contraditória” ou que no proces- contradição, por suporem que ele
so dialético de sua evolução a real1- não considera o “movimento dialé-
dade ““supera”, “transcende” ou tico da realidade”. De vez em quan-
“vai mais além” do princípio de con- do, porém, suscitaram-se debates a
tradição. A tal respeito, é típica a po- respeito. Alguns autores declararam
sição de Hegel quando faz da con- que, embora o princípio ““clássico””
tradição uma das bases do movimen- de contradição deva manter-se na ló-
to interno da realidade, ainda quan- gica e até na linguagem das ciências,
do se tenha de levar em conta que, cumpre adotar princípios dialéticos
na maioria dos casos, os exemplos distintos ao tratar-se da realidade hu-
dados pelo filósofo não se referem mana e social. Outros tentaram de-
a realidades contraditórias, mas con- rivar leis lógicas das leis dialéticas
trárias. Quando predominou o lado que negam o princípio clássico ou o
CONTRADITÓRIO 132

colocam entre parênteses. É interes- Se A é verdadeira, O é falsa.


sante, a este respeito, a discussão Se A é falsa, O é verdadeira.
ocorrida em Moscou, em 1958, en- Se E é verdadeira, I é falsa.
tre vários materialistas dialéticos so- Se E é falsa, I é verdadeira.
viéticos (embora alguns deles, como A contradição refere-se a propo-
E. Kolman, fossem tchecos). Segun-
sições, não a idéias. As idéias não
do a informação proporcionada por
são contraditórias entre si; só podem
N. Lobkowicz (cf. infra), enquanto
ser contraditórias as proposições nas
certos autores mantinham as leis dia-
léticas ““clássicas”* com todo o radi- quais se afirma ou se nega algo.
Nas expressões veritativo-funcio-
calismo e todas as suas consequên-
nais (ver VERITATIVO-FUNCIO-
cias, outros (como o citado Kolman)
assinalaram que, embora haja con- NAL), a contradição mostra-se me-
tradições na realidade, isto não sig- diante tabelas de verdade. Se consi!-
nifica que elas devam conceber-se deramos:
igualmente no pensamento. Neste, o (DAq)—p (1)
princípio de contradição (ou não
contradição) é correto. Indicou-se (PDA q—-p) (2)
também que a chamada ““contradi-
ção” refere-se a vigor (ver supra), a e damos como tabela de verdade
“contrários” e não a “contraditó- de (1):
rios”. É plausível supor que esses de-
bates tenham sido suscitados, em
parte, pela importância que a lógica
<<se<<

formal adquiriu e pela impossibilida-


de de encaixar dentro desta as ““leis
dialéticas”* clássicas. a tabela de verdade de (2) será:
F
CONTRADITÓRIO Referimo-nos
F
no presente artigo à relação de opo- F
sição entre proposições contraditó- F
rias e entre funções de verdade con-
traditórias. onde se mostra que as expressões em
A relação de oposição entre pro- questão são mutuamente excluden-
posições contraditórias (ver PRO- tes, não podendo ser as duas ver-
POSIÇAO) é a que se verifica entre dadeiras, e a verdade de uma im-
as proposições A-O e E-I. Segundo plicando falsidade da outra e vice-
a relação de oposição contraditória, versa.
duas proposições contraditórias não
podem ser simultaneamente verda- CONTRÁRIO À relação de oposi-
deiras nem podem ser simultanea- ção entre as proposições A e E dá-se
mente falsas. Por conseguinte, o nome de relação de contrariedade,
133 CORPO

e tais proposiçõessão, portanto, di- até que ponto, o que se diz a respei-
tas “contrárias”. Na lógica clássica, to de algo e, em geral, a própria lin-
a relação de contrariedade afirma guagem que se usa para dizê-lo, é re-
que duas proposições contrárias não sultado de convenções. Se, como
podem ser ao mesmo tempo verda- pensou a maioria dos sofistas, a res-
deiras, mas podem ser ao mesmo posta é positiva, então deve-se re-
tempo falsas. Assim: nunciar a encontrar enunciados, teo-
rias ou doutrinas absolutamente cer-
Se A é verdadeira, E é falsa.
A falsa, E pode tas. O caráter aceitável de um enun-
Se é ser falsa.
E ciado, de uma teoria ou de uma dou-
Se é verdadeira, A é falsa.
trina é função das convenções de
Se E é falsa, A pode ser falsa.
princípio adotadas, ou seja, de que
Na lógica clássica, a distinção da se tenha chegado — não necessaria-
matéria da proposição em matéria mente de um modo explícito — a um
necessária e matéria contingente in- “acordo” no tocante a certas ““ver-
troduz uma restrição na afirmação dades”* básicas. Platão opôs-se ao
“Se A é falsa, E pôde ser também “convencionalismo”* dos sofistas,
falsa.”* Com efeito, considera-se que pelo menos na medida em que po-
quando a matéria é necessária, ou se- dia desembocar num relativismo.
ja, quando P pertence à essência de O convencionalismo próprio de
S, duas proposições contrárias não todo chamado ““contrato social” está
podem ser ao mesmo tempo falsas. destinado a evitar a “proliferação
A relação de contrariedade ocorre anárquica”* de opiniões em matéria
também nos termos e nas propos!- política e social. Entretanto, o ter-
ções modais. Referimo-nos no mes- mo ““convencionalismo*”* foi usado
mo artigo aos dois tipos de proposi- com maior frequência a respeito de
ções contrárias (contrárias simples e discussões sobre a natureza das teo-
contrárias oblíquas) resultantes do rias científicas, embora possa abran-
cubo de oposição proposto por Hans ger discussões sobre a natureza de
Reichenbach (ver “The Syllogism quaisquer teorias.
Revised”, Philosophy of Science,
XIX, 1952). CORPO Entende-se por “corpo”:
(1) Um objeto físico que possui pro-
CONVENCIONALISMO A distin- priedades sensíveis, ou que possui
ção proposta pelos sofistas entre o propriedades tais que causam nos se-
que é por natureza, voe (“por nas- res humanos e, em geral, nos orga-
cimento”, “por sua origem [natu- nismos biológicos, impressões, ou es-
ral”), e o que é por “lei”, vouo, tímulos, ou ambas as coisas. Supõe-
equivale em muitos casos a uma dis- se que um corpo tem determinada
tinção entre “verdadeiro” ou “real” extensão. (2) À matéria orgânica que
(ou ““verdadeiro-real”*) e “conven- constitui o homem e os animais. (3)
cional”. Os sofistas discutiram se, e Especificamente, a matéria orgâni-
CORPO 134

ca que constitui o homem, o chama- o corpo — todo corpo — como O úl-


do “corpo humano”. timo elo na cadeia da emanação
Desde os gregos, a noção de cor-
po vem sendo considerada nos três
(ver). Contudo, a distinção propos-
ta por Plotino entre o sensível e o in-
sentidos antes mencionados. Por ve- teligível aplica-se a todas as esferas
zes, deu-se especial ênfase à acepção da realidade — exceto ao puramen-
(3), mas o interesse por ““o corpo”, te inteligível — e, por conseguinte,
enquanto “meu corpo”, adquiriu também ao corpo. Há, assim, um
preponderância particular a partir da corpo sensível e um corpo inteligií-
época contemporânea. Quando, no vel (cf. Plotino, Enéadas, IV, vil e
passado, o interesse se concentrou na viii). Neste sentido, o neoplatonismo
acepção (3), a noção de corpo era opõe-se às teorias estóicas e epicuris-
considerada em relação com a de al- tas, as quais, em dadas ocasiões,
ma, formulando-se o problema cor- afirmam que tudo o que há é corpó-
po-alma, ou corpo-espírito, corpo- reo.
psique, corpo-mente, etc. A possível inteligibilidade ou espr-
Aristóteles concebeu o corpo co- ritualidade do corpo é destacada pelo
mo uma realidade limitada por uma cristianismo (ver, por exemplo, I Co-
superfície. O corpo tem extensão; na ríntios, 6:19). Alguns Padres da Igre-
realidade, tem o seu próprio espaço ja distinguiram, pelo menos no ser
e é uma substância. O corpo não é humano, entre corpo e matéria. Os
pura matéria ou pura potência: es- mais influenciados pela tradição pla-
tá, de algum modo, “informado” tônica e neoplatônica viram na ma-
(cf. Física, IV. 4. 204 b, 205 b; V, téria uma espécie de “mal”, muito
1; 208 b; VIII, 2. 253 a). distanciado, senão infinitamente dis-
Muitas discussões sobre a noção tanciado, do “Ser”. O corpo huma-
de corpo na Antiguidade gravitaram no, em contrapartida, pode ser trans-
em torno da questão de se o corpo formado e, em última instância,
está ou não ““penetrado*” por uma “transfigurado”. São Paulo havia
forma (“in-formado”). Os aristoté- falado (I Coríntios, 15:44) do ““cor-
licos responderam afirmativamente po espiritual”, não submetido à ma-
à questão, alguns platônicos, e pos- téria. Essa noção de corpo espiritual
sivelmente alguns pitagóricos, foram foi objeto de especulação por parte
propensos a considerar o corpo — de muitos teólogos cristãos.
neste caso, o corpo orgânico e, so- Na época moderna continuaram
bretudo, o corpo humano — como muitas das discussões antigas e me-
o sepulcro da alma. Segundo eles, o dievais sobre a noção de corpo en-
corpo não tem, em princípio, forma, quanto realidade material e sobre a
Já que a alma não se encontra nele relação entre corpo (humano) e al-
como um elemento que dá forma e ma — o tradicionalmente chamado
sim como ““prisioneira””. A tendên- “problema da relação entre a alma
cia dos neoplatônicos foi considerar e o corpo” ou, para abreviar, o
135 CORPO

“problema alma-corpo”, que em objeto das demonstrações geomé-


épocas mais recentes foi reformula- tricas.
do e consideravelmente modificado A matéria é substância extensa, Já
como o problema da relação entre o que o corpo é matéria, e tem as pro-
físico e o psíquico, e amiúde como priedades deste tipo de substância:
o problema da relação entre o físico fundamentalmente, as propriedades
e o mental, ou o problema da rela- geométricas da extensão.
ção entre o corpo e a mente. Partindo de Descartes, começou
Na época moderna, e especialmen- Spinoza por conceber a natureza do
te nos séculos XVII a XIX, persisti- corpo — ““ou seja, da matéria” —
ram algumas das noções tratadas no como consistindo unicamente na ex-
decorrer do que chamamos as ““dis- tensão (Princ. phil. cart., Parte LL,
putas tradicionais” sobre a relação prop. ii), mas, ao contrário de Des-
entre corpo e alma. Ao mesmo tem- cartes, não distinguiu entre substân-
po, adicionaram-se noções novas ou cia extensa e pensante, que são atri-
modificaram-se os sentidos de algu- butos de uma mesma substância
mas das já usadas antes. Isto se de- (ver). Spinoza define o corpo do se-
ve, em grande parte, a mudanças ex- guinte modo: “Por corpo entendo
perimentadas na concepção de ““cor- um modo que expressa, de maneira
po material””, em conseqiência de certa e determinada, a essência de
vários desenvolvimentos da ciência Deus, enquanto esta é considerada
moderna — sobretudo, na área da fi- como coisa extensa” (Erica, Parte II,
sica — e especialmente como seque- Definição 1). Uma vez que corpo
la do predomínio alcançado duran- (extensão) e alma (pensamento) são
te um certo tempo pelo chamado duas formas de uma mesma substân-
“mecanicismo”* — o qual esteve as- cia, o dualismo cartesiano corpo-
sociado, em alguns autores, a um espírito traduz-se num “monismo”
dualismo radical do corpo e da al- (ver). E importante esclarecer, entre-
ma, ou da extensão e o do pensamen- tanto, que embora Spinoza defenda
to (atividade mental em geral), e em a identidade substancial de corpo e
outros autores deu lugar a várias te- alma, foi mantida uma diferença de
ses concernentes à identidade ““fíisi- modos. A alma (mens, mente) é uma
co-mental*'. colsa pensante que forma conceitos
Muito influente foi a distinção chamados ““déias”. O corpo (huma-
proposta e insistentemente desenvol- no) é ““o objeto da idéia que consti-
vida por Descartes entre a substân- tui a mente humana”, isto é, “certo
cia ou “coisa” extensa, res extensa, modo da extensão existente em ato”
e a substância ou ““colsa” pensante, (Etica, Parte II, prop. xiii). Assim,
res cogitans. O corpo é substância “o homem consiste numa mente e
extensa. Continua sendo certa, pois, num corpo, o qual existe como o ex-
que para Descartes ““a essência dos perimentamos”' (ibid., Cor.). Tam-
corpos é a extensão”* — enquanto bém partiram de Descartes os oca-
CORPO 136

sionalistas, mas deram soluções dis- nica de Newton, Boscovich conside-


tintas tanto da cartesiana quanto da rou que os corpos, quer dizer, a ma-
spinoziana ao problema da relação téria “é imutável, e consiste em pon-
corpo-alma, relação que lhes interes- tos que são perfeitamente simples,
sou mais do que o problema, seja indivisíveis, inextensos e separados
“físico”, seja “metafísico”, da na- entre si”* (Theoria philosophiae na-
tureza dos corpos. turalis, Sinopse, Parte 1). Isto não é
Enquanto era comum conceber negar a existência de uma realidade
o corpo como entidade ““física”, corporal ou física — em contraste
quaisquer que fossem suas caracte- com o ““imaterialismo”* de Collier,
rísticas “metafísicas”', Leibniz con- Berkeley e outros autores — mas es-
siderou que os traços físicos dos cor- sa realidade interpreta-se cinemáti-
pos são “fenomênicos”'. Segundo ca e não dinamicamente.
Leibniz, o corpo físico é um aggre- A idéia de corpo desempenha
gatum de mônadas. Diferentemente um papel capital na filosofia de Hob-
de Descartes, Leibniz afirma que os bes, para quem toda realidade é cor-
corpos não possuem apenas proprie- poral, sendo a filosofia o estudo dos
dades geométricas — ou suscetíveis corpos e de seus movimentos. Nem
de serem descritas em termos geomé- todos os corpos são, contudo, seme-
tricos —, as quais são ““estáticas”'; Ihantes, já que existem corpos natu-
eles possuem também propriedades rais e corpos soclais. Para Locke, é
“dinâmicas”. Todo corpo tem uma preciso distinguir (em oposição a
“força” própria. Descartes) entre corpo e extensão;
Metafisicamente, as idéias (meta- enquanto ““o corpo é sólido e exten-
físicas) de Leibniz sobre os corpos SO e suas partes são separáveis e mo-
foram similares às desenvolvidas pe- víveis em distintos modos”, a exten-
los platônicos de Cambridge, mas há são é só ““o espaço que existe entre
entre umas e outras algumas diferen- as extremidades dessas partes coeren-
ças importantes que Leibniz se encar- tes sólidas” (Essay, II, xiii, 11).
regou de sublinhar. Chamou-se por Cumpre distinguir também entre cor-
vezes à concepção leibniziana ““dina- po e espírito, ou mente, mas isto
mismo” ou ““dinamicismo”. Em equivale a distinguir entre dois tipos
sentido muito amplo e geral, estão de idélas complexas de substância.
dentro desta concepção idéias bas- Ainda que a distinção entre “ma-
tante distintas em outros aspectos, terialismo” e “espiritualismo” seja
entre as quais podem mencionar-se demasiado genérica, pode-se recor-
as propostas por Kant na sua Mona- rer a ela para agrupar certos auto-
dologia física e, sobretudo, as de res, em especial nos séculos XVIII e
Boscovich. Em seu intento de desen- XIX, os quais consideraram, respec-
volver uma teoria física que tivesse tivamente, que os corpos, enquanto
caracteres comuns simultaneamente entidades materiais, são a única rea-
com as teorias de Leibniz e a mecâ- lidade existente, e que, em última
137 CORPO

Instância, só existem realidades in- ver o corpo “em sua liberdade”


corpóreas. O mais comum nos dois (Ideen, II. Husserliana, IV, p. 282).
grupos de autores citados foi tratar Ora, diz Husserl que o corpo é uma
de “reduzir” um tipo de realidade à realidade bilateral quando a consi-
outra. As reduções propostas pelos deramos como corpo, quer dizer,
materialistas foram de várias classes: quando prescindimos de que é uma
só existe o corporal e não se pode fa- coisa e, com isso, algo determinável
lar com nexo de nada mental; o cha- como natureza física. Constitui-se
mado ““mental** nada mais é do que deste modo (1) o corpo estesiológi-
um epifenômeno do corporal. Tam- co, que na medida em que é sensib1-
bém foram de várias classes as redu- lizante depende do corpo material
ções propostas pelos antimaterialis- mas não é identificável com este; (2)
tas e “espiritualistas”: só existe o o corpo volitivo, que se move livre-
mental; o corporal apresenta-se co- mente e é algo idêntico a respeito dos
mo uma ““resistência” que se ofere- distintos movimentos possíveis que
ce ao mental ou espiritual enquanto o espírito nele realiza com liberdade
consciência ou eu, etc. Uma forma (ibid., 284).
idealista desta última concepção é a Para Gabriel Marcel, há duas ma-
de Fichte. Em formas não necessa- neiras de considerar o corpo: pode
riamente idealistas, a mesma concep- tratar-se de “meu corpo”, em cujo
ção foi defendida por autores como caso a relação é de natureza absolu-
Maine de Biran (o corpo é uma re- tamente singular. De fato, a relação
sistência oposta ao esforço e vonta- entre a alma e o corpo (ou, mais exa-
de do “eu íntimo”), Fechner (o cor- tamente, a relação entre mim e meu
po é como a face “externa” da vi- corpo) é um mistério e não um pro-
da, a qual tem um caráter “inter- blema. O corpo pode ser, por certo,
no”), Bergson (o corpo é como a dis- “obJjetivado””, convertido em obje-
tensão de uma realidade puramente to de conhecimento científico. Mas
“tensa””). Nenhum destes autores, então já não é propriamente o “meu
entretanto, elaborou de forma expli- corpo” (não é O corpo de ““nin-
cita uma “doutrina filosófica do cor- guém”!). E uma simples amostra.
po”, algo que será característico, Pois o que me é dado primariamen-
sim, de várias tendências de pensa- te não é tanto o corpo quanto o meu
mento no século XX. corpo, e isto constitui uma realida-
Na fenomenologia de Husserl, a de ““misteriosa”. Para Jean-Paul
noção de corpo desempenha um pa- Sartre, o corpo apresenta-se em três
pel importante. Corpo e alma for- dimensões ontológicas. Na primeira,
mam o “mundo circundante” do es- trata-se de um “corpo para mim”,
pírito (que é verdadeira e concreta in- de uma forma de ser que permite
dividualidade e personalidade). Em- enunciar “eu existo meu corpo”.
bora corpo e alma sejam determi- Dentro desta dimensão, o corpo é
nantes para o espírito, este pode mo- sempre o ““transcendido”. Pois o
CORPO 138

corpo que ““eu existo” é o que “eu son. A peculiar unidade do corpo,
continuamente transcendo para no- distinta da unidade do corpo como
vas combinações de complexos” objeto científico (Phénomeénologie
(L'Étre et le Néant, 5* edição, 1945, de la perception, 1945, pp. 203 e ss.),
p. 390) e por 15so o meu corpo per- não conduz à “redução do corpo”,
tence ““às estruturas da consciência nem no sentido do sensacionismo,
não-tética (de) si mesmo” (op. cit., nem no do idealismo. Na verdade,
p. 394). Na segunda dimensão, o parece que tal fenomenologia do cor-
corpo é para outro (ou então o ou- po, no sentido de Merleau-Ponty, dá
tro é para o meu corpo); trata-se, como resultado o céu aberto por
neste caso, de uma corporalidade ra- Descartes com a separação entre cor-
dicalmente diferente da do meu cor- po e alma, e soluciona todos os de-
po para mim. Pode-se dizer, então, bates havidos durante a época mo-
que “o meu corpo é utilizado e co- derna sobre esta questão. Assim, a
nhecido por outro”. “Mas na medi- “unidade da alma e do corpo — diz
da em que eu sou para outro, o ou- o citado autor — não fica selada por
tro se revela a mim como o sujeito meio de um decreto arbitrário entre
para quem sou objeto. Então eu exis- dois termos exteriores, um objeto
to para mim como conhecido por ou- e o outro sujeito. Ela realiza-se a
tro, em particular em sua facticida- cada instante no movimento da exis-
de mesma. Eu existo para mim co- tência”* (op. cit., p. 105). Com 1s-
mo conhecido pelo outro em forma to, Merleau-Ponty confirma a im-
de corpo” (op. cit., pp. 418-19). Es- possibilidade de estabelecer uma
ta é a terceira dimensão ontológica
do corpo dentro da fenomenologia
dualidade entre “meu corpo” e “mi-
nha subjetividade”, dualidade que,
ontológica do ser para outro e da segundo a observação de Alphonse
existência dessa alteridade. Também de Waelhens (“La Phénoménologie
Merleau-Ponty analisou in extenso o du Corps”, Revue philosophique de
problema do corpo e de sua percep- Louvain, 48 [1950], 371-97), desapa-
ção. O corpo como objeto é, em seu rece assim que se concebe a existên-
mais alto grau, o resultado da inser- cia como um ““ser-no-mundo”. Mas
ção do organismo no mundo do “em a negação da dualidade pode efetuar-
si” (no sentido de Sartre). Tal mo- se por outros caminhos e a partir de
do de consideração é obviamente le- pressupostos muito distintos. É o
gitimo. Mas não pode ser considera- que ocorre no livro de Gilbert Ryle,
do exaustivo e muito menos primá- The Concept of Mind (1949). Ryle
rio. Ora, essa anterioridade da des- opõe-se ao que chama a teoria do
crição fenomenológica do corpo le- “fantasma dentro da máquina” —
va, segundo Merleau-Ponty, a um a “doutrina oficial de toda a psico-
terreno que é anterior àquele a que logia moderna baseada no ““mito
a submissão da análise à descrição cartesiano da separação entre pensa-
dos “dados imediatos” levou Berg-
mento e extensão”. Em última ins-
139 CRENÇA

tância, essa separação baseia-se na preender as chamadas ““verdades da


hipótese realista do ““espírito”* ou da fé””*. Além disso, a crença requer a
“alma” como algo que, em princí- compreensão, como indica a frase de
plo, está separado das atividades psí- Santo Anselmo, Fides quarens intel-
quicas. Tratar-se-ia, pois, de um er- lectum. Seguindo a tradição agosti-
ro de linguagem ou, como diz Ryle, niana, Santo Anselmo desenvolveu
de um ““erro categorial””. A denún- o tema do “Creio para compreen-
cia do “mito cartesiano” implica a der”, ou Credo ut intelligam, cujas
negação tanto do materialismo quan- origens se encontram no 'Eav un
to do idealismo, tanto do mecanicis- TiTEUOnNTN, o vÔE uê uê OvuvnTtTE, Nisi Cre-
mo quanto do paramecanicismo — diderits, non intelligets. À menos que
todos eles conseqiência de uma fal- creias não entenderás (Isaías, VII, 9).
sa “lógica” do problema. Por isso Alguns autores julgaram que pode
é necessário dissipar o contraste en- haver conflitos entre crença e razão,
tre espirito e matéria sem admitir a mas que esses conflitos podem solu-
absorção de um elemento pelo outro clonar-se se a razão for corretamen-
— absorção que implica a admissão te usada — o que quase sempre equi-
de que ambos pertencem ao mesmo vale a supor que se deve partir da
tipo lógico. As duas expressões tra- crença como o fundamento desde o
dicionais, diz Ryle, não indicam duas qual se consegue a racionalidade (do
espécies diferentes de existência, mas que se crê). Outros autores susten-
sim dois sentidos distintos de ““exis- taram que há conflito entre crença
te”. É interessante assinalar como e razão, mas que então deve-se aban-
autores tão diferentes como Mer- donar esta para entregar-se àquela.
leau-Ponty e Ryle utilizam um mes- Testemunho extremo dessa atitude é
mo método descritivo em seu trata- o Credo quia absurdum. Também
mento da noção de ““corpo”. houve autores para quem o chama-
do “conflito entre a crença (ou fé)
CRENÇA Durante a Idade Média, e a razão” constitui manifestação do
quando por ““crer” entendia-se ““ter fato de existirem dois tipos de ““ver-
fé” (e, às vezes, “ter a fé”), debateu- dades”: as de crença e as racionais.
se amiúde o problema da relação en- E a posição da chamada ““verdade
tre crença e ciência, crença e saber, dupla”.
crença e razão. Também se pôde fa- O sentido mais “subjetivo” — o
lar, o que é feito com muita frequên- que não quer dizer necessariamente
cia, de ““fé e razão”. “arbitrário” — de “crença” foi mui-
Alguns consideraram que a razão to comum na época moderna, espe-
é uma preparação para a crença (ou cialmente na medida em que se su-
a fé). Isto equivale a supor que não pôs que a crença é uma manifesta-
há conflito entre ambas. Outros pon- ção da vontade, ou seja, uma anuên-
deraram que só é possível crer se se cia dada pela vontade. É provável
puder compreender, isto é, com- que haja antecedentes dessa concep-
CRENÇA 140

ção no estoicismo, na medida em que de que fala Kant não é a “fé” mas
se sublinhe o ““voluntarismo” de a razão prática. O terceiro ponto é
Duns Escoto. Essa concepção mani- que, em última instância, não há
festa-se igualmente no racionalismo duas espécies distintas de razão, que
e no empirismo modernos. Assim, sejam além do mais mutuamente in-
para o racionalismo, a crença é a evI- compatíveis, mas uma única espécie
dência de princípios inatos. Para o de razão. Por conseguinte, é errôneo
empirismo, a crença é a “adesão” à supor que Kant esteja manisfetando
vivacidade das impressões sensíveis. aqui O cepticismo anti-racionalista
Por exemplo, em Hume, a noção de ou o ““fideísmo”.
causalidade torna-se aceitável em vir- Os trabalhos relativos às chamadas
tude de uma crença natural que, ao “proposições de crença” — e, tam-
mesmo tempo que destrói a sua uni- bém, mais apropriadamente, “enun-
versalidade a priori, a torna plausi- clados de crença”? — dizem respeito
vel em virtude do hábito. Hume es- a expressões nas quais intervém o ver-
creve que o máximo que podemos fa- bo “crer”, usualmente (ainda que
zer em filosofia “é afirmar que a não necessariamente) na terceira pes-
crença é algo sentido pelo espírito, soa do singular do presente do indi-
que discrimina entre as idéias dos Juí- cativo (““crê que”). Em seu ensaio
ZOS e as ficções da imaginação” (En-
“ÚUber Sinn und Bedeutung”' [Sobre
quiry, V, 2). sentido e referência], em Zeitschrift
Cita-se amiúde uma frase do
fúurPhilosophie und philosophische
“Prólogo” da 2º? edição da Crítica Kritik, 100 (1892), 25-50, Frege cha-
da Razão Pura, de Kant: “tive de
afastar o saber para dar lugar à fé ma atenção para expressões que per-
(Glauben)”. Com esta frase, Kant tencem ao discurso indireto — cita-
parece dar a entender ou que a cren- ções indiretas e cláusulas nominais
ça (especialmente na esfera moral) é
abstratas introduzidas (comumente)
completamente independente do sa- mediante “que”. Trata-se de orações
ber, ou que existe, inclusive, um que contêm uma cláusula subordina-
“primado” da crença sobre o saber da. O problema que se apresenta é o
— o que poderia explicar o tão co- da denotação de semelhante cláusu-
mentado ““primado da razão práti- la. Na oração direta:
ca sobre a teórica”. Entretanto, é
A fruta-do-conde é comestível
preciso levar em conta vários pontos.
O primeiro é que o saber de que fala a denotação é, para Frege, o valor
Kant nessa frase não é o verdadeiro de verdade dessa oração. O mesmo
conhecimento ou a ciência, mas o Ocorre com a oração direta:
pretenso saber propugnado pelos ra-
A nona é comestível.
cionalistas, que faz uso de princípios
ditos supremos sem prévio exame e “Fruta-do-conde” é o nome que
crítica dos limites da faculdade cog- se dá a um fruto que em Santa Ca-
noscitiva. O segundo é que a crença tarina recebe o nome de “nona”.
141 CUIDADO

Não podemos saber, salvo por com- to é, que a crê e se expressa por
O
provação empírica, se a fruta-do- meio da proposição. Exemplos de
conde e a nona são o mesmo fruto. enunciados de crença são:
Se a oração “A fruta-do-conde é co-
mestivel” é verdadeira, e a oração “A “a crê que p”
nona é comestível” é verdadeira, a “a crê que não p”
denotação de ambas as orações é, se- “p é compatível com tudo o que
gundo Frege, o valor de verdade, “o acre.
PO)

verdadeiro”. Esta concepção da de-


notação foi muito discutida, mas ain- CUIDADO O vocábulo Sorge que
da que fosse aceita, subsistiria o pro- traduzimos aqui por “cuidado”, que
blema apresentado por Frege das ora- às vezes se traduz também por
ções que, nos exemplos dados, são
cláusulas subordinadas, tais como:
“preocupação” e alguns autores (na
esteira de Gaos) vertem em espanhol
Odorico crê que a fruta-do-conde para “cura”, desempenha um papel
é comestível. fundamental na filosofia de Heideg-
Odorico crê que à nona é comes- ger, pelo menos na que foi exposta
tível. na Primeira Parte de Ser e Tempo.
Heidegger declara, com efeito, que
Embora possa ocorrer (e de fato o cuidado é o ser da Existência (ver
ocorre) que tanto a fruta-do-conde EXISTÊNCIA). Tal cuidado deve
quanto a nona sejam comestíveis, ser entendido, sobretudo, num sen-
também pode acontecer que Odori- tido existencial; não se trata, pois, de
co creia que a fruta-do-conde é co- analisá-lo ôntica mas ontologica-
mestível e a nona é comestível. mente. É certo que existe uma com-
Propuseram-se muitas e diversas preensão pré-ontológica do cuidado,
soluções para o problema. Uma é a
a qual se expressa em exemplos tais
de Frege, segundo a qual a cláusula
como a fábula de Higino, onde se diz
subordinada denota o sentido. Ou-
que o cuidado, Cura, deu forma ao
tra é a de autores para os quais as homem e que por isso a Cura deve
orações com verbos proposicionais,
possuir o homem enquanto este vi-
como ““crer””, não são logicamente
elucidáveis. Outra, muito extensa, é va, ou numa passagem de Sêneca, na
a que tratou de elaborar uma ““lóg!- qual se afirma que o bem do homem
ca” da crença, isto é, uma lógica das realiza-se na Cura, no sentido que o
expressões cuja forma mais comum é: termo ueouiva tem entre os estóicos
gregos e ainda no Novo Testamento
a crê que p (na Vulgata, ueowsiva, é traduzida
em que ““a” simboliza alguém, um por sollicitudo). Mas a interpretação
sujeito, especificamente um sujeito ontológico-existencial da cura não é
que crê no que se diz em p, e em que uma simples generalização da com-
“p” simboliza uma proposição, 1s- preensão ôntico-existencial; se há ge-
CUIDADO 142

neralização, é ontológica e aprioris- Selbst gehr), e cuja realidade consis-


tica. Só assim se entende, segundo te em antecipar-se a si mesma,
Heidegger, que o cuidado não possa encontra-se o significado próprio do
reduzir-se a um impulso — a um im- termo ““cuidado”*. Desde o ponto de
pulso de viver —, a um querer e, em vista do cuidado pode-se entender,
geral, a uma vivência. Muito pelo pois, a famosa análise heideggeriana
contrário: as citadas vivências — e do projetar-se a si mesmo (Entwurf)
outras — têm suas raízes no cuida- e do poder ser (Seinkônnen). Pois
do, que é ontologicamente anterior bem, o fenômeno do cuidado não
a elas. Por isso o cuidado está vincu- possui, segundo Heidegger, uma es-
lado ao pré-ser-se (sich-voweg-sein) trutura simples. Assim como a idéia
da Existência, e por isso pode de- do ser não é uma idéia simples, tam-
clarar-se que na “definição” do ser pouco o é a do ser da Existência e,
da Existência como sich-vorweg- por conseguinte, a do sentido do cui-
schon-sein-in [der Welt] als seinbei dado, o qual está estruturalmente ar-
(em versão baseada na de Gaos, ticulado. A investigação posterior da
“pré-ser-se-já-em [o mundo] como temporalidade está precisamente en-
ser-cabe”*), isto é, como um ser cuja caminhada no sentido de mostrar que
existência está sempre em jogo, em o cuidado não é por si mesmo, ape-
cujo ser está sempre implicado seu sar de seu caráter fundamental, um
ser (dem es in seinem Sein um dieses fenômeno radicalmente original.
D
DARAPTI Nome com que se desig- exemplo que corresponde à seguinte lei
na um dos modos, por muitos auto- da lógica quantificacional elementar:
res considerado como válido, dater-
(Ax(Gx— Hx))A VX(FxA Gx)
ceira figura. Um exemplo de Darapti
— vVvX(FxA Hx)
pode ser:
e que, usando as letras “S”, “P“” e
Se todas as crianças são travessas
“M” da lógica tradicional, pode
etodas as crianças são distraídas,
expressar-se mediante o seguinte es-
então alguns seres distraídos são
quema:
travessos,
(MaP A SIM) — SIP
exemplo que corresponde à seguinte
lei da lógica quantificacional ele- onde aparece claramente a sequên-
mentar: cia das letras “A””, “TT”, “TT”, ori-
gem do termo Darii, na ordem MP-
A X(Gx— Hx) À AX(Gx— Fx) SM-SP.
— VX(Fx A Hx)
DATISI Nome pelo qual é designa-
e que, usando as letras “S”, “P” e
do um dos modos válidos dos silo-
“M” da lógica tradicional, pode
expressar-se mediante o seguinte
gismos da
terceira figura. Um exem-
plo de Datisi pode ser:
esquema:
Se todas as mulheres são sedutoras
(MaP A MaS)— SiP e algumas mulheres são inteli-
onde aparece claramente a sequên- gentes,
cia das letras “A”, “A”, “TT”, orr- então algumas entidades inteligen-
gem do termo Darapti, na ordem tes são sedutoras,
MP-MS-SP. exemplo que corresponde à seguinte
lei da lógica quantificacional ele-
DARII É o nome que designa um mentar:
dos modos válidos dos silogismos da
(AxX(Gx—>Hx)A vX(GxAFx))
primeira figura. Um exemplo de Da-
— VX(Fx A Hx)
rii pode ser:
Se todos os chineses são tranquilos
e que, usando as letras “S$”, “P” e
habitantes de São Paulo “M” da lógica tradicional, pode ex-
e alguns
são chineses, pressar-se mediante o seguinte esque-
ma:
então alguns habitantes
de São Paulo são tranquilos, (MaP A MiS) — SiP
144
DEDUÇÃO

onde aparece claramente a sequên- despreza outros importantes aspec-


cia das letras “A”, “T”, “TT”, ort- tos do mesmo; (5) é correta desde
gem do termo Datisi, na ordem MP- que não se interprete em sentido de-
MS-SP. masiado estrito o termo ““inverso”,
e desde que não se esqueça que tan-
DEDUÇÃO Muitas são as definições to a dedução como a indução cons-
que se deram da dedução. Eis algu- tituem operações de índole formal;
mas; (1) é um raciocínio de tipo me- (6) somente é aceitável na medida em
diato; (2) é um processo discursivo que mostra que o silogismo é uma
e descendente que passa do geral ao operação dedutiva, mas omite a afir-
particular; (3) é um processo discur- mação da equivalência entre dedução
sivo que passa de uma proposição a e silogismo, porquanto este último é
outras proposições até chegar a uma tão-só uma das muitas operações de-
proposição que se considera ser a dutivas possíveis; (7) é pouco expli-
conclusão do processo; (4) é a deri- cita, mas destaca um elemento fun-
vação do concreto a partir do abs- damental na operação dedutiva: o da
trato; (5) é a operação inversa da in- necessidade.
dução; (6) é um raciocínio equivalen- Das definições mencionadas, (1) e
te ao silogismo e, portanto, uma ope- (2) encontram-se em textos não es-
ração estritamente distinta da indu- colásticos escritos desde princípios
tiva; (7) é uma operação discursiva do século XIX; (3) e (4) são usadas,
na qual se procede necessariamente às vezes, para completar outras de-
de umas proposições a outras. finições; (5) foi uma definição mui-
Cada uma das definições acima to habitual em autores da época mo-
padece de vários inconvenientes mas, derna, antes que se popularizasse o
ao mesmo tempo, assinala uma ou florescimento (ou reflorescimento)
várias características elucidativas da da lógica formal simbólica; (6) foi a
dedução. Assim, (1) é insuficiente, definição mais frequente entre auto-
pois a palavra “raciocínio” é aqui res de tendência aristotélico-escolás-
demasiado vaga, mas sublinha o ca- tica, esquecendo que, embora o pró-
ráter mediato e, portanto, não intui- prio Aristóteles pareça ocupar-se
tivo da operação dedutiva; (2) tem com detalhe somente do silogismo
pressupostos ontológicos que não entre os processos dedutivos, de fa-
são estritamente necessários e se evi- to refere-se a outras formas de de-
denciam na noção de descendente, dução (deduções matemáticas), etc.;
mas alude à passagem do mais geral (7) pertence antes ao grupo de def1-
para o menos geral; (3) é correta, nições da dedução nas quais se pro-
mas esquece a necessidade de ““me- cura dar uma interpretação dela. É
diação”* (termo médio, regra de in- Interessante — como vimos — na
ferência, etc.); (4) mostra o caráter medida em que ressalta o caráter ne-
abstrato, pelo menos no ponto de cessário do processo dedutivo, mas,
partida, do processo dedutivo, mas para entendê-la bem, cumpre distin-
145 DEDUÇÃO

guir entre a necessidade causal, a ne- enunciados do qual ou dos quais se


cessidade ontológica (ontológico-es- parte a fim de efetuar a derivação
sencial, segundo alguns, ontológi- são a premissa ou premissas; o enun-
co-formal, segundo outros) e a ne- ciado final derivado de tais premis-
cessidade lógica. Somente do ponto sas é a conclusão. A derivação até
de vista desta última podemos falar chegar à conclusão efetua-se por
de necessidade ao referirmo-nos a meio das regras de inferência, as
um raciocínio dedutivo. Este último quais recebem por isso o nome de re-
é, com efeito, necessário no sentido gras de dedução. Há uma estreita co-
de que, uma vez admitido que uma nexão entre a noção de dedução e a
conclusão, C, segue-se necessaria- de implicação lógica, e ainda se sus-
mente das premissas P, P,, P,, etc., tenta, por vezes, que a primeira de-
resulta contraditório afirmar que tal pende da segunda. Essa é a opinião
conclusão não decorre de tais pre- de Whitehead e Russell ao escreve-
missas. A noção de necessidade (1ó- rem em Principia Mathematica: “A
gica) está, pois, ligada à da negação dedução depende, assim, da relação
de contraditoriedade consigo mes- de implicação, e todo sistema dedu-
ma, e até alguns autores sustentam tivo deve conter entre suas premis-
ser este o único tipo legítimo de ne- sas tantas propriedades de implica-
cessidade, de tal modo que se deve ção quantas sejam necessárias para
descartar o aspecto causal e o onto- legitimar o procedimento ordinário
lógico (essencial ou formal) da neces- da dedução.” Se um enunciado, p,
sidade, os quais poderiam ser, em ul- implica logicamente outro enuncia-
tima instância, reflexos da necessida- do, q, q é deduzido logicamente de
de lógica manifestada na dedução. p. E se um enunciado, q, é deduzi-
As investigações atuais sobre a na- do de um enunciado, p, pode-se di-
tureza da dedução levam em conta al- zer que p implica logicamente q.
guns dos elementos antes menciona- O método dedutivo é usado em to-
dos, mas procuram reduzi-los a suas das as ciências — matemática, físi-
justas proporções, ou então comple- ca, biologia, ciências sociais — mas
tá-los mediante outras características é particularmente apropriado nas
sem as quais não se pode proporcio- ciências mais formalizadas, como a
nar nenhuma noção medianamente lógica, a matemática e a física teóri-
rigorosa das operações dedutivas. ca. Por meio de tal método, é possí-
Uma definição hoje muito comum e vel levar a efeito nas citadas ciências
que se aplica a todas as formas de de- provas formais, nas quais se estabe-
dução é a que sustenta que, no pro- lece que as conclusões a que se che-
cesso dedutivo, certos enunciados ga são formalmente válidas. Na
derivam-se de outros enunciados de maior parte dos textos, na bibliogra-
um modo puramente formal, isto é, fia de lógica, faz-se referência à na-
somente em virtude da forma (lógi- tureza da dedução e à estrutura do
ca) dos mesmos. O enunciado ou método dedutivo.
DEDUÇÃO NATURAL 146

DEDUÇÃO NATURAL No verbe- dental”*: são os conceitos puros do


te DEDUÇÃO, aludimos ao méto- entendimento ou categorias (ver CA-
do da chamada ““dedução natural” TEGORIA).
ou “inferência natural” (““cálculo se- Tais conceitos não podem ser sim-
quencial””, Sequenzenkalkul) empre- plesmente deduzidos — de novo no
gado em lógica e proposto por Ger- sentido kantiano deste termo, aliás
hard Gentzen em 1934 e simultanea- relacionado também com o sentido
mente (embora de forma indepen- mais corrente de dedução ou proce-
dente) por Stanislav Jaskowski, com dência de um princípio — de modo
base em trabalhos realizados em casual e empírico; corresponde à na-
1926 no seminário de lógica de J. Lu- tureza desses conceitos o serem de-
kasiewicz. O método em questão duzidos a priori, pois de outra ma-
consiste numa série de regras de in- neira não teriam validade objJetiva,
ferência, denominadas ““regras de ou seja, não poderiam ser emprega-
Gentzen”', para executar inferências dos em forma talque dessem por ort-
'*
tanto na lógica sentencial quanto na gem ““enunciados empíricos (en-
lógica quantificacional. quanto enunciados que descrevem
Algumas dessas regras são puras objetivamente o mundo como mun-
“regras de estrutura” e consistem em do fenomênico). Trata-se de saber
Instruções muito gerais, tais como, “como as condições subjetivas do
“Dado um enunciado E podemos in- pensamento podem possuir validade
ferir dele o mesmo enunciado, E.” objetiva, isto é, como proporciona-
Outras dessas regras, que são as rão as condições da possibilidade de
propriamente chamadas ““regras de todo conhecimento de objetos”. À
Gentzen”', são a regra de eliminação rigor, trata-se de saber como podem
e a regra de introdução. constituir-se os objetos como obje-
tos de conhecimento para fundamen-
DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL tar o conhecimento objetivo da rea-
Na “Analítica Transcendental” da lidade e, portanto, estabelecer as
Crítica da Razão Pura (A 84, B 117 condições da possibilidade da ciên-
e ss.), Kant emprega o termo ““de- cia (física).
dução” (Deduction) na expressão
“dedução transcendental”, no anti- DEFINIÇÃO Desde um ponto de
go sentido Jurídico de ““justifica- vista muito geral, a definição equi-
ção”, ou seja, de direito ou prova le- vale à delimitação (determinatio, de-
gal (quid juris), em contraste com a Jfinitio), isto é, à indicação dos fins
questão de fato (quid fact). Há mui- ou limites (conceptuais) de um ente
tos conceitos empíricos que se em- com respeito aos demais. Por isso
pregam sem Justificação. Mas certos concebeu-se com freqgiiência a defi-
conceitos devem justificar-se “legal- nição como uma negação; delimita-
mente”, isto é, ser objeto, em termos mos um ente frente à outros porque
kantianos, de “dedução transcen- negamos os outros até ficarmos men-
147 DEFINIÇÃO

talmente com o ente definido. Su- As considerações precedentes ba-


põe-se que ao levar a efeito de um selam-se, por um lado, numa análise
modo consequente esta delimitação de vários usos correntes das palavras
alcançamos a natureza essencial da “definição” e “definir” e, por outro,
coisa definida. Por isso, definir não no exame do modo como o proble-
é o mesmo que discernir. De fato,
discernimos se um dado objeto, A,
mada definição foi tratado pelos pri-
meiros filósofos que o colocaram: Só-
é verdadeiramente A; em contrapar- crates e Platão. A eles deve-se uma
tida, definimos no que consiste o ser tese que exerceu grande influência: a
A de A, sua essência (ver) ou quidi- de que uma definição (universal) de
dade, de tal modo que, uma vez ob- uma realidade é levada a efeito por
tida a definição de A, podemos sa- meio da divisão, ôraipeois de todas
ber de qualquer objeto se é ou não as realidades de acordo com as cor-
é efetivamente A. Pois bem, ao pas- respondentes propriedades essenciais
so que a ação de discernir supõe com- de cada classe de realidade conside-
provação empírica da verdade ou fal- rada. Assim, definir uma entidade
sidade do objeto considerado, a de consiste em considerar a classe à qual
definir pressupõe a delimitação inte- ela pertence e colocá-la num determi-
lectual de sua essência. Assim, por nado nível na hierarquia (simultanea-
exemplo, podemos discernir pelo pa- mente ontológica e lógica) de realida-
ladar ou outro tipo de verificação em- des. Este nível é determinado — e
pírica se um objeto que parece ser um isto foi aceito por grande parte da
naco de pão é ou não é efetivamente tradição filosófica — por dois ele-
um naco de pão. Por outro lado, po- mentos de caráter lógico: o gênero
demos estabelecer quais são as pro- próximo e a diferença específica. Daí
priedades que um naco de pão deve a fórmula tradicional: definitio fit per
possuir para que efetivamente o seja genus proximum et differentiam spe-
e definir assim a entidade naco de cificam. Uma das representações grá-
pão. Isto não significa, naturalmen- ficas que melhor permitem compren-
te, que a definição seja sempre uma der o seu funcionamento é a da Ár-
operação mental independente da vore de Porfírio (ver). Chega-se des-
comprovação empírica. É frequente te modo a formular a célebre defini-
que só depois de muitas comprova- ção animal racional que caracteriza
ções empíricas acerca de um determi- o homem. Com efeito, animal é o gê-
nado ente possamos proceder à defi-
nição desse ente. Mas, sobretudo em
a
nero próximo, classe mais próxima
na qual a classe homem está incluí-
ontologias de tipo platônico, a ten- da. E racional é a diferença específi-
dência é destacar o aspecto intelec- ca por meio da qual separamos con-
tual e, em todo caso, abstrativo (ver ceitualmente a classe dos homens da
ABSTRAÇÃO) da operação ou ope- classe de todos os outros animais. Por
rações por meio das quais chegamos outro lado, é necessário que em toda
“a formular definições. definição se esgotem as características
DEFINIÇÃO 148

consideradas essenciais do ente de- “termo”, “limite” de uma ““propo-


finido, pois se faltar alguma delas o sição” ou “intervalo”, ôr&oTnuA,
objeto não ficará propriamente ““s1- como uma das quatro classes de pre-
tuado” e poderá facilmente ser con- dicáveis, o predicável que possui a
fundido com outro. Assim, quando característica de ser essencial e con-
definimos circunferência dizendo fi- versível. Segundo, a definição foi es-
gura plana fechada e equidistante em tudada como um processo mental
todos os seus pontos de um ponto in- por meio do qual se encontra um ter-
terior que é o seu centro, enumera- mo médio que permite saber o que
mos todas as características que de- é um dado ente. Em contraste com
limitam esta figura em relação a to- a existência do ente e da causa pela
das as demais figuras. Desta neces- qual o ente é, a definição tem então
sidade surgiram as regras que têm s1- por missão averiguar a essência, ou
do formuladas com frequência (so- seja, aquilo que faz com que o ente
bretudo a partir dos escolásticos) seja o que é. Em muitos casos, sem
com vistas à definição. Eis algumas dúvida, há equivalência entre o por-
delas: a definição deve ser mais cla- quê um ente é e o quê desse ente. Por
ra do que a coisa definida; o defin!- tal motivo, pode-se falar também do
do tem de ficar excluído da defin1- quê, quid, do ente como de sua cau-
ção; a definição não deve conter nem sa, mas entende-se quase sempre es-
mais nem menos que o suscetível de ta última como a causa essencial. Ao
ser definido. mesmo tempo, pode haver equiva-
Entretanto, nem sempre foram lência entre perguntar se um ente é
obedecidos os esquemas acima apon- e o que é tal ente; 1sto ocorre quan-
tados para a produção de definições. do se declara que somente o conhe-
Já desde Sócrates e, sobretudo, des- cimento de o que do ente pode per-
de Platão levaram-se a cabo defini- mitir contestar a pergunta sobre se
ções de acordo com diversos méto- um determinado ente é. Em ambos
dos: foram copiosamente emprega - OS Casos, porém, a existência e a cau-
das não só a divisão e a abstração sa do ente fazem-se depender do atri-
mas também a dialética (ver). Além buto ou atributos essenciais do mes-
disso, os métodos variavam de acor- mo. Ver ESSÊNCIA.
do com o tipo de ente considerado. Os escolásticos aproveitaram algu-
Era necessário, portanto, voltar a mas das indicações precedentes de
submeter o problema da definição a Aristóteles. Além disso, deixaram
uma análise mais completa. Foi o claro que, quando se fala de defini-
que fez Aristóteles. Muitas são as in- ção, esta pode ser definição de uma
dicações que encontramos em suas coisa ou o que de uma coisa, quid
obras sobre o problema. Limitar- rei, ou definição de um nome ou o
nos-emos aqui a dois tipos de indi- que de um nome, quid nominis. Até
cação. Em primeiro lugar, Aristó- aqui referimo-nos principalmente à
teles examinou a definição 0õ0os = definição de uma coisa ou ente, mas
149 DEFINIÇÃO

cumpre advertir que se trata apenas cas, etc. Assim:


de uma das formas tradicionalmen-
te admitidas de definição. É, ade- Homem = def. animal racional (1);
mais, uma definição que supõe a do Piróscafo = def. barco a vapor (OQ);
Tuberculose = def. doença cau-
nome, isto é, a indicação de o que
o nome significa. Pois bem, tanto se
sada pelo bacilo de Koch (3);
a definição é real como se é nomi- 10=def. 5+5 (4);
nal, é decisão comum dos escolásti- p— q=def. (Ipvq) (5);
Livro = def. este objeto que o
cos e de muitos lógicos considerar a
definição como uma expressão ou leitor tem em suas mãos (6);
termo complexo por meio do qual se são definições. O definiendum en-
indica o que algo (coisa ou nome) é contra-se em todos os casos à esquer-
(essencialmente). da de “=def.”º; o definiens encon-
As definições real e nominal não tra-se à direita do mesmo signo.
são OS únicos tipos admitidos de de- Os tipos de definições a que alu-
finição. Referir-nos-emos adiante a dimos antes são os seguintes:
vários outros tipos de definições. En- Definição real. Alguns entendem
tretanto, como alguns deles foram por definição real uma expressão por
propostos pela lógica contemporãâ- meio da qual se indica o que é uma
nea, tal enumeração será precedida colsa (sua natureza ou essência); ou-
por algumas palavras sobre as idéias tros, uma expressão pela qual se in-
atualmente mais difundidas em lógi- dica o que é um conceito objetivo;
ca acerca da definição. ainda outros, uma igualdade em que
Seja qual for o tipo a que se refe- o definiendum e o definiens não se
re, a definição é considerada hoje lêêm do mesmo modo; por exemplo,
uma operação que ocorre no nível (1) é uma definição real. Assinale-
linguístico. No decorrer da mesma mos que em nenhum caso se preten-
une-se uma expressão que se trata de de delimitar por definição a coisa em
definir, chamada definiendum, a si mas O seu conceito.
uma expressão que define a citada Definição nominal. Alguns enten-
expressão, e que recebe o nome de dem por definição nominal uma ex-
definiens. O definiendum pode subs- pressão por meio da qual se indica
tituir o definiens e é considerado o significado de um nome. Como o
uma abreviatura deste último. O si- processo mediante o qual se efetua
nal que se coloca entre o definien- tal definição é o mesmo que para a
dum e o definiens é “ = def.” (alguns definição real, vários autores (prin-
autores empregam ““— Este sinal
”*”*). cipalmente escolásticos) argumentam
lê-se “define-se” ou “é por defin!- que a definição nominal deve enten-
ção”. As expressões unidas por der-se como uma extensão da defi-
“— def ”* podem ser de tipos muito nição real, mesmo admitindo-se que
diversos: termos simples, termos antes de se definir realmente algo é
complexos, números, fórmulas lógi- necessário definir o seu nome, a fim
DEFINIÇÃO 150

de evitar ambigúidades. Outros in- ra ou sintética; consiste esta em de-


dicam que uma definição nominal é terminar a essência de uma coisa me-
o mesmo que uma definição real, na diante indicação das características
qual a realidade é representada pela que supostamente a constituem. Al-
palavra, mas esta concepção só po- gumas das definições dadas por Spi-
de ser admitida por quem conceba os noza no início da Ética podem ser
nomes como puras inscrições; (1) po- consideradas exemplos de definições
de ser também considerado exemplo criadoras ou sintéticas.
de definição nominal se se pretende Definição explícita. É a que defi-
definir o nome “homem” e não à ne o definiendum fora de um con-
realidade chamada homem. texto; (4) é um exemplo de definição
Definição verbal. É equiparada explícita.
por alguns à definição nominal. Ou- Definição contextual. É a que de-
tros assinalam que enquanto a defi- fine o definiendum dentro de um
nição nominal é uma operação na contexto; (5) é exemplo de definição
qual uma expressão é abreviada por contextual.
outra, na definição verbal não há ne- Definição ostensiva. É a que con-
cessariamente abreviatura mas sino- siste em exibir um exemplo do tipo
nímia entre duas expressões cujos de ente designado pelo definiendum;
significados são conhecidos; (2) po- (6) é um exemplo de definição osten-
de ser considerado uma definição siva. Muitos autores não consideram
verbal. A este tipo de definições dá- este processo uma definição autên-
se também o nome de definições de tica. As vezes, também se chama de-
dicionário. Quando se leva em con- notativa a esta definição.
ta o que no definiendum de (2) há de Definição intrínseca. Segundo os
abreviatura, (2) também pode valer escolásticos, é a que explica o obje-
como exemplo de definição nominal. to a definir mediante indicação de
Definição causal. É aquela na qual princípios inerentes ao mesmo.
o definiens é expressão que designa Definição extrínseca. É a que pro-
a causa que produz a realidade de- cede mediante princípios não ineren-
signada pelo definiendum; (3) é tes ao objeto que se trata de definir.
exemplo de definição causal. Alguns A definição intrínseca foi dividi-
chamam-lhe definição genética, mas da por alguns autores em essencial
outros reservam esta última denomi- e descritiva. Entretanto, esta última
nação para certo tipo de definições forma de definição não é admitida
matemáticas, tais como ““círculo = como tal por muitos autores, que
def. área engendrada por uma linha consideram a descrição insuficiente
reta finita que dá voltas ao redor de para assinalar a natureza essencial do
um dos seus extremos”. Em relação objeto (ou conceito) que se trata de
aos tipos anteriores de definições — definir.
especialmente com a genética — Definição por abstração. É a que
também se fala de definição criado- define a significação de um símbolo
151 DESCRIÇÃO

como propriedade comum de vários DENOTAÇÃO Para alguns autores,


entes. Assim (para empregar um a denotação é algo que se diz a res-
exemplo de Dubislav), consegue-se a peito dos termos. Para outros, é al-
definição de “direção”* — como ter- go que se diz dos conceitos. Em am-
mo da geometria — determinando, bos os casos, porém, o que o termo
por um lado, que duas linhas retas ou o conceito exprimem é um de-
paralelas têm a mesma ““direção” e, notatum.
A denotação contrapõe-se usual-
por outro, que se duas linhas retas
têm a mesma ““direção” são para- mente à conotação. Enquanto a pri-
lelas. meira indica a referência do termo
Definição operacional. às entidades correspondentes, a se-
Hoje em dia, é frequente a distin- gunda indica as características cons-
ção entre tipos de definição: a defi- titutivas do próprio termo. Por este
nição nominal de ““palavra-palavra” motivo, admite-se em geral que a de-
e a de “palavra-coisa”'. Na primei-
notação é equivalente à extensão e
ra estabelece-se uma correlação en- que a conotação é equivalente à com-
tre termos ou frases e, na segunda, preensão ou intensão.
entre uma frase ou termo e uma coi-
sa ou evento. DESCRIÇÃO Vários autores anti-
A outra classificação é a de Ri- gos haviam tratado a descrição co-
chard Robinson. Existem, segundo mo uma forma de definição: a cha-
mada ““definição descritiva”. Tra-
ele, dois modosde classificar as ““de-
tava-se de uma enumeração de carac-
finições da definição”: segundo o
terísticas de uma coisa, mediante a
propósito e segundo o método. Li-
qual era possível distinguir esta coi-
mitar-nos-emos a resumir a sua clas-
sa de outra sem que por isso se che-
sificação segundo o propósito — a
gasse à “definição essencial”. Na ló-
mais difundida entre todos os auto- gica medieval, considerou-se a des-
res. Antes de mais nada, a definição crição como um discurso mediante
pode ser real ou nominal. A definr- O qual se enunciam os caracteres aci-
ção nominal pode ser de ““pala- dentais e próprios das coisas: aciden-
vra-palavra” (correlação de um ter- tais porque não são essenciais, e pró-
mo ou frase com outro termo ou fra- prios porque, de todos os modos,
se) ou de “palavra-coisa” (correla- pertencem à coisa descrita. Em mui-
ção de um termo ou frase com uma tos casos, a descrição (descriptio) foi
coisa ou acontecimento). Por sua considerada uma definitio secundum
vez, a definição nominal de ““pala- quid, uma definição sob determina-
vra-coisa”* pode ser léxica ou estipu- do aspecto.
lativa, segundo se refira aos usos de Desde este ponto de vista, a des-
um termo dados na história, ou en- crição não é o oposto da definição:
tão à significação que o definidor é uma definição menos exata, minus
confira ao termo ou expressão. accurata definitio. Afirma-se na Loó-
DESCRIÇÃO 152

gica de Port-Royal que ““a definição “pontos fracos” da descrição. O po-


menos exata (définition moins exac- sitivismo clássico de tipo comteano
fe) a que se dá o nome de descrição destacou a importância da descrição
é a que proporciona certos conheci- de fenômenos, em contraste com a
mentos de uma coisa pelos aciden- supostamente precipitada e amiúde
tes que lhe são próprios, e que a de- meramente especulativa explicação
terminam o bastante para dar algu- dos mesmos fenômenos. Em todo
ma idéia que a distingue de outras caso, destacou-se a importância da
coisas” (Logique de Port-Royal, descrição fiel dos fenômenos, em vez
parte II, cap. XVI). A descrição é su- da pretensão de lhes conhecer as cau-
ficiente para certos propósitos, mas sas (últimas). Desde tempos remotos,
nunca é completa. Entretanto, des- certas ciências — como a botânica,
crição e definição encontram-se es- a zoologia e a mineralogia — haviam
treitamente relacionadas, uma vez sido consideradas ciências nas quais
que se trata da mesma operação, só um papel fundamental era desempe-
que num caso recorre-se a acidentes nhado pelo que se chamava ““defin!-
e no outro apela-se para as causas, ção descritiva”* ou definitio secun-
a matéria, a forma, o fim, etc. A des- dum quid. E no século XVIII, em
crição pode chamar-se (como já o particular, estas ciências desenvolve-
fez, entre outros, Petrus Ramus) de- ram-se como ““ciências descritivas”.
fiínitio imperfecta, em contraste com O positivismo comteano não se des-
a definição, que é definitio perfec- tacou por tomar estas clências des-
ta. Em ambos os casos, trata-se, por- critivas como modelos, e sim por
tanto, de definição. Uma descrição prestar maior atenção aos fatos, os
é, como já se lhe chamou algumas quais requerem, desde logo, descri-
vezes, uma definitio descriptiva. ção cuidadosa. Autores como Mach,
Por outro lado, e de forma cres- Schlick e, em geral, os neopositivis-
cente a partir do século XIX, ““des- tas, destacaram também a importân-
crição” e “definição” foram contra-
postas, examinando-se que funções
e
cia da descrição de fenômenos ela-
boraram a noção de descrição intro-
pode a primeira desempenhar que duzindo nela refinamentos que não
não possam ser executadas pela se- se encontravam em Comte. De um
gunda. Como os filósofos também modo geral, Mach e os neopositivis-
vêm se ocupando cada vez mais da tas consideraram a existência de di-
noção de explicação, contrastaram- versas operações descritivas e em
se “explicação” e “descrição” —e, particular de duas: uma é a descri-
em especial, explicação causal e des- ' ção mais completa possível dos fe-
crição. nômenos, e a outra é uma espécie de
Partindo de suposições muito di- “sumário simbólico” das descrições.
versas, várias tendências filosóficas Somente no último caso pode-se fa-
ocuparam-se da natureza e das con- lar de explicação. Entretanto, alguns
dições, assim como dos ““méritos” e autores estimaram que não se pode
153 DESCRIÇÃO

passar da descrição à explicação, ou mo uma espécie de “compreensão


seja, que esta última não é conse- deficiente”. Muito pelo contrário;
quência de descrições. Requere-se a especialmente em Dilthey, há uma
formulação de hipóteses, verificadas estreita relação entre descrição e
mediante oportunas descrições, mas
não obtidas mediante sínteses de des-
a
compreensão. De certo modo, des-
crição é em todos esses autores mais
Ccrições. fundamental que a explicação, a qual
Na distinção feita por Rickert en- assenta em supostos, ao passo que a
tre as ciências nomotéticas e ideográ- descrição atende unicamente ao que
ficas, a descrição desempenha um se dá na medida em que se dá e tal
papel fundamental nas segundas. Em justamente como se dá. A descrição
autores como Brentano a descrição antecede a predicação, não porque
deve ser entendida como um méto- a linguagem descritiva não contenha
do distinto, por um lado, da expli- predicações, mas porque estas são
cação causal e, por outro, de uma ex- entendidas como reflexos imediatos
plicação (e inclusive descrição) gené- do dado.
tica. Trata-se de descrever atos inten- Foi comum em vários autores, na
cionais que são classificados em três esteira da antiga distinção entre co-
“erupos” de fenômenos psíquicos. nhecimento imediato ou direto e co-
Característica deste tipo de descrição nhecimento mediato ou indireto,
é a ausência de supostos e a atenção propor uma distinção entre o conhe-
ao dado contido no que poderia cer algo e o saber acerca de algo. Es-
chamar-se “trama da intencionalida- sa distinção foi proposta por William
de” ou “tecido de vivências”. Nu- James em Princípios de Psicologia,
ma direção análoga encaminham-se e também a encontramos em várias
os métodos descritivos de Husserl. À obras de Bertrand Russell, como
fenomenologia é apresentada como Problemas de Filosofia, caps. IV e
um método de pura descrição, mas V. O termo acquaintance é usado
não se trata da descrição de fenôme- por ambos para caracterizar o conhe-
nos, à maneira positivista; consiste, cimento mediante o qual nos fami-
antes, na descrição das essências en- liarizamos com algo. O saber acerca
quanto são puramente dadas à cons- de (abouf) é justamente o típico das
ciência intencional. Um papel bás1!- descrições. Embora o objeto do co-
co desempenha também o método de nhecimento possa continuaàr sendo o
descrição em Dilthey, tanto na psi- mesmo, o que se conhece do objeto
cologia quanto, em geral, nas ““ciên- não é o mesmo em todos os casos.
cias do espírito”. Estas são descriti- Conhecer Lisboa é distinto de saber
vas, diferentemente das ciências na- (alguma coisa, muito, pouco, etc.)
turais, que são explicativas. Cumpre acerca de Lisboa, se bem que nos
levar em conta, porém, que nem em dois casos Lisboa seja o “objeto”
Dilthey nem nos autores recém-men-. que se supõe conhecer ou do qual se
cionados à descrição é concebida co- supõe saber algo.
DESCRIÇÃO 154

Nem sempre é fácil determinar os que se ter em conta a contraposição


limites entre o conhecimento ““dire- muito importante entre descrições e
to” e o “indireto””, porque os con- prescrições (ver PRESCRIÇÃO).
tra-exemplos são tão abundantes O “último Wittgenstein” destacou
quanto os exemplos. O fato de ha- o caráter “descritivo” da filosofia,
ver os verbos “conhecer” e “saber” pelo menos na medida em que, no
e de o segundo destes ser emprega- seu entender, ““a filosofia não expli-
do com frequência em contextos nos ca (erklàãrt) nem deduz (erfolg) na-
quais se trata de conhecimento indi- da, pois tudo está à vista (alles of-
reto ou descritivo, isto é, de um sa- Jen darliegf), de modo que não há
ber “acerca de” algo, não garante nada que explicar”* (Philosophische
que os usos verbais constituam um Untersuchungen, 126). “Temos de
critério seguro (ver, do autor da pre- deixar de lado toda e qualquer expli-
sente obra. “El laberinto del cono- cação, substituindo-a pela simples
cimiento””, em Homenagje a J. L. descrição (Beschreibung)” (op. cit.,
Aranguren, 198, reimpr. em Las pa- 109). No “Livro Azul” (The Blue
labras y los hombres, 1971, pp. and Brown Books, 1958, p. 18),
123-38). Wittgenstein denunciara já a ânsia de
Métodos descritivos foram fre- generalidade que espicaçava os filó-
qiientemente usados por muitos dos sofos, os quais constumam ter cons-
chamados ““filósofos da linguagem tantemente presente como modelo o
corrente”. Isto se deve a fatores mui- método da ciência e sucumbem à ten-
to diversos, entre os quais figura a tação de formular perguntas e de Ihes
pouca inclinação desses filósofos pa- responder da mesma maneira que o
ra construções teóricas com grande fazem os cientistas. “Essa tendência
aparato de deduções, explicações e é a verdadeira fonte da metafísica e
inferências, e sua simpatia pelos cha- leva o filósofo à mais completa obs-
mados ““casos paradigmáticos”. Há curidade. Quero aqui dizer que nun-
certas analogias entre as descrições ca pode ser a nossa tarefa reduzir al-
“Tingúísticas” e algumas das feno- go a algo, ou explicar algo. Na rea-
menológicas; em todo caso, as des- lidade, a filosofia é puramente des-
crições de Austin são descrições do critiva.”* A insistência na descrição
que o próprio autor chama ““feno- serve, neste caso, de corretivo para
menologia lingúística”'. A inclinação as tendências reducionistas, que são
desses filósofos, e em particular de ao mesmo tempo, como se assinalou,
Austin, para as descrições não é, conseqiiências da ânsia de generali-
contudo, incompatível com sua opo- dade. Não obstante, deve-se ter em
sição ao chamado ““descritivismo”, conta que, em última análise, a des-
em virtude do sentido que foi dado crição é um dos jogos de linguagem
a este último termo. (ver LINGUAGEM, JOGOS DE); e
A par das comparações e contras- não só isso: há coisas muito diver-
tes entre descrição e explicação, há sas que podem chamar-se ““descri-
155 DESCRIÇÕES (TEORIA DAS)

ção”; ““adescrição da posição do casos possíveis: uma frase pode ser


corpo mediante suas coordenadas; a denotativa e, não obstante, não de-
descrição da expressão facial; a des- notar nada, como ““o atual rei da
crição de uma sensação tátil, de um França” (quando já foram procla-
semblante”* (Philosophische Unter- madas algumas das suas cinco Repú-
suchungen, $ 24). blicas); uma frase pode denotar um
Para a chamada ““teoria das des- objeto definido, como ““a atual rai-
crições” no sentido de Russell, ver nha da Inglaterra”, que denota uma
DESCRIÇOES (TEORIA DAS). certa mulher [para Russell, em 1905,
“o atual rei da Inglaterra”, que de-
DESCRIÇÕES (TEORIA DAS) Em nota um certo homem]; uma frase
seu trabalho de 1905, “De Denota- pode denotar ambiguamente, como
ção”, Bertrand Russell remete para “um homem”, pois com esta frase
.
a distinção entre “conhecimento di- não se denotam muitos homens, mas
reto” (by acquaintance) e “conheci- um homem “ambíguo”, que pode
mento acerca de”, distinção da qual ser “este”, ou “aquele” ou “qual-
nos ocupamos no verbete DESCRI- quer outro”.
ÇÃO. Segundo Russell, esta distin- Por vezes, ao dizer ““o”* seguido
ção é a mesma que existe “entre as não de uma descrição, mas de um
coisas das quais temos representa- nome comum — como ““ônibus” em
çÕes e as colsas que somente alcan- “o ônibus” — pode-se tomar a fra-
çamos por meio de frases denotati- se como denotativa. Ao dizer ““o
vas” (“On Denoting”, Mind, N. S. ônibus chegou tarde”* costumamos
14 [1905], 479; reimpr. em Logic and referir-nos a um determinado ôni-
Knowledge: Essays 1910-1950, 1956, bus, embora possamos precisar ain-
ed. Robert C. Marsh, e em Essays in da mais de que ônibus se trata sob
Analysis, 1973, ed. Douglas Lackey. forma descritiva, como em ““o ôni-
Trad. brasileira: “De Denotação”, bus das cinco”, “o ônibus das cin-
em Lógica e Conhecimento, ed. co da tarde do domingo passado”,
Abril Cultural, 1974). São exemplos etc.
de “frases denotativas”, diz Russell, Em vários outros escritos, inclu-
“um homem”, “algum homem”, sive os Principia Mathematica, Rus-
“qualquer homem”, “todo homem”, sell já desenvolve a “teoria da deno-
“todos os homens”, ““o atual rei da tação”. Esta teoria permitiu-lhe exa-
Inglaterra”* [em 1905], “o atual rei minar a fundo vários conceitos bá-
da França” [também em 1905], “o sicos lógicos e ontológicos, e funda-
centro da massa do sistema solar no mentar sua tese de que ““a lógica é
início do século XX”, “a revolução a essência da filosofia”, no sentido
da Terra ao redor do Sol”, “a revo- de pelo menos considerar que só me-
lução do Sol ao redor da Terra”. diante uma análise das estruturas ló-
Uma frase, sublinha Russell, deno- gicas de expressões é possível ver até
ta somente por sua forma. Há três que ponto certas estruturas grama-
156
DESCRIÇÕES (TEORIA DAS)

ticais podem induzir a confusões. que em ambos os casos a definição


Entre os conceitos básicos examina- que se busca é uma definição de pro-
dos encontram-se os de denotação, posições nas quais aparecem expres-
significação e referência. sões como ““um tal” ou “o tal”, não
Uma das origens da teoria de Rus- uma definição das expressões 1sola-
sell é o seu desejo de encontrar uma das. Certos autores pensam que uma
saída para o problema apresentado expressão como ““o cão” pode ser
por certas frases descritivas que, em- definida isoladamente, mas Russell
bora tenham, gramaticalmente fa- não aceita essa opinião, a qual se de-
lando, significação, nada descrevem. ve, diz ele, ao esquecimento de que
Se se diz algo daquilo que tais frases existe uma diferença entre um nome
descritivas poderiam descrever no ca-
e uma descrição definida.
so de existir o descrito, teria que se
concluir que se predica ou diz algo Simplificaremos a teoria de Rus-
sell. Exemplos de descrições defin1-
de alguma ““coisa”* que não existe.
Mas dizer que algo que não existe das são frases que se iniciam com o
possui tal ou qual propriedade ou ca- artigo definido, como:
racterística não é, ao que parece, di- O atual rei da Suécia (1),
zer nada. Meinong havia atacado o O autor do Dom Quixote Q),
problema postulando reinos de en- O homem mais alto do regi-
tidades, ou tipos de entidades, como
entidades subsistentes, entidades 1r-
mento de dragões em 1964 (3).
reais, entidades desprovidas de ser Cada uma destas expressões pre-
(ou fora do ser), etc. Entretanto, em- tende nomear uma entidade. Assim,
bora as idéias de Meinong sejam (1) pretende nomear o rei da Suécia;
mais complexas do que Russell acre- (2) pretende nomear o autor do Dom
ditou ou avaliou — ou quis avaliar Quixote; (3) pretende nomear o ho-
— elas não foram aceitas por Rus-
mem mais alto do regimento de dra-
sell, que acusou Meinong de multi-
gões em 1964. Em muitos casos não
plicar desnecessariamente as entida-
des ou, melhor dizendo, os tipos de parece haver problemas; nos casos
entidades. mencionados não os há se há um rei
Russell dividiu as descrições, ou da Suécia; se há (ou houve) um au-
frases descritivas, em indefinidas (co- tor do Dom Quixote e se há (ou hou-
mo “um tal”) e definidas (como ““o ve) um homem que calhou ser o mais
tal”). Falaremos principalmente das alto do regimento de dragões em
últimas, pelo que a teoria das descri- 1964. O que se diga de (1), 2) e 3)
ções é teoria das descrições definidas. tampouco parece oferecer problema;
Russell indica haver algo em comum se o que se diz é verdadeiro, a ora-
na definição de uma descrição inde- ção correspondente será verdadeira,
finida (ou ambígua) e de uma des- e, se o que se diz é falso, a oração
crição definida (ou não ambígua): é correspondente será falsa. Assim,
157 DESCRIÇÕES (TEORIA DAS)

O rei da Suécia é um rei têm significação; só que, tomadas


constitucional (4), isoladamente, (7) e (8) não descre-
vem nada e, portanto, nada se pode
é um enunciado verdadeiro. Mas
dizer dos supostos ““sujeitos” ou
consideremos:
“entidades” (por irreais-ou subsis-
O atual rei do Uruguai (5), tentes que se julguem).
O autor da Enciclopédia Russell muda o status lógico das
Espasa (6). frases nas quais aparecem descrições
definidas. A frase definida é inseri-
O problema é que não há a enti- da num contexto lógico como se fos-
dade descrita por (5) é há mais de se um predicado. O contexto lógico
uma entidade descrita por (6). Dizer
é, para começar, o seguinte:
então:
Há um x tal que D (9)
O rei do Uruguai é muito
simpático (7) onde “há um x tal que” é uma ex-
O autor da Enciclopédia pressão quantificada. Simboliza-se
Espasa não é analfabeto (8) por meio de “(1x)”, chamado sím-
bolo de descrição ou ““símbolo do ca-
apresenta problemas, porque, se não so único”, “(1x)” lê-se “há pelo
há nenhum rei do Uruguai, não po- menos e há no máximo um x tal
de ser simpático, e, se não há um só que”, o que equivale a dizer “há exa-
autor da Enciclopédia Espasa, não tamente um x tal que”. ““D” expres-
pode ser analfabeto, ainda que haja sa a frase descritiva. De (9) predica-
algum autor de tal Enciclopédia que se então algo, digamos “F”. Temos
O Seja. neste caso:
Segundo Russell, cai-se em toda
Há um x tal que x é D;
espécie de dificuldades filosóficas
(especificamente ontológicas, acres- ninguém (ou nada) é x
salvo D, exé F (10).
centamos nós) se descrições como
(1), (2), Ô), (5) e (6) foram tomadas Deste modo, a frase descritiva
como se se tratasse de sujeitos de funciona como predicado de um de-
possíveis orações. As dificuldades re- terminado x. Não afirmamos ou ne-
sultam patentes sobretudo nos exem- gamos algo de D, mas algo de um x
plos (5) e (6) e nas orações subse- que é D. Como diz Russell, “só se
quentes (7) e (8). Com efeito, se não pode afirmar significativamente a
existe aquilo do qual se diz algo, o existência de descrições — definidas
que se diz nada diz sobre isso. Poder-
se-la concluir que, como (7) e (8) não
ou indefinidas —, pois, se “a é um
nome, deve nomear algo. O que não
têm referentes, (7) e (8) carecem de nomeia nada não é um nome e, por-
significação. Mas ocorre que (7) e (8) tanto, se se quiser convertê-lo num
158
DESCRIÇÕES (TEORIA DAS)

nome, é um símbolo vazio de sentido, mente um rei da Suécia e é honrado;


' “O (12) é verdadeiro porque há no má-
ao passo que uma descrição [como
atual rei da Suécia” ou “o atual rei ximo e pelo menos um autor do Dom
do Uruguai”] não é incapaz de ocor- Quixote, e esteve realmente encarce-
rer, de um modo significativo, mera- rado. Quanto a (13), será verdadeiro
mente na base do fato de que não des- se o homem descrito que constitui o
creve nada, e a razão disto é que é um predicado de um x que leva a descri-
símbolo complexo, cuja origem de- ção que se lhe atribui for, de fato, um
riva de seus símbolos constituintes” homem trabalhador.
(“On Descriptions”, cap. 16 de n- Entre as críticas à teoria russellia-
troduction to Mathematical Philo- na das descrições obteve especial res-
sophy, 1919). Em suma, não supo- sonância a de Peter F. Strawson. No
mos que há ou não há uma entidade artigo “On Referring”, Mind, N.ºS.
objeto da descrição (no nosso caso, 59 (1959), 320-44 (reimpr. em Logico-
definida), mas que há ou não há algo linguistic Papers, 1971, pp. 1-27),
que é o que a descrição descreve, e dis- Strawson manifesta que Russell se
so se diz que é tal ou tal coisa. equivoca ao supor que só haja dois
Desde este ponto de vista, não di- modos de admitir que certos enun-
remos que há ou não há (1), 2), 3), ciados que, por sua estrutura grama-
(5) ou (6). Consideremos agora: tical, parecem ser enunciados acerca
de uma pessoa em particular ou so-
O atual rei da Suécia é
bre um objeto ou acontecimento Iin-
honrado (11),
|

dividual, são significativos; que se-


O autor de Dom Quixote
jam analisáveis em certo tipo de
esteve encarcerado (12),
enunciado existencial, e que o sujei-
O homem mais alto do
to gramatical seja um nome logica-
regimento de dragões em
1964 era trabalhador mente próprio, cujo significado é a
(13),
coisa que designa. Ao que Strawson
e acrescentemos a estes exemplos os chama “expressões que possuem uma
já mencionados (7) e (8). Em todos referência única” não são, em seu
estes exemplos figuram descrições de- *

entendimento, nem nomes logica-


finidas. Se reformularmos estes mente próprios nem descrições. Pois
exemplos dentro do esquema (10) te- bem, se distinguimos o uso de um
remos que em cada caso se diz de um enunciado, assim como se distingui-
x tal que é tal e qual e que este tal é mos, correlativamente, entre uma
tal ou qual coisa. Pois bem, podemos expressão, o uso da expressão e o
concluir que (7) é falso porque não proferir-se a expressão, nos daremos
existe atualmente nenhum rei do Uru- conta de várias colsas. Se tomarmos
guaili e, por conseguinte, não pode ser o exemplo clássico ““O rei da Fran-
simpático; (8) é falso porque a Enci- ça é prudente”, teremos de reconhe-
clopédia Espasa tem mais de um au- cer que este enunciado foi formula-
tor; (11) é verdadeiro porque há atual- do em vários períodos, em alguns
159 DETERMINISMO

dos quais havia um rei da França, de Russell respondeu a Strawson (“Mr.


quem talvez se pudesse dizer que era Strawson on Referring”". Mind, N.
prudente, em outros dos quais, em S. 66 [1957], 385-89, reimpr. em £Es-
contrapartida, não havia rei algum na says in Analysis, 1973) dizendo que
França. Mas, além disso, e sobretu- seu contraditor confundiu o proble-
do, cumpre reconhecer que nenhuma ma lógico das descrições com o pro-
expressão propriamente menciona ou blema (talvez epistemológico) dos
se refere a nada. O que ocorre é que termos egocêntricos. E certo que pa-
pode ser usada para mencionar algo ra expressões como ““o atual rei da
ou referir-se a algo. O significado de França” existem as dificuldades que
uma frase como ““o rei da França” Strawson aponta, mas essas dificul-
ou, mais especificamente, ““o atual dades podem resolver-se desde que
rei da França”, não é, contrariando se especifique a expressão — escla-
Russell, idêntico ao objeto a que a recendo, por exemplo, em que mo-
frase aparentemente ““se refere”,
mento ela se profere. E há muitos
Não há dúvida que Russell não iden-
outros casos — que para Russell são
tifica ““o atual rei da França” com o
OS mais importantes — em que não
rei da França atual (o qual não exis-
se faz necessária qualquer especif1-
te), mas identifica, sim, com alguma
cação, o que ocorre, sobretudo, com
pessoa o x que se diz que é rei da expressões de linguagens específicas.
França, seja afirmando que existe ou
negando-o, e 1sso de tal modo que, segundo Russell, Strawson pecou
se o x em questão existe, pode-se pre- por “egocentrismo” epistemológico,
dicar algo dele que será verdadeiro ou como sucede sempre que se destaca
falso. Russell defende uma teoria re- o aspecto “subjetivo” — ou, no
ferencial do significado, e não distin- caso que nos ocupa, a dimensão do
“uso” por alguém — das expres-
gue entre ““referir-se a” e “mencio- SÕES.
nar”. Tampouco distingue, e isto é
para Strawson o fundamental, entre
as expressões e o uso que se pode fa- DETERMINISMO Numa acepção
zer delas. Um dos usos das expressões geral, o determinismo sustenta que
é o referencial. Para tal efeito esta- tudo o que houve, há e haverá, e tu-
belecem-se convenções que regulam do o que sucedeu, sucede e sucede-
esse uso. Estas convenções não são rá, está de antemão fixado, condicio-
necessariamente, para a linguagem nado e estabelecido, não podendo
corrente, as da lógica formal; “nem haver nem suceder senão aquilo que
as regras aristotélicas, nem as russel- está de antemão fixado, condiciona-
lianas — conclui Strawson — propor- do e estabelecido. Como as doutri-
cionam a lógica exata de nenhuma nas segundo as quais há um destino
expressão da linguagem corrente, inelutável, ou há uma predestinação,
pois essa linguagem não possui uma são, nessa acepção geral, determinis-
lógica exata” (art. cit., p. 344). tas, cumpre distinguir entre as ditas
DETERMINISMO 160

doutrinas e o determinismo em sen- todos os fatores ou, melhor dizendo,


tido mais estrito. Bergson opinou todos os estados do universo.
que um determinismo estrito e um A doutrina determinista pode ser
“teleologismo” estrito têm as mes- considerada como aplicável a todos
mas consequências: ambos afirmam Os acontecimentos do universo, ou
que há um encadeamento rigoroso como aplicável tão-somente a uma
de todos os fenômenos e, portanto,
nem numa doutrina nem na outra
parte da realidade. Kant, por exem-
plo, afirmava o determinismo em
pode-se afirmar a existência da cria- relação com o mundo dos fenô-
ção e da liberdade. Embora haja na menos, mas não em relação com o
observação de Bergson uma parte de mundo numênico da liberdade. Em
verdade, deve-se fazer constar que o todo caso, a doutrina em questão foi
termo ““determinismo”* usa-se mais objeto de numerosos debates. Os
apropriadamente em relação a cau- deterministas radicais afirmaram que
sas eficientes do que em relação a não só os fenômenos naturais mas
causas finais. Além disso, as doutri- também as ações humanas. (expl1-
nas deterministas modernas, às quais cáveis então como fenômenos natu-
nos referiremos aqui principalmen- rais) estão submetidas a um deter-
te, estão vinculadas a uma concep- minismo universal. Os motivos são
ção mecanicista do universo, ao pon- considerados, neste caso, causas ef1-
to de, por vezes, determinismo e me- clentes, as quais operam dentro de
canicismo serem considerados ter- uma rigorosa contextura causal. Os
mos idênticos. Característico do de- que se opuseram ao determinismo
terminismo moderno é o que se pode alegaram ou que há zonas da reali-
chamar o seu “universalismo”; uma dade (como as ações e decisões hu-
doutrina determinista costuma manas, pelo menos algumas delas)
referir-se a todos os acontecimentos que se subtraem ao determinismo,
do universo. ou então que este confunde a neces-
A doutrina determinista não é sidade de fato com a necessidade de
suscetível de prova; tampouco o é a direito. Alguns autores alegam con-
doutrina oposta ao determinismo, tra a doutrina determinista radical
razão pela qual o determinismo é que ela confunde noções diversas tais
considerado habitualmente como como a necessidade, a causalidade,
uma hipótese. Alguns consideram etc.
que se trata de uma hipótese metafií- Muitas das dificuldades que a
Sica; outros, de uma hipótese cientí- doutrina determinista apresenta obe-
fica. Certos autores manifestam que, decem a uma análise insuficiente do
embora a doutrina determinista não que se entende pelo termo ““deter-
possa provar-se, isto se deve ao minismo””. De um modo geral, fo-
caráter finito da mente humana e à ram dadas a este termo definições
impossibilidade de levar em conta demasiado reais.
!
161 DEUS

Não é uma boa definição do deter- Os autores que se opuseram ao de-


minismo dizer que um universo ou um terminismo desde o ponto de vista
sistema é determinista quando ““tudo ético e antropológico-filosófico su-
Já está dado”, ou quando ““todo blinharam que o livre-arbítrio não
acontecimento é uma consequência caberia no âmbito de uma doutrina
necessária de um acontecimento ou de determinista. Alguns dos pensadores
uma série de acontecimentos anterio- de orientação existencialista critica-
res”, ou quando ““todos os aconteci- ram (indiretamente) as doutrinas de-
mentos (ou estados) são reduzidos a terministas quando afirmaram que
um conjunto de condições iniciais”, na existência humana a liberdade é
ou quando ““o presente está impreg- uma condição ontológica necessária.
nado de futuro”, ou quando ““todos O existir humano, segundo estes pen-
Os acontecimentos podem ser previs- sadores, não é comparável a nenhu-
tos”, etc. Todas e cada uma destas su- ma das coisas naturais e, portanto,
postas definições não só se prestam não podem aplicar-se ao mesmo as
a numerosas confusões mas, além dis- categorias aplicáveis a tais coisas.
so, acabam por dizer muito pouco. É Com isto, os pensadores em questão
preferível, portanto, tratar de definir chegaram à conclusão de que ““exis-
o determinismo de um modo mais ri- tir” é, fundamentalmente, ““ser |l1-
goroso, apresentando um sistema que vre”.
pode ser chamado ““determinista””. Não pudemos tratar neste verbete
Este sistema pode, ademais, estender- de muitos dos debates em torno do
se, caso se queira, à realidade ou uni- determinismo que pretendem provar
verso Inteiros. haver neste uma falácia interna. En-
Nenhuma doutrina determinista é contramos um exemplo desses deba-
conseqiiência apenas da observação tes na tese de Lequier, segundo a
de fenômenos; também o é — e so- qual afirmar que tudo está determi-
bretudo — de uma série de condições nado equivale a afirmar que também
previamente estabelecidas. Estas con- a afirmação está determinada e, por
dições são de caráter “regulador”, em conseguinte, a retirar-lhe todo valor
sentido kantiano, e não ““constitu- de afirmação.
tivo”.
Na época atual tem-se discutido DEUS Examinaremos (1) o proble-
muito a questão de se uma teoria de- ma de Deus, considerando-se espe-
terminista é ou não, em última instân- cialmente as idéias principais que
cia, um limite ideal de um conjunto d'Ele tem tido o homem, pelo me-
de leis estatísticas. Afirmou-se a tal nos no Ocidente; (II) a questão da
respeito que, enquanto a física clás- natureza de Deus, tal como foi dilu-
sica e, em geral, a chamada ““macro- cidada por teólogos e filósofos, e
física” é, ou pode ser, determinista, (III) as provas da existência de Deus.
em compensação a microfiísica é in- (III) é logicamente anterior a (ID),
determinista. mas Inverteremos aqui a ordem com
DEUS 162

o intuito de mostrar o estreito vin- xistir numa mesma personalidade


culo que existe entre (II) e (1). De fa- humana. Entretanto, certas relações
to, (D) e (II) entrecruzam-se continua- são mais frequentes do que outras.
mente, de tal modo que algumas das Assim, por exemplo, há considerá-
questões fundamentais relativas ao veis analogias entre o Deus do homem
problema de Deus pertencem tam- religioso e o Deus do homem co-
bém à questão de sua natureza. mum, como foi percebido por Pas-
L. O problema de Deus. Conside- cal, ao invocar o “Deus de Abraão,
raremos aqui três idéias: a religiosa, de Isaac e de Jacó, não o dos filóso-
a filosófica e a vulgar. A primeira su- fos e dos sábios”*. Também convirá
blinha em Deus a relação ou, para assinalar que, embora as três idéias
alguns autores, a falta de relação em citadas se apresentem com especial
ho- clareza em referência ao Deus dos
que se encontra a respeito do
mem. Daí a insistência em motivos cristãos e, em considerável medida,
tais como o sentimento de criaturi- ao “Deus dos judeus”, elas não dei-
dade, o caráter pessoal do divino, a xam de mostrar-se em outras concep-
dependência absoluta — ou a trans- ções da divindade. Isto ocorre, so-
cendência absoluta —, etc. À segun- bretudo, quando uma pluralidade de
da sublinha a relação de Deus com deuses cede o lugar a um único Deus:
é o caso do Deus supremo dentro do.
o mundo. Por isso Deus é visto, se-
gundo essa idéia, como um absolu- politeísmo, do chamado monoteísmo
to, como fundamento das existên- primitivo e até do henoteísmo ou
cias, como causa primeira, comofi- adoração de um deus adscrito a uma
tribo ou a um grupo social desde o
nalidade suprema, etc. A terceira
destaca o modo como Deus se dá na momento em que essa tribo ou esse
existência cotidiana, quer de uma grupo soclal se considera a si mes-
forma constante, como horizonte mo, e por motivos religiosos, como
permanente da vida, quer de forma privilegiado.
ocasional, em meio às ““distrações'. Das três idélas de referência inte-
Os modos de abordagem de Deus ressam-nos aqui, muito especialmen-
também são distintos, de acordo com te, a religiosa e a filosófica. Pela in-
as correspondentes idéias: na primei- dole da presente obra, também pres-
ra, Deus é sentido como estando no taremos particular atenção à última
fundo da própria personalidade, a das três citadas. Mas tanto uma co-
qual, por outro lado, considera-se in- mo a outra das duas primeiras de-
digna d'Ele; na segunda, Deus é pen- sempenham um papel capital na his-
sado como Ente supremo; na terceil- tória da idéia de Deus, pelo menos
ra, é invocado como Pal. Convém no Ocidente. Mais ainda: em certa
advertir que as três idéias em ques- medida, pode-se dizer que essa his-
tão não costumam existir separada- tória se elucida de um modo deve-
mente: o homem religioso, o filóso- ras apreciável quando a considera-
fo e o homem comum podem coe- mos à luz de uma certa tensão —
163 DEUS

quase nunca de uma completa rup- quanto Ser onipotente e criador do


tura — entre a idéia de Deus forJja-
da pelo homem religioso e a idéia de
mundo, prestou grande atenção à re-
lação pessoal entre Deus e o homem,
Deus proposta pelo filósofo. Este úl- e viu em Deus, sobretudo, essa Pes-
timo tende a fazer de Deus objeto de soa espiritual que se revela ao ho-
especulação racional. Isto explica as mem, a que alguns místicos espa-
conhecidas concepções dos filósofos, nhóis chamaram ““o estado de escon-
das quais mencionaremos algumas: dimento” em virtude de sua bondade
Deus é um ente infinito; é o que é infinita. Em contrapartida, Santo
em si e por si se concebe; é um ab- Tomás, embora não tenha deixado,
soluto ou, melhor dizendo, o Abso- de modo algum, de filosofar sobre
luto; é o princípio do universo, Oo Deus com base nos dados da revela-
Primeiro Motor, a causa primeira; ção nem tenha excluído a possibili-
é o Espírito ou a Razão universais; dade da contemplação mística (de-
é o Bem; é o Uno, é o que está mais clarada, no final de sua vida, a su-
além de todo o ser; é o fundamento prema via), dedicou uma parte con-
do mundo e até o próprio mundo en- siderável de sua obra ao exame filo-
tendido em seu fundamento; é a f1- sófico e racional do conceito de
nalidade à qual tudo tende, etc. Al- Deus. Este mesmo contraste foi reil-
gumas destas concepções foram ela- terado na filosofia moderna. Muitos
boradas e refinadas por filósofos filósofos, sobretudo os de tendência
cristãos; outras provêm da tradição racionalista, pareceram sacrificar o
grega; outras ainda encontram-se in- Deus Pai ao Deus abstrato, o Deus
seridas em certas estruturas “perma- absconditus ao Deus racionalmente
nentes*º da razão humana. O ho- compreensível, e até a suma Existên-
mem religioso, em compensação, cia à suma Essência. Entretanto,
sem repelir sempre as concepções em houve tentativas de não levar essa
questão, deixa-as frequentemente de tendência até as suas últimas conse-
lado com o fim de permitir que quências e de conseguir certo equilí-
transpareça a pura realidade divina, brio ente as idéias religiosas e filo-
ou então considera-as o resultado de sóficas. Exemplo destacado a tal res-
posterior elaboração, que seria im- peito, dentro da filosofia moderna,
possível sem a revelação ou sem a ex- é O de Leibniz. Pois este filósofo não
periência religiosa e até mística. só concebeu a Deus com Mônada su-
Trata-se, por conseguinte, de certa prema, mas também como o Pai —
tendência que tem havido na histó- e o Monarca — que rege o mundo
ria espiritual do Ocidente de desta- dos espíritos. Em compensação, au-
car uma ou outra dessas idéias. As- tores como Pascal e Kant, por moti-
sim, por exemplo, podemos dizer vos muito diversos, acentuaram a
que Santo Agostinho sublinhou a tendência para a idéia religiosa. Pas-
idéia religiosa, pois ainda que tenha cal expressou-o explicitamente em
também especulado sobre Deus en- muitas passagens de sua obra, entre
DEUS 164

as quais destaca o antes citado. Kant somente um nome para designar o


manifestou-o ao criticar a validade divino. Ainda outros, enfim, indi-
dos argumentos racionais a favor da cam que o divino é uma das quali-
existência de Deus, e ao fazer de dades de Deus. A primeira opinião
Deus um postulado da Razão práti- é neutra a respeito da natureza pes-
ca, ou seja, ao afastar a razão a fim soal ou impessoal de Deus. A segun-
de dar lugar, como ele próprio indi- da opinião tende a considerar Deus
últi-
cou, à fé. Os resultados desta um ente impessoal. A terceira opi-
ma posição não se mantiveram, con-
nião inclina-se a conceber Deus co-
tudo, durante muito tempo. Os su- mo uma realidade pessoal. As opi-
n1iÕes segunda e terceira têm sido as
cessores de Kant terminaram por su-
mais discutidas. Os adversários da
blinhar o aspecto filosófico da idéia
de Deus, ao fazerem de Deus, como segunda opinião ressaltaram que ela
Fichte, a ordem moral do mundo, ao
não só é impessoal mas também pan-
teísta. Os adversários da terceira opi-
converterem Deus, como Schelling,
nião assinalaram que, com a sua
no Infinito, ao convertê-lo, como
Hegel, na Idéia — Idéia que o cris- adoção, corre-se o perigo de estabe-
tão há de ter “a humildade de conhe- lecer separações demasiado taxativas
cer”. Contrastes e tentativas análo- entre Deus e suas qualidades. À pri-
meira objeção contestou-se que ad-
gas de conciliação manifestaram-se
nos últimos cento e cinquenta anos. mitir como objeto primário de des-
Kierkegaard e a teologia dialética, crição ou de análise o divino não
por exemplo, insistiram no aspecto significa aderir a nenhuma teoria es-
religioso de Deus; os racionalistas e, pecífica acerca da divindade. À se-
por diferentes motivos, OS neo-esco- gunda objeção respondeu-se que a
lásticos de orientação intelectualista análise do divino como qualidade de
sublinharam o aspecto filosófico. Deus deve ser compreendida desde o
II. A natureza de Deus. Vários ponto de vista do constitutivum se-
problemas se apresentam a tal respei- gundo o nosso intelecto. Ater-nos-
to. Entre eles destacamos: (a) a ques- emos a esta resposta ao examinar a
tão da diferença entre Deus e o divI- questão (c).
no; (b) a questão da infinitude de (b) Embora esta questão se encon-
Deus; (c) a questão da relação entre tre em estreita dependência da que
a onipotência divina e a liberdade examinaremos a seguir, tratamo-la à
humana; (d) a questão da relação en- parte para maior clareza. Consiste
tre a onisciência e a onipotência. Esta essencialmente em formular-se o
última questão permitirá apresentar- problema de se Deus é infinito ou fi-
se formalmente o problema do cons- nito. A sentença quase universalmen-
titutivum de Deus. te aceita é a que afirma a infinitude.
(a) Alguns autores consideram que Mas, como esta infinitude se refere
Deus e o divino são à mesma reali- não só à bondade, mas também ao
dade. Outros acham que ““Deus” é poder de Deus, parece que nos de-
165 DEUS

frontamos com dificuldades insupe- os dos homens ou os de qualquer co1-


ráveis. Entre elas mencionemos asse- sa criada, e destacar deste modo a su-
guintes: (A) se Deus é infinitamente blime grandeza de Deus; com a fi-
poderoso, o tempo e o drama do nalidade de mostrar que, se se quer
mundo resultam inúteis, num senti- manter a liberdade humana, não há
do parecido a como, segundo Berg- outro remédio senão atenuar a dou-
son, a evolução mecanicista torna trina da onipotência absoluta, ade-
inútil o tempo num universo que, em rindo-se talvez à antes descrita dou-
princípio, já teria de estar inteira- trina do Deus finito; com a finalida-
mente “dado”; (B) se Deus é infini- de de sublinhar que o arbítrio é in-
tamente poderoso, é insolúvel o pro- teiramente servo e que a salvação do
blema da teodicéla, pois não se en- homem depende por completo da
tende por que existe o mal num mun- “arbitrariedade divina”, etc. Em
do que poderia ter sido perfeito. contrapartida, a segunda posição
Com o fim de resolver estas dificul- costuma formular-se com um único
dades, foram propostas diversas so- propósito: o desejo de salvar ao mes-
luções, às quais nos referiremos em mo tempo um dos atributos de Deus
(c). Limitar-nos-emos aqui a mencio- que se reputam mais essenciais e uma
nar, por ser menos conhecida, a teo- das propriedades humanas mais in-
ria defendida por J. S. Mill, que afir- sistentemente ressaltada. Argumen-
ma a existência de um Deus finito, ta-se, com efeito, que por ter criado
isto é, nos termos de E. S. Bright- o mundo num ato de amor, unido a
man, outro dos defensores desta te- um ato de poder e de sabedoria,
se, a doutrina que opõe a concentra- Deus outorgou ao homem uma liber-
ção (finitude) à expansão (infinitu- dade da qual este pode usar e abu-
de) de Deus. Esta doutrina só é hoje Sar, que O aproxima ou o distancia
aceita, de um modo geral, por alguns de Deus, mas que lhe outorga, em to-
filósofos pertencentes à seita meto- do caso, uma dignidade suprema à
dista. qual não pode renunciar sem deixar
(c) Duas posições fundamentais se de ser homem. Pois um “homem”
defrontaram no curso da história. que carecesse de liberdade não seria
Segundo uma delas, a onipotência de criação tão valiosa quanto um ho-
Deus suprime por completo a liber- mem livre. Já tratamos deste proble-
dade humana. Segundo a outra, a l1- ma em diversos verbetes (ver ARBÍ-
berdade humana não é incompatível TRIO [LIVRE-], GRAÇA, LIBER-
com a onipotência de Deus, mas, pe- DADE). Aqui nos limitaremos a in-
lo contrário, é confirmada por ela. dicar que a questão é de tal modo
A primeira posição pode formular- fundamental que, por pouco que seja
se com propósitos muito diversos: aprofundada, obriga a executar uma
com a finalidade de sublinhar pura análise completa do problema que
e simplesmente a impossibilidade de vai constituir o objeto da última se-
comparar os atributos de Deus com ção: o do constitutivum próprio de
DEUS 166

Deus. Quanto ao resto, a questão da um ens a se; (4) a essência de Deus


relação entre a onipotência divina e é a infinitude; (5) a Pessoa divina é,
a liberdade humana está vinculada acima de tudo, onisciente. Comum
com frequência ao problema da exis- a estas posições é a idéia de que Deus
tência ou inexistência de intermediá- é uma realidade incorpórea, simples,
rios entre Deus e o mundo. Os par- uma personalidade, atualidade pura
tidários da onipotência que negam a e perfeição radical. Comum a elas é
liberdade são propensos, com efei- também a afirmação de que Deus é
to, a suprimir todo e qualquer inter- infinitude, bondade, verdade e amor
mediário. Os que sustentam ao mes- supremos. As diferenças consistem,
mo tempo a onipotência divina e a sobretudo, nos vários modos de
liberdade humana. destacam, em constituição metafísica. E as posi-
contrapartida, a necessidade de in- ções fundamentais a este respeito são
termediários — sejam estes o que fo- as duas últimas mencionadas, sobre
rem: seres, idéias, etc. Pois os inter- as quais daremos a seguir algumas
mediários podem ser considerados fi- precisões históricas, a maioria delas
losoficamente como as condições proveniente dos grandes debates so-
que a criação “impõe” a Deus e se bre o constitutivum metaphysicum
impõe a si mesma quando não quer de Deus que ocorreram no transcur-
desembocar no puro absurdo. so da Idade Média e no século XVII.
(d) Trataremos aqui do que tradi1- Advertimos, porém, que apresenta-
cionalmente foi chamado o constitu- remos aqui, em particular, as formas
tivum metaphysicum da natureza di- mais radicais das teorias correspon-
vina. Devemos advertir, porém, que dentes, não porque tenham sido elas
não se trata de saber o que Deus é as mais frequentes, mas porque po-
realiter mas tão-só o que é quoad dem elucidar melhor o fundo e as di-
nos, segundo o nosso intelecto. So- ficuldades de cada uma das concep-
mente levando em conta esta restri- ções a este respeito.
ção pode-se entender as diversas sen- Por um lado, há quem tenha sus-
tenças que foram propostas a res- tentado que a onipotência de Deus
peito. não possa ser limitada por nada, que
Estas sentenças podem reduzir-se se trata de uma potentia absoluta. As
às seguintes posições: (1) A essência próprias ““verdades eternas” têm de
divina é constituída, segundo foi estar submetidas ao poder de Deus;
proposto por alguns autores nomi- melhor dizendo, são o resultado de
nalistas, pela reunião atual de todas um arbitrário decreto divino. Por-
as perfeições divinas, com o que o tanto, o constitutivo da natureza de
constitutivum se converte de relati- Deus é a vontade absoluta: verdades
vo em absoluto; (2) a essência de eternas, leis da natureza e liberdade
Deus é constituída pelo “grau má- humana dependem de tal vontade.
ximo de intelectualidade”; (3) a es- Em substância, é esta a opinião atri-
sência de Deus é a aseidade ou o ser buída a João Duns Escoto, a Gui-
167 DEUS

lherme de Ockham, Gabriel Biel ou questão recebeu o nome de intelec-


Descartes. Das três características tualista. Ora, quase todos os que cos-
que, dentro da unidade, se atribuem tumam ser agrupados nessa corren-
a Deus — poder, saber e amor — a te destacam que a ênfase no saber de
primeira alcança um predomínio Deus não pretende destruir Sua uni-
completo. Esta concepção é, por 1s- dade, e, por conseguinte, não retira
so, denominada voluntarismo (ver), d'Ele os constitutivos do poder e do
segundo a qual Deus poderia até ser amor. Um exemplo eminente de tal
definido como ““o que quer ser”. modo de pensar é o de Santo Tomás
Os inimigos dessa concepção argu- de Aquino. Segundo este filósofo,
mentam que, se fosse certa, se che- Deus pode produzir por si mesmo to-
garia a consequências absurdas: que dos os efeitos naturais e é, portan-
a potência infinita de Deus lhe per- to, uma verdadeira Causa primeira.
mitiria não só estabelecer, por exem- Mas Deus possui uma bondade inf1-
plo, que “2+2=5” ou que “pA
Pp”, mas fazer também com que o
| nita, por meio da qual quis comuni-
car às coisas Sua semelhança. Com
que foi não seja ou com o que se O que as coisas não só são mas tam-

apresenta ao homem como imoral bém podem ser causas. Procura-se


seja moral e vice-versa. Os parti- deste modo salvar a “consistência”
dários de tal concepção assinalam, própria da Natureza, das verdades
pelo contrário, que Deus não pode eternas e da liberdade humana, sem
ser limitado por nada, e que a pre- necessidade de retirar de Deus a oni-
tensa falta de racionalidade de Deus potência. Os que não admitem esta
se deve, simplesmente, a uma idéia solução afirmam que uma coisa é o
demasiado estreita da nossa própria propósito e outra o resultado. Mas
razão. os que a defendem e desenvolvem as-
Por outro lado, há quem acentue sinalam que a discrepância entre pro-
menos o poder do que o saber de pósito e resultado só se manifesta
Deus. Quando esta posição é levada quando se parte (equivocadamente)
às suas últimas consequências, da criatura, e não de Deus. Paul Vig-
acaba-se por identificar Deus com as naux, por exemplo, escreveu que o
“verdades eternas”? ou com as ““leis que parece contraditório no tomis-
do universo”. Por este motivo, os mo é que, depois de ter estabelecido
inimigos dessa concepção argumen- que as coisas têm seu próprio ser e
tam que ela leva imediatamente à ne- sua possibilidade de atuar em con-
gação da existência (ou ““vida”*) de sequência da infinita bondade de
Deus. Os partidários dela, em con- Deus, não formula em seguida uma
trapartida, assinalam que Deus não ciência da razão pura ou uma pura
pode deixar de ser sumo e que, por- saptentia naturalis, quer dizer, não
tanto, se há n'Ele uma potentia, vai de criatura à criatura, ou da cria-
trata-se de uma potentia ordinata. tura ao Criador, mas do Criador à
De um modo geral, à concepção em criatura. Mas — acrescenta — a con-
DEUS 168

tradição dissipa-se a partir do mo- conhecimento. Somente quando se


mento em que se observe que a aná- abandona o modo de consideração
lise filosófica foi realizada no âmbi- analógico surgem as consequências
to da fé e que, portanto, a própria que a maioria dos teólogos pretende
fé nos mostra que o detrahere e O evitar, sobretudo as duas mais res-
subtrahere às coisas do seu ser e do sonantes: a da completa identifica-
Deus e o mundo ou a da
seu agir seriam incompatíveis com à ção entre
bondade de Deus. E já que o constr- completa separação entre ambos.
tutivum da bondade parece recupe- III. Provas da existência de Deus.
fato de que a ques-
rar o primado perante Os Outros Já aludimos ao
constitutivos metafísicos, torna-se tão do que seja Deus — quid sid
plausível enunciar que a posição in- Deus — é considerada classicamen-
telectualista pode converter-se numa te como posterior à questão de se
sit — mas que,
ponte sobre um pretenso abismo Deus é — an Deus
cujas duas margens seriam a suma por conveniências de nossa exposi-
arbitrariedade das decisões e a eter- ção, decidimos tratar a primeira
nidade das verdades e das leis. questão antes da segunda.
Convém observar, para concluir Se tomarmos a expressão ““provas
esta seção, que na mente dos esco- da existência de Deus” em toda a sua
lásticos e de muitos dos filósofos do amplitude, deveremos incluir nela a
século XVII que se ocuparam do possibilidade tanto de que a prova
problema acima descrito, existe al- oferecida fracasse ou seja inaceitá-
go que ninguém, seja qual for a sua vel, quanto de que se apresentem
posição filosófica, pode evitar ao provas da inexistência de Deus; nes-
deparar-se com este tipo de questões: te último caso, naturalmente, seria
é o uso da analogia. Para tal fim, é mais adequado falar de “provas da
indiferente que a posição seja volun- inexistência de Deus”. Como na
tarista radical ou intelectualista ex- maioria dos casos tratou-se de pro-
trema; tanto num caso quanto no var que Deus existe, e quando um ti-
outro não se pretende dizer de Deus po de prova foi rechaçado é porque
o que seja realiter — se bem que tam- se propôs um outro que se conside-
pouco se pretenda reduzir a ciência rou mais adequado, concentrar-nos-
dos constitutivos metafísicos de Deus emos nas “provas da existência”. É
a um mero exame das características preciso levar em conta que todos os
atribuíveis ao divino em geral. Po- tipos de prova sugeridos, incluindo
demos dizer, pois, que em todos os as provas da inexistência, pressu-
pensadores mencionados a tendência poem que o problema apresentado
é evitar dois riscos. Primeiro, o da tem sentido, ou seja, que se pode
fusão de Deus como entidade real provar, ou não provar, que Deus
com o seu modo de consideração. existe, ou que não existe.
Segundo, o de desembocar na tese da Alguns filósofos negaram o men-
completa inacessibilidade de Deus ao cionado pressuposto, alegando que,
169 DEUS

como a expressão ““Deus existe” não modos. As chamadas ““provas tradi-


é analítica nem sintética, e não há cionais” podem classificar-se em três
outras expressões admissíveis (numa grandes grupos:
linguagem cognoscitiva) salvo as (1) A chamada prova “anselmia-
analíticas ou as sintéticas, aquela ex- na” e, desde Kant, “ontológica”.
pressão carece de sentido e, portan- Seu primeiro expositor foi Santo An-
to, carece de sentido tratar de prová- selmo. Muitos filósofos aderiram a
la ou de refutá-la. Vários filósofos ela depois, de um modo ou de ou-
da primeira hora do positivismo ló- tro: Descartes, Malebranche, Leib-
gicO sustentaram essa tese. Não só niz, Hegel. Examinamos em algum
repeliram todas as provas apresenta- detalhe esta prova no verbete sobre
das mas também, inclusive, um pon- a prova ontológica (ver ONTOLO-
to de vista como o ““crítico”* adotado GICA, PROVA); limitamo-nos aqui
por Kant. Outros filósofos, anterio- a indicar que este tipo de prova coin-
res e posteriores aos positivistas ló- cide com o argumento chamado a sr-
gicos, incluindo alguns que tinham multaneo e que é distinta da simples
partido do positivismo lógico, nega- prova a priori.
ram-se a admitir que a proposição (2) A prova a posteriori. Não é
“Deus existe” carece de sentido. É usualmente uma prova empírica,
possível que não se possa provar, porquanto se basela num argumen-
mas não se encontra fora das regras to ou série de argumentos a poste-
do uso da linguagem (pelo menos da riori de caráter racional. Os defen-
linguagem corrente). Xavier Zubiri sores desta prova — entre eles, San-
afirmou que a questão de provar (ra- to Tomás — insistem em que a exis-
cionalmente a existência de Deus não tência de Deus é algo evidente per se
coincide formalmente com o que mas não o é quoad nos, enquanto a
chamou ““o problema de Deus”'. Este nós. Os partidários desta prova di-
último surge, sobretudo, “quando se videm, com efeito, toda proposição
esclarece o pressuposto de toda “de- per se nota, ou analítica imediata,
monstração', assim como de toda em dois grupos: (a) proposição per
negação” ou, inclusive, de todo “sen- se nota somente em si, quer dizer,
timento' da existência de Deus”. proposição cujo predicado está in-
Ora, segundo o mesmo autor, a cluído no conceito do sujeito (con-
constitutiva e ontológica religação da ceito que não possuímos); (b) propo-
existência e o fato de que a religação sição per se nota etiam quoad nos,
seja ““a possibilitação da existência ou seja, proposição analítica imedia-
enquanto tal”* mostram que tanto os ta também com respeito ao nosso en-
que negam como os que afirmam a tendimento. Ora, visto que a propo-
existência de Deus movem-se na mes- sição ““Deus existe” é só analítica
ma “dimensão”. imediata considerada em si, já que
Os tipos de prova da existência de em Deus a essência e a existência são,
Deus podem classificar-se de vários real e formalmente, uma mesma coi-
DEUS 170

sa, há que se procurar, para à Sud se refere à conclusão. O termo mé-


demonstração, outros argumentos dio é a causa física do predicado da
além de meramente a declarar ev!- conclusão (prioridade física) ou é sua
dente quoad nos. Entre estes argu- razão (prioridade metafísica), que
mentos destacam-se as cinco vias não se distingue realmente do predi-
(quinque viae) de Santo Tomas. cado, mas concebe-se como sua raiz
e fundamento, à semelhança da es-
(3) A prova a priori, tal como foi
=

defendida por João Duns Escoto e piritualidade da alma em relação à


imortalidade”.
outros autores. Segundo eles, para
Observou-se, por vezes, que a es-
que uma proposição seja per se no-
ta é necessário não só que careça de colha do tipo de prova depende da
meio em si mesma, mas que possa- concepção que se tenha de Deus (ou,
mos também conhecê-la imediata- pelo menos, de Sua relação com a
mente e enunciá-la pela mera expl!- criatura) e da inteligência humana
cação dos seus termos que o apreende. Assim, por exemplo,
Os teólogos escolásticos distin- foi dito que, enquanto para Santo
Tomás a inteligência humana não vê
guem com frequência entre as cita-
das provas, levando em conta o pa- intuitivamente a Deus por sua pró-
pel que nelas desempenha o termo pria constituição, para João Duns
médio. Assim, Ponce de León, S.J. Escoto não o vê porque Deus “se
(Curso de Filosofia, vol. VI: “Teo- ocultou”. Por outro lado, ainda den-
dicea”, pp. 24 e ss.) indica que a pro- tro do mesmo tipo de prova, há di1-
va a simultaneo ocorre “quando o vergências entre os filósofos: a com-
termo médio não tem prioridade paração entre Santo Anselmo e Des-
nem posterioridade a respeito da cartes aduz, a este respeito, razões
conclusão, dado que são ontologica- suficientes. Isto faz com que cada ti-
mente simultâneos. A coisa demons- po de prova possa ser considerado
tra-se por sua essência, ou por sua sob diversos aspectos. Vejamos, com
noção, ou por um predicado que não efeito, o caso da prova a posteriori.
se pode dizer que seja causa ou efei- Os autores escolásticos falam dela
to seu”. Exemplo máximo desta pro- em vários sentidos. Como prova ex-
va é a ontológica. A prova a poste- trinseca, está fundamentada no con-
riori ocorre ou torna-se possível senso do gênero humano, gerando
“quando o termo médio não tem frequentemente um argumento de Ín-
prioridade nem posterioridade no to- dole moral. Como prova intrínseca,
cante à conclusão. Termo médio são está fundamentada na própria natu-
os efeitos, como quando se prova a reza das criaturas. Por sua vez, co-
natureza da alma por suas opera- mo as criaturas podem ser conside-
ções”. A prova a priori tem lugar radas de um ponto de vista relativo
“quando o termo médio possui prio- ou absoluto, temos duas formas de
ridade ontológica (na ordem real, argumento chamadas, respectiva-
quer física, quer metafísica) no que mente, física e metafísica. Finalmen-
171 DEUS

te, o argumento metafísico pode di- (3º) Há uma série de provas da


vidir-se em simplesmente metafísico existência de Deus que podem in-
e em psicológico (cf. Zigliara, Sum- cluir-se no parágrago (2) antes men-
ma philosophica: Theologia, $ 3). cionado, ou seja, no âmbito das cha-
Além dos tipos de provas indica- madas ““provas a posteriori”. Entre-
dos há outros três: tanto, alguns autores incluiram-nas
(1%) A chamada ““prova pelo sen- nas “provas a priori” ou, melhor di-
timento”. Consiste em ressaltar que, zendo, na seção de tais provas que
à parte quaisquer considerações ra- consiste em apresentar provas de ca-
cionais, existe um ““sentimento da ráter relativo — mas que, não obs-
existência de Deus** que constitui em tante, têm a pretensão de ser abso-
si mesmo uma prova. O nome ““pro- lutas. Tem-se falado a respeito de
va” não é muito adequado neste ca- prova moral (identificada, por vezes,
so, porquanto não intervém aqui ne- com a “prova por sentimento”, mas
nhum argumento. Afirma-se que que está mais apropriadamente ba-
Deus existe porque, por assim dizer, seada no intento de Justificação da
“sente-se” que Ele existe. A existên- ordem moral pela existência de
cia de Deus e o sentimento desta Deus), de prova físico-teológica, te-
existência são, pois, uma e mesma leológica, cosmológica, psicoteológi-
coisa. Alguns autores negam que 1Is- ca, prova pelo desígnio, etc. De um
to seja, em nenhum caso, uma pro- modo ou de outro, todas essas pro-
va, enquanto outros mantêm ou que vas foram apresentadas por filóso-
se trata da única “prova” possível, fos antigos e medievais, mas foram
ou efetiva, ou que constitui a condi1- objeto de grandes debates na época
ção indispensável para toda prova. moderna, especialmente no séculos
(2º) A chamada ““prova pela tra- XVII e XVIII. Há grandes semelhan-
dição””. Consiste ou em afirmar que ças entre a prova fíisico-teológica e
todos os povos da Terra acreditaram a cosmológica; mas, em virtude do
na existência de Deus (““tradição uni- lugar central ocupado pela chamada
versal”* ou como tal suposta), ou em “prova cosmológica”' (e também
sustentar que há uma série de ““da- “argumento cosmológico”) na épo-
dos históricos” incorporados na ca moderna e particularmente em
“tradição” que são mais básicos e Kant, dedicamos um verbete especial
fundamentais do que todos os argu- a essa prova, embora parte da infor-
mentos racionais. Também foi ale- mação possa encontrar-se, ou encon-
gado que não se trata de nenhuma trar-se também, no verbete sobre
prova, por não haver argumento; fisico-teologia. Dedicamos igualmen-
mas o que não há é um argumento te um verbete à prova pelo desígnio,
racional: o que há é, antes, uma es- se bem que parte que se diz no ver-
pécie de comprovação empírica, ou bete sobre a prova teleológica possa
interpretação dessa comprovação servir para o mesmo efeito.
empírica. Houve uma tentativa no sentido
DEUS (MORTE DE) 172

de provar (demonstrar) a existência gumento a posteriori, o qual é, co-


de Deus com o auxílio da lógica con- mo Fitch reconhece, afim de várias
temporânea. Trata-se da prova pro- das provas cosmológicas tradicio-
posta por Frederic B. Fitch em seu nais, mas vazado numa linguagem
artigo “On God and Immortality” mais explicativa do que causal.
(Philosophy and Phenomenological Charles A. Baylis criticou o argu-
Research, 8 [1948], 688-93). Pode-se mento de Fitch (ibid., pp. 694-97) e
resumi-la do seguinte modo: este contestou a crítica desenvolven-
Cada classe de fatos no universo do os argumentos lógicos relativos à
tem uma explicação se existe uma sua prova em The Journal of Symbo-
teoria consistente de índole tal que lic Logic (13, nº 2, 1948). Alonzo
cada fato de uma determinada clas- Church (7he Journal... 13, 1948, 148)
se seja dedutível da teoria. Quer di- indicou que o argumento de Fitch,
zer, se uma classe de fatos tem uma cujo interesse é inegável, implica rea-
explicação, tal explicação é uma teo- lismo e absolutismo em relação a que
ria consistente que implica todos os teoria última é verdadeira. Além dis-
fatos da classe. Concluiremos, assim, so, o Deus de Fitch não é um Deus
que cada fato ou classe de fatos tem, pessoal mas uma ““primeira causa”
pelo menos, uma explicação. Ora, impessoal ou ainda o “todo” divi-
um corolário disso é que a classe de nizado.
todos os fatos tem uma explicação.
Há, em suma, uma teoria consisten- DEUS (MORTE DE) Em Assim Fa-
te que implica (e daí, explica) todos lou Zaratustra (Prólogo, 2), Nietzs-
os fatos do universo. Esta teoria, diz che descreve Zaratustra chegando
Fitch, deve ser não só consistente aos bosques onde encontra um an-
mas também verdadeira, pois se im- cião eremita “que havia abandona-
plicasse o contraditório de qualquer do sua santa choça a fim de buscar
fato deveria ainda implicar o próprio raízes no bosque. “E que faz o santo
fato (já que implica todos os fatos), no bosque?', perguntou Zaratustra.
e seria, por isso, inconsistente. Além O santo respondeu: “Componho can-
disso, só pode haver uma teoria ver- çÕes e as canto, e quando as invento
dadeira e consistente que explique to- rio-me, choro e murmuro, e assim
dos os fatos do universo, pois, se louvo a Deus. Cantando, rindo, cho-
houvesse duas teorias ou duas expli- rando e murmurando, louvo ao Deus
cações distintas, o fato de que uma que é o meu Deus. Mas o que nos
fosse verdadeira constituiria um fa- trazes de presente? Quando Zara-
to que deveria ser explicado pela ou- tustra ouviu essas palavras, saudou
tra, de tal modo que se implicariam o santo e disse: “O que poderia eu vos
mutuamente (se equivaleriam). A ex- dar? Deixa que me afaste depressa,
plicação última em questão pode ser não vá eu acabar por vos tirar algu-
chamada Primeira Causa ou Deus. ma coisa!* E assim foi que se sepa-
Teríamos, deste modo, um novo ar- raram o ancião e o homem, rindo co-
173
DEUS (MORTE DE)

mo riem as crianças. Mas quando assassinos.” E depois de uma nova


Zaratustra voltou a encontrar-se só, tirada: “Deus morreu! Deus conti-
assim falou ao seu coração: “Será nua morto! E nós o matamos!” Mas
possível que esse velho santo não te- continuavam sem entender do que
nha ainda ouvido dizer em seu bos- ele falava, porque o demente, à se-
que que Deus morreu?” melhança de Zaratustra, disse-lhes
Na Parte IV (“Servidor, Sim Se- que havia chegado prematuramente;
nhor”) da mesma obra, um Papa a morte de Deus é um fato que ain-
aposentado busca o mesmo eremita da está acontecendo.
que Zaratustra havia encontrado: Interpretar essas passagens como
““
“Eu buscava o último homem pie- manifestação de ateísmo — ou, pe-
doso, um santo eremita que, isola- lo menos, do ateísmo que se difun-
do em seu bosque, ainda não ouviu dira em diversos meios intelectuais
nada do que todo o mundo já sabe no século XIX — seria uma simpli-
hoje. “E o que é que todo o mundo ficação do pensamento de Nietzsche.
sabe hoje?', perguntou Zaratustra. O ateu afirma que Deus não existe;
“Por acaso que Já não vive o antigo Nietzsche proclama que Deus está
Deus em que antes todo o mundo morto, ou que foi por nós ““assassi-
acreditava?* “Tu o disseste”, respon- nado”. Antes de morrer, Deus esta-
deu entristecido o ancião. “E eu es- va, portanto, “vivo”. Como ““mor-
tive servindo a esse antigo Deus até to” e ““assassinado”* não podem
a sua hora derradeira”. Interpretar-se num sentido literal, é
Estes dois trechos destacam-se de supor-se que tenham um sentido
contra um fundo em que ressoa com metafórico. Deus morreu cultural ou
frequência o tema da ““morte de “espiritualmente” quando os ho-
Deus”. Na obra que precedeu Assim mens deixaram de crer em Deus,
Falou Zaratustra, À Gaia Ciência mesmo quando alguns continuam
(Die fróhliche Wissenschaft), Nietzs- agindo como se acreditassem. Isto
che já havia oferecido na parábola tem um alcance maior do que pode-
do demente (der tolle Mensch) a idéia ria ter O abandono de outras muitas
de uma busca infrutífera de Deus. O crenças; ao deixar de crer em Deus,
demente estava no mercado público os homens desferiram um golpe mor-
com uma lanterna, como Diógenes, tal em todo um sistema de valores.
gritando sem parar: “Estou procu- Em A Gaia Ciência mostra-se como
rando Deus!** As pessoas não o en- Nietzsche tem consciência da imen-
tendiam, ou, quando julgavam tê-lo sidade dessa noção. Depois que o de-
entendido, riam-se: Será que Deus se mente diz que matamos Deus, per-
extraviou? Estará escondido em al- gunta-se: “Mas como fizemos 1s8sso?
guma parte? Estará viajando? Mas Como fomos capazes de beber o
o demente respondeu-lhes: “Eu lhes mar? Quem nos deu a esponja capaz
direi onde está Deus. Nós o matamos de apagar o horizonte? Que fizemos
— Vocês e eu. Todos somos os seus quando desprendemos a Terra do
DEUS (MORTE DE) 174

seu Sol? Para onde se move agora a 1973. Parece depreender-se desses es-
Terra e para onde nos movemos? Pa- tudos que a morte de Deus é, como
ra longe de todos os sóis? Estamos dizia Nietzsche, um ““processo”, em-
continuamente saltando, para trás, bora um processo em dois sentidos:
para diante, para os lados, em todas no de ser um acontecimento e um
as direções? Resta por acaso alguma “julgamento” a que os “modernos”
coisa acima ou abaixo? Talvez cami- submeteram Deus.
nhemos como seres errantes através Entre outros reflexos do tema da
de um Nada infinito?”* A morte de “morte de Deus” destaca-se o que
Deus é a mais radical expressão de foi proporcionado pela ““teologia
niilismo, um niilismo sem o qual se- sem Deus” ou “teologia radical”, tal
ria impossível dar-se essa inversão de como foi desenvolvida por Thomas
todos os valores. J. J. Altizer, Paul M. van Buren,
Nietzsche expressa um ponto cul- William Hamilton, Herbert Braun,
minante no processo de desdiviniza- Helmut Góllwitzer, Dorothee Sólle
ção, descristianização e secularização e outros autores. Eles diferem con-
do mundo moderno europeu que tem sideravelmente entre s1: uns são mais
sido objeto de detalhadas investiga- “radicais” que outros; uns se inte-
ções históricas, especialmente con- ressam pelos aspectos ““práticos” e
centradas na França, e sobre os mo- outros pelos aspectos ““teóricos” da
dos como em várias regiões e perio- questão. Além disso, cada um deles
dos se enfrentou a idéia da morte, usa métodos próprios e chega a con-
desde a precursora obra de Bernhard clusões distintas. Assim, por exem-
Groethuysen, Die Entstehung der plo, van Buren dedicou-se a um exa-
biúrgerlichen Welt-und Lebens- me lingúístico, influenciado pelo po-
chauung in Frankreich [A formação sitivismo lógico e pelo “último Witt-
das concepções burguesas do mun- genstein”' — dos quais, quanto ao
do e da vida na França], 1927-1930, resto, se aproximou excessivamente
até a síntese de Philippe Ariés, Les — para deles derivar a idéia de que
attitudes occidentales devant la mort a palavra “Deus” carece de signifi-
dês le Moyen Áge jusqu'au présent cado. Isso lhe permitiu destacar os
[As atitudes ocidentais perante a elementos não cognoscitivos da teo-
morte desde a Idade Média até o logia cristã e pôr em relevo ““o sig-
presente], 1970, e a monografia de nificado secular do Evangelho”. Al-
Michel Vovelle, Piété baroque et tizer — que liga seu pensamento ao
déchristianisation en Provence au de Nietzsche, a quem chama um
X VIIF siêcle: Les attitudes devant la “cristão radical”' — rompe com a
mort d'aprês les clauses des testa- tradição das Escrituras, o que o le-
ments [Devoção barroca e descris- va a tratar de restabelecer uma ““co-
tianização na Provença no século munidade da fé” independente da
XVIII: As atitudes perante a morte tradição e em consonância com a si-
segundo as cláusulas de testamentos)], tuação do homem atual, que perdeu
175 DEVER

(e “assassinou”) Deus. Entretanto, temente como sinônimos. Alguém


todos esses autores coincidem em vá- deve algo quando está obrigado a
rios pontos, o principal dos quais (fazer) algo. O que obriga pode ser
consiste em expor os problemas da uma lel, norma ou regra; uma série
teologia sem trair a realidade do ho- de prescrições correspondentes a um
mem atual, em cuja vida Deus já não cargo ou a um “ofício” (officium =
está presente. Qualquer outra forma “dever”*); um compromisso assu-
de teologia, no entender desses au- mido, etc.
tores, seria ou a continuação de uma A noção geral de “dever” com-
tradição estéril ou — como o foi a preende todas as categorias de deve-
extensa “Dogmática eclestástica”* de res e, por conseguinte, também o
Karl Barth — uma ruptura com a chamado ““dever moral”*. Contudo,
situação presente. A teologia sem é frequente fazer a distinção entre
Deus aspira a expressar, pois, uma “deveres” e “dever (moral)”'. Os de-
situação real, sem paliativos, e a ma- veres podem especificar-se de acor-
nifestar o que Paul Tillich, conside- do com o objeto do dever: deveres
rado às vezes um precursor dos teó- para com Deus, para com a nature-
logos radicais, chamava ““a coragem za, para com o Estado, a família, os
de ser”. pais, os amigos, a profissão, o car-
Os que se opõem à teologia sem go, etc. Supõe-se, em contrapartida,
Deus adotam pontos de vista muito que o dever moral é absoluto e, por-
diversos. Uns optam por pontos de tanto, não pode especificar-se: o de-
vista mais ou menos ““tradicionais”” ver é simplesmente o dever.
— especialmente da tradição das Es- Esta distinção tem um inconve-
crituras e de sua interpretação ““ecle- niente: o de que o chamado ““dever
siástica””. Outros sustentam que uma moral” parece não ter nenhum con-
teologia sem Deus não tem o menor teúdo. Para evitar este problema, fo-
sentido, e que, se Deus morreu, en- ram propostas várias soluções: o de-
tão o melhor é abandonar simples- ver moral é o que há de comum em
mente toda teologia, incluindo a teo- todos os deveres; o dever moral é o
logia “radical”. Há ainda os que mais alto em qualquer série de deve-
mantêm que “Deus não morreu” ou res, etc.
que, em todo caso, não morreu ““o A noção de dever desempenha um
espírito religioso” — com o que mui- papel central na filosofia prática de
tos “teólogos radicais” estariam cer- Kant, que é em boa parte a fonte da
tamente de acordo — e somente distinção entre deveres (particulares)
morreu a ““institucionalização de e dever moral (absoluto). Os deve-
Deus*' ou das crenças religiosas. res particulares não são necessaria-
mente não-morais, ou “amorais”.
DEVER Conforme indicamos no Mas a moralidade desses deveres é
verbete “Obrigação” (ver), “dever” uma moralidade do tipo “material”.
e “obrigação” são usados frequen- Por “material” entende-se qualquer
DEVIR 176

princípio que não seja o próprio im- creve Kant na Crítica da Razão Prá-
perativo categórico. Assim, basear o tica, no verso de Juvenal:
dever em Deus ou baseá-lo na nor- Et propter vitam vivendi perdere causas
ma de viver de acordo com a natu-
[E por amor à vida perder o que à
reza é dar uma fundamentação “ma-
terial”* (não autônoma) do dever.
torna digna de ser vivida], o qual
mostra que, quando na ação se in-
Para a moral formal que Kant pro- troduz algo de auto-estima, a pure-
põe, o dever não se deduz de nenhum
za de seus motivos fica manchada.
“bem” (Deus, a natureza, à socie- Pois bem, Kant não nega que seja
dade, etc.), por mais alto que seja necessário, por vezes, o auxílio da
considerado. Segundo Kant, o dever
sensibilidade, de modo que, em cer-
— ““*esse grande e sublime nome”
é a forma da obrigação moral.
A tas ocasiões, fazê-la intervir é prefe-
rível a imolar toda ação no altar da
moralidade ocorre deste modo so-
pura santidade do dever. Os tão cri-
mente quando a ação é realizada por ticados rigorismo e formalismo da
respeito ao dever e não apenas em ética de Kant não chegam a tão ex-
cumprimento do dever. Isto equiva- tremadas consequências como para
le a uma identificação do dever com
que o filósofo não perceba que po-
o bem soberano. Como diz em dem dar-se casos em que ““o melhor
Grundlegung zur Metaphysik der Sit- é inimigo do bom”; crer o contrário
ten (Fundamentação da Metafísica é correr o risco de paralisar a ação
dos Costumes), o dever é a necess!- moral.
dade de atuar por puro respeito à lei, Na ética apriorística material (Max
a necessidade objetiva de atuar a par- Scheler), o dever é a expressão do
tir da obrigação, ou seja, a matéria mandato exercido sobre a consciên-
de obrigação. Em suma, se as máxi- cia moral por um certo número de
mas dos seres racionais não coinci- valores. Esse mandato expressa-se
dem por sua própria natureza com
quase sempre em forma negativa. No
o princípio objetivo do agir segun- entanto, pode admitir-se que tam-
do a lei universal, ou seja, de modo bém a intuição dos valores e, em es-
que a vontade possa, ao mesmo tem- pecial, dos valores supremos, produz
po, considerar-se a sil mesma como em certos casos a consciência do de-
se as suas máximas fossem leis uni- ver, da realização e cumprimento do
versais, a necessidade de agir de valioso.
acordo com o dito princípio é a ne-
cessidade prática ou dever. O dever DEVIR A significação deste neolo-
não se aplica, por certo, ao sobera- gismo está longe de ser unívoca. Usa-
no no reino dos fins, mas aplica-se se por vezes como sinônimo de ““vir
a cada um de seus membros. A ““for- a ser”; outras vezes é considerado o
ça” que reside na idéia do dever equivalente de ““r sendo”; e ainda
manifesta-se vivamente, segundo es- Outras vezes emprega-se para desipg-
177 DEVIR

nar, de um modo geral, o mudar ou temáticas. Heráclito fez do próprio


mover-se. Dentro desta multiplicida- devir, do yiyveoda, o princípio da
de de significações parece haver, realidade, introduzindo com isto no
contudo, um núcleo significativo in- pensamento grego uma via que foi
variável no vocábulo “devir': é o considerada, por vezes, “heterodo-
que destaca o processo do ser ou, se xa”; cumpre assinalar, porém, que
se prefere, o ser como processo. o devir em Heráclito, embora seja
O problema do devir é um dos um puro fluir, está submetido a uma
problemas capitais da especulação fi- lei: a lei da “medida”, que regula
losófica. Já está presente no pensa- O incessante acender e apagar dos
mento grego, o qual se propôs con- mundos. Parmênides e os eleatas
siderar a questão do devir em estrei- adotaram a tal respeito uma posição
ta ligação com a questão do ser (ver). oposta à de Heráclito. Tendo em vis-
De fato, este pensamento surgiu, em ta que a razão não tem domínio so-
grande parte, como uma manifesta- bre o devir, declararam eles que a
ção de assombro diante da mudan- realidade em devir é puramente apa-
ça das coisas e como a necessidade rente: o ser verdadeiro é imóvel;
de encontrar um princípio que pu- diante do “tudo flui”* de Heráclito,
desse explicá-lo. O devir como tal se os eleatas proclamaram, pois, o ““tu-
mostrava incompreensível para a ra- do permanece”. Os pluralistas pro-
zão; por isso era imprescindível des- curaram encontrar um meio-termo
cobrir a existência de um ser em de- entre essas duas posições. Alguns,
vir. Para isso já tendiam os filóso- como Empédocles e Anaxágoras, ad-
fos jônicos. Sua &exn ou princípio mitiram a existência de várias subs-
da realidade tinha como um de seus tâncias (em quantidade limitada, as
traços capitais ser uma entidade sub- de Empédocles; em quantidade ilimi-
jacente em toda mudança e que, tada, as de Anaxágoras) sem devir,
somando-se a esta, explica a mulit!- mas cujas combinações permitem ex-
plicidade das coisas. Pode-se até d1- plicar o fato do devir. No mesmo
zer que os tipos principais de filoso- sentido se desenvolveu o atomismo
fia pré-socrática são suscetíveis de de Demócrito, mas, ao passo que
descrição em função das correspon- Empédocles e Anaxágoras entende-
dentes concepções defendidas por ram o devir numa acepção qualita-
seus representantes sobre o proble- tiva (devir é mudar de qualidades),
ma do devir. Assim, os jônicos bus- Demócrito o entendeu num sentido
caram, como indicamos, o que per- quantitativo (devir é deslocamento
manece dentro do que vem-a-ser, e de átomos em si mesmos Invariáveis,
pensaram descobri-lo numa substân- sobre um fundo de não ser ou exten-
cia material. Os pitagóricos fizeram são indeterminada). A tendência ge-
o mesmo mas pensaram achar o ral da filosofia grega depois de De-
princípio do devir e do múltiplo nu- mócrito, com algumas exceções (co-
ma realidade ideal: as relações ma- mo as dos epicureus), consiste em su-
DEVIR 178

blinhar o primado da mudança dian- 440 A e ss.) a imutabilidade parece


te do “simples” movimento. alcançar o primado, de tal modo que
Em parte, isto também foi afir- a interpretação do platonismo neste
mado por Platão e por Aristóteles. ponto capital tropeça em todo gêne-
A tendência geral de Platão é fazer ro de dificuldades. Mas, seja qual for
do devir, yiyveobar, uma proprieda- a interpretação adotada, é indubitá-
de das coisas enquanto reflexos ou vel que Platão presta muito maior
cópias das idéias. Tais coisas são pre- atenção ao problema do devir do que
cisamente chamadas, por vezes, o en- poderia dar a entender a simples e
gendrado ou o que “veio a ser”, vuy- quase sempre superficial equiparação
vóueva. Deste ponto de vista, pode- entre o ser e o imóvel, e a aparência
mos dizer que na filosofia de Platão e o móvel. Prova disto é que há em
somente o ser e a imobilidade do ser Platão, sobretudo em seus últimos
(ou das idéias) são “verdadeiramente diálogos, uma preocupação constan-
reais”, enquanto o devir pertence ao te não só em averiguar a relação —
mundo do participado. Considerada ou falta de relação — entre o ser ver-
a questão desde o ângulo do conhe-
dadeiro e o devir, mas também um
cimento, pode-se dizer que ser imó-
oO esforço no sentido de entender as di-
vel é objeto do saber, enquanto o Ser versas formas nas quais o devir po-
em devir é objeto da opinião. Mui- de acontecer. Assim, no Filebo, 54
tas passagens podem ser citadas em C, o filósofo fala do devir como des-
apoio desta contraposição. Uma das truição, pdopa, e gênese, yéveois. E
mais esclarecedoras encontra-se no no Teeteto, 181 D, indica-nos que há
Timeu, 27 E: “Cumpre estabelecer duas formas de devir (o movimento,
uma distinção e perguntar: O que é xtvnois): a alteração, &Ahotwars, e à
que é sempre e jamais vem-a-ser, e traslação, çoea (distinção usada
o que é que está sempre em devir e também no Parmênides, 138 Bess.)
jamais é?”* Entretanto, seria um er- Esta última distinção, sobretudo, é
ro simplificar excessivamente o pen- importante, porque volta a apresen-
samento platônico. Por exemplo, tar a questão nos termos já antes
Platão concebe o Movimento e o Re- indicados do devir como movimen-
pouso como participantes no ser — to qualitativo ou mudança e do de-
uma vez que são ““gêneros supremos vir como processo quantitativo ou
do ser”* — sem que o ser verdadeiro movimento. Ora, foi Aristóteles
seja movimento ou repouso (Sofis- quem forneceu, sobre estas signifi-
ta, 247 E ess.). Por vezes, inclusive cações, as maiores e mais influentes
— como no mesmo diálogo acima ci- precisões. Estudaremos, pois, com
tado — Platão define o ser por meio algum detalhe, seus conceitos a tal
do conceito de potência ou ôúvvanis, respeito.
de tal modo que a idéia de atividade Aristóteles criticou, em primeiro
se torna essencial para o ser. Claro lugar, as concepções sobre o devir
que em outros lugares (cf. Crátilo, propostas pelos filósofos anteriores
179 DEVIR

(cf. Física, I e II, passim). Tais con- causalidade. Os gêneros de devir obe-
cepções podem reduzir-se a quatro: decem a uma classificação distinta.
(1) A solução eleática, que pretende Aristóteles dedicou ao assunto um
explicar o devir negando-o; (2) A so- bom número de páginas em suas
lução pitagórica e platônica, que ten- obras. Mencionaremos aqui as pas-
de a estabelecer uma separação en- sagens que nos parecem fundamen-
tre os entes que se movem e as reali1- tais. Em Categorias, 13, 15 a 14,
dades imóveis para depois — sem o Aristóteles apresenta seis classes de
conseguir — deduzir os primeiros devir (por vezes chama-se “mudan-
das segundas; (3) A solução heracli- ça” ou “movimento”, mas recorda-
teana (e sofística), que proclama que mos ao leitor o ponto de vista mais
a realidade é devir; e (4) a solução genérico e neutro que adotamos ao
pluralista, que reduz as distintas for- propor o nosso termo). São as seguin-
mas do devir a uma só, seja ela qua- tes: geração ou gênese, yéveous; des-
litativa (Empédocles, Anaxágoras), truição, pdopá; aumento, avúénors;
seja quantitativa (Demócrito). Os de- diminuição, dios; alteração, ad-
feitos dessas concepções são princi- Aoítwoirs; e traslação, deslocamento,
palmente dois: (a) não advertir que mudança de lugar ou movimento lo-
o devir é um fato que não pode ser cal, poogá. Em Física, 111 1, 201 à
negado ou reduzido a outros ou afir- 5-7, o devir é (1) substancial — pos-
mado como substância (esquecendo se e privação (mas não, observemos,
neste caso que o devir é devir de uma geração e corrupção ou destruição);
substância), e (b) não notar que ““de- (2) qualitativo — como em branco
vir”, assim como ““ser””, é um ter- e preto; (3) quantitativo — comple-
mo que possui várias significações. to e incompleto (aumento e diminui-
Estes defeitos procedem em boa par- ção); (4) local — para cima, para bai-
te de que os filósofos, embora não xo, ou leve, pesado (mas não, obser-
tenham perdido de vista que para vemos, para a direita, para a esquer-
que haja devir seja necessário algum da, uma vez que consideramos o mo-
fator, condição ou elemento, não se vimento local como um movimento
deram conta, em contrapartida, de natural). De fato, indica Aristóteles,
que se necessita de mais de um fa- há tantos tipos de devir quanto há
tor. Por este motivo, o problema do significados para o vocábulo ““é”.
devir inclui a questão das diferentes Na Física, V224 a 21 e ss., o devir
espécies de causa (cf. Física, II 3, 194 é (a) por acidente, (b) a respeito de
b 16, 195 a 3; Da Alma, 11 4, 415 Db, uma outra coisa e (c) em si mesmo.
8-10; Metafísica, À 3, 983 a 26-33; Se considerarmos agora (c), pode-
A 2, 1013 a 24 e ss.). Com efeito, to- mos classificar o devir em quatro
das as formas de causa são operan- classes, que são as que parecem as
tes na produção do devir, o que não mais fundamentais de todas: (1) de
significa, porém, que haja tantos gê- algo a algo, (II) de algo a não-algo,
neros de devir quantos os tipos de (III) de não-algo a algo e (IV) de não-
DEVIR 180

algo a não-algo. (IV) deve ser excluí- mudar, à parte o Primeiro Motor,
do, pois os termos que nele intervêm que move sem ser movido, é o mo-
não são nem contrários nem contra- vimento circular; só muito mais abai-
ditórios; (III) e (II) são casos de ge- xo, no reino sublunar, registra-se a
ração e corrupção (ou gênese e des- ocorrência do devir qualitativo e de-
truição), mas como só o que é pode pois o ciclo da geração e corrupção,
vir-a-ser, somente (1) merece figurar cada um dos quais, como indica
como caso de movimento. De fato, Bergson, é apenas reflexo do primi-
(II) e (III) são formas de (1), e como tivo e perfeito movimento circular
(1) pode ser concebido tanto a res- original. Este tema da primazia de
peito da qualidade quanto a respei- um tipo de devir sobre outro presta-
to da quantidade, somente ficam o se a vastas argumentações. Algumas
movimento qualitativo (alteração) e das dificuldades que são apresenta-
o quantitativo (aumento e diminui- das na doutrina aristotélica podem,
ção). Deve-se adicionar-lhes, porém, entretanto, resolver-se quando se
o movimento local, com o qual ob- precisa que, em alguns casos, Aris-
temos três sentidos primários do de- tóteles fala do devir como uma ques-
vir. Pode-se perguntar agora se al- tão física, ao passo que em outros
gum deles tem primazia sobre os ou- opta por considerá-lo numa dimen-
tros. A resposta a esta indagação é, são metafísica.
sem dúvida, difícil. Por um lado, pa- Os escolásticos de tendência aris-
rece que o devir qualitativo tem a pri- totélica ocuparam-se em refinar e es-
mazia, se prestarmos atenção ao fa- clarecer os conceltos anteriores. As-
to de que Aristóteles parece ter-se sim, Santo Tomás assinalava que a
preocupado, sobretudo, em explicar mudança é a atualização da potên-
o sentido ontológico da mudança, cla enquanto potência e por isso tem
evitando toda redução da mesma ao de devir quando uma causa eficien-
deslocamento de partículas no espa- te leva, por assim dizer, a potência
ço. Se assim o fizermos, então a ex- à atualidade e outorga ao ser sua per-
plicação do devir estará determina- feição como entidade. O sujeito não
da pela famosa definição do movi- muda, assim, por um mero desenvol-
mento como atualização do possível vimento de algo que tinha implícito,
qua possível (Física, III, 1,201 a 9), nem tampouco pelo aparecimento ex
uma definição que requer, para ser nihilo de uma qualidade, mas por
devidamente entendida, uma análi- força da ação de uma causa que, se
se das noções de ato e potência, pois se quiser, se “interioriza” no ser. Daí
o devir ou mudança consiste, em úl- que ato e a potência, enquanto fa-
oO

tima instância, na passagem do pos- tores do devir, não sejam propria-


sível ao atual. Por outro lado, é pos- mente seres ou princípios constituti-
sível considerar que o sentido primá- vos mas, como dizem os escolásticos
rio do devir é a traslação ou movi- (pelo menos os tomistas), realidades
mento local: a mais alta forma de complementares. Nega-se assim que
181 DEVIR

o ato seja o elemento dinâmico do representa a superação do puro ser


ser e a potência o elemento estático, e do puro nada, os quais são, em úl-
mas também que o ato seja o elemen- tima instância, idênticos. “A verda-
to estático do ser — o ser ““já reali- de — escreve Hegel — não é nem o
zado”* — e a potência o elemento di- ser nem o nada, mas o fato de que
nâmico — o ser “em vias de realizar- O ser se converta ou, melhor, se te-
se”. Ato e potência são igualmente nha convertido em nada e vice-versa.
necessários para que o devir ocorra Mas a verdade tampouco é sua in-
— pelo menos o devir dos entes cria- discernibilidade, mas o fato de que
dos. Pode-se dizer, portanto, que a não sejam o mesmo, de que sejam
escolástica e, em particular, a esco- absolutamente distintos, mas ao
lástica tomista, procura manter-se a mesmo tempo separados e separá-
igual distância entre uma filosofia in- veis, desaparecendo cada um no seu
teiramente estaticista e uma filoso- contrário. A sua verdade é, por con-
fia completamente dinamicista; uma seguinte, este movimento do imedia-
e outra são, segundo a mencionada to desaparecer de um no outro: o de-
tendência, maneiras de eludir o pro- vir, um movimento no qual ambos
blema do devir efetivo. os termos são distintos, mas com
Certas direções da filosofia mo- uma espécie de diferença que, por
derna foram propensas a considerar sua vez, dissolveu-se imediatamente”
o próprio devir como o motor de to- (Logik, ed. G. Lasson, 1, p. 67).
do movimento e como a única expli- Durante o século XX surgiram di-
cação plausível de toda mudança. versas filosofias para as quais o de-
Pensou-se, com efeito, que a on- vir é uma realidade primária — ou,
tologia tradicional — tanto grega se se preferir, para as quais ser só
oO

quanto escolástica — era excessiva- existe na medida em que vem a ser.


mente ““estaticista”* e que sob a sua Em alguns casos, chegou-se a con-
influência foram sepultadas todas as ceber o ser como uma imobilização
tentativas para converter o devir nu- do devir. Encontramos em Bergson
ma noção filosófica central. Descor- um exemplo disso. Em outros casos,
tinamos vislumbres desse dinamicis- opôs-se o devir (concebido como
mo em algumas filosofias renascen- idêntico à vida) ao ser — ou, melhor,
tistas, mas em sua plena maturida- “ao que deveio”* (considerado 1dên-
de somente se revelaria no âmbito do tico à morte). Temos disso um exem-
pensamento romântico. Ele manifes- plo em Spengler. Whitehead é ape-
tou-se, entretanto, de duas maneiras: nas um dos chamados filósofos do
ou como uma afirmação constante processo, que ampliaram a noção de
do primado do devir, ou como um devir a fim de englobar o caráter di-
intento de “racionalizar” o devir de nâmico e permanentemente cam-
alguma forma. Exemplo eminente biante da realidade. Frequente em
desta última posição encontra-se em todas estas concepções é a afirmação
Hegel, para quem o devir (Werden) de um primado do devir, o que equi-
DIALÉTICA 182

vale, na maioria dos casos, a uma Pp,


tentativa de explicar o movimento onde ““p” simboliza uma proposição
pelo crescimento, o mecânico pelo qualquer,
orgânico e, em última análise, o fíi-
sico pelo espiritual. Portanto, q, r, sS.

Mas não q, r, Ss.

DIALÉTICA O termo ““dialética” e, Portanto, não p.


mais apropriadamente, a expressão
“arte dialética”, dLahexTLkXM TÉÊXVN,
Deve-se observar que “p” é,
por
vezes, e com certa frequência, uma
esteve em estreita relação com a pa- proposição condicional (simbolizá-
lavra “diálogo”: “arte dialética” po- vel, pois, “se p, então p1””), de mo-
de definir-se primariamente como do que a negação do consequente
“arte do diálogo”*. Como no diálo- conduz a uma negação (ou ““refuta-
go há (pelo menos) dois logoi que se ção”) do antecedente.
'contrapõem entre si, também na dia- A ““arte dialética” foi usada nes-
lética há dois logoi, duas “razões” te sentido mais preciso por Parmê-
ou “posições” entre as quais se es- nides, a fim de provar que, como
tabelece precisamente um diálogo, consequência de “O que é, é” e “O
ou seja, um confronto no qual se ve- que não é, não é”, quanto seja (ou
rifica uma espécie de acordo na dis- é) não muda, pois se mudasse se con-
:
cordância — sem o que não haveria verteria em ““outro””, mas não há
diálogo — mas também uma espé- “outro”, exceto “o que é”. Tam-|
cie de sucessivas mudanças de posi- bém a usou para provar que o que
ções, induzidas pelas posições ““con- é, é um, pois se fora, por exemplo,
trárias””. dois, haveria uma separação entre
Ora, este sentido ““dialógico”* de ambos, e essa separação não é uma
“dialética”, embora primário, não realidade mas um ““não ser”, etc.
é suficiente: nem todo diálogo é ne- Como se pode ver, esse tipo de ar-
cessariamente dialético. Num sent!1- gumento consiste em supor o que
do mais “técnico”, a dialética foi en- ocorreria se uma dada proposição,
tendida como um tipo de argumen- declarada verdadeira, fosse negada.
to semelhante ao argumento chama - Este sentido de ““dialética” é for-
do “redução ao absurdo”, mas não mal, quer dizer, baseia-se num mo-
idêntico a este. Neste caso, continua delo formal de argumentação acer-
havendo na dialética um “dialogar”, ca de proposições. Mas dizer “não
mas não ocorre necessariamente en- p” não significa necessariamente que
tre dois interlocutores e sim, por as- não p é contraditório com p. Pode
sim dizer, “dentro do mesmo argu- muito bem ocorrer que não p seja
mento”. O modelo do argumento falso (ou que não seja falso, em cujo
“dialético”? pode ser esquematizado, caso não p será verdadeiro). Ora,
então, do seguinte modo: muitos dos argumentos aduzidos por
183 DIALÉTICA

Sócrates nos diálogos platônicos são o “exercício dialético” do Parmêni-


da mesma forma. Diz-se que esses des. Com efeito, uma vez discrimi!-
argumentos são ““dialéticos”, em nadas as Idéias (Sofista, 253 D),
cujo caso parece que a famosa dia- trata-se de saber como podem com-
lética platônica, ou socrático-platô- binar-se. Se todas as Idéias fossem
nica, consiste unicamente num tipo completamente heterogêneas em re-
de argumento algo mais “frouxo” lação umas às outras, não haveria
do que os argumentos aduzidos por problema. Mas tampouco haveria
Parmênides — ou por Zenão de ciência. Se todas as idéias se reduzis-
Eléia. Mas ocorre que o que temos sem a uma só Idéia — à Idéia do Ser
em Platão não é simplesmente uma ou do Uno — tampouco haveria pro-
forma menos rigorosa ou formal de blema. Mas não se poderia dizer so-
dialética, mas uma forma bem mais bre o que é mais do que Parmênides
completa, e em grande parte distin- já disse: que “é”. A questão é, pois,
ta, de dialética. como a dialética possibilita uma
A rigor, temos em Platão duas ciência dos princípios fundada na
formas de dialética. Enquanto em idéia da unidade. Uma das soluções
certos diálogos (o Fédon, o Fedro, mais óbvias consiste em estabelecer
em parte a Republica) Platão apre- uma hierarquia de idéias e princípios,
senta a dialética como um método de da qual a doutrina dos supremum re-
ascensão do sensível ao inteligível, rum genera constitui um ingredien-
em alguns dos chamados ““diálogos te essencial. Neste ponto, já nos en-
últimos”? (como o Parmênides e, em contramos longe da idéia da dialéti-
particular, o Sofista e o Filebo) ca como “impulsionada por Eros”
apresenta-a como um método de de- (Fédon, 250 A et al.). A dialética pa-
dução racional das Formas. Como rece ter-se convertido na ciência da
método de ascensão ao inteligível, a realidade como tal.
dialética vale-se de operações tais co- Em todo caso, a dialética nunca é
mo a “divisão” e a “composição” em Platão mera disputa nem um sis-
(Fédon, 265 A-266 B), que não são tema de raciocínio formal. Por isso,
duas operações distintas, mas dois apesar das dificuldades que a dialé-
aspectos da mesma operação. A dia- tica oferece, Platão enaltece-a con-
lética permite então passar da mul- tinuamente, a ponto de fazer dela o
tiplicidade à unidade e mostrar esta objeto do supremo exercício do fi-
como fundamento daquela. Como lósofo (República, VI, S11 B). Em
método de dedução racional, em compensação, Aristóteles contrasta
contrapartida, a dialética permite a dialética com a demonstração, pe-
discriminar as Idéias entre si e não las mesmas razões que o levaram a
confundi-las. É claro que isto não contrastar a indução com o silogis-
acontece sem muitas dificuldades, mo. A dialética é para Aristóteles
lealmente reconhecidas por Platão, uma forma não demonstrativa de co-
sobretudo na perplexidade que revela nhecimento: é uma “aparência de fi-
DIALÉTICA 184

losofia””, mas não a própria filoso- retórica, o Trivium das artes liberais.
fia. Daí que Aristóteles seja propen- Como tal era uma das artes sermo-
so a considerar num mesmo nível cinales, quer dizer, uma das artes que
discussão, probabilidade e dialética. se referem ao método e não à reali-
A dialética, diz Aristóteles, é discus- dade. Por outro lado, constituiu (por
são e não ciência; probabilidade e exemplo, no Didascalion, de Hugo
não certeza; “indução” e não pro- de Saint-Victor) uma das partes da
priamente “demonstração”. E suce- chamada lógica dissertiva, à que se
de até que a dialética é tomada por propõe elaborar a demonstração
Aristóteles num sentido pejorativo, probatória. Finalmente, constituiu o
não só como um saber do meramente modo próprio de acesso intelectual
provável, mas também como um ao que podia ser conhecido do reino
“saber” (que é, com certeza, um das coisas críveis, dos credibilia. No
“pseudo-saber”*) do aparentemente Renascimento, em compensação, foi
tomado como real. Por isso Aristó- frequente a refutação da dialética,
teles chega a chamar ““dialético”* ao interpretada em muitas ocasiões co-
silogismo ““erístico”, no qual as pre- mo designando o conteúdo formal
missas não são sequer prováveis, da lógica aristotélica.
apenas parecem sê-lo. É corrente, aliás, em vários filó-
O sentido positivo da dialética res- sofos do século XVII, uma crítica
surgiu, em contrapartida, com o neo- dos procedimentos dialéticos. Assim,
platonismo, que a entendeu como o por exemplo, Descartes explica nas
modo de ascensão a realidades supe- Regulae (X) por que omite ““os pre-
riores, ao mundo inteligível. Em par- ceitos pelos quais os dialéticos pen-
ticular, o sistema de Proclo utilizou sam governar a razão humana”,
como método universal a dialética na prescrevendo-lhe certas formas de
forma platônica. A dialética, diz raciocínio que conduzem a conclu-
Plotino, é uma parte da filosofia e sões que a razão não pode deixar de
não um mero instrumento dela. negar.
Também entre os estóicos a dialéti- O sentido pejorativo da dialética
ca era um modo ““positivo”* de co- foi comum no século XVIII. Assim,
nhecimento; segundo Diógenes Laér- Kant considerou a lógica geral en-
cio (VII, 43), a dialética nos estóicos quanto Organon como uma ““lógica
divide-se em “temas do discurso” e da aparência, ou seja, dialética”,
“Tnguagem””, sendo necessário de- pois “nada informa sobre o conteú-
fender esta “dialética” contra os ata- do do conhecimento e limita-se ape-
ques dos cépticos (cf. Epicteto, Dis- nas a expor as condições formais da
cursos, IL, vil, vili, xvil, e especial- conformidade do conhecimento com
mente II, xx, xxv). Na Idade Média, o entendimento” ( K. r. V., B 86).
a dialética foi objeto de sentenças A crítica da aparência dialética cons-
muito variadas. Por um lado, che- titui a segunda parte da lógica trans-
gou a formar, com a gramática e a cendental, título que, segundo Kant,
185 DIALÉTICA

lhe compete “não como arte de sus- uma significação univocamente po-
citar dogmaticamente essa aparência, sitiva. Entretanto, assim que nos de-
mas sim como crítica do entendimen- temos nos resultados mais gerais que
to e da razão em seu uso hipercriíiti- se destacam da filosofia de Hegel,
co” (ibid., B 88). Dai que a terceira percebemos que a dialética represen-
parte da Crítica da Razão Pura, a ta, diante do abstrato, a acentuação
“Dialética Transcendental”, seja a de que essa abstração nada mais é do
critica desse gênero de aparências que a realidade morta e esvaziada de
que não procedem da lógica nem da sua própria substância. Para que 1s-
expefiência, mas da razão na medi- so não suceda, o real precisa apare-
da em que pretende superar os limi- cer sob um aspecto em que se negue
tes impostos pela possibilidade da ex- a si mesmo. Daí que a dialética não
periência — limites traçados na ““Es- seja a forma de toda a realidade, mas
tética Transcendental”' e na “Ana- aquilo que lhe permite alcançar o ca-
lítica Transcendental” — e aspira a ráter verdadeiramente positivo. Isto
conhecer por si só, e segundo os seus foi afirmado de maneira muito ex-
próprios princípios, o mundo, a al- plícita por Hegel em EnzyKklopaádie ($
ma e Deus. 79). Assim, o que tem realidade dia-
É central o papel desempenhado lética é o que tem a possibilidade de
pela dialética no sistema de Hegel. não ser abstrato. Em suma, a dialé-
Contudo, são consideráveis as difi- tica é o que torna possível o desabro-
culdades para compreender o signi- char e, por conseguinte, o amadure-
ficado preciso da dialética neste fi- cimento e a realização da realidade.
lósofo. Com efeito, dialética signi- SÓ neste sentido se pode dizer que,
fica em Hegel, em primeiro lugar, o para Hegel, a realidade é dialética.
momento negativo de toda realida- Mas o que importa nessa dialética do
de. Dir-se-á que, por ser a realidade real é menos o movimento interno da
total de caráter dialético — em vir- realidade do que o fato de essa rea-
tude da identidade prévia entre a rea- lidade alcançar necessariamente sua
lidade e a razão, identidade que faz plenitude em conseqiiência desse seu
do método dialético a própria forma movimento interno. Portanto, é a
em que a realidade se desenvolve — “realidade realizada” o que interes-
esse caráter afeta o que ela tem de sa a Hegel e não apenas o movimen-
mais positivo. E se levarmos em con- to dialético que a realiza.
ta a onipresença dos momentos da A noção de dialética, o método
tese, da antítese e da síntese em to- dialético e, por vezes, a chamada
do o pensamento de Hegel, e o fato “lógica dialética” são centrais no
de que somente pelo processo dialé- marxismo (ver) ou, melhor dizendo,
tico do ser e do pensar pode o con- em muitas das formas que a tradi-
creto ser absorvido pela razão, não ção marxista adotou, incluindo nes-
poderemos deixar de nos inclinar pa- ta certas correntes que alguns con-
ra uma avaliação da dialética sob sideram só parcialmente marxistas.
DIALÉTICA 186

Um caráter comum a quase todos os Junta de contrários, mas não de con-


pensadores marxistas é fazer da dia- traditórios. Os marxistas “oficiais”,
lética um método para descrever e no entanto, insistiram em que as leis
entender não, como em Hegel, o au- dialéticas citadas representam uma
todesenvolvimento de ““a Idéia”, verdadeira modificação das leis 1ó-
mas a realidade enquanto realidade gicas formais e que, por conseguin-
“empírica”. Isto pode abarcar todas te, os princípios de identidade, de
as realidades, incluindo as naturais, contradição e de terceiro excluído
ou somente — e, em certas ocasiões, não vigoram na lógica dialética. Por
primordialmente — a realidade so- esse motivo, a lógica formal (não
cial humana. A mais simples e bási- dialética) foi inteiramente rechaçada
ca forma de “filosofia dialética” é ou considerada uma lógica de nível
a adotada pelo que, durante um tem- inferior, apta apenas para descrever
po, foi considerado o marxismo ““or- a realidade em sua fase estável. Nas
todoxo** soviético. Lênin e, sobretu- últimas décadas, entretanto, ocorre-
do, Stalin — seguidos pelos filóso- ram por parte dos filósofos marxis-
fos “oficiais” soviéticos e os que re- tas oficiais certas mudanças em suas
fletiam as orientações fornecidas por concepções da dialética. Por um la-
estes últimos, insistiram em que ““a do, alguns tentaram mostrar que as
dialética” é o que Engels já dissera leis dialéticas podem axiomatizar-se.
dela: “a melhor ferramenta e a ar- Por outro lado, deu-se um crescente
ma mais afiada” para realizar os reconhecimento da importância da
propósitos revolucionários do Par- lógica formal (não dialética). Os mo-
tido. O uso da dialética permite, com tivos de tal mudança são complexos,
efeito, no entendimento desses auto- sobretudo porque muitos deles são
res, compreender o fenômeno das de índole política e não estritamente
mudanças históricas (materialismo filosófica. Em conseqiiência disso, o
histórico) e das mudanças naturais conceito de dialética na filosofia
(materialismo dialético). Todas essas marxista ficou ainda mais obscuro
mudanças são regidas pelas ““três do que o usual. Não se pode afirmar,
grandes leis dialéticas”': a lei da ne- com efeito, se a dialética é um nome
gação da negação, a lei da passagem para a filosofia geral, que inclui a ló-
da quantidade à qualidade e a lei da gica formal como uma de suas par-
coincidência dos opostos. Tais leis tes, ou se é simplesmente um méto-
permitem, no entender dos marxis- do para a compreensão desta última.
tas, afirmar “S é P” e negar, ao mes- Mudanças importantes em todos es-
mo tempo, “S é P”, pois assinalam ses pontos se produziram já a partir
que, se “S é P”* pode ser verdadeiro dos artigos de Stalin em 1950 acerca
no tempo 7, pode não ser verdadei- do marxismo na lingiística.
ro no tempo 1. Vários autores argu- Depois da morte de Stalin (1953),
a
mentaram respeito que isso repre- aumentaram na União Soviética e
a
senta unicamente afirmação con- nos chamados ““países comunistas”
187 DILEMA

as discussões acerca da natureza, sig- costuma-se chamar a atenção para a


nificado e alcance da dialética, em diferença entre o dilema e o silogis-
particular do método dialético e da mo disjuntivo, no qual se afirma so-
lógica dialética. Em sua Crítica da mente um dos membros da disjun-
Razão Dialética, Sartre apresenta a ção. Um dos exemplos tradicionais
atividade dialética como ““totalizan- do dilema é:
te”. A razão dialética constitui um Os homens levam a cabo ou não os
todo que deve fundar-se a si mesmo. assassinatos que projetam.
Essa autofundação deve ser levada Se os levam a cabo, pecam contra a
a efeito dialeticamente (op. cit., p. a lei de Deus e são culpados.
130). A razão dialética não deve ser Se não os levam a cabo, pecam con-
dogmática mas crítica. O dogmatis- tra a sua consciência moral e são
mo dialético leva a uma pseudocom-
culpados.
preensão esquemática e abstrata da Portanto, quer sejam levados a cabo
realidade. A dialética crítica, em ou não os assassinatos que proje-
compensação, ““descobre-se e funda- tam, são culpados (se projetam
se na e pela praxis humana” (p. 129). um assassinato).
Isto permite dizer que ““o materialis-
mo histórico é a sua própria prova Quando os membros da proposi-
ção disJjuntiva são três, fala-se de tri-
no meio da racionalidade dialética,
lema; quando são quatro, quadrile-
mas que não fundamenta essa racio-
nalidade, inclusive, e sobretudo, se ma; quando são em número indeter-
restitui à história seu desenvolvimen- minado, n, de membros, polilema.
Na lógica atual, o dilema é apre-
to como razão constituída” (p. 134). sentado como uma das leis da lógi-
Em suma: a dialética “não possui
ca sentencial. Indicamos a seguir
outras leis além das regras produzi- quatro formas da dita lei:
das pela totalização em curso” (p.
139). Pode-se observar que Sartre
refere-se primordialmente à realida-
(pr) A(q—r)) A(pv q)—r
(p>q) A(p—=r)A(Qqv I|191p
de humana e social, e não à natural. (Pq) A (Fr=S5S)) A(pv r)-(qvs
((p>q) A(r=s5S) AOqvIls
DILEMA Nome dado a um antigo —(IpvVvIP)
=

argumento que se apresenta em for- Observe-se que o comum de todas


de
ma silogismo com ““dois fios” ou as formas acima é que se trata de um
“dois cornos”, e por isso também condicional cujo antecedente é com-
chamado sy!Hogismus cornutus. Co- posto de três fórmulas unidas por
mo quase todos os exemplos de di- conjunções. As duas primeiras fór-
lemas apresentados na lógica tradi- mulas do antecedente são, por sua
cional têm em sua conclusão uma vez, condicionais e a terceira é uma
proposição disjuntiva cujos dois disjunção. Quanto à conclusão, po-
membros são igualmente afirmados, de ser uma disjunção (como se vê nos
DIREITOS DOS ANIMAIS 188

dois últimos casos), ou a afirmação obter proteínas de outros alimentos.


(primeiro caso) ou negação (segundo Outros aceitam que se coma carne
caso) de uma das sentenças. apenas quando os animais sejam sa-
De um modo muito geral, chama- crificados em condições que elimi-
se “dilema” à oposição de duas te- nem ou reduzam ao máximo a dor
ses, de tal modo que, se uma delas e o sofrimento. Entre os que defen-
é verdadeira, a outra terá de ser con- dem a libertação dos animais é co-
siderada falsa, e vice-versa. mum a negativa a que eles sejam sa-
|

crificados para elaborar cosméticos


DIREITOS DOS ANIMAIS Houve — que podem ser produzidos com
recentemente uma série de discussões outras matérias-primas — ou fabri-
em torno do tema da libertação dos car casacos de peles, que consideram
animais, e isso em conexão com os um luxo. Também há acordo diante
diversos movimentos atuais de liber- do que implica submetê-los a expe-
tação; destes, a maioria são inter- rimentos — quer biológicos, médi-
humanos (libertação dos oprimidos, cos ou de comportamento —, já que
tanto no econômico, no político, no nenhum deles está sob controle es-
nacional, etc.; libertação da mu- trito. Mesmo quando seja razoável
lher...). O movimento pró-liberdade utilizá-los para a experimentação
dos animais é, por assim dizer, in- biológica ou médica, esta terá de ser
travida e refere-se à sua independên- realizada em condições que não en-
cia frente à espécie humana ou a gru- volvam tormento para os animais.
pos de humanos que adotam — O tema está relacionado com o dos
conscientemente ou não — a atitu- direitos dos animais, já que se al-
de denominada ““especieísmo”*”. guém defende a liberdade deles é de
Há exemplos muito diversos da ex- se supor que se acredite fazerem jus
pressão ou subjugação a que os ani- a esse direito; põe-se a questão de sa-
mais se vêêm submetidos. Em prin- ber se têm tal direito no mesmo ní-
cípio, parece que esses exemplos de- vel que o homem, e em geral a res-
veriam incluir alguma ação que su- posta é negativa. Uma coisa é que os
pusesse o afastamento do animal do animais façam jus a direitos, e ou-
seu habitat natural mas, de acordo tra muito distinta é que estejam em
com isso, domesticar animais seria igualdade de nível com o ser huma-
opressão — o que parece aos olhos no. Cada espécie tem suas caracte-
de muitos um exagero. E mesmo ex- rísticas próprias e seus direitos cor-
cluindo o caso dos animais domésti- respondentes, mas é importante de-
cos, há muitas formas de tratar os terminar se há ou não direitos bá-
animais que pressupõem opressão ou sicos, comuns ao homem e a, pelo
maus-tratos. Há quem pense que sa- menos, algumas espécies — como
crificar animais para alimentar-se é mamíferos e pássaros, por exemplo
injusto, uma vez que o homem não — e se esses direitos se baselam, em
é necessariamente carnívoro e pode última instância, numa igualdade bá-
189 DISAMIS

sica que seria a “igualdade dos se- mite defensável em interesse dos de-
res vivos”. mais”. A possível defesa dos animais
Jeremy Bentham (The Principles deriva de sua condição de senciente.
of Morals and Legislation, cap. Portanto, a simples aplicação do
XVII, séc. I, nota ao $ 4) manifes- “princípio de igualdade” seria, se-
tou a opinião de que “pode chegar gundo Singer, suficiente para Jjusti-
o dia em que a população animal re- ficar a solicitação de não causar da-
cupere esses direitos que nunca lhe no — ou causá-lo o menos possível
teriam sido arrebatados a não ser pe- — a todo ser capaz de sentir, incluí-
la força””. Segundo Bentham, esses dos os animais. Isto não significa,
direitos apóilam-se na noção de uma como já se disse antes, que todos os
característica comum a homens e seres com vida tenham o mesmo va-
animais. Se antes — e agora — se lor, mas tão-somente que o ““espe-
afirmava que a razão e a linguagem cieíismo” não constitui critério sufi-
distinguem o homem do animal e lhe ciente para atentar contra a vida de
conferem direitos superiores, Ben- ninguém. Por outras palavras — e
tham argumenta que um cão adulto precisamente porque o ser humano
é mais racional do que uma criança se distingue dos outros viventes —
de um dia, um mês e até um ano, e não há Justificação para que os tra-
que um idiota congênito tampouco temos sem considerar seus interesses
se distingue por sua racionalidade. A e direitos.
questão, para Bentham, não se ori-
gina na capacidade de pensar ou de DISAMIS É o nome que designa um
falar, mas na capacidade de sofrer. dos modos válidos dos silogismos da
Se os animais sofrem o mesmo que terceira figura. Um exemplo de Di-
os humanos, e se se acredita que o samis pode ser:
sofrimento deve ser sempre evitado,
então todo ser vivo tem direito a não Se alguns aviadores são jovens
ser maltratado. e todos os aviadores são tímidos,
Falando com propriedade, o sofri- então alguns tímidos são jovens,
mento é, à semelhança do gozo, uma exemplo que corresponde à seguinte
manifestação da sensibilidade. Ad- lei da lógica quantificacional elemen-
mite melhor a generalização essa ca- tar:
racterística de ser ““senciente””, ou
capaz de sentir, do que a de ser ca- v xX(Gx à Hx) À AX(Gx— Fx)
paz de sofrer. De fato, a maior par- — VX(Fx A Hx)
te dos animais são — tal como o ho-
mem — realidades ““sencientes”.
e que, usando as letras “S”, “P”
e
De acordo com a teoria de Ben-
“M” da lógica tradicional, pode ex-
pressar-se mediante o seguinte esque-
tham, Peter Singer (Animal Libera-
ma:
tion, 1975, p. 9ess.) afirmou que “a
capacidade de sentir... é o único li- (MIP A MaS) — SiP
DISJUNÇÃO 190

onde aparece claramente a sequên- sos. Isto gera confusões. Para evitá-
cia das letras “T””, “A”, “TT”, ori- las, é comum ler:
gem do termo Disamis, na ordem
MP-MS-SP. "PV
assim:
DISJUNÇÃO Há dois conectivos
sentenciais que recebem o nome de p ou q (ou ambos)
“disjunção” (e, por vezes, “alterna- e:
ção”). Um dos conectivos é “ou”,
simbolizado por ““ v ** e que recebeu p%q
o nome de ““disJunção inclusiva”; o como:
outro é “ou...ou””, simbolizado por
“=” e denominado ““disjunção ex- p ou q (mas não ambos).
clusiva””. Assim, Assim:
PYA Emília toca piano ou critica
lê-se: suas amigas;
DpOUqg ou pode entender-se:
Exemplo de ““pvq” pode ser: Emília toca piano ou critica suas
amigas (ou ambas as coisas),
Daniel fala ou fuma.
em cujo caso é um exemplo de “p v
Por sua vez,
prq
qentender-se:
ou disjunção inclusiva, ou pode

lê-se: Emilia toca piano ou critica suas


amigas (mas não ambas as coisas),
p ou q

q
ou
e neste caso éum exemplo de
Exemplo de' "Pp pode ser:
“p*q ou disjunção exclusiva.
Ou Amélia põe o chapéu ou fica Na notação de Lukasiewicz, “ v ”
em casa.

é representado pela letra “A” ante-


A diferença entre “ou” e “ou... posta às fórmulas; assim, “pv qU
ou” na linguagem comum manifes- escreve-se “A pq”.
ta-se em qualquer idioma. Assim, em A tabela de verdade para “pv q”
alemão (oder e entweder... oder), em dá vês para todos os valores de “p”
inglês (or ou either... or), em russo e “q”, exceto quando tanto ““p”
(ili e fieto... fieto), em latim (vel e quanto “gq” são falsos. A tabela pa-
aut... aut), etc. Em muitos desses ra “pq” dá efes quando tanto “7”
idiomas, entretanto, e também no como “q” são verdadeiros e quan-
português, usa-se às vezes a primei- do tanto “p” como “q” são falsos;
ra conjunção para qualquer dos ca- nos demais casos, a tabela dá vês.
191 DISPOSIÇÃO, DISPOSICIONAL

DISPOSIÇÃO, DISPOSICIONAL propuseram substituir os termos dis-


O termo ““disposição”* pode enten- posicionais por proposições contra-
der-se em vários sentidos, embora o factuais (ver CONDICIONAL). As-
mais freqiiente seja considerá-lo co- sim, dizer que um objeto é frágil
mo um predicado — ou suposto pre- equivale, segundo esses filósofos, a
dicado — de realidades (sobretudo, dizer que, se verificassem as condi-
de realidades naturais). Semelhante ções adequadas, o objeto em ques-
predicado é atribuído a uma realida- tão se quebraria. Os termos disposi-
de no sentido de que se presume que cionais podem, então, ser eliminados
tal realidade poderá oportunamente da linguagem — embora se conser-
manifestar esse predicado. O senti- vem, por razões de comodidade, nos
do de “disposição” é aqui semelhan- modos de falar comuns e correntes.
te a alguns dos sentidos dos vocábu- Alguns filósofos, como Quine, in-
los “potência”, “possibilidade” (so- dicaram que não há diferença entre
bretudo, ““possibilidade real”), “for- uma propriedade que se manifesta
ça”, etc. Mas, além disso, entende- efetivamente e uma que se supõe ser
mos aqui ““disposição”* como uma suscetível de manifestar-se. Isto não
propriedade designada por um dos se deve apenas à possibilidade detra-
termos chamados ““disposicionais”: dução (e eliminação) linguística an-
termos como ““quebrável”, “inque-
brável”, “solúvel”, “insolúvel”, etc.
tes mencionada, mas também, so-e
bretudo, a que ambos os tipos de
Levantaram-se a este respeito vários propriedade são da mesma classe —
problemas. Alguns deles foram tra- da mesma ““classe natural”*. Autores
tados por filósofos do passado, mor- como Popper declararam não ser
mente em torno do conceito de po- preciso usar termos de um certo ti-
tência. Limitar-nos-emos aqui ao po — como “flexível”, “quebrá-
modo como o problema das dispo- vel”, “solúvel”* — que por sua ter-
sições e dos termos disposicionais foi minação em ““-vel”*são qualificados
apresentado em algumas escolas da de ““disposicionais””, em contraste
filosofia contemporânea. com outros termos que, por não te-
Os filósofos que admitem sem re- rem essa terminação, ou outro simi-
servas falar de possibilidades como lar, não o são. O termo “duro” po-
tais sustentam que os termos dispo- de ser tão disposicional quanto o ter-
sicionais designam simplesmente cer- mo “flexível”: que um objeto seja
tas qualidades inerentes num objeto, duro quer dizer que possui certas
ainda que não necessariamente ma- qualidades: que revelam, ou revela-
nifestadas. Assim, que um objeto de rão óportunamente, ou que pode-
vidro seja “frágil” significa que pos- riam revelar, se se dessem as condi-
sui certa qualidade: Justamente a de ções requeridas, sua dureza. Escre-
ser “frágil”. Entretanto, como seme- veu Popper: ““Esquece-se que todos
lhante “qualidade” parece ser uma Os universais são disposicionais de-
“qualidade oculta”, vários filósofos vido ao fato de que podem sê-lo em
192
DOGMATISMO

vários “graus” ” (The Logic of Scien- DOGMATISMO A acepção em que


tific Discovery, 1959, p. 424). Ora, se usa em filosofia o termo “dogma-
essa admissão pode ser interpretada tismo” é distinta da que se usa em
de dois modos: (1) se todos os ter- religião. Nesta última, o dogmatis-
mos dos tipos indicados são dispo- mo é o conjunto dos dogmas, os
sicionais, então todas as proprieda- quais são considerados (em muitas
des, inclusive as que não se manifes- igrejas cristãs, pelo menos, e em par-
tam efetivamente, são disposições; ticular no catolicismo) proposições
(2) não há motivo para falar de dis- pertinentes à palavra de Deus e enun-
posições, em absoluto, mas unica- ciadas pela Igreja. No plano religio-
mente de propriedades: dizer que so, os dogmas são usualmente con-
“duro” é tão disposicional quanto siderados como verdades. Mas um
“flexível” não está muito longe de dogma poderia ser falso, e neste ca-
afirmar que ““flexível”* é tão pouco so se trata, como escreveu Santo To-
disposicional quanto ““duro””. más, de um dogma perversum. Filo-
As posições adotadas a respeito do soficamente, em contrapartida, o vo-
conceito de ““disposição” podem cábulo “dogma”, doyua, significou
classificar-se do seguinte modo: (1) no início “opinião”. Tratava-se de
Não há disposições, e os termos com uma opinião filosófica, isto é, de al-
que comumente se expressam os ter- go que se referia aos princípios. Por
mos disposicionais são traduzíveis isso o termo “dogmático”, dovua-
TiuxOoS, Significava ““relativo a uma
por expressões nas quais não inter-
vêm tais termos; (2) as disposições doutrina” ou “fundamentado em
são propriedades reais de objetos; is- princípios”. Ora, os filósofos que in-
to não significa necessariamente ado- sistiam demasiado nos princípios ter-
tar uma atitude ““realista”* a resper- minavam por não prestar atenção
to das disposições, porque a afirma- aos fatos ou aos argumentos — so-
ção de referência pode expressar-se bretudo aos fatos ou argumentos que
em várias linguagens, inclusive uma pudessem pôr em dúvida tais princí-
linguagem nominalista; (3) pode-se pios. Esses filósofos não consagra-
distinguir nitidamente entre proprie- vam sua atividade à observação ou
dades e disposições, corresponden- ao exame, mas à afirmação. Foram
do esta distinção, de um modo geral chamados por isso “filósofos dog-
— ainda que não estritamente — à máticos”, doyuaTtTLlXxX OL PLAOGOGOL, EM
que existe entre termos não-disposi- contraste com os “filósofos exami-
cionais e termos disposicionais; (4) nadores”* ou “cépticos””. Na mesma
as chamadas ““disposições” são, de ordem de idéias, também se Ihes cha-
alguma maneira, ““extensões” de mou a escola dogmática, doyuaTtUON
propriedades reais, podendo-se falar atopeois, isto é, a que propugnava
então de distintos graus de realida- não o cepticismo (enquanto exame |1-
de e de distintos graus de ““disposi- vre de preconceitos), mas o dogma-
cionabilidade””. tismo.
193 DOGMATISMO

O sentido dos termos “dogma”, Como a completa submissão sem


“dogmático” e “dogmatismo”, mes- exame pessoal a alguns princípios ou
mo confinando-se à filosofia, nada à autoridade que os impõe ou reve-
tem, contudo, de simples. Exemplo la. Em filosofia, entende-se geral-
de variedade no uso em um só filó- mente o dogmatismo como uma ati-
sofo encontramos em Kant. Este não tude adotada no problema da possi-
aceita que se possa estabelecer o que bilidade do conhecimento e, portan-
chama de “uma metafísica dogmá- to, compreende as duas primeiras
tica” e propõe, em vez disso, uma acepções. Contudo, a ausência do
“critica da razão”. Por outro lado, exame crítico revela-se também em
declara que todas as proposições certas formas extremas do cepticis-
apodicticas, tanto se são demonstrá- mo e é por isso que certos cépticos
vels como se são imediatamente evi- são, a seu modo, dogmáticos. O dog-
dentes, podem dividir-se em dogma- matismo absoluto do realismo ingê-
ta e mathemata. Um “dogma” é, se- nuo não existe propriamente na f1-
gundo ele, uma proposição sintética losofia, que começa sempre com a
derivada diretamente de conceitos, pergunta acerca do ser verdadeiro e,
em contraste com um ““mathema”, por conseguinte, busca esse ser me-
ou proposição sintética obtida me- diante um exame crítico da aparên-
diante a construção de conceitos (K. cia. Isto ocorre não só no chamado
r. V., A 736, B 764). Não obstante, dogmatismo dos primeiros pensado-
pode-se afirmar que, em geral, Kant res gregos, mas também no dogma-
usa o vocábulo “dogmatismo”, di- tismo racionalista do século XVII,
ferentemente da expressão ““proce- que culmina em grande confiança na
dimento dogmático”', num sentido razão mas depois de tê-la submeti-
pejorativo — e foi este o que se do a exame. Como posição gnosio-
transmitiu até nós no campo filosó- lógica, o dogmatismo opõe-se mais
fico. ao criticismo do que ao cepticismo.
Examinaremos agora a noção de Esta oposição entre o dogmatismo e
dogmatismo, especialmente na teo- o cepticismo foi sublinhada especial-
ria do conhecimento. Entende-se o mente por Kant, que, ao proclamar
dogmatismo principalmente em três o seu despertar do “sono dogmáti-
sentidos: (1) Como a posição própria co*”*
por obra e graça da crítica de
do realismo ingênuo, que admite não Hume, opôs a crítica da razão pura
só a possibilidade de conhecer as coi- ao dogmatismo em metafísica. Mas
sas em seu ser verdadeiro (ou em si), ““a crítica — escreve Kant — não se
mas também a efetividade deste co- opõe ao procedimento dogmático da
nhecimento no trato diário e direto razão em seu conhecimento puro co-
com as coisas. (2) Como a confian- mo ciência (pois tem sempre de ser
ça absoluta num órgão determinado dogmática, ou seja, tem de ser rigo-
do conhecimento (ou suposto conhe- rosamente demonstrativa, por meio
cimento), principalmente a razão. (3) de princípios estabelecidos a prior),
DUALISMO 194

mas ao dogmatismo, isto é, à preten- alma-corpo, de tão amplas ressonân-


são de avançar com um conhecimen- cias na filosofia moderna a partir de
to puro formado de conceitos””.. “O Descartes. Assim, Descartes é carac-
dogmatismo é, pois, o procedimen- terizado como francamente dualista,
to dogmático da razão pura sem uma ao passo que Spinoza representa o
crítica prévia do seu próprio poder” :
caso mais extremado de monismo.
SÓ a posterior generalização do sig-
(K. r. V., B xxXV).
nificado do termo fez com que ““dua-
DUALISMO Segundo Rudolf Euc- lismo”* significasse, em geral, toda
ken, a palavra “dualismo” foi em- contraposição de duas tendências ir-
pregada primeiramente por Thomas redutíveis entre si. Deste ponto de
Hyde em seu Historia religionis ve- vista, podem entender-se como dua-
terum Persarum, 1700 (cap. IX, p. listas várias doutrinas filosóficas
164) para designar a coexistência 1r- fundamentais: a filosofia pitagórica,
redutível de Arimã e Ormuz; tinha que opõe o perfeito ao imperfeito,
ainda esse mesmo significado em o limitado ao ilimitado, o masculi-
Bayle (Dictionnaire historique et crt- no ao feminino, etc. e faz destas opo-
tique, art. Zoroastre) e em Leibniz sições os princípios da formação das
(Theod., II, 144, 149). Somente com coisas; a especulação gnóstica e ma-
Wolff aparece um significado estri- niqueísta, com sua oposição dos
tamente filosófico, ao utilizar “dua- princípios do Bem e do Mal; o siste-
lismo”* como algo contrário a “mo- ma cartesiano, com a redução de to-
nismo”. Com efeito, para Wolff do ser à substância pensante ou à
(Psychologia rationalis, 1734, $ 34), substância extensa. Entende-se o
são dualistas os que afirmam a exis- dualismo, além disso, de diversas
tência de duas substâncias, a mate- maneiras segundo o campo a que se
rial e a espiritual, em contraste com aplique, falando-se de dualismo psi-
os monistas, que não admitem mais cológico (problema da união da al-
que uma. Distinto é, em contrapar- ma com o corpo, da liberdade e do
tida, o sentido em que o termo foi determinismo), dualismo moral (o
empregado por Kant, ao chamar bem e o mal, a natureza e a graça),
dualistas (Das Ende der Dinge, 1794) gnosiológico (sujeito e objeto), reli-
aos que admitiam que só um peque- g1o0so, etc. Entretanto, a tendência é
no número de eleitos se salvam, ao chamar dualista a toda e qualquer
contrário do que era pregado pelos doutrina metafísica que suponha a
unitários. O significado filosófico, existência de dois princípios ou rea-
tal com foi utilizado por Wolff, veio lidades irredutíveis entre si e
não
a ser o que predominou largamente, subordináveis, que sirvam
tanto mais que com os vocábulos explicação do universo. Na para
a
“dualismo” e “monismo” se ca- esta última doutrina é verdade,
racterizavam posições muito funda-
a que se consi-
dualista por excelência. Os múl-
mentais no problema da relação dera
tiplos dualismos que podem mani-
195 DÚVIDA

festar-se nas teorias filosóficas — co- o dualismo da época moderna entre


mo o chamado dualismo aristotéli- as idéias e a realidade, a experiência
co da forma e da matéria ou o dua- e a natureza, a ordem moral e a or-
lismo kantiano de necessidade e li- dem física, está a caminho de uma
berdade, de fenômeno e número — superação sem necessidade de cair
só o são na medida em que se inter- num fenomenalismo ou num idealis-
mo que, em última análise, possuem
pretam os termos opostos de um mo-
do absolutamente realista e inclusi- bases dualistas. O dualismo aqui re-
ve se Ihes dá certo tom valorativo. ferido é um “clima” filosófico con-
Somente deste ponto de vista pode- creto que unifica diversas correntes
mos dizer que o dualismo se opõe ao filosóficas de uma certa época.
monismo, não predica a subordina-
ção de umas realidades a outras mas, DÚVIDA O termo “dúvida” signi-
pelo contrário, tende constantemente fica primariamente ““vacilação”, “Ir-
para a identificação dos opostos me- resolução”, “perplexidade”. Estes
diante a subsunção dos mesmos nu- significados já se encontram no vo-
ma ordem ou princípio superior. cábulo latino dubitatio. Na dubita-
A contraposição do dualismo com tio há sempre (pelo menos) duas pro-
o monismo parece ser de tal manei- posições ou teses entre as quais a
ra absoluta que, quando se trata de
acolher-se a uma das duas doutrinas,
mente se sente flutuar; vai, com efeil-
to, de uma à outra sem deter-se. Por
não se encontra outra possibilidade este motivo, a dúvida não significa
de orientação que não seja a mesma falta de crença, mas indecisão a res-
decisão suprema a que se referiu pelto das crenças.
Fichte. Entretanto, seria ilegítimo es- A dúvida como atitude é freqiien-
tabelecer uma comparação das dou- te entre os cépticos gregos e os renas-
trinas filosóficas baseando-se unica- centistas. Também é bastante habi-
mente em sua filiação ao dualismo tual entre aqueles que, sem preten-
ou ao monismo. Isto se observa so- derem forjar nenhuma filosofia,
bretudo na questão do dualismo negam-se a aderir a qualquer crença
matéria-espírito, dualismo que deu firme e específica ou consideram que
origem a numerosas soluções, sobre- não há nenhuma proposição cuja va-
tudo no decorrer da época moderna. lidez possa ser provada de modo su-
Cada uma destas soluções compreen- ficiente para engendrar uma convic-
de rumos filosóficos da índole mais ção completa.
diversa; dualismo e monismo são in- A dúvida como método foi empre-
suficientes, portanto, para caracte- gada por muitos filósofos. Até se dis-
rizar de maneira cabal uma tendên- se que é o método filosófico por ex-
cia filosófica. Daí que toda referên- celência na medida em que a filoso-
cia ao dualismo deva reportar-se a fia consiste em esclarecer todo gêne-
uma época concreta. Foi o que fez ro de “pressupostos” — o que não
Arthur O. Lovejoy ao assinalar que se pode fazer sem submetê-los à dú-
DÚVIDA 196

vida. Entretanto, somente em alguns telectual. Sublinhamos ““predomi-


casos adotou-se explicitamente a dú- nantemente”* porque na questão da
vida como método. Entre eles des- dúvida não se podem traçar linhas
tacam-se Santo Agostinho e Descar- divisórias demasiado rígidas entre o
tes: o primeiro na proposição Si fal- vital e o intelectual. Os que adotam
lor, sum, pela qual parece indubi!- a dúvida como atitude ou como ele-
tável a existência do sujeito que se mento subjacente na fé empregam
engana ou erra; o segundo na pro- igualmente argumentos abundantes;
posição Cogito, ergo sum (ver), pe- os que duvidam metodicamente por
la qual fica assegurada a existência meio de argumentos têm uma prévia
do eu que duvida. Nestes exemplos atitude dubitativa.
pode-se dizer que a dúvida é um pon- Uma última questão que se apre-
to de partida, Já que a evidência (do senta a respeito da dúvida é como,
eu) surge do próprio ato de duvidar, uma vez adotada, sair dela. Os cép-
da redução do pensamento da dúvi- ticos radicais manifestam que tal saí-
da ao fato fundamental e aparente- da é impossível. Os cépticos metódi-
mente inegável de que alguém, ao cos declaram que no próprio âmago
duvidar, pensa. da dúvida se encontra a possibilida-
A dúvida como elemento necessá- de de descobrir uma proposição in-
rio à fé consiste em supor que a fé dubitável; pode-se duvidar de tudo
autêntica não é um mero crer em al- menos de que se duvida de que se du-
go de olhos fechados, mas um crer vida. Os cépticos por motivos de fé
acompanhado da dúvida e, em gran- assinalam não ser conveniente sair da
de medida, alimentado por ela. Vá- dúvida se se quiser manter a vitalida-
rios pensadores sublinharam este as- de de uma crença. A estas respostas
pecto da dúvida; Unamuno destaca- — correspondentes grosso modo às
se entre eles. Com efeito, segundo posições (1), (2) e (3) — pode juntar-
Unamuno, uma fé que não vacila se outra, muito própria das filosofias
não é uma fé; é um mero automatis- que podem ser qualificadas de ativis-
mo psicológico. Por conseguinte, tas: consiste em ressaltar que a ação
nesta noção de dúvida, a fé e a dú- é a única possibilidade que existe de
vida são inseparáveis. vencer a dúvida. Segundo esta posi-
A dúvida como atitude (1) e a dú- ção, a dúvida somente surge quando
vida como elemento necessário para permanecemos no plano intelectual.
a fé 2) são predominantemente de Em contrapartida, no plano vital, são
indole vital ou, se se preferir, exis- inevitáveis as decisões, de modo que
tencial; a dúvida como método (3) — o estado de flutuação e irresolução
especialmente na forma cartesiana — que caracteriza a dúvida só pode
é predominantemente de natureza in- ocorrer de forma transitória.
E
E A letra maiúscula “E” (primeira O mesmo autor usou “E” para
vogal do termo nego) é usada na li- representar o quantificador univer-
teratura gótica para representar sim- sal negativo. “E” antepõe-se às va-
bolicamente a proposição universal riáveis “a”, Sb”, “Se”, ete. de tal
negativa, negatio universalis, um de modo que “Eab” lê-se “b não per-
cujos exemplos é a proposição: tence a nenhum a”* ou “nenhum a
é bD”.
Nenhum homem é mortal.
Para distinguir entre “E” no sen-
Em textos escolásticos encontra-se tido do último e do penúltimo pará-
com frequência o exemplo dado por grafos, Lukasiewicz empregou às ve-
Boécio: zes “Y” em lugar do quantificador
universal negativo “E”.
Nullus homo iustus est,
e em inúmeros textos lógicos a letra É” -“DEVE” Uma das formas da
“E” substitui o esquema “Nenhum chamada ““falácia naturalista” é a de-
S é P”, sobretudo quando se intro- rivação de enunciados em que figura
duz o chamado quadro de oposição. o verbo “deve” à base de enunciados
Nos textos escolásticos se diz que em que figura o verbo ““é””, ou seja,
“E” negat universaliter ou genera- a derivação de prescrições à base de
liter, nega universalmente ou geral- descrições. O locus classicus de de-
mente. Também se usa nesses textos núncia da falácia naturalista é o se-
a letra “E” para simbolizar as pro- guinte trecho de Hume: “Em todos
posições modais em modus afirma- Os sistemas de moralidade com que
tivo e dictum negativo, ou seja, as me deparei até agora notei sempre
proposições do tipo: que o autor procede durante algum
É impossível que tempo argumentando da forma cor-
p, rente, e demonstra assim a existência
em que “p” simboliza um enuncia- de Deus ou faz observações relativas
do declarativo. a assuntos humanos. Mas, de repen-
A letra “E” (em cursivo) é usada te, surpreende-me notar que, em vez
por Lukasiewicz para representar a das cópulas habituais é e não é, não
conectiva ““se e somente se” ou bi- há nenhuma proposição que não se
condicional, que nós simbolizamos encontre conectada mediante um de-
por “=”, “E” antepõe-se às fór- ve [ought = deveria] ou um não deve.
mulas, de modo que “peqg” es- Esta mudança é imperceptível mas de
.creve-se na notação de Lukasiewicz enormeimportância. Pois como este
“ED q. deve ou não deve expressa alguma
EPJ.CDEVE” 198

nova relação ou afirmação, é preci- ção para uma passagem de Hume


so que se tome nota disso, se explii- imediatamente anterior à citada e na
que e, ao mesmo tempo, se dê uma qual se lê: “... quando alguém de-
razão para o que parece inteiramen- clara que uma ação ou um caráter
te inconcebível, ou seja, do modo co- são viciosos; o único que quer dizer
mo essa nova relação pode dedu- é que, em virtude da constituição da
zir-se de outras, que são totalmente sua natureza, possui um sentimento
distintas dela. Mas, como normal- ou uma disposição de censura ao
mente os autores não usam desta contemplá-la”. Essas interpretações
precaução, atrevo-me a recomen- (ou reinterpretações) históricas de
dá-la ao leitor. E estou persuadido Hume foram, por sua vez, objeto de
de que prestar só um pouco de aten- críticas por parte de quem adotou
ção a ela seria o bastante para pôr uma leitura da passagem citada em
de lado todos os sistemas comuns de primeiro lugar como uma denúncia
moralidade. Veríamos assim que a avant la lettre de uma das formas da
distinção entre o vício e a virtude não falácia naturalista. Como se indicou,
se baseia meramente nas relações en- a razão disso é que; apesar de tudo,
tre objetos e tampouco é percebida Hume continuou afirmando clara-
pela razão” (Treatise, III, i, 1). mente que de um ““é”* não cabe de-
Tem-se discutido muito em torno rivar logicamente um ““deve” e que,
da interpretação correta que se deve além disso, no que se refere às suas
dar a essa passagem de Hume e so- próprias idéias sobre a moralidade,
bre se ela se coaduna ou não com o elas se baselam na escassa estima que
resto do pensamento do autor. As- têm pelo poder motivador da razão.
sim, A. C. MacIntyre, “Hume on Seja como for, essa passagem de
“s* and “ought'”*, em W. D. Hud- Hume tem sido tomada como um
son, The Is-Ought Question, 1969, antecedente da muito combatida fa-
pp. 36 e ss., indica que a idéia de lácia naturalista da forma “é” —
que, em virtude da passagem acima “deve”. Que alguém se comporte de
citada, Hume defende, como Kant tal ou tal maneira, afirmou-se, é um
mais tarde defenderia, a autonomia fato, suscetível de descrição. Que as
da moralidade, é inadequada; que o colsas sejam de tal ou tal modo,
contexto filosófico e histórico den- sustentou-se, é um fato, suscetível
tro do qual Hume fala não permite também de descrição. Logicamen-
a usual interpretação simplificada da te, não se pode concluir que alguém
frase como uma denúncia da ““falá- deva fazer isto ou aquilo, ou que as
cia naturalista”; que se a interpreta- colsas devam ser de um modo dife-
ção indicada é correta, então o pró- rente daquele que são. Que alguém
prio Hume cometeu a mesma falá- deva comportar-se de tal ou tal ma-
cia que “denunciava”. Geoffrey neira também é uma prescrição. Que
Hunter (“Hume on is and ought”, as “coisas” devam ser de tal ou tal
op. cit., pp. 59 e ss.) chama a aten- modo também é uma prescrição.
199 “É “DEVE”

Não é admissível recorrer a fatos ou Smith.” A promessa não é tal se não


a descrições para demonstrar a vali- coloca a pessoa que promete na obri-
dade dessas prescrições, porque en- gação de cumpri-la. Temos assim:
tão se passa sub-repticiamente de um “Jones impôs-se a obrigação de pa-
nível lógico a outro. Recorre-se mais gar cinco dólares a Smith.” Sendo is-
a fatos ou a descrições quando se so um fato, teremos: “Jones está obri-
quer demonstrar outros fatos ou ou- gado a pagar cinco dólares a Smith”,
tras descrições. E apela-se para as o que dá, como conclusão: ““Jones de-
prescrições quando o objetivo é de- ve pagar cinco dólares a Smith.”
monstrar a validade de outras pres- A manobra de Searle e demais au-
crições — até se chegar a alguma tores que executaram outras mano-
prescrição considerada ““última”, bras semelhantes consiste em redu-
que se justifica por si mesma, ou se zir o “abismo” entre o “é” e o “de-
considera evidente, ou acerca da qual ve” por meio de frases que servem
se decide que é válida sem mais, ou de ponte e que gradualmente permi-
por meio da qual se expressa uma tem chegar até a conclusão. As ob-
preferência absoluta. Jeções a este tipo de manobra são de
Isto vale tanto para as prescrições várias espécies. Uma consiste em ob-
em geral quanto para a forma de servar que em algum momento (por
prescrição qualificada como ““mo- exemplo, na passagem de “impor-se
ral”. A rigor, e como se depreende a obrigação de” para “dever”*) ocor-
da passagem de Hume, a questão re um salto lógico. Outra consiste em
apresenta-se a respeito de ““sistemas notar que se se procede na forma in-
de moralidade”. O “deve” de refe- dicada já não se cumprem as condi-
rência é entendido quase sempre co- ções estabelecidas, ou seja, a passa-
mo um ““deve” moral. gem estritamente lógico-dedutiva.
Procuraram-se vários meios para Do ponto de vista lógico, a falácia
superar o chamado ““abismo” lógi1- continua sendo, portanto, uma falá-
co entre o “é” e o “deve”. Como cia (ver FATO). Se a premissa de que
exemplo, citamos a tentativa de John se parte é um ““fato institucional”,
R. Searle (“How to Derive “Ought' então cabe derivar dela outro ““fato
from Ts **, Philosophical Review, 73 institucional”; não se faz necessário,
[1964], 43-58; cf. também Speech a rigor, passar do “é” ao “deve”,
Acts, 1969, cap. 8). Simplificando, O que seria passar de um ““fato bru-
consiste em notar que numa frase co- to” a um “fato institucional” (as
mo ““Jones pronunciou as palavras coisas poderiam complicar-se ainda
“Prometo, Smith, pagar-te cinco dó- mais e falar-se de “valores brutos”?
lares **, estas palavras só possuem e até de “instituições fáticas”, com-
sentido se são efetivamente uma pro- binando-se então todos esses elemen-
messa. Assim, pode-se passar a: “Jo- tos de tal forma que se pudesse con-
nes prometeu pagar cinco dólares a -—
cluir ser admissível passar de alguns
TS é DEVE” 200

deles [mas não todos] para outros de- por outras palavras, o problema
les [mas não todos]).
Também se considerou que a
é
“fato-norma” paralelo ao proble-
ma ““fato-valor”'.
maior parte dos elementos suscitados Outros autores consideram ser
pela falácia naturalista são devidos inaceitável equiparar “bom” com
à idéia — comum aos que denunciam “deve” e, em geral, não admitem
a falácia e a quase todos os que con- que as valorações sejam equivalen-
sideram que se trata, por sua vez, de tes ou subentendam normas. Segun-
uma falácia: a falácia da falácia na- do eles, como indica Georg Henrik
turalista — de que não se pode en- von Wright (The Varieties of Good-
contrar uma dedução lógica ou, pe- ness, 1963, p. 155), o “abismo” en-
lo contrário, é possível construir uma tre o “é” eo “deve” é distinto do
ponte lógica. Em todos esses casos que há, ou pode haver, entre os fa-
fala-se de dedução lógica. Mas pode- tos e os valores. Esta opinião baseia-
se distinguir entre dedução lógica e se, em parte, na idéia de que “bom”
justificação (moral). Ao mesmo tem- (ver BEM) não é equivalente de
po, pode-se considerar que dedução “moralmente bom”, porque o sen-
lógica e justificação (moral) ou são tido moral de “bom” é secundário
completamente distintas ou só logi- em relação a outros sentidos do mes-
camente diferentes. Esta última é a mo termo. Não obstante, o mesmo
opinião de Ken Witkowski. autor acaba por reconhecer (op. cit.,
Alguns autores consideram que se pp. 176-77) que, dadas certas condi-
uma expressão com “deve” tem um ções, existe relação entre normas e
sentido moral, ou seja, se é norma- valores ou, melhor dizendo, as nor-
tiva, então está ligada a alguma ou- mas podem, em certos casos, ““an-
tra expressão na qual se manifesta al- corar-se”* em valores. As condições
guma preferência moral — expressão são, entre outras, certas necessidades
que, por seu lado, está ligada a ou- naturais e o conhecimento do que se
tra em que se formula alguma valo- pode fazer e não se pode fazer com
ração ou juízo de valor. Assim, ““De- elas quando estão unidas a determi-
ves ajudar o próximo” está ligado a nados fins.
“É preferível ajudar o próximo a Vários autores consideram que o
não ajudá-lo ou a mostrar-se indife- caráter lógico da falácia é inegável,
rente para com ele”, o que está liga- mas só porque se estabeleceu previa-
do a algo como “Ajudar o próximo mente uma separação taxativa entre
é bom (moralmente bom)”. A razão “proposições que enunciam fatos
disso, afirma-se, é que não teria o simples” e “proposições que expres-
menor sentido formular uma norma sam normas simples”. Quando se
moral se não a apoiasse uma valo- considera que há outras classes pos-
ração. Se assim for, o problema da síveis de proposições além das indi-
relação ““é”-“deve” é paralelo ao cadas, sai-se da incomunicação en-
problema da relação “é”-““vale”; tre o “é” e o “deve” — ou entre o
201 ELEATAS

ser” eo ““dever ser”. Jean-Louis etc., da realidade. Quando estes dois


Gardies (“De qualques voies de com- aspectos se fundem num só, temos
|
munication entre être et le “devoir-
être **, Revue Philosophique de la
a idéia do eidos como uma essência
que é, simultaneamente, um conceil-
France et de l"Etranger, ano 101, to: o de eidos é então, ao mesmo
1976, pp. 273-92) chama a atenção tempo, algo “real” e algo “concei-
para diversas vias de comunicação tual”* (objetivo ou formal).
entre as duas expressões — ou as O eidos pode ser interpretado de
duas noções. Uma destas vias foi diversas maneiras. Como exemplos
mostrada pela experiência da argu- de interpretações clássicas menciona-
mentação moral e jurídica, a qual mosas interpretações de Platão e de
nos assinala a existência do que Aristóteles. A diferença capital en-
Georg Henrik von Wright qualificou tre essas duas interpretações é a da
de “expressões mistas”, e do que separabilidade: para Platão, o eidos
Ota Weinberger (Studien zur Nor- é separável dos indivíduos que par-
mentogik und Rechtsinformatik, ticipam do eidos, ao passo que para
1974) chamou ““a norma condicional Aristóteles o eidos está, por assim di-
ou hipotética” do tipo de “Se p, en- zer, encarnado, ou realizado, nos in-
tão é obrigatório que q”. divíduos. Mas a par dessas duas in-
terpretações outras podem ser men-
EIDOS Numerosos autores — como
Platão, Aristóteles e Husserl — ut1-
cionadas. Assim, por exemplo, ei-
dos pode ser tomado como momen-
o
lizaram a palavra grega el[ôos como to específico (separável ou não) de
termo técnico. Embora se traduza uma realidade, ou como momento
amiúde como ““forma”, “essência” constitutivo de uma realidade.
ou “idéia”, entre seus significados
está também a noção de ““aspecto” ELEATAS Dentre os pré-socráticos,
(species) que uma realidade oferece dá-se o nome de eleatas a Xenófanes
quando é vista em o que a constitui de Colofão, Parmênides de Eléia,
como tal realidade. Deste ponto de Zenão de Eléia e Melisso de Samos.
vista, o eidos é o tipo de realidade Como se vê, só o segundo e o tercei-
a que pertence, ou que é, uma deter- ro dos filósofos acima citados tive-
minada coisa. Como o tipo de reali1- ram sua pátria em Eléia (sul da Itá-
dade que algo é, é ““visível”', ou lia), lugar que deu seu nome à esco-
supõe-se que é apreensível, por meio la. Xenófanes, entretanto, emigrou
de alguma operação intelectual, o ei- do litoral da Ásia Menor para o sul
dos é entendido igualmente como a da Itália e viveu em Eléia durante a
idéia da realidade. Assim, pois, o er- velhice. Característico dos eleatas era
dos é um “aspecto essencial” que pa- a afirmação da unidade do que há.
rece oferecer, por sua vez, dois as- Esta unidade foi sublinhada por Xe-
pectos essenciais: o da realidade e o nófanes de um ponto de vista teoló-
da apreensão, inteligível, conceitual, gico; por Parmênides, de um ponto
EM 202

de vista ontológico; por Zenão, de admite, entretanto, diversos pontos


um ponto de vista dialético; e por de vista. Alguns pensadores enfo-
Melisso, de um ponto de vista cos- cam-no de um ângulo ““lingúístico”.
mológico (levando em conta a pecu- Outros destacam o caráter lógico ou
liar significação dos termos “teolóº? o metafísico, e outros Ihe dão, inclu-
gico”, “ontológico”, “dialético” e sive, um alcance ontológico.
“cosmológico” no pensamento dos O emprego de “em” não tardou
pré-socráticos). É comum, em todo em originar dificuldades e, inclusive,
caso, considerar que com os eleatas, paradoxos. É conhecida à questão
e sobretudo com Parmênides, apre- apresentada por Zenão de Eléia ao
sentaram-se pela primeira vez, com pretender que já não existe a reali-
plena maturidade, alguns dos temas dade “lugar”; já que, se assim fos-
fundamentais da metafísica ociden- se, teria de estar “em” outro lugar,
tal e, em particular, o problema da e assim até o infinito. Solucionar essa
relação entre a realidade e a razão. dificuldade é o que justifica que se
analisem os diversos significados de
EM O interesse filosófico da prepo- “em”. Aristóteles viu, além disso,
sição “em” evidencia-se na análise: que ao distinguir diversos sentidos de
de asserções como ““Os objetos ma- “em” resolviam-se outros proble-
teriais estão no espaço”, “O atribu- mas, aos quais alude em duas pas-
to está no sujeito”, “Os objetos de sagens. Na Metafísica (A 1023 a 23)
conhecimento estão no cognoscen- diz que “estar em algo” tem um sig-
te”, “A parte está no todo” ou “O nificado semelhante a ““sustentar”
homem está no mundo”. O signifi- ou “ter” (exewv), já analisados an-
cado de cada uma destas frases de- teriormente no mesmo texto e nas
pende diretamente do modo — ou Categorias (15b, 17-33). A outra e
modos — em que se entenda
o
mo “em”. Várias doutrinas filosó-
ter- mais importante passagem é a da Fi-
sica IV (210 a 15). Para Aristóteles
ficas podem esclarecer-se mediante há oito modos de dizer “em” (év),
uma análise do uso que fazem deste ou seja, de dizer que algo está em ou-
termo. Assim, por exemplo, enten- tra coisa:
deremos o realismo metafísico se: (1) Como o dedo está na mão e,
compreendermos sua pretensão de em geral, a parte no todo.
que a consciência “está em”* o mun- (2) Como o todo está nas partes,
do e de igual modo o idealismo me- Já que não existe nenhum todo por
tafísico com sua afirmação de que é cima das partes.
o mundo o que se encontra “em” a (3) Como o homem está no animal
consciência, isto é,-no cognoscente. e, em geral, a espécie no gênero.
e
Aristóteles, Hegel, Heidegger ou-. (4) Como o gênero está na espécie
tros filósofos utilizaram a preposição: e, em geral, a parte da forma espe-
“em” em textos cruciais. A análise cífica está na definição da forma es-
do significado e-a utilização de “em” pecífica.
203 EM

:
(5) Como a saúde está nas coisas ou ter a possibilidade de ser-conheci!-
quentes e frias e, em geral, a forma do. A questão de como os acidentes
está na matéria. estão na substância foi extensamente
(6) Como os assuntos da Grécia es- tratada (ver ACIDENTE). Também
tão no que detém o poder (= depen- deu lugar a numerosas análises a
dem do que tem o poder) e, de um questão de como as coisas ““estão
modo geral, os acontecimentos estão em” Deus. Este último problema re-
no agente (= dependem do agente). vela até que ponto a questão da ““re-
(7) Como algo está em seu bem lação”* entre Deus. e o mundo tam-
(= está subordinado a seu bem) e, bém pode ser analisada à luz do sen-
em geral, está em seu “fim”, ou se- tido, ou sentidos, do “em”*. O mes-
ja, naquilo pelo qual existe. mo ocorre com a questão da ““rela-
(8) No sentido mais estrito, como ção” entre a essência e a existência
uma coisa [um conteúdo] está em seu (ver ESSÊNCIA, EXISTÊNCIA).
continente e, em geral, num lugar Muitos filósofos modernos inte-
(=em seu lugar). ressaram-se -pelo tema de como a
Santo Tomás (4 Phys., 4 a; SS. realidade está “em” o sujeito cog-
Theol., 1, q, XLIL 5ob letal.) se- noscente. Também desempenha um
guiu Aristóteles a este respeito, con- importante papel na filosofia de
siderando que os oito modos citados Heidegger, que aprofunda a análise
de como está o homem em o mun-
de “estar em”* são os modos nos
do e intenta demonstrar como o
quais se diz que algo está em algo, m”* de “ser-em-o-mundo” é an-
quibus aliquid in aliquo dicitur esse. terior a qualquer outra compreen-
O modo (8) inclui, segundo Santo são do “em”.
Tomás, o tempo, uma vez que, as- Também pode entender-se “em”
sim como o lugar é a medida do que como expressão de uma relação, re-
se move (locus est mensura mobilis), lação diádica ou não simétrica. Em
o tempo (ver) é a medida do movi- alguns casos, pode-se considerar o
mento (tempus est mensura motus). “em” uma relação transitiva como,
Tanto em Santo Tomás quanto em por exemplo, se dizemos que o cin-
outros escolásticos é possivel encon- zeiro está no quarto e o quarto na ca-
trar numerosas elucidações do pro- sa, também podemos dizer que o cin-
blema do “estar em”. Às vezes usa- zeiro está na casa. E, no entanto, se-
se, para ISSO, a expressão esse in, que gundo Aristóteles, nesta segunda
pode ser interpretada de vários mo- forma de ““estar em”, a relação
dos; por exemplos, os quatro modos “em” não é transitiva.
seguintes propostos por Ockham: (1) Leibniz analisou esta mesma ques-
estar uma colsa num lugar ou um tão com grande minúcia do ponto de
acidente num sujeito; (2) estar a es- vista lógico, considerando-a primei-
pécie no gênero; (3) ser atribuído ro como relação. entre elementos abs-
(= ser predicado); (4) ser conhecido tratos.
EMANAÇÃO 204

EMANAÇÃO Em diversas doutri- ção é de ordem ainda mais comple-


nas e especialmente no neoplatonis- xa do que a apontada. A rigor, só se
mo, entende-se por “emanação” o pode entendê-la com claridade sufi-
processo mediante o qual o superior ciente quando distinguimos entre os
produz o inferior por sua própria su- diversos modos de produção de um
perabundância, sem que O primeiro ser. Estes modos de produção foram
nada perca em tal processo, como especialmente destacados pela teolo-
ocorre (metaforicamente) no ato da gia católica, sobretudo na medida em
difusão da luz. Mas, ao mesmo tem- que submeteu à elaboração concei-
tual as noções da teologia helênica
po, há no processo de emanação um
processo de degradação, uma vez e estabeleceu uma comparação entre
que do superior ao inferior existe a o modo de produção que o cristia-
relação do perfeito ao imperfeito, do nismo admite como próprio de Deus
existente ao menos existente. A ema- e outros modos possíveis. Assim,
nação é, assim, distinta da criação, pode-se falar de um modo de produ-
que produz algo a partir do nada; na ção por processão, em que uma na-
emanação do princípio supremo não tureza imutável é comunicada intei-
há, em contrapartida, criação do na- ra a várias pessoas. Pode-se falar de
da, mas autodesdobramento sem um modo de produção por transfor-
perda do ser que se manifesta. Co- mação, quando um agente externo
mo disse Plotino, o emanado tende determina uma mudança em outro.
a identificar-se com o ser do qual Pode-se falar de um modo de pro-
emana, mais com o seu modelo do dução por criação, quando um agen-
que com o seu criador. Daí certosli- te absoluto extrai algo do nada, ou
mites intransponíveis entre o neopla- seja, traz para a existência algo não
e
tonismo o cristlanismo, o qual su-
blinha a criação do mundo a partir
preexistente. E pode-se falar de um
modo de produção por emanação,
do nada e, portanto, tem de negar no qual um agente extrai de si mes-
o processo de emanação vinculado à mo uma substância parecida. A este
idéia de uma eternidade do mundo. tipo de emanação dá-se o nome de
Deve-se entender tal contraposição “substancial””, em contraste com a
sobretudo em função da introdução emanação “modal”, na qual o agen-
ou não introdução do tempo: se no te produz em si uma maneira nova
neoplatonismo o tempo (ver) não é, de ser, mas não essencial e necessa-
em absoluto, negado, acaba, no en- riamente ligada a ele. Deste ângulo,
tanto, por reduzir-se e concentrar-se não só a criação e a emanação se
na unidade originária do modelo; no apresentam distintas, mas também se
cristianismo, pelo contrário, o tem- impõe uma distinção entre a segun-
po é essencial, porque o processo do da e certos modos especiais de pro-
mundo não é simples desdobramen- cessão.
to mas drama essencial. A noção de emanação foi utiliza-
A diferença entre emanação e cria- da, dentro do neoplatonismo, não só
205 EMPIRISMO

por Plotino, como também por lizada mediante uma doutrina ou


Jâmblico. Nos gnósticos, a emana- teoria — de caráter epistemológico,
ção não suprime o processo dramá- isto é, relativa à natureza do conhe-
tico, já que está condicionada pela cimento. É costume considerar dois
superioridade das potências boas; aspectos no empirismo. Segundo um
assim, o desenvolvimento dramáti- deles, o empirismo afirma que todo
co do universo gnóstico é feito, em conhecimento deriva da experiência
última instância, através de uma sé- e, em particular, da experiência dos
rie de emanações que se produzem sentidos. Segundo o outro, afirma
no momento em que são necessárias. que todo conhecimento deve ser jus-
A emanação também foi admitida tificado recorrendo aos sentidos, de
em certos sistemas propensos ao modo que não é propriamente co-
panteísmo. Por Avicebron, sem dú- nhecimento a menos que o que se
vida, mas também, de uma certa afirma seja confirmado (atestado)
maneira, por Escoto Erígena. Em- pelos sentidos. Estes dois aspectos es-
bora não se possa dizer de Escoto tiveram com frequência estreitamen-
EFrígena que o seu sistema seja intei- te relacionados. Por vezes, conside-
ramente panteísta, funciona nele a rou-se o primeiro o aspecto ““psico-
emanação como uma processão que lógico”? (ou genético), e o segundo
experimentará, uma vez desenvolvi- o “epistemológico”. Tem sido mui-
da, uma conversão. to comum sustentar não só que o co-
nhecimento se adquire mediante a
EMPIRISMO O termo “empiris- experiência e se justifica ou valida
mo” deriva do grego énTeLpia, que pela experiência, mas também que
se traduz por “experiência”, uma não existe outra realidade senão a
palavra que possui muitos sentidos acessível aos sentidos.
(ver EXPERIÊNCIA). Entre estes Desde a Antiguidade, houve filó-
destacam-se dois: a existência como sofos predominantemente empiristas
informação proporcionada pelos ór- e filósofos não empiristas (ou menos
gãos dos sentidos, e a experiência co- empiristas). Fala-se, por exemplo, de
mo o que depois viria a ser chama- Aristóteles como um filósofo que te-
do de ““vivência”, isto é, o conjun- ve — sobretudo no final de sua car-
to de sentimentos, afetos, emoções, reira — fortes propensões empiristas,
etc., que um indivíduo humano ex- o que o diferencia de Platão, amiú-
perimenta e que se vão acumulando de caracterizado como não empiris-
em sua memória, de modo que aque- ta e como racionalista. O epicurismo
le que dispõe de uma boa dose des- e O cepticismo — especialmente o de
ses sentimentos, emoções, etc. é con- Sexto, chamado justamente “Sexto,
siderado “uma pessoa com expe- o Empírico” — são exemplos de
riência””. doutrinas empiristas. Obviamente, o
O empirismo é considerado uma empirismo aristotélico é muito dife-
doutrina — ou uma atitude raciona- rente do epicureu e do dos cépticos.
EMPIRISMO 206

Restringiu-se amiúde o termo “em- No início da Crítica da Razão Pura,


pirismo”' à filosofia clássica moder- declara Kant que, embora todo co-
na, contrastando-se o chamado ““em- nhecimento comece com a experiên-
pirismo inglês” (Francis Bacon, Hob- cia (mit der Erfahrung anfange; mit
bes, Locke, Berkeley, Hume) com o der Erfahrung anhebt), nem todo ele
*“racionalismo continental” (Descar- procede da experiência (entspring...
tes, Malebranche, Spinoza, Leibniz, aus der Erfahrung). Isto quer dizer
Wolff). O contraste entre empirismo que a origem do conhecimento
encontra-se (psicologicamente) na
e racionalismo tem sido equiparado
muitas vezes ao contraste entre em- experiência, mas que a validade do
pirismo e inatismo. conhecimento encontra-se (gnosiolo-
Dados os inúmeros matizese quali- gicamente) fora da experiência. As-
ficações que sofreram em cada caso sim, o conhecimento não é para Kant
as chamadas doutrinas “empiristas”' apenas a posteriori, “constitui-se”
e “racionalistas” na época moderna, por meio dele a priori (ver). Para os
não raro se encontram casos ““mis- empiristas ingleses, e especialmente
tos” de empirismo e racionalismo. a
para Hume, o posteriori é sintéti-
Um dos mais citados a respeito é (en- co e o a priori é analítico (ver ANA-
tre os empiristas ingleses) Locke. Ou- LÍTICO E SINTÉTICO). Para
tro caso pode ser o de Leibniz, ao afir- Kant, há a possibilidade de juízos
mar que nada se encontra no intelec- sintéticos a priori (na matemática e
to que não estivesse antes nos senti- na física). A recusa do empirismo
dos, ““salvo o próprio intelecto” (gnosiológico) é, assim, equivalente
Tndicou-se por vezes que para OS à admissão da prioridade enquanto
empiristas modernos — os “empliris- “constitutiva”
tas ingleses” — a mente é como que Os empiristas modernos falaram
uma espécie dê “receptáculo” no qual amiúde de experiência externa (a dos
se “gravam” as “impressões” proce- sentidos) e de experiência interna
dentés do mundo externo. Quando se (que, embora possa fundamentar-se
comparam entre si as filosofias dos nos sentidos, consiste numa série de
grandes empiristas ingleses — Bacon, atos mentais de associação, memó-
Hobbes, Locke, Berkeley, Hume —, ria, imaginação, etc.). Certos auto-
verifica-se que isto é uma simplifica- res, como Maine de Biran e vários
ção excessiva. Entretanto, háalgo co- espiritualistas franceses, aludiram
mum a todos esses pensadores, que é também à experiência interna, mas
'a tendência a proporcionar uma ex- trata-se sobretudo de uma experiên-
plicação genética do conhecimento e cia “íntima” que dificilmente pode
a usar termos tais como ““sensação”, ser caracterizada como empirismo na
“impressão”, “idéia”, etc., num sen- acepção mais corrente do termo.
tido: predominantemente, quando Muitos empiristas consideraram
não exclusivamente, psicológico. que certos tipos de “entidades” —
Contra essa tendência reagiu Kant. como os números ou as figuras geo-
207 EMPIRISMO

métricas — estão fora do âmbito da mes em Essays in Radical Empiri-


experiência sensível. Outros autores, cism (II, 1), “para que um empliris-
em compensação, trataram de justi- mo seja radical é necessário que não
ficar empiricamente tais ““entida- admita em suas construções nenhum
des”. Um exemplo eminente a este elemento que não seja diretamente
respeito é o de John Stuart Mill e, experimentado, nem exclua delas ne-
de um modo geral, o da concepção nhum elemento que seja diretamen-
empirista da matemática. Há fre- te experimentado”
quentes conexões entre empirismo e (5) O empirismo ““total”º, defen-
nominalismo (ver). dido por S. Alexander (Space, Time
Os muitos sentidos que foram da- and Deity, livro I, cap. 6), ao aderir
dos a “empirismo” fazem com que à máxima de Hume segundo a qual
se torne necessário precisar de que há que se procurar sempre a báse em-
empirismo se trata em cada caso. pírica das nossas idéias, mas corri-
Com ou sem razão, falou-se de em- gindo-a, se fór preciso, para comba-
pirismo nas seguintes acepções: ter qualquer possível preconceito
(1) O empirismo chamado por an- inadmissível a favor de certas im-
tonomásia ““sensível””. Quando se pressões. Para Alexander, “um em-
destaca o papel que as sensações de- pirismo cabal aceita sua fórmula [a
sempenham no conhecimento, usa- de Hume], mas como não tem ne-
se o nome de “sensacionismo” nhum preconceito a favor das exis-
(2) O empirismo ““inteligível”, se- tências separadas ou distintas que
gundo o qual os chamados ““obJjetos atraem a nossa atenção; insiste em
ideais” — números, proposições, que no curso das inspeções efetua-
conceitos, etc. — são objetos da ex- das pela experiência nenhum elemen-
periência, entendendo-se esta lato to deve ser omitido do inventário”.
sensu. Alguns fenomenólogos fala- Nem há sequer que se fazer como
ram neste sentido de um empirismo Hume e deter-se nas condições subs-
(ou positivismo) total contra o em- tantivas (ou substantivistas) doeu,
pirismo (ou positivismo) sensível. esquecendo suas condições transiti-
(3) O empirismo moderado ou vas, Já que isso tem por conseqiiên-
empirismo crítico, que admite a ori- cla esquecer ““a continuidade essen-
gem empírica do conhecimento, ou cial da mente”.
seja, que admite que todo conheci- (6) O chamado ““empirismo inte-
mento se baseia na experiência sen- gral”*, que foi defendido por Risieri
sível, mas requer ser examinado e Frondizi.
controlado por algum esquema ou (7) O empirismo “dialético” de
quadro conceitual. que falou, por vezes, o autor desta
(4) O empirismo radical, expres- obra e que consiste, grosso. modo,
.

são devida a Willlam James, para em usar certos conceitos como con-
quem, inclusive, as relações são “ex- ceitos-limites, isto é, como não de-
perimentáveis”. Como escreve Ja- notativos de nenhuma realidade e,
ENTELÉQUIA 208

ao mesmo tempo, tratar estes con- ENTELÉQUIA Aristóteles usou em


ceitos como simultaneamente contra- várias passagens de suas obras o ter-
postos e complementares. mo érvrTtehéxXeia, que se transcreve em
(8) O empirismo lógico. nosso idioma na forma indicada: en-
Na atualidade, confrontaram-se teléquia. Como Platão havia dito que
de novo tendências chamadas lato a alma possui évôeMNéxeia Ou movi-
sensu “empiristas”* com outras cha- mento contínuo, supôs-se às vezes
madas lato sensu ““racionalistas”, que Aristóteles alterou o vocábulo
reconhecendo-se em vários casos que platônico para diferençar sua doutri-
seus respectivos antecedentes histó- na da de Platão. Tal suposição pa-
ricos são o empirismo e o raciona- rece incorreta, assim como parece
lismo modernos ““clássicos”* dos sé- também incorreto supor-se que no
culos XVII e XVIII, principalmen- tempo de Aristóteles existia o adje-
te. Assim, por exemplo, na filosofia tivo évTehexns e que Aristóteles tenha
da linguagem, os autores que pres- formado o substantivo êrteléxeia
taram maior — às vezes exclusiva — com base no citado adjetivo. O mais
atenção à dimensão pragmática da provável é que o Estagirita forjasse
linguagem, aos usos linguísticos, à o vocábulo évreNéxeta com base na
comunicação, etc., elaboraram, ou expressão 7ô êvrtedhes Exwr, “O fato
pressupuseram, epistemologias em- de possuir perfeição”*. W. D. Ross,
píricas, enquanto os autores que de- no comentário à sua edição da Meta-
dicaram especial atenção às dimen- física (vol. II, pp. 245-46), adere a es-
sões sintáticas e aos aspectos estru- ta última opinião, a qual coincide em
turais da linguagem elaboraram, ou grande parte com a que Filopón já
pressupuseram, epistemologias ra- expressara (Commentaria in Aristo-
cionalistas. Os autores de propensão telem Graeca, XV, 208). Hermolaus
nominalista tendem a ser empiristas Barbarus traduziu évrehexéta preci-
e os que, explícita ou implicitamen- samente por ““o fato de ter perfei-
te, adotam posições realistas, ainda ção”, perfectihabia, segundo indica
que sejam moderadas, tendem a ser Leibniz (Mon., $ 18; Theod., 1 8 87).
racionalistas. Os behavioristas (em Em sua edição da Metafísica de Aris-
psicologia e em epistemologia) incli- tóteles, Bonitz indica que êvrteléxeia
nam-se pelo empirismo; os inatistas é sinônimo de perfectus. O próprio
ou semil-inatistas, pelo racionalismo. Bonitz assinala (Index arist., 253 b)
Entretanto, trata-se em quase todos que Aristóteles usou êvreléxeia de
os casos de tendências ou, melhor di- um modo ambíguo; ora distingue
zendo, mais de simpatias do que de êvTENéxeria de êvépyera, Ora conside-
opiniões, e não digamos teorias fi- ra os dois vocábulos sinônimos.
losóficas plenamente desenvolvidas, Na medida em que designa ““o fa-
ao ponto de, na época atual, o em- to de possuir perfeição”, o termo
pirismo operar mais como uma ““ati- “enteléquia” significa a atualidade
tude”* do que como uma doutrina
losófica stricto sensu.
fi- ou a perfeição resultante de uma
atualização. A enteléquia é, então,
209 ENTELÉQUIA

o ato enquanto cumprido, consuma- mas o poder que o corpo tem de fa-
do. Neste sentido, enteléquia distin- zer o que faz o corpo vivo, sua fun-
gue-se de atividade ou atualização, ção (ergon), sua operação (energeia )
Eevépyeia. Na medida em que cons- e sua culminação (entelecheia)”. Nu-
titui a perfeição do processo de atua- ma nota da mesma página, Randall]
lização, a enteléquia é o cumprimen- escreve: ““Estes três termos são uma
to de um processo cujo fim se encon- das famílias aristotélicas de termos
tra na mesma entidade. Por isso po- que querem dizer o mesmo numa es-
de haver enteléquia da atualização cala de intensidade crescente. Ergon,
mas não do simples movimento, o termo grego comum para “traba-
HLVNOLS. lho”, é o que Aristóteles usa para o
Aristóteles não é sempre consis- que chamamos “função. Energeia
tente no uso do termo ““enteléquia”'. significa literalmente “pôr em ação
Em De anima, 1l 1, 412 a 27 b 5, um poder' ou, em latim, sua “ope-
Aristóteles afirmou que a alma é ração. “Poder' e sua “operação”,
uma enteléquia, evreNéxeia. Por ou- dynamis e energeia, são para Aris-
tro lado, em Metaphysica, H, 3, 1043 tóteles conceitos polares, como os
a 35, escreveu que a alma é “ener- correspondentes termos latinos, a
gia”, evépyeia. Os dois termos — atualização de uma potência. Ente-
traduzidos ora por ““atualidade”, léquia (entelecheia) é o termo cunha-
ora por “atividade”, ora transcritos do por Aristóteles para denotar o
como ““enteléquia” e “energia” — mais completo funcionamento ou
parecem ser aqui sinônimos. Em Me- culminação de uma coisa — em la-
taphysica A 6, 1071 a 22, Aristóteles tim “atualidade” .”* O uso por Aris-
descreveu o Primeiro Motor como tóteles de “enteléquia”* em sua defi-
uma evépyeia e em id. 8, 1074 a 36, nição de alma como a primeira en-
descréveu-o como uma EvTENÉXELA. teléquia de um corpo natural que tem
É possível que, no primeiro caso, a vida em potência (De anima, IL, 1,
Aristóteles desejasse ressaltar a atl- 412 a 27, 28) significa que a alma é
vidade do Primeiro Motor e, no se- a “forma” do corpo no sentido de
gundo caso, quisesse destacar a sua que é o princípio da atividade, ou o
perfeição. Em Metaphysica L, 8, que dá ao corpo sua força vital.
1050 a 20 e ss., Aristóteles escreveu Plotino também utilizou a noção
que a ação, éoyov, é o fim ou a fi- de enteléquia, mas não aderiu, pelo
nalidade, r7edos, e que a atualidade, menos no que se refere à sua aplica-
êvépyeia, é a ação. Assim, o termo ção à alma, à doutrina de Aristóte-
“atualidade” (ver ATO, ATUALI- les. Nas Enéades, IV, vii, 8, Plotino
DADE) deriva de “ação” e é equi- assinalou que a alma ocupa no com-
valente a “enteléquia””. J. H. Ran- posto o lugar da forma. Se temos de
dall Jr. (Aristotle, 1960, p. 64) indi- falar de enteléquia, seremos forçados
cou que ““a vida não é uma “coisa” a entendê-la como algo que adere ao
que se acrescenta ao corpo vivente, ser de que é enteléquia. Ora, Ploti-
ENTENDIMENTO 210

no assinala-explicitamente que a al- termos pertinentes nos diversos idio-


ma não é como uma enteléquia, por- mas) para designar a faculdade (ou
quanto a alma é inseparável d potência) intelectual inteira. Em al-
corpo. guns casos, como em Spinoza, o en-
|

Na época moderna, a noção de en- tendimento (que é como costuma


teléquia foi geralmente abandonada; traduzir-se o vocábulo spinoziano in-
chegou-se até a dar a “enteléquia” tellectus na obra Tractatus de intel-
o sentido pejorativo de “não existen- lectus emendatione: Tratado da re-
te”* que ainda conserva na linguagem forma do entendimento) é equivalen-
comum. Em certos momentos, po- te à “faculdade de conhecimento”
rém, o termo foi revalorizado e isso em seus diversos (quatro) graus. Os
precisamente, em duas doutrinas de modos em que se pode exercitar o en-
inegável caráter teleológico: uma no tendimento ou “modos de percep-
século XVII e outra na época con- ção”? — segundo ““o que se diz”* ou
temporânea. A do século XVII é a segundo qualquer signo arbitraria-
de Leibniz. Para este, as enteléquias mente escolhido; por vaga experiên-
são ““todas as substâncias.simples ou cla; por apreensão da essência de
mônadas criadas, pois têm em si cer- uma coisa concluída de outra essên-
ta perfeição (exovor 1ô évtTENés) E há cia, mas não adequadamente; por
nelas uma certa capacidade de bas- percepção da essência da coisa ou co-
tar-se a si mesmas (autáoxeLa) que nhecimento da causa próxima — são
'as torna fontes de suas ações inter- simultaneamente “modos de enten-
nas e, por assim dizer, autômatos in- dimento”. Spinoza distingue tam-
corpóreos** (Monadologia, $ 18). bém entre entendimento finito e in-
Quanto às revalorizações contempo- finito, e fala (Etica, V) de potentia
râneas do conceito de enteléquia, intellectus seu de libertate humana,
mencionaremos duas, ambas susten- a qual é equivalente à potentia ratio-
tadas por biólogos e filósofos neo- nis enquanto amostra do que a ra-
vitalistas: Hans Driesch e Alwin Mit- zão pode dar por si mesma (ipsa ra-
tasch (cf. Philosophie des Organis- tio) a fim de dominar as afecções (af-
Chen, 4º edição, 1928, especialmen- Jectus).
te pp. 373 e ss., e Entelechie, 1952). A idéia do entendimento como po-
tência cognoscitiva completa — em-
ENTENDIMENTO Usamos ““enten- bora organizada em diversos graus —
dimento”* como correspondente a encontra-se em vários autores moder-
termos-tais como entendement, Vers- nos. Por exemplo, em Locke, não
tand e Understanding, especialmen- obstante a diferença entre um ““racio-
te na medida em que estes se com- nalista” e um “empirista””. Locke
param e contrapõem a raison, Ver- chama “entendimento” (Understan-
nunft e Reason (=““razão”). ding) e, mais especificamente, ““en-
.. E comum entre os filósofos mo- tendimento humano” (Human un-
dernos usar “entendimento” (ou os derstanding) a toda a faculdade de co-
211 ENTENDIMENTO

nhecimento em seus diversos modos. 614, ed. Luce), embora assinale que
Para ele, o entendimento é o que si- a idéia é “um objeto do entendimen-
tua o homem acima do resto das coi- to” (op. cit., 665), e que o entendi]-
sas sensíveis. O entendimento -é co- mento ““considerado como uma fa-
mo o olho, o qual ““nos faz ver e per- culdade”* não se distingue realmen-
ceber todas as outras coisas, [mas] te da “vontade” (op. cit., 614a). Se-
não se observa a si mesmo; requer gundo Berkeley, o entendimento e a
arte e esforço situá-lo a distância e vontade ficam incluídos no ““espiri-
convertê-lo em seu próprio objeto” to”, por ele entendido como ““tudo
(Ensaio acerca do Entendimento Hu- o que é ativo” (op. cit., 848). O en-
mano, introdução). Os objetos do tendimento é, pois, para Berkeley,
entendimento são as “idéias”, tan- em última análise, algo “espiritual”...
to as de sensação quanto as de refle-
xão (ver IDEIA). Isso mostra que em
Para Hume, o entendimento O
modo de ser do homem como sujei-
é
Loçke o entendimento compreende, to que conhece — ou, se se preferir,
em seu primeiro grau, o que às ve- como cognoscente. A ciência da na-
zes se chama ““sensibilidade””. A con- tureza humana equivale ao “exame
traposição entre sensibilidade e en- do entendimento”, ou seja, ao mo-
tendimento que foi defendida por al- do como ocorrem as percepções na
guns autores modernos consiste, em medida em que se resolvem em im-
boa verdade, numa distinção ““inter- pressões e em idéias (Treatise, L, 1, 1).
na” no seio do entendimento. Este Leibniz distingue entre sensibilida-
pode ser passivo, quando recebe as de e entendimento, mas esta diferen-
impressões, e ativo quando eviden- ça é gradual e não essencial. Com.
cia (brings in sight) as idéias que t1- efeito, conhecer equivale a ter repre-
nham impressas no entendimento sentações, as quais podem ser menos
(Locke, op. cit., II, x, 2). claras (sensibilidade) ou mais claras
Nem sempre fica bem claro em (entendimento propriamente dito, ou
Locke se o entendimento é uma fa- intelecto). A sensibilidade está subor-
culdade que recebe: e manipula dinada ao entendimento, no qual as
“idéias”, ou se é o receber e mani- representações atingem o grau dese-
pular idéias, embora a segunda alter- Jado de claridade e distinção. O en-
nativa seja mais adequada do que a tendimento exerce aqui uma função
primeira se considerarmos a tendên- parecida à da “razão”. cartesiana.
cia de Locke e, em geral, dos empi- Dentro do conceito de entendimen-
ristas em não admitir o caráter inde- to parece, entretanto, haver dois mo-
pendente do entendimento em rela- dos de conhecer: o indireto e o in-
ção com suas “idéias”. Berkeley in- tuitivo (ou direto). Só este último
dica explicitamente que ““o entendi- merece o nome de ““razão” (e, às ve-
mento não é diferente das percepções zes, de “intuição”, no sentido de
particulares ou idéias”* (Philosophi- “intuição intelectual”).
cal Commentaries. Notebook ““A”, Kant opõe-se à idéia leibniziana de
ENTENDIMENTO 212

que a sensibilidade é uma forma in- nir o entendimento como a faculda-


ferior do entendimento, e proclama de de julgar. Por meio do entendi-
uma distinção fundamental entre mento produzem-se, com efeito, as
uma e outro. A sensibilidade — de sínteses. Também pode definir-se o
que se ocupa a “Estética transcen- entendimento como ““a unidade da
dental”* na Crítica da Razão Pura — apercepção”*' (ver) em relação com a
é uma faculdade da intuição. Me- “síntese da imaginação”; esta mes-
diante a faculdade sensível se agru- ma unidade com referência à ““sin-
pam os fenômenos segundo as or- tese transcendental da imaginação é
dens (transcendentais) do espaço e o entendimento puro (ibid., À 119).
do tempo. A sensibilidade é a facul- Pode-se ver assim que o entendimen-
dade das intuições a priori. O enten- to é definível de muitos modos diver-
dimento, em contrapartida, é uma sos: como espontaneidade (em con-
“faculdade das regras”, o que per- traste com a passividade da sensib1-
mite pensar-se sinteticamente a diver- lidade), como poder de pensar, co-
sidade da experiência. A sensibilida- mo faculdade de conceitos, como fa-
de ocupa-se de intuições; o entendi- culdade de Juízos. Segundo Kant,
mento, de conceitos. Estes são cegos todas estas definições são idênticas,
sem as intuições, mas estas são va- pois equivalem à citada “faculdade
zias sem os conceitos (K. r. V., A 51, das regras” (ibid., À 126). Mas com
B 75). “O entendimento não pode isso resulta que, não obstante a lin-
incluir nada; os sentidos não podem guagem psicológica usada por Kant
pensar nada” (loc. cit.). A lógica do (derivada provavelmente da ““psico-
emprego especial do entendimento é logia das faculdades” de sua época),
a lógica “transcendental”, a qual se o entendimento não é propriamente
divide em Analítica e Dialética (ver). uma faculdade mas, antes, uma fun-
A analítica transcendental ocupa-se ção ou conjunto de operações enca-
da ““dissecação da faculdade do en- minhadas para produzir sínteses e as-
tendimento” (ibid., A 65, B 90); no sim tornar possível o conhecimento
decorrer de seu estudo, obtêm-se os em formas cada vez mais rigorosas.
conceitos do entendimento, concei- Segundo Kant, portanto, o enten-
tos radicais ou conceltos elementa- dimento proporciona o relaciona-
res (ver CATEGORIA), os princí- mento das intuições e leva a efeito
pios do entendimento e os esquemas as sínteses sem as quais não pode ha-
de aplicação do entendimento. O en- ver enunciados necessários e univer-
tendimento, em suma, pensa o ob- sals. Assim, o entendimento consti1-
Jeto da intuição sensível, de tal mo- tui o conhecimento ordenado e que
do que a faculdade do entendimen- dá forma às intuições sensíveis. Ao
to e a da sensibilidade não podem mesmo tempo que estrutura positi-
“permutar suas funções”; só quan- vamente o conhecimento (ou, me-
do elas se unem é que se obtém co- lhor, a sua possibilidade), estrutura-
nhecimento. Também se pode defi- o negativamente, pois estabelece os
213 ENTENDIMENTO

limites além dos quais não se pode bilidade de um contato com ““a rea-
Ir. Estes limites estão marcados pela lidade em si”* por meio da razão prá-
linha divisória entre o entendimen- tica; era a razão teórica e especula-
to e a razão. Esta não pode consti- tiva a que apreendia o “em s1””. À
tuir o conhecimento; no máximo, noção de ““coisa em si” (ver) era re-
poderá estabelecer certas regras e di- chaçada como um limite, mas rein-
retrizes de caráter muito geral (como, serida como a realidade. Em algumas
por exemplo, a regulação, ou idéia ocasiões, por certo, esta reinserção
reguladora da razão, da unidade da efetuava-se na esteira da razão prá-
Natureza). Ora, a distinção kantia- tica, seguindo-se assim o próprio
na foi aceita por vários autores, co- Kant. Portanto, para Fichte o que há
mo Jacobi, Fichte, Schelling e He- é, antes de tudo, a liberdade. Mas en-
gel, mas ao mesmo tempo foi vira- quanto Kant a considerava dentro do
da do avesso. Considerou-se que, se terreno da moralidade, Fichte fazia
sucedia o que era proposto por Kant, da liberdade o Absoluto metafísico
era porque o entendimento consistia que somente a Razão (e não o enten-
numa faculdade inferior, que não dimento) pode apreender.
pode comparar-se em poder e majes- Hegel seguiu as pegadas de Jaco-
tade com a razão. Considerou-se que bi e Fichte. Mas em vez de subordi-
esta última podia penetrar naquele nar o entendimento à razão de um
domínio que Kant colocara fora dos modo romântico, procurou Integrá-
limites do conhecimento (teórico) los e hierarquizá-los de um modo sis-
por meio da intuição — bem enten- temático. Hegel concebe o entendi-
dido, uma ““intuição intelectual”, in- mento como a razão abstrata, em
tellektuelle Anschauung. Jacobi pro- contraste com a razão concreta, a
clamou este poder da razão (como única que pode ser propriamente de-
“razão intuitiva”) com grande vigor nominada razão (Vernunft). “En-
e em todos os tons, o que motivou quanto o entendimento é à mesma
uma reação adversa de Kant contra razão identificadora que foge do
“certo tom elegante que se observa concreto ou que, no máximo, quer
“atualmente' na filosofia” (“Von er- assimilar as diferenças do concreto,
nem neuerdings erhabenen vorneh- a razão é absorção do concreto pelo
men Ton in der Philosophie”, 1796). racional, identificação última do ra-
Os protestos de Kant, no entanto, cional com o real mais além da sim-
pesaram pouco: Jacobi indicou repe- ples identificação abstrata. Assim o
tidas vezes que o entendimento deve expressa Hegel no início da Lóvegica:
subordinar-se à razão e que esta é so- “O entendimento determina e atém-
berana. O mesmo fizeram Fichte, se às determinações; a razão é nega-
Schelling, F. A. Schlegel, Hegel e to- tiva e dialética porque dissolve as de-
dos os filósofos chamados ““român- terminações do entendimento no na-
ticos” ou, no mínimo, “idealistas”. da, e é positiva porque produz o ge-
Já não se tratava de afirmar a possi- ral e nele concebe o singular.” A ra-
ENTIA NON SUNT MULTIPLICANDA PRAETER NECESSITATEM 214

zão é, na verdade, espírito, o qual há duas explicações possíveis de uma


de ser considerado algo superior à realidade, de um processo, de um fe-
pura razão ““raciocinante””. nômeno, etc., há que se escolher a
explicação que recorrá ao menor nú-
ENTIA NON SUNT MULTIPLI- mero possível de conceitos ou, por
CANDA PRAETER NECESSITA- outras palavras, a explicação mais
TEM É um princípio ou regra que simples.
se pode traduzir assim: “Não devem Durante muito tempo, a fórmula
as entidades ser multiplicadas [au- Entia non sunt multiplicanda foi
mentadas] mais do que o necessá- atribuída a Guilherme de Ockham.
rio.”* O princípio ou regra em ques- Por isso alguns autores (por exem-
tão pode ter dois significados: Por plo, Bertrand Russel) chamaram à
um lado, pode significar que não de- regra expressa em tal fórmula a ““na-
vem ser introduzidas mais realidades valha de Ockham”. Mas nos textos
ou entidades do que as precisas pa- de Ockham não se encontra a fórmu-
ra explicar um fenômeno, um pro- la em questão; encontram-se fórmu-
cesso ou até a própria estrutura do las semelhantes, tais como as seguin-
universo. Por outro lado, pode sig- tes: Pluralitas non est ponenda sine
nificar que não se devem empregar necessitate (Não deves introduzir
mais conceitos (regras, princípios, uma pluralidade sem necessidade) e
pressupostos, etc.) do que os estri- Frustra fit per plura quod fieri per
tamente necessários para produzir pauciora potest (Evita fazer com
uma demonstração ou proporcionar mais o que podes fazer com menos).
uma explicação. Os dois significados Estas fórmulas estão relacionadas
encontram-se, quanto ao mais, es- em Ockham com a sua tese de que
treitamente relacionados entre si,
pois ainda que as demonstrações e
nada deve ser afirmado sem uma ra-
zão suficiente (exceto quando se trata
explicações sejam levadas a efeito de algo conhecido por si mesmo, por
mediante conceitos, a tendência é experiência ou por revelação). Phi-
considerar que tais conceitos deno- loteus Bóhner (Ockham: Philosophi-
tam sempre realidades. Por exemplo, cal. Writings, 1957) declarou que o
atribuir a uma ““substância calorífi- mais antigo filósofo escolástico no
ca” a causa do calor é introduzir um qual se pode encontrar uma fórmu-
conceito — o conceito de substância la semelhante a qualquer das indica-
calorífica — desnecessário e supor, ções é Odo Rigaldo, em seu Com-
ao mesmo tempo, que existe uma mentarium super Sententias (MS
realidade denotada pelo conceito — Bruges 208, fol. 150a). Propôs Rigal-
a realidade “substância calorífica”. do a seguinte fórmula: Frustra fit per
Não obstante, é possível dar uma plura quod potest fieri per unum (É
interpretação estritamente concei- vão fazer com vários o que se pode
tual da regra em questão. Em tal ca- fazer com um) — muito semelhante
SO, a regra recomenda que, dadas na forma, e idêntica no conteúdo, à
215 ENUNCIADO

segunda das fórmulas de Ockham pressada uma das premissas. Se fal-


antes mencionadas. ta a premissa maior, o entimema é
Na mais usual forma hodierna — chamado de primeira ordem; se fal-
Entia non sunt multiplicanda prae- ta a premissa menor, é chamado de
ter necessitatem — parece que o mais segunda ordem. Assim, “Os búlga-
antigo antecedente encontra-se na ros bebem kéfir. Os búlgaros gozam
Logica vetus et nova (1654), de de boa saúde” é um entimema de
Clauberg. primeira ordem; “Todos os ingleses
lêêm romances; John Smith lê ro-
ENTIMEMA O termo “entimema” mances” é um entimema de segun-
foi empregado com vários significa- da ordem. Tradicionalmente — por
dos desde Aristóteles; Hamilton, por exemplo, na Lógica de Port-Royal
exemplo, distingue entre 17 signifi- — admitiam-se somente as duas or-
cações diversas. dens supracitadas. Alguns autores,
Uma primeira significação é a que na esteira de Hamilton, introduzem
se encontra em Aristóteles. Segundo um entimema de terceira ordem:
ela, o entimema, évOvunua, é um si- aquele em que falta a conclusão.
logismo baseado em semelhanças ou Segundo vários autores, somente
sinais (os quais podem ser entendi- o primeiro tipo de entimema, o ba-
dos de três modos, de acordo com seado na semelhança ou sinal, é pro-
a posição do termo médio nas figu- priamente aristotélico. Outros auto-
ras) (An. Pr., II, 27, 70 a 10). Por res, porém, consideram que o Esta-
exemplo: do sinal (ou fato) de que girita não desconheceu o entimema
uma mulher tem leite, podemos in- como um silogismo truncado, como
ferir que ela está grávida. Em outro se mostra em Rher., IL
2, 1357 a
lugar diz Aristóteles que o entimema 15-20, onde indica que ““o entimema
expressa a demonstração de um ora- deve constar de poucas proposições,
dor e que se trata da mais “efetiva” menos do que as que constituem o
das maneiras de demonstração. O silogismo ordinário”, e isto em vis-
entimema é uma classe de silogismo: ta do fato de que o homem, em sua
o silogismo retórico (Rhet., I 1, 1355 linguagem cotidiana, tende a formu-
a 6 ss.). Alguns autores consideram lar argumentações suprimindo ex-
que as duas definições dadas ante- pressões que dá como entendidas por
riormente por Aristóteles coincidem parte do ouvinte.
e que o mais importante no entime-
é
ma o tratar-se de um raciocínio cu-
jas premissas são meramente prová-
ENUNCIADO Na lógica tradicio-
nal, o termo “enunciado” é usado
.veis ou constituem simples exemplos. com frequência no sentido de propo-
Outra significação de “entimema” sição (ver). Neste caso, o que se dis-
é a que se encontra na maioria dos se no verbete sobre proposição tam-
textos lógicos: o entimema é um si- bém serve para enunciado. Às vezes
logismo incompleto, por não ser ex- emprega-se “proposição” para um
EPISTEMOLOGIA 216

enunciado isolado, e “enunciado” vez mais e, em parte, por influência


quando está dentro de um silogismo. da literatura filosófica anglo-saxôni-
Ocasionalmente, “enunciado” é um ca, “epistemologia” vem sendo usa-
termo neutro, decomponível em da em quase todos os casos.
“proposição” (produto lógico do Na presente obra, segue-se geral-
pensamento) e “juízo” (produto psi- mente o segundo uso, mas conser-
cológico do pensamento). Esta de- vam-se às vezes, quando o contexto
composição efetua-se, por vezes, em O requer, as expressões ““gnosiolo-

sentido inverso: o enunciado desig- gia” e “teoria do conhecimento”.


na então o fato de enunciar uma pro-
posição. Finalmente, interpreta-se o EPOKHE No vocabulário filosófi-
enunciado como um discurso (ora- co, Já é comum usar o termo ““epo-
tio), embora o sentido de ““discursi- khé”, transcrito às vezes “epoché”,
vo” seja vago: o enunciado é um dos como transcrição e tradução do ter-
vários sentidos possíveis da oratio. mo grego énmoxn (suspensão, suspen-
são do juízo), que os filósofos da
EPISTEMOLOGIA Foi indicado no Nova Academia (especialmente Ar-
verbete GNOSIOLOGIA que oster- cesilau e Carnéades) e os cépticos
(sobretudo Enesidemo e Sexto Em-
mos ““gnosiologia” e “epistemolo-
gia” são frequentemente considera- pírico) usaram para expressar sua
dos sinônimos; trata-se, em ambos atitude diante do problema do co-
os casos, de “teoria do conhecimen- nhecimento. Epokhé, na definição
to”? — expressão que também se usa de Sexto Empirico, ““é estado de re-
no lugar de qualquer das duas ante- pouso mental [07&ows diaxvotas], pe-
riores. lo qual não afirmamos nem nega-
Durante algum tempo, registrou- mos” (Hyp. Pyrr., LI, 10), um esta-
se certa propensão para usar “gno- do que leva à imperturbabilidade,
siologia”* de preferência a ““episte- aTapatia. Não se sabe exatamente
mologia”'. Depois, ao considerar-se quem foi o primeiro filósofo que in-
que ““gnosiologia” estava sendo em- troduziu a noção de epokhé. Alguns
pregada com bastante frequência por indicam que foi Pirro quem com-
correntes filosóficas de orientação binou a epokhé com a chamada
escolástica, este termo passou a ser acatalepsia ou impossibilidade de
adotado no sentido geral de teoria do apreender imediatamente a realida-
conhecimento, sem se especificar de de do objeto. L. Robin assinala, en-
que tipo de conhecimento se trata- tretanto, que Pirro não pode ser con-
va, enquanto “epistemologia” foi in- siderado um pensador efético (que
troduzido para designar a teoria do suspende o ânimo como resultado da
conhecimento científico, ou para elu- Investigação), mas sim um pensador
cidar problemas relativos ao conhe- catético (ou buscador), o que o di-
cimento cujos principais exemplos ferencia de Sexto Empiírico. Pirro
eram extraídos das ciências. Cada não suspendia radicalmente o juízo,
217 EPOKHÉ

dedicando-se, pelo contrário, à bus- se nos novos acadêmicos e nos cép-


ca Incessante, mesmo sem obter re- ticos uma tendência para acentuar de
sultado algum. Outros autores apre- modos diferentes a suspensão do Jjuí-
sentam Arcesilau como o primeiro zo, segundo se tratasse do aspecto
que usou amplamente essa noção. Os teórico ou do prático. No que tange
estóicos haviam defendido na dou- ao primeiro, tendia-se com frequên-
trina do conhecimento a teoria da cia para a chamada metripatia — a
possibilidade de se obter ““represen- atitude moderada a respeito dos Juí-
tações compreensivas”'. Contra isso zos de caráter moral.
argumentou Arcesilau que tais repre- O termo “epokhé” foi revivido
sentações são condicionadas pelo as- com um sentido distinto do céptico
sentimento e, como este não pode na fenomenologia de Husserl. Este
OcoOrrer, as representações compreen- filósofo introduz, com efeito, o cil-
sivas são impossíveis. Em todo ca- tado termo na formação do método
so, parece certo que a noção de para conseguir a chamada redução
epokhé foi usada, sobretudo, para fenomenológica. Num sentido pri-
opor-se à teoria estóica do conheci- mário, a epokhé filosófica não sig-
mento. Neste mesmo sentido se pro- nifica mais que o fato de que ““sus-
nunciou Carnéades, que distinguiu pendemos o juízo acerca do conteú-
entre uma epokhé generalizada e do doutrinal de toda filosofia deter-
uma epokhé particular, e afirmou
que o sábio deve ater-se à primeira.
minada
e realizamos todas as nossas
comprovações dentro do quadro des-
Enesidemo e Sexto Empírico, por ta suspensão”? (Ideen, 1, $ 18; Hus-
sua parte, afirmaram a epokhé co- serliana, III, 33). Num sentido pró-
mo resultado dos tropos, mas ado- prio husserliano, a epokhé fenome-
taram diversas atitudes de “suspen- nológica significa a mudança radical
são” que beiravam, por vezes, o pro- da “tese natural”. Na ““tese natu-
babilismo. Assim principalmente ral”, a consciência situa-se frente ao
Sexto distinguia entre a abstenção mundo enquanto realidade que existe
pura e simples, o reconhecimento de sempre ou está sempre “ari”. Ao
uma possibilidade de que algo esteja mudar-se essa tese produz-se a sus-
certo, o reconhecimento de que não pensão ou colocação entre parênte-
é impossível que algo esteja certo, a ses (Ausschaltung, Einkammerung)
afirmação de que não pode haver de- não só das doutrinas acerca da rea-
cisão entre dois casos, etc. Cumpre lidade, e da ação sobre a realidade,
observar que a epokhé tinha em to- mas também da própria realidade.
dos estes filósofos não só um senti- Ora, estas realidades não são elimi-
do teórico mas também prático, pois nadas, sendo tão-somente alteradas
dizia respeito tanto ao conhecimen- pela suspensão. Portanto, o “mun-
to do objeto quanto ao reconheci- do natural”* não é negado nem se du-
mento do bem, e em especial do Bem vida da sua existência (op. cit., 1, S$
supremo. Contudo, parece observar- 31-2, 55). Assim, a epokhé feno-
ESPAÇO 218

menológica não é comparável nem ser; tanto os átomos quanto o vazio


com a dúvida cartesiana, nem com existem, já que de outra forma não
a suspensão céptica do juízo, nem poderia haver movimento, mas são
com a negação da realidade por al- duas formas distintas de existência
guns sofistas, nem com a abstenção que parecem equivaler, respectiva-
de explicações defendida, em nome mente, à matéria e ao espaço.
de uma atitude livre de teorias e pres- Maiores precisões sobre a noção
supostos metafísicos, pelo positivis- de espaço como tal encontram-se em
mo de Comte. Só assim é possível, Platão, se bem que ele tenha trata-
segundo Husserl, constituir a cons- do o problema somente numa pas-
clência pura ou transcendental como sagem de suas obras (Tim., 52 A e
residuo fenomenológico. sSs.), passagem essa que é suscetível
de várias interpretações. Segundo
ESPAÇO Na filosofia antiga, o pro- Platão, há três gêneros de ser. Um,
blema do espaço foi discutido com que é sempre o mesmo, incriado e in-
frequência no âmbito da oposição destrutível, invisível para os sentidos,
entre o cheio, 70 TmhÃéovr, e O Vazio, TO que nada recebe de fora nem se
xévor. Esta oposição é paralela à que transforma em outra coisa: são as
existe entre a matéria e o espaço. É formas ou as idéias. Outro, que está
também paralela à que existe entre sempre em movimento, é criado,
O ser e o não-ser. Por vezes, os dois perceptível para os sentidos e a opi-
pontos de vista estão misturados, ou- nião, e sempre chegando a ser num
tras vezes, separados. Fica difícil, lugar e desaparecendo dele: são as
amiúde, precisar onde começa e on- colsas sensíveis. O terceiro, final-
de termina o paralelismo. A razão mente, é eterno e não suscetível de
desta variedade e, ao mesmo tempo, destruição, constitui o habitáculo das
desta imprecisão tem suas raízes na coisas criadas, é apreendido por
dificuldade de dar uma interpretação meio de uma razão espúria e mal é
unívoca às cosmologias helênicas, es- real: é o espaço, xwea. Formas (ou
pecialmente às dos pré-socráticos. ser), devir e espaço existiram, segun-
Tomemos dois exemplos: Parmêni- do Platão, antes da existência do
des e Demócrito. Ao negar que se céu. O espaço, além disso, tomou as
possa falar do não-ser, Parmênides formas dos elementos. Por isso, co-
nega ao mesmo tempo que se possa mo indica A. E. Taylor em seu co-
falar do vazio: o único que há, e de mentário ao Timeu, o nome “espa-
que se pode falar, é o ser, e o ser é ço , xwea é dado ao que depois se-
inteiramente cheio. Mas este ser ria definido como receptáculo. Uma
cheio pode ser, entre outras coisas, VEZ
queO espaço carece de figura, as
a matéria compacta, ou o espaço. Ao definições que podem dar-se dele
afirmar que existe o vazio, Demócri- São, ao que parece, unicamente
to afirma, ao mesmo tempo, que se ne-
gativas: é O que propriamente
pode falar, de certo modo, do não- mas que unicamente é
não é
pree nchido.
219 ESPAÇO

Ora, o problema que se apresenta a diferença básica entre a doutrina


este respeito, e que ocupou desde aristotélica e a atomista. Os atomis-
muito cedo a atenção dos comenta- tas conceberam o espaço como ““o
ristas do filósofo, consiste em apu- vazio”; o espaço não é uma coisa,
rar se, enquanto vazio receptáculo, pois unicamente os átomos são ““col-
o espaço não deverá ser também o sas”. Mas, graças ao espaço, é pos-
lugar onde se encontram as Formas. sível conceber o momento; este últi-
Platão parece negar que 1sso seja mo é deslocamento das ““coisas”* ou
possível. As Formas não estão, pro- átomos através do ““não ser” ou ““va-
priamente falando, em parte nenhu- zio” espacial. Por isso Demócrito
ma: a negatividade do espaço não o chamou ao espaço, indistintamente,
converte naquilo onde estão todas as “vazio”, 1ô xevóv; “nada”, 1ô um or,
realidades, incluindo as Formas, mas e “infinito”, roôdkmtetoor (Simplício,
antes num ser “intermediário” en- In de caelo comm., 195, 1).
tre as Formas e as realidades sensí- S. Sambursky (The Physical
veis. O espaço, enquanto receptácu- World of Late Antiquity, 1962, pp.
lo puro, é um “contínuo” sem qua- 2 e ss.) lembra que as principais con-
lidades. O espaço é um ““habitácu- cepções sobre o espaço depois de
lo” e nada mais; não se encontra Aristóteles foram descritas por Sim-
nem na terra nem no céu (inteligível), plício (In phys. comm.). Entre essas
de modo que não se pode dizer dele concepções duas se destacam. Uma
que ““existe”. se deve a Teofrasto, que propõe con-
Visto que o espaço é concebido por siderar o espaço não como uma rea-
Aristóteles como ““lugar””, remete- lidade em si mesma, mas como ““al-
mos o leitor para o verbete sobre es- go” definido mediante a posição e a
te conceito na influente doutrina aris- ordem dos corpos. Esta concepção
totélica. Em parte, as coisas são fei- do espaço, comenta Sambursky, é se-
tas, segundo Aristóteles, de ““espa- melhante, senão idêntica, à idéia re-
ço”, mas isto não significa que se- lacional do espaço pronosta por
jam — como em Descartes (cf. infra) Leibniz em sua polêmica com Clar-
— modos de um contínuo espacial. ke (cf. infra). À outra concepção
A rigor, melhor do que dizer que as deve-se a Estratão de Lâmpsaco, o
coisas estão feitas em parte de ““es- qual propõe considerar-se o espaço
paço” é dizer que o espaço “emana” como uma realidade equivalente à to-
das coisas. Dado que, de acordo com talidade do corpo cósmico. O espa-
o conceito de “lugar”, não é possí- ço é “algo” completamente vazio,
vel conceber as colsas sem seu espa- mas sempre preenchido com corpos
ço, o espaço não pode ser mero re- (a idéia de Estratão é, indica Simplí-
ceptáculo vazio. Existe, pois, uma d1- cio, a mesma de muitos ““platôni-
ferença fundamental entre a doutri- cos”). Esta concepção do espaço, co-
na aristotélica e a doutrina platôni- menta Sambursky, é semelhante, se-
ca a este respeito. Há também uma não idêntica, à idéia do espaço co-
ESPAÇO 220

mo um “absoluto” proposta por sobre a natureza do espaço basea-


Clarke e, segundo a maior parte dos ram-se em noções já dilucidadas na
intérpretes, por Newton. filosofia antiga. Um dos principais
De acordo com Sambursky, todas problemas abordados foi o da de-
as concepções do espaço durante a pendência ou independência do es-
época helenística foram variações paço em relação aos corpos. A opi-
das idéias propostas por Teofrasto nião que predominou foi a aristoté-
ou por Estratão de Lâmpsaco. En- lica: a do espaço como lugar. Isso
tretanto, não parece que se possa não significa que não se distinguisse
descartar a concepção aristotélica do entre várias noções de espaço. Uma
espaço como ““lugar”, a qual foi ad- distinção importante foi a estabele-
mitida por autores que, em outros cida entre espaço real e espaço ima-
aspectos, aderiram a concepções ginário. O espaço real é finito, pos-
não-aristotélicas. Por exemplo, Plo- suindo os mesmos limites que o uni-
tino declara que pode-se conceber o verso das coisas. O espaço imaginá-
lugar como um intervalo (enquanto rio — o que se “estende” mais além
“intervalo vazio”). Neste sentido, o das coisas atuais ou, melhor dizen-
lugar é uma ““realidade incorpórea do, o que se pensa como algo que
(Enn., IV, iu, 20). Assim, Plotino “contém” outras coisas possíveis —
parece seguir Platão neste ponto. é potencialmente infinito. O espaço
Mas Plotino também assinala que tu- imaginário é identificado, às vezes,
do tem o seu “lugar próprio” (Enn,, como vácuo puro. O espaço real é o
IV, viu, 2). Assim, Plotino parece espaço dos corpos. Pode pensar-se
acompanhar Aristóteles neste ponto. como algo ““real”* ou como algo pu-
O que Plotino critica em Aristóteles ramente “mental”.
é ter feito uma distinção entre o ““lu- As doutrinas modernas sobre a
gar” e o “onde”; a rigor, sempre noção de espaço são muito abundan-
que indicamos um “onde” estamos tes e complexas.
indicando um “lugar” (Enn., VL, 1, Filósofos e cientistas propenderam
14). Por outro lado, a concepção es- cada vez mais a conceber o espaço
tóica do espaço distingue-se da aris- como uma espécie de ““continente
totélica na medida em que os estói- universal” dos corpos físicos. Este
cos conceberam o espaço como um espaço tem certas propriedades, en-
“contínuo” dentro do qual há ““po- tre as quais se destacam às seguin-
sições”* e “ordens” dos corpos. Mas tes: o ser homogêneo (isto é, serem
avizinha-se da aristotélica porquan- suas ““partes” indiscerníveis umas
to as disposições dos corpos engen- das outras do ponto de vista qualita-
dram os diversos “lugares” em que tivo); o ser isotrópico (ou seja, terem
se encontram, ou podem encon- todas as direções no espaço as mes-
trar-se. mas propriedades); o ser contínuo, o
Durante a Idade Média, e especial- ser ilimitado, o ser tridimensional; e
mente entre os escolásticos, as idéias Oo
ser homoloidal (ser uma figura da-
221 ESPAÇO

da a matriz de um número infinito paço é perfeitamente transparente.


de figuras em diferentes escalas, mas Essa extensão não é ““sensível”; é
assemelhando-se umas às outras). “inteligível” (Entretiens sur la Mºe-
Esta idéia do espaço corresponde, taphysique, I viu [também 1x e x)).
por um lado, ao modo como se con- Escreve Malebranche que a idéia do
cebem as propriedades espaciais na espaço sem limites é ““necessária,
geometria euclidiana e, por outro, à eterna, imutável, comum a todos
concepção do espaço como infinito. os espíritos, aos anjos, ao próprio
A idéia do espaço desempenha um Deus”; não é possível “separar-se
papel central na filosofia cartesiana. dela ou perdê-la inteiramente de vis-
O espaço é, para Descartes, res ex- ta”. Para Spinoza, a substância ex-
tensa, cujas propriedades são a con- tensa “é um dos atributos infinitos
tinuidade, a exterioridade (o ser par- de Deus” (Ética, LI, prop. XV, esc.).
tes extra partes), a reversibilidade, a A extensão ““é um atributo de Deus,
tridimensionalidade, etc. Ao mesmo ou seja, Deus é coisa extensa” (ibid.,
tempo, a res extensa constitul a es- II, prop. ID); “o modo da extensão
sência dos corpos (Regulae, XIV; e a idéia deste modo são uma e a
Meditationes, V; Princ. Phil., II, 4, mesma coisa, embora expressa de
9, 11, 12, 13, 14, 15). Uma vez des- duas maneiras distintas” (1bid., IL,
pojados os corpos de todas as pro- prop. VII, esc.). Em todas estas 1n-
priedades sensíveis (sempre cambian- terpretações filosóficas, o espaço
tes), deles fica a extensão: ““a natu- aparece como uma realidade subs-
reza da matéria ou do corpo em ge- tancial, ou, como Kant mais tarde di-
ral não consiste em ser algo duro, pe- rá, como ““coisa em si”,
sado ou de uma certa coloração, ou Locke interessa-se sobretudo pe-
algo que afete os nossos sentidos de lo problema da origem da idéia do
algum outro modo, mas em ser uma espaço. Esta idéia é obtida por meio
substância extensa em longitude, lar- da vista e do tato. Forma uma ““idéia
gura e profundidade” (Princ. Phil., simples”, com seus “modos” (dis-
II, 4). Assim, a substância corporal tância, capacidade, intensidade, etc.)
só pode ser claramente conhecida (Essay, 1, v). Locke distingue entre
por meio da extensão (1bid., II, 9). a extensão e o corpo. Os corpos são
É certo que Descartes introduziu as sólidos e extensos, dotados de par-
noções de lugar e situação. Mas a tes separáveis e movíveis em diferen-
função dessas noções é distinta das tes modos, enquanto a extensão -é so-
que elas têm na escolástica. O lugar mente o espaço que se encontra en-
indica a situação ou modo como um tre as extremidades dessas partes só-
corpo se orienta. Mas “encontram- lidas coerentes (ibid., II, xiii, 11). A
se” ambos no espaço enquanto pu- extensão não inclui solidez, nem re-
ra extensão. O espaço é conhecido a sistência ao movimento do corpo
priori, com perfeita clareza e distin- (1bid., II, xiii, 12). As partes do es-
ção; a extensão em que consiste o es- paço puro ““são inseparáveis umas
ESPAÇO 222

das outras, de modo que a continui- tre Berkeley e Leibniz, do que entre
dade não pode ser separada nem real Descartes e Leibniz, Locke e Ber-
nem mentalmente (ibid., II, xiii, 13). keley.
As idéias de Locke a respeito têm A discussão sobre a natureza do
uma consegiiência: que embora a no- espaço foi (em conjunto com a dis-
ção de espaço tenha uma origem em- cussão sobre a natureza do tempo
pírica, o espaço é concebido como al- [ver]) muito animada durante a se-
go “em si”. Isto se compreende gunda metade do século XVIll e o
quando se tem presente que Locke primeiro terço do século XVIII. Em-
insistiu muito na diferença entre qua- bora muitos autores contribuíssem
lidades primárias e secundárias (ver para essas discussões, elas gravita-
QUALIDADE); a extensão e seus vam sobretudo em redor da polêmi-
modos é uma qualidade primária e, ca travada entre Newton (e Clarke)
por conseguinte, constitui uma das e Leibniz. Alguns autores sustenta-
“propriedades mecânicas” -subjacen- ram posições distintas das dos men-
tes nas propriedades sensíveis. Pode- cionados autores; outros, em contra-
se concluir que as opiniões de Locke partida, aproximaram-se muito de-
são psicologicamente empiristas mas les e até os precederam. E singular
ontologicamente ““racionalistas” e o caso de Gassendi, o qual manifes-
“realistas”, Berkeley assinalou-o cla- tou uma idéia de espaço semelhante
ramente. Considerar o espaço uma à newtoniana (cf. Syntagma philoso-
“qualidade primária” é supor que o phicum, parte II, sec. 1, livro II, c. 1).
espaço existe com independência do Newton definiu o espaço do se-
ser percebido. Mas se ser é ser per- guinte modo: ““O espaço absoluto,
cebido, o espaço é uma idéia, tal co- em sua própria natureza, sem rela-
mo as qualidades secundárias — cor, ção com nenhuma coisa externa per-
sabor, etc. Isto não significa que o manece sempre similar e imóvel. O
espaço seja uma ilusão; o espaço é espaço relativo é uma dimensão mo-
uma realidade — ou, melhor, uma vível ou medida dos espaços absolu-
“idéia real”. Mas dizer “o espaço tos, que os nossos sentidos determi-
existe” não é dizer que existe algo nam mediante sua posição em rela-
que transcende o ser percebido ou a Ção aos corpos, e que é vulgarmente
possibilidade de ser percebido. Te- considerado como espaço imovível”
mos aqui uma concepção simulta- (Principia, escólio para a def. viil).
neamente empirista, fenomenista e A interpretação mais corrente dessas
idealista do espaço. Mas o empiris- fórmulas é a seguinte: o espaço é pa-
mo de Berkeley é, como se vê, subs- ra Newton uma medida absoluta e
tancialmente distinto do de Locke; até uma “entidade absoluta”. Visto
na verdade, é o inverso exato do de que as medidas no espaço relativo
Locke. Num certo sentido, há mais são função do espaço absoluto, po-
semelhanças, por um lado, entre de-se concluir que este último é o
Descartes e Locke, e, por outro, en- fundamento de toda dimensão espa-
223 ESPAÇO

cial. No Escólio Geral dos Principia, Kant. Este tratou de explicar o mo-
Newton indica que, embora Deus do como a noção de espaço é usada
não seja espaço, encontra-se em to- na mecânica newtoniana, sem ade-
da a parte, de modo que constitui o rir por isso, no entanto, à concepção
espaço (e a duração). O espaço é, as- realista de Clarke e de outros. Pre-
sim, sensorium Dei, órgão sensorial cedido pelas especulações de autores
da divindade. Esta idéia de espaço como Tetens e Lambert, Kant acom-
foi rejeitada por Berkeley, Huygens panhou primeiro as orientações leib-
e Leibniz, assim como, mais tarde, nizianas. Mas, embora sustentasse,
por Ernst Mach. Foi defendida, em à semelhança de Leibniz, que o es-
contrapartida, por Clarke, especial- paço é uma relação, fez desta últi-
mente em sua correspondência com ma não uma ordem ideal, mas uma
Leibniz. ordem transcendental. As idéias kan-
Stephen Toulmin (““Criticism in tianas sobre o espaço encontram-se
the History of Science: Newton on sobretudo em sua Dissertação Inau-
Absolute Space, Time and Motion. gural de 1770 e na ““Estética trans-
1”, Philosophical Review, 68 [1959], cendente” da Crítica da Razão Pu-
1-29; ibid, II, 203-27) alega não ser ra. O espaço é para Kant (assim co-
evidente, de modo nenhum, que mo o tempo) uma forma da intuição
Newton sustentasse uma noção de sensível, ou seja, uma forma a prio-
espaço como coisa, entidade ou rea- ri da sensibilidade. Não é “um con-
lidade absoluta. Embora a letra do celto empírico derivado de experiên-
“Escólio” para a definição vili pu- clas externas, porque a experiência
desse dar margem a essa Interpreta- externa só é possível pela represen-
ção, o modo como as idéias newto- tação do espaço”. “É uma represen-
nianas são aplicadas nos Principia e, tação necessária a priori, que serve
sobretudo, a estrutura lógica dos de fundamento para todas as intui-
Principia tornam-na duvidosa. Se- ções externas”, porque ““é impossí-
gundo Toulmin, a concepção newto- vel conceber que não exista espaço,
niana do espaço tem um caráter cla- se bem que possamos pensá-lo sem
ro: é uma definição operacional. que contenha objeto algum”. O es-
Mas seria errôneo imaginar que paço é, em suma, “a condição da
nessa época houve somente as duas possibilidade dos fenômenos”, ou
opiniões mencionadas: O espaço co- seja, “uma representação a priori,
mo algo real (e ainda absoluto) e o fundamento necessário dos fenôme-
espaço como algo ideal. Assim, Bos- nos”. O espaço não é nenhum con-
covich examinou o problema do es- ceito discursivo, mas uma intuição
paço (e, como todos os autores cita- pura e, finalmente, o espaço é repre-
dos, do tempo) como realidade e co- sentado como um quantum determi-
mo idealidade. Ora, a mais famosa nado. Na exposição transcendental
teoria sobre o espaço, formulada demonstra-se, por sua vez, que ““o
pouco depois de Boscovich, é a de espaço não representa nenhuma pro-
ESPAÇO 224

priedade das “coisas', nada mais é do uma fase, um “momento” no desen-


que a forma dos fenômenos dos sen- volvimento dialético da Idéia, a pu-
tidos externos, quer dizer, a única ra exterioridade desta. O espaço
condição subjetiva da sensibilidade, apresenta-se, neste último caso, co-
mediante a qual se nos torna possí- mo a generalidade abstrata do ser-
vel a intuição externa”. O resultado fora-de-si da Natureza. Podemos di-
da investigação kantlana é a atribui- zer então que a subjetivação do es-
ção ao espaço das características de paço dá lugar a uma idéia muito dis-
aprioridade, independência da expe- tinta segundo a forma em que seja
riência, intuitividade e idealidade admitida precisamente tal subjetiva-
transcendental. Como intuição pu- ção. Só o naturalismo radical admi-
ra, o espaço é, por conseguinte, uma tirá, sem crítica, uma objetividade
“forma pura da sensibilidade” ou “a exterior do espaço. Durante o sécu-
forma de todas as aparências do sen- lo XIX foi frequente examinar não
tido externo (K. r. V., A 26, B 42). só a natureza do espaço (ou da idéia
Estas proposições sobre o espaço na de espaço), mas também a questão
Crítica da Razão Pura são, quanto da origem da noção de espaço.
ao mais, o aprofundamento e siste- Várias são as concepções de espa-
matização do que Kant já antecipa- ço que se devem à física do século
ra a respeito na citada dissertação De XX; na maioria dos casos, a noção
mundi sensibilis atque intelligiíbilis de espaço está intimamente relacio-
forma et principiis. Com efeito, o es- nada com a de tempo (ver). Assim,
paço é aí apresentado ““não como al- na física de Minkowski, na teoria da
go objetivo e real, nem como subs- relatividade, na mecânica ondulató-
tância, acidente ou relação, mas co- ria de Schródinger, introduz-se a
mo algo subjetivo e ideal”, como noção de Espaço-Tempo como um
“um esquema que surge por uma lei contínuo. Na teoria da relatividade
constante deduzida da natureza do geral, de 1916, Einstein unificara es-
espirito para a coordenação de todos paço e tempo, matéria e gravitação.
os sentidos externos” (III, 15 D). Ficava de fora o campo eletromag-
Com o que é rejeitada tanto a feno- nético, que Einstein veio a incluir em
menalidade do espaço (Hobbes) e sua teoria do campo unificado, de
sua Iirrepresentabilidade sem os cor- 1953, ou seja, a teoria segundo a
pos (Berkeley), quanto a mera ordem qual o campo eletromagnético resul-
sucessiva dada pelo hábito (Hume). ta logicamente das propriedades geo-
Ora, o chamado idealismo alemão métricas do contínuo tetradimensio-
acentuou o construtivismo do espa- nal espaço-temporal (esta teoria uni-
ço numa proporção que Kant sequer ficada foi reforçada pelo sistema de
imaginara. Em Fichte, por exemplo, equações apresentado pelo matemá-
O espaço aparece como algo tico tcheco Vaclav Hlatavy). Alguns
posto
pelo eu quando este põe o objeto co- autores, como Bohr, indicaram que
mo extenso. E em Hegel o espaço é as concepções usuais do espaço (e do
225 ESPECIEÍSMO

tempo) são inadequadas para descre- rar o espaço como aquela realidade
ver processos microfísicos. Por 1sso na qual todas as coisas estão (tam-
foram propostas várias concepções bém os sujeitos), ou então vê-lo co-
descontínuas do espaço-tempo (Bohr, mo uma construção, independente-
Heisenberg, L. de Broglie, Schwin- mente de posteriores interpretações.
ger). O segundo grupo também abriga
Diferentemente das teorias cientí- duas posições diferentes: a que vê o
ficas sobre o espaço antes menciona- espaço como pura ““exterioridade”,
das e das doutrinas metafísicas que na qual sucede a tradicional consti-
— de um modo ou de outro — es- tuição de partes ex partes, e aquela
tão vinculadas aos resultados e con- outra que reconhece o espaço em si
cepções da ciência, Heidegger afir- mesmo, como possuidor de certa
ma que a noção de espaço é ““pré- “interioridade”, embora esta se en-
científica”, e afirma que deve-se en- tenda unicamente como um predica-
tender a espacialidade a partir da do por analogia.
própria existência, como portadora
das características de ““des-afasta- ESPECIEÍSMO Este termo, deriva-
mento” (Ent-fernung) e direcionali- do da palavra “espécie”, foi criado
dade (Ausrichtung). De acordo com para indicar a atitude segundo a qual
esta concepção, o espaço não está no a própria espécie, ou espécie huma-
sujeito — como pretende o idealis- na, é privilegiada relativamente às
mo —, nem o mundo está no espa- outras espécies, e possui direitos que
ço — como sustenta o realismo —; as demais espécies não têm, ou
ocorre, sim, que o espaço está em o supõe-se que não devam possuir. O
mundo, porquanto o ser-no-mundo, especieísmo é a respeito da espécie
constitutivo da existência, deixou humana inteira o que o racismo é em
“livre” o espaço (Ser e Tempo, & relação a uma determinada raça; ser
24). Desta forma, Heidegger inverte especieista é ser “racista humano”.
o tratamento da noção de espaço de O especieísmo é uma versão do an-
um modo semelhante a como o faz tropocentrismo quando se interpre-
com a questão do mundo exterior. ta este como resultado de um juízo
O problema do espaço — como de valor sobre o homem. Cumpre
tantos outros temas fundamentais da observar que o especieísmo não é,
filosofia — dá lugar a posturas ex- necessariamente, apenas o reconhe-
tremas. Podemos distinguir aqui, ba- cimento de que todos os homens
sicamente, dois grupos de teorias: constituem uma espécie ou de que o
aquelas em que o problema do espa- seu ser é “ser espécie” no sentido de
ço é tratado em relação a um sujeito Feuerbach. Este reconhecimento po-
de consciência, e aquelas outras que de ser uma superação dos interesses
se ocupam do espaço considerado
em si mesmo. O primeiro grupo des- por conseguinte, uma superação de
e,
particulares de grupos particulares

taca duas posturas radicais: conside- todas as formas de racismo, nacio-


ESSÊNCIA 226

nalismo, tribalismo, etc. Mas o re- Em Cat., 5, 2a 11 e ss., Aristó-


conhecimento do homem como es- teles introduziu um novo termo,
pécie transforma-se num especieísmo ovota, O qual, por razões que vere-
quando equivale à negação de direi- mos adiante, foi traduzido ora por
tos à outras espécies. “substância”, ora por ““essência”.
Especificamente, os especieístas Em Top., 1, 9, 103 b 27 e ss., escre-
negam os direitos dos animais (ver ve Aristóteles: “Ao significar o que
DIREITOS DOS ANIMAIS) e, em algo é, significa-se ora a substância,
geral, de todos os seres sencientes ora a qualidade, ora uma das demais
distintos do homem. categorias. Quando em presença de
O vocábulo deve-se a Richard um homem se diz que o que há dian-
Ryder, que o emprega em seu artigo te dele é um homem ou um animal,
“Experiments on Animals”, em Ani- Indica-se o que é e se significa uma
mails, Men and Morals, 1971, cole- substância. Mas quando diante de
tânea organizada e editada por Stan- uma cor branca se diz que é branca
ley e Roslind Godlovitch, e John ou que é uma cor, indica-se que se
Harris, pp. 41-82. Segundo Ryder, trata de uma qualidade... E o mes-
“não há nenhum critério simples que mo acontece com as demais catego-
distinga entre as chamadas espécies” rias: para cada uma das noções assi-
(op. cit., p. 81). Ryder salienta que, naladas, se se afirma gênero expres-
já que não se aceitam hoje discrimi- sa-se a essência. Pelo contrário,
nações em termos raciais, ““pode quando se afirma algo sobre outra
ocorrer igualmente que chegue o mo- coisa que não a coisa mesma porta-
mento em que aos espíritos esclare- dora da afirmação, não se expressa
cidos e educados repugne tanto o “es- a essência, mas sim a quantidade ou
pecieísmo' quanto detestam hoje o a qualidade ou uma das demais ca-
“racismo? ”* (loc. cit.). tegorias.”* Aqui é apresentada a es-
sência não como uma determinação
ESSÊNCIA Podem-se formular vá- qualquer da coisa ou entidade, mas
rias perguntas acerca de um ente como uma determinação baseada no
qualquer, x: (1) se x é ou, mais espe- gênero a que a coisa ou entidade per-
cificamente, se x existe; (2) o que é tence. Portanto, a essência é aqui a
x; (3) por que x é como é; (4) donde natureza da coisa ou entidade. Po-
(ex) provém x, etc. A segunda per- deria também chamar-se ““substân-
gunta refere-se à essência de x. cia formal” ou “forma”. Nesta pas-
Na medida em que Platão consi- sagem, Aristóteles não usa a expres-
derou as Idéias ou Formas como mo- são ovoia, mas a expressão 7o Tí nv
delos e ““realidades verdadeiras”, elva, quod quid erat esse, ou seja,
viu-as como essências. Mas só com “Oo
que era antes de ter sido” ou
Aristóteles começa uma análise da “ter-se realizado” a entidade: 7ô 1í
idéia de essência. flv elvar traduz-se com frequência
227 ESSÊNCIA

por quidditas. Parece designar a es- tidade abstrata (um universal) equi-
sência e também a forma. vale a adotar certa posição ontoló-
É necessário levar em conta duas gica que não pode ser subscrita por
coisas. Por um lado, desde Aristó- todos os filósofos. Por conseguinte,
teles considera-se como essência o pode-se também voltar à ““realida-
quê de uma coisa, ou seja, não que de” e alegar que a essência é um
a coisa seja (ou o fato de ser a coi- constitutivo metafísico de qualquer
sa), mas o que é. Por outro lado, realidade — pelo menos, de qualquer
considera-se que a essência é um cer- realidade que se suponha possuir es-
to predicado por meio do qual se diz sência. As respostas dadas ao proble-
O que é a coisa, ou se define a coisa. ma da essência dependeram em gran-
No primeiro caso, temos a essência de parte do aspecto que se tenha su-
como algo real. No segundo, como blinhado e, em especial, se foi subli-
algo “lógico”, ou conceitual. Os nhado o aspecto “lógico” (concei-
dois sentidos estão intimamente re- tual), ou o aspecto ““metafísico”
lacionados, mas tende-se a ver o pri- (real), ou porventura uma combina-
meiro desde o segundo. Por isso o ção de ambos. Assim, se se define a
problema da essência tem sido com essência como um predicado, inda-
frequência o problema da predica- ga-se se é necessário ou suficiente. Se
ção. Nem todos os predicados são es- se define como um universal, pode-
senciais. Dizer “Pedro é um estudan- se perguntar se se trata de um gêne-
te” não é enunciar a essência de Pe- ro ou de uma espécie, ou de ambos.
dro, visto que se pode considerar ““é Se é um constitutivo metafísico, po-
um bom estudante”* um predicado de considerar-se como uma idéia, co-
acidental de Pedro. Dizer “Pedro é mo uma forma, como um modo de
um homem” expressa o ser essencial causa (a causa formal), etc. Por ou-
de Pedro. Mas exprime também o ser tro lado, do ponto de vista metafiísi-
essencial de Paulo, Antônio, João, co, pode considerar-se — como tem
etc. Para saber o que Pedro é teria sido feito com frequência — a essên-
de se encontrar uma ““diferença” que cia como uma ““parte” da coisa em
O separasse essencialmente de Pau- conjunto com a existência. É neste
lo, Antônio, João, etc. Ora, em vis- ponto que se apresenta com mais ur-
ta da dificuldade de encontrar defi- gência a questão da ““relação” entre
nições essenciais para indivíduos, a essência e a existência, tratada de
preferiu-se reservar as definições es- forma tão abundante pelos filósofos
senciais para classes de indivíduos. medievais e, em particular, pelos fi-
Em consegiiência, muitos autores, lósofos escolásticos — inclusive os
a partir de Aristóteles, têm afirma- ““escolásticos árabes”.
do que a essência se predica somen- O termo essentia relacionou-se
te de universais. Entretanto, 1sso estreitamente com o termo esse.
tampouco é completamente satisfa- Assim, em Santo Agostinho, para
tório. Dizer que a essência é uma en- quem ““essência é o nome que se dá
ESSÊNCIA 228

aquilo que é ser (ab eo quod est esse e a existência divina são o mesmo.
dicta est essentia), tal como sapien- Isso é para Santo Anselmo e os au-
tia vem de sapere e scientia de scire. tores ““anselmianos” não só uma
As demais coisas que se chamam es- verdade per se mas também uma ver-
sências ou substâncias envolvem aci- dade quoad nos; daí o argumento
dentes que causam nelas alguma mu- anselmiano. Para Santo Tomás con-
dança” (De Trin., V, 1, 3). Deste tinua sendo uma verdade per se, mas
modo se afirma que Deus é substân- não quoad nos; daí a refutação de
cia ou, se este nome lhe convém tal argumento. Mas além disso, em-
mais, essentia. Enquanto caráter bora continue considerando-se que
fundamental do ser, a essência cor- Deus é esse, não se admite que só
responde aqui somente a Deus. Deus seja propriamente essência. A
Segundo Santo Tomás, chama-se essência convém por analogia (ver)
essência àquilo pelo qual e no qual de atribuição per prius a Deus. Mas
a coisa tem o ser: essentia dicitur se- também convém, ainda que per pos-
cundum quod per eam et in ea res ha- terius, às criaturas. E é nestas onde
bet esse (De ente et essentia, 1). To- se apresenta o problema do modo
das estas definições de essentia pa- como a essência se relaciona com a
recem ser primariamente ““metafísi- existência, ou seja, o problema de
cas”. Podem, contudo, ““dobrar-se” que tipo de distinção deve admitir-
mediante uma caracterização ““lógi- se nos entes criados entre essência e
ca”. Com efeito, a essência pode ser existência.
concebida como algo que ““consti- Da infinidade de opiniões a tal res-
tui” a coisa; a essência responde à peito, destacam-se algumas que são
pergunta quid est ens. fundamentais.
De tudo o acima exposto parece f1- Santo Tomás e os autores por ele
car clara somente uma coisa: que é influenciados afirmam haver distin-
muito difícil saber do que se trata ção real entre a essência e a existên-
quando se diz “essência”. O assun- cia nos entes criados, mas isso não
to esclarece-se um tanto, porém, significa sustentar que a existência
quando se considera nos escolásticos seja um mero acidente adicionado à
medievais (ou em grande número de- essência. Pode ser uma causa eficien-
les) o modo como se entende a essên- te que transcende a essência e, por-
cia em relação com a existência. tanto, algo muito distinto de um ag-
De imediato, é comum considerar gregatum. Assim se opunha Santo
este problema a respeito da ““diferen- Tomás à teoria aviceniana.
ça” entre Deus e as coisas criadas. Segundo esta, a existência agrega-
A tradição vigente ainda em Santo se à essência (ou, se se preferir, o es-
Anselmo afirmava que Deus é pro- Se agrega-se à quidditas). A essência
priamente essência. Na essência di- é a pura realidade da coisa, indepen-
vina (incriada, criadora) seu ser, seu dentemente das determinações lógi-
esse, é seu existir. A essência divina cas do pensamento da coisa. A es-
229 ESSÊNCIA

sência de uma coisa é, pois, a coisa Algumas das questões menciona-


enquanto tal e nada mais. das foram ainda tema de discussão
Os escolásticos cristãos mais ou na época moderna. Os neo-escolás-
menos ““avicentanos” consideram ticos, interessaram-se pelo problema
que esse modo de pensar a essência da essência, seguindo — em geral —
é o modo propriamente metafísico. as tendências já marcadas por San-
A essência deve ser tomada em si to Tomás de Aquino, Duns Escoto
mesma e não na coisa ou no intelec- e Guilherme de Ockham.
to. Na coisa, a essência é aquilo pe- Parte considerável da discussão
lo qual a coisa é. No intelecto, é sobre as essências na filosofia mo-
aquilo que é mediante definição; em derna, especialmente entre os gran-
si mesma, a essência é o que é. Isso des pensadores do século XVII, gra-
afirma Duns Escoto quando consi- vitou em torno da natureza das es-
dera que a essência pode ser aprecia- sências. Spinoza, por exemplo, escre-
da em si mesma (estado metafísico), veu: ““Pertence à essência de uma
no real singular (estado físico ou coisa aquilo que, sendo dado, põe
real) ou no pensamento (estado ló- necessariamente a coisa e que, sen-
gico). No plano metafísico, a essên- do suprimido, a destrói necessaria-
cia distingue-se da existência somente mente; por outras palavras, aquilo
por uma distinção normal. sem o qual a coisa não pode ser nem
Alexandre de Hales não admitiu ser concebida e, reciprocamente,
uma distinção real entre essência e aquilo que, sem a coisa, não pode ser
existência, mas tão-somente uma dis- nem ser concebido” (Etica, II, def.
tinção de razão — opinião que veio 11). Esta concepção da essência foi

a ser seguida por Francisco Suárez. qualificada amiúde de ““realista”* —


Henrique de Gand defendeu uma no sentido ontológico de ““realista”.
distinção intencional. Esta teoria Autores como Hobbes e, em geral,
fundamenta-se numa concepção do os filósofos de tendência nominalis-
ser da essência enquanto tal. ta e terminista consideraram a essên-
Averróis mostrou-se propenso a cia um termo mediante o qual se de-
não admitir nenhuma distinção. Gui- nomina algo — geralmente uma clas-
lherme de Ockham afirmaria tam- se — ou se predica algo de algo —
bém que a essência e a existência não em geral um dos chamados ““predi-
são duas realidades distintas: tanto cados essenciais”. Leibniz insistiu
em Deus quanto na criatura não se muito na idéia de que há uma exigen-
distinguem entre si a essência e a tia existentiae inerente em cada es-
existência mais do que cada uma di- sência: toda essência, afirma repeti-
fere de si mesma. ““Essência” e das vezes, tende por si mesma para
“existência” são dois termos que sig- a existência, vendo-se limitada em
nificam à mesma coisa, mas uma s1- sua “pretensão de existir” pelo prin-
gnifica-a no modo de um verbo e à cípio de compossibilidade (ver). As
outra no modo de um nome. essências são concebidas por Leibniz
ESTÉTICA 230

quase sempre como ““possíveis” que sua doutrina a este respeito asseme-
possuem um conatus que as leva a lha-se em alguns pontos à de Hus-
realizar-se sempre que se acham fun- serl e, em geral, a de todos os auto-
damentadas num ser necessário exis- res que falaram, ou supuseram, um
tente. A razão desta propensio ad “terceiro reino” distinto do das coi-
existendum encontra-se, segundo sas e dos processos mentais (Mei-
Leibniz, no princípio de razão sufi- nong, Husserl, etc.).
ciente. Segundo Husserl, as essências não
Foi corrente na época moderna são entidades metafísicas, mas tam-
distinguir entre essência nominal e pouco se reduzem a ““meros concei-
essência real: a primeira é a expres- tos” “atos mentais”. São “uni-.
são que predica algo de algo: a se- dades ideais de significado*”* que se
gunda é a verdadeira (ou suposta- dão à intuição essencial. Em sua di-
mente verdadeira) realidade intrínse- mensão fenomenológica, as essências
ca (e, por vezes, declarada incognos- são atemporais e a priori, diferen-
cível) de uma coisa. ciando-se assim dos fatos. Não obs-
A noção de essência desempenha tante, essências e atos são, para Hus-
um papel capital na filosofia de He- serl, inseparáveis (Ideen, $ 2) e, em
gel. Segundo este autor, o absoluto todo caso, os segundos apóiam-se
aparece primeiro como ser e depois nas primeiras. “Pertence ao signifi-
como essência. ““A essência é a ver- cado de todo o contingente que há
dade do ser” (Logik, L, livro II). À de possuir uma essência e, portanto,
essência é o ser em e para si mesmo um eidos para ser apreendido em to-
(An-und-Fiir sich sein), ou seja, o ser da a sua pureza” (ibid.).
em si absoluto (absolutes Ansich- Ditas essências podem ser formais
sein). A essência é o lugar interme- ou materiais. As formais pertencem
diário entre o ser e conceito; ““seu a todo tipo de objetos, reais ou
movimento se efetua do ser ao con- Ideais, ao passo que as materiais só
ceito”, com o qual se tem a tríade: afetam as esferas concretas do ser.
Ser, Essência, Conceito. O estudo das primeiras compete à
Para Santayana (cf. The Realm of ontologia “geral” ou “formal”; eo
Essence, 1927), há um ““reino de es- das essências materiais corresponde
sências*' que abrange quanto possa ao que Husserl denomina ““ontolo-
ser apreendido (pensado, concebido, glas regionais”. Também utiliza com
imaginado, etc.). Este domínio, co- frequência o termo ““eidético” para
mo o das essências platônicas, é in- singularizar o que pertence à ordem
temporal. Mas, em contraste com as da essência; assim, ciência eidética
idéias platônicas, as idélas no senti1- vem a ser, portanto, sinônimo de
do de Santayana não foram hipos- ciência das essências.
tasiadas. Pode-se dizer que as essên-
cias em Santayana equivalem a ““sig- ESTÉTICA Enquanto derivada de
nificações”' e que, por conseguinte, atobnois, sensação, Kant chama “Es-
231 ESTÉTICA

tética transcendental” à “ciência de leza a valores extra-estéticos e, em es-


todos os princípios a priori da sensi- pecial, a entidades metafísicas. À
bilidade” (Crítica da Razão Pura, B identificação do bom com o belo
35, A 21). Na “Estética transcenden- também é própria da filosofia ingle-
tal”* assim entendida, Kant conside- sa do sentimento moral, particular-
ra, em primeiro lugar, a sensibilida- mente a de Shaftesbury, e encontra-
de separada do entendimento e, em se em alguns ramos do idealismo ro-
segundo lugar, separa a intuição de mântico. Na realidade, só há relat1-
tudo o que pertence à sensação, vamente pouco tempo tentou-se criar
“com a finalidade de somente nos fi- uma estética independente, distancia-
car a intuição pura e a forma do fe- da de considerações de um tipo pre-
nômeno, que é o único que a sensi- dominantemente metafísico, lógico,
bilidade pode dar a priori” (op. cit., psicológico ou gnosiológico. Os ger-
B 36, A 22). A “Estética transcen- mes desta estética como disciplina in-
dental” distingue-se da “Lógica trans- dependente já se encontram em gran-
cendental”º, que examina os princí- de número na Antiguidade e na Ida-
pios do entendimento puro e, por- de Média, mas desenvolveram-se so-
tanto, pouco tem a ver com o que na bretudo com a crítica kantiana do
atualidade se chama estética, ciência juízo, que é em parte uma delimita-
do belo ou filosofia da arte. Neste ção de esferas axiológicas. Enquan-
último sentido, o termo ““estética” to para Baumgarten o estético era
foi empregado por Alexander Baum- apenas, segundo a tendência geral da
garten, e desde então a estética pas- escola de Leibniz-Wolff, algo infe-
sou a ser considerada uma discipli- rior e confuso diante do consciente
na filosófica, sem que isso exclua a e racional, sensitivae, Kant abordou
existência de reflexões e até mesmo o Juízo estético situando-o a par do
de sistemas estéticos na filosofia an- teleológico e examinando o que há
terior. O problema capital da estéti- de a priori no sentimento. Ambos os
ca na acepção de Baumgarten é, com Juízos são reflexivos; caracterizam-
efeito, o da essência do belo. O pro- se pela finalidade, mas enquanto es-
blema já fora dilucidado na Antigui- ta é objetiva no juízo teleológico pro-
dade, em especial por Platão, Aris- priamente dito, que se refere ao or-
tóteles e Plotino, os quais, a par de gânico, ela é subjetiva no juízo esté-
considerações estéticas mais ou me- tico, porquanto a finalidade da for-
nos “puras”, seguiram a antiga ten- ma do objeto é adequada em relação
dência para a identificação do belo ao sujeito, o que não significa pre-
com o bom na unidade do real per- cisamente em relação ao sujeito in-
feito e, portanto, subordinaram na dividual, mas a todo e qualquer su-
maioria dos casos, ao tratar de defi- Jeito, com o qual pode chamar-se a
nir a essência do belo e não simples- unidade da natureza subjetiva. O juí-
mente de averiguar em detalhe os zo estético é, pois, em primeiro lu-
problemas estéticos, o valor da be- gar, um Juízo de valor, distinto, por
|
ESTÉTICA 232

conseguinte, não só dos juízos de parte, já está pré-formada no pró-


existência mas também dos demais prio Kant. Considerada desde o pon-
Juízos axiológicos; porém, enquan- to de vista do sujeito, a estética foi
to nestes há satisfação de um desejo elaborada atendendo, sobretudo, ao
ou correspondência com a vontade que faz do juízo estético o produto
moral, na adequação do belo com o de uma vivência, tanto no caso des-
sujeito, isto é, no juízo estético por ta ser concebida como obscura intui-
meio do qual consideramos algo be- ção quanto no de ser apresentada co-
lo, não há satisfação mas agrado de- mo uma clara apreensão, como me-
sinteressado. O desinteresse caracte- ra contemplação ou como projeção
riza a atitude estética no mesmo sen- sentimental. Em contrapartida, a es-
tido de que o jogo é a atividade pu- tética desenvolvida do ponto de vis-
ramente desinteressada, a compla- ta do objeto inclinou-se especialmen-
cência sem finalidade útil ou moral. te para uma redução do estético ao
Por 1sso o estético é independente e extra-estético, para a definição da es-
não pode estar a serviço de fins trutura do belo mediante caracteriís-
alheios a ele; é, nas próprias palavras ticas que lhe são alheias. É este, por
de Kant, “finalidade sem fim”. O exemplo, o caso do idealismo alemão
belo não é reconhecido objetivamen- quando Schelling reduz a beleza à
te como um valor absoluto, uma vez identidade dos contrários no seio do
que só tem relação com o sujeito; o Absoluto, à síntese do subjetivo e do
fato de haver distintas e contraditó- objetivo, ou quando Hegel converte
rias apreciações sobre o belo não é, o belo em manifestação da Idéia.
porém, o produto dessa necessária Revela-se uma tendência análoga em
referência à subjetividade, mas o re- Schopenhauer, ao fazer da arte a re-
flexo de a atitude do sujeito ser sem- velação mais própria das idéias eter-
pre plena e puramente desinteressa- nas, pois o artista é, diante do ho-
da, dedicada à contemplação. A mem vulgar, aquele que contempla
prioridade do Juízo estético requer, serenamente as objetivações da Von-
apesar de sua referência ao sujeito, tade metafísica.
o desprendimento por parte deste de Nas últimas décadas, muitas fo-
tudo quanto seja alheio ao desinte- ram as definições propostas da esté-
resse e à finalidade sem fim. tica, algumas das quais sem reformu-
Esta concepção dita subjetiva da lar em nova linguagem as antigas
estética manteve-se ao longo do sé- concepções antes mencionadas. Po-
culo XIX e durante boa parte do sé- de-se falar assim de concepções ab-
culo atual no pensamento de nume- solutistas e relativistas, subjetivistas
rosos autores que, no entanto, mis- e objetivistas da estética, segundo
se
turaram as teses subjetivas com as considerem respectivamente a natu-
objetivas ou mostraram-se propen- reza dos Objetos estéticos ou a ori-
SOS a aderir a uma concepção
pura-
mente axiológica como, por outra so to
So due stéticos. Outras con-
propostas e sobre
233 ESTRUTURA

as quais diremos algumas palavras miótica, considera a estética como


são as seguintes: a formalista e a in- uma das partes da semiótica geral,
tuicionista, a psicológica e a socio- motivo pelo qual tem sido chamada,
lógica, a axiológica e a semiótica. As às vezes, uma semiótica não lógica.
concepções formalistas referem-se Sua principal missão é a análise dos
exclusivamente à forma dos objetos chamados signos estéticos icônicos,
estéticos. As concepções intuicionis- e sua finalidade é a consideração do
tas reduziram ao mínimo o papel dos objeto estético como veículo de co-
elementos puramente formais e esta- municação. Cumpre assinalar, a es-
beleceram uma linha divisória mui- se respeito, que a estética semiótica
to rígida entre a intuição estética e não é forçosamente incompatível
a expressão dessa intuição. As con- com a estética axiológica; alguns au-
cepções psicológicas e sociológicas tores defenderam a tese de que uma
têm em comum o fato de que tenta- teoria estética completa apóia-se tan-
ram reduzir o significado dos juízos to na teoria dos signos quanto nu-
estéticos à origem — individual e co- ma teoria dos valores.
letiva — dos mesmos. Mais comple- Faz-se, por vezes, a distinção en-
xas e, sobretudo, mais influentes são tre estética e filosofia da arte. Ou-
as duas últimas concepções mencio- tras vezes, considera-se que as duas
nadas em nossa lista: a axiológica e formam uma só disciplina. Se aten-
a semiótica, razão pela qual nos dermos agora ao conjunto de proble-
alongaremos um pouco mais a res- mas que se apresentam ao tratadista
peito delas. A estética axiológica de estética, podemos dar (sem pre-
considera a estética como a ciência tensão exaustiva) a seguinte enume-
de um grupo de valores (o belo, o ração: (1) a fenomenologia dos pro-
feio, o ordenado, o desordenado, o cessos estéticos; (2) a análise da lin-
alusivo, o expressivo, etc.). Seus dois guagem estética, comparada com as
problemas principais são: primeiro, demais linguagens; (3) a ontologia
a descrição de tais valores; segundo, regional dos valores estéticos, seja
a interpretação dos mesmos. Este úl- qual for o status ontológico que se
timo problema deu origem a múlt!- lhes atribua; (4) a origem dos juízos
plas discussões, paralelas às que estéticos; (5) a relação entre forma
ocorreram na teoria do valor em ge- e matéria; (6) o estudo da função dos
ral. Com efeito, examinou-se se os Juízos estéticos no âmbito da vida
valores em questão são absolutos ou humana; e (7) o exame da função de
relativos, se dependem do indivíduo suposições de índole estética em juí-
ou da coletividade, se estão ou não zos não estéticos (como, por exem-
vinculados a outros valores e ques- plo, os da ciência).
tões análogas. Foi inevitável, pois, a
reinserção na estética axiológica dos ESTRUTURA É comum introduzir
problemas tradicionais a que Já fize- informalmente na matemática o con-
mos referência. Quanto à estética se- ceito de estrutura como um conjun-
ESTRUTURA 234

to de elementos, tais como O e 1, e como ““articulação”, “compenetra-


uma ou mais operações, tais como ção funcional” e, por vezes, ““soli-
as indicadas por “+” ou por “+” dariedade”.
e “—”, A estrutura é descrita por Por outro lado, uma estrutura po-
todas as operações que possam ser de ser entendida como um conjunto
descritas usando o operador ou os ou grupo de sistemas. A estrutura
operadores selecionados. não é então uma realidade “compos-
Opuseram-se estruturas formais a ta”* de membros; é um modo de ser
informais ou concretas, e falou-se de dos sistemas, de tal maneira que os
estruturas físicas, biológicas, psico- sistemas funcionam em virtude da es-
lógicas ou sociais. É costume consi- trutura que têm. Assim, pode haver
derar que as estruturas concretas têm vários sistemas, digamos, A, B, C,
propriedades específicas, embora pos- que diferem por sua composição ma-
sàm ser também descritas em termos terial, mas executam funções que,
formais. embora distintas, são significativa-
As definições filosóficas do con- mente comparáveis, quer dizer, fun-
ceito de estrutura são tentativas de ções tais que tenham significações
encontrar propriedades comuns em correlativas. Um destes sistemas po-
estruturas concretas, fundamental- de, inclusive, servir de modelo a ou-
mente naquelas que correspondem a tro — como a passagem de um líqui-
um âmbito determinado de objetos. do por um canal pode servir de mo-
Formularam-se dois tipos de defi- delo para o tráfego de veículos nu-
nições. ma rodovia e vice-versa. Também
Por um lado, entende-se por ““es- pode haver, e geralmente espera-se
trutura”* algum conjunto ou grupo que haja, regras de transformação
de elementos relacionados entre s1 se- que permitam passar de um sistema
gundo certas regras, ou algum con- a outro.
junto ou grupo de elementos funcio- A noção de estrutura foi entendi-
nalmente correlacionados. Os ele- da nos dois sentidos antes indicados,
mentos em questão são considerados mas com tendência para adotar o se-
mais como membros do que como gundo, que é, ademais, o próprio dos
partes. O conjunto ou grupo é um que se consideram estruturalistas.
todo e não uma ““mera soma”. As- Os modos de entender a noção de
sim, os membros de um todo desta estrutura variam segundo os tipos de
índole cumprem os requisitos estabe- Investigação levados a efeito. Um
lecidos para os “todos”: estão inter- dos mais importantes e influentes
ligados de tal formaque se pode fa- usos desta noção encontra-se na psi-
lar de não-independência relativa de cologia, no âmbito da chamada Ges-
uns com outros, e também de com- talpsychologie, expressão que tem s!-
penetração mútua. Por isso na des- do traduzida ora como ““psicologia
crição de uma estrutura desta natu- da estrutura”, ora como ““psicologia
reza destaca-se o uso de vocábulos da forma”. O ““gestaltismo””, como
235 ESTRUTURALISMO

também costuma ser chamado, é na França, com autores como Claude


uma das grandes manifestações do Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Louis
estruturalismo do século XX e con- Althusser, Michel Foucault, Roland
tribuiu para o seu florescimento tan- Barthes — alguns dos quais, como
to, pelo menos, quanto as concep- sucede amiúde nestes casos, negam
ções estruturais linguísticas, já a par- ser, ou ser unicamente, estruturalis-
tir de Ferdinand de Saussure. Outro tas. Isso restringe o nosso concelto
exemplo é a linguística estrutural. O consideravelmente, mas considera-
interesse da filosofia pelas estruturas mos preferível este procedimento ao
aumentou consideravelmente como da extensão desmedida. Por outro la-
consequência, em termos concretos, do, a restrição apontada não signi-
do estruturalismo francês contempo- fica que deixemos de lado aqueles a
râneo. quem os próprios estruturalistas con-
sideram antecessores importantes de
ESTRUTURALISMO Se dermos a suas próprias obras: Saussure, Já
este termo o sentido muito genérico mencionado, Freud e Marx. Menos
de estudo de quaisquer estruturas em ainda se esquecem antecedentes mais
qualquer dos sentidos que se pode imediatos do estruturalismo em nos-
dar a “estrutura” (ver), então cabe- sa acepção: o chamado ““estrutura-
rá chamar ““estruturalistas” a mui- lismo linguístico” dos críticos forma-
tas doutrinas e opiniões, talvez a listas russos e das Escolas de Praga
todas. e Copenhague, especialmente com
Deste ponto de vista, pode-se fa- Roman Jakobson, N. S. Trubetzkoy
lar de estruturalismo na matemática e L. Hjelmslev. Há autores que não
a partir da teoria dos grupos de Gau- costumam ser incluídos entre os es-
lois, destacando-se então a álgebra
truturalistas stricto sensu, mas cuja
de relações e a topologia. A culmi!-
obra é, em muitos aspectos, parale-
nação desse estruturalismo é a série la à deles e antecipa não poucos de
de tratados matemáticos conhecidos
seus temas. E o caso de Jean Piaget.
com o nome (coletivo) de Bourbaki.
Para evitar confusões, resolvemos Há também autores que procedem
de outra tradição, mas desenvolvem
tratar várias formas de “estrutura-
lismo” anteriores ao final da Segun- temas de interesse para o menciona-
da Guerra Mundial no corpo do ver- do estruturalismo contemporâneo. O
bete ESTRUTURA, reservando o mais destacado é Noam Chomsky.
presente para um conjunto de cor- A menção de Chomsky neste con-
rentes contemporâneas em várias dis- texto requer um esclarecimento a res-
ciplinas, e com as correspondentes peito do uso do termo ““estruturalis-
ressonâncias filosóficas. Assim, por mo”. E frequente empregá-lo para
antonomásia, chamaremos ““estrutu- referir-se sobretudo, senão exclusi-
ralismo”' ao tipo de investigações e vamente, ao “estruturalismo euro-
idéias que floresceu, especialmente peu” e a seus antecedentes nesse con-
ESTRUTURALISMO 236

tinente. Mas houve, e persiste no âm- alcançados pela fonologia estrutura-


bito da linguística, um movimento lista, em especial a de Jakobson, ao
estruturalista norte-americano, o da mostrar que ““as regras fonológicas
chamada ““lingúística estrutural”, re- de uma grande variedade de lingua-
presentada eminentemente por Leo- gens aplicam-se a classes de elemen-
nard Bloomfield e seus seguidores — tos que podem ser simplesmente ca-
os linguistas norte-americanos ““pós- racterizados em função dessas carac-
bloomfieldianos”'. A lingiística es- terísticas”* (op. cit., p. 65). O prima-
trutural norte-americana conta entre do da dimensão sincrônica sobre a
seus cultivadores Zellig Harris, O diacrônica, em que tanto insistiram
mestre de Chomsky. Este partiu de os estruturalistas como Lévi-Strauss,
certos contextos próprios da mencio- é admitido por Chomsky quando
nada lingúística e, em especial, os de menos como uma noção promisso-
Harris — com o interesse predomi- ra. Se somarmos a 1sso certas afini-
nante pelas questões sintáticas e a dades entre Lévi-Strauss e Chomsky
“análise de constituintes imediatos”; — apesar de o primeiro ter adotado
ao mesmo tempo, encontram-se em modelos estruturais a que Chomsky
Harris antecipações no sentido da se opôs — compreender-se-á que
construção de modelos gerativos. Chomsky possa ser considerado, por
Entretanto, Chomsky logo se sepa- um lado, um “antiestruturalista”* —
rou da linguística estrutural, e ata- sobretudo a respeito do estruturalis-
cou as bases behavioristas e as orien- mo linguístico bloomfieldiano — e,
tações taxonômicas da mesma, pelo por outro, que algumas de suas
que passou então a figurar entre os idéias fossem encaradas favoravel-
“antiestruturalistas”. Em vista dis- mente por vários estruturalistas eu-
so, é compreensível a sua atitude em ropeus.
relação a Lévi-Strauss, tal como foi Ora, mesmo restringindo o signi-
expressa em Language and Mind ficado de ““estruturalismo”* do mo-
(1968). Chomsky considera interes- do sugerido no início, torna-se difí-
sante o esforço de Lévi-Strauss para cil — embora não mais do que no ca-
ampliar o estudo das estruturas lin- so de qualquer outro amplo movi-
gúuísticas a outros sistemas, de con- mento filosófico — descrever com
figuração parecida aos sistemas lin- precisão suas principais característi-
guisticos — assim, por exemplo, o cas. Nas exposições do estruturalis-
estudo feito por Lévi-Strauss dos sis- mo, alguns se baseiam principalmen-
temas de parentesco e do pensamen- te em Lévi-Strauss, que parece, de
to primitivo. Não obstante, contra- fato, acumular a maior parte de suas
põe-se a Lévi-Strauss na medida em características; outros combinaram
que este adotou como modelo a lin- OS traços comuns a vários autores,
gúiística estrutural do tipo de Tru- como Lévi-Strauss e Louis Althus-
betzkoy e Jakobson. Chomsky reco- ser, ou Lévi-Strauss e Jacques La-
nhece a importância dos resultados can, ou Michel Foucault e Roland
237 ESTRUTURALISMO

Barthes. Mesmo correndo o risco de turas verbais; quer dizer apenas que
que alguns dos traços que se mencio- o modelo repetidamente usado para
narão a seguir não estejam presen- examinar a natureza e o funciona-
tes em alguns autores, ou que vários mento das estruturas é um modelo
deles sejam mais perceptíveis ou es- que, na maioria dos casos, pode
tejam mais desenvolvidos em outros reduzir-se a um modelo de linguagem
autores do que nos ““estruturalistas verbal.
franceses” — Piaget ou Chomsky ou É comum ver-se o estruturalismo
Jakobson — achamos que, com ba- insistir em que se trata de um méto-
se neles, pode-se compreender a ten- do de compreensão da realidade —
dência geral estruturalista. e, de um modo específico, das real1-
Em primeiro lugar, ainda que al- dades humanas socialmente consti-
guns estruturalistas se opusessem ao tuídas —, mas é frequente a ocorrên-
funcionalismo — como ocorre com cia, para além dos programas meto-
Lévi-Strauss em relação a Malinows- dológicos, de pressupostos de natu-
ki — a idéia de função desempenha reza ontológica, de acordo com os
um papel importante no estruturalis- quais as realidades em questão são
mo. Em todo caso, há certas carac- formadas estruturalmente. Não se
terísticas no estruturalismo que estão nega, em princípio, que existam cau-
próximas da noção de função em au- sas e relações causais, nem tampou-
tores como Durkheim. Outras não co que ocorram mudanças — e es-
são inteiramente distintas da noção pecificamente mudanças de caráter
de tipo ideal, tal como foi proposta histórico. Não obstante, é em fun-
e desenvolvida por Max Weber. Vá- ção de relações de significação e de
rias delas estão muito próximas da formações sincrônicas que tanto as
generalização funcionalista de A. R. relações causais quanto os desenvol-
Radcliffe-Brown. O que importa, vimentos diacrônicos são entendidos.
porém, é a idéia de estrutura enten- O estruturalismo opõe-se geralmen-
dida como um sistema ou como um te ao causalismo e ao historicismo.
conjunto de sistemas. Há sistemas de Na maioria dos estruturalistas,
classes muito diversas: o sistema que manifesta-se a tendência para supor
constitui as regras de urbanidade ou que, subjacentes em certas estrutu-
de etiqueta numa sociedade, ou nu- ras que podem ser consideradas su-
ma classe social: o sistema de sinais perficiais, haja estruturas profundas.
de trânsito; o sistema de relações fa- Por um lado, há correlação entre os
miliares; o sistema de linguagem, etc. dois tipos de estrutura. Por outro la-
De certa forma, todos os sistemas do, as estruturas superficiais não são
que constituem uma estrutura são mera manifestação de estruturas pro-
sistemas linguísticos, de modo que fundas. A correlação em questão
estrutura é mutatis mutandis estru- consiste em que para toda e qualquer
tura linguística. Isto não significa estrutura superficial há alguma estru-
que se trate exclusivamente de estru- tura profunda; assim, as estruturas
ESTRUTURALISMO 238

superficiais da linguagem, na medi- o inverso. Por essa razão fala-se, às


da em que são séries de proferições, vezes, de “mecanismos” — sem que
estão correlacionadas com as estru- se tenha de dar a este termo um sen-
turas profundas da linguagem en- tido “mecanicista” clássico — que
quanto conjuntos de regras. Mas 1s- agem como forças estruturantes e
so não forma uma correlação biuni- podem qualificar-se, inclusive, de
voca; a vários modos de falar que “inatos”. Não há nada humano —
parecem independentes entre sl po- e até possivelmente nada orgânico —
de corresponder uma só regra estru- que seja infinitamente maleável. O
tural profunda e, ao mesmo tempo, número de possíveis estruturas em
um modo de falar que parece serdeúni-
vá-
cada caso é limitado. Sob um gran-
de número de variações superficiais
co é interpretável em função
rias estruturas profundas possíveis. existe uma quantidade limitada de
A linguagem é aqui apenas um exem- estruturas profundas. Os próprios
plo, embora frequentemente predo- modelos de relações são, ou podem
minante, se levarmos em conta a ser, distintas manifestações de um
abundante referência dos estrutura- único modelo estrutural. No entan-
listas a “signos”, “significantes”, to, fala-se por vezes de modelo co-
etc., assim como à distinção entre mo algo correspondente a uma estru-
sintagma e paradigma, tomada do tura e define-se o modelo como uma
domínio lingúístico. Seria um erro, série de caracteres recorrentes.
porém, caracterizar exclusivamente As estruturas são inacessíveis à ob-
o estruturalismo de que estamos aqui servação e às descrições observacio-
falando como uma transferência de nais. Por outro lado, não são resul-
modelos lingúísticos para os vários tados de nenhuma indução genera-
domínios das ciências humanas. A lizadora. Por este motivo foi alega-
linguagem obedece a regras estrutu- do, algumas vezes, que não há estru-
rais, assim como quaisquer outros turas, propriamente falando. Em
fenômenos humanos. Em todos eles certa medida, elas não existem, pelo
funcionam sistemas de substituições menos no sentido em que há obje-
cuja formalização tem, de um mo- tos ou propriedades de objetos. As
do geral, caráter combinatório. estruturas não são, portanto, equi-
Alguns estruturalistas tendem a re- paráveis a realidades últimas, de ca-
duzir ao mínimo
e até a eliminar por
completo, pelo menos do ponto de
ráter metafísico. São, metodologica-
mente falando, princípios de expli-
vista metodológico, o homem como cação e, ontologicamente falando,
sujeito e as infinitas circunstâncias e formas segundo as quais as realida-
mudanças na história. Se há mudan- des se articulam.
ças, não são alterações dentro de uma Segundo Jean Piaget, “uma estru-
continuidade histórica mas ““cortes”. tura é um sistema de transformações
Isso significa que os homens estão que, enquanto sistema, comporta leis
“submetidos” às estruturas e não (em oposição a propriedades de ele-
239 ESTRUTURALISMO

mentos) e se conserva ou se enrique- sociais — que foram as mais inves-


ce pelo próprio jogo dessas transfor- tigadas por estruturalistas contempo-
mações, sem que estas transponham râneos — pressupõe-se a existência
suas fronteiras ou recorram a ele- de modelos de vida social que têm de
mentos exteriores. Numa palavra, ser explicados sincronicamente.
uma estrutura abrange, pois, as três Há uma distinção que pode ser bá-
características de totalidade, trans- sica entre estruturalismo, por uma
formação e auto-regulação” (op. parte, e “atomismo” (no sentido
cit., infra, pp. 6-7). Esta definição muito geral deste termo) e organicis-
de Piaget foi considerada por alguns
mo, por outra parte. Uma concep-
excessivamente ampla e destinada a ção inteiramente “atomista” tende-
mostrar a existência de alto comum rá a considerar toda entidade como
em estruturas de natureza muito di- composta de elementos nos quais a
versa — matemáticas e lógicas, físi- entidade pode analisar-se ou ““de-
cas e biológicas, psicológicas, lin- compor-se”", de modo que, se cha-
gúísticas e sociais. Parece, em todo
marmos a qualquer entidade E e aos
caso, que uma das características elementos de que ela se compõe, c:,
apontadas — a de totalidade — vai C2 ... Cn, todo E será composto de
mais além das concepções estrutura-
C1, Co ... Cn. Uma concepção organi-
listas, e outra — a de auto-regulação cista tenderá a conceber que as enti-
— corresponde somente a determi-
dades são como organismos e que
nadas estruturas. Mas a caracterís-
nenhum deles é analisável ou decom-
tica de transformabilidade não po-
de ser eliminada das estruturas. Os ponível em elementos. Uma concep-
estudos estruturalistas consistem, em ção estruturalista tenderá a pensar
grande parte, em levar a efeito trans- que, ainda que haja elemento últi-
formações que possibilitam a passa- mos, estes formam conjuntos em vir-
tude de suas relações mútuas. Mas,
gem de uma estrutura a outra me-
diante mudança em seus elementos além disso, inclinar-se-á a pensar
que não alteram o sistema estrutu- que, uma vez constituído um conjun-
ral. John Mepham indicou que, ““de to, este se relacionará com outros.
um modo geral, é certo que as for- Assim, o estruturalismo em geral não
mas de regularidade empírica, cujo se opõe, em princípio, à análise de
estudo pode permitir a descoberta da um conjunto de elementos. Afirma,
coerência subjacente num sistema se- contudo, que os conjuntos podem
mântico, não são correlações nem relacionar-se entre si funcionalmen-
generalizações empíricas (como fre- te, sem necessidade de que, em cada
quentemente se pensou ser caso a
oO
caso, se decomponham em seus ele-
respeito dos sistemas estudados pela mentos.
física e a química) mas transforma- Dado o tom geral das considera-
ções” (op. cit., infra, p. 158 da trad. ções acima, é óbvio que, ou podem
espanhola). No caso das estruturas facilmente enquadrar-se nelas todos
ETERNIDADE 240

Os estruturalistas, ou nenhum deles ralismo ““crítico””. Em ambos os ca-


fica razoavelmente caracterizado por sos são óbvias as contribuições rece-
elas. Por muito paradoxal que pare- bidas da tradição linguística estrutu-
ça, O único modo de entender corre- ral na linha Saussure-Jakobson. A
tamente em que consiste o estrutu- psicanálise estruturalista é represen-
ralismo contemporâneo é descrevê- tada por Jacques Lacan. Fala-se de
lo em termos diacrônicos e, além dis- um estruturalismo marxista, ou de
so, esboçar as principais idéias da- um marxismo estruturalista, no ca-
queles que foram chamados amiúde, so de Louis Althusser, o qual utili-
e a despeito deles próprios, ““estru- zou métodos estruturalistas, mas sem
turalistas”". Roland Barthes obser- adotar nenhuma ““filosofia” estru-
vou que o estruturalismo não é (ain- turalista stricto sensu. Alguns con-
da) uma escola ou um movimento; sideram que Michel Foucault é o fi-
é uma atividade, de modo que cabe
lósofo do estruturalismo; o próprio
falar da atividade estruturalista co- Foucault nega ser estruturalista, se
mo se fala da atividade surrealista. bem que, dentro das correntes filo-
Essa atividade, mais do que um gru- sóficas contemporâneas, o estrutu-
po de idélas comuns, caracteriza a ralismo seja a que apresenta maio-
obra dos autores mencionados no
res afinidades com suas análises.
início deste verbete. A obra que foi
identificada mais plenamente com
ETERNIDADE Em dois sentidos
esse estruturalismo é, conforme se
costuma-se entender a palavra ““eter-
assinalou, a de Lévi-Strauss. Sucede-
nidade”*: num sentido comum, se-
lhe, em ordem de aproximação, a
obra de Roland Barthes. Faz-se men- gundo o qual significa o tempo infi-
ção, por vezes, ao grupo Tel Quel, nito, ou a duração infinita, e, num
ou dos colaboradores da revista Tel sentido mais corrente entre muitos fi-
Quel, que representaram um estru- lósofos, segundo o qual significa al-
turalismo ““textual””, ou estudo es- go que não pode ser medido pelo
truturalista de textos; daí provém a tempo, porquanto transcende o tem-
expressão muito repetida ““a escritu- po. Os gregos, filósofos ou não, en-
ra de”: lecriture de (e, correlativa- tenderam frequentemente ““eternida-
mente, leitura de: lecture de). Mas de” no primeiro sentido. Este se
entre os colaboradores dessa revista apresenta com especial vivacidade
figuram Michel Foucault e Jacques nas doutrinas dos filósofos pré-
Derrida, nenhum dos quais e em par- socráticos, quando dizem que a rea-
ticular o segundo quer ser identifi- lidade primordial é eterna (quer di-
cado com o estruturalismo. Como zer, sempiterna), ou quando defen-
Lévi-Strauss representa o estrutura- dem a teoria do eterno retorno. No
lismo antropológico, Roland Barthes próprio Platão temos este sentido em
representa o estruturalismo ““literá- algumas passagens, tais como no Fé-
rio” ou, melhor dizendo, o estrutu- don (103 E), onde se refere à dura-
241 ETERNIDADE

ção eterna ou por todo o tempo, vel do eterno que se move de acor-
ES TÔV QeL Xpóvor, que pertence às do com o número: uévovTOS QLLWVOS
formas (outra passagem de tipo aná-
logo em Rep., X, 608 D). E em Aris-
év
pior
évi xaT cLoDoaAr OLkKWYLOV

etkóva. Com isso, admite-se um con-


tóteles encontra-se o sentido de traste entre “eterno”, alwyrros, €
“eternidade” como duração infini- “sempiterno”' ou ““perdurável”,
ta em suas asserções acerca da eter- &&idros. Mas o fato de a eternidade
nidade do movimento circular não ser a infinita perduração tempo-
(Phys., VIII, 8, 263 a 3), da existên- ral não significa que seja algo opos-
cia das coisas eternas ““desde o prin- to ao tempo. A eternidade não nega
cípio”* (Mer., O 9, 1051 a 20) e ain- o tempo; pelo contrário, acolhe-o,
da sobre a eternidade de uma das três por assim dizer, em seu seio: o tem-
classes de substâncias: as substâncias po move-se na eternidade, que é O
que são simultaneamente sensíveis e seu modelo. Estas idéias foram re-
eternas (Mert., A1, 1069 a 31 b). Ora, colhidas e elaboradas por Plotino.
ao mesmo tempo que se empreendeu No cap. VII da sua terceira Enéada,
a análise da relação entre eternida- indica Plotino que a eternidade não
de e tempo, também se descobriu pode reduzir-se à mera inteligibilida-
não ser fácil medir aquela por meio de nem ao repouso (um dos cinco
deste. Isso se observa na famosa pas- grandes gêneros do ser estabelecidos
sagem de Platão no Timeu (37 D), por Platão no Sofista). Além dessas
onde se diz que antes da criação do características, a eternidade possui
céu não havia noites nem dias, me- duas propriedades: unidade e indivi-
ses nem anos. Essas medidas do tem- sibilidade. Uma realidade é eterna,
po — que são partes do tempo — portanto, não quando é algo num
surgiram ao criar-se o céu. E um er- momento e uma coisa diferente em
ro, portanto, transferir para a essên- outro momento, mas quando é tu-
cia eterna o passado e o futuro, que do ao mesmo tempo, ou seja, quan-
são espécies criadas de tempo. Da es- do possui “uma perfeição indivisí-
sência eterna dizemos, por vezes, que vel”, A eternidade é, por assim di-
foi ou que será, mas na verdade só zer, o “momento” de absoluta esta-
podemos dizer dela que é. Com efei- bilidade da reunião dos inteligíveis
to, o que é imóvel não pode chegar num ponto único. Por isso, como em
a ser mais jovem nem mais velho. Da Platão, não se pode falar de futuro
eternidade se diz que é sempre, mas nem de passado; o eterno encontra-
deve destacar-se mais o “é” do que se sempre no presente; é o que é e é
o “sempre”. Por este motivo, não sempre o que é. Ao dizer-se que o
sepode dizer que a eternidade seja eterno é o que é, pretende-se dizer,
uma projeção do tempo ao infinito. em última instância, que possui em
Cabe dizer, no entanto, que o tem- si a plenitude do ser e que passado
po é a imagem móvel da eternidade, e futuro encontram-se nele como que
quer dizer, uma imagem perdurá- concentrados e recolhidos. A análi-
ETERNIDADE 242

se de Plotino insiste continuamente transcorre no tempo, currens in tem-


neste caráter de concentração do pore. Por outro, temos a eternida-
eterno nesse ser total não composto de, aeternitas, a qual constitui o eter-
de partes mas, antes, gerador de par- no estando e permanecendo, stans et
tes. A rigor, não haveria de se dizer permanens. A eternidade é à posse
da natureza eterna que é eterna mas, inteira, simultânea e perfeita, de uma
simplesmente, que é — a saber, que vida interminável, interminabilis vi-
é verdade. O tempo (ver) é por 1SSOo tae tota simul et perfecta possessio
queda e imagem da eternidade, a (De consol., V). Santo Tomás acei-
qual não é mera abstração do ser tou esta definição em várias passa-
temporal mas fundamento desse ser. gens de suas obras (cf. 1 sent., 8, 2,
A eternidade é o fundamento da 1
c; De potentia, q. 3 [De creatione],
temporalidade. art. 14: S. Theol., 1,9, X, i-vi). Nos
Analogamente, Proclo (Znst. comentários às Sententiae, a defini-
Theol., props. 52-55; ed. Dodds, ção de Boécio é apresentada e co-
51-55) assinalou que o eterno, atow- mentada em termos aprovadores.
vlov, significa o que é sempre, ro àel Em De potentia aparece o contraste
ov, mas como algo distinto da exis-
tência temporal ou devir.
"entre a duração do mundo
e a eter-
nidade; somente esta última é onis-
A meditação agostiniana sobre o simultânea, tota simul. Na S. Theol.,
eterno desenvolve-se por um cami- apresenta-se o problema da eternida-
nho parecido. A eternidade não po- de de Deus e formulam-se as seguin-
de ser medida, segundo Santo Agos- tes questões: (1) Que é a eternidade?
tinho, pelo tempo, mas não é sim- (2) Deus é eterno? (3) Deus é a úni-
plesmente o intemporal: ““a eternida- ca realidade eterna? (4) Qual é a di-
de não tem em si nada que passa; ne- ferença entre a eternidade e o tem-
la está tudo presente, coisa que não po? (5) Qual é a diferença entre a evi-
ocorre com o tempo, o qual jamais ternidade e o tempo? (6) Há somen-
pode estar verdadeiramente presen- te eviternidade, assim como há um
te”*. Por isso a eternidade pertence tempo e uma eternidade? Interessa-
a Deus num sentido parecido a co- nos aqui, em especial, a questão (1),
mo no neoplatonismo pertence ao mas referir-nos-emos ocasionalmente
Uno. Portanto, Santo Agostinho às outras questões, sobretudo com o
acentua a plenitude do eterno dian- propósito de definir o conceito de
te da indefinição do meramente per- eviternidade. Digamos desde já que
durável e da abstração do simples- Santo Tomás não só aprova a cita-
mente presente num momento. O da definição de Boécio, mas ainda a
mesmo ocorre ém Boécio. A diferen- defende contra as objeções que ha-
ça entre os dois conceitos de eterni- viam sido apresentadas em seu des-
dade é esclarecida por meio de dois favor. Sublinhemos, em particular,
termos. Por um lado, temos a sem- a Objeção contra a simultaneidade,
piternidade, sempiternitas, a qual objeção esta que depois foi muito de-
243 ETERNIDADE

senvolvida pelos partidários de Duns futuro e possa dizer-se que são imu-
Escoto. Segundo ela, a eternidade táveis em suas operações — pensa-
não pode ser onissimultânea, pois mentos e “propósitos” —, existe su-
quando as Escrituras se referem a cessão real, ainda que não contínua,
dias e épocas na eternidade, a refe- como no caso do tempo. A eviterni-
rência é no plural. Santo Tomás ale- dade é onissimultânea, mas não é a
ga que, assim como Deus, embora eternidade, pois o antes e o depois
incorpóreo, é nomeado nas Escritu- são compatíveis com ela. Assim, a
ras mediante termos que designam eternidade é uma imobilidade com-
realidades corpóreas, também a eter- pleta, sem sucessão, e a eviternida-
nidade, embora onissimultânea, é de é uma imobilidade essencial, uni-
designada por nomes que implicam da à mobilidade acidental. O tempo
tempo e sucessão. À este argumento tem antes e depois; a eviternidade
pode juntar-se outro de natureza não tem em si antes nem depois, mas
mais filosófica: que a eternidade é estes podem ser conjugados; a eter-
onissimultânea justamente porque é nidade não tem antes nem depois,
necessário eliminar de sua definição nem ambos se coadunam. Por isso
o tempo, ad removendum tempus. a eviternidade não pode, como a
Torna-se possível com isso distinguir eternidade, coexistir com o tempo,
rigorosamente entre a eternidade e o excedendo-o ao infinito, nem coexis-
tempo: a primeira é simultânea e me- tir com os acontecimentos medidos
de o ser permanente; o segundo é su- pelo tempo, exceto no instante em
cessivo e mede todo movimento. que se produzem as operações que
Também se torna assim possível dis- permitem tal medição.
tinguir entre a eviternidade (aevum) Um dos problemas freqiientemen-
e o tempo. Aparentemente trata-se te discutidos na Idade Média e parte
da mesma coisa. Mas não: a eviter- da época moderna foi se o mundo é
nidade difere, segundo Santo To- ou não é eterno: o problema de ae-
más, do tempo e da eternidade co- ternitate mundi. Os autores cristãos
mo o meio entre os extremos. Com admitem como dogma que o mun-
efeito, a eviternidade é a forma de do foi criado do nada; por conse-
duração própria dos espíritos puros. guinte, concluem que o mundo não
Não se pode dizer deles que estão no é eterno e, em todo caso, não tem a
tempo enquanto medida do moviI- eternidade que corresponde a Deus.
mento em função do anterior e do Contudo, nem todos os teólogos e fi-
posterior. Tampouco se pode afir- lósofos cristãos trataram a questão
mar a respeito deles que sejam eter- da mesma maneira. Santo Agostinho
nos, pois a eternidade pertence ex- não se limitou a afirmar que o mun-
clusivamente a Deus. Por isso há que do não é eterno; sustentou poder
se dizer que são eviternos. E 1sso sig- provar-se que não o é. São Boaven-
nifica que, embora em sua natureza tura e outros autores seguiram San-
não haja diferença entre passado e to Agostinho neste ponto. Deste mo-
ETERNIDADE 244

do refutou-se o averroísmo, o qual ca da Razão Pura, À 426-454; ver


interpretava Aristóteles sustentando ANTINOMIA). Diferentemente de
que o mundo é eterno. Por outro la- Santo Tomás, não obstante, Kant
do, Santo Tomás negava que o mun- tratou de mostrar que pode provar-
do fosse eterno. Mas nos escritos se tanto a eternidade quanto a não-
acerca desta questão (2 sent., I qu. eternidade. Mas isso equivale a di-
l art. 5; Cont. Gentr., II, 31-38; zer que nenhuma das duas proposi-
Quaest. disp. de pot., qu. 3, art. 17; ções pode ser propriamente ““prova-
S. Theol., LI, qu. VII, arts. 2-4 e qu. da”: não se trata de conhecimentos,
XLVI arts. 1 e 2; Quaest. quodlib., mas de puras “idéias da Razão”,
quod. 9 e 12, e De aeternitate mun- cujas provas não se aplicam aos fe-
di; textos comentados por A. Ant- nômenos.
weller, op. cit. infra), Santo Tomás Durante a época moderna, o con-
mostrava que, embora não possa ser ceito de eternidade foi tratado em
demonstrada a eternidade do mun- sentidos semelhantes aos ressaltados
do, tampouco se pode demonstrar a pelos filósofos medievais. Mas, além
sua não-eternidade. A autoridade de disso, considerou-se o problema de
Aristóteles não é suficiente a tal res- se o mundo é ou não eterno, e esse
peito. Mas tampouco os argumentos problema chegou ainda a adquirir
produzidos são convincentes. “Con- primazia sobre os demais em que está
tra [os averroístas], Santo Tomás de envolvida a questão de eternidade.
Aquino defende a possibilidade de Alguns autores, como Giordano Bru-
um começo do universo no tempo, no, afirmaram — ou, melhor dizen-
mas também sustenta, inclusive con- do, exaltaram — a idéia da eterni-
tra murmurantes, a possibilidade de dade do mundo sem dar demasiadas
sua eternidade. É indubitável que o precisões sobre o sentido de ““é eter-
nosso filósofo utilizou, para resolver no”. Outros autores interessaram-se
o problema da criação, os resultados por oferecer definições mais ou me-
obtidos por seus antecessores, em es- nos formais da eternidade. Assim, na
pecial por Alberto Magno e por Mai- Etica (1, def. vil), Spinoza diz que
mônides. Mas a posição que adota entende por eternidade ““a própria
não se confunde com nenhuma das existência, enquanto é concebida co-
posições assumidas por seus prede- mo necessariamente decorrente da
cessores”* (E. Gilson, Le Thomiste, simples definição da coisa eterna”
5? edição, 1947, p. 213). [Ver EX (Per aeternitatem intellizo ipsam
NIHILO NIHIL FIT] existitiam, qua tenus ex sola rei ae-
Ainda que numa acepção muito terna definitione necessario sequi
diversa da tomista, a idéia de que concipitur), e acrescenta que tal exis-
não se pode demonstrar a eternida- tência não pode ser explicada me-
de nem a não-eternidade do mundo diante a duração ou o tempo, mes-
foi destacada por Kant na ““primei- mo quando a duração for concebi-
ra antinomia”' da razão pura (Críti- da sem princípio nem fim. Alguns
245 ÉTICA

pensadores, como Locke e Condil- trata-se de saber se uma ação, uma


lac, examinaram a noção de eterni- qualidade, uma ““virtude” ou um
dade do ponto de vista da formação modo de ser são ou não “éticos”. As
psicológica de sua idéia. Assim, Loc- virtudes éticas são para Aristóteles
ke afirma (Essay, LI, 11, 14) que a idéia aquelas que se desenvolvem na prá-
de eternidade promana da mesma tica e que estão orientadas para a
impressão original de que surge tam- consecução de um fim, enquanto as
bém a idéia de tempo (idéla de su- dianoéticas são as virtudes propria-
cessão e duração), mas procedendo mente intelectuais. Às primeiras per-
in infinitum (e concebendo que a ra- tencem as virtudes que servem para
zão subsiste sempre com o propósi- a realização da ordem na vida do Es-
to de ir mais longe). Quanto a Con- tado — a justiça, a amizade, o va-
dillac, assinala (Traité des Sensa- lor, etc. — e têm sua origem direta
tions, LI, il, S$ 13 e 14) que sua ima- nos costumes e no hábito, razão pe-
ginária estátua pode também adqui- la qual podem chamar-se virtudes de
rir a noção de eternidade enquanto hábito ou tendência. Às segundas,
duração indefinida das sensações que em contrapartida, pertencem as vir-
se precederam e das que costumam tudes fundamentais, as que são co-
se seguir. Ao proceder deste modo,
mo os princípios das éticas, as vir-
tanto Locke quanto Condillac tende- tudes da inteligência ou da razão: sa-
ram a considerar a eternidade como bedoria, copia, e prudência, poórn-
uma idéia de tempo sem princípio ous. Na evolução posterior do sentido
nem fim e, por conseguinte, a usar do vocábulo, o ético identificou-se
o método de entender o eterno co-
cada vez mais com o moral, e a éti-
mo ampliação até o infinito do tem-
ca chegou a significar propriamente
poral. Finalmente, outros, como He-
gel, sublinharam o momento da in- a ciência que se ocupa dos objetos
temporalidade ao declarar que a eter- morais em todas as suas formas, a
nidade é a intemporalidade absoluta, filosofia moral.
absolute Zeitlosigkeit, do conceito Antes de descrever os problemas
ou do espírito. fundamentais da Ética, tal como se
apresentam ao filósofo contemporãâ-
ÉTICA O termo ““ética”' deriva de neo, ocupar-nos-emos brevemente
hos, que significa “costume” e, da história da ética e das posições ca-
por isso, a ética foi definida com fre- pitais adotadas ao longo dela. Cum-
quência como a doutrina dos costu- pre advertir, antes de tudo, que a his-
mes, sobretudo nas correntes de tória da ética como disciplina filosó-
orientação empilrista. A distinção fica é mais limitada no tempo e no
aristotélica entre as virtudes éticas, material tratado do que a história
dlavontTiXAL AQkETAL, indica que oO das idélas morais da humanidade.
termo “ético” é tomado primitiva- Esta última história compreende o
mente só num sentido ““adjetivo”: estudo de todas as normas que regu-
ÉTICA 246

laram a conduta humana desde os porta neste caso que a justificação de


tempos pré-históricos até Os nossos um sistema de idéias morais seja ex-
dias. Esse estudo não é só filosófico tramoral (por exemplo, que se baseie
ou histórico-filosófico, mas também numa metafísica ou numa teologia);
social. Por este motivo, a história das o decisivo é que haja uma explica-
idéias morais — ou, se se prefere el!- ção racional das idéias ou das nor-
minar o termo “história”, a descri- mas adotadas. Por este motivo, os
ção dos diversos grupos de idéias historiadores da ética costumam se-
morais — é um tema de que se ocu- guir os mesmos procedimentos e
pam disciplinas tais como a sociolo- adotar as mesmas divisões propostas
gia e a antropologia. Ora, a existên- pelos historiadores da filosofia. Is-
cia de idéias morais e de atitudes mo- to provoca para a história da ética
rais não implica, porém, a presença o mesmo problema criado na histó-
de uma disciplina filosófica particu- ria da filosofia, a saber, o de averi-
lar. Assim, por exemplo, podem es- guar se é justo limitar essa história
tudar-se as atitudes e idéias morais ao Ocidente e se não se deveria tam-
de diversos povos primitivos, ou dos bém introduzir capítulos sobre a éti-
povos orientais, ou dos judeus, ou ca filosófica de vários povos orien-
dos egípcios, etc., sem que o mate- tais, especialmente os da China e da
rial resultante deva forçosamente Índia, nos quais parece terem sido
enquadrar-se na história da ética. suscitadas questões filosóficas aná-
Em nossa opinião, por conseguinte, logas às que existiram no Ocidente
só há história da ética no âmbito da e, por conseguinte, problemas éticos
história da filosofia. Ainda assim, a suscetíveis de serem descritos e his-
história da ética adquire, por vezes, toriados filosoficamente. A respos-
uma considerável amplitude, por- ta que damos a esta questão é a mes-
quanto fica difícil, com frequência, ma que demos ao tratar do proble-
estabelecer uma separação rigorosa ma da filosofia oriental. Com efei-
entre os sistemas morais — o objeto to, consideramos que mesmo que em
próprio da ética — e o conjunto de outras comunidades distintas da oci-
normas e atitudes de caráter moral dental se tenham produzido idéias
predominantes numa dada socieda- morais, e inclusive alguns ““siste-
de ou numa determinada fase histó- mas” importantes de idéias morais,
rica. Com o fim de solucionar este a consideração da ética como disci-
problema, os historiadores da ética plina filosófica “especial” surgiu so-
limitaram seu estudo àquelas idéias mente “em sua maturidade” no Oci-
de caráter moral que possuem uma dente, de modo que uma história da
base filosófica, ou seja, que, em vez ética filosófica coincide com uma
de se darem simplesmente como su- história da ética ocidental.
postas, são examinadas em seus fun- De fato, esta história começou so-
damentos; por outras palavras, são mente, de um modo formal, com
filosoficamente justificadas. Não im- Aristóteles, com cujas idéias sobre
a
247 ÉTICA

ética e as virtudes éticas iniciamos es- a ocupar a atenção dos filósofos mo-
te verbete. Entretanto, já antes de rais: relação entre as normas e os
Aristóteles vamos encontrar prece- bens; relação entre a ética individual
dentes para a constituição da ética e a social; classificação (precedida
como disciplina filosófica. Entre os pela platônica) das virtudes; exame
pré-socráticos, por exemplo, pode- da relação entre a vida teórica e a vi-
mos encontrar reflexões de caráter da prática, etc. Depois de Aristóte-
ético que já não estão vinculadas à les, muitas escolas filosóficas — co-
aceitação de certas normas sociais vi- mo a cínica, a cirenaica e, em parte,
gentes — ou ao protesto contra tais a estóica — ocuparam-se principal-
normas — mas que, pelo contrário, mente de escrutar os fundamentos da
procuram descobrir as razões pelas vida moral desde o ponto de vista fi-
quais os homens têm de comportar- losófico. Os pensadores pós-aristo-
se de uma certa maneira. Podemos télicos ocuparam-se em especial da
citar a este respeito as reflexões éti- magna questão da relação entre a
cas de Demócrito. Mas, sobretudo, existência teórica e a prática, com
inserem-se neste capítulo as medita- frequente tendência para estabelecer
ções de Sócrates e de Platão a tal res- — se bem que por considerações teó-
peito. Muitos autores consideram ricas — o primado da segunda sobre
Sócrates o fundador de uma reflexão a primeira. O intento de descobrir
ética autônoma, embora reconhecen- um fundamento da ética na nature-
do que a mesma não teria sido pos- za foi comum a muitas escolas da
sível sem o sistema de idéias morais época — como ocorreu com os es-
no seio das quais o filósofo vivia e, tóicos. Por este motivo, muitas cor-
especialmente, sem as questões sus- rentes éticas dessa época podem ser
citadas acerca dessas idéias pelos so- qualificadas de naturalistas, embo-
fistas. Com efeito, ao considerar o ra tendo presente que o termo ““na-
problema ético individual como o turalista”* não deve ser entendido no
problema filosófico central, Sócra- mesmo sentido que viria a ter na épo-
tes pareceu considerar a ética e a dis- ca moderna. Também foi comum à
ciplina em torno da qual gravitavam maior parte dessas escolas a manifes-
todas as reflexões filosóficas. Num tação dos dois traços seguintes: pri-
sentido parecido trabalhou Platão meiro, o de considerar a ética como
nos primeiros tempos, antes de exa- ética dos bens, quer dizer, o de esta-
minar a idéia do Bem (ver) à luz da belecer uma hierarquia de bens con-
teoria das idéias e, por conseguinte, cretos a que o homem aspira e pelos
antes de subordinar, por assim dizer, quais se mede a moralidade de seus
a ética à metafísica. No tocante a atos; segundo, o de buscar a tranqui-
Aristóteles, não só fundou a ética co- lidade de ânimo que, segundo alguns
mo disciplina filosófica mas, além (os estóicos), encontra-se na impas-
disso, formulou a maior parte dos sibilidade, segundo outros (os cíni-
problemas que mais tarde passaram cos), no desprezo pelas convenções,
ÉTICA 248

e ainda, segundo outros (os epicuris- samento cristão, adquiriram desta-


tas), no prazer moderado ou, melhor que certos fundamentos que resulta-
dizendo, no equilíbrio racional entre ram ser comuns a ambos. Entre eles
as paixões e sua satisfação. mencione-se como o principal a clás-
O auge do neoplatonismo e o sur- sica equiparação do bom com o ver-
gimento do cristianismo modifica- dadeiro, a qual foi desenvolvida pe-
ram substancialmente muitas das los filósofos cristãos em sua teoria
Idéias éticas anteriores. Por um la- dos transcendentais.
do, os neoplatônicos foram propen- A história da ética complica-se a
sos a edificar a ética sob a égide da partir do Renascimento. Por um la-
teoria platônica das idéias, mesmo do, ressurgiram muitas tendências
quando é certo que em alguns auto- éticas que, embora não totalmente
res — como Plotino — a ética pla- abandonadas, haviam sido conside-
tônica está impregnada de idélas mo- ravelmente atenuadas: é o caso do
rais aristotélicas e, em particular, es- estoicismo. Fortes correntes neo-
tóicas. Por outro lado, os pensado- estóicas foram divulgadas durante os
res cristãos tiveram, pelo menos no séculos XV a XVII, abrangendo fi-
começo, uma dupla atitude diante da lósofos da estirpe de Descartes e, so-
ética. Num sentido, absorveram o bretudo, de Spinoza. Por outro la-
ético no religioso, e daí nasceu uma do, os novos problemas apresenta-
tendência para edificar o tipo de éti- dos ao indivíduo e à sociedade a par-
ca que depois receberia o nome de tir, em especial, do século XVII, as
heterônoma ou, mais propriamente, mudanças de normas nas relações
teônoma, ou seja, a que fundamen- entre pessoas e entre nações, condu-
ta em Deus os princípios da moral. ziram a reformulações radicais das
Num outro sentido, em contrapart!- teorias éticas. Daí surgiram diversos
da, aproveitaram muitas das idéias sistemas que, embora apoiando-se
da ética grega — principalmente as em noções tradicionais, aspiravam a
platônicas e estóicas —, de tal mo- mudar as bases da reflexão ético-
do que partes da ética, como a dou- filosófica. Como exemplo disso men-
trina das virtudes e sua classificação cionamos as teorias éticas fundamen-
inseriram-se quase em sua totalida- tadas no egoísmo (Hobbes), no rea-
de no corpo da ética cristã. Muito lismo político (os maquiavélicos), no
corrente foi a adoção de certas nor- sentimento moral (Hucheson e ou-
mas éticas de algumas escolas (como tros). Fundamental para a maioria
a estóica), negando seus fundamen- dos pensadores modernos foi a ques-
tos naturalistas e suprimindo aque- tão da origem das idéias morais. Al-
las partes (por exemplo, a Justifica- guns encontraram-na em certas fa-
ção do suicídio) que eram incompa- culdades inatas do homem, ora de
tíveis com as idéias morais cristãs. caráter intelectual, ora de caráter
Ora, à medida que o pensamento emotivo; outros buscaram as bases
grego foi sendo acolhido pelo pen- da ética numa intuição especial, ou
249 ÉTICA

no senso comum, ou na simpatia, ou ética e a religião. O evolucionismo


na utilidade (individual ou social); ético, em particular, renovou o na-
ainda outros chamaram a atenção pa- turalismo ético, adicionando-lhe um
ra o papel que a sociedade desempe- aspecto dinâmico que o antigo natu-
nha na formação dos conceitos éti- ralismo não conhecera. Daí surgiram
cos; finalmente, houve aqueles que mudanças revolucionárias nas con-
Insistiram em que o fundamento úl- cepções éticas que terminaram, co-
timo da ética continua sendo a cren- mo ocorreu com Nietzsche, com a
ça religiosa ou a dogmática religiosa. realização de esforços visando a 1n-
As questões da liberdade da vontade troduzir uma inversão completa em
diante do determinismo da Natureza; todas as tábuas de valores. A noção
da relação entre a lei moral e a lei da de valor (Nietzsche, Lotze, Brenta-
Natureza e outras análogas, predomi- no) começou a ser dominante no
naram durante os séculos XVII e pensamento ético, pelo menos na
XVIII. Formaram-se assim diversas Alemanha. Brentano renunciou ao
correntes éticas que receberam os no- formalismo kantiano afirmando que
mes de naturalismo, egoísmo, asso- a ética pode fundamentar-se rigoro-
ciacionismo, intuicionismo, etc. À samente numa teoria dos valores,
ética sofreu uma mudança radical sem que por isso se esvazie de con-
com a filosofia de Kant. Como expu- teúdo. Pretendia-se superar deste
semos em vários verbetes (ver BOA modo tanto o relativismo quanto o
VONTADE, CONSCIÊNCIA MO- formalismo, já que — para Brenta-
RAL, DEVER), Kant repeliu toda no — Kant só conseguiu superar o
ética dos bens (ver BEM) e procurou, primeiro caindo inteiramente no se-
em seu lugar, fundamentar uma étl- gundo.
ca formal, autônoma e, em certa me- Entre as muitas questões que a éti-
dida, impregnada de rigorismo. À ca apresenta está o problema de sua
meditação de Kant a este respeito própria natureza, problema que se
exerceu grande influência sobre mui- manifesta amiúde em perguntar-se
tas teorias posteriores da ética. E cer- que tipo de teoria ética “deve” ser
to que no decorrer do século XIX do- proposta. Em concreto, desde Kant
minaram outras correntes além da as teorias éticas vêm sendo classifi-
kantiana e da desenvolvida pelo 1dea- cadas como formais ou materiais.
lismo alemão (Fichte). Mencionare- Embora nenhum sistema ético pare-
mos entre elas o prosseguimento das ça ser absolutamente formal nem ab-
correntes adscritas à filosofia do sen- solutamente material, a preponde-
so comum, a tendência para exami- rância evidente de elementos formais
nar as questões éticas desde o ponto no pensamento de Kant e o fato de
de vista psicológico, o desenvolvi- todos os sistemas anteriores basea-
mento do utilitarismo, o intuicionis- dos, sobretudo, em que categorias de
mo inglês, o evolucionismo ético, a colsas são boas parecerem ser — em
tese da diferença absoluta entre a maior ou menor grau — “materiais”,
ÉTICA 250

tornam possível a distinção da ética reção parecida, mas com diferentes


kantiana do resto das filosofias mo- fundamentos, encontra-se a ética dos
rais. Para Kant, com efeito, os prin- valores, a qual representa, por um la-
cípios éticos superiores, os impera- do, uma síntese do formalismo e do
tivos, são absolutamente válidos a materialismo e, por outro, uma con-
priori e têm, em relação à experiên- ciliação entre o empirismo e o aprio-
cia moral, a mesma função das ca- rismo moral. O maior sistematizador
tegorias no tocante à experiência deste tipo de ética, Max Scheler,
científica. O resultado de semelhan- definiu-a, de fato, como um aprio-
te inversão das teses morais conduz, rismo moral material, pois nele co-
de imediato, à subversão de todas as meça por excluir-se todo relativismo,
teorias existentes a respeito da ori- se bem que, ao mesmo tempo, se re-
gem dos princípios éticos: Deus, l1- conheça a impossibilidade de fundar
berdade e imortalidade deixam de as normas efetivas da ética num im-
ser, com efeito, os fundamentos da perativo abstrato e vazio. O fato de
razão prática para se converterem tal ética basear-se nos valores já
nos seus postulados. Daí que o for- demonstra o ““objetivismo” que a
malismo moral kantiano exija, ao orienta, sobretudo se levarmos em
mesmo tempo, a autonomia ética, O conta que na teoria de Scheler o va-
fato de que a lei moral não seja lor moral está ausente da tábua de
alheia à personalidade que a execu- valores e, portanto, consiste justa-
ta. Opostas a esse formalismo apre- mente na realização de um valor po-
sentam-se todas as doutrinas éticas sitivo sem sacrifício dos valores su-
materiais, das quais cumpre distin- periores e em completo acordo com
guir, como fez A. Muúller, entre a éti- O caráter de cada personalidade.
ca dos bens e a ética dos valores. A No que se refere ao problema da
dos bens engloba todas as doutrinas origem, a discussão girou, sobretu-
que, fundadas no hedonismo ou con- do, em torno do caráter autônomo
secução da felicidade, começam por ou heterônomo da moral. Para os
expor uma finalidade. Conforme es- partidários dos primeiros, o que se
sa finalidade, a moral chama-se ut1- realizou por uma força ou coação ex-
litária, perfeccionista, evolucionista, terna não é propriamente moral; pa-
religiosa, individual, social, etc. O ra os adeptos do segundo, não exis-
seu caráter comum é o fato de que te, de fato, possibilidade de ação mo-
a bondade ou maldade de todo ato ral sem essa força estranha que po-
depende da adequação ou inadequa- de ter suas raízes na sociedade OU,
ção do mesmo ao fim que se propõe, como ocorre na maioria dos casos,
em contraste com o rigorismo kan- em Deus. Sobrepuseram-lhes tam-
tiano, no qual as noções de dever, in- bém as tendências conciliatórias
que
tenção, boa vontade e moralidade in- percebem a necessidade da autono-
terna anulam todo possível eudemo- mia do ato moral, mas negam
nismo na conduta moral. Numa di-
que
essa autonomia destrua o fundamen-
251 ÉTICA

to efetivo das normas morais, pois salta que o termo “bom” (e também
a origem do ato pode distinguir-se “mau”, embora Moore pouco se
perfeitamente da questão da origem preocupe com este último) não é de-
da lei. Noutros sentidos, foram con- finível mediante outros termos que
trapostas entre si as tendências aprio- possam ser declarados seus sinôni-
rísticas e empiristas, voluntaristas e mos, pois se tal ocorresse então o
intelectualistas, que se referem mais enunciado ““A é bom” seria analíti-
à origem efetiva dos preceitos morais co. Definir “bom” mediante outro
no curso da história ou na evolução termo supostamente sinônimo é co-
da individualidade humana, e que se meter a “falácia naturalista”. A pa-
encontram sintetizadas, com fre- lavra “bom” não é, neste sentido,
quência, numa concepção perspecti- um predicado ““natural”*. Uma con-
vista; nesta concepção, o voluntaris-
cepção que durante um certo tempo
mo e o intelectualismo, o inatismo alcançou grande voga foi a que le-
e o empirismo são considerados me-
vou Ogden e Richards a distinguir
ros aspectos da visão dos objetos entre linguagem indicativa ou decla-
morais, dos valores absolutos e eter- rativa e linguagem não indicativa e
namente válidos, progressivamente não declarativa; é através desta últ!-
descobertos no transcurso da histó-
ria. Quanto ao problema da finali- ma que se expressam atitudes e rea-
ções. Dewey distinguiu entre termos
dade, equivale em parte à própria
valorativos — como ““desejado” —
questão da essência da ética e se re-
e termos descritivos — como ““dese-
laciona com as posições eudemonis-
Jável””. Vários positivistas lógicos
tas, hedonistas, utilitaristas, etc. que destacaram que os enunciados em
respondem à pergunta pela essência,
sempre que esta seja definida de que figuram termos ““morais” não
acordo com um determinado bem. são tautológicos nem verificáveis e,
A “linguagem da ética” foi obje- portanto, carecem propriamente de
to de numerosas Investigações, espe- significação; em todo caso, não se
cialmente (se bem que não exclusi- podem forjar critérios de significa-
vamente) por parte de filósofos de do para tais termos. A. J. Ayer po-
orientação analítica; algumas destas pularizou a idéia de que os juízos
investigações estiveram ligadas ao morais expressam os sentimentos de
desenvolvimento de certos tipos de quem os formula. Ch. L. Stevenson
ética, associado à formulação de re- afirmou que os juízos morais reve-
gras de natureza metaética. Comum lam as atitudes daqueles que os for-
a essas investigações é o estudo do mulam com o propósito, além dis-
tipo de termos e, em geral, do voca- so, de influir sobre as atitudes
bulário usado em ética ou, mais pre- alheias. R. M. Hare assinalou que a
cisamente, na chamada “linguagem linguagem moral não é emotiva,
moral”. Uma das teses mais conhe- tampouco indicativa ou informativa,
cidas é a de G. E. Moore, a qual res- mas prescritiva.
EX NIHILO NIHIL FIT 252

No vasto conjunto da ética con- fluir sobre outros ou prescrever al-


temporânea, as teorias propostas guma colsa — e isto não é prescrever-
correspondem, de um modo bastante se unicamente a si mesmo. Entretan-
aproximado, aos tipos de filosofia, to, alguns autores expressam sua dis-
ou “doutrina filosófica”, elabora- cordância diante de considerações
dos. De acordo com os estudos de que parecem ser primordialmente,
linguagem moral acima citados, de- senão exclusivamente, “individuais”
senvolveu-se uma ética “intuicionis- ou “individualistas”, e preferem su-
ta”* — que se atribui a Moore e foi blinhar a função social da ética. A
elaborada por David Ross —, uma chamada ““ética marxista”, que po-
ética “emotivista”* — ou “emotivis- de, aliás, adotar numerosas formas,
mo” — elaborada principalmente é um exemplo dessa discordância.
por Stevenson, e uma ética ““prescri- Persistem em alguns casos dimensões
tivista” — ou ““prescritivismo” — “evolucionistas” e “pragmatistas”
elaborada principalmente por Hare. nas teorias éticas, mas são hoje me-
Discutiram-se de novo os méritos e nos influentes do que foram nas pri-
fraquezas do utilitarismo, refinan- meiras décadas do presente século.
do-se de maneira considerável as ver- Por outro lado, persiste um tipo de
sões clássicas desta doutrina. A cha- ética chamada ““axiológica”, desen-
mada, mais ou menos Jjustificada- volvida por Scheler e, mais recente-
mente, ““ética existencialista” é, em mente, embora em direção diferen-
muitos casos, uma negação de que te, por J. N. Findlay, e que consiste
possa haver uma ética; em todo ca- basicamente em destacar que os juí-
so, não parece haver possibilidade de zos morais são juízos de valor, de
formular normas morais ““objeti- modo que não se pode desenvolver
vas”, fundadas em Deus, sociedade, uma teoria ética independente de
Natureza, um suposto reino objJeti- uma teoria axiológica ou teorias dos
vo de valores ou normas, etc., de valores.
modo que o único “imperativo” éti-
co possível parece ser o de que cada EX NIHILO NIHIL FIT O princí-
um tem de decidir por si mesmo, em pio segundo o qual nada procede do
vista de sua própria e intransferível nada (ou seja, algo não pode provir
situação concreta, o que vai fazer e do nada) foi sustentado com toda a
o que vai ser. Todas estas formas da consequência pelos eleatas. Parmê-
teoria ética — e de “não-teoria éti- nides (Diel-Kranz, 28 B fr. 8, 9) assi-
ca”* — são comumente ““individua- nala que não se pode sequer falar do
listas”, talvez com a única exceção Não-Ser (“Nada”), em virtude do
do utilitarismo, o que não quer di- princípio que diz que somente o Ser
zer que não se levem na devida con- é; O Não-Ser (“Nada”) não é. O Ser
ta “os outros”, “a sociedade”, etc.; sempre foi (em que “sempre” não
afinal, alguns insistiram em que os significa ““o tempo todo” mas eter-
Juízos morais têm por objetivo in- namente). Melisso de Samos obser-
253 EX NIHILO NIHIL FIT

va que o Ser não pode originar-se ou ge do que Santo Tomás e Alberto


engendrar-se, pois em tal caso deve- Magno. Quando se fala das coisas na-
ria surgir do nada, mas, se fosse na- turais (cum loquamur de naturalibus)
da, não poderia engendrar-se do nada, pode-se afirmar o ex nihilo nihil fit
ovôauà& vévoito ovôtv êx undevós (cf. Anneliese Maier, Methaphysis-
(Diels-Kranz, 303, 1 [o fragmento é che Hintergrinde der spátscholastis-
considerado por muitos como uma chen Naturphilosophie, 1955, p. 14
paráfrase]). Para Aristóteles, tampou- e ss.). Uma coisa é falar teologica-
cO se engendra nada do Não-Ser, con- mente, a outra é falar filosoficamente
tanto que este Não-Ser se entenda co- (ou “naturalmente”*). Ora, enquan-
mo un óv simpliciter; em contrapar- to pelo menos em Santo Tomás os
tida, pode surgir algo da privação, dois modos de falar têm de coinci-
na medida em que esta significa pri- dir em algum momento, não é segu-
vação de algo (Phys., L, viii). O prin- ro que isso ocorra sempre em Egídio
cípio de que nada surge do nada foi Romano e Jean Buridan. Diz-se, é ver-
afirmado com insistência pelos epi- dade, que enquanto a idéia de que
curistas. o mundo foi criado por Deus é uma
Os autores cristãos, enquanto sus- verdade absoluta, a idéia de que do
tentaram a idéia de que o mundo foi nada não surgiu nada é uma verda-
criado do nada por Deus, não podiam de “provável” — em contraste com
defender com toda a consequência o OS gregos, para quem era um princí-
princípio em questão. Entretanto, este pio absolutamente incontrovertível e
princípio foi sustentado no que se re- evidente. Mas até que ponto certos
fere às coisas criadas. Para o mun- autores se avizinham da tese do ex
do natural, com efeito, é certo que nihilo nihil fit mais como princípio
Ex nihilo nihil fit: “nenhum ser criado verdadeiro do que como tese prová-
pode produzir um ser absolutamen- vel é ainda difícil de determinar, em
te”; o que sucede é que o próprio virtude do modo “ambíguo” adotado
mundo, em sua totalidade, como Ente em alguns de seus textos. Algo seme-
que é, foi criado (cf. Santo Tomás, lhante pode ser dito a respeito dos
S. Theol., Il qa XLV, art. 5). Alberto filósofos da chamada ““Escola de Pá-
Magno, ao tratar da questão da eter- dua””, como Pietro d' Abano e Agos-
nidade (ver) do mundo, sustentou que, tino Nifo, entre outros.
quando se fala das coisas naturais em Na época moderna, falou-se qua-
linguagem natural (da ciência natu- se sempre como se o princípio ex ni-
ral) — de naturalibus naturaliter —, hilo nihil fit fosse incontrovertível,
pode-se dizer que nunca cessou nem sobretudo na medida em que os pen-
cessará a geração. Egídio Romano e sadores se ocuparam de questões fi-
Jean Buridan (entre outros) teceram losóficas e científicas, mais do que
considerações análogas em grande questões teológicas. É certo que ao
profusão, embora fossem mais lon- chegar a certos limites que tangen-
EXISTÊNCIA 254

Clavam essas últimas questões era rio das entidades que pareciam ter
frequente supor-se não só que O uma existência real, mas que, no fun-
mundo foi criado do nada, mas, in- do, eram modos ou manifestações de
clusive, que a sua existência depen- tal existência. Dizer que ““o que há”
de de uma creatio continua (Descar- é água, ar, apeiron e até números
tes) Ou, se se quiser, da contínua pre- não é ainda dizer o que é haver al-
sença de Deus como Espírito univer- go, ou seja, o que é existir. Depois,
sal (Berkeley). O princípio de que es- com Parmênides e, sobretudo, com
tivemos nos ocupando neste verbete Platão, o problema da existência co-
serviu de hipótese última para não mo tal foi apresentado por diversas
poucos dos desenvolvimentos da vezes; se o que existe é o inteligível,
ciência natural moderna, em especial o mundo das idéias, e se tal mundo
da mecânica, e em muitas ocasiões não é “o que está aí”, mas “o que
esteve estreitamente vinculado ao de- está mais além de tudo ar”, a ques-
terminismo. Hoje em dia não se é tão tão da natureza da existência e do
dogmático na matéria, mas tão- existir é suscitada com toda a acui-
somente porque se reconhece que um dade. Não obstante, só Aristóteles
princípio como o assinalado é dema- elaborou um sistema de conceitos
siado vasto para enunciar algo deter- que parecia capaz de elucidar o ser
minado sobre os processos naturais; da existência como tal em relação
diz pouco Justamente por pretender com, ou em contraste com, o ser da
dizer demasiado. essência, da substância, etc.
Para Aristóteles, a existência en-
EXISTÊNCIA Enquanto derivada tende-se como substância, ou seja,
do vocábulo latino existentia, a pa- como entidade. Para que algo exis-
lavra “existência” significa “o que ta, tem de possuir um “haver”, uma
está aí”, o que “está fora” — exsis- ousia. Tem, ademais, de ser-lhe pró-
tit. Algo existe porque está na coil- pria. A existência é a substância pri-
sa, in re; a existência neste sentido meira, na medida em que é aquilo de
é equiparável à realidade. que pode dizer-se algo e é aquilo
O termo ““existência” pode referir- “onde” residem as propriedades.
se a qualquer entidade; pode-se fa- Quando a existência se encontra uni-
lar de existência real e ideal, de exis- da à essência, temos um ser. Dele
tência física e matemática, etc. po-
demos saber o que é, justamente
Nos primeiros momentos da his- por-
que sabemos que é. Aristóteles inte-
tória da filosofia grega, os pensado- . Tessa-se por averiguar o que podem
res não pareciam interessados em sa- chamar-se os ““requisitos”* da exis-
ber qual é a natureza do existente; tência. Os conceitos de matéria e for-
ocupavam-se mais em indicar que ma, de potência e ato desempenham
entidade ou entidades eram, no en- a este respeito um papel importan-
tendimento deles, existentes — ou te. Mas, como não se pode falar da
“realmente existentes” — ao contrá- existência a menos que seja inteli-
255 EXISTÊNCIA

gível, e como a existência somente é Aquino — defenderam a chamada


inteligível a partir daquilo que a faz “distinção real entre essência e exis-
ser, já temos desde este momento as- tência”' na ordem do criado. A es-
sentadas as bases para muitas discus- sência não implica a existência, mas
sões ulteriores acerca da relação en- é, conforme assinalamos antes, a in-
tre a existência e a essência. teligibilidade desta última. Outros
Muitos desses debates ocorreram autores — como Duns Escoto, Gui-
na Idade Média. Há duas concepções lherme de Ockham, Aurelo, Gabriel
fundamentais da essência em sua re- Biel, Francisco Suárez — negaram
lação com a existência: (1) Se a exis- tal distinção real. A negação da dis-
tência precede a essência — ou Oo
tinção real não equivale ao nomina-
contrário. (2) Se há ou não distinção lismo ou ao terminalismo. Além di-
real entre a essência e a existência nos so, pode não admitir-se uma distin-
seres criados. ção real e tampouco admitir-se uma
Mantiveram-se duas posições bá- mera distinção conceitual. Assim,
sicas a respeito da primeira questão. por exemplo, Duns Escoto propunha
Segundo Avicena e outros autores, uma distinção atual formal pela na-
tanto árabes quanto cristãos, a quem tureza da coisa.
ele influenciou, a essência precede a Quando — conforme ocorreu na
existência, já que esta é um mero maioria dos casos — existência e es-
“acidente” da essência. Para outros se foram equiparados, suscitou-se a
filósofos, no entanto é a existência questão de saber se, uma vez dado
que precede a essência, sendo esta a algo que exista, pode ou não predi-
característica básica de toda existên- car-se dele o próprio existir. Alguns
cia (o primeiro traço distintivo). autores afirmam que a existência é
Os autores medievais que, como o primeiro predicado de qualquer en-
Santo Tomás, acentuaram o momern- tidade existente, sendo todos os ou-
to da “atualidade” na existência, de- tros predicados secundários. Outros
finiram esta última como a atualida- autores negam que a existência seja
de da existência, a última atualida- um predicado. Mas os filósofos me-
de da coisa, a presença atual da co1- dievais não são os únicos que discu-
sa na ordem ““física”, quer dizer, na tem a categoria ontológica da noção
ordem ““real”*. Existir não é então da existência.
simplesmente ““estar aí”, mas “estar O ponto central da discussão de
fora das causas”* — extra causas — Kant a este respeito é a sua afirma-
enquanto estar “fora do nada” — ção de que o ser (Sein) — que pode
extra nihilum —, da simples po- aqui entender-se como ““existir” —
tência. não é um predicado real do mesmo
Alguns autores escolásticos — co- modo como podem sê-lo outros pre-
mo Guilherme de Auvergne, Alexan- dicados, tais como ““é branco”, ““é
dre de Hales, São Boaventura, San- pesado”, etc. “ “Ser não é, eviden-
to Alberto Magno, Santo Tomás de temente, um predicado real, quer di-
EXISTÊNCIA 256

zer, Oconceito de algo que pode gaard, tomar uma ““decisão última”
acrescentar-se ao conceito de uma a respeito da absoluta transcendên-
coisa. É meramente a posição (Set- cia divina. Por isso a filosofia não
zung) de uma coisa ou de certas de- é especulação, é ““decisão”*; não é
terminações enquanto existentes em descrição de essência, é afirmação de
si mesmas. Logicamente, é a cópula existências.
de um juízo” (K. r. V., A 598, B 526). O “primado da existência sobre a
Referir-se a algo e dizer desse algo essência”* foi afirmado com tanta
que existe é uma redundância. Se a frequência e com tão diversos tons
existência fosse um atributo, todas as no pensamento contemporâneo que
proposições existenciais afirmativas a frase, fora de seu contexto, pouco
não seriam mais do que tautologias, nos diz. Em seu ensaio O existencia-
e todas as proposições existenciais ne- lismo é um humanismo, Sartre rei-
gativas seriam meras contradições. tera que os existencialistas — tanto
Por outro lado, dizer de algo que é cristãos quanto ateus — afirmam a
não significa dizer que existe. O “é” primazia da existência. Mais adian-
não pode subsistir por si mesmo: alu- te, porém, declarava que esse ensaio,
de sempre a um modo no qual se su- que era uma defesa do ““existencia-
põe que é Isto ou aquilo. E se preen- lisimo”* se revelara excessivamente
chemos o predicado com o existir, di- simplificador.
zendo que determinada entidade ““é Embora ele o negue, Heidegger
existente”, faltará ainda precisar a também tem sido frequentemente
maneira, o “como”, o “quando”
o “onde” da existência. De modo
e considerado um ““existencialista”;
embora seja certo que empregue o
que, de acordo com estas bases, o termo (“existência”), não o faz da
“ser existente”* não pode possuir ne- maneira tradicional. O Da do Dasein
nhuma significação se não se apre- é, com efeito, fundamental para Hei-
sentar dentro de um contexto. O que degger. Contudo, esse Da não signi-
desde logo supõe que o conceito que fica propriamente “aí”, mas abertu-
descreve algo existente e o conceito ra de um ente (o ente humano) para
que descreve algo fictício não são, en- o ser (Sen). Para Heidegger, Dasein
quanto conceitos, distintos: o possí- não é algo que já é, nem algo sim-
vel e o real estão, relativamente ao plesmente dado, mas o poder ser.
conceito, por assim dizer, no mesmo Por outras palavras, o ser de Dasein
modo de referência. é de algum modo defeituoso, falta-
Para Kierkegaard, a existência é, lhe o “ser”. A essência do Dasein
antes de tudo, o existente — o exis- “apóla-se... no fato de que, em ca-
tente humano. Trata-se daquele cujo da caso, tem seu ser-para existir e o
“ser” consiste na subjetividade, quer tem como próprio” (S 2, $ 4). Esta
dizer, na pura liberdade de ““esco- carência ou falta de “ser” é um ““es-
lha””. Não se pode falar de a exis- tado constitutivo do ser Dasein, eis-
tência. Existir significa, para Kierke- so implica que Dasein, em seu ser,
257 EXISTÊNCIA

relaciona-se com o Ser... E ainda do que está fora de nós enquanto


mais, significa também que, de algu- “mundo”. O realmente ““existen-
ma maneira, o Dasein se entende a cial”” é chamado por Jaspers Exis-
st mesmo no seu ser... À consciên- tenz. Esta existência é o que eu sou;
cia do ser é, por si mesma, uma ca- é o ato de pôr-me a mim mesmo co-
racteristica do ser Dasein. Dasein é mo livre; “o ser que não é mas que

ontologicamente distinto por ser ele pode ser e deve ser” (Philosophie,
mesmo existente” (ibid.). Deste mo- II, 1). Por isso pode-se dizer que o
do, Heidegger pretende mostrar que meu Dasein não é Existenz, mas que
“Dasein sempre se entende a si mes- o homem é no Dasein da existência
mo em termos de existência — em (Existenz) possível. Não se pode, de
termos da possibilidade de si mesmo: modo algum, apreender o ser da
ser o mesmo ou não... A questão da existência; só se pode viver o existir
existência não se esclarece se não for enquanto é “meu””. A apreensão da
através do próprio existir, do existir existência requer a objetividade, e es-
mesmo.” Toda e qualquer outra coi- ta destrói o caráter irredutível do
sa que não seja o Dasein é, para Heil- existir. Não existe, pois, para Jas-
degger, ou zuhanden (coisas que se. pers, uma ontologia da existência. À
revelam úteis para este ou aquele existência não é um nível de ““reali-
propósito), ou então vorhanden (col- dade”, no máximo é o que religa to-
sas “neutras” dadas pela natureza; dos os níveis.
coisas, desde um ponto de vista teo- Temos, pois, na filosofia atual, di-
Fico). versos significados de ““existência”
Assim, pois, o Dasein não enten- que são, por um lado, distintos dos
de os entes como dados ou indiferen- significados tradicionais e que, por
tes, mas como úteis, daninhos, pe- outro lado, distinguem-se entre si.
rigosos, quebrados, ausentes, etc. Esta distinção pode ser compreendi-
“Zuhanden é o modo pelo qual os da, sobretudo, desde o ângulo des-
seres, tal como são em si mesmos, tas duas possibilidades: uma inter-
são definidos ontológico-categorica- pretação da existência como raiz de
mente” (ibid., 15). Este último en- existir e uma interpretação dela co-
foque dos objetos é primário. mo fundamento de uma ontologia.
Quanto a Karl Jaspers, qualificou Alguns autores parecem participar
sua filosofia de “filosofia da existên- das duas interpretações. É o caso de
cia”, mas devemos nos precaver no Jean-Paul Sartre. A sua noção do
tocante ao vocabulário. Com efeito, “para-si” é, ao mesmo tempo (para
Jaspers chama Dasein ao que existe usar o vocabulário de Heidegger),
no nível do sensível (em nós). O ser ôntica e ontológica. Em vista disso,
do Dasein, assim como o da cons- é lícito perguntar-se se existe algum
ciência, do espírito, da alma, etc., é significado comum no uso atual do
de algum modo ““objetivo””, se bem termo ““existência”', inclusive dentro
que de uma objetividade diferente das filosofias chamadas de um mo-
EXISTÊNCIA 258

do geral “existenciais”. Cremos que Meinong admitira entidades inexis-


existe: é o que se deriva de conceber tentes, correspondentes a um univer-
a existência como um modo de ““ser” so do discurso, por meio do qual tais
que nunca é “dado”, mas que tam- entidades podiam ser afirmadas de
pouco é “posto” (como afirmaria O modo significativo; o centauro, por
idealismo transcendental); um modo exemplo, não existe, mas subsiste.
de ser que constitui o seu próprio ser, Russell assinala, em contrapartida,
que se faz a si mesmo. A existência que não podemos formar proposi-
é então o que forja a sua própria es- ções das quais o sujeito seja do tipo
sência, o que cria a sua própria inte- de “a montanha de ouro” ou “o
ligibilidade e até a do mundo em que quadrado redondo”. Estes “entes”
se encontra imersa. não possuem um ser lógico e, por-
Quase todas as análises anteceden- tanto, nenhuma ““subsistência” pró-
tes são de natureza metafísica, mas pria. Escreve Russell: “Dizemos que
há também outras formas de abor- um argumento a “satisfaz' uma fun-
dar o problema da existência, e uma ção Dx, se ba é verdadeiro; este é o
delas é a da análise lógica. mesmo sentido em que se diz que as
Em Os Fundamentos da Aritmeé- raízes de uma equação “satisfazem”
tica (Die Grundlagen der Arithmetik, a equação. Ora, se $x é algumas ve-
1884, $ 53), diz Frege que as proprie- zes verdadeiro, podemos dizer que
dades afirmadas de um conceito não há x para os quais é verdadeiro, ou
são as características que compõem podemos dizer “existem argumentos
o conceito. Estas características são que satisfazem $x'. Esta é a signifi-
propriedades das colsas que o con- cação fundamental da palavra “exis-
ceito engloba, não propriedades do tência'. As outras significações de-
conceito. Por isso o ser retangular rivam-se dela ou implicam mera con-
não é uma propriedade do conceito fusão do pensamento” (Introduction
triângulo retângulo. Mas a proposi- to Mathematical Philosophy, 2? ed.,
ção segundo a qual não há nenhum 1920, p. 164).
triângulo retângulo, equilátero e es- Esta análise lógica está de acordo
caleno expressa uma propriedade do com a tendência manifestada por (o
conceito triângulo retângulo equiilá- “primeiro”) Russell de que, em mui-
tero escaleno: atribul-lhe O. Partin- tos casos, as estruturas gramaticais
do disso, é possível entender-se o das orações induzem a confusões. Se
concelto de existência como afim ou se emprega um nome como ““sujei-
análogo ao de número. Assim, a to”* de uma oração, pensa-se que esse
afirmação da existência “nada mais nome designa ou não uma entidade
é do que a negação do 0”. real; no caso afirmativo, diz-se que
Bertrand Russell tratou a questão aquilo de que se fala existe, e, no ca-
da existência — o do sentido de so negativo, que não existe. Mas, por
“existe” — em vários escritos. An- muitos que sejam os dados que se
teriormente, a teoria dos objetos de acumulem sobre um nome, não se
259 EXISTÊNCIA (FILOSOFIA DA)

conseguirá fazer com que um nome vinculada a semelhante tese. Isso não
seja mais do que só um nome. Por é verdade. Há uma grande varieda-
ISSO, a existência só pode ser signifi- de de opiniões a respeito, dentro da
cativamente afirmada de descrições. mencionada orientação. Alguns au-
Se “q” é um nome, deve denominar tores consideraram que, pelo menos
algo, mas, se não denomina nada, no contexto da linguagem corrente,
então não é um nome mas apenas “existe” é uma expressão legítima no
um símbolo desprovido de signi- sentido de ser plenamente significa-
ficado. tiva; “a existe” quer dizer, segundo
Durante muito tempo, as análises eles, que a é efetivamente real e não
de Russell foram aceitas por muitos (por exemplo) imaginado, meramen-
autores sem mudar nenhum detalhe. te possível, etc. Não obstante, o pre-
Foi comum em numerosos textos de dicado ““é efetivamente real” ofere-
lógica destacar que termos como ce à análise dificuldades análogas, se-
“uma sereia” e “uma moça” não não maiores, do que o predicado
pertencem ao mesmo tipo lógico, “existe” — no caso de se admitir que
ainda que tenham forma gramatical se trata de um predicado. Fo! ressal-
semelhante. Portanto, não se trata tado que é possível afirmar que algo
apenas do fato de não existirem se- podia ter existido e não existiu, ou
relas e, em contrapartida, existirem não existe, e concluiu-se daí que, se
moças. Os que argumentam que cer- é admissível sustentar que não exis-
tas “entidades”* como as sereias exis- te, é Igualmente admissível sustentar
tem de algum modo — por exemplo, que existe (no caso de que exista), já
na imaginação — tratam a proposi- que o último é meramente a negação
ção ““as sereias são imaginadas” co- do primeiro. Se bem que no amplo
mo se tivesse a mesma forma de ““as espectro da filosofia analítica não te-
moças são amadas*'. Mas ser imagi- nha havido muitas teorias da existên-
nado não é propriedade de nenhuma cla comparáveis à de Russell pelo pa-
sereia como ser amada é, ou pode pel central que explicitamente desem-
ser, a propriedade de uma moça. penha nesse pensador a análise da
“As moças são amadas** não pode noção de existência, o certo é que o
ser uma proposição verdadeira se que cabe designar como a ““questão
não existirem moças. “As serelas são da existência” esteve implícita num
imaginadas” pode ser uma proposi- número muito considerável de estu-
ção verdadeira, ainda que não exis- dos lógicos e ontológicos, no seio da
tam serelas. citada orientação.
A tese russelliana tem em comum
com as de Hume e Kant o fato de ne- EXISTÊNCIA (FILOSOFIA DA)
gar que “existe” seja um predicado Pode traduzir-se deste modo a ex-
real (um termo aceitável como pre- pressão alemã Existenzphilosophie,
dicado). Supôs-se, por vezes, que a e usá-la nos seguintes sentidos:
chamada ““filosofia”* analítica está 1]. Para
designar um conjunto de
EXISTÊNCIA (FILOSOFIA DA) 260

filosofias e modos de fazer filosofia losofia de ser” e “raciovitalismo”


nos quais o tema central é a existên- abrangem um território muito mais
cia, Existenz, enquanto existência amplo do que o de uma filosofia da
humana ou realidade humana. Su- existência. Contudo, essa expressão
pôe-se que esta existência difere ra- pode continuar sendo usada para os
dicalmente de outras existências, ou mencionados autores, enquanto uma
tipos de existência; a existência hu- parte, pelo menos, de seu pensamen-
mana não tem, de modo algum, a to filosófico consiste num exame da
natureza de nenhuma coisa, tanto existência enquanto existência ou
coisa física quanto ““coisa”* mental. realidade humana. Cumpre advertir
A existência enquanto Existenz é, também que nem todos os autores
pois, completamente distinta da exis- que podem ser classificados, mesmo
tência enquanto existentia. Como se parcialmente, de “filósofos da exis-
aspira a não confundir a existência tência”* são ““existencialistas”. De
no sentido de Existenz com a exis- um modo geral, cabe dizer que todo
tência em algum dos sentidos ““clás- existencialismo é (pelo menos) filo-
sicos”, a tradução proposta de Exis- sofia da existência, mas que nem to-
tenz-philosophie por ““filosofia da da filosofia da existência é existen-
existência” pode tornar-se ambígua. cialismo. A rigor, várias das citadas
Caberia usar, para evitar essa ambi- filosofias da existência, especialmen-
guidade, uma expressão como ““filo-
te as que são, além disso, mais algu-
sofia da Existenz”', ou simplesmen-
te deixar a expressão em sua forma ma colsa, mostram-se contrárias às
tendências que se considera serem as
original de Existenzphilosophie. En-
mais comuns do existencialismo.
tretanto, como não há, na filosofia 2. “Filosofia da existência” pode-
anterior à Existenzphilosophie, ne-
nhuma específica “filosofia da exis- se usar, e usa-se amiúde, para desig-
tência”', esta última expressão é per- nar especificamente uma das mencio-
feitamente tolerável, já que cada vez nadas filosofias: a de Jaspers. Ao
que se fale de “filosofia da existên- passo que, por exemplo, Heidegger
cla” a expressão será entendida no usa Dasein — embora reconhecendo
sentido peculiar que se dá a ““exis- que ““a essência do Dasein radica em
tência” enquanto ““existência hu- sua existência (Existenz)”, de modo
mana”. que possui um caráter existenciário
Pode-se considerar a filosofia da e não existencial — e Ortega y Gas-
existência como uma orientação co- set emprega, entre outras expressões,
mum a muitos autores, Heidegger,
Jaspers, Sartre, Ortega y Gasset, Ga-
e
“vida humana” “nossa vida”, Jas-
pers usa, de um modo central e sis-
briel Marcel, etc. Convém advertir temático, Existenz; o propósito ca-
que vários desses autores estão mui- pital do segundo volume de sua Phi-
to longe de ser somente ““filósofos da losophie consiste justamente numa
existência”; tal é o caso de Heideg- “elucidação da existência” (Exis-
ger e de Ortega, cujas respectivas ““fi- tenz).
261 EXISTENCIALISMO

EXISTENCIALISMO Para comba- fatória — entre outras razões, por-


ter o abuso do termo ““existencialis- que o existencialismo, sobretudo en-
mo” cumpre limitar a aplicação do quanto ““atitude existencial”, furta-
vocábulo a certa época e, dentro de- se a qualquer definição. O máximo
la, a certas correntes ou atitudes fi- a que se chegou foi sublinhar certos
losóficas. Às vezes, também é preci- temas que aparecem amiúde na lite-
so distinguir entre existencialismo e ratura filosófica existencialista e pa-
filosofia da existência (ver). raexistencialista. Estes temas são, en-
Deste ponto de vista, a origem do tre outros, a subjetividade, a finitu-
existencialismo remonta apenas a de, a contingência, a autenticidade,
Kierkegaard, o qual lançou pela pri- a “liberdade necessária”, a aliena-
meira vez o grito de combate: “Con- ção, a situação, a decisão, a escolha,
tra a filosofia especulativa [principal- o compromisso, a antecipação de
mente a de Hegel], a filosofia exis- si mesmo, a solidão (e também a
tencial..* Com isso, advogou um “companhia”) existencial, o estar no
“pensar existencial” no qual o sujei- mundo, o estar próximo da morte,
to que pensa — este homem concre- o fazer-se a si mesmo. Também se
to e, como diria Unamuno, ““de car- procurou frequentemente classificar
ne e osso”* — inclui-se à si mesmo as correntes existencialistas. Neste
no pensar, em vez de refletir, ou pre- sentido, falou-se de existencialismo
tender refletir, objetivamente a rea- teológico, existencialismo cristão,
lidade. existencialismo ateu e até de existen-
Portanto, a primeira colsa que a cialismo marxista.
filosofia existencial faz — ou, me- Segundo Emmanuel Mounier (In-
lhor dizendo, o homem que pensa e troduction aux existentialismes [1947],
vive existencialmente — é negar-se a p. 11), o existencialismo pode ser com-
reduzir o seu ser humano, à sua per- parado a uma árvore alimentada em
sonalidade, a uma entidade qual- suas raízes por Sócrates, pelo estoicis-
quer. O homem não pode reduzir-se mo e pelo agostinismo. Estas raízes
a ser um animal racional, mas tam- produzem filosofias como as de Pas-
pouco a ser um animal sociável, ou cal e Maine de Biran. O tronco da ár-
um ente psíquico ou biológico. A ri- vore representa Kierkegaard. A par-
gor, o homem não é nenhum “en- tir do tronco se estende uma frondo-
te”, porque é antes um “existente” sa copa, na qual se encontram repre-
— e, em termos claros, “este exis- sentados, numa ramificação deveras
tente”. O homem não é, pois, ne- complexa, a fenomenologia, Jaspers,
nhuma substância suscetível de ser o personalismo, Marcel, Soloviev,
determinada objetivamente. Seu ser Chestov, Berdiaev, a teologia dia-
é um constituir-se à si mesmo. lética (sem esquecer o ““judaísmo
Procurou-se com frequência defi- transcendental” de Buber), Scheler,
nir “existencialismo? sem que se te- Landsberg, Bergson, Blondel, La-
nha encontrado uma definição satis- berthonniere, Nietzsche, Heidegger,
EXISTENCIALISMO 262

J.-P. Sartre (terminal “esquerdo” do possibilidade de tal filosofia, alegan-


“movimento”). Continuando com o do que as análises daexistência hu-
mesmo símile, poderíamos incluir mana em que são pródigos os auto-
nessa copa o pragmatismo, Unamu- res existencialistas são, apesar do que
no, Ortega y Gasset e muitos outros esses autores pretendem, análises de
autores. caráter empírico-psicológico e não
Essa classificação de Mounier pe- possuem nenhuma característica pro-
ca por excesso. Mounier qualifica de priamente ““existencial”*. Os autores
“existencialistas” a não poucos au- que admitem a possibilidade de uma
tores que, como Bergson, nunca oO filosofia existencial nem sempre es-
foram, e a outros que, como Heideg- tão de acordo com as bases de tal fi-
ger e Ortega y Gasset, rechaçaram le- losofia.
gitimamente ser como tal considera- Pelo menos três atitudes se desta-
dos. Jacques Maritain propôs outra caram no pensamento atual em re-
classificação: segundo esta, há por lação ao existencialismo: a comple-
um lado um existencialismo propria- ta indiferença, a oposição cerrada e
mente existencial e um existencialis- o esforço no sentido de “superar”
mo meramente acadêmico. O primei- o existencialismo de dentro para
ro é ““o existencialismo em ato vivI- fora.
do ou exercido”. O segundo é “o A indiferença manifestou-se às ve-
existencialismo em ato significado” zes mediante o simples desdém; nes-
como máquina de idéias e aparelho ta linha, tem sido corrente dizer-se
para confeccionar teses. que as tendências existencialistas são
Por outro lado, as classificações ou puro patetismo ou puro verbalis-
em questão nem sempre levam em mo (ou ambas as coisas ao mesmo
conta a diferença entre “atitude exis- tempo). À oposição cerrada partiu,
tencial” e “pensamento existencial”. por vezes, dos que em outras oca-
Só este último merece ser chamado siões manifestaram indiferença; é o
“existencialismo”. Com efeito, o caso de não poucos autores de ten-
existencialismo não é e não deve ser dência “analítica”, especialmente na
mera ““atitude” ou, inclusive, sim- fase do positivismo lógico. A. DJ.
ples “tomada de posição”. O exis- Ayer declarou que o existencialismo
tencialismo é, ou deve ser, uma filo- consiste principalmente num ““abu-
sofia. Alguns autores negam que tal so do verbo “ser” **. Outros filósofos
filosofia seja possível. Observam eles hostis ao existencialismo combate-
que, a partir do momento em que se ram-no desde posições consideradas
adota uma atitude existencial, fica por eles firmemente estabelecidas
excluída toda e qualquer possível (como o marxismo e o neo-escolas-
“racionalização”' da existência, e ticismo).
que sem tal “racionalização” não é O existencialismo é interpretado
possível, ou não é legítimo, falar de pelos marxistas como a filosofia da
filosofia. Outros autores negam a burguesia em seu estado de degene-
263 EXPERIÊNCIA

ração e decomposição; por muitos lidade. Diz-se então que um juízo


“tradicionalistas” (no sentido de acerca da realidade é confirmável, ou
““partidários da tradição filosófica” verificável, por meio da experiência.
e, em particular, de uma philosophia (5) O fato de suportar ou ““sofrer””
perennis), como uma das mais pe- algo, como quando se diz que se ex-
rigosas manifestações do ateísmo perimenta uma dor, uma alegria, etc.
moderno; pelos racionalistas, como Neste último caso, a experiência apa-
uma explosão anti-racionalista, hos- rece como um ““fato interno”.
til à ciência e a toda sã razão huma- Embora haja algo comum nos vá-
na; por muitos individualistas, como rios sentidos de “experiência” — O
uma reação salutar da pessoa contra fato de que se trata de uma apreen-
as ameaças de escravidão que partem são imediata por parte do indivíduo
de todo e qualquer gênero de totali- de algo que se supõe “dado” —, 1s-
tarismo. Em todos estes casos, a in- so é demasiado vago para servir de
terpretação refere-se mais à função ponto de partida de uma análise. Em
que o existencialismo tem, ou preten- vista dessas dificuldades, adotaremos
de-se que tenha, dentro da socieda-
o seguinte procedimento: descrever
de contemporânea, do que aos pró-
vários sentidos capitais da palavra
prios conteúdos desta filosofia. “experiência através da história da
filosofia e sublinhar em cada caso
EXPERIÊNCIA O termo ““experiên-
pelo menos um de dois sentidos pri-
cia” é empregado em vários senti-
mordiais: (a) a experiência como
dos: (1) A apreensão por parte de um
confirmação ou possibilidade de con-
sujeito de uma realidade, uma for-
firmação empírica (e, com freqiiên-
ma de ser, um modo de fazer, uma
maneira de viver, etc. A experiência cia, sensível) de dados, e (b) a expe-
riência como fato de viver algo da-
é, então, um modo de conhecer al-
do anteriormente a toda reflexão ou
go imediatamente antes de todo Juí-
zo formulado acerca do apreendido. predicação. Em cada um destes ca-
(2) A apreensão sensível da realida- sos é possível destacar o caráter ““ex-
de externa. Diz-se então que essa rea- terno” ou “interno” da experiência,
lidade é dada por intermédio da ex- embora seja frequente — ainda que
periência, mais comumente também não exclusivo — que o primeiro cor-
antes de toda reflexão — e, como di- responda preponderantemente ao
ria Husserl, pré-predicativamente. sentido (a) e o segundo ao sentido
(3) O ensinamento adquirido com a (b). Em alguns casos, a noção de ex-
prática. Fala-se então da experiência. periência foi usada como conceito
de uma profissão ou de um ofício e, fundamental metafísico ou como
em geral, da experiência da vida. (4) conceito prévio a todos os outros.
A confirmação dos Juízos sobre a A distinção platônica entre o mun-
realidade por meio de uma verifica- do sensível e o mundo inteligível
ção, úsualmente sensível, desta rea- equivale, em parte, à distinção entre
EXPERIÊNCIA 264

experiência e razão. A experiência quando de muitas noções de caráter


apresenta-se neste caso como conhe- experimental se destaca um juízo
cimento do cambiante — portanto, universal (Mer., A 1, 981 a 6).
como uma ““opinião”* mais do que A experiência no sentido aristoté-
como um conhecimento propriamen- lico tem, pois, os sentidos (2) e (4),
te dito. É certo que Platão, sobretu- o sentido (a) e uma parte do sentido
do no que tem de mais socrático, não (b), mas o Estagirita refere-se tam-
descuida da experiência, por ser a bém à experiência e destaca sua im-
“prática” (pelo menos, ““prática in- portância quando fala da prática e
telectual”) necessária com o objJet!- observa que, em certos assuntos, co-
vo de poder formular conceitos e al- mo na direção e administração das
cançar o domínio das idéias. Mas a coisas do Estado, a habilidade e a ex-
experiência não tem, em nenhum ca- periência são de extrema importân-
so, O caráter preciso e inteligível das cia; os estadistas praticam sua arte
idéias. Em Aristóteles, a experiência mais por experiência do que através
fica melhor integrada no seio da es- do pensamento (Eth. Nic., X 9, 1191
trutura do conhecimento. À expe- a |ss.).
riência, enTterpia, é algo que todos Em autores medievais, experientia
OS Seres vivos possuem. A experiên-
tem vários sentidos, mas predomi-
cia é necessária, mas não suficiente;
nam dois deles: a experiência como
a ela se sobrepõem a arte, téxvn, e amplo e extenso conhecimento de ca-
o raciocínio, Aoyiopos (Met., A 1,
981 b 27). A experiência surge da sos, proporcionando certas regras e
certos conhecimentos gerais, e a ex-
multiplicidade numérica de lembran-
periência como apreensão imediata
ças (An. post., IT 19, 100 a 5); a per-
sistência das mesmas impressões é Oo
de processos ““internos”. O primei-
tecido da experiência, que serve de ro sentido pode ser qualificado de
base para a formação de noções, 1s- “científico”; o segundo, de ““psico-
to é, para o universal. A experiência lógico”? e também de ““pessoal””. No
é, pois, para Aristóteles, a apreen- primeiro caso, a experiência é, como
são do singular. Sem esta apreensão em Aristóteles, o ponto de partida do
prévia não haveria possibilidade de conhecimento do mundo exterior.
ciência. Além disso, só a experiên- No segundo caso, pode ser ponto de
cia pode proporcionar os princípios partida do conhecimento do mundo
pertencentes a cada ciência; cumpre “interior” (e íntimo), mas também
observar primeiro os fenômenos e base para a apreensão de certas ““evi-
ver o que são, com o fim de proce- dências”* de caráter não natural. As-
der dépois a demonstrações (An. pr., sim, a “experiência” pode designar
1 30, 46 a 17 e ss.). Mas a ciência a vivência interna da vida da fé e, em
propriamente dita só o é do univer- última instância, da vida mística. A
sal; o particular constitui o “mate- doutrina da iluminação divina, de
rial” e os exemplos. Só existe “arte” raízes agostinianas, sublinha este úl-
265 EXPERIÊNCIA

timo tipo de experiência, mais fun- Na segunda, assinala que as ““artes


damental do que qualquer outro. mecânicas” se fundamentam “na
As concepções sobre a experiência natureza e na luz da experiência”.
na época moderna são tão numero- Na terceira, que existe uma simples
sas que não há outro remédio senão experiência (““a experiência vulgar”)
restringir-se às mais influentes. Deve- que acontece por acidente, e uma
se fazer constar, a este respeito, que “experiência procurada” (a “expe-
a insistência na experiência, que se riência científica”). Segundo Bacon,
considera como típica da época mo- “9 verdadeiro método da experiên-
derna, também é encontrada em não cia... primeiro que tudo acende a ve-
poucos autores medievais. Podemos la e, depois, por meio dela, mostra
citar, por exemplo, Roger Bacon; es- o caminho”. A ciência basela-se na
te autor usou com frequência a pa- experiência, mas numa experiência
lavra experientia, mas ainda se de- ordenada. Bacon sublinha a impor-
bate que significado lhe atribuir. Em tância da experimentação (dos ““ex-
não escassa medida, Roger Bacon perimentos*”*) como ““experiência or-
entendia a experientia como apreen- denada” e distingue entre experi-
são de coisas singulares, mas, ao menta lucifera e experimenta fructi-
mesmo tempo, admitia a experiência fera (ibid., I, xcix). Bacon refere-se
como uma iluminação interior. Ora, à experiência e aos métodos que de-
a noção de experiência que predomi- vem ser adotados para realizar des-
nou durante os primeiros séculos cobertas em muitas outras passagens
modernos foi a experiência enquan- de Novum Organum e outras obras
to a sensu oritur, ou originada nos suas. Na verdade, a noção de expe-
sentidos, como já fora afirmado por riência parece a central neste autor.
Santo Tomás (S. Theol., I q. LXVI Também o é, em grande parte, em
1 ob. 5), na esteira de Aristóteles. todos os autores “empiristas”, em-
Entre os autores modernos que mais bora nem sempre se obtenha grande
insistiram na necessidade de ater-se clareza neles a respeito do significa-
à experiência não só como ponto de do do termo ““experiência”. Trata-
partida do conhecimento, mas tam- se, na maioria dos casos, da apreen-
bém como fundamento último do são intuitiva de coisas singulares, de
conhecimento, vamos encontrar fenômenos singulares — ou, em ge-
Francis Bacon. Entre as muitas pas- ral, de “dados” dos sentidos. Seja
sagens deste pensador que se referem como for, a experiência constitui pa-
ao assunto, destacamos as que figu- ra os filósofos empiristas a condição
ram no Novum Organum (L, 1xx, [, e o limite de todo conhecimento me-
Ixxiv e IL, Ixxxil). Na primeira des- recedor deste nome.
tas passagens, diz Bacon que “a me- Os filósofos ““racionalistas”* não
lhor demonstração até agora consiste desdenham, como às vezes se supõe,
na experiência”, sempre que não vá a experiência, mas consideram que
mais além do experimento afetivo. se trata de um acesso confuso à rea-
EXPERIÊNCIA 266

lidade e, como acrescentaria Spino- minar as condições da possibilidade


za, “mutilado” (Etica, II 40 esc. 2). da experiência — as quais são idên-
Para Leibniz, a experiência somen- ticas às condições da possibilidade
te fornece proposições contingentes; dos objetos da experiência (K. r. V,,
as verdades eternas só podem ser ad- A 111). O exame das condições a
quiridas por intermédio da razão. Na priori da possibilidade da experiên-
esteira de Leibniz, era comum (em cia (ibid., A 94, B 126) determina de
Wolff e outros autores) conceber a que modo podem formular-se juízos
experiência como conhecimento con- universais e necessários sobre a rea-
fuso, mesmo quando se considerava lidade (como aparência). Deste mo-
do, podem ser formulados juízos
ser necessário (pelo menos psicolo-
gicamente) como ponto de partida. empíricos (Erfahrungsurteile), ou se-
A noção de experiência desempe- ja, juízos válidos. Kant fala igual-
nha um papel fundamental na teo- mente de experiência interna (inne-
ria kantiana do conhecimento. Kant re Erfahrung) e assinala que a minha
admite, com os empiristas, que a ex- existência no tempo é consciente me-
periência constitui o ponto de parti- diante tal experiência. No que se re-
da do conhecimento. Mas isso ape- fere às chamadas ““analogias da ex-
nas significa que o conhecimento co- periência”' em Kant, ver ANALO-
meça com a experiência, não que GIA.
proceda dela (quer dizer, que obte- Os idealistas alemães (Fichte, He-
nha sua validade mediante a expe- gel) trataram extensamente da ques-
riência). Contudo, isso ainda diz tão da experiência. Apoiando-se em
muito pouco acerca da idéia kantia- Kant (ou alegando que se apoiavam
na da experiência. Esta idéia é suma- nele), os idealistas consideraram que
mente complexa; além disso, encon- a tarefa da filosofia consiste em dar
tramos em Kant (embora confinadas razão de toda experiência ou, se se
à sua epistemologia) referências mui- quiser, dar razão do fundamento de
to diversas à noção de experiência. toda experiência. Segundo Fichte
Basta registrar aqui que a experiên- (Erste Enleitung in die Wissens-
cia apresenta-se em Kant como a chaftslehre [17977), “o filósofo po-
área dentro da qual o conhecimento de abstrair, quer dizer, separar me-
torna-se possível. Segundo Kant, não diante a liberdade do pensar o que
é possível conhecer nada que não es- está unido na experiência. Na expe-
teja dentro da ““experiência possí- riência estão inseparavelmente uni-
vel”*. Como, além disso, o conheci- das a coisa, aquilo que deve estar de-
mento é conhecimento do mundo da terminado independentemente de
aparência (ver) — no sentido kantia- nossa liberdade e aquilo pelo qual o
no deste termo — a noção de expe- nosso conhecimento deve ser dirigi-
riência acha-se intimamente ligada à do, e a inteligência, que é a que de-
noção de aparência. A crítica da ra- ve conhecer. O filósofo pode abstrair
zão tem justamente por objeto exa- de uma das duas — e então abstraiu
267 EXPERIÊNCIA

da experiência e a ela se sobrepôs. Se Geistes, Glockner, 2:36, pp. 3/7 e


abstrai da primeira, obtém uma in- ss.). O conteúdo da consciência é o
teligência em si, quer dizer, abstraí- real; e a mais imediata consciência
da de sua relação com a experiência; de tal conteúdo é justamente a ex-
se abstrai da última, obtém uma coi- periência. Mas a filosofia não se li-
sa em sl, ou seja, abstraída de que mita em Hegel a ser uma ciência da
se apresente na experiência; uma ou experiência. A rigor, Hegel suprimiu
outra como fundamento explicativo a expressão ““ciência da experiência
da experiência. O primeiro procedi- da consciência” para substituí-la pe-
mento chama-se idealismo; o segun- la expressão ““ciência da fenomeno-
do, dogmatismo”. Há, portanto, logia do Espírito”, e depois ““feno-
dois modos de dar razão da experiên- menologia do Espírito”. Tal mudan-
cia; adotar um deles é decidir-se por ça pode ser devida, como assinala
um deles, com uma forma de deci- Heidegger, a que Hegel queria ind!-
são muito similar à decisão existen- car (com o novo título) que se refe-
cial. O filósofo que prefere a liber- ria unicamente à “conversa entre a
dade à necessidade decide-se a favor consciência natural e o saber abso-
do modo de dar razão da experiên- luto”*. Em todo caso, a “ciência da
cia que se chama “idealismo”. Em experiência da consciência”* como
Darstellung der Wissenschaftslehre “fenomenologia do Espírito” é ape-
(1801), Fichte fala da “experiência” nas o limiar da ““ciência total”, na
(também chamada ““percepção”) co- qual a filosofia é apresentada como
mo ““consciência do particular”. Es- “Tógica”, isto é, como ““filosofia es-
sa experiência não constitui o saber, peculativa”. A experiência é para
o qual “assenta e consiste unicamen- Hegel o modo como aparece o Ser,
te na intuição” (“intuição intelec- na medida em que se oferece à cons-
tual”* ou “saber absoluto”). O saber ciência e se constitui por meio des-
propriamente dito não é, pois, expe- ta. À noção de experiência não é,
riência, mas saber do fundamento de pois, aqui, nem experiência interior
toda experiência e, em última instân- “subjJetiva”, nem experiência exte-
cia, saber do saber. Hegel prefere fa- rior “objetiva”, mas sim experiên-
lar da “experiência da consciência” cia absoluta.
a discorrer sobre a “consciência da Durante boa parte do século XIX,
experiência”. Com efeito, uma vez a palavra “experiência” foi entendi1-
eliminada a coisa em si, a “ciência” da em vários sentidos, dos quais des-
(Wissenschaft) é “primordialmente tacamos os seguintes: (a) a experiên-
ciência da experiência da consciên- cia como ““sentimento imediato”; es-
cia”. Para Hegel, a experiência é te pode ser entendido como ““expe-
“um movimento dialético** que con- riência interna” ou “subjetiva”, ou
duz a consciência a si mesma, expli1- como ““experiência imediata”, en-
citando-se a si mesma como objeto quanto primeira fase na constituição
próprio (cf. Phânomenologie des do saber total (Bradley). (b) A expe-
EXPERIÊNCIA 268

riência como apreensão sensível dos Ao supor que existem ““dados ime-
dados “naturais”. (c) A experiência diatos da consciência”, Bergson acei-
como apreensão direta de “dados tou a possibilidade de uma experiên-
imediatos”. (d) A experiência como cia do “imediatamente dado”. Essa
“experiência geral da vida”. Durante experiência primária é a “intuição”.
o mesmo século começou a ser estu- É uma experiência análoga à que an-
dado o problema de se há diversas tes se chamava ““experiência inter-
formas de experiência corresponden- na”, mas não -é apenas experiência
tes a diversos “objetos” ou “modos em si, como também de quanto é da-
de ser” do real. Alguns autores do sem mediação. Embora Bergson
dispuseram-se a desenvolver filoso- não use com frequência a noção de
'

fias que levaram cada vez mais em experiência, sua idéia da intuição
conta amplas “formas de experiên- equivale a uma forma — a forma bá-
cia”. Um desses autores (Dilthey) sica — da experiência. Husserl tam-
procurou desenvolver uma filosofia bém admite uma experiência primá-
que levasse em consideração toda a ria, anterior à experiência do mundo
experiência e que fosse, portanto, natural: é a experiência fenomeno-
uma ““filosofia da realidade”, mas lógica. Há, em todo caso, segundo
sem suposições metafísicas de nenhu- Husserl, uma “experiência pré-pre-
ma espécie e, por conseguinte, de dicativa” que ele identificou ocasio-
uma forma muito diversa da que era nalmente com o fato de serem dados
característica dos idealistas alemães.
A metafísica apresenta-se então sim- com evidência os objetos individuais
plesmente como uma das possíveis
(Erfahrung und Urteil, $ 6). Mas ne-
nhuma experiência é isolada; toda ex-
maneiras de apreender e organizar a
experiência. Outros autores interes- periência se encontra, por assim di-
saram-se por examinar a natureza e zer, alojada num ““horizonte de ex-
as propriedades de cada uma das for- periência”". Os modos da experiência
mas básicas da experiência. No século podem ser entendidos em relação
XX, o Interesse por este último tipo com os diversos horizontes da expe-
de exame foi reavivado e refinado. A riência.
experiência foi classificada em vários As idéias anteriores sobre a expe-
tipos: experiência sensível, experiên- riência são, em alguns aspectos im-
cia natural, experiência científica, ex- portantes, semelhantes à noção de
periência religiosa, experiência artis- experiência elaborada por alguns au-
tica, experiência fenomenológica, ex- tores que consideraram a experiência
periência metafísica, etc. Procurou- a base de toda ulterior reflexão filo-
se averiguar se existe algum tipo de sófica. Segundo estes autores, todo
experiência que seja prévio a todos os saber repousa num mundo prévio de
demais. Examinou-se se há uma ex- experiências vividas. A este respeito,
periência filosófica distinta de qual- pode-se mencionar Gabriel Marcel,
quer outra forma de experiência. sobretudo nas idéias propostas numa
269 EXPERIÊNCIA

comunicação intitulada “L'idée de sua reação; (3) na acepção tradicio-


niveau d'expérience et sa portée mé- nal, só o passado conta, de modo
taphysique”' (dezembro de 1955). As que a essência da experiência é, em
idéias de Marcel foram elaboradas última instância, a referência ao pre-
por Henry G. Bugbee, em seu livro cedente, e o empirismo é concebido
The Inward Morning. A Philosophi- como vinculação com o que foi ou
cal Exploration in Journal Form é dado, enquanto a experiência em
(1958). sua forma vital é experimental e re-
Entre os pensadores de língua in- presenta um esforço no sentido de
glesa, insistiram no caráter decisivo mudar o dado, uma projeção para
da experiência William James e John o desconhecido, um caminhar para
Dewey. James faz da experiência (en- o futuro; (4) a tradição empírica es-
quanto ““experiência aberta”) o fun- tá submetida ao particularismo, ao
damento de todo saber (e de toda passo que a atual acepção da expe-
ação). Estar aberto à experiência tor- riência leva em conta as conexões e
na possível, segundo James, evitar o continuidades; (5) na acepção tradi-
universo “dado” preferido dos filó- cional existe uma antítese entre ex-
sofos racionalistas. A atenção à ex- periência e pensamento, ao contrá-
periência garante a atenção constante rio do que ocorre na nova noção de
à realidade. Dewey tomou a noção experiência, na qual não existe expe-
de experiência como o ponto central riência consciente sem inferência e a
em torno do qual gira o debate en- reflexão é inata e constante (““The
tre “a velha filosofia” e a “nova fi- Need for a Recovery in Philosophy”,
losofia”*. Segundo Dewey, os con- no volume coletivo Creative Intelli-
trastes mais destacados entre a des- gence, 1917).
crição ortodoxa da noção de expe- Uma das questões que foram de-
riência e a que corresponde às con- batidas em relação com a noção de
dições atuais são os seguintes: (1) na experiência é se existe ou não uma
concepção ortodoxa, a experiência é experiência filosófica própria, distin-
considerada meramente um assunto ta de todas as outras e usualmente
de conhecimento, enquanto se apre- precedendo as demais. Segundo Fer-
senta agora como uma relação entre dinand Alquié (Lexpérience, 1957,
o ser vivo e o seu contorno físico e 2º ed., 1961), não há experiência
social; (2) na acepção tradicional, a propriamente filosófica; o filósofo
experiência é, pelo menos de um mo- deve refletir criticamente sobre todos
do primário, uma coisa física, im- os tipos de experiência (sensível, in-
pregnada de subjetividade, ao pas- telectual, moral, estética, física, re-
so que a experiência designa agora ligiosa, mística, metafísica) sem pre-
um mundo autenticamente objetivo, tender unificá-las arbitrariamente
do qual fazem parte as ações e os num sistema conceitual. Os positivis-
sofrimentos dos homens e que pas- tas tampouco admitem — se bem
sa por modificações em virtude de que por razões diversas das formu-
EXTERIOR 270

ladas por Alquié — haver uma ex- Tal sujeito é, na maioria dos casos,
periência que possa ser considerada um ““sujeito epistemológico”, não,
propriamente filosófica. Quando fa- ou não necessariamente, um ““sujei-
lam de experiência, entendem-na to psíquico”.
unicamente como ““possibilidade de O problema filosófico já clássico
comprovação (objetiva, isto é, na é o da natureza e realidade do mun-
realidade) dos juízos”. Em contra- do exterior — exterior ao sujeito in-
partida, outros filósofos opinam dicado ou à consciência. O proble-
que, se não há uma experiência filo- ma deu origem a várias perguntas do
sófica própria, a filosofia não tem seguinte tipo: “É o mundo exterior
nenhuma razão de ser. independente de ser conhecido?”,
“Como se pode ter uma completa-
EXTERIOR Diz-se que x é exterior da segurança de que existe um mun-
a y quando está fora de y. Por ve- do exterior (exterior a mim)?”, “Co-
zes, diz-se do espaço que está fora, mo pode ser provada a existência do
não porque haja algum espaço de fo- mundo exterior?””, “Está o conhe-
ra, mas porque qualquer parte do es- cimento do mundo exterior determi-
paço é exterior a qualquer outra. À nado, pelo menos em parte, por al-
este respeito, usou-se a expressão gum sistema de conceitos “imposto”
partes extra partes a fim de caracte- (ou “sobreposto”) pelo sujeito?”.
rizar a pura espacialidade. Exemplos clássicos de formulação
Na metafísica e, em especial, na da questão do mundo exterior são os
teoria do conhecimento, tem sido co- de Descartes, Berkeley e Kant. Im-
mum colocar-se a chamada ““ques- portantes são duas posições sobre es-
tão do mundo exterior” ou “questão ta questão — com as quais se entre-
do mundo externo”. Isso pressupõe laçam muitas posições intermediá-
que existe alto — uma realidade, rias —: o realismo e o idealismo.
uma intenção, um conjunto de inten- O realismo (ver) afirma haver um
ções, uma consciência, etc. — a que mundo exterior independente do su-
se atribui a propriedade de ser ““in- Jeito cognoscente, mas há muitos
terior”* ou “interno”. O que se en- modos de defender esta ““indepen-
contra “fora” disso é o “mundo ex- dência”: pode-se afirmar que o que
terior””. Por esse motivo recorre-se na verdade há é o que se chama
às noções de “imanência” e “trans-
cendência”: o citado “mundo exte-
“mundo exterior” ou ““as coisas”,
e que não só tal mundo é transcen-
rior” é transcendente em relação à dente em relação ao sujeito, como
consciência ou ao sujeito cognoscen- também o chamado ““sujeito” é sim-
te, ou seja, é objeto de suas ““inten- plesmente uma parte do mundo que
ções”, pensamentos, etc. Por Isso a se limita a refleti-lo e a agir sobre ele;
consciência ou o sujeito cognoscen- pode-se afirmar que o mundo exte-
te não são concebidos como realida- rior existe e é tal qual existe; pode-se
des, mas sim como atos ou intenções. sustentar que existe, mas que sua rea-
271 EXTERIOR

lidade “em si” é incognoscível, sen- do do problema metafísico. Muito


do cognoscíveis somente as “aparên- do que dissemos a respeito do pri-
cias” de tal mundo; pode-se susten- meiro poderia aplicar-se ao segundo.
tar que existe e que pode ser conhe- De acordo com o idealismo, o mun-
cido como é, desde que se examine do exterior — ou, em geral, “o mun-
criticamente o processo do conheci- do” — é imanente (ontologicamen-
mento, etc. Em vista da diversidade te) ao sujeito, ao eu, ao espírito, à
de tais posições, costuma-se acres- consciência, etc. O idealismo extre-
centar algum adjetivo ao nome ““rea- mo
sustenta que o mundo é “produ-
lismo”*: o realismo é ingênuo, críti- zido”* ou “engendrado” pelo sujei-
co, transcendental, etc. Além dis- to, eu, etc., mas não se deve imagi-
so, algumas das posições chamadas nar, mesmo assim, que o idealismo
“realistas” aproximam-se de algu- sustente que o sujeito produz o mun-
mas das chamadas posições ““idealis- do do modo como se “produzem”
tas”, pelo menos das ““idealistas mo- as coisas. O idealismo moderado
deradas”. O idealismo (ver), por sua afirma que o mundo é “conteúdo”
vez, afirma que o mundo exterior do sujeito, do eu, etc., mas tampou-
não é independente do sujeito cog- co se deve entender a expressão ““é
noscente, mas também existem mui- conteúdo de”* como designando uma
tos modos de entender esta falta de coisa em outra, ou qualquer coisa
independência: pode-se sustentar que num espaço. Nenhuma forma de
não há propriamente “mundo exte- idealismo nega que haja ““coisas ex-
rior”', visto que todo ser é ser perce- ternas”. As ““colsas externas” care-
bido; pode-se afirmar que o chama- cem de suficiência ontológica; pro-
do “mundo exterior” (ou ““a reall- priamente falando, seu ““ser”* consis-
dade”) é cognoscível tão-somente te em “estar fundado no sujeito”.
porque é (no plano metafísico) en-
gendrado ou produzido por um su-
Segundo o realismo, o mundo
é (on-
tologicamente) transcendente em re-
jeito — ou ““o sujeito”, a subjetivI- lação ao sujeito, ao eu, ao espírito,
dade como tal —; pode-se sustentar à consciência, etc. Estes últimos ““en-
que, exista ou não um mundo exte- contram-se”* no mundo. Mas a maio-
rior, seu ser dá-se unicamente como ria dos autores realistas tampouco
ser conhecido; pode-se dizer que o entende ““achar-se no mundo” do
mundo exterior é (gnosiologicamen- modo como se diz que uma coisa se
te) imanente ao sujeito cognoscente encontra em outra, ou uma coisa se
nos sentidos muito diversos da ex- encontra num espaço. O sujeito não
pressão “imanente a”, etc. Também é, a rigor, uma ““coisa””; é um ““co-
se adjetiva a posição idealista de mo- nhecer o mundo”.
dos muito diversos: idealismo abso- Algumas das doutrinas idealistas
luto, crítico, transcendental. metafísicas são, ao mesmo tempo,
O problema gnosiológico nem idealistas gnosiológicas (como ocorre
sempre pode ser facilmente separa- com Berkeley), mas nem todas as
EXTERIOR 272

doutrinas idealistas gnosiológicas são frequência não é) idealista, e sim rea-


idealistas metafísicas (como ocorre lista (e, além disso, realista-materia-
com Kant). A maioria das doutrinas lista). Outras vezes, o idealismo com-
realistas metafísicas são, ao mesmo bina-se com uma doutrina dialética,
tempo, realistas gnosiológicas. Em mas também essa doutrina pode
certos casos, é muito difícil separar aliar-se ao realismo.
o que há de metafísico do que há de Alguns autores declararam que as
gnosiológico numa doutrina idealis- dificuldades suscitadas por todas
ta ou realista. As expressões “ima- as doutrinas idealistas e realistas de-
nente a”, “transcendente a”, “con- vem-se ao fato de se começar por es-
teúdo de”, etc. são com frequência tabelecer uma contraposição artifi-
as mesmas, e também se parecem as cial do imanente com o transcenden-
definições oferecidas das correspon- te, do sujeito com o objeto, da cons-
dentes doutrinas. Por este motivo ciência com o mundo, etc. Assim, os
formulou-se às vezes a questão de se filósofos de tendência ““neutralista”,
será possível distinguir efetivamen- ou seja, os que sustentaram não ha-
te entre o idealismo metafísico e o ver razão alguma para distinguir en-
idealismo gnosiológico, e entre o rea- tre o físico e o psíquico (E. Mach,
lismo metafísico e o realismo gnosio- Russell em certa fase do seu pensa-
lógico. Na medida em que uma teo- mento filosófico, Avenarius, etc.),
ria do conhecimento pressupõe uma entenderam que as posições idealis-
metafísica e vice-versa (Nicolai Hart- tas e realistas (pelo menos as ““tra-
mann), a distinção resulta impossí- dicionais”*) carecem de fundamento.
vel. Mas o próprio fato de que se fala Foi argumentado contra isso que to-
de “elementos metafísicos” e de dos os ““neutralismos” têm, quer
“elementos gnosiológicos”* que se queiram, quer não, uma certa ten-
implicam mutuamente permite supor dência idealista. Por outro lado, a
que certa distinção é, pelo menos, idéia da consciência como ““cons-
praticável. ciência intencional”* também pareceu
Cumpre observar que cada uma 1r de encontro a qualquer intento de
das doutrinas em questão, além de considerar as posições idealistas e
oferecer numerosas variantes, com- realistas como fundamentais e ““pré-
bina-se com outras doutrinas meta-
físicas ou ontológicas em diversas
vlas” a qualquer outra concepção fi-
losófica. Se a consciência é ““cons-
medidas. Assim, por exemplo, o idea- ciência de”, não há propriamente
lismo metafísico combina-se, às ve- um sujeito ““substante”º que se en-
zes, com o monismo (Bradley), e até contre no mundo ou que ““conte-
se afirma que um idealismo metafií- nha” ou “engendre” o mundo: a
sico consequente tem de ser monis- consciência não é uma realidade mas
ta. Em todo caso, o inverso não é, uma ““direção””. Ao mesmo tempo,
de maneira alguma, óbvio; com efei- não pode haver ““consciência de”
to, o monismo pode não ser (e com sem um objeto para o qual se dirija
273 EXTERIOR

a consciência; portanto, há pelo me- va” e pode ““provar-se””. Por outro


nos um “objeto intencional”. Pois lado, a tese da Existência como estar-
bem, os desenvolvimentos registra- no-mundo parece favorecer a tese
dos pela teoria da consciência como idealista, na medida em que esta se
consciência intencional (especialmen- desprende de toda contaminação
te os desenvolvimentos dessa teoria “psicológica” e afirma que o ser não
em Husserl) mostraram não ser di- pode explicar-se por meio dos entes,
fícil fornecer certas interpretações isto é, que o ser é transcendental em
que se avizinhem, segundo os casos, relação aos entes. Mas a tese idea-
do realismo ou do idealismo. Embo- lista é distinta da de Heidegger en-
ra o chamado ““dealismo fenomeno- quanto sustenta que todos os entes
lógico” seja distinto dos idealismos “se reduzem” a um sujeito ou a uma
anteriores a ele, suscita com frequên- consciência. Realismo e idealismo
cia problemas muito semelhantes. coincidem em considerar o mundo
Heidegger concorda com os auto- exterior como algo ““adicionado” a
res acima citados na medida em que um ““sujeito””. Mas não há tal “adi-
se esforça por situar-se ““mais ção” nem sequer tal “sujeito”*. Her-
aquém” do idealismo e do realismo, degger pretende com isso não só
mas fundamenta a sua posição de colocar-se “mais aquém” do realis-
um modo muito diferente. Não se mo e do idealismo, como também de
trata, para Heidegger, de dar “uma toda doutrina para a qual o signif1-
prova” da existência do mundo ex- cado de ““realidade” é “consciência
terior. A Existência (ver) — Dasein de resistência”. Os filósofos que de-
— é “estar no mundo”, o que não fenderam esta última doutrina — a
significa haver um mundo no qual se doutrina da realidade como ““resis-
encontra a Existência, mas sim que tibilidade”” — esquivaram-se de al-
a Existência é Existência-que-está- gumas das mais graves dificuldades
no-mundo. Portanto, o problema suscitadas pelo idealismo ou pelo
que se apresenta consiste somente em realismo ““tradicionais””. Por exem-
indagar por que a Existência como plo, Dilthey, ao deixar ontologica-
estar-no-mundo ““tende a sepultar o mente indefinida a noção de ““vida”
mundo exterior' num nada episte- e talvez também ao empenhar-se em
mológico com o propósito de provar enfrentar o problema como proble-
sua realidade” (Sein und Zeit, $ 43). ma epistemológico; Scheler, ao inter-
Com a Existência como estar-no- pretar a existência como algo ““pre-
mundo, as coisas do mundo Já apa- sente”. Segundo Heidegger, as aná-
recem manifestas. Esta afirmação, lises de Dilthey e Scheler contêm as-
sublinha Heidegger, parece indicar pectos positivos. Mas não se consi-
que se favorece a tese ““realista”. derou neles que a experiência da
Mas a tese realista é distinta da de résistência só é ontologicamente pos-
Heidegger, na medida em que pres- sivel com base na concepção da
supõe que o “mundo” requer ““pro- Existência (Dasein) como um cons-
EXTERIOR 274

titutivo “estar aberto”? ao mundo e na refutação de Moore acha-se im-


este último como a ““abertura””. plícita uma “idéia da realidade” nem
Pode-se dizer, no máximo, que a re- sempre redutível à sustentada por
sistência caracteriza o “mundo exter- muitos realistas. O mesmo ocorre
no” só no sentido de ““as coisas no também com os filósofos adscritos
mundo”. Mas não no sentido de “o ao neo-realismo, que se esforçaram
mundo”. Como diz Heidegger, ““a por reformular a questão do mundo
consciência da realidade' é ela pró- externo. Para alguns positivistas ló-
pria um modo de estar-no-mundo”*” gicos, a questão do mundo exterior
(loc. cit.). Nisso se mostra que à é fundamentalmente a questão de co-
Existência como Existência-que-está- mo se pode falar do mundo de mo-
no-mundo não pode comparar-se a do intersubjJetivo, se os enunciados
nenhuma das “entidades” que, idea- básicos ou protocolares descrevem
listas, realistas e ““neutralistas”, “o que há” para cada sujeito dado.
pressupõem: sujeito, eu, consciência, Positivistas lógicos, atomistas lógi-
etc. E tampouco o “mundo” pode cos e, em geral, os filósofos de ten-
comparar-se com o mundo de que dência ““analítica”* inclinaram-se a
falam aqueles filósofos, pois o mun-
expor o problema do mundo exterior
do, para Heidegger, não é um ente, em função da questão da relação en-
nem uma coleção de entes, mas tre linguagem e realidade. Um estu-
“uma abertura da Existência para os do detalhado do problema do mun-
entes”. Sequer se poderá dizer que do exterior foi realizado por Roman
os objetos transcendam o sujeito e
Ingarden. Nicolai Hartmann procla-
que este consista em dirigir-se inten-
cionalmente aos objetos. O que se mou que a sua posição encontra-se
“mais além do realismo e do idea-
pode dizer, em contrapartida, é que
lismo””.
a Existência transcende os entes na
direção do mundo. A questão da existência do mun-
As idéias de Heidegger (similares do exterior — seja ela considerada
às de Sartre e de Merleau-Ponty) como questão metafísica ou como
acerca do problema (ou pseudopro- questão epistemológica, ou ambas ao
blema) do mundo exterior exerceram mesmo tempo — pode ser abordada
considerável influência até mesmo de três maneiras: pode ser declara-
em pensadores que se encontram da uma questão permanente da filo-
muito distantes de todas as demais sofia, pode ser denunciada como
teses heideggerianas. Mas numerosas uma pseudoquestão, ou pode ser
tendências filosóficas contemporã- apresentada como uma questão que
neas preferem uma formulação dis- surgiu dentro de um determinado
tinta do problema. É o que ocorre “horizonte” filosófico e que só tem
com G. E. Moore, segundo o qual sentido dentro de tal “horizonte”.
deve reafirmar-se o ““sentido co- Os que abordam a questão deste úl-
mum”, mas levando-se em conta que timo modo costumam indicar que se
275 EXTERIOR

trata de um problema da ““filosofia cado à maior parte das doutrinas f1-


moderna”, especialmente a partir de losóficas antigas e medievais, já que
Descartes. Neste caso, haveria que se para estas não se apresentaria o pro-
rechaçar o adjetivo ““realista” apli- blema de ser realista ou idealista.
F
F1.A letra maiúscula “F” usada ,
é Aristóteles foi o primeiro a apre-
com frequência para representar o sentar uma ““lista de falácias” em
sujeito no esquema do juízo ou da suas Refutações (meot OOPLOTLIXWY
proposição que constitui a conclusão êNéyxwr; De Sophisticis elenchis),
de um silogismo. Portanto, exerce a consideradas um apêndice dos Tópi-
mesma função que a letra “S”. cos. Dizia Aristóteles que uns argu-
2. Na lógica quantificacional ele-
mentos são corretos, enquanto que
mentar, a letra “F” é empregada co- outros não o são, embora possam
mo símbolo de predicado. Assim, parecê-lo. Estes últimos são os sofis-
por exemplo: “F*” em “Fx”. A le- mas que, por sua vez, dividem-se em
tra “F” é por isso chamada ““letra duas classes: os sofismas que depen-
predicado”. Outras letras usadas dem da linguagem utilizada (oc
com o mesmo propósito são “G”
e “HH”. Em caso de necessidade, Taça Tv Méswv, ou fallaciae in dic-
tfione) e os que são independentes da
empregam-se as citadas letras segui-

pm,
das de acentos: “F””, “GG”, “HH”, linguagem que se empregue (ot é£w
Tns Aé£ewws, Ou fallaciae extra dictio-
SEM, eto. Na lógi-
nem [De Soph., E 1, 4, 165 b 231).
ca quantificacional superior, essas Estas últimas também são chamadas
mesmas letras denotam propriedades falácias extralingúísticas, enquanto
e são chamadas ““variáveis pre-
dicados””. as primeiras são também denomina-
das falácias linguísticas. Existem di-
FALÁCIA Denomina-se às vezes versos tipos de falácias lingúísticas,
“falácia” a uma asserção só aparen- como: (1) O equívoco (óuwrvunia),
te (palvouevos Eheyxos) ou ““sofis- o qual supõe a ambiguidade de um
ma” (cogrloTiXOS tam-
ÉAeyxXOS), e termo e de que Aristóteles fornece
bém a uma aparente argumentação vários exemplos. “Os que aprendem
ou silogismo (garvonevos quhhoyLo- sabem; os que compreendem seus
nós) ou silogismo sofista (coproTLIX OS próprios escritos são os que podem
ouMhoyionpos). Estes últimos empre- aprender dos escritos de outros”, é
gam-se para defender um argumen- uma falácia porque o termo “com-
to falso ou para convencer outrem preender”* é ambíguo, já que signi-
do contrário, depois de uma conclu- fica tanto “entender” algo quanto
são dada. Por vezes distingue-se tam- “adquirir conhecimento”. Ou então
bém entre falácia e paralogismo (ver este outro: “O mal é bom porque o
PARALOGISMO para as distinções que necessita existir é bom, e o mal
que foram enunciadas), mas em ge- necessita existir.”* Neste caso, a am-
ral ambos os termos se empregam in- bigúuidade reside em ““necessita exis-
distintamente. tir”. (2) A anfibolia (QueiBoNia) con-
FALÁCIA 278

siste na ambiguidade de uma propo- numa conta corrente refere-se à si-


sição, ambigilidade que pode ocor- tuação de carência.
rer em qualquer idioma, mas que, Também existem as falácias extra-
devido à liberdade da ordem sintáti- linguísticas, como: (1) A falácia do
ca, é mais freqiiente nas línguas clás- acidente, ou falsa adequação do su-
sicas. A anfibolia citada por Aristó- Jeito com o acidente, que consiste em
teles “É preciso um conhecimento do supor que se algo é verdadeiro a res-
que cada um sabe” fica mais eviden- peito de uma coisa, também o é de
te no grego original, já que o conhe- cada um dos seus acidentes. Por
cimento que se menciona pode refe- exemplo: “Se Corsicus não é Sócra-
rir-se tanto ao sujeito cognoscente tes e se Sócrates é um homem, en-
quanto ao objeto conhecido. Outro tão Corsicus não é um homem.” (2)
exemplo poderia ser “A voz do si- A confusão do relativo com o abso-
lêncio””, que também tem um signi- luto, habitualmente chamada dicto
ficado ambíguo, porquanto pode secundum quid ad dictum simplici-
referir-se ao silêncio de quem teria ter, que supõe tomar-se uma expres-
de falar ou àquilo de que fala, que são em sentido absoluto quando foi
permanece silencioso. (3) A falsa dita somente em sentido relativo.
combinação ou composição (ovvr6e- Aristóteles forneceu o seguinte exem-
aus) deelementos que às vezes depen- plo: “Se o não ser é objeto de opi-
dem apenas da pontuação. Por exem- nião, então o não ser é.” (3) A con-
plo, a resposta da Sibila de Cumas clusão irrelevante ou ignoratio elen-
à mãe de um soldado que partia pa- chi é um tipo de falácia que se pro-
ra a guerra: “Irá, voltará não, mor- duz quando não se apresenta a pro-
rerá na guerra”, a qual, mudando-
se a posição da vírgula, fica: “Irá,
va de uma argumentação
e falta algo
em sua definição. Seria falácia nes-
voltará, não morrerá na guerra”. (4) te sentido proclamar que ““a mesma
A falsa divisão ou separação (ôlai- coisa é a um tempo o dobro e não
peous) de termos, como, por exem- o dobro, já que dois é o dobro de
plo, “Cinco é dois e é três” é errô- um, mas não o dobro de três”. (4)
neo, mas “Cinco é dois e três” está A ignorância do conseqiiente que su-
certo. (5) A falsa acentuação ou pro- põe sua falsa conversão. Por exem-
sódia (rooowidla) consiste na utiliza- plo, suposto que ““se A é, necessa-
ção incorreta do acento na lingua- riamente B é”, é errôneo afirmar que
gem escrita: “bebera cerveja” em lu- “se B é, A necessariamente é”. Esta
gar de “beberá cerveja”. (6) A falsa falácia costuma proceder de uma fal-
figura ou forma de expressão (oxnua sa inferência a partir da percepção
A€Éews), na qual duas coisas distin- sensível. Assim dizemos que o chão
tas se apresentam sob a mesma ex- está molhado por causa da chuva,
pressão. Por exemplo, enquanto mas não é necessariamente verdade
“constrói” ou “escreve” são termos — nem pode referir-se, portanto —
que aludem a uma ação, o “deve” que se o chão está molhado é por-
279 FALÁCIA

que choveu. (5) Petição de princípio consiste em tomar como anteceden-


(petitio principil). Assume formas di- te necessário para a argumentação
versas, estudadas por Aristóteles em algo que não é a sua causa, com O
várias partes do Organon. Assim, que se introduz uma falsa causa no
nos Primeiros Analíticos (II, 16, 64 raciocínio, Aristóteles considera que
a 28 e ss.) afirma que estas falácias argumentos deste tipo “não deixam
ocorrem quando se trata de provar absolutamente de ser concludentes,
“por si mesmo o que não é de si mes- mas tão-só em relação à conclusão
mo evidente”; quando se pretende que se propõe”. (7) Reunir várias
*

aceitar como conclusão o que está questões numa só quando se reque-


em questão, seja de forma imedia- ririam várias respostas; por exemplo,
ta, seja após uma cadeia de raciocí- perguntar ““O todo é bom ou mau?”
nios. Cumpre distinguir, porém, en- é uma falácia, porquanto há coisas
tre petição de princípio e argumen- boas e coisas más.
tação de premissas menos conheci- O próprio Aristóteles reduzia to-
das ou a inferência do antecedente dos os tipos de falácia mencionados
a partir de sua consequência. Nos — e que, por outra parte, considera
Tópicos (VIII, 13, 162 a 31 e ss.), uma lista não exaustiva — à lgnora-
Aristóteles diz que a verdadeira ex- tio elenchi (De Soph., E 1, 6, 168 a
plicação desta falácia é dada nos Pri- 18). Poder-se-la distinguir outras cin-
meiros Analíticos, e que o que se ofe- co formas de falácia: (1) A transpo-
rece nos Tópicos é somente ““no ní- sição para outro significado, ou me-
vel da opinião vulgar”*. Considera o tabasis eis allo genos (nuerkBaorus eis
Estagirita os cinco casos seguintes de &Nho vévos), que consiste no
que, em
petição de princípio: (a) se se afirma linguagem vulgar, denominamos o
aquilo que tem de ser provado; (b) duplo sentido: tomar um termo —
se se afirma com caráter universal o consciente ou inconscientemente —
que tem de provar-se num caso con- num sentido diferente do original
creto; (c) se, pelo contrário, se afir- e/ou literal. (2) A falácia do quarto
ma de um caso particular o que se termo ou quaternio terminorum, que
pretende provar universalmente; (d) emprega o termo médio de um silo-
se se afirma uma ou outra de duas gismo com um significado diferente
proposições que mutuamente se im- na premissa maior e na menor, com
plicam. Este tipo de falácia é muito O que se introduz um
quarto termo
comum e costuma consistir na pre- que invalida o silogismo. (3) O sori-
tensão de provar uma asserção atra- tes (owEos) também é uma falácia na
vés de um argumento que emprega qual se pergunta se uma série de ob-
como premissa a mesma proposição Jetos continua a sê-lo quando se pres-
que se tratava de provar. (6) A con- cinde de algum dos elementos que
fusão da causa com o que não é cau- formam a série. Respondendo afir-
sa, mais conhecida como non causa mativamente, a questão apresenta-se
pro causa ou post hoc, propter hoc, de novo ao prescindir-se de um ou-
FALÁCIA 280

tro elemento e assim sucessivamen- dência indistinta (ou não clara) são-
te até que fica apenas um que — co- no por confusão. Em suma, cinco es-
mo é óbvio — não constitui uma sé- pécies distintas de falácia. Mill reco-
rie. Então, o problema concreto con- nhece a dificuldade que se apresen-
siste em saber de quantos elementos ta amiúde para a sua classificação,
se compõe uma determinada série, já que quase qualquer falácia pode-
mas tal formulação ignora que, na ria incluir-se entre as que se produ-
o
linguagem comum, termo ““série”
possui um significado muito vago,
zem por confusão, se bem que raras
vezes em algum dos outros grupos.
que não admite determinação quan- Também observou que, “com fre-
titativa. É assim no exemplo de qiiência, um erro concreto é arbitra-
“quantos pêlos faltam para “consti- riamente atribuído a um grupo em
tuir' o rabo de um cavalo” e outros vez de outro” (ibid., p. 745).
semelhantes. (4) A falácia de negar Mill oferece numerosos exemplos
o antecedente, como ““Se Ivã é rus- de cada um dos tipos mencionados
so, então Ivã não é inteligente, mas de falácia, investigando suas origens.
Ivã não é russo, logo Ivã é inteligen- Entre as falácias a priori estão os er-
te”, ou a (5) de afirmar o consequen- ros crassos e os cometidos por pen-
te: “Se Ivã é russo, Ivã é inteligen- sadores que partem de princípios
te. Ivã é inteligente, logo Ivã é considerados evidentes por si mes-
Tusso”. mos (e que não o são). Entre estes,
Em seu livro A System of Logic a noção de que as coisas que podem
Ratiocinative and Inductive, no ca- ser pensadas em mútua relação têm
pítulo sobre a falácia, J. S. Mill for- de existir igualmente relacionadas,
nece uma lista de falácias, algo as- ou que o inconcebível tem necessa-
sim como — em suas próprias pala- riamente de ser falso. Outras falácias
vras — ““um catálogo de aparentes a priori, de natureza filosófica, con-
evidências que não o são, realmen- sistem em atribuir existência objeti-
te”. Excluiu de sua lista aqueles er- va a abstrações, ou a falácia de ra-
ros devidos a um ““lapso casual, por zão suficiente, que Mill explica co-
pressa ou inadvertência”, e distingue mo ““que a natureza realiza algo pa-
dois grupos básicos: falácias de ins- ra o qual não vemos uma razão em
peção e falácias de inferência, das contrário” (ibid., p. 758). As falá-
quais as primeiras o são a priori, ao cias de observação supõem que não
passo que as segundas podem ser evi- se evidenciou algo que deveria ter si-
denciadas de maneira distinta ou in- do visto, ou que foi mal observado.
distinta. As de evidência distinta (evi- As de generalização — que refletem
dente, se se admitir a redundância) o intento de reduzir fenômenos ra-
são indutivas ou dedutivas; as indu- dicalmente distintos a uma única
tivas, por sua vez, de observação ou classe (e são hoje denominadas, com
de generalização; as dedutivas, sem- trequência, “falácias reducionistas' )
pre por raciocínio. As falácias de evi- — implicam a confusão das leis em-
281 FALÁCIA GENÉTICA

pPÍTicascom as causais ou a falsa ana- rentesco mediante a mera descrição


logia. Mill também abordou o tema de sua evolução no transcurso da his-
das metáforas e o modo como, a par- tória. Embora uma descrição da for-
tir de uma má classificação, nascem mação do sistema solar possa não ser
argumentos falaciosos. As falácias irrelevante para entender a estrutu-
de raciocínio são semelhantes às do ra desse sistema, supõe-se que uma
falso silogismo; uma das mais fre-
quentes é a da mudança de premis-
compreensão adequada de tal estru-
tura implica a referência a leis físi-
sas. As falácias de confusão são mui- cas. Do mesmo modo, ainda que
to numerosas: as que derivam de ter- uma descrição da história das rela-
mos ambíguos, petição de princípio, ções humanas de parentesco possa
ignoratio elenchi, etc. As de ambi- não ser irrelevante para uma com-
gúidade dão origem a muitos tipos preensão dessas relações, supõe-se
diferentes; algumas das apresentadas que um entendimento adequado des-
por Aristóteles correspondem às que tas últimas pressupõe a referência a
Mill denomina falácias de confusão. leis antropológicas (e, possivelmen-
te, biológicas).
FALÁCIA GENÉTICA É como se O mais comum é falar de falácia
costuma chamar ao tipo de raciocí- genética sobre alguma proposição ou
nio que trata de explicar algo me- teoria — mesmo quando se concede
diante uma descrição do processo que toda proposição ou teoria é pro-
que este algo seguiu para chegar ao posição ou teoria de alguma realida-
estado em que se encontra e que se de, ou de alguma estrutura real. Da-
pretende Justamente explicar. Dize- da uma teoria, 7, diz-se que se co-
mos ““algo”* porque, quando se fala mete uma falácia genética quando se
de falácia genética sem mais, não fi- procura explicar o significado, alcan-
ca claro aquilo sobre que se supõe ter ce explicativo, etc., de T, recorren-
sido cometida a falácia. Pode tratar- do às condições ou circunstâncias ge-
se, com efeito, de realidades ou de ralmente humanas e históricas que
proposições referentes a realidadese,
especificamente, de teorias. Se se tra-
contribuíram para a formulação de
T. A falácia genética é, pois, neste
ta de alguma realidade, diz-se que se caso, um recurso a fatores extrateó-
comete uma falácia genética quando, ricos e, com freqiiência, extracog-
para explicar sua estrutura, recorre- nitivos.
se ao processo que precedeu a
mação de tal estrutura. Assim sen-
for- Os que se opõem a toda falácia ge-
nética relativa a T consideram ser
do, comete-se uma falácia genética possível reconstruir metodologica-
quando se pretende explicar a estru- mente 7 de um modo intrateórico,
tura do sistema solar mediante uma O que significa atender unicamente
simples descrição de sua formação, a fatores “lógicos” — os quais po-
ou quando se pretende explicar a es- dem (e costumam) incluir verifica-
trutura das relações humanas de pa- ções e confrontos de T com a expe-
FALSEABILIDADE 282

riência. Ficou evidenciado que, se se num círculo vicioso. A adoção de


atende aos processos do descobri- uma lógica da probabilidade não
mento de 7, a gênese de 7 não é es- constitui um remédio suficiente e,
tranha à explicação do significado de por outra parte, é inadmissível con-
T, de modo que recorrer a essa gê- siderar o princípio de indução como
nese não é sempre, necessariamente válido a priori, conforme fez Kant.
— ainda que possa às vezes sê-lo — Popper propõe descartar todo indu-
cometer uma falácia genética. Esta tivismo e, em especial, o propugna-
última opinião baseia-se no postula- do pelos positivistas lógicos, e ado-
do de uma lógica do descobrimento tar um “método dedutivo de testar”
ou então na idéia de que a estrutura (Nachprúfung, testing), segundo o
lógica e metodológica de T é só uma qual uma hipótese só pode ser em-
parte, por mais importante que se- piricamente testada, e isso somente
Ja, de 7. depois de ter sido proposta. O teste
A questão de se se comete ou (Uberprifung, testing) de teorias não
não uma falácia genética está ligada consiste em descobrir fatos que as ve-
ao debate entre os que consideram rifiquem. Embora seja certo que um
legítima a divisão entre um contex- fato que desmente ou contradiz uma
to de descobrimento e um contexto teoria seja o bastante para invalidá-
de justificação ou de validação, e la, nenhum fato basta para validar
aqueles que consideram que tal d1- e verificar qualquer teoria, já que se
visão é inoperante em todos os ca- pode sempre esperar o aparecimen-
sos ou até somente em alguns casos. to de algum outro fato que a in-
Os que sustentam pertinazmente a valide.
distinção apontada acima costumam Assim, Popper interessa-se menos
acusar de cometer falácias genéticas pela verificabilidade do que pelo que
os que não a aprovam. Os que não chama “falseabilidade” (Falzifizier-
defendem a distinção ou a atenuam barkeit, falsiability). Uma teoria é
declaram que o recorrer à “gênese” falseada quando se descobre um fa-
— que é, na maioria dos casos, re- to que a desmente ou, mais especifi-
correr aos processos de descobrimen- camente, quando se pode deduzir da
to — não constitui falácia. teoria um enunciado singular predi-
tivo que não a verifica. O procedi-
FALSEABILIDADE Em sua Logik mento adotado para isso é, afirma
der Forschung (1935) (Logic of Popper, de caráter dedutivo. “Com
Scientific Discovery, 1959), assim co- a ajuda de outros enunciados, pre-
mo em outros escritos, Karl R. Pop- viamente aceitos, deduzem-se da teo-
per declarou que o chamado ““pro- ria certos enunciados singulares a
blema da indução”, especialmente que podemos chamar “predições”, es-
como foi formulado a partir de Hu- pecificamente predições que podem
me, é insolúvel: não se podem Justi- ser testadas e aplicadas com facilida-
ficar as inferências indutivas sem cair de. Desses enunciados selecionam-se
283 FALSEABILIDADE

OS que não são deriváveis da teoria inclusive, que Popper tratou de ““sal-
correntemente adotada e, em espe- var” esta última tese das numerosas
cial, os que a teoria correntemente objeções de que ela foi alvo — em
adotada contradiz. Depois, procura- grande medida por parte dos pró-
mos uma decisão a respeito desses (e prios positivistas lógicos. Popper
de outros) enunciados derivados, opôs-se energicamente ao que con-
comparando-os com os resultados de sidera uma tergiversação completa
aplicações práticas e experimentos. tanto da função da noção de falsea-
Se essa decisão é positiva, ou seja, bilidade quanto das relações entre o
se ocorre que as conclusões singula- próprio Popper e o círculo de Viena
res são aceitáveis, ou são verificadas, (cf., entre outros, K. R. Popper
então a teoria passou com êxito, de “Reply to My Critics”, em P. A.
momento, em seu teste; não encon- Schilpp (org.), The Philosophy of K.
tramos razão nenhuma para descar- Popper, 2 vols., 1974, especialmen-
tá-la. Mas se a decisão é negativa ou, te o vol. II, pp. 967 e ss.). Enquanto
por outras palavras, se as condições a tese de verificabilidade é um crité-
foram falseadas, então sua falseação rio de significado pelo qual se distin-
também falseia a teoria donde essas gue entre enunciados que são, ao
conclusões tinham sido logicamente mesmo tempo, verificáveis e com
deduzidas” (Logik, etc., p. 33). sentido (ou que têm sentido por se-
Assim, em vez de tratar de verif1- rem verificáveis), e enunciados não
car uma teoria, cumpre fazer todo verificáveis e carentes de sentido (ou
o possível para falseá-la; somente que carecem de sentido por não se-
quando uma teoria resiste aos esfor- rem verificáveis), a tese da falseabi-
ços que se realizam para falseá-la, é lidade é um critério de demarcação
que ela se acha corroborada (De- (Abgrenzungskriterion, criterion of
wãhrt). Uma teoria que não seja, em demarcation: Logik d. F.; Logic of
princípio, falseável, é inaceitável e se S. R., $ 4) entre ciência e não-ciência.
encontra fora do âmbito da ciência. Há enunciados não falseáveis que
É isto o que ocorre, segundo Pop- têm significado. A confusão entre os
per, com teorias como o marxismo dois critérios deve-se, em parte, a que
e a psicanálise, que não são cientifi- os positivistas lógicos usaram seu cri-
cas porque, embora possam ser ve- tério de verificabilidade também co-
rificadas, não podem ser falseadas. mo critério de demarcação, mas is-

Aliás, nenhuma teoria é definitiva- so é muito diferente de usar um cri-


mente corroborada porque a corro- tério de demarcação do tipo do de
boração definitiva equivaleria à não- falseabilidade como se fosse um cri-
falseabilidade. tério de significado. A confusão de-
Foi dito, por vezes, que a tese pop- ve-se também a que muitos positivis-
periana da falseabilidade constitui tas aceitaram as críticas de Popper
uma variante da tese lógico-positivis- ao critério de verificação. Entretan-
ta da verificabilidade, e afirmou-se, to, alguns positivistas lógicos, co-
FATO 284

mo Carnap, ainda assim se empe- Outras vezes opôs-se o fato à apa-


nharam em salvar o critério de veri- rência, se bem que, em outros casos,
ficabilidade como critério de signi- os fatos foram equiparados aos fe-
ficado, mediante a construção de lin- nômenos — especialmente os ““fa-
guagens artificiais que excluiram tos naturais” aos “fenômenos natu-
enunciados metafísicos. Um dos cri- rais”.
térios estabelecidos para tanto é o da A noção de “fato” tem sido usa-
“testabilidade” (testability). da com frequência em orientações f1-
Entre as críticas que se formula- losóficas muito diversas, além de ter
ram contra o critério de Popper fi- sido interpretada de múltiplas manei-
gura a de que há teorias que se tor- ras. Um fato (roáyua, factum, res
nam imunes à falseação, e até que to- gesta, Faktum ou Tatsache, às vezes
da e qualquer teoria tende a imuni- Sachverhalt, fact, matter of fact,
zar-se contra a falseabilidade. Isso etc.) pode ser, conforme os casos,
ocorre, sobretudo, quando se nega um fato natural (um fenômeno ou
que uma dada observação que apa- um processo natural) ou um fato hu-
rentemente falseta a teoria, a falseia mano (por exemplo, uma situação
realmente. Além disso, e sobretudo, determinada). Pode ser uma coisa,
é comum que uma teoria não seja um ente individual, etc. Por vezes,
submetida à falseação independen- destaca-se no fato a sua realidade hic
temente de outras teorias, de modo et nunc. Outras vezes, incute-se na
que é possível encontrar um enuncia- noção de fato a idéia de um proces-
do que falsela a teoria isoladamen- so, especialmente de um processo
te, mas não a teoria em conjunção temporal. O termo ““fato”* (ou seu
com outras. Popper reconheceu es- equivalente em várias línguas) tem si-
sas dificuldades e manifestou que o do usado em contextos muito diver-
seu critério deve ser acompanhado de sos. Para alguns autores, o fato é o
regras que tratem de evitar “imunit- resultado de um fazer; o fato, fac-
zar”' teorias e torná-las infalseáveis. tum, é o resultado da coisa levada a
cabo, res gesta; o fato é, ademais, o
FATO Diz-se a respeito de algo que princípio do verdadeiro, de tal mo-
é um “fato” quando Já está efetiva- do que verum ipsum factum (Vico).
mente “feito” (factum), quando já Para outros autores, os fatos são as
está “cumprido” e não se pode ne- realidades contingentes; neste senti-
gar a sua realidade (ou o seu ““ter si- do, embora com pressupostos mui-
do real”). Por isso se diz que “fatos to diversos, falou-se de verdades de
são fatos”, que uma coisa são os fa- fato, em contraste com as verdades
tos e outra muito distinta a idéia de derazão (ver VERDADES DE
RA-
fatos, ou então que cumpre aceitar ZAO, VERDADES DE FATO), co-
os fatos tal como são, sem tratar de mo sucede com Leibniz; ou então de
os falsear ou tergiversar, etc. Com proposições sobre fatos, em contras-
frequência opôs-se o fato à ilusão. te com as proposições sobre
relações
285 FATO

de idéias, como ocorre em Hume. são ciências de fatos ou ciências fá-


Kant falou com frequência do fato, ticas (Tatsachenwissenschaften). To-
Faktum, da ciência natural, quer di- do fato é contingente, ou seja, todo
zer, da física, como um ““fato” que fato poderia ser “essencialmente” al-
“está aí” e que deve justificar-se go distinto do que é. Mas isso indi-
epistemologicamente. Em alguns ca- ca que à significação de cada fato
sos, Os fatos são considerados obje- pertence Justamente uma essência, 1s-
tos primários da ““praxis”, a qual in- to é, um eidos que deve ser apreen-
clui a teoria. Os positivistas ““clássi- dido em sua pureza. As verdades fá-
cos** (como Comte) insistiram mui-
ticas inserem-se, deste modo, no ca-
to em que somente os fatos são ob- pítulo das verdades essenciais ou ver-
Jetos de conhecimento efetivo; só os dades eidéticas — que possuem di-
fatos são realidades ““positivas””. Os ferentes graus de generalidade (Ideen,
fatos podem ser ““fatos brutos”* ou
I, $ 2; Husserliana, III, 12). Assim
“fatos gerais”. Estes últimos são
“complexos de fatos brutos”. As-
sendo,
o ser fático se contrapõe (e su-
bordina) ao ser eidético, assim como
sim, por exemplo, a queda de uma
as ciências fáticas se contrapõem (e
maçã de uma árvore é um fato bru-
to que se explica por meio de um fa- subordinam) às ciências eidéticas
(ibid., $ 7; id., III, 2-23). Deve-se dis-
to geral: a gravitação.
Como se pode depreender, seria tinguir entre Tatsache e Sachverhalt;
longa uma história filosófica da no- com efeito, não se pode falar de
Sachverhalt eidético enquanto corre-
ção de fato. Seria, além disso, com-
lato de um juízo eidético e, portan-
plicada, porquanto em numerosos
casos o termo ““fato” foi usado sem to, de uma verdade eidética.
grande precisão conceitual — por Heidegger e Sartre introduziram
exemplo, no positivismo de Comte termos especiais para distinguir en-
não está muito claro em que medida tre “fato” em sentido corrente, co-
podem ser equiparados “fatos” com mo quando se fala do fato de que a
“fenômenos”. No presente verbete Galícia é uma região particularmen-
nos limitaremos a apresentar um es- te úmida, ou do fato de que estou es-
boço de algumas doutrinas contem- crevendo a palavra “fato” — e, de
porâneas nas quais o conceito de fa- um modo geral, de “fatos” em con-
to foi usado de um modo relativa- traposição com idéias e conceitos —
mente preciso. e “fato” num sentido existencial.
Na fenomenologia de Husserl es- Neste último sentido, Heidegger e
tabeleceu-se uma distinção entre fa- Sartre introduzem, respectivamente,
to (Tatsache) e essência (Wesen), mas os termos Faktizitãt e facticité, am-
foi igualmente sublinhada a insepa- bos traduzidos por ““facticidade”.
rabilidade (Untrennbarkeit) de am- Heidegger distingue entre a factici-
bos. Segundo Husserl, as ciências dade dos fatos em sentido “normal”
empíricas ou ciências de experiência e “natural” e a facticidade do Da-
FATO 286

sein; esta última é chamada Faktizi- Wittgenstein introduziu o termo


tat (derivado de factum) e a primei- “fato” (Tatsache) no Tractatus: “O
ra é chamada Tatsáàchlichkeit (deri- mundo é a totalidade dos fatos, não
vado de Tatsache). “À facticidade das coisas” (Tractatus, 1.1); “O
(Tatsãchlichkeit) do fato Dasein cha- mundo está determinado pelos fatos
mamos facticidade (Faktizitãt) e por haver todos os fatos” (1.11);
(Sein und Zeir, 8 12). A facticidade “Os fatos no espaço lógico são O
é uma das dimensões do Dasein en- mundo” (1.13); “O mundo divide-
quanto ““está-no-mundo”, e é o “fa- se em fatos” (1.2). De certo modo,
to”* de estar jogado entre as coisas o sentido wittgensteiniano de “fato”
e em situações. De um modo seme- é bastante corrente; o que Wittgens-
lhante, a facticidade é para Sartre tein tenha escrito no Tractatus logi-
uma dimensão básica do ““Para-si”, co-philosophicus é um fato exprimíi-
o qual está “sustentado por uma vel na proposição ““Wittgenstein es-
contingência perpétua”. Assim, por creveu o Tractatus logico-philosophi-
exemplo, sem a facticidade, a cons- cus”. Um fato é, como assina Max
clência poderia escolher suas vincu- Black (op. cit. infra), algo não ver-
lações com o mundo, de modo que bal, algo “no mundo”, o qual con-
“eu poderia determinar-me para siste num conjunto de fatos na me-
“nascer operário? ou para “nascer dida em que são expressados por
burguês ”* (L'Étre et le Néant, p. meio de enunciados contingentes.
126). Por outro lado, a facticidade Ora, Wittgenstein introduziu tam-
“não pode constituir-se como sendo bém a expressão Sachverhalt, que às
burguês ou como sendo operário”. vezes se traduz por ““estado de coi-
Por outras palavras, aquilo a que sas” (e assim foi traduzido de tex-
chamamos ““fatos”* determina o mo- tos originais de Husserl e Meinong,
do como vou estar no mundo, mas entre outros) e que Ogden traduziu
não pode determinar o meu ser. ““Es- por atomic fact (“fato atômico”).
ta contingência perpetuamente eva- Esta última tradução é a adotada por
nescente do Em-si que obsedia o Ernesto Tierno Galván em sua ver-
Para-si e o vincula ao Ser-em-si sem são castelhana do Tractatus: “O que
deixar-se jamais aprisionar é o que sucede [traduz-se às vezes: “o que
chamamos
a facticidade do Para-si.
Esta facticidade permite dizer que é,
Vem ao caso” ou “o que vem a pro-
pósito'] o fato é a existência dos fa-
que existe, embora nunca possamos tos atômicos (Sachverhalten)” (Trac-
realizá-la, uma vez que a apreende- tatus, 2); “O fato atômico (der Sach-
mos sempre atrávés do Para-si” (op. verhalf) é uma combinação de obje-
cit., p. 125). E impossível apreender tos (entidades, coisas) [Sachen, Din-
“a facticidade”* em sua nudez pura gen)” (2.01). D. F. Pears e B. F.
(brute nudité), pois tudo o que faze- McGuiness traduziram Sachverhalt
mos já está “assumido” por nós e por state of affairs (e state of things)
“ITivremente construído”. — equivalentes ao mencionado ““es-
287 FATO

tado de coisas”. Esta versão parece po de relação existe, se é que existe


corresponder mais exatamente ao alguma, entre fatos e coisas ou acon-
texto alemão, mas ““fato atômico” tecimentos. Alguns autores procla-
também tem sua justificação. De fa- maram que, como se indicou antes,
to, Max Black (A Companion to as coisas e os acontecimentos são
Wittgenstein's Tractatus, 1964, pp. simplesmente elementos constituti-
39 e ss.) declara-se a favor de atomic vos de fatos atômicos. Outros, em
fact, não só porque o próprio Witt- contrapartida, afirmam que as coil-
genstein viu a tradução de Ogden e Sas e os acontecimentos não podem
a aprovou, mas também porque ““a equiparar-se a fatos, e que deve ha-
sugestão de simplicidade lógica for- ver uma “linguagem das coisas” e
necida pelo adjetivo “atômico? cor-
uma “linguagem dos acontecimen-
responde exatamente às intenções de tos (ou dos processos)” distintas da
Wittgenstein” — mesmo quando, “linguagem dos fatos”. Os partidá-
como assinala Black, Wittgenstein rios da primeira teoria destacaram
nem sempre foi consistente no uso de
Sachverhalt. Acrescente-se que uma que, visto que tudo o que se diz de
das vantagens de “fato atômico” é algo é uma proposição, aquilo que
é dito na proposição constitui sem-
estar relacionado com um grupo de
expressões frequentemente usadas; pre um fato atômico (monádico, diá-
dico, etc.), seja qual for o “conteú-
por exemplo, ““proposições atômi- “do” da proposição. Assim, os fatos
cas”, cada uma das quais expressa
atômicos podem referir-se também
um fato atômico, combinando-se
tais proposições mediante conectivas a “puras qualidades”, tal como na
proposição “Isto é uma nódoa ver-
para formar as “proposições mole- melha”. Mas as dificuldades que sur-
culares”*. O fato atômico é compos-
to de “coisas”; o fato atômico ex- giram em conseqiiência da ambigiúi-
dade do termo ““fato” obrigaram al-
pressado pela proposição atômica
“Pedro está sentado defronte do es- guns autores (Russell) a distinguir en-
pelho”* é composto de ““coisas”* co- tre várias categorias de fatos. Assim,
mo Pedro, seu estar sentado defronte pode haver ““fatos gerais” (como
do espelho (e o espelho). Além dis- “há homens”). Também pode haver
so, a expressão “fato atômico” fa- “fatos negativos” (como ““Sócrates
cilita falar de tais fatos como fatos não está vivo”), uma vez que a to-
atômicos monádicos — quando con- da proposição positiva corresponde
sistem, por exemplo, na posse por uma proposição negativa, ou nega-
parte de uma entidade de uma pro- ção da anterior proposição.
priedade — e fatos atômicos diádi- Os fatos podem ser classificados
cos, triádicos, etc. — quando, por de diversos modos. Pode-se falar de
exemplo, se trata de relações entre fatos físicos, psíquicos, sociais, his-
duas ou mais entidades. tóricos, etc. Uma classificação mui-
A esse respeito, discutiu-se que ti- to corrente dos fatos é a que os divi-
FELAPTON 288

de em fatos naturais e fatos culturais. social e histórico, influenciado em


Se estes últimos são interpretados do suas percepções por modos sociais e
ponto de vista histórico, a classifi- por tradições.
cação resultante dos fatos é a que John R. Searle tratou dos “fatos
os divide em naturais e históricos. brutos” e dos “institucionais”, dis-
Debateu-se muito sobre se essa clas- tinção esta que se assemelha — em-
sificação está bem fundamentada. bora não coincida plenamente —
Alguns- autores afirmam que quais- com a mais frequente entre “fatos
quer características que se forneçam naturais” e “fatos culturais” (ou his-
dos fatos históricos podem ser igual- tóricos); a descrição dos fatos insti-
mente aplicadas aos fatos naturais; tucionais implica uma referência a
por exemplo, o serem fatos ““úni- instituições, normas e leis humanas
cos”, ““rrepetíveis” e ““rreversíi- (culturais).
vels””. Não obstante, ainda que os fa-
tos naturais sejam tão únicos, irre- FELAPTON É o nome que designa
petíveis e irreversíveis quanto os fa-
um dos modos, por muitos autores
tos históricos, não são considerados considerado válido, da terceira figu-
desde o mesmo ponto de vista. En-
ra (ver). Um exemplo de Felapton
quanto cada um dos fatos naturais pode ser:
é visto como um exemplo de uma de-
terminada classe de fatos, os fatos Se nenhum automóvel é lento
históricos não são, porém, simples e todos os automóveis são úteis,
exemplos de uma dada classe. Por então algumas coisas úteis não são
esse motivo, alguns autores afirmam lentas,
que os únicos fatos que merecem ser
assim são os fatos históricos. exemplo que corresponde à seguinte
Uma classificação diferente das lei da lógica quantificacional ele-
anteriores deve-se a Max Scheler. Se- mentar:
gundo este autor há três classes fun- (A X(Gx—> 1HxX) À A X(Gx— Fx))
damentais de fatos: (1) os “fatos fe-
nomenológicos”'; (2) os fatos dados
— VX(Ex
x | Hx)
na concepção natural do mundo, e e que, usando as letras “S”, “P” e “M”
(3) os fatos tratados pelas ciências. da lógica tradicional, pode expressar-se
Os fatos dados na concepção natu- mediante o seguinte esquema:
ral do mundo são os que se apresen- (MeP — MaS)— SoP
tam à percepção ordinária. São os
fatos que se designam com frequên- onde aparece claramente a seqiiência
cla como ““fatos do senso comum”: das letras “E”, “A”, “O”, origem do ter-
fatos que se oferecem ao homem en- mo fFelapton, na ordem MP-MS-SP.
quanto ser natural dotado de certos
órgãos de sensação e percepção — e FENOMENOLOGIA [. Sentido
pré.
também, talvez, ao homem como ser husserliano de Jenomenologia”
289 FENOMENOLOGIA

Em sua obra Neues Organon (1764), dos tipos de vida moral destinados
Lambert introduz a palavra ““feno- ao estabelecimento de uma hierar-
menologia”. Segundo ele, cabe à fe- quia que não exclua ilegitimamente
nomenologia distinguir entre verda- nenhum dos tipos essenciais que se
de e aparência. A fenomenologia é, manifestaram no decorrer da histó-
pois, como esse pensador a designa, ria humana. O termo ““fenomenolo-
a “teoria da aparência”, o funda- gia” adquiriu um lugar central e um
mento de todo saber empírico. Nos sentido muito preciso também no
Princípios metafísicos da Ciência pensamento de Husserl, Peirce e
Natural, também Kant fala de feno- Stumpf. Para este último, a fenome-
menologia. Referiu-se a uma pheno- nologia é uma ciência neutra que tra-
menologia generalis que deveria pre- ta dos “fenômenos psíquicos em si”,
ceder a metafísica e traçar uma linha quer dizer, enquanto conteúdos sig-
divisória entre o mundo sensível e o nificativos. Embora defenda energ71-
inteligível, a fim de evitar transposi- camente sua “neutralidade”, a feno-
ções ilegítimas de um para o outro menologia de Stumpf encontra-se, de
(Werke, ed. Cassirer, IX, 73; Cor- fato, envolvida em considerável pro-
respondência [com Lambert, 1770] porção com a psicologia, ou pelo
apud E. Cassirer, I. Kant, cap. II, menos com uma psicologia descrit1-
5, no tomo X de Werke). Por sua va. (Já Brentano falava, num con-
parte, ao estabelecer uma distinção texto semelhante, de uma fenome-
entre a psicologia e a lógica, Hamil- nognosia.) O termo ““fenomenolo-
ton assinala que a primeira é uma fe- gia” foi também usado por Peirce —
nomenologia, porquanto se refere ao que o tomou de Hegel — para desig-
que aparece em vez de aplicar-se ao nar uma das três partes em que, se-
pensamento enquanto tal. A feno- gundo ele, se divide a filosofia. A fe-
menologia é, então, uma psicogno- nomenologia — diz Peirce — cons-
sia ou exame das “idéias” tal como titui um estudo simples e não se sub-
de fato surgem e desaparecem no de- divide em outros ramos (Coll. Pa-
correr dos processos mentais. Hegel pers, 1.190). Peirce também chama
chama “fenomenologia do Espirito” à fenomenologia faneroscopia e de-
à ciência que mostra a sucessão das fine esta como a descrição do fane-
diferentes formas ou fenômenos da ron. Este é “o todo coletivo enquan- .
consciência até chegar ao saber ab- to está de qualquer modo ou em
soluto. A fenomenologia do Espiíri- qualquer sentido presente na mente,
to representa, segundo ele, a 1intro- independentemente de se correspon-
dução ao sistema total da ciência: a der ou não a alguma coisa real”
fenomenologia apresenta o ““devir da (1.284). Segundo Peirce, o termo
ciência em geral ou do saber”. Se- “faneron” designa algo semelhante
a
gundo Eduard von Hartmann, “fe-
nomenologia da consciência moral”
ao que os filósofos ingleses chama-
ram idéia, mesmo quando estes res-
equivale a uma descrição e análise tringiram exageradamente o signifi-
FENOMENOLOGIA 290

cado de “idéia”. Os fanerons estão tudo dos elementos do “faneron


inteiramente abertos à observação. com suas investigações sobre a lóg1-
Por isso a fenomenologia ou fane- ca das relações.
roscopia é ““o estudo que, apoiado II. Sentido husserliano e pós-
na observação direta dos fanerons e husserliano de “fenomenologia”. Na
mediante generalização de suas ob-
servações, assinala várias classes
época atual, quando se fala de feno-
menologia, a tendência é entender
muito amplas de fanerons; descreve por ela, principalmente, a fenome-
as características de cada uma des- nologia de Husserl e dos fenomenó-
sas classes; mostra que, embora se logos que partiram de Husserl ou
encontrem tão Inextricavelmente li- que, como no caso de Alexander
gados que nenhum pode ser isolado, Pfânder, relacionaram-se com Hus-
é evidente a grande disparidade dos serl de um modo diverso do de seus
seus caracteres; prova, em seguida, — mais ou menos fiéis — discípulos
que um certo número muito reduzi- ou continuadores. Tomada em sua
do compreende todas essas catego- máxima generalidade, a “escola fe-
rias mais amplas de fanerons existen- nomenológica” é complexa e varia-
tes e, por fim, empreende a laborio- da, e ainda o é mais o “movimento
sa e difícil tarefa de enumerar as fenomenológico”, como se pode ver
principais subdivisões dessas catego- na extensa história desse movimen-
rias” (1.286). A fenomenologia ou to escrita por Herbert Spiegelbereg.
Janeroscopia abstém-se de toda es- Dentro deste movimento figuram,
peculação no tocante às relações en- segundo Spiegelberg, a “fase alemã”
tre suas categorias e os fatos fisioló- (com a fenomenologia pura de Hus-
gicos, cerebrais ou de qualquer ou- serl e sua evolução; o já citado Pfãn-
tra índole. Limita-se a descrever as der, Adolf Reinach, Moritz Geiger,
aparências diretas e trata de combi- E. Stein, Roman Ingarden, e outros;
nar a exatidão minuciosa com a mais a fenomenologia das essências de
ampla especulação. Para praticar a Scheler; as bases fenomenológicas de
fenomenologia, não há que se estar Heidegger e de Nicolai Hartmann, a
influenciado por nenhuma tradição, “fase francesa” (caracterizada pelas
nenhuma autoridade, nenhuma su- relações de Gabriel Marcel com o
posição de que os fatos deveriam ser “movimento fenomenológico”* ou,
de um modo ou de outro; há que se pelo menos, com os “temas fenome-
limitar simples e honestamente à ob- nológicos”; e pelas bases fenomeno-
servação das aparências (1.287). Às lógicas de Jean-Paul Sartre, Mer-
divisões formais dos elementos do leau-Ponty e Paul Ricoeur), e outras
faneron devem ser divisões de acor- diversas “fases” e “períodos”. To-
do com o que Peirce chama valên- dos esses autores contribuíram de al-
cias. Encontramos assim médadas, gum modo para elaborar, modificar
mônadas, díadas, tríadas, tétradas, e, em muitos casos, “superar” a fe-
etc. (1.292). Peirce relacionou o es- nomenologia de Husserl, pelo que
291 FENOMENOLOGIA

uma apresentação da ““fenomenolo- seus correlatos em puros ““termos”


gla em geral” seria tarefa de monta, da consciência como consciência
pouco exequivel dentro dos limites intencional. Esta consciência não
do presente dicionário. Por esse mo- apreende os objetos do mundo na-
tivo nos referiremos nesta seção prin- tural como tais, mas tampouco cons-
cipal, e quase exclusivamente, à fe- titui o dado enquanto objeto de co-
nomenologia tal como foi esboçada nhecimento: apreende puras signifi-
e desenvolvida por Husserl. Além cações enquanto são simplesmente
disso, ocupar-nos-emos principal- dadas e tal como são dadas. A de-
mente, se bem que não de modo ex- puração antes mencionada conduz
clusivo, da fenomenologia husserlia- assim ao método fenomenológico e
na como “método” e como ““manei- constitui simultaneamente este mé-
ra de ver”. Observamos que em suas todo. Para implementá-lo, cumpre
origens, pelo menos, houve relações adotar uma atitude radical: a da
Interessantes, mas nas quais não po- “suspensão” do “mundo natural”.
demos deter-nos aqui, entre a feno- A crença na realidade do mundo na-
menologia husserliana (e, em parti- tural e as proposições a que tal cren-
cular, a preparação para a mesma) ça dá lugar são ““postas entre parên-
e as investigações de Stumpf, e, em teses” por meio da epokhé (ver) fe-
geral, as de Brentano e sua escola, nomenológica. Isto não quer dizer
assim como a atitude antipsicologista que se negue a realidade do mundo
de Frege no tocante à fundamenta- natural; a epokhé fenomenológica
ção da matemática. não é uma manifestação de cepticis-
Indicamos antes que a fenomeno- mo. Apenas acontece que, em con-
logia é, simultaneamente, um ““mé- sequência da epokhé, coloca-se, por
todo” e uma “maneira de ver””. Am- assim dizer, um novo ““sinal”º na
bos se encontram estreitamente rela- “atitude natural””'. Em virtude des-
cionados, porquanto o método se te “sinal” procede-se à abstenção de
constitui mediante uma maneira de Juízos sobre a existência espaço-
ver e esta é possibilitada pelo méto- temporal do mundo. O método fe-
do. Começaremos, entretanto, por nomenológico consiste, pois, em re-
destacar o método. Este se constitui considerar todos os conteúdos da
após a depuração do psicologismo. consciência. Em vez de examinar se:
É preciso mostrar que as leis lógicas tais conteúdos são reais ou irreais,
são leis lógicas puras e não empiri- ideais, imaginários, etc., passa-se a
cas ou transcendentais ou proceden- examiná-los enquanto são puramen-
tes de um suposto mundo inteligível te dados. Mediante a epokhé possi-
de caráter metafísico. Sobretudo, é bilita-se à consciência fenomenoló-
preciso mostrar que certos atos, tais gica ater-se ao dado enquanto tal e
como a abstração, o Juízo, a inferên- descrevê-lo em sua pureza. O dado
cia, etc., não são atos empíricos: são não é na fenomenologia de Husserl
atos de natureza intencional que têm o que é na filosofia transcendental
FENOMENOLOGIA 292

— um material que se organiza me- essenciais apreendidas fenomenolo-


diante formas de intuição e catego- gicamente são de muitas classes. Na
rias. Tampouco é algo empírico — intuição da cor vermelha ou, melhor,
os dados dos sentidos. O dado é o de um matiz de vermelho, dá-se à
correlato da consciência intencional. consciência intencional a essência
Não há conteúdos da consciência, “vermelho”. Na intuição de uma fi-
mas unicamente “fenômenos”. A fe- gura quadrada, dá-se à própria in-
nomenologia é uma pura descrição tuição a essência “quadrado”. No
do que se mostra por si mesmo, de puro fluxo do vivido, ou puro teci-
acordo com o ““princípio dos prin- do de vivências da consciência inten-
cípios”': reconhecer que ““toda intui- cional, encontram-se expressões e
ção primordial é uma fonte legítima significações. As significações “cum-
de conhecimento, que tudo o que se prem”' o que as expressões indicam.
apresenta por si mesmo “na intuição” Quando as significações, por sua
(e, por assim dizer, “em pessoa”) de- vez, são “cumpridas” ou “preenchi!-
ve ser aceito simplesmente como o das”, o que se obtém são as essên-
que se oferece e tal como se oferece, cias. Estas podem caracterizar-se,
ainda que apenas dentro dos limites pois, como o que se dá à intuição
em que se apresenta” (Ideen, $ 24). quando há adequação entre os atos
Portanto, a fenomenologia nada expressivos, os atos significativos e
pressupõe: nem o mundo natural, o cumprimento destes. A adequação
nem o senso comum, nem as propo- em questão pode ser parcial ou to-
sições da ciência, nem as experiên- tal; só neste último caso há verdadei-
clas psíquicas. Coloca-se “antes” de ra “intuição essencial””º (Wesens-
toda crença e de todo Julgamento pa- schau).
ra explorar simplesmente o dado. A redução eidética é apenas a pri-
Como declarou Husserl, é um ““po- meira fase da redução fenomenoló-
sitivismo absoluto””. Com base no Bica. Esta inclui a redução transcen-
mesmo é possível levar a cabo o pro- dental. Por seu intermédio coloca-se
cesso da redução ou, melhor dizen- entre parênteses a própria existência
do, de uma série de reduções. Antes da consciência. Com isso, a cons-
de qualquer outra, a redução eidéti- ciência volta-se para si mesma e em
ca. O que resulta desta — o seu ““re- vez de tender para o que se Ihe dá
síduo”* — são as essências (ver ES- tende para si em sua pureza intencio-
SÊNCIA). As essências são dadas à nal. Na atividade intencional, po-
intuição fenomenológica, a qual se dem-se distinguir, segundo Husserl,
converte deste modo numa apreen- dois pólos: o noético e o noemático.
são de “unidades ideais significati- Não se trata de duas realidades, e
vas” — de “sentidos” ou “objJetos- ainda menos de dois atos distintos,
sentidos”* —, de “universalidades”. mas de dois extremos de um simples
Estas não são conceitos lógicos nem e puro “fluxo intencional”*. A aten-
idéias platônicas. As universalidades ção para com o noemático é o carac-
293 FENOMENOLOGIA

terístico da intuição das essências. A desse pensador do que ao ““movi-


atenção ao noético é o característi- mento fenomenológico”. Pratica-
co da reversão da consciência para mente, só Eugen Fink trabalhou com
si mesma. Mediante esta operação Husserl] em seus esforços por desen-
obtém-se a consciência pura, trans- volver uma “fenomenologia genéti-
cendental, como ““resíduo último” ca” — como exploração dos atos
da redução fenomenológica. No constitutivos da consciência trans-
transcurso da redução eidética. Hus- cendental — e uma “fenomenologia
serl havia prestado primordial aten- construtiva” — como reconstrução
ção à fenomenologia como um ““mé- de dados que não se oferecem dire-
todo” e como uma ““maneira de ver” tamente. Pertencem ainda menos ao
que culminava na constituição de “movimento fenomenológico”* os
uma ““ciência universal”, fundamen- trabalhos de Husserl orientados no
to de todas as ciências particulares. sentido de superar o possível ““solip-
Com efeito, as ciências eidéticas, ou sismo” da consciência transcenden-
ciências de essências, convertiam-se tal e de restaurar a intersubjetivida-
em fundamento de todas as ciências. de das “consciências” — o que se
No decorrer da redução transcenden- chamou,-por vezes, “monadologia
tal, Husserl chega a uma idéia ““ego- transcendental”*. Em contrapartida,
lógica” da consciência — em con- influiu consideravelmente sobre fe-
traste com a idéia “não egológica” nomenólogos e sobre autores que
característica da fase às vezes chama- não pertencem a este movimento a
da “metódica” da fenomenologia. idéia husserliana de “mundo vivi-
Como nesta fase parecia ficar sem do”, a que nos referimos brevemente
apoio a atividade intencional, Hus- no artigo Lebenswelt.
serl concluiu que cumpre alicerçá- Indicamos antes que trataríamos
la no “eu transcendental”*. Daí, o principalmente da fenomenologia tal
“idealismo transcendental” de Hus- como foi elaborada por Husserl, so-
serl, repelido por muitos fenomenoó-. bretudo em sua fase “propriamente
logos como estranho ao propósito fenomenológica”. Entretanto, é per-
inicial da fenomenologia e até como tinente mencionar a esta altura co-
incompatível com tal propósito. En- mo muito ligada a esta fase a cha-
tretanto, Husserl insistiu em que, se mada ““fenomenologia das essên-
não se atingir o último resíduo do eu cias” de Marx Scheler. Este pensa-
transcendental, a própria fenome- dor ocupou-se especialmente das es-
nologia carece de base. As ciências sências como ““essências-valores” e
das essências fundam-se, em seu en- interessou-se pela “intuição emocio-
tender, numa ““egologia transcen- nal” de tais essências. Estas últimas
dental”. não se encontram diretamente liga-
A evolução da fenomenologia de das a significações; na intuição do
Husserl a partir deste momento per- valor do agradável, por exemplo, o
tence mais ao pensamento próprio que se intui não é a significação da
FERIO 294

essência “agradável”, mas (emocio- Se nenhum adolescente é


nalmente) a própria essência ““agra- trabalhador
dável”*. Scheler desenvolveu com de- e alguns finlandeses são
talhes uma teoria da “experiência fe- adolescentes,
nomenológica” ligada a uma doutri- então alguns finlandeses não são
na dos “fatos fenomenológicos”', em trabalhadores,
contraste com outros tipos de fatos
(ver FATO). exemplo que corresponde à seguinte
Pela variedade de tendências que lei da lógica quantificacional elemen-
se manifestaram no seio da fenome- tar:
nologia — inclusive na fenomenolo-
gia husserlliana — e pelos diversos (A X(Gx—>1HxX) x vX(FxX A Gx))
modos que adotou e as várias fases — AX(ExX NX
| HD)
que se desenvolveram dentro e fora e que, usando as letras “S”, “P” e
de Husserl, é cada vez mais comum
especificar a fenomenologia median-
“M” dalógica tradicional, pode ex-
pressar-se mediante o seguinte es-
te um adjetivo. Conforme jáfoi as-
sinalado, falou-se — relativamente quema:
a Husserl — de uma fenomenologia (MeP — SIM) — SoP
transcendental, de uma fenomenolo-
gia construtiva e de uma fenomeno- onde aparece Claramente a sequência
logia genética, e se poderia também das letras “E”, “1” e “O”, origem do
falar de uma fenomenologia ““sinté- termo Ferio na ordem MP-SM-SP.
tica” no sentido de ocupar-se dos
processos de ““síntese””, tanto ati- FERISON É o nome que designa um
va quanto passiva. É corrente, hoje dos modos válidos dos siltogismos da
em dia, distinguir pelo menos entre terceira figura (ver). Um exemplo de
três “espécies” de fenomenologia: a Ferison pode ser:
transcendental (centrada em Husserl
e em autores mais ou menos fielmen- Se nenhum leão é manso
te husserlianos), a existencial (a que e alguns leões são perigosos,
se manifesta de modos muito diver- então alguns seres perigosos não
sos, sem dúvida, em autores como são mansos,
Sartre e Merleau-Ponty) e, por fim,
exemplo que corresponde à seguinte
a fenomenologia hermenêutica. Es- lei da lógica quantificacional elemen-
ta última será tratada no verbete
HERMENÊUTICA. tar:
( AX(GxX>1HX)A
x X(Gx x EX)
FERIO É o nome que designa um
dos modos válidos dos silogismos da
— VX(FEx x Hx)1

primeira figura (ver). Um exemplo e que, usando as letras “S”, “P” e


de Ferio pode ser: "M” da lógica tradicional, pode ex-
295 FIGURA

pressar-se mediante o seguinte es- segunda figura (ver). Um exemplo de


quema: Festino pode ser:
(MeP — MIS) — SoP Se nenhum sábio é valente
e alguns nadadores são valentes,
onde aparece claramente a sequên- então alguns nadadores não são
cia das letras “E”, “TT”, “O”, ori- SábIoOS,
gem do termo fFerison, na ordem
MP-MS-SP. exemplo que corresponde à seguinte
lei da lógica quantificacional elemen-

FESAPO É o nome que designa um tar:


dos modos, por muitos autores con- (A X(Hx—>1GX) x VX(FX x Gx))
siderado válido, dos silogismos da
quarta figura (ver). Um exemplo de
— VX(Ex x | Hx)
e que, usando as letras “S”, “P” e
Fesapo pode ser: “M” da lógica tradicional, pode
Se nenhum corpo é inextenso expressar-se mediante o seguinte es-
e todas as coisas inextensas são quema:
INVISÍVEIS,
então algumas coisas invisíveis não
(PeM x SiM) — SoP
onde aparece claramente a sequên-
São corpos,
. cia das letras “E”, “TT”, “O”, orit-
exemplo que corresponde à seguinte gem do termo fFestino, na ordem
lei da lógica quantificacional ele- PM-SM-SP.
mentar:
FIGURA Num sentido geral, a figura
( A X(Hx — 1Gx) x Hx) — FX))
A X(GXx é equivalente à forma, ao perfil ou
— VX(Ex x| contorno de um objeto. Segundo
e que, usando as letras “S”, e
“M” da lógica tradicional, pode
“P“” Erich Auerbach (Neue Dantestudien,
1944, pp. 11-71), o termo figura es-
tá relacionado com as palavras fin-
expressar-se mediante o seguinte
gere, figulus, dictus e effigies; signi-
esquema: fica propriamente plastisches Gebil-
(PeM —— MaS)— SoP de [Imagem plástica] e encontra-se pe-
la primeira vez em Terêncio, quan-
onde aparece claramente a sequên- do um personagem chama nova figura
cia das letras “E”, “A”, “O”, orl-
auma moça.
gem do termo Fesapo, na ordem Na lógica, chamam-se figuras do
PM-MS-SP. silogismo aos diferentes modelos que
se obtêm mediante a combinação dos
FESTINO É o nome que designa um termos maior, médio e menor no ra-
dos modos válidos dos silogismos da ciocínio silogístico. Como o termo
296
FILOSOFIA ANALÍTICA

médio pode ser: sujeito na premissa demonstrações (ibid., 17,29a 19-26).


maior e predicado na premissa me- Ao referir-se a esta última considera-a
nor; predicado nas duas premissas; um silogismo inverso (avrTteOTQ OUuPpers
sujeito nas duas premissas; e predi- ouNhroyiopós, ibid., 128, 44 a 12-35).
cado na premissa maior e sujeito na Para Tukasiewicz, e nisto ele coin-
premissa menor, temos quatro figu- cide com Bocheúski (La logique de
ras que se esquematizam do seguin- Theophraste, Friburgo, Suíça [1947],
te modo:
p. 59), Aristóteles utilizava estes mo-
Primeira figura: dos, mas eles não foram incluídos em
sua divisão sistemática do silogismo
M P .
porque os capítulos que tratavam da
S M
quarta figura foram escritos mais tar-
de. Entretanto, a denominação mais
S P
comum é a de figura galênica, uma
Segunda figura: vez que se entende ter sido Galeno
P M quem a divulgou. Não existe em seus
S M textos referência à quarta figura pro-
priamente, mas convencionou-se as-
S P sim mesmo chamar figura galênica
ao silogismo composto, ou silogismo
Terceira figura: de quatro termos. Na realidade, a
M P quarta figura surgiu provavelmente
M S depois de Galeno, por volta do sé-
culo VI de nossa era.
S P Alguns lógicos não aceitam a quarta
figura, independentemente de que se
Quarta figura: a interprete como a inversa da pri-
P M meira ou como um modo desta, já
M SS. que a consideram antinatural.
As três primeiras figuras — em con-
S P Junto com a quarta — constituem a
base para uma série de modos váli-
Segundo Tukasiewicz (Silogistica
aristotélica, 1951, pp. 24-42), Aris-
dos do silogismo.
A
tóteles conhecia e aceitava todos os
FILOSOFIA ANALÍTICA Deram-
modos da quarta figura. Em seus es-
critos sistemáticos sobre o silogismo se os nomes de “análise”, “a Aná-
(Pr. An. L, cap. 4-6), aceita explici- lise”, “filosofia analítica” e outros
tamente apenas as três primeiras f1- — “*análise lógica”, “análise filosó-
guras (ver, em especial, ibid., 1 23, fica”, etc. — a vários modos de fa-
41 a 16), embora utilize a quarta em zer filosofia que constituem, vistos
297 FILOSOFIA ANALÍTICA

em perspectiva histórica, um amplo e outros acham que a filosofia é exa-


movimento, tendência, inclinação ou me da linguagem corrente ou ordi-
corrente, que inclui autores de diver- nária, sem ligação alguma com o
sas procedências — mas, sobretudo, aparato da lógica formal. Nas pró-
de línguas alemã, polonesa e inglesa prias origens, da filosofia analítica
— e que passou por várias fases des- na Inglaterra, com Russell e Moore,
de suas origens, no começo do século temos duas das grandes orientações
atual. dessa filosofia, respectivamente cen-
Os nomes ““análise” e “analítico” tradas na lógica (“linguagem ideal”)
revelam haver algo neste movimen- e na linguagem corrente.
to que se relaciona com a tendência Outra fonte histórica da filosofia
para usar métodos próprios de várias analítica encontra-se nos trabalhos
formas da análise clássica, mas con- que vão desde Mach e Hertz até o
vém distiguir entre esta última e a fi- Círculo de Viena e o positivismoló-
losofia analítica, não só porque mui- gico. A lógica e a filosofia da ciên-
tas vezes se entende a análise de mo- cia são ingredientes importantes nes-
dos distintos dos clássicos, mas tam- se desenvolvimento, e a lógica de um
bém, e sobretudo, porque há nesta modo muito particular, se também
filosofia suposições e finalidades que levarmos em conta o Círculo de Var-
somente se entendem no seu próprio sóvia. Mas não há traços simples que
contexto histórico. caracterizem esses desenvolvimentos.
Historicamente, a filosofia analí- Assim, vistas de fora, podem pare-
tica surge na Inglaterra com G. E. cer insignificantes as diferenças en-
Moore e Bertrand Russell, e, no ca- tre o Circulo de Viena e o primeiro
so de Russell, está estreitamente re- Wittgenstein, mas observadas com
lacionada com os desenvolvimentos mais atenção podem chegar a ser
da lógica desde Boole e Frege. Isso consideráveis.
fez com que, em certas ocasiões, ““fi- A filosofia analítica foi às vezes
losofia analítica” e “lógica” (“lógi- caracterizada por uma série de ““sim-
ca moderna”, “simbólica” ou “ma- patlas e discordâncias”: tendência
temática”, que durante algum tem- antudealista, repulsa à especulação
po se chamou em vários idiomas ““lo- e à metafísica, atenção às questões
gística”*) quase se identificassem, e suscitadas na e pela linguagem, des-
se chegasse à conclusão de que todo mascaramento de problemas tradi-
lógico é um filósofo analítico, e de cionais enquanto confusões causadas
que todo filósofo analítico está, pe- pelas ambigúidades ou pelo uso ina-
lo menos, interessado em lógica. Mas dequado da linguagem corrente, etc.
ainda que isto seja certo em nume- Mas ainda que tenha havido uma im-
rosos casos, não o é em outros: al- portante dose de antiidealismo (mais
guns consideram que a lógica formal especificamente, de anti-hegelianis-
é uma disciplina neutra em relação mo) em muitos autores, também
a toda tomada de posição filosófica, observou-se certa dose de fenomenis-
FILOSOFIA ANALÍTICA 298

mo em outros; a respulsa à espe- Russell, com o posterior desenvolvi-


culação e à metafísica dependem, em mento do atomismo lógico e uso dos
boa parte, do que se entenda por es- recursos da lógica formal. Isto leva
sas palavras; a atenção à linguagem a tentativas de construção da chamada
manifestou-se de formas muito diver- “linguagem ideal”.
sas; a linguagem corrente pode pro- 2. A análise de Russell é contem-
duzir confusões, mas alguns a con- porânea da análise de Moore e seus
sideraram o ponto de partida para a
|
discípulos, às vezes próxima do ““neo-
análise, etc. realismo”. As incorreções expressas
Nenhuma tendência filosófica de na linguagem corrente eliminam-se
alguma amplitude é redutível a tra- por meio de uma análise dessa mes-
ços simples ou típicos. Isso é o que ma linguagem, sem recorrer a lingua-
ocorre com a fenomenologia, o exis- gens formalizadas.
tencialismo, o marxismo, o estrutu- 3. A “Liga Mach” e o fenomenis-
ralisemo — para mencionar apenas mo na Áustria, com especial atenção
correntes de considerável peso no pen- ao estudo da linguagem científica.
samento contemporâneo. A chama- Originados em parte nessa tendência,
da “filosofia analítica” não é uma formam-se o Círculo de Viena e o
exceção. Contudo, existem ““seme- positivismo lógico (empirismo lógi-
lhanças familiares”* na maioria dos co), com forte tendência antimetafií-
filósofos analíticos, semelhanças essas sica, divisão de todos os enunciados
que se reconhecem na preferência por em tautologias e enunciados fáticos,
certos problemas, na escolha de cer- propensão reducionista (já fenome-
to vocabulário e de certos “exem- nista, já fisicalista), discussões sobre
plos”', etc. Esse “ar de família” não o princípio de verificação e atenção
é, porém, suficiente para caracteri- à estrutura lógica da linguagem da
zar as muitas fases e variantes da f1- ciência. Esta tendência prossegue
losofia analítica, já que muitas des- com a chamada ““filosofia ortodoxa
tas fases possuem traços próprios. da ciência”, com a elaboração da
Ora, melhor do que indicar tais es- forma nomológica-dedutiva.
colhas e preferências é traçar, em suas 4. Partindo de alguns dos proble-
linhas gerais, um breve quadro his- mas levantados no seio do positivis-
tórico e complementá-lo com várias mo lógico, desenvolvem-se as dou-
classificações que têm sido propos- trinas de Karl Popper, que logo se
tas da “análise”. ampliam e diversificam de forma
Seguindo a enumeração apresen- considerável, dando origem, histori-
tada no livro do autor, Cambio de camente, à chamada ““nova filosofia
Marcha en Filosofia (1, 2: “Varieda- da Ciência”.
des del análisis”), temos as seguin- 5. O primeiro Wittgenstein — que
tes formas que se sucederam em or- alguns consideram uma das duas
dem cronológica aproximada: grandes formas da filosofia analíti-
1. Análise lógica no sentido de ca — está ligado historicamente a (1)
299 FILOSOFIA ANALÍTICA

e a (3), mas difere deles em vários e muitos dos métodos e boa parte da
importantes aspectos. disposição da tradição analítica, no-
6. A diversificação do positivismo vos interesses são suscitados, proble-
lógico, filosófica e geograficamente, mas tradicionais são reinstaurados.
coincide com uma nova fase da aná- Começam mais intensas relações en-
lise, relacionada em grande parte tre a filosofia analítica e outras ten-
com o “último Wittgenstein”. Em dências filosóficas.
alguns, adota a forma do ““positivis- Outra classificação da filosofia
mo terapêutico”. Em outros, a de analítica é devida a L. S. Stebbing,
“análise da linguagem corrente (ou anterior à II Guerra Mundial. Esta
ordinária)”. Com o ““pluralismo lin- autora fala de quatro tipos de análi-
guístico” wittgensteiniano e pós- se — que, na verdade, são formas
wittgensteiniano, conjugam-se os possíveis de análise, mais do que ten-
pensadores do chamado ““Grupo de dências no âmbito da filosofia ana-
Oxford”, o qual inclui várias dire- lítica: (1) a análise como definição
ções: análise “informal” de Ryle; analítica de expressões simbólicas,
análise conceitual de Strawson; feno- tal como é empregada por Russell,
menologia lingúística de Austin. em especial na sua teoria das descri-
7. Juntamente com (6), amplia-se ções: (II) o esclarecimento analítico
o campo de interesses dos filósofos de conceitos (do qual um dos exem-
analíticos. Há consideráveis diferen- plos é a análise einsteiniana de ““é si-
ças entre o positivismo lógico orto- multâneo”*; (III) a análise postulati-
doxo e o “holismo” pragmatista de va usada na construção de um siste-
Quine. Abandona-se quase por com- ma logístico; (IV) a análise ““direti-
pleto o velho reducionismo; desen- va” que produz enunciados ostensi-
volve-se uma ““nova teleologia””. Os vos, cujos símbolos correspondem a
filósofos da ciência Iinteressam-se ca- “fatos atômicos”.
da vez mais pelo papel que desem- Uma das mais difundidas divide
penham os quadros conceituais, pe- praticamente todas as correntes ana-
lo “peso teórico”? dos próprios fa- líticas em duas tendências organiza-
.
tos e por contextos não Inteiramen- das em torno de dois centros de in-
te equivalentes ao de justificação. Ao teresse, que são justamente os mes-
intuicionismo ético dos primeiros mos que caracterizaram o pensamen-
tempos, e ao emotivismo ético da to de Russell e Moore nos começos
época em que ainda exercia influên- do século. Por um lado, há o inte-
cia o positivismo lógico, sucede o resse na constituição de uma lingua-
prescritivismo ético. Chega ao seu gem ideal que permita desfazer as
auge a diversificação de tendências ambiguidades inerentes à linguagem
analíticas. corrente ou ordinária. Por outro la-
8. Desdobram-se tendências que se do, há o interesse no estudo dessa
caracterizaram como ““pós-analíti- linguagem corrente ou ordinária.
cas”, porquanto, sem abandonar Usaram-se com freqiiência, a este
FILOSOFIA ANALÍTICA 300

respeito, as expressões ““filosofia da mo cientistas e estudem unicamente,


linguagem ideal” e “filosofia da lin- por exemplo, a estrutura de teorias
guagem corrente”, A primeira é científicas e a justificação lógica des-
construcionista; a segunda é descri- sa estrutura, o fato é que não acre-
tiva — num sentido muito amplo de ditam no que Russell chamou ““a fi-
“descrição”, já que em sentido es- losofia sem lágrimas”, isto é, sem
trito muitos filósofos da linguagem conhecimento das contribuições
corrente são antidescritivistas, mas científicas. Os filósofos da lingua-
somente enquanto negam que o úni- gem corrente podem ser chamados
CO uso, ou mesmo
o principal uso da
linguagem seja a descrição. Estes
“Tngúistas”. Visto que na linguagem
corrente encontram-se incorporadas
dois mencionados centros de interes- muitas estruturas e distinções que se-
se foram associados com o ““primei- ria tolice desdenhar, estes filósofos
ro Wittgenstein” e o “último Witt- parecem Iinteressar-se por muito mais
genstein”. coisas do que as que atraem os ““for-
Outra classificação centra-se na re- malistas”. Ao mesmo tempo, não
lação — maior ou menor, ou nula — obstante, estes mesmos filósofos se
entre a atividade filosófica e outras fecham (ou se fecharam) com fre-
atividades como a ciência, a arte, a quência numa atitude de puro ““pro-
religião, a política, etc. Muitos filó- fissionalismo analítico””, abraçando
sofos analíticos destacaram o cará- essa “filosofia sem lágrimas*”* — sem
ter de “pura atividade” da filosofia, física, sem psicologia, etc. (embora
negando que esta possua um conteú- nem sempre sem linguística) — que
do próprio ou que, como se costu- Russell denunciou. Mas esse ““pro-
ma dizer, seja “substantiva””. Outros fissionalismo analítico”, ao não de-
filósofos, em contrapartida, afirma- pender estritamente do progresso das
ram que a filosofia se encontra em ciências naturais, permitiu a não
estreita relação com outras ativida- poucos dos citados filósofos interes-
des, sobretudo com as de caráter sarem-se por muitas questões que os
cognoscitivo e, em especial, com as “formalistas” não levaram em conta.
ciências naturais. A classificação de Uma classificação muito em
voga
tendências filosóficas analíticas se- (ver R. M. Hare, P. Henle, S. Kôr-
gundo este critério coincide às vezes ner, “Symposium: The Nature of
com a mencionada no parágrafo an- Analysis”, The Journal of Philo-
terior, mas nem sempre. Os filóso- sophy, LIV, 1957, pp. 741-66) nos
fos da linguagem ideal são amiúde últimos tempos entende a expressão
“formalistas”. Consideram que a f1- “análise filosófica” de dois modos.
losofia é análise lógica da linguagem Assim, S. Kôrner indica que existe
e não tem um sentido determinado. (1) uma “análise de apresentação”
Ao mesmo tempo, muitos desses ou “análise de exibição”, que con-
mesmos filósofos estão interessados siste em apresentar ou exibir o sig-
nas clências; embora não atuem co- nificado de conceitos usados
por
301 FILOSOFIA ANALÍTICA

uma ou mais pessoas, e em formu- dação”; (B) “Pode-se fazer o mes-


lar as regras (ou critérios redutíveis mo com propósitos de crítica”; (C)
a regras) segundo as quais a pessoa “Pode-se fazer o mesmo com pro-
Ou pessoas em questão usam corre- pósito de revisão conceitual”. (A) es-
tamente os conceitos de que se va- tá próximo do sentido (1) do pará-
lem. Este tipo de análise, de que há grafo anterior e (C) aproxima-se do
muitos exemplos na ““filosofia da lin- sentido (2). Na opinião do autor, es-
guagem corrente”, dá lugar a pro- tes três modos de praticar a filoso-
posições empíricas. Há, por outro la- fia analítica — e, em geral, toda fi-
do (2), uma ““análise substantiva”, losofia — são igualmente indispen-
que consiste em examinar se os sig- sáveis, sendo, por isso, menos orien-
nificados de conceitos usados por tações do que dimensões da ativida-
uma ou mais pessoas são ou não ade- de filosófica.
quados para tal ou qual propósito es- Um certo número de filósofos
pecífico, e em propor correções lin- analíticos observou que a própria
guísticas — ou ““lingúístico-concei- análise pode e até deve ser objeto de
tuais** — capazes de corrigir confu- crítica. Surgiu assim um movimen-
sões, ambigúidades, contradições, to chamado ““análise crítica” — e
etc. É possível que nenhum filósofo também ““naturalismo crítico” —
tenha empregado em toda a sua pu- que tem seu órgão no Journal of Cri-
reza um só dos citados tipos de aná- tical Analysis, dirigido por P. S.
lise; em todo caso, é comum que os Schiavella, e patrocinado por auto-
que praticam a análise no sentido (1) res como William P. Alston, Mon-
passem a considerações próprias da roe Beardsley, Antony Flew, John
análise no sentido (2), e que os que Hospers, Joseph Margolis, Ernest
praticam esta última levem em con- Nagel, Willard V. Orman Quine, Is-
ta prescrições praticadas na primei- rael Scheffer, Victorino Tejera e
ra. A análise no sentido (1) avizinha- Marx W. Wartowsky.
se do que alguns chamaram ““anál]1- Outra forma de crítica da filoso-
se descritiva”; a análise no sentido fia analítica é a que, embora partin-
(2) acerca-se do que foi ocasional- do da tradição da análise, considera
mente classificado como ““análise re- que esta não é suficiente nas formas
visionista ”. que têm sido adotadas até agora, e
O autor da presente obra falou de que cumpre dar-lhe prosseguimento
três modos de praticar a filosofia sem preocupar-se em saber se, ao fim
analítica: (A) “Podem-se examinar e ao cabo, continua praticando-se a
expressões usadas e conceitos postos filosofia analítica. Com isso se osci-
em circulação nas ciências formais, la entre a “análise crítica” e a “críi-
naturais e sociais, na moral, na po- tica da análise”. Trata-se de uma
lítica, na arte e, de um modo geral, “mudança de marcha” na análise, o
em toda atividade humana, com pro- que é, por sua vez, uma mudança
pósito de esclarecimento e de eluci- vinda da análise. Elementos desta
FORMA 302

forma de filosofia analítica crítica cionamos entre os mais significati-


podem ser encontrados no livro do vos os seguintes: Cármides, 154 D;
autor da presente obra, já citada no Crítias, 116 D; Protágoras, 352 À;
início deste verbete [Cambio de Mar- Banquete, 189 E, 196 A, 205 B, 210
cha en Filosofía], onde a posição (4), B; Fédon, 73 A; Fedro, 102 B, 103
que é a defendida pelo autor, tangen- E, 229 D, 246 B, 263 B, 265 C; Tee-
cia por vezes a posição (3), que re- teto, 148 D, 178 A, 204 A; Repúbli-
chaça mesmo quando poderia ser ca, III 402 D, IV 424 C, VI S10 D;
aceita, uma vez reinterpretados e de- Parmênides, 132 D, 149 E; Sofista,
vidamente especificados os sentidos 219 A, 246 B, 440 B; Filebo, 19 B;
de termos tão amplos quanto ““su- Timeu, 51 A, 57 C; Leis, 1 645 A.
perar”'. Ora, a interpretação dos vários sen-
tidos da forma platônica (como
FORMA Trataremos neste verbete idéia, noção, espécie, gênero, etc.)
da noção de forma (1) em sentido fi- não pode ocupar-nos aqui; referên-
losófico geral e particularmente me- cias a ela encontram-se, no verbete
tafísico, (II) em sentido lógico, (III) IDÉIA (ver). Em compensação, tra-
em sentido epistemológico e (IV) em taremos com certa minúcia da con-
sentido estético. cepção aristotélica da forma, antes
I. Sentido filosófico geral e parti- de nos referirmos às classificações
cularmente metafísico. No verbete escolásticas e a vários dos problemas
FIGURA (ver) observamos que se que a clássica contraposição entre a
distingue, por vezes, entre figura e forma e a matéria cria para a época
forma. Esta distinção corresponde à moderna.
que existe entre a figura externa e a Aristóteles introduz a noção de
figura interna de um objeto. Ora, o forma, elôos, às vezes noon, Tô Ti
primeiro conceito conduz frequente- fv elvau, Tô Ti éoOTL, em muitas pas-
mente ao segundo. Assim ocorreu sagens de suas obras, mas, especial-
entre os gregos. Ao supor-se que um mente, na Física e na Metafísica. À
objeto possui não só uma figura pa- forma é entendida, por vezes, como
tente e visível mas também uma f1- a causa (ver) formal, em contraste
gura latente e invisível, forjou-se a com a causa material; esta contrapo-
noção de forma enquanto figura in- sição entre os dois tipos de causa é
terna, só captável pela mente. Esta paralela à contraposição mais gené-
figura interna é às vezes chamada rica que existe entre a causa formal
idéia, outras vezes, forma. A pala- e a matéria. A matéria é aquilo com
vra mais usualmente empregada por o qual se faz algo; a forma é aquilo
Platão para isso é elôos, vertido pa- que determina a matéria para ser al-
ra o latim, segundo os casos, como go, isto é, aquilo pelo qual alguma
forma, species, notio e genus. En- coisa é o que é. Assim, numa mesa
contramo-la em numerosas passa- de madeira, a madeira é a matéria
gens dos diálogos platônicos; men- com a qual é feita a mesa, e o mode-
303 FORMA

lo que o carpinteiro adotou é a sua matéria, ainda que nunca tenha exis-
forma. Desde este ponto de vista, a tência separada.
relação entre matéria e forma pode Vários são os problemas que se
ser comparada à relação entre potên- apresentam a respeito da noção aris-
cla e ato (ver). Com efeito, sendo a totélica de forma. Limitar-nos-emos
forma o que é aquilo que é, a forma aqui a mencionar os mais impor-
será a atualidade do que era poten- tantes.
cialmente. Ora, cumpre distinguir Para começar, o problema de se
entre os dois mencionados pares de há ou não formas separadas. Apa-
conceitos. Enquanto a relação ma- rentemente não, visto que toda rea-
téria-forma aplica-se à realidade num lidade é composta de forma e maté-
sentido muito geral e, por assim di- ria. Mas Aristóteles declara que a fi-
zer, estático, a relação potência-ato, losofia primeira tem por missão exa-
por seu lado, aplica-se à realidade minar a forma verdadeiramente se-
enquanto essa realidade está em mo- parável. E é sabido que o Primeiro
vimento (ou seja, em estado de de- Motor é forma pura, sem nada de
vir [ver]). A relação potência-ato faz- matéria. Pode-se admitir, por con-
nos compreender como mudam (on- seguinte, a existência, no âmbito do
tologicamente) as coisas; a relação aristotelismo, do que se convencio-
matéria-forma permite-nos entender nou chamar formas subsistentes por
como as colsas são compostas. Por si mesmas.
este motivo, o problema do par de Em segundo lugar, há o problema
conceitos matéria-forma é equivalen- do significado do termo “forma”
te à questão da composição das subs- dentro do par de conceitos matéria-
tâncias e, a rigor, de todas as real1- Jorma. Ao nosso ver, este significa-
dades. Por exemplo, enquanto as- do compreende-se melhor quanto to-
substâncias sublunares mudam e se mamos, de início, o termo “forma”
movimentam, e os astros se movi- como um termo relativo — relativo
mentam (com movimentos circulares ao termo ““matéria””. Isto permite
locais), e mesmo o Primeiro Motor, entender como uma determinada
embora não se mova, constitua um “entidade” pode ser, segundo os ca-
centro de atração para todo movi- SOS, forma ou matéria. Assim, a ma-
mento, as entidades matemáticas não deira, que é matéria para uma me-
mudam nem se movem, nem const!- sa, é forma relativamente à extensão.
tuem centros de atração para o mo- A extensão, que é matéria para a ma-
vimento. E, não obstante, estas en- deira, é forma relativamente à pos-
tidades também têm matéria, e for- sibilidade. Isso apresenta um proble-
ma; por exemplo, numa linha, a ex- ma a Aristóteles: se não há modo de
tensão é a matéria, e a “pontualida- deter a mencionada sucessão (pois a
de” (ou fato de ser constituída por possibilidade de extensão espacial
uma sucessão ininterrupta de pontos) pode converter-se em forma para a
é forma, a qual pode ser extraída da possibilidade da possibilidade de ex-
FORMA 304

tensão espacial, etc.), cairemos nu- é matéria para uma estátua, uma
ma regressão ao infinito. Para evitá- mesa ou uma casa, não para uma
la, podemos interpretar o par maté- sinfonia; a tinta é matéria para OS sI-
ria-forma em sentido platônico, is- nais, não para os astros, etc. Assim,
to é, conceber a matéria como o de- a matéria é sempre qualificada, não
terminado. Matéria e forma seriam porque tenha sempre certas qualida-
então equivalentes, respectivamente, des dadas, mas porque há sempre,
ao Não-Ser e ao Ser, ao essencial- pelo menos, matéria para certas qua-
mente Incognoscível e ao essencial- lidades que excluem outras quali-
mente Cognoscível. Mas com isso dades.
deveríamos admitir que matéria e (b) A forma pura é pensável, pois
forma não são termos relativos, mas o Primeiro Motor é forma pura. Dir-
realidades plenas. x não seria forma se-á que o Primeiro Motor é uma ex-
a respeito de y, e matéria a respeito ceção, já quê o universo de Aristó-
de w, Já que, pelo contrário, x seria teles parece composto de Primeiro
mais forma do que y, e w seria mais Motor e substâncias compostas. Mas
forma do que x (ou, se se quiser, x se em vez de uma concepção trans-
seria mais real do que y e w mais real cendente do Primeiro Motor afirma-
do que x). Não sendo isso admissí- mos uma concepção imanente dele,
vel à luz da filosofia de Aristóteles, a questão antes apresentada torna-
convém encontrar um modo de evi- se menos aguda.
tar, simultaneamente, a regressão ao Em terceiro lugar, temos o proble-
infinito e ao platonismo. A solução ma de até que ponto a forma consti-
que propomos pode ficar mais clara tui o princípio de individuação prin-
mediante as duas observações se- cipium individuationis).
guintes: Finalmente, pode-se apresentar o
(a) A matéria pura é impensável, problema — a que já se aludiu antes
porquanto não pode ser racional- — das diversas classes de formas. Es-
mente apreendida. Inclusive, a pos- te problema, embora tratado por
sibilidade nunca é mera possibilida- Aristóteles, foi elaborado com mais
de: é sempre ““possibilidade de...”. amplitude e precisão pelos autores
Assim, o receptáculo indeterminado escolásticos, aos quais nos referire-
platônico, disposto a receber qual- mos a seguir. Mencionaremos aqui
quer forma, deve ser excluído. Isto algumas das classes principais. Te-
explica, diga-se de passagem, por mos: (a) formas artificiais, como a
que nem todas as matérias, segundo forma da mesa ou da estátua; (b)
Aristóteles, são igualmente aptas pa- formas naturais, como a alma; (c)
ra receber todas as formas. Há, de formas substanciais, como as que
fato, diferentes classes de matéria compõem as substâncias corpóreas
(matéria para o movimento local; e que são estudadas em detalhe na
matéria para a mudança substancial, doutrina do hilemorfismo; (d) for-
etc.; cf. Phys., 260 b 4). A madeira mas acidentais que se agregam ao ser
305 FORMA

substancial para individualizá-lo, co- que “homens” e “mortais” se qua-


mo a cor; (e) formas puras ou sepa- lificam como variáveis (ou matéria)
radas (ou subsistentes), que se carac- da proposição. As formas também
terizam por sua pura atualidade ou são chamadas partículas lógicas,
realidade; (f) formas inerentes, que qualificando-se de estrutura lógica a
somente se entendem na medida em estrutura composta de tais partícu-
que se aplicam a uma matéria; (g) las ou formas. Pode-se entender as-
formas individuais; (h) formas exem- sim a frequente afirmação de que a
plares, etc. Esta classificação não sig- lógica somente se ocupa de propos!-
nifica que um ser ou seres determi- ções verdadeiras ou falsas a priori em
nados que consideremos como for- virtude de sua forma, e o fato de as
mas pertençam exclusivamente a deduções que a lógica efetua serem
uma classe de formas. Assim, por consideradas deduções formais.
exemplo, a alma humana é, ao mes- III. Sentido epistemológico. O
mo tempo, forma separada e ineren- sentido epistemológico mais conhe-
te, porque é um ente imortal e uma cido de “forma” é o que este termo
enteléquia do orgânico. Por outro la- tem em Kant quando fala das “for-
do, às vezes se agrupam as mencio- mas a priori”, e especificamente das
nadas classes de formas, e outras que “formas a priori da sensibilidade”
não mencionamos aqui, em classes (espaço e tempo). Em geral, trata-se
mais amplas; com efeito, alguns au- de estruturas que possibilitam orde-
tores indicam que há formas físicas nar o material da experiência — ou
(como a substancial ou acidental) e do “dado” na experiência — conver-
formas metafísicas (como a diferen- tendo-o em objeto de conhecimento.
ça relativamente ao gênero). segundo Kant, a matéria no fenôme-
II. Sentido lógico. Na lógica clás- no corresponde à sensação; a ela é
sica, distingue-se entre a forma e a imposta à forma, a fim de ordená-la.
matéria do juízo. A matéria é o que Cabe notar que em outra ocasião
muda no juízo; assim, o sujeito em que Kant introduz a noção de
“João” e o predicado “bom” no forma — a forma suprema da lei
juízo “João é bom” constituem a moral que é o imperativo categórico
matéria. A forma é o que permane- — trata-se de um conteúdo; o pró-
ce inalterável; assim, no enunciado prio conteúdo da pura lei moral. Mas
anterior, a cópula “é” constitui a o termo “forma” não tem, neste ca-
forma. Na lógica atual, costuma-se so, um sentido epistemológico.
chamar constante (ou elemento cons- IV. Sentido estético. Na estética,
à
tante) forma e variável (ou elemen- é costume distinguir entre a forma e
to variável) à matéria. Assim, na o conteúdo. Esta distinção é seme-
proposição “Todos os homens são lhante à que se estabeleceu em me-
mortais”, o quantificador universal tafísica entre a forma e matéria, mas
“Todos” e o verbo “são” chamam- enquanto metafisicamente a forma
se constantes (ou formas), ao passo é não-sensível (é “intelectual”, “con-
FORMA 306

ceitual”, etc.), esteticamente é sen- mente de forma sem conteúdo, nem


síivel. Além disso, de conteúdo sem forma, de modo
enquanto do pon-
to de vista metafísico a matéria é que ou ambas se encontram ““fundi-
aquilo com que se faz alguma coisa das” na “obra”, ou então são con-
que acabará tendo esta ou aquela tínuas.
forma, algo que está determinado Considerou-se classicamente que
por tal ou qual forma, na estética o uma obra de arte devia ter uma ““boa
conteúdo é o que se faz, ou o que se forma”; a isso se chamou formosus,
apresenta dentro de uma forma. Na de que deriva “formoso”. O que
metafísica, a forma costuma ser uni- é formosus ou bem-proporcionado
versal — supõe-se que as chamadas opõe-se a disforme, frequentemente
“formas singulares” possuem sua identificado com o feio.
própria “formalidade” — enquan- O termo “forma” é usado tam-
to na estética é singular. O caráter bém na estética para designar a or-
singular, particular ao único da for- dem em que estão dispostos os ele-
ma estética não lhe tira, porém, sua mentos num conjunto — por exem-
dimensão significante. Alguns esté- plo, para falar de simetria. Neste ca-
a
ticos falaram, tal respeito, de ““for-
mas significantes”.
so, a forma não se contrapõe ao
conteúdo.
Discutiu-se que relações há entre Uma das razões da frequente con-
a forma e o conteúdo, e propuseram- fusão na terminologia estética é que
se numerosas doutrinas que podem várias noções como as de ordem,
reduzir-se às duas seguintes: (1) a proporção, simetria, etc., aplicam-
forma é separável do conteúdo no se tanto à noção de forma como con-
sentido, pelo menos, de que pode ser traposta à de conteúdo quanto à de
descrita e julgada independentemen- forma como contraposta a elemen-
te do conteúdo; (2) forma e conteú- tos dispostos num conjunto.
do são inseparáveis. Os que mantêm Outra distinção comum na estéti-
(1) podem diferir na importância ca é entre forma e sentimento. Tam-
atribuída à forma ou ao conteúdo — bém neste caso discutiu-se se numa
o que se expressa ordinariamente obra de arte predomina (ou ““deve
quando se fala de quem dá mais im- predominar”) o sentimento ou a for-
portância ao modo como algo se diz ma, se é adequado classificar as
(descreve, pinta, etc.), em oposição obras de arte, e os estilos, de acordo
a quem confere mais importância ao com a suposta polaridade ““senti-
que se diz (descreve, pinta, etc.). mento-forma”, e se não seria melhor
Entende-se usualmente por “forma” abster-se de falar de semelhante po-
o “estilo”, a “maneira”, a “lingua- laridade. Esta última é a opinião de
gem”, etc.; entende-se por conteuú- Susane K. Langer, ao indicar que a
do o “assunto”, o ““significado”, frequente associação do sentimento
etc. Os que defendem (2) destacam com a espontaneidade, desta com a
que não se pode falar significativa- informalidade ou indiferença pela
307 FUNÇÃO DE VERDADE

forma, e desta com a ausência de for- FUNÇÃO DE VERDADE [. Função


ma, por um lado; e a associação da de verdade proposicional. Nos Prin-
forma com a formalidade, a regula- cipia Mathematica, Apêndice C, Wh!-
ção, a repressão e, em última análi- tehead e Russell esclarecem a noção
se, a ausência de sentimento, por ou- de função de verdade. Trata-se, di-
tro, é consequência de se ter eleva- zem eles, de uma das funções das pro-
do à dignidade de princípio uma mera
confusão lógica. ““A polaridade de posições. Estritamente falando,
é a característica essencial de propo-
sentimento e forma é, em si mesma,
um problema, pois a relação entre os sições, enquanto consideradas não co-
dois “pólos* não é realmente “polar”, mo fatos mas como ““veículos de ver-
Isto é, uma relação entre positivo e dade ou falsidade”. Na sua Introduc-
negativo, uma vez que sentimento e tion to Mathematical Philosophy
forma não são complementos lógi- (1919, 2º ed., 1920, pp. 146 e ss.),
cos” (S. K. Lange, Felling and Form: Russell considerou a questão da in-
A Theory of Art, L, 1953, p. 17). ferência da verdade ou falsidade de
proposições, estabelecendo como fun-
FRESISON É o nome que designa um ções de verdade as funções da nega-
dos modos válidos dos silogismos da ção, disjunção, conjunção, incompa-
quarta figura (ver). Um exemplo de tibilidade e implicação. A essa lista
Fresison pode ser:
podem adicionar-se outras funções,
Se nenhum beneditino é impaciente tais como a falsidade conjunta, ou
e alguns impacientes são miopes conjunção de duas negativas. A ver-
então alguns miopes não são be- dade ou falsidade de uma proposi-
neditinos, ção é chamada a sua “função de ver-
exemplo que corresponde à seguinte dade”.
lei da lógica quantificacional elemen- II. Função de verdade sentencial.
tar: Em relação com a noção de função
(A X(Hx—1GX) A VX(GX x FX)) de verdade pode-se usar o adjetivo
— VX(Fx
a1 Hx) composto ““veritativo-funcional”
(truth-functional). Segundo se trate
e que, usando as letras e
““S””, “P“”
“M” da lógica tradicional, pode
de proposições ou de sentenças, in-
troduzem-se compostos sentenciais,
expressar-se mediante o seguinte OS quais resultam de conectivas ló-
esquema:
gicas chamadas ““conectivas veri-
(PeM -— MIS) — SoP tativo-funcionais”. Diz-se que um
onde aparece claramente a sequên- composto proposicional ou um com-
cia das letras “E”, “T””, “O”, orit- posto sentencial é uma função de ver-
gem do termo fFresison na ordem dade das proposições ou das senten-
PM-MS-SP. ças de que se compõe quando o
FUTURO, FUTUROS 308

valor de verdade do composto é de- — q”. Os valores de verdade de um


terminado pelo valor de verdade dos composto sentencial são averiguados
elementos (proposições ou sentenças) por meio das chamadas tabelas de
constituintes. As conectivas veritati- verdade (ver).
vo-funcionais normalmente introdu- Se bem que a noção de função de
zidas em compêndios de lógica são verdade tenha sido elaborada, sobre-
“não”, “e”, “ou”, “se... então” e tudo, na lógica contemporânea, ela
“se e somente se”. não foi desconhecida na Antiguida-
Consideremos a expressão, propo- de e na Idade Média. Como Luka-
sição ou sentença: siewicz, Scholz, Bocheúski e outros
Anibal perdeu a guerra (1)
autores mostraram, Fílon de Mega-
ra e os estóicos admitiram, pelo me-
e a expressão, proposição ou senten- nos, a implicação como função de
ça:. verdade e tiveram rudimentos da no-
ção das tabelas de verdade. E o caso
Aníbal invernou em Cápua (2)
também de alguns filósofos helenis-
Por meio da conectiva ““e”, ticos e helenístico-romanos (Alexan-
forma-se então o composto: dre de Afrodisíade, Galeno, Am6ô-
nio, Boécio). Quanto aos escolásti-
Aníbal perdeu a guerra e Aníbal
cos, podemos citar como exemplos
invernou em Cápua (3).
Abelardo (Dialectica, ed. Cousin,
O valor de verdade de (3) é fun- 1836), Duns Escoto (nas Quaestiones
ção do valor de verdade de (1) e do super anal. pr.), Pedro Hispano (nas
valor de verdade de (2). Se (1) e 2) Summulae Logicales cum Versorii
são verdadeiros, (3) é verdadeiro, Parisiensis clarissima expositione,
mas (3) é falso se (1) e (2) são falsos Venetiis, 1568). Este último admitiu
ou se (1) é verdadeiro e (2) é falso, em sua lógica a diminuição inclusi-
ou se (1) é falso e (2) verdadeiro. O va e a conjunção como funções de
método para determinar o valor de verdade.
verdade dos compostos indicados,
produzidos por conectivas veritati-. FUTURO, FUTUROS Deve-se a
vo-funcionais, é o método das tabe- Aristóteles a primeira análise deta-
las de verdade (ver TABELAS DE lhada do problema dos futuros con-
VERDADE). |
tingentes — o problema da estrutu-
Na lógica sentencial, consideram- ra e valor de verdade dos enuncia-
se funções de verdade os compostos dos sobre futuros contingentes, e o
formados com base em conectivas. problema de apurar se pode haver
Assim, são funções de verdade futuros contingentes. O locus clas-
Tp,
e“pq”
q,
PA 9 DNA, pD2A0
c6ó 29 cé

.Do mesmo módo, são


sicus a este respeito é De interpreta-
tione, 9, 18 a 27 e ss. Aristóteles
funções de verdade expressões tais refere-se a esses futuros em outras
como “(pvqg)—- (par, “(pDAAg) partes de sua obra. Por exemplo, em
309 FUTURO, FUTUROS

De div. per somn., 2, 463 b 28-32, do para algumas proposições, mas é


Introduz uma distinção entre 7ô éoo- improvável que ele tivesse aprovado
uevor (“Ooque será”, do verbo eu, essa interpretação. Também se dis-
“ser”) e 17ô uéXNhor (“Oo por vir ou se que não rechaçou o princípio do
o porvir [não determinado]”, de terceiro excluído (segundo o qual
pédrdo, “estar [algo] a ponto de ser “ou p ou não-p”*) mas que, em com-
ou ocorrer”). Como escreve Aristó- pensação, negou a universalidade da
teles em Dediv. per somn., “o que validade do chamado ““princípio de
estava a ponto de ocorrer não é sem- bivalência”* (segundo o qual, “p é
pre o que está agora ocorrendo. verdadeiro ou p é falso”, com a con-
Tampouco o que será depois [7ô éo6- seqiiência de que se p é verdadeiro,
pevor] é igual ao que vai ocorrer ago- não-p é falso, e se p é falso, não-p
ra [70 peMNowr]”. Mas a passagem é verdadeiro [ver TABELAS DE
aludida de De interp. é mais impor- VERDADE]). Isto é mais provável,
tante e explicita. Em substância, visto que Aristóteles se refere sem-
Aristóteles afirma que todas as pro- pre, ao falar de proposições sobre fu-
posições (ou enunciados) são verda- turos e futuros condicionados, a va-
deiras ou falsas com exceção das pro- lores de verdade (verdade e falsida-
posições que afirmam que algo acon- de). Mas nem sempre é fácil distin-
tecerá ou não acontecerá no futuro, guir entre o princípio do terceiro ex-
quer dizer, que se referem a um ““fu- cluído e o princípio de bivalência.
turo contingente”. Estas proposições Em todo caso, as opiniões do Esta-
não são verdadeiras (porque não girita sobre o assunto devem-se pro-
ocorreu aquilo de que se trata), mas vavelmente a vários motivos. Entre
tampouco são falsas (porque não eles mencionamos os seguintes: a
afirmam que algo não é, nem negam oposição à doutrina megárica, se-
que algo é). Entretanto, a disjunção gundo a qual tudo o que é tem de ser
de uma de tais proposições com a ne- atual; a oposição ao fatalismo e ao
gação dela é necessariamente verda- determinismo, que para alguns é a
deira. Aristóteles dá um exemplo que consequência de afirmar que um de-
se tornou clássico: o da “batalha na- terminismo futuro terá ou não lugar.
val de amanhã”. Escreve o Estagiri- A respeito da doutrina megárica,
ta: “Haverá necessariamente ama- Aristóteles afirma que a regra segun-
nhã uma batalha naval ou não ha- do a qual uma proposição tem de ser
verá, mas não é necessário que haja verdadeira ou tem de ser falsa é acei-
amanhã uma batalha naval, e tam- tável quando se refere a algo atual,
pouco é necessário que não haja mas não é aceitável quando se refe-
amanhã uma batalha naval. Mas que re a algo em potência. Assim, Aris-
haja ou não haja amanhã uma ba- tóteles põe em dúvida a universali-
talha naval, isto é necessário.” dade absoluta de tal regra; primei-
Foi dito que Aristóteles rechaçou ro, por haver algo em potência; se-
assim o princípio do terceiro excluí- gundo, porque se não houvesse algo
FUTURO, FUTUROS 310

em potência não poderia explicar-se de ambos os modos. No problema de


o movimento ou devir (ver). Mas, ao referência estão implicadas, com
mesmo tempo, parece sugerir que há efeito, as questões da natureza do ne-
algo em potência, porque a regra em cessário e do contingente, e da na-
questão nem sempre é aplicável, nem tureza das proposições modais que
em todos os casos. No que se refere se formulam assim: “É necessário
às doutrinas fatalistas e determinis- que p”, “É possível que p”, “É pos-
tas, Aristóteles põe em dúvida que sível que não-p”, “É contingente que
seja necessário admitir que, se agora Pp”, etc.
é verdade que um certo acontecimen- Muitos filósofos medievais ocupa-
to ocorrerá, é falso que não ocorre- ram-se do problema dos futuros con-
rá; e que, se agora é falso que ocor- tingentes, quer do ponto de vista teo-
rerá, então é verdade que não ocorre- lógico, quer do ponto de vista lógi-
rá. As razões que levam Aristóteles co, ou de ambos. Característico de
a duvidar da tese anterior são com- tais filósofos foi considerar que a
plexas; não obedecem unicamente a questão dos futuros necessários e dos
uma análise dos predicados ““é ver- futuros contingentes estava estreita-
dadeiro”, “é falso”, “não é verda- mente relacionada com a questão das
deiro nem falso”, mas também às verdades eternas e das verdades não
doutrinas sustentadas acerca do que eternas ou temporais, respectivamen-
é real, acerca do movimento e do te. Consideraram com freqiência
acaso. que algo necessário é algo para sem-
Os estóicos seguiram a opinião di- pre, ab aeterno, verdadeiro; se não
fundida de que o princípio de biva- é necessário, não é verdadeiro para
lência constitui uma prova de deter- sempre. Uma proposição sobre o
minismo e, ao mesmo tempo, que o passado ou uma proposição sobre o
encadeamento necessário e universal presente são definitivamente falsas
de todos os fenômenos obriga a acei- ou definitivamente verdadeiras. Uma
tar sem nenhuma exceção possível o proposição de contingenti futuro não
princípio de bivalência. O assunto foi pode ser definitivamente verdadeira
examinado por não poucos filósofos ou definitivamente falsa, mas pode
da Antiguidade, tanto do período ser verdadeira se o que diz do futu-
imediatamente posterior a Aristóte- ro acontecer e falsa se o que diz do
les como do chamado período ““he- futuro não ocorrer. Até aqui, pare-
lenistico-romano”'. Em parte era tra- ce que se trata unicamente de uma
tado como uma questão metafísica, questão de lógica, e especificamen-
em parte, como uma questão lógica; te, de lógica modal. Mas logo se jun-
com freqgiência, era tratado no âm- taram nesses debates os problemas
bito de um estudo das modalidades, teológicos, em particular os dois pro-
as quais eram por sua vez entendi- blemas seguintes: o problema do co-
das ora metafisicamente (ou “onto- nhecimento por parte de Deus dos
logicamente”), ora logicamente, ora futuros e o da predeterminação ou
311 FUTURO, FUTUROS

não-predeterminação dos homens tal respeito, a citada obra de Ockham


(para a salvação eterna ou a conde- revela dois aspectos: um teológico
nação eterna). e outro lógico. Do ponto de vista
Santo Tomás frisou que Deus tem teológico, é interessante notar que
um conhecimento dos acontecimen- Ockham sustenta serem do conheci-
tos futuros distinto do que poderiam mento de Deus todos os futuros con-
ter as criaturas (no caso de que o pos- tingentes. Como indica Bóhner, co-
suam). Com efeito, Deus não conhe- nhece que parte de uma contradição
ce propriamente um futuro mas “um relativa a futuros contingentes é ver-
presente”*. Em suma, o futuro só é dadeira e que parte é falsa. Ora,
futuro para nós. Pensar o contrário Deus conhece a parte verdadeira por-
é negar que Deus seja eterno e, co- que a quer verdadeira, e a parte fal-
mo é sabido, o eterno transcende to- sa porque a quer falsa, ou seja, não
do o temporal (S. Theol., 1, q XIV, a quer como verdadeira. Isto não sig-
13 ad 2). Em compensação, Duns Es- nifica que o conhecimento em ques-
coto sustentava que o futuro (assim tão dependa da ““arbitrariedade”* de
como o passado) também é futuro Deus; ele depende, sobretudo, da
(ou passado) do ponto de vista da causalidade divina. Como assinala
eternidade divina, já que de outra Bôohner, para Ockham ““a vontade de
maneira não haveria distinção pos- Deus é a causa da verdade, mas não
sível entre passado e futuro. Além
do conhecimento que Deus tem des-
se fato contingente”*. Do ponto de
disso, Duns Escoto sustentava que as
vista lógico, afirmou-se (Michalski)
proposições em que se introduzem
que nas idéias de Ockham sobre os
expressões modais como ““é contin- futuros contingentes encontra-se o
gente”, “não é necessário”, “é pos-
germe da posterior lógica trivalente,
sível que “é possível que não”
”*,
tal como foi desenvolvida por Luka-
“não é impossível que não” e que se siewicz. Essa afirmação é considera-
referem ao conhecimento por parte da excessiva (cf. W. Kneale e M.
de Deus de um futuro, são proposi- Kneale, The Development of Logic,
ções contingentes; assim, por exem- 1962, p. 238, nota), porquanto
plo, a proposição “É contingente Ockham não parece ter admitido que
que Deus conheça que A será” é uma uma proposição sobre o futuro não
proposição contingente.. seja nem determinadamente verda-
No seu Tractatus de praedestina- deira nem determinadamente falsa.
tione et de praescientia Dei et de fu- Bóhner afirma que Ockham derivou
turis contingentibus, Ockham adere '

da opinião de Aristóteles antes rela-


a algumas das opiniões de Duns Es- tada certas conclusões ““que consti-
coto contrárias a Santo Tomás, mas tuem elementos de uma lógica triva-
difere de um e de outro em vários as- lente” (op. cit., p. 62), mas reconhe-
pectos importantes. Como a maior ce que se trata de um desenvolvimen-
parte das análises dos escolásticos a to “primitivo e cru” (op. cit., p. 65)
FUTURO, FUTUROS 312

e de modo nenhum de uma sistema- essa batalha. Inúmeras opiniões fo-


tização da lógica trivalente no senti- ram expressadas a tal respeito. Al-
do moderno.
guns autores (Rile, Anscombe) exa-
Entre os autores medievais que se minaram o problema como uma per-
ocuparam da questão dos futuros plexidade linguística. Outros adota-
contingentes figuram Santo Tomás ram um ponto de vista lógico e uma
de Aquino, Duns Escoto e Guilher- solução lógica (Lukasiewicz e o em-
me de.Ockham. Para esses autores, prego de uma lógica trivalente em
O aspecto teológico do problema es- vez de bivalente). Indagou-se se
tá ligado a uma análise lógica; os au- “chega a ser verdadeiro” é um pre-
tores modernos parecem interessar- dicado aceitável. Alguns negaram
se quase exclusivamente pelo aspec- que faça sentido falar de prédições
to teológico. Alguns filósofos mo- e que se possa afirmar que “chegam
dernos não escolásticos também se a ser verdadeiras”, porquanto não é
ocuparam do problema (Malebran-
che e, em particular, Leibniz; cf., por
possível determinar “quando
a pre-
dição chega a ser verdadeira””. Ou-
exemplo, Theod., I, $ 37), mas este tros opinaram que uma predição
ocupou um lugar menos central do chega a ser verdadeira se, e somente
que na Idade Média. quando, o acontecimento previsto
Na época contemporânea, foi re- ocorre, dado que, caso contrário,
presentado o problema dos futuros não faria o menor sentido usar ex-
contingentes — também chamados pressões como ““ocorrer” e ““ter
“futuros condicionados” e “futuros lugar”. Alguns consideraram que
condicionais”? — num sentido seme- “chega a ser verdadeiro” não é um
Thante ao de Aristóteles e referindo- predicado aceitável ou, simplesmen-
se com fregiúência ao exemplo aris- te, não é um predicado. O autor da
totélico da “batalha naval de ama- presente obra tratou do problema no
nhã” e à questão da verdade ou fal- âmbito de alguns conceitos usados
sidade do enunciado concernente a na teoria da informação.
G
G A letra maiúscula “G” é usada genérico”, etc.) são evitadas na ló-
com frequência para representar a gica contemporânea.
conclusão no esquema do juízo ou
da proposição que constitui a con-
GÊNERO Em lógica, chama-se ““gê-
clusão de um silogismo. Portanto, a
letra “G”* exerce a mesma função nero” a uma classe que tem maior
extensão e, por conseguinte, menor
que a letra “P””. Para o uso de “G”
na lógica quantificacional, ver F. compreensão do que outra, chama-
da espécie. Assim, por exemplo, a
classe dos animais é um gênero em
GENÉRICO Chama-se conceito ge- relação à classe dos homens, a qual
nérico ao conceito do gênero (ver). é uma espécie do dito gênero. Mas
Deste modo, distingue-se o conceito a classe dos animais é uma espécie
genérico do conceito geral (ver). do gênero que constitui a classe dos
Chama-se juízo genérico ao que se seres vivos. Quando um gênero
refere a uma característica do con- abrange todas as espécies, chama-se
ceito de Juízo observada num núme- “gênero generalíssimo” ou “gênero
ro indeterminado (mas não comple- supremo”: exemplos deste gênero
to) de membros. Alguns autores (co- são (segundo os autores), a substân-
mo Pfânder) definem o Juízo gené- cla, a coisa ou o ser. Alguns auto-
rico como aquele que tem como ob- res, entretanto, falam de gêneros su-
jeto-sujeito um gênero determinado premos (no plural) e os consideram
de objetos. Segundo o autor, os Juí- como gêneros indefiníveis que ser-
zos genéricos podem dividir-se em vem para definir os outros gêneros
cinco classes: (1) juízos cujo concei- e não são eles próprios espécies de
to-sujeito refere-se em todos os ca- nenhum outro gênero; tais gêneros
sos ao gênero; (2) juízos onde o con- equivalem então às categorias con-
ceito-sujeito refere-se ao gênero so- sideradas como noções primordiais
mente no caso normal; (3) juízos e irredutíveis. Na lógica clássica, o
cujo conceito-sujeito pode referir-se gênero é usado para a definição,
ao gênero no caso médio; (4) Juízos combinando-o com a diferença espe-
cujo conceito-sujeito pode referir-se cífica; em tal caso, o gênero comu-
ao gênero no caso típico; (5) Juízos mente usado é o chamado ““gênero
cujo conceito-sujeito só pode referir- próximo”.
se ao gênero no caso ideal. Tanto a A noção do gênero foi definida de
expressão ““conceito genérico” quan- muitas maneiras pelos filósofos, que,
to a expressão ““juízo genérico” (ou ademais, a identificaram com fre-
“proposição genérica”, “enunciado quência.com outros conceitos. Pla-
GÊNIO 314

tão, por exemplo, falou muitas ve- é um universal cuja natureza onto-
zes dos gêneros como idéias. Aristó- lógica se trata de determinar; o se-
teles (em Top., I 5, 102 a 31) define gundo é uma forma de predicação.
O gênero, yévos, como o atributo es- Essa distinção é desprezada por mui-
sencial aplicável a uma pluralidade tos autores modernos, os quais usam
de coisas que diferem entre si espe- o termo ““gênero” em ambas as
cificamente; a definição aristotélica acepções mencionadas. As razões
constitui, em linhas gerais, a base pa- (implícita ou explicitamente) aduzi-
ra a concepção que têm do gênero os das para adotar este último uso
lógicos de tendência clássica. Porfií- baseiam-se na idéia de que não é ne-
rio discute o gênero na lsagoge co- cessário separar a questão dos uni-
mo um dos predicáveis; as idéias por- versais numa parte ontológica e numa
firianas sobre as analogias e diferen- outra parte lógica; a questão surge,
ças entre o gênero e os demais pre- com efeito, tão logo ela é formula-
dicáveis foram delineadas no artigo da no campo da lógica, e observa-se
dedicado a este último conceito. Vá- que toda solução requer uma prévia
rias escolas (principalmente os estói- ontologia acerca do status das ent1-
cos) definem o gênero como um con- dades lógicas.
ceito coletivo; outras tendem a iden-
tificar o conceito de gênero com o GÊNIO O problema da natureza do
conceito de universal. Esta última gênio e da genialidade foi tratado em
tendência explica a frequente apre- filosofia especialmente no âmbito da
sentação das diversas doutrinas me- estética e da filosofia da arte. O in-
dievais sobre os universais como teresse pela questão do gênio foi des-
doutrinas relativas à natureza onto- pertado no século XVIII. Nos auto-
lógica dos gêneros, se bem que, por res desse século foi frequente referir-
Vezes, se acrescentem (como fez Por- se a Platão e a Aristóteles a este res-
fírio) os gêneros às espécies para peito. A teoria platônica do gênio
indagar-se acerca do seu status. As expressa-se na doutrina da inspira-
definições que, no âmbito da dispu- ção como loucura divina (Fedro, 244
ta dos universais, se dão do gênero A e ss.). A teoria aristotélica ex-
correspondem às diversas posições pressa-se na doutrina da capacidade
adotadas: os gêneros são apresenta- inventiva, mas não necessariamente
dos, com efeito, como entidades, Irracional ou “louca”, do criador
enunciados (sermones), etc. Isto não artístico. Os autores setencentistas
significa que sempre haja confusão apolaram-se ora em Platão ora em
entre o gênero entendido em senti- Aristóteles, mas isso não significa
do ontológico e o gênero entendido que suas idéias sobre a noção de gê-
em sentido lógico. Muitos autores nio fossem uma simples continuação
medievais estabelecem cuidadosa- das antigas doutrinas sobre a Inspi-
mente a distinção entre o genus na- ração poética. Importante na evolu-
turale e o genus logicum: o primeiro ção das idéias sobre o problema foi
315 GERAÇÃO

O estudo de Alexander Gerard, An arte e o que possui a intuição do Ab-


Essay on Genius (1774). Gerard con- soluto; a rigor, o gênio é apresenta-
sidera que o gênio é equivalente à do como a encarnação do Absoluto.
originalidade; não é, portanto, a imi- Por 1sso se afirmava a solidão, a in-
tação, por mais talentosa que seja, felicidade, a melancolia do gênio, as-
de um modelo, mas a produção de sim como sua incomensurabilidade
um modelo. Na Crítica do Juízo (ver — tanto social quanto ética — com
especialmente $ 46), Kant desenvol- os demais seres humanos.
veu uma idéia semelhante: o gênio é Numa tese de grande repercussão,
“a disposição mental inata (inge- e não alheia às concepções românti-
nium) mediante a qual a Natureza dá cas do gênio, Cesare Lombroso sus-
a regra à arte”, O gênio não é, pois, tentou a Íntima revelação do gênio
simplesmente o talento ou o enge- com a loucura (Genio e follia, 1864,
nho, por grandes que estes sejam; 4º ed. rev., 1882) — a chamada
possui uma qualidade própria que “teoria patológica do gênio”. Mas
nenhum talento ou engenho possui: o gênio também possui ou pode pos-
a de fazer regras. Assim, o gênio não suir, segtúndo Lombroso, caracteres
tem necessidade de submeter-se a re- de degeneração (Genio e degenera-
gras, visto que as produz, mas não zione, 1897).
se deve confundir esta liberdade do Na época atual, o problema do gê-
gênio com a mera arbitrariedade; as nio continua sendo examinado em
regras produzidas pelo gênio não são seu aspecto estético, quase sempre
deriváveis de outros modelos, mas seguindo as pegadas de Gerard e
são regras. Kant, e também é estudado no sen-
A maior parte dos autores, depois tido psicológico, este último como
de Kant, baseou-se nele, de um mo- “medida da inteligência”.
do ou de outro; foi o que ocorreu,
por exemplo, com Schopenhauer. GERAÇÃO Muitos filósofos gregos
Mas Schopenhauer especificou a no- ocuparam-se de como algumas coi-
ção de gênio em relação com a sua Sas se transformaram em outras; es-
própria metafísica; o gênio é, para te é o problema da mudança ou de-
ele (Welt., III, sup. 111), o que é ca- vir (ver), diferente do problema do
paz de ver a Idéia no fenômeno. Não movimento propriamente dito ou lo-
poucos autores idealistas extrema- comoção. Se existisse uma única
ram a concepção do gênio como ori- substância, e só pudesse existir uma
ginalidade e, ao mesmo tempo — pa- única substância, esta nunca se trans-
radoxalmente — fizeram do gênio o formaria em outra, de modo que se-
que é capaz da revelação do Abso- ria difícil explicar a mudança. No
luto, o qual, por assim dizer, já está máximo, poder-se-ia dizer que a
“dado”. Esta é a chamada ““concep- substância única passa por modifi-
ção romântica” do gênio, que é si- cações, as quais teriam de ser sem-
multaneamente o que cria a obra de pre acidentais. Os pluralistas (Empé-
GERAÇÃO 316

docles, Anaxágoras, Demócrito) ten- relacionadas com as mudanças de


taram resolver o problema afirman- qualidade e as mudanças de tama-
do a existência de uma pluralidade nho. Aristóteles opõe-se às teorias
de “substâncias” ou “elementos”; dos filósofos anteriores, sublinhan-
toda mudança é, então, explicada pe- do as dificuldades que se encontram
la combinação e mistura de tais em cada uma delas. Em seu enten-
“substâncias” ou “elementos”. Es- der, não se pode falar de uma gera-
ta combinação e mistura podem ser ção “absoluta” e de uma corrupção
de natureza qualitativa (como em “absoluta” (ou “não qualificada”),
Empédocles e Anaxágoras) ou estar se Isto equivale a afirmar que uma
baseadas em características quanti- substância procede do nada e se con-
tativas ou ““posicionais”* (como em verte em nada. Mas pode-se introdu-
zir O conceito de geração e o de cor-
|

Demócrito).
No artigo DEVIR, referimo-nos às rupção em relação com a idéia de
doutrinas de Platão e de Aristóteles privação e, por conseguinte, com re-
a respeito da geração, yévous e à mu- ferência a alguma forma de ““não
dança contraposta à geração: a cor- ser”* — pelo menos, enquanto ““não
rupção, ç0opea. ser algo determinado”. Mais pro-
Além dos textos de Aristóteles priamente se fala de geração e cor-
aduzidos no citado artigo, chama- rupção ““relativas” ou ““qualifica-
mos a atenção para o seguinte: “A das”, porquanto se assume a existên-
mudança de um não-ser para um ser, cia de uma “matéria” ou ““substra-
que é o seu contraditório, é a gera- to*”*
que adota diversas formas subs-
ção, que para a mudança absoluta é tanciais. Assim, pode-se dizer que se
geração absoluta e para a mudança engendra uma substância enquanto
relativa é geração relativa. A mudan- se corrompe (ou destrói) outra subs-
ça de um ser para um não-ser é a cor- tância, e vice-versa.
rupção, que para a mudança abso- A questão da geração e corrupção
luta é corrupção absoluta e para mu- dos corpos e das substâncias do
dança relativa é corrupção relativa” mundo (sensível) foi tratada pela
(Mer., K, 11, 1067 b 20-5). “Abso- maior parte dos autores antigos. Em-
luto” e“relativo” têm aqui os sen- bora se manifestassem muitas opi-
tidos de “não qualificado” e “qua- niões a respeito, elas podem ser di-
lificado”, respectivamente. Em De vididas em três fundamentais: segun-
generatione et corruptione, Aristó- do certos autores, o modo de expli-
teles estuda o “chegar a ser” e o cação aristotélica (embora modificá-
“deixar de ser”, enquanto são ““por vel em certos pontos) é basicamente
natureza”* e podem ser predicados aceitável, pelo menos no que tange
uniformemente de todas as coisas aos entes naturais “sublunares”*; se-
(naturais). Este chegar a ser (gera- gundo outros, há que se aceitar o ti-
ção) e deixar de ser (corrupção) são po de explicação mais simples dado
espécies de mudança estreitamente pelos atomistas; segundo outros ain-
317 GERAL

da, os conceitos de geração e corrup- phique de G. d'Ockham, s.v. “Ge-


ção, embora aplicáveis particular- neratio”). A primeira consiste na
mente ao mundo sensível, são deri- produção de uma realidade nova que
váveis de conceitos procedentes do
estudo do mundo não-sensível. A
se
antes não existia, como quando
troduz na
in-
matéria uma nova forma
eles refere-se Plotino, ao indicar que substancial. A segunda consiste em
a alteração é o fundamento da gera- qualquer mudança real que possa so-
ção (Enn., VI, iu, 21). breviver a uma coisa tal que seja pos-
Os autores medievais, e em parti- sível formular uma nova proposição
cular os escolásticos, foram propen- sobre ela.
sos a distinguir as diversas noções de O termo generatio também foi em-
“geração”. O mais comum foi dis- pregado por alguns autores medie-
tinguir, antes de tudo, geração, ge- vais em contextos teológicos, cha-
neratio, e criação, creatio. À primei- mando-se ““geração” à produção
ra é produção a partir de algo, e es- eterna do Verbo (cf. Santo Tomás,
pecialmente pela introdução de uma S. Theol., 1, q VII-XX, a 2). Se bem
nova forma na matéria. A geração que esta idéia de geração seja forma-
é entendida sempre como mudança, da, pelo menos em parte, por ana-
mutatio, não como movimento, mo- logia com a noção de geração bioló-
tus. A mudança em questão é súbi- gica — especialmente na medida em
ta, mutatio subita, pois não se pode que esta última é entendida como o
dizer que entre duas coisas, a e b, há processo mediante o qual se origina
uma terceira, c, que se interpõe, de um ser vivo de um princípio vivo a
forma que a produz c e depois Db; is- que se ache unido por semelhança de
to equivaleria a três coisas e não só natureza —, não se deve estender a
a duas. Deve-se advertir que a gera- analogia mais além do necessário pa-
ção não afeta propriamente nem a ra a compreensão.
forma nem a matéria, mas tão-so- Deve-se distinguir entre o conceil-
mente o composto; com efeito, ma- to biológico e, em geral, natural de
téria e forma não podem mudar em geração, e o conceito lógico, intro-
si mesmas. duzido quando se fala, por exemplo,
Santo Tomás seguiu Aristóteles de definição (ver) por geração (ou
em sua explicação da geração, de- definição genética).
finindo-a como o ““chegar a ser””, em
contraste com a corrupção, que é um GERAL O termo ““geral”* é usado
“deixar de ser” (Cont. Gent., L, 28). em lógica (e, com frequência, em
Guilherme de Ockham distinguiu en- epistemologia e em metodologia) em
tre uma generatio simpliciter e uma dois sentidos.
generatio secundum quid. (CÍ. Quaes- (1) Diz-se que um conceito é geral
tiones in libros Phys., qa CVII, e quando se aplica a todos os indiví-
Summulae in libros Phys., III, 8, duos de uma determinada classe; por
apud L. Braudry, Lexique philoso- exemplo, o conceito Homem é um
GNOSIOLOGIA 318

conceito geral. O conceito geral dis- ca-se, às vezes, com O juízo univer-
tingue-se neste caso do conceito co- sal. Também esta confusão é inad-
letivo, que se aplica a um grupo de missível; com efeito, enquanto é pos-
indivíduos enquanto grupo, mas não sível dizer “é um juízo muito geral”,
aos indivíduos componentes; por não é possível dizer ““é um juízo mui-
exemplo, o conceito Rebanho é um to universal”. Diga-se de passagem
conceito coletivo, mas não geral. Por que o mencionado uso de “geral”
vezes, o termo ““geral”* é usado no aplicado ao juízo fundamenta-se no
mesmo sentido que o termo “univer- caráter vago de sua significação. Por
sal”*. Entretanto, verificou-se que es- este motivo, Lalande recomenda (cf.
ta confusão deve ser evitada na me- Vocabulaire, s.v. “Général”*) não
dida do possível. Com efeito, deve- usar “geral” mas, segundo o caso,
se usar “geral”* (como propõem Go- “universal” ou “genérico” quando
blot e Maritain) somente no sentido se fala de um juízo ou de uma pro-
de “universal enquanto abstrato” e posição.
nunca no sentido de ““universal en-
quanto distributivo””. Deste modo, GNOSIOLOGIA Expusemos nos
O conceito particular opõe-se ao con- verbetes CONHECER e CONHECIT-
ceito univesal distributivo, mas não MENTO os problemas principais da
ao conceito universal enquanto abs- teoria do conhecimento e as diversas
trato. Além do mais, 1sto torna pos- soluções propostas para eles. No pre-
sível que o conceito geral se oponha sente verbete, referir-nos-emos uni-
a um conceito menos geral ou me- camente ao termo ““gnosiologia”.
nos universal, mas não a um concel- O vocábulo ““gnosiologia” foi em-
to particular (cf. Maritain, Petite lo- pregado pela primeira vez no século
gique, cap. [, sec. 2, $ 4). Por exem- XVII (por exemplo, por Valentin
plo, o conceito Homem é mais geral Fromme [1601-1675] em sua Gnos-
do que o conceito Europeu, e o con- teologia, 1631; por J. Micraelius, no
ceito Europeu é mais particular do Lexicon philosophicum terminorum
que o conceito Homem. philosophis usitatorum, 1653, s.v.
(2) Diz-se que um juízo é geral “Philosophia”; e por Georg Gutke
quando se refere a um número fini- em Habitus primorum principorum
to ou indefinido de indivíduos. Por seu intelligentiae, 1666), sob a for-
vezes, confunde-se o juízo geral com ma Gnostologia. Assim designou ele
o juízo coletivo; segundo Goblot, es- uma das disciplinas em que se divi-
ta confusão é inadmissível, porque, de a Metafísica. A Gnostologia ocu-
enquanto o juízo coletivo total ba- pa-se do conhecimento. Escreve Gut-
seia-se nos juízos singulares que to- ke que a missão da gnosiologia é “de
taliza, o juízo geral não procede por apprehensione cognoscibilias & prin-
totalização mas por generalização de cipiis essendi agens”. Em época mais
Juízos singulares (cf. Goblot, Logr- recente, o termo ““gnosiologia” (nas
que, 8 110). O juízo geral identifi- diversas formas das linguagens mo-
319 GNOSTICISMO

dernas: Gnoseologie, Gnoseology, Podem-se rastrear indícios de


Gnoseologia, etc.) tem sido empre- “egnosticismo” já na especulação f!-
gado com frequência para designar losófica grega da época da “deca-
a teoria do conhecimento. Entretan- dência”. Por outro lado, o gnosti-
to, foi mais frequente o emprego des- cismo parece poder desenvolver-se
se termo nas línguas neolatinas do somente no âmbito da corrente cris-
que em alemão ou inglês. Em alemão tã. Esta dupla e ocasionalmente con-
usa-se com maior freqiiência Er- trária raiz do gnosticismo não é um
Kkenntnistheorie (teoria do conheci-
dos problemas menores dessa ten-
mento) e, às vezes, Erkenntniskritik; dência, e isso de tal modo que sua
em inglês é mais frequente o empre-
compreensão depende de maneira
go de Epistemology. Em francês, decisiva do maior ou menor peso da-
usa-se muito a expressão théorie de do à “fonte” helênica ou à cristã.
la connaissance, mas, por vezes, en-
Para alguns, com efeito, o gnost!-
contraremos também os vocábulos cismo é uma ““filosofia cristã” ou,
gnoséologie e épistémologie.
pelo menos, uma tentativa de o ser;
GNOSTICISMO Entendido no sen- esta opinião, que Harnack defende,
não se encontra muito longe da idéia
tido mais geral, o gnosticismo é a
doutrina segundo a qual é possível sustentada por Plotino, que em seu
conhecer (alguma realidade em si, úl- tratado contra os gnósticos não dis-
tima ou absoluta). Dá-se o nome de tingue entre eles e os cristãos, e os
gnósticos aos que adotam essa dou- Junta todos num sentimento anti-he-
lênico comum. Para outros, em con-
trina. Neste sentido, o gnosticismo
opõe-se ao agnosticismo, e os gnós- trapartida, o gnosticismo é uma ma-
ticos são o contrário dos agnósticos. nifestação interna do pensamento
Num sentido menos geral, o ter- antigo da decadência, que precisa-
mo ““gnosticismo”* é usado para ro-
tular uma série de doutrinas que se
mente aproveita para a sua consti-
tuição os elementos que lhe fornece
O cristianismo e os
difundiram no mundo antigo, come- aparentes con-
çando com a chamada ““gnose (ou flitos entre a Antiga e a Nova Lei.
conhecimento, vós) mágico-vul- Em todo caso, para os efeitos de
uma descrição das suas característi-
gar” e prosseguindo com vários sis-
temas, especialmente a partir do sé- cas, não é possível eliminar nenhu-
culo II d.C. Os gnósticos elaboraram ma das duas fontes. Em geral, o
grandes sistemas teológico-filosófi- gnosticismo pode ser considerado
cos nos quais se misturam esplana- um dos intentos de “salvação pelo
ções do tipo platônico — aliás, re- saber” que abundaram assim que se
pelidas por Plotino, que escreveu um abandonou a via estritamente inte-
dos tratados de suas Enéadas ““con- lectual.
tra os gnósticos”* — com doutrinas Historicamente, costuma-se distin-
cristãs e tradições judaicas e orientais. guir entre três tipos de gnose: a gno-
GÓODEL 320
(PROVA DE)

se mágico-vulgar, a gnose mitológr- zido por uma seita — ou seitas — re-


ca e a gnose especulativa. Observe- lacionada com a gnose mitológica.
se que, embora existam consideráveis Os principais representantes da
diferenças entre as três gnoses, al- gnose especulativa são Basílides,
guns dos temas de cada uma podem Carpócrates, Valentino e Marcion,
ligar-se com outros temas das restan- se bem que este último seja conside-
tes. Assim, há traços mágicos na rado por alguns autores (A. von
gnose especulativa e, sobretudo, na Harnack, H. Leisegang) um filóso-
mitológica, traços mitológicos na es- fo não gnóstico.
peculativa e traços especulativos na
mitológica. Além disso, as duas úl- GODEL (PROVA DE) Até 1931,
timas têm características comuns acreditou-se ser possível levar a efer-
muito acentuadas, como a tendência to o programa de completa axioma-
para descrever o cosmo mediante tização da matemática proposto por
imagens extraídas de motivos orien- David Hilbert e outros autores. Su-
tais (sobretudo bíblicos) e gregos punha-se que se poderia achar um
(principalmente míticos); a suposição sistema logístico no qual a matemá-
de que há dois pólos — o positivo e tica (clássica) ficaria alojada e que se
o negativo, ou o bem e o mal —, en- poderia provar que tal sistema era
tre os quais se movimenta a alma, e completo e consistente. Kurt Goóodel
a crença na possibilidade de influen- Jogou por terra semelhante suposi-
ciliar — mediante ritos ou median- ção. Mostrou que, dado um sistema
te o “pensamento” — o processo logístico razoavelmente rico (o siste-
cósmico. ma dos Principia Mathematica ou o
A gnose mágico-vulgar foi propa- sistema axiomático dos conjuntos
gada especialmente por Simão, o elaborados por Zermelo, Frânkel e
Mago, de Samaria. É aquele Simão J. von Neumann), tal sistema é es-
que pregava aos samaritanos diante sencialmente incompleto, por apare-
de práticas mágicas e a quem se re- cer pelo menos um enunciado ou teo-
ferem os Atos dos Apóstolos (VIII, rema que não é decidível no sistema.
9 e ss.). Outros nomes associados a Com o objetivo de realizar seu
esse tipo de gnosticismo são: o dis- propósito, Gódel valeu-se do que se
cípulo de Simão, Menandro (que qualificou de aritmetização da sin-
nasceu em Capparetea, Samaria, e taxe.
viveu em Antioquia), e Saturnilo de Ora, Gódel encontrou uma locu-
Antioquia. ção sintática relativa a uma fórmula
A chamada Pistis Sophia, uma aritmética exprimível mediante um
obra em copta descoberta no século certo número gódeliano que afirma
XVIII Pelo Dr. Askew e publicada que tal fórmula não é demonstrável.
pela primeira vez em 1851 por J. H. A locução sintática em questão po-
Petermann, é o único texto gnóstico de, por sua vez, representar-se me-
completo que possuímos. Foi produ- diante um número gôódeliano corres-
321 GRAÇA

pondente a uma fórmula aritmética. cia mais ricas do que O cálculo so-
Pode então provar-se que tal fórmu- bre o qual se pronuncia, e no inte-
la é demonstrável se e somente se a rior do sistema volta a aparecer a di-
negação da mesma fórmula também ficuldade apontada. Em suma, se O
for demonstrável. Trata-se, pois, de sistema é completo, não é consisten-
uma fórmula indecidível. te; se é consistente, não é completo.
É com base nisso que se estabele-
ce então se a locução sintática que GRAÇA O termo ““graça” oferece
afirma a consistência da aritmética interesse filosófico principalmente
pode ser demonstrada. O resultado em dois sentidos: o estético e o teo-
é negativo. Com efeito, a locução de lógico. Há certos elementos comuns
referência pode ser representada me- nos dois sentidos: a graça aparece co-
diante uma fórmula aritmética tal mo um dom, como uma concessão
que, se essa fórmula for demonstrá- que se recebe sem esforço ou mér!-
vel, então a mencionada fórmula in- to, como algo que se tem ou não se
decidível também é demonstrável. tem. Contudo, esses elementos co-
Mas uma vez que se estabeleceu que muns do conceito de graça dizem
a forma indecidiível não é demons- muito pouco a respeito do mesmo.
trável, deve concluir-se que a locu- Além disso, não é por aí que se dis-
ção que afirma a consistência da arit- sipam as importantes diferenças en-
mética tampouco é demonstrável. A' tre o sentido estético e o teológico.
locução que afirma que a aritmética Trataremos, pois, separadamente dos
é consistente é, pois, indecidível. dois.
Embora possa construir-se um sIs- IL. Sentido estético. Já desde
a An-
tema lógico dentro do qual a locu- tiguidade (sobretudo em Platão e
ção que se provara indecidível resulta Plotino) a idéia de graça esteve liga-
decidível, sempre será possível en- da à idéia de beleza. Ambas foram
contrar em tal sistema outra locução frequentemente identificadas: algo é
indecidível. A construção de outro belo, xadhos (e, além disso, bom,
sistema lógico que resolva a dificul- ayados) se tem graça, xúous, e vice-
dade anterior não resolverá, porém, versa. Às vezes, o nome ““graça” foi
a questão de um modo definitivo, dado ao ““aspecto interno” do belo.
pois no interior de tal sistema se en- Esse aspecto interno pode consistir
contrará, pelo menos, outra locução num elemento inteligível ou numa
indecidível. Por mais sistemas lógi- certa proporção ou harmonia, ou em
cos que se construíssem, não se fa- ambas as colsas ao mesmo tempo. A
ria mais do que retroceder indefin!- harmonia, em particular, foi com
damente a descoberta de um supos- frequência estreitamente vinculada à
to cálculo completo e consistente, ca- graça; considerou-se que era difícil
paz de alojar em seu seio a matemá- (ou impossível) que alguma coisa
tica. Todo sistema lógico de tal espé- fosse graciosa e ao mesmo tempo
cie deve possuir regras de inferên- inarmônica.
GRAÇA 322

O conceito de graça como concei- em contrapartida, ambas são simila-


to de algum modo irredutível a ou- res e, por vezes, não se pode distin-
tras categorias estéticas foi introdu- guir entre elas.
zido no pensamento estético em mea- II. Sentido teológico. O problema
dos do século XVIII. Em seu ensaio da realidade, natureza e formas da
sobre a origem de nossas idéias acer- graça em sentido teológico apresen-
ca do belo e do sublime, Edmund ta-se em diversas religiões: cristianis-
Burke definiu a graça como uma mo, islamismo e judaísmo. Mas foi
harmonia. Mas, em contraste com as tratado e discutido com grande de-
concepções ““clássicas”', Burke liga- talhe por teólogos e filósofos cris-
va esta harmonia ao movimento. À tãos, pelo que nos referiremos prin-
graça aparece então como beleza em '
cipalmente a eles.
movimento, especialmente, e sobre- Os Padres gregos e latinos elabo-
tudo, em movimento de algum mo- raram a noção de graça de acordo
do contínuo (não brusco) e pausado com as respectivas propensões no to-
(não violento). Estas idéias de Bur- cante aos aspectos ““teóricos”* ou
ke alcançaram grande vigência du-
rante algumas décadas. Parte destas
e
“especulativos”, por um lado, à vI-
da “prática” do cristão, por outro.
tdélas voltam a encontrar-se no co- Isto não quer dizer que os Padres la-
nhecido ensaio de Friedrich Schiller tinos não tenham elaborado minu-
sobre a graça (Anmut) e a dignida- ciosamente a noção de graça; de fa-
de (Wiúrde). Schiller distingue entre to, muitas das sutis distinções a que
a beleza fixa e a beleza em movimen- nos referiremos adiante foram desen-
to. A primeira é a beleza derivada da volvidas pelos Padres latinos e, mais
necessidade; a segunda, a beleza de- tarde, pelos Doutores latinos da Igre-
rivada da liberdade. A graça opera Ja. Queremos dizer tão-somente que,
como uma síntese de ambos os tipos enquanto a elaboração conceitual
de beleza e, portanto, como uma sin- grega tinha mais o sentido de um
tese de necessidade (natural) e de l1- exame da “divinização”* do homem
berdade (moral). Esta síntese é vo- por intermédio da graça (sem que is-
luntária (é produto da liberdade dos so equivalesse a ““deificar” o ho-
movimentos voluntários). Por este mem), a elaboração conceitual lati-
motivo, a graça distingue-se da dig- na tinha mais o sentido da relação
nidade, na qual predominam os mo- entre o perdão dos pecados por meio
vimentos involuntários. As idéias de da graça e a “reação” do homem
Schiller sobre esta questão aprovei- diante deste perdão.
taram alguns resultados dos estudos Os problemas levantados a respei-
históricos e teóricos de Johann Joa- to da graça reportaram-se principal-
chim Winckelmann (1717-1768), mas mente à relação entre graça e natu-
Schiller diferia de Winckelmann ao reza, graça e livre-arbítrio (ver), gra-
estabelecer uma distinção entre gra- ça e predestinação.
ça e dignidade; para Winckelmann, Os teólogos introduzem distinções
323 GRAÇA

entre várias formas de graça. Uma sentido de deificar ninguém, ou de


primeira distinção é a estabelecida fazer do homem um Deus. À gra-
entre graça santificante e graça ca- ça habitual não é a graça “comum”
rismática. A primeira (chamada gra- ou “universal”, a que aludiremos
tia gratum faciens) é um dom de adiante, e que corresponde à criatu-
Deus com vistas à santificação de ra pelo simples fato de ser criatura.
quem o recebe; por meio desta gra- Há diversos graus de graça habitual,
ça, diz Santo Tomás (S. Theol., 1-II de acordo com as disposições do que
a, q, CXIT a 1 [as quaestiones CIX- a recebe. A graça habitual não bas-
CXI da S. Theol., I-II a, tratam to-
ta; faz-se necessária uma graça atual,
das da questão da graça]), o homem
que Deus (o Espírito Santo) outor-
une-se a Deus. A segunda (ou gratia
ga ao homem de um modo ““passa-
gratis data) é um dom de Deus com geiro”, por ocasião de certos atos e
vistas ao bem comum da Igreja; por
meio dessa graça, os infiéis são le- com vistas a permitir-lhe agir sobre-
vados a crer e os cristãos a perseve- naturalmente, ou seja, atuar para a
sua própria salvação. Enquanto a
rar. Em ambos os casos, a noção de
graça habitual (santificante) expres-
graça exclui as noções de dívida, re- sa a ordem dentro da qual o homem
compensa e outras similares. A gra-
renasce em Jesus Cristo, a graça
ça carismática é essencialmente uma atual é a luz intelectual e a determi-
gratia gratuita (pelo que também se
lhe dá, às vezes, este último nome). nação volitiva que encaminha o ho-
Segundo Santo Tomás (entre ou- mem para a salvação.
A graça atual pode ser graça sufi-
tros), a graça santificante acrescen-
ciente ou graça eficaz. A graça sufi-
ta algo ao que chamamos ““graça ca-
rismática”, isto é, “faz com que o ciente outorga ao homem a capaci-
dade de agir. O nome ““graça sufi-
homem agrade a Deus”.
Distingue-se, por vezes, entre gra- ciente” presta-se a equívocos, pois
ça santificante e graça atual. Como alguns autores afirmam que não pro-
a graça santificante foi também cha- duz efeito, ou pode não produzir
mada graça habitual, a distinção faz- efeito, se falta o consentimento ou
se amiúde em termos de graça habi- a cooperação de quem a recebe. Por
tual e graça atual. A graça habitual ISSO a
graça suficiente parece ser uma
(santificante) é a que Deus outorga “graça insuficiente”, isto é, insufi-
ao homem, possibilitando-lhe reali- clente para a salvação. A graça efi-
zar atos em conformidade com o ca- caz (também chamada graça eficien-
ráter sobrenatural da alma. Por isso te) é a que faz com que o próprio ato
a graça habitual, ao fazer do homem se realize; é uma graça consentida pe-
partícipe da natureza divina, santi- lo livre-arbítrio. Apresentou-se, po-
fica-o. Poder-se-la até dizer que o rém, o problema de se a vontade po-
“diviniza”, mas os teólogos manifes- de, de fato ou em princípio, resistir
tam que isso não se deve entender no a tal graça — problema esse que fi-
GRAÇA 324

cou de modo proeminente nos deba- a graça sacramental. Graça irresistf-


tes teológicos dos séculos XVI e vel é usada às vezes para caracteri-
XVII. zar um tipo de graça e outras vezes
Falou-se também de graça preve- para determinar um certo caráter em
niente e graça subsequente, depen- tipos de graça diversamente qual!-
dendo de a graça ocorrer ou não ficados.
antes do efeito. Santo Tomás (5. A maior parte das discussões so-
Theol., I-Il a, CXI a 3) referiu-se a bre a natureza da graça e seus efei-
Santo Agostinho (De nat. et grat., tos referem-se, direta ou indireta-
XXX1) em sua explicação de que a gra- mente, a Santo Agostinho.
ça é preveniente em relação ao remé- Em primeiro lugar, cumpre dizer
dio que proporciona e subsequente que, bastando-se Deus a si mesmo,
no sentido de que, uma vez curados, tudo quanto provém de Deus é re-
estamos fortalecidos. De modo sin- sultado de uma graça. Há, portan-
gular, a graça é proveniente na me- to, uma graça comum que se confun-
dida em que somos eleitos e subse- de com a natureza: é a graça que foi
quente na medida em que somos glo- conferida a toda realidade por tê-la
rificados. Estabeleceu-se também feito criatura. Entretanto, há uma
uma distinção entre graça operante noção de graça menos geral e mais
e graça cooperante. Santo Tomás ex- elevada: é a que vem de Deus por in-
plica esta distinção ao estabelecer termédio de Jesus Cristo. Em virtu-
uma diferença entre o ato interno e de dela, alguns homens são salvos,
o ato externo da vontade. No primei- 1sto é, respondem ao chamado de
ro, a vontade é movida por Deus; es- Deus. Esta graça que opera depois
te ato implica a graça operante. Um da Queda é uma graça sobrenatural
ato exterior também é comandado e distingue-se daquele ““concurso
pela vontade, mas Deus assiste nes- universal”* que Deus presta a todas
se ato de dois modos: (1) fortalecen- as criaturas. Não obstante, como
do a nossa vontade interiormente e quase todas as discussões dos teólo-
(2) concedendo externamente a capa- gos e filósofos cristãos em torno da
cidade de agir. Um ato exterior im- graça referem-se à mencionada gra-
plica a graça cooperante. Santo To- ça sobrenatural, pode-se dar-lhe sim-
más cita de novo Santo Agostinho plesmente o nome de ““graça”.
(De grat. et lib. arb., XVII): “Deus Segundo Santo Agostinho, a gra-
faz que queiramos e quando o que- ça restabelece a natureza. A graça é
remos. Coopera para que possamos uma condição necessária para a sal-
levar o ato a efeito” (S. Theol., I-II vação. A graça é imerecida — pois
a, CXI a 2). se fosse merecida não seria graça, is-
Entre outras espécies — segundo to é, dom verdadeiramente ““gratui-
parece, inumeráveis — e em relação to”. Uma vez admitido tudo ISto,
à graça, também se mencionam a suscita-se uma série de problemas.
graça côngrua, à graça incôngrua e -
Por um lado, ao sublinhar-se a “*
gra-
325 GRAÇA

tuidade”, parece que prescindimos num. Também podem ser consulta-


inteiramente do próprio conceito de das várias partes de De civitate Dei
“eleição”. Por outro lado, se a gra- (cf. XII, XIV) e de Retractationes
ça é um dom gratuito e não resulta (cf. D.
dos méritos (nem mesmo dos ““mé- Algumas das obras de Santo
ritos futuros” previstos por Deus em Agostinho foram escritas em oposi-
sua onisciência), parece que as no- ção à doutrina de Pelágio. A carac-
e
ções de “mérito” até de “resposta
a um chamado de Deus pela graça”
terística geral do pelagianismo é a te-
se de que a graça encontra-se nos
carecem de sentido. Referimo-nos a bens naturais. Dado que, segundo
alguns desses problemas no verbete Pelágio, Adão não transmitiu o pe-
relativo à noção de livre-arbítrio (ver cado, o homem pode fazer o bem
ARBÍTRIO, LIVRE-). Limitemo- sem necessidade de uma graça espe-
nos a observar aqui que, segundo cial sobrenatural, bastando-lhe ape-
Santo Agostinho, a graça não supri- nas o “concurso universal” divino.
me a liberdade mas, pelo contrário, Em suas obras Cur deus homo e
é o que possibilita a liberdade. Com De concordiae praescientiae et prae-
efeito, a graça dá à vontade a força destinationis et gratiae Dei cum libe-
de querer o bem e de realizá-lo. Ao ro arbítrio, Santo Anselmo manifes-
mesmo tempo, a liberdade não é ta que nenhuma criatura possui uma
querer o mal e realizá-lo, mas o que- vontade reta se não for por graça
rer e realizar o bem. Portanto, pode- de Deus. De certo modo, tudo pode
se dizer que a graça é a liberdade. ser, portanto, imputado à graça. Ao
O que recebe a graça, segundo mesmo tempo, Santo Anselmo indi-
Santo Agostinho, não é uma entida- ca que a graça “auxilia” o livre-
de passiva, mas o livre-arbítrio. A arbítrio, de maneira que ““a graça e
graça altera a direção da vontade e o livre-arbítrio não se acham em dis-
torna possível que esta faça bom uso córdia, mas combinam-se para jus-
do livre-arbítrio (o que equivale, na tificar e salvar o homem”. Parece
concepção agostiniana, à liberdade). conseguir-se então um equilíbrio
Não se pode dizer, pois, que a graça (aliás, já buscado com frequência
é incompatível com o livre-arbítrio, por Santo Agostinho) na medida em
porquanto esta recebe a graça sem a que Deus predestina (para a salva-
qual o livre-arbítrio se encaminharia ção) somente aqueles de quem (an-
para o mal. tecipadamente) sabe que terão uma
Os textos nos quais Santo Agosti- vontade reta — ou que acudirão ao
nho trata da questão da graça são chamado da graça. Por seu lado,
numerosos; destacamos como espe- Santo Tomás considera a graça um
clalmente importantes: De libero ar- auxilio, um socorro, um dom outor-
bítrio, De gratia et libero arbitrio ad gado a quem, sem ele, ficaria irre-
Valentinum, De correctione et gra- paravelmente perdido. Isso não sig-
tia, Opus imperfectum contra Julia- nifica que o livre-arbitrio seria desne-
GRAÇA 326

cessário. “A conversão do homem a nas. Essa “aceitação” divina efetua-


Deus é levada a efeito por meio do se de acordo com um decreto abso-
livre-arbítrio. Ao mesmo tempo, man- luto de Deus. Portanto, Deus pode
da-se o homem converter-se a Deus. justificar ou não o homem, indepen-
Mas o livre-arbítrio não pode dentemente do que o homem faça:
converter-se a Deus se Deus, por sua amar a Deus ou não o amar, pecar
vez, não o converter” (S. Theol,, I- ou não pecar. Gabriel Biel acompa-
Na, qCIX,a6adl). nhou os ockhamistas a este respeito
Em grande parte, as opiniões de e sublinhou a ““potência absoluta”
Santo Anselmo e de Santo Tomás de Deus na justificação do homem,
coincidem com as de Santo Apgosti- seja este ou não pecador, ou ““mere-
nho. Entretanto, as dos dois primei- ça” ou não (do ponto de vista ““ra-
ros — e em especial as de Santo To- cional”) a graça. As doutrinas de
más — estão intimamente ligadas a Gabriel Biel sobre esta questão in-
uma metafísica que explica o modo fluenciaram Lutero. Este último ma-
de intervenção de Deus nas criaturas nifestou que a graça funda-se na fé,
de modo que ““o que crê tem a gra-
que atuam. E preciso, pois, ter em
conta que nesses autores o problema ça”. Com isso parecia voltar-se à
“primitiva” idéia de São Paulo. E,
apresenta-se de forma muito diver- com efeito, assim era em grande par-
sa dos modos ““psicológicos”' e “an-
te, mas não sem passar por muitos
tropológicos”* que têm sido usual- dos argumentos apresentados por
mente adotados. Gabriel Biel em seus Comentarii in
Praticamente todos os teólogos e
quattor Sententiarum libros (os Co-
filósofos cristãos, e muito em part!- mentários aos quatro livros de Sen-
cular os escolásticos medievais, ocu-
tenças de Pedro Lombardo).
param-se da questão da ““relação” Os historiadores da teologia estão
entre a graça divina e o livre-arbítrio de acordo em sublinhar a importân-
humano. Desde Santo Tomás até os cla que tiveram na questão da graça
debates teológicos dos séculos XVI os debates sustentados por teólogos
e XVII, dos quais nos ocuparemos e filósofos durante os séculos XVI e
adiante, houve numerosas doutrinas XVII. Intervieram nesses debates (e,
e debates a respeito. Destacaremos por sua vez, determinaram em gran-
aqui somente, pela importância que de parte o rumo adotado por suas
adquiriram nos mencionados deba- próprias doutrinas) os protestantes
tes, algumas das teses de Ockham e (Lutero, Calvino), os “humanistas”
de Gabriel Biel. Ockham e os cha- (Erasmo), os jansenistas, os jesuítas,
mados ““ockhamistas” admitiram etc. Particularmente importantes são
que o homem pode por si mesmo as controvérsias entre Lutero e Eras-
encaminhar-se para o bem, mas que mo, o desenvolvimento do jansenis-
não pode salvar-se, a menos que mo e as polêmicas entre tomistas
Deus ““aceite” as disposições huma- e molinistas, jansenistas e jesuítas.
327 GRAÇA

Acrescentaremos que as posições de- somente da natureza (“naturalismo”


fendidas foram muito diversas entre em sentido lato); (2) há uma ordem
dois extremos: a afirmação da gra- da graça e outra da natureza, Ou
ça como puro e Irresistível dom de muito separadas ou inteiramente se-
Deus (luteranos, especialmente cal- paradas. Se a separação é completa,
vinistas; jansenistas, com certas mo- chega-se a uma doutrina análoga à
dificações) e a negação ou quase ne- propugnada pela teologia dialética.
gação da graça, ou a afirmação de Se é muito acentuada, chega-se a
que esta se encontra infusa na cria- uma doutrina próxima do Jjansenis-
ção (racionalistas, socinianos, natu- mo. O dualismo da graça e da natu-
ralistas, humanistas, semipelagianos reza pode levar a um abandono da
e pelagianos). Entre essas posições primeira, em vista da impossibilida-
extremas oscilaram muitas outras: de de sua concordância com a segun-
afirmação da necessidade de uma da, ou a uma exclusiva acentuação
graça Irresistível dada unicamente no da primeira em detrimento da segun-
seio da Igreja e nunca à consciência da; (3) há uma ordem da graça e ou-
individual (Jansenistas); afirmação tra da natureza harmonizadas, até o
de uma influência intrínseca de Deus ponto de se poder dizer que a graça
ou doutrina da premoção física (to- aperfeiçoa a natureza. Esta última
mistas); afirmação de uma influên- opinião foi a mais comum; são co-
cia extrínseca (agostinianos); afirma- nhecidas, sobretudo, as defesas que
ção do concurso simultâneo (moli- dela fizeram os tomistas e os leibni-
nistas e, com modificações, con- zianos. Citaremos a respeito dois tex-
gruístas). Como o problema da gra- tos. Um é de autoria de Santo To-
más e diz: “A graça pressupõe, pre-
ça afetava fundamentalmente o do
livre-arbítrio, as posições acerca da serva e aperfeiçoa a natureza” ((S.
natureza da primeira eram paralelas Theol., 1, q, IIl-Il a, q, X). O outro
às adotadas acerca do segundo. Mui- é de Leibniz e diz que no Estado per-
tas doutrinas se formularam acerca feito, onde há infinita justiça tanto
do livre-arbítrio, desde a afirmação quanto infinita misericórdia, ““há
de que o arbítrio é “servo” (lutera- tanta virtude e felicidade como é pos-
nos) até a tese da completa ou quase sível que haja, e isso não por causa
completa “liberdade” (humanistas, de um desvio da natureza, como se
naturalistas, neopelagianos), com as o que Deus prepara para as almas
correspondentes teses intermediárias. perturbasse as leis dos corpos, mas
Já aludimos à questão da relação pela própria ordem das coisas natu-
entre graça e natureza. Observemos rais, em virtude da harmonia prees-
agora que durante a época moderna tabelecida desde sempre entre os rei-
manifestaram-se várias posições a nos da natureza e da graça, entre
respeito. Três delas são essencial- Deus como arquiteto e Deus como
mente importantes: (1) não há ne- monarca, de modo que a natureza
nhuma ordem da graça mas tão- conduz à graça e à graça aperfeiçoa
GRAÇA 328

a natureza usando dela” (Principes no texto de Leibniz é mais


Bra.


de la nature et de la grâce fondésen do que o sentido que tem a noção
de

raison, $ 15; cf. Monadologia, 8 87). graça enquanto dom especial sobre-
Entretanto, o sentido de “graça” natural.
H
H A letra maiúscula “H” éusada
com frequência para representar o
ram anti-hedonistas. Em geral, o he-
donismo foi frequente objeto de cri-
termo médio no esquema de um juí- tica e, em alguns casos, de menos-
zo ou de uma proposição. Assim, prezo. Tentou-se excepcionalmente
por exemplo: “H” em “Nenhum H defender o hedonismo sem paliat:-
é GC”, “Todos os H são F”'. A letra vos, não tanto por amor ao prazer
“HH” tem, pois, a mesma função que quanto por motivos racionais; é o ca-
a letra “M”. Para o uso de “H”*” na so de W. H. Sheldon em ““The Ab-
lógica quantificacional, ver F. solute Truth of Hedonism”º, The
Journal of Philosophy, XLVIL,
HEDONISMO Hedonismo é o no- 1950, pp. 285-304. Segundo Sheldon,
me que se dá à tendência, na filoso- “o hedonismo ético é o imperativo
fia moral, que identifica o bem com categórico”.
o prazer. O vocábulo ““hedonismo” Houve muitas discussões sobre o
tem tido tantos sentidos quanto o significado, formas, suposições e ra-
termo ““prazer”. zões do hedonismo. Os hedonistas
Se prescindirmos das consideráveis antigos, especialmente os cirenaicos,
diferenças entre os diversos pensado- consideravam que o bem é o prazer
res hedonistas ou as diversas escolas e o mal é a dor. O homem ““deve”
hedonistas, consideraremos que uma dedicar-se a buscar o primeiro e a
moral hedonista foi defendida pelos evitar o segundo. Até que ponto evi-
cirenaicos e os epicuristas antigos, tar a dor seria uma forma de prazer
pelos epicuristas modernos ou neo- tem sido uma questão muito discu-
epicuristas (Gassendi, Valla, etc.), os tida. No tocante ao prazer, os cire-
materialistas do século XVIII, em es- naicos pareciam sublinhar o prazer
pecial os materialistas franceses (Hel- dos sentidos ou ““prazer material”,
vétius, Holbach, La Mettrie, etc.) e nem sempre contra o ““prazer espi-
os utilitaristas ingleses (pelo menos, ritual”, mas como fundamento in-
J. Bentham). De um modo geral, dispensável deste último. Como es-
Spinoza e Hobbes são incluídos en- se “prazer sensível” é algo presen-
tre os hedonistas, mas alguns histo- te, houve a propensão para conside-
riadores divergem dessa opinião. rar que só o prazer atual é um bem
O hedonismo teve muitos inim!- verdadeiro. Contra os cirenaicos ar-
gos, por motivos os mais diversos: gúlu-se que os prazeres podem pro-
Platão, numerosos filósofos cristãos duzir dores. Respondeu-se a isso que
— sobretudo os de tendência ascét!- o “dever” de todo hedonista é bus-
ca —, Kant e outros pensadores fo- car prazeres (ou melhor, a satisfação
HEDONISMO 330

dos desejos) de tal forma que se evi- hedonismo como uma das morais
tem dores subseqiientes. Também se “materiais”; nenhuma dessas morais
argumentou contra os cirenaicos que é capaz de proporcionar completa se-
a doutrina hedonista é egoísta e que gurança sobre os conceitos morais
o prazer de um pode resultar na dor fundamentais, como o faz uma mo-
de outro. Por isso os cirenaicos ral “formal””. Também se criticou o
apontaram para uma doutrina não hedonismo do ponto de vista da cha-
egoísta dos prazeres, mas não pare- mada ““moral dos valores”; nesta
ce que a tenham desenvolvido de for- moral, o hedonismo nem sempre é
ma consequente. Quanto aos epicu- eliminado, mas o prazer é um valor
ristas, destacaram eles a importân- de natureza inferior, que pode, e de-
cia dos “prazeres moderados”, os ve, subordinar-se a outros valores.
únicos que permitem evitar as dores, Uma crítica parecida é formulada
assim como a importância de certa por aqueles que distinguem entre a
“participação nos prazeres” através faculdade inferior do desejo (appe-
de uma comunidade de amigos. Nos titus sensitivus) e a faculdade supe-
epicuristas, os prazeres aparecem co- rior do desejo (appetitus rationalis).
mo de natureza menos ““sensível” Alguns hedonistas, sobretudo os de
que nos cirenaicos; assim, para os tendência epicurista, poderiam ar-
epicuristas, a conversação amistosa guir a essa objeção que, para eles, o
era um dos prazeres que se podia desejo do prazer como bem supremo
buscar sem incorrer-se em dor. é “uma faculdade superior (racio-
Um argumento muito comum nal)” do desejo. Um tipo distinto de
contra o hedonismo é que, na ver- crítica é o de G. E. Moore (Princi-
dade, não se deseja o prazer mas o pia Ethica, LI, III), quando indica que
objeto que proporciona o prazer. o hedonismo é uma forma de natu-
Mas pode-se argumentar a este res- ralismo e comete a “falácia natura-
peito que, se se busca tal objeto (com lista”. O hedonista afirma que só o
atitude hedonista) é porque ele pro- prazer é bom como um fim ou em
porciona prazer — ou espera-se que si mesmo. Com isso esquece que
o proporcione. O prazer como bem “bom” é o nome de uma qualidade
dos hedonistas é, pois, o objeto en- Irredutível. Por outro lado, os hedo-
quanto gozado, não o objeto em si nistas que afirmam (como Sidgwick)
mesmo. Quando os hedonistas dizem que o bem por eles proposto é uma
que o maior bem é o prazer, não que- qualidade irredutível falham em
rem necessariamente dizer que há mostrar intuitivamente tal qualidade.
certo “objeto” passível de ser iden- As objeções ao hedonismo como
tificado com o prazer. manifestação de egoísmo foram ob-
Outras críticas ao hedonismo fo- Jeto de análises por parte de hedo-
ram formuladas desde o ponto de nistas de tendência utilitarista, como
vista de uma moral muito diversa. Bentham, J. S. Mill e Spencer. Para
Assim, por exemplo, Kant critica o Bentham, os prazeres diferem segun-
331 HERMENÊUTICA

do a quantidade e segundo a causa ce, Pars Prior, Lipsiae, 1844). Ha-


que os produz. Há, segundo ele, bitualmente, é citado tanto com es-
quatorze diferentes categorias de ses titulos quanto com o de Periher-
prazeres: dos sentidos, riquezas, ha- meneias, transcrição em alfabeto la-
bilidade, amizade, bom nome, po- tino do original grego. O título Pe-
der, piedade, benevolência, malevo- rihermeneias é empregado por um
lência, memória, imaginação, expec- grande número de comentaristas; as-
tação, associação e alívio. Entre es- sim, Santo Tomás, Commentaria in
tes prazeres, há os que se encontram Perihermeneias. Segundo Boécio, em
decididamente projetados para o au- seu Comm. in lib. de interpretatio-
mento da felicidade do próximo. To- ne, a interpretatio é uma voz signi-
do hedonismo ““bem entendido” exi- ficativa que quer dizer algo por si
ge um ““cálculo de prazeres”. Um he- mesma. Santo Tomás (op. cit., L, 1
donismo altruísta é também defen- a) indica que o nome e o verbo (de
dido por J. S. Mill, para quem amar que se ocupa Aristóteles nos caps. 2
ao próximo como a si mesmo é uma e 3 do tratado) são mais princípios
das consequências de uma moral he- de interpretação do que interpreta-
donista, por assim dizer, “aberta”. ções. Em seu entender, a interpreta-
Quanto a Spencer, combinou uma ção refere-se à oração enunciativa,
moral hedonista com uma doutrina da qual pode enunciar-se a verdade
evolucionista, procurando mostrar ou a falsidade. Para Waitz (Op. cit.,
que esta última constitui a base cien- p. 323), o vocábulo égunveia tem
tífica da primeira. uma significação mais ampla do que
o vocábulo XMeEis (“enunciado”).
HERMENÊUTICA O termo éoun- Portanto, o sentido dado por Aris-
veia significa primariamente ““ex- tóteles ao seu tratado não se limita
pressão (de um pensamento)”; daí, ao de uma descrição de orações enun-
explicação e, sobretudo, interpreta- ciativas mas, antes, elucida ““os prin-
ção do mesmo. Em Platão encontra- cípios da comunicação do sermo”.
mos este termo na frase: “a razão O sentido que tem hoje o vocábu-
[do dito] era a explicação (éemn- lo “hermenêutica” aproxima-se do
veia) da diferença” (Teeteto, 209 que foi destacado no início deste ver-
A). O título de um tratado de Aris- bete. Este sentido procede, em gran-
tóteles incluído no Organon e que se de parte, do uso de épunveia para
ocupa dos juízos e proposições é designar a arte ou a ciência da inter-
Ileo! éounveias. Este tratado foi pretação das Sagradas Escrituras.
traduzido para o latim com os no- Aplicada às Escrituras, a herme-
mes de De interpretatione e de Her- nêutica foi desenvolvida já no sécu-
meneutica (este último foi usado, por lo XVI pelo luterano Mathias Flacius
exemplo, por Theodor Waitz em sua Illyricus (Clavis scripturae sacrae,
edição e comentário do tratado in- 1567; reimpr. com o título de De ve-
cluído no Aristotelis Organon Grae- ra ratione cognoscendi sacras literas,
HERMENÊUTICA 332

1719; nova reimpr., 1968). Andriaan romântica e da redução naturalista


Heerebord, um seguidor holandês de que permite fundamentar a valida-
Descartes e de Suárez, publicou em de universal da interpretação histó-
1657 uma “Egneveia, Logica. Como rica (cf. G. S. V 311).
disciplina filosófica, a hermenêutica Embora a análise da historicida-
foi elaborada por uma discípulo de de empreendida por Heidegger deva
Baumgarten, Georg Friedrich Maier, muito, segundo a sua própria con-
em seu estudo intitulado Versuh er- fissão (Sein und Zeit, $ 77), a Dilthey
ner allgemeinen (1757, reimpr. 1965). e ao Conde Yorck, sua hermenêuti-
Contudo, a influência de Mater a es- ca constitui uma nova direção, me-
te respeito foi escassa. Mais influente nos interessada nas dimensões epis-
foi Schlelermacher, o qual elaborou temológicas e metodológicas do que
uma hermenêutica aplicada aos es- nas ontológicas. Com efeito, as in-
tudos teológicos em seu texto sobre vestigações e interpretações propor-
“hermenêutica e crítica com referên- cionadas pela antropologia, a histó-
cla especial ao Novo Testamento” ria e, em geral, as ciências do espiri!-
(1838; Hermeneutik, nova ed. por to, não são para Heidegger suficien-
Heinz Kimmerle [1959], em: Abhan- tes se não estiverem fundamentadas
dlungen der Heidelberg Akademie numa prévia analítica existencial (op.
der Wissenshaften. Phil.-Hist. Klas- cit., $ 5). Ora, ainda que Dilthey não
se, Abh. 2). A hermenêutica de tivesse chegado a ela, avizinhou-se,
Schleiermacher não é apenas uma In- segundo Heidegger, do seu nível
terpretação filológica — ou filológ1!- quando considerou a hermenêutica
co-simbólica. A interpretação não é uma auto-explicação (Selbsterklãà-
algo “exterior” ao interpretado. De- rung) da compreensão da ““Vida”
pois de Schleiermacher, destacaram-se (op. cit., $ 77). Heidegger não enten-
os trabalhos hermenêuticos de Dil- de, pois, a hermenêutica de Dilthey
they, os quais focalizam personal!- exclusivamente como um método
dades, obras literárias ou épocas histó- científico-espiritual, e assinala, na es-
ricas. Além disso, Dilthey ocupou-se teira de G. Misch, que tal procedi-
do problema geral da hermenêutica mento equivale a descuidar das ten-
em Die Entstehung der Hermeneu- dências centrais de Dilthey, somen-
tik, publicado em 1909, numa cole- te a partir das quais é possível
tânea organizada em homenagem a entender-se o sentido da hermenêu-
Ch. Sigwart, e incluído no volume V tica. Acrescente-se que em diversos
dos Gesammelte Schriften. Segundo lugares (Sein und Zeit, 8 7; Unter-
Dilthey, a hermenêutica não é so- wegs zur Sprache, pp. 95 e ss.) Hei-
mente uma mera técnica auxiliar pa- degger declara que a hermenêutica
ra o estudo da história da literatura não é uma direção no interior da fe-
e, em geral, das ciências do espírito; nomenologia, nem algo que se lhe
é um método igualmente distancia- sobreponha: é um modo de pensar
do da arbitrariedade interpretativa “originariamente” a essência da fe-
333 HETEROLÓGICO

nomenologia — e, de um modo ge- “fenomenologia orientada lingúist!-


ral, um modo de pensar ““originaria- camente”, em que ““lingúístico”' ex-
mente” (mediante uma teoria e uma pressa uma ““situação de linguagem”
metodologia) todo o “dito” num (langagiêre). A hermenêutica de Ri1-
“dizer”. coeur pressupõe a fenomenologia,
Hans Georg Gadamer, na obra reinterpretada em sentido não 1dea-
Wahrheit und Methode, deu conti- lista; mas, por sua vez, a fenomeno-
nuidade à hermenêutica ontológica, logia pressupõe a hermenêutica
ou ontológico-histórica, inaugurada (“Phénomenologie et Herméneut!-
por Heidegger — e em parte já des- que”, Man and World, 7 [1974], p.
bravada por Hegel — mas o seu prin- 223). As investigações hermenêuticas
cipal interesse é o que se pode cha- de Ricoeur conduziram-no a um exa-
mar o “acontecer lingúístico da tra- me e valorização da riqueza da lin-
dição””. Com efeito, a hermenêuti-
guagem e, de um modo geral, dos
ca não é para Gadamer um simples símbolos, em seus aspectos formal e
método das ciências do espírito, mas
dinâmico, assim como a um diálogo
converte-se num modo de compreen-
com as disciplinas linguísticas, com
são dessas ciências e da história gra-
a “análise linguística” e com a ““cri-
ças à possibilidade que oferece de in- tica das ideologias” de Habermas.
terpretações dentro das tradições. O Segundo Ricoeur, a compreensão
novo sentido que Gadamer confere
à hermenêutica é paralelo ao senti1- ocorre através da mediação de uma
do que dá à compreensão, a qual se- Interpretação.
manifesta como um acontecer (Ges-
HETEROLÓGICO No ensaio de
chehen) (op. cit., p. 293) e, especifi-
Leonard Nelson e Kurt Grelling,
camente, como um acontecer da tra-
dição ou transmissão (Uberliefe- “Bemerkungen zu den Paradoxien
rungsgeschehen). Por 1sso a herme- von russell und Burali-Forti”', Ab-
nêutica é o exame de condições em handlungen der Fries*schen Schule,
N. F. 2 Heft 3 (1907-1908), apresen-
que ocorre a compreensão. A herme-
nêutica considera, portanto, uma re- ta-se o chamado ““paradoxo da he-
lação e não um determinado objeto, terologicidade””, também conhecido
como é o caso de um texto. Como pelo nome de ““paradoxo de Grel-
esta relação se manifesta na forma ling”.
da transmissão da tradição median- Muitas expressões numa lingua-
te a linguagem, esta última é funda- gem corrente (“muitas”, “porque”,
mental, mas não como um objeto a “e”, “ou” etc. não estão incluídas
compreender e interpretar, e sim co- no grupo) podem dividir-se em au-
mo um acontecimento cujo sentido tológicas e heterológicas. Expressões
cumpre penetrar. autológicas são as que se referem
Em diálogo com Heidegger e Ga- a si mesmas, isto é, expressões da
damer, Paul Ricoeur desenvolveu a forma:
HIPÓTESE 334

Er” e l.
£

é heterológico, então ““heterológico”'


é autológico.
Exemplos delas são:
Por conseguinte:
breve, 1. “Heterológico”' é heterológico
que é breve; se e somente se é autológico.
2. “Heterológico” é autológico se
escrito em português,
e somente se é heterológico.
que está escrito em português;
Usamos a expressão ““refere-se a”.
Impresso em negro,
que está impresso em negro;
Poderíamos ter usado “denota”. O
paradoxo de Grelling é um dos pa-
consta de quatro palavras, radoxos da denotação. Há semelhan-
que consta de quatro palavras. ças entre ele e o do mentiroso.
Expressões heterológicas são as HIPÓTESE Na atualidade, preocu-
que não se referem a si mesmas, isto
é, expressões da forma: pam sobretudo questões como as da
acepção, ou acepções, de ““hipóte-
fo não é f. se”; a natureza das inferências hipo-
téticas ou do chamado ““raciocínio
São exemplos delas:
hipotético”; os modos de verificar,
escrito em francês, contrastar ou falsear hipóteses; e as
que não está escrito em francês; possíveis categorias de hipóteses.
Em sua forma mais simples, uma
impresso em vermelho,
hipótese expressa-se mediante um
que não está impresso em vermelho; condicional acompanhado de um ou
consta de duas palavras, vários enunciados, que certificam se
que não consta de duas palavras. a consequência (ou consequências)
do condicional é ou não verdadeira,
O problema que se apresenta é O
seguinte: o termo ““heterológico”
heterológico?
é e de uma conclusão. Se se pode pro-
var que o consequente do condicio-
Temos então: nal não é verdadeiro, o antecedente
tampouco é verdadeiro. Se se pode
Se “heterológico”' é heterológico, provar que o conseqiiente é verdadei-
refere-se a sl mesmo. ro, não é dedutivamente válida a ver-
Se ““heterológico” é autológico,
não se refere a si mesmo. a
dade do antecedente, mas repeti-
da confirmação da verdade do con-
Mas se todo termo que se refere sequente não é indiferente ao conhe-
a si mesmo é autológico, então ““he- cimento que se possa ter do antece-
terológico” é autológico. E se todo dente, ainda que não seja dedutiva-
termo que não se refere a si mesmo mente concludente.
335 HISTORICISMO

E característico do raciocínio hi- éa história das literaturas e das rel1-


potético não se saber se uma ou mais giões. A ciência do espírito humano
das premissas é verdadeira, já que é é a história do espírito humano. Pre-
precisamente isso o que se pretende tender surpreender um momento
averiguar. Também pode ocorrer nestas existências sucessivas com O
que uma ou mais das premissas ne- fim de aplicar a dissecação, manten-
guem uma determinada opinião ou do-as fixamente sob o olhar, equiva-
crença com o objetivo de averiguar le a falsear a sua natureza. Pois es-
se esta é falsa e se a sua negação é sas existências não existem num mo-
verdadeira. Pode ainda acontecer mento dado: estão se fazendo. Tal
que se considere a premissa ou pre- é o espírito humano. Com que direi-
missas como falsas para determinar to se escolhe o homem do século
se a sua negação é verdadeira. É co- XIX para formular a teoria do ho-
murm distinguir entre hipótese como mem?” E até se pode considerar
enunciado não comprovado e enun- uma manifestação de historicismo o
ciado de observação como enuncia- que diz o governador de Glubbdud-
do comprovado. Deste ponto de vis- brid na obra de Swift, À Voyage
ta, as hipóteses podem ser conside- to Laputa, Badnibarbi, Luggnagzgg,
radas (como foi feito por J. H. Glubbdudbrid and Japan (cap.
Woodger) enunciados teóricos. VIIL): “Os novos sistemas da Natu-
reza nada mais eram do que novas
HISTORICISMO É costume dar-se modas, que variariam em cada épo-
este nome — segundo Friedrich Mei- ca, e mesmo os que pretendem de-
necke (El historicismo y su génesis), monstrá-los mediante princípios ma-
foi empregado pela primeira vez por temáticos acabam por florescer ape-
Karl Werner em seu livro Giambat- nas por um breve período de tempo,
tista Vico als Philosoph und gelehr- e ser superados assim que esse perío-
ter Forscher — a um conjunto de do termina”? — um ““historicismo”,
doutrinas e correntes de índole mui- allás, de cunho predominantemente
to diversa e que coincidem, pelo me- céptico e que, em última análise, po-
nos, em sublinhar o importante pa- de ser encontrado em muitas das ma-
pel desempenhado pelo caráter his- nifestações de autores cépticos, rela-
tórico — ou ““historicidade”* — do tivistas, “pirrônicos”, etc.
homem e, ocasionalmente, até da Fizeram-se várias tentativas de de-
Natureza inteira. Neste sentido, a se- finir “historicismo”* de modo que a
guinte passagem de Renan em definição abranja um conjunto de
L'Avenir de la Science: Pensées de doutrinas e correntes muito distintas,
1848 (obra publicada em 1849) po- mas especificamente historicistas ou
de ser considerada uma profissão de possuidoras de elementos historicis-
fé historicista: “A história é a for- tas ou capazes de dar origem e de-
ma necessária da ciência de tudo o senvolvimentos historicistas. À par-
que chega a ser. A ciência das línguas te os elementos historicistas que se
HISTORICISMO 336

encontram em autores como Herder sui natureza mas história, fazer da


e Hegel, incluem-se no historicismo sua filosofia um puro e simples his-
filosofias tão distintas entre si quan- toricismo é interpretá-la de forma
to a de Dilthey, a de Marx, a de inadequada. É claro que o mesmo
Ernst Troeltsch, a de Karl Mannheim ocorre com autores como Dilthey, se
(e muitos dos cultivadores da socio- considerarmos que este filósofo pro-
logia do conhecimento, nem todos os curou inserir o seu historicismo no
quais, aliás, são ““historicistas””), a quadro de uma filosofia da vida co-
de Collingwood, etc. O historicismo mo fenômeno total que permite com-
de Dilthey manifesta-se na sua tese: preender a função do histórico. De
“O que o homem é, só o experimen- fato, num sentido restrito, somente
ta através da história” (Was der filosofias como as de Troeltsch e
Mensch sei, erfáãhrt er nur durch die Mannheim (e outras análogas) po-
Geschichte). O de Marx, em sua in- dem ser denominadas historicistas.
sistência na consciência histórica e Ora, ainda que restringida a defini-
suas transformações (e ocultações). ção do historicismo, encontramo-nos
O de Troeltsch, em sua teoria do his- mesmo assim com vários problemas.
toricismo como ampla visão do mun- Quase todos eles surgem de dois mo-
do que leva em conta o fluir dos fa- tivos..O primeiro é o do raio de apl1-
tos sem os segmentar ou estratificar cação da noção de realidade históri-
artificialmente, como fazem, em seu ca. O segundo é o do modo de tra-
entender, os filósofos racionalistas. tamento da noção de historicidade.
O de Mannheim, em sua tese de que Quanto ao primeiro, pode-se falar de
a visão histórica total proporciona dois tipos de historicismo — usual-
hoje o quadro dentro do qual se alo- mente confundidos nas filosofias his-
jam as experiências particulares, toricistas —: (1) o historicismo an-
quadro este que exerce a mesma fun- tropológico, que atribui historicida-
ção desempenhada em outras épocas de ao homem e às suas produções,
por concepções religiosas do mundo e (2) o historicismo cosmológico, que
(ou, poderíamos acrescentar, por sis- atribui historicidade ao cosmo intei-
temas racionalistas filosóficos). ro. O primeiro tipo de historicismo
Entretanto, convém não Incorrer é influenciado pelo modelo das ciên-
no perigo de chamar ““historicistas”* cias históricas; o segundo, pelo evo-
a muitas filosofias que devem ser lucionismo (que, segundo Mann-
compreendidas (ou compreendidas heim, foi a primeira manifestação de
também) em função de outros ele- historicismo moderno). Quanto ao
mentos. Assim, embora Heidegger segundo motivo, pode-se falar de ou-
insista na noção de historicidade, a tros dois tipos de historicismo: (a) o
sua filosofia não pode ser simples- historicismo epistemológico, para o
mente chamada historicista. E ain- qual a compreensão da realidade se
da que Ortega y Gasset declare ta- dá através do histórico, e (b) o his-
xativamente que o homem não pos- toricismo ontológico, para o qual o
337 HISTORIOGRAFIA

que importa é a análise da historici- ria com a qual não esteja de acordo.
dade como constitutivum do real. É A distinção proposta por Popper en-
compreensível que, assim como (1) tre “historicismo” e “historismo”
e (2) se misturam frequentemente, contribui, segundo Carr, para a con-
haja assíduos intercâmbios entre (1) fusão.
e (2) e entre (a) e (b). De qualquer
forma, é frequente que (1) se corre- HISTORIOGRAFIA Entende-se o
lacione com (a) e (2), com (b). Um termo ““história”* em dois sentidos:
problema capital, e possivelmente o (1) “história” como o que aconteceu
mais debatido, é o que se apresenta e, inclusive, está acontecendo aos ho-
no historicismo epistemológico mens, como o objeto de estudo his-
quando se discute a questão de se o
historicismo não estará forçosamente
tórico; (2) “história”* como o estu-
do histórico, o estudo do passado.
condenado ao relativismo. Muitos Em alemão, tem-se usado com Íre-
autores inclinam-se para a afirmati1- quência Geschichte para ambos os
va; outros, como Troeltsch e Man- sentidos, mas às vezes foi sugerida
nheim, sustentam, pelo contrário, uma diferenciação entre Geschichte
que o historicismo lealmente admi- e Historie, correspondentes a (1) ea
tido é o único modo de evitar o rela- (2), respectivamente, de modo que a
tivismo, porquanto os pontos de vis- ambigúidade do termo ““história”
ta só são efetivamente parciais quan- desaparece com o uso destes dois no-
do segmentamos o fluxo contínuo. mes.
Um dos autores que mais insisten- Para distinguir entre “história” no
temente tem combatido o historicis- sentido 1 e “história” no sentido 2
mo é K. R. Popper. Entretanto, nem foram propostas várias soluções.
sempre fica muito claro o que Pop- Uma delas consiste em remeter para
per entende por ““historicismo””. o contexto no qual a palavra foi usa-
Com freqiiência, designa (e acusa) da. Em muitos casos não há ambi-
como historicistas os autores que guidade; são exemplos: “A história
acreditam haver na história leis — as da Irlanda é dominada pela influên-
chamadas. ““leis de desenvolvimento cia do catolicismo”. “A história é
histórico”* — semelhantes em rigor determinada pela luta de classes”
e universalidade às leis físicas ou na- (sentido 1); “Uma história um pou-
turais. Outras vezes, designa como co detalhada do poder da Máfia ocu-
historicistas Os autores para quem a paria muito espaço”, “A história re-
história é completamente distinta da quer muita atenção ao detalhe” (sen-
ciência (natural). É plausível, pois, —
tido 2). Em outros casos pode haver
concordar com Edward Hallett Carr ambiguidade: “Quanto mais se estu-
quando assinala que Popper esva- da a história de Madagascar, tanto
ziou o termo ““historicismo”** de to- mais fácil é dar-se conta de que é de-
do significado ao usá-lo para desig- terminada por sua posição insular”.
nar qualquer opinião sobre a histó- A posição insular de Madasgascar po-
HOMO MENSURA 338

de determinar a história enquanto tilo, 386 A., no Teeteto, 152 A —


conjunto de acontecimentos históri- onde figura r1ãv dé um OvTwWY em vez
cos, pelo que ““história”* é aqui to- de 7ãv 8º ovx ovtwWv), por Aristóteles
mada no sentido 1, mas a história de (Metafísica, A, 1, 1053 a 35; K, 6,
Madagascar pode ser estudada de 1062 b, 12-15, onde o princípio foi
dois modos: estudando-se o que se analisado em detalhe), por Sexto
passou em Madagascar (sentido 1) Empiírico (Pyrr. Hypot., 1, 2l16ess.,
ou estudando textos nos quais se nos Adv. math., VII, 60) e por Diógenes
explica o que se passou em Madagas- Laércio (IX, 51). Discutiu-se muito
car (sentido 2). Uma frase como o significado de tal princípio. Os
“Estou cansado da história” não se principais problemas apresentados a
entende bem — Isto é, não se enten- respeito são os seguintes: (1) A ex-
de se “história” tem o sentido | ou pressão ““o homem” refere-se ao ho-
o sentido 2 (ou ambos) — a menos mem em geral ou ao homem indivi-
que figure dentro de um contexto — dual? (2) A expressão “a medida”
a frase foi dita por um estudante, um representa um critério simplesmen-
primeiro-ministro, etc. te epistemológico ou se refere à at1-
Como a solução que se acaba de tude total do homem diante da rea-
mencionar não é inteiramente satis- lidade? (3) As coisas, xonuata, de
fatória, foi proposto que se distin- que fala Protágoras são as coisas fi-
guisse entre “história” (sentido 1) e sicas, as sensações produzidas por
“historiografia” (sentido 2). Esta elas, as idéias abstratas ou os assun-
distinção teria de ser, em princípio,
suficiente para eliminar toda ambi-
tos humanos? Como
é de se esperar,
não existe acordo sobre nenhum des-
guidade, mas tal não ocorre. ses problemas. A maior parte dos au-
tores tende a pensar que “o homem”
HOMO MENSURA A expressão designa o homem individual (como
Homo mensura (literalmente, “O Sexto Empiírico já havia declarado).
homem é na medida”) é usualmente No que diz respeito à medida, tende-
empregada como formulação abre- se a pensar que um critério epistemo-
viada do chamado princípio de Pro- lógico é uma concepção demasiado
tágoras: TmavTWY XQNUATWY WETOOV estreita para Protágoras, mas que o
EOTIV AVOERWTOS, TÂOV MED OVTWV, OS sofista tampouco se referia à atitu-
EoTUI, TwWwYV 0ºOUX OVTWY ÀS OUX EOTLV de humana total, pois caso contrá-
(O homem é a medida de todas as rio o princípio não teria sido discu-
coisas das que são enquanto são e tido em sentido epistemológico de
das que não são enquanto não são). uma forma tão detalhada por Platão
Como parece, este princípio figura- e Aristóteles. Quanto às coisas, mui-
va no início da obra perdida do so- tos autores continuam acreditando
fista intitulada “ºAxnbeta” (A ver- que a referência é aos objetos físicos,
dade), e foi transcrito por Platão em mas é muito plausível que xouata
vários lugares (por exemplo, no Crá- designe os assuntos humanos ou en-
339
HORIZONTE

tão as situações em que o homem se gico, orgânico, psicológico, filológi-


encontra — e dentro das quais os ob- co, sociológico. Em cada caso, a ho-
Jetos físicos se encontram. É habitual mogeneidade vai diminuindo e a he-
apresentar o princípio de Protágoras terogeneidade vai aumenando no
como a expressão mais acabada do transcurso da evolução. A passagem
chamado período antropológico na da heterogeneidade à homogeneida-
filosofia grega clássica, e também co- de é a dissolução.
mo um exemplo do tipo de proposi-
ções apresentadas pelos sofistas — HORIZONTE Kant considerou que
proposições aparentemente claras, a magnitude (Grósse) do conheci-
mas, de fato, ambíguas. Com efei- mento pode ser extensiva ou inten-
to, o Homo mensura não só apresen- siva, segundo se trate, respectiva-
ta as dificuldades antes apontadas mente, da amplitude ou da perfeição
mas, partindo dele, é possível chegar do conhecimento. No primeiro caso
a conclusões diametralmente opos-
temos multa; no segundo, multum
tas: a primeira consiste em que, ao
(Logik. Ein Handbuch zu Vorlesun-
reduzir-se o ser ao aparecer, nada é
verdade; a segunda em que, como as gen, VI. A. ed. Gottlob Benjamin
Jãsche [1800], reimpr. em Werke,
únicas proposições possíveis são as
ed. E. Cassirer, VIII, pp. 356 ess.).
formuladas do ponto de vista do ho-
Ora, conforme o teor da extensão
mem, tudo é verdade. do conhecimento ou da perfeição
HOMOGÊNEO A noção de ““ho- do mesmo pode-se avaliar, segundo
mogeneidade” e a oposta de ““hete- Kant, em que medida um conheci-
rogeneidade”* desempenham um pa-
mento se ajusta aos nossos fins e ca-
pel central no sistema de Spencer. pacidades. Nessa avaliação determi-
Este fala da evolução como passa- na-se o horizonte (Horizonrt) do nos-
so conhecimento, o qual é definível
gem da homogeneidade indefinida e
incoerente para a heterogeneidade como ““a adequação da magnitude de
definida e coerente. Segundo Spen- todo o conhecimento às capacidades
e fins do sujeito” (loc. cit.).
cer, o homogêneo é instável; todo
agregado homogêneo finito perde Segundo Kant, o horizonte em
sua homogeneidade ““pela exposição questão pode ser determinado de três
desigual de suas partes a forças inci- modos: (1) logicamente, de acordo
dentes” (First Principles, $ 186). Tu- com a capacidade ou as forças cog-
do o que é só imperfeitamente ho- noscitivas em relação aos interesses
mogêneo passa para o decididamente do entendimento; (2) esteticamente,
não homogêneo, ou seja, para o he- de acordo com o gosto em relação
terogêneo. Spencer cita casos de ho- aos interesses do sentimento; (3) pra-
mogeneidade em diversos domínios ticamente, segundo a utilidade em re-
da realidade — mecânico, químico, lação aos interesses da vontade. De
geológico, astronômico, meteoroló- um modo geral, o horizonte concer-
HORIZONTE 340

ne à determinação do que o homem tório mediante um ponto de vista


pode saber, necessita saber e deve conceitual. O conceito, diz Kant, é
saber. um ponto de vista. No interior de tal
No que diz respeito ao horizonte horizonte, há uma infinidade de pon-
determinado logicamente (ou teor!- tos de vista, a partir da qual se abre
camente), é possível considerá-lo de uma infinidade de horizontes de me-
um ponto de vista objetivo ou de um nor alcance. Um horizonte só se de-
ponto de vista subjetivo. No primei- compõe em horizontes, do mesmo
ro, o horizonte pode ser histórico ou modo que um conceito só se decom-
racional; no segundo, pode ser geral põe em conceitos. Dizer que um ho-
e absoluto, ou especial e condiciona- rizonte não se decompõe em pontos
do (“horizonte privado”). O hori-
sem circunscrição é dizer que há es-
zonte absoluto é a congruência dos
limites do conhecimento humano pécies que podem dividir-se em su-
bespécies, mas nunca em indivíduos,
com os limites de toda perfeição hu-
mana; a 1sso corresponde a pergun- já que conhecer é conhecer median-
ta: “O que pode saber o homem co- te conceitos, e o entendimento não
mo homem em geral?”*. O horizon- conhece nada somente através da in-
te privado é o horizonte determinado tuição.”*”*

por condições empíricas e orientações Alguns autores usaram palavras


especiais do sujeito. Kant fala também cuja função é muito parecida com a
de um horizonte do sentido da ciên- de “horizonte”; é o que sucede com
cia. Este último determina o que po- Hegel ao introduzir o termo ““o ele-
demos e não podemos saber. mento da negatividade”.
C. Canguilhem (““Le concept et la O conceito de horizonte foi desen-
vie”, Revue Philosophique de Lou- volvido muito pormenorizadamente
vain, 64 [1966], pp. 201-202) chama em certas tendências do pensamen-
a atenção para o que qualifica de to contemporâneo, especialmente na
“um texto magistral” de Kant no
fenomenologia ou em filosofias com
apêndice à “Dialética Transcenden-
tal”” da Crítica da Razão Pura, o
“contatos fenomenológicos””.
Husserl! elaborou o conceito de ho-
qual trata do uso regulador das
idéias da razão pura. “Kant introduz rizonte ao tratar de “eu e meu mun-
do ao redor”. O “meu mundo” não
nesse texto”? — escreve Canguilhem
— ““a imagem de horizonte lógico é simplesmente o mundo dos fatos

para explicar o caráter regulador e enquanto ““estão aí” ou estão ““pre-


não constitutivo dos principais racio- sentes”, mas inclui também, a par do
nais de homogeneidade do diverso “campo da percepção” — o que
segundo os gêneros, e da variedade “me é presente” — uma margem
do homogêneo segundo as espécies. “co-presente”, um mundo de ““as-
O horizonte lógico, no entender de suntos”, de valorações, de bens, etc.
Kant, é a circunscrição de um terri- Pode-se dizer que o horizonte é co-
341 HORIZONTE

mo um pano de fundo a que se in- nificações básicas, ou mais básicas


corporam, como que o constituindo, do que outras, dessa noção. Segun-
“margens”, “franjas marginais”, do Helmut Kuhn, essas significações
que incluem co-dados, co-presenças, reduzem-se a três: (1) o horizonte co-
etc. (Ideen, LI, SS 27, 28, 44; Husser- mo a circunferência (ou a esfera) úl-
liana, III, 57-61; 100-4). Husserl in- tima, no interior da qual aparecem
dica que “toda vivência possui um inscritas todas as coisas reais e ima-
horizonte, o qual muda no decorrer ginárias; (2) o horizonte como limi-
do seu complexo de consciência e no
decorrer de suas próprias fases de
te da totalidade das coisas dadas
simultaneamente, como o que as
e,
fluxo” (Cartesianische Meditatio- constitui enquanto todo; (3) o hori-
nen, $ 19; Husserliana, 1, 81-82). É zonte como algo ““aberto por natu-
um ““horizonte intencional” que se reza” (H. Kuhn, “The Phenomeno-
refere a possibilidades de consciên- logical Concept of “Horizon'”, em
cia pertencentes ao próprio proces- Philosophical Studies in Memory of
so. Assim, os horizontes são como Edmund Husserl, 1940, ed. Marvin
possibilidades pré-delineadas (vorge- Farber, pp. 106-23). Pode-se cons1-
zeichnete Potentialitaten). “Toda ex- derar que a investigação do ““hori-
periência tem seu horizonte experien- zonte dos horizontes” é a tarefa fi-
cial”* (Erfahrung und Urteil, ed. losófica por excelência.
Ludwig Landgrebe, $ 8). Pode-se fa- Heidegger fez uso da noção de ho-
lar de um “horizonte interior” quan- rizonte num sentido em parte seme-
do se trata da experiência de uma lhante ao de Husserl (ou aos de Hus-
coisa singular, mas há que se adicio- serl) e em parte independente do
nar a esse horizonte um ““horizonte mesmo (ou dos mesmos). Trata-se de
exterior de co-objetos”* ou ““horizon- apurar, antes de tudo, se o tempo
te de segundo grau” (loc. cit.). Hus- pode ser interpretado como ““hori-
serl admite a possibilidade de um zonte possível de qualquer com-
“horizonte vazio de uma incognos- preensão do ser” — em que ““hori-
cibilidade conhecida”, ou seja, a zonte” equivale a “limites (úÚlti-
possibilidade de que o não conheci- mos)”. Mais especificamente, po-
do — enquanto se sabe que é não co- réêm, o horizonte é “unidade estáti-
nhecido — tenha também um ““ho- ca” da temporalidade: “A condição
rizonte””. O conceito de horizonte é temporal-existencial de possibilida-
para Husserl tão fundamental que de do mundo reside em que a tem-
por seu intermédio é possível, inclu- poralidade tem, na medida em que
sive, definir-se o “mundo” como é uma unidade estática, o que se cha-
“horizonte de todos os possíveis ma um horizonte” (Sein und Zeir, &
substratos de Juízo” (op. cit., 8 9). 69 c). O “onde” do “arrebatamen-
As abundantes referências de Hus- to”* inerente ao êxtase temporal re-
serl à noção de horizonte tornam ne- cebeu de Heidegger o nome de ““es-
cessário precisar se há algumas sig- quema horizontal”. Segundo ele,
HORIZONTE 342

existem três ““esquemas horizon- bígua que se desenvolve como uma


tais”: o do “vir-a-ser”, o do “sido” coleção de ““istos”* e como uma ““to-
e o do “presente”. O conceito de ho- talidade sintética”? desses “istos”*, a
rizonte exerce também uma função qual pode ser equiparada a um ho-
definida quando se trata de ver co- rizonte e também a uma perspectiva
mo o ente se submete ““à experiên- (L'Être et le Néant, p. 232; ver tam-
cia da síntese empírica” (no sentido bém a p. 380). Merleau-Ponty fala
kantiano); o ente submete-se a tal ex- do ““horizonte interior de um obje-
periência segundo um “onde” eum to” que “não pode chegar a ser ob-
“horizonte” que formam o ““referir- jeto sem que os objetos que o ro-
se a” (Beziehung auf...) enquanto deiam se convertam em horizonte”
“síntese” (Kant und das Problem (Phénomenologie de la Perception,
der Metaphysik, 8 3). Heidegger fa- p. 82). Apoiando-se em idéias de
lou igualmente do horizonte da trans- Husserl, Merleau-Ponty assinala que
cendência como algo que nos repre- o sujeito, mais do que perceber ob-
sentamos de modo transcendental e, jetos, conta com o que o rodeia;
concomitantemente, da ““representa- além disso, em vez de um ““eu cen-
ção transcendental-horizontal”* (Ge- tral””', há uma espécie de “campo
lassenheit, pp. 50-52) num sentido cu- perceptivo” (op. cit., p. 476). Neste
jo desenvolvimento prossegue em Sen caso, a idéia de horizonte está liga-
und Zeit, mas dentro da fase da Keh- da a comprovações psicológicas —
re ou ““reversão”* heideggeriana. especialmente gestaltistas — mas tem
A idéia de horizonte está enraiza- uma significação que transcende o
da em várias filosofias contemporãâ- psicológico. Em geral, há na idéia de
neas. Assim, para Jaspers, “vivemos “mundo” de vários autores (Sartre,
e pensamos sempre dentro de um ho- Merleau-Ponty; também A. de Wae-
rizonte” (Vernunft und Existenz, lhens, La philosophie et les expérien-
Zweite Vorlessung). Mas todo hori- ces naturelles, 1961, especialmente
zonte leva à idéia de algo que englo- pp. 132-34) uma referência explícita
ba o horizonte e não é o próprio ho- ou implícita à noção de horizonte, e
rizonte. Trata-se do compreensivo até à de “articulação de horizontes”.
(ver [das Umgreifende]), que é “aqui- Por outro lado, a idéia de horizonte
lo dentro do qual se encontra encer- está intimamente relacionada com a
rado todo horizonte particular... e que idéia de totalidade ou, dizendo me-
Já não é visível como horizonte” lhor, com a idéia de possíveis formas
(foc. cit.). Para J.-P. Sartre, o cha- de totalidade enquanto modos diver-
é
mado “mundo” uma realidade am- sos de apresentação das coisas.
I A letra maiúscula “7” (segunda vo- IDEALISMO Leibniz empregou o
gal do vocábulo latino, affirmo) é termo ““idealista” ao referir-se a Pla-
usada na literatura lógica para repre- tão e a outros pensadores para quem
sentar simbolicamente a proposição a realidade é a forma (ou a idéia). Os
particular afirmativa, affirmatio par- autores idealistas — ou, como tam-
ticularis, um de cujos exemplos é a bém os chamou Leibniz, “formalis-
proposição: tas” — sustentam doutrinas muito
distintas das defendidas por autores
Alguns homens são mortais.
que, como Epicuro, são qualificados
Em textos escolásticos encontra-se de “materialistas”. Ainda é muito
com frequência o exemplo (dado por comum empregar “idealismo” para
Boécio): referir-se ao platonismo, ao neopla-
tonismo e a doutrinas filosóficas
Aliquis homo iustus est, análogas. Entretanto, como do pon-
e em inúmeros textos lógicos a letra to de vista da doutrina dos univer-
“T” substitui o esquema “Alguns S sais, os filósofos de tendência platô-
são P”*, sobretudo quando se intro- nica são qualificados de ““realistas”
duz o chamado quadro de oposição. — por afirmarem que as idéias são
“reais” —, o termo “idealismo”, no
Nos textos escolásticos, diz-se de
sentido antes assinalado, pode pres-
“1” que asserit particulariter, afir- tar-se a equívocos. Preferimos em-
ma particularmente. Também se usa pregá-lo aqui na acepção mais espe-
nesses textos a letra “1” para sim- cífica, ou mais circunscrita, que se
bolizar as proposições modais em conferiu ao vocábulo ao aplicá-lo a
modus negativo e dictum afirmativo, determinados aspectos da filosofia
ou seja, as proposições do tipo: moderna. Observemos que o senti-
É possível que p, do de “idealismo” como “idealismo
moderno” não está completamente
em que “p” simboliza um enuncia- separado do seu sentido “antigo”:
do declarativo. a filosofia idealista moderna também
A letra “7” (em cursivo) é usada se baseia nas “idéias”. A única di-
por Lukasiewicz para representar o ferença é que o significado moder-
quantificador particular afirmativo. no de “idéia” não equivale, ou nem
“T” antepõe-se às variáveis “a”, sempre equivale, ao platônico. An-
“pD”, “ce”, etc., de tal modo que tes de tratar do que consideramos ser
“Tab” lê-se “b pertence a alguns o sentido ““mais próprio” de “idea-
a” ou “algum a é b”. lismo”, assinalaremos que este vo-
IDEALISMO 344

cábulo se usa também não tanto em encontram frequentemente unidos: o


relação às idéias — de qualquer clas- aspecto gnoseológico e o aspecto me-
se que estas sejam — quanto, sobre- tafísico. Esse idealismo, seja gnoseo-
tudo, em relação aos ideais. Chama- lógico, seja metafísico, ou ambas as
se então de “idealismo” toda e qual- colsas ao mesmo tempo, manifestou-
quer doutrina (por vezes, simples- se de formas muito diversas durante
mente, a toda e qualquer atitude) se- a época moderna. Assinalemos, por
gundo a qual o mais fundamental e ora, algumas expressões cujo signi-
aquilo pelo qual se supõe que as ficado será esclarecido mais adian-
ações humanas devem ser conduz1- te: “idealismo subjetivo”, “idealis-
das são os ideais — realizáveis ou mo objetivo”, “idealismo lógico”,
não, mas quase sempre imaginados “idealismo transcendental”, “idea-
como realizáveis. Assim sendo, o lismo crítico”, “idealismo atualis-
idealismo contrapõe-se ao realismo, ta”, “idealismo fenomenológico””.
entendido este último como a dou- Embora tenhamos mencionado algu-
trina — e, por vezes, simplesmente mas das mais difundidas formas do
como a atitude — segundo a qual o idealismo na época moderna, não es-
mais fundamental e aquilo pelo qual gotamos com isso os adjetivos. Além
se supõe que as ações humanas de- disso, não nos referimos com 1sso a
vem ser dirigidas são as realidades”, manifestações do idealismo cuja uni-
as “duras realidades”, “os fatos dade é primordialmente ““histórica”.
constantes e sonantes”'. Esse sent1- O exemplo mais destacado deste úl-
do de “idealismo” costuma ser éti- timo é constituído pelo chamado
co ou ““político””, ou ambas as col- “idealismo alemão” (Kant, Fichte,
sas ao mesmo tempo. Também po- Schelling e, principalmente, Hegel).
de ser considerado simplesmente Na verdade, quando se fala de idea-
“humano”, na medida em que o que lismo é muito comum entendê-lo co-
se leva em conta é a ação do homem mo sendo esse “idealismo alemão”.
— em particular, a ação do homem Tampouco nos referimos a formas
na sociedade. de idealismo que, às vezes, se consi-
O idealismo ético e “político” es- deram mais fundamentais do que ou-
teve frequente e intimamente relacio- tras, porquanto cada uma delas re-
nado com ““o”* idealismo, tanto presenta não só uma filosofia, mas
“clássico”* quanto moderno, mas is- também — e até primordialmente —
so não nos permite concluir que os uma ““concepção do mundo”.
dois idealismos — o das idéias e o O traço mais fundamental do idea-
dos ideais — sejam inseparáveis. Em lismo consiste em adotar como pon-
todo caso, ocupar-nos-emos aqui do to de partida para a reflexão filosó-
idealismo que, por ora, qualificare- fica não “o mundo ao redor” ou as
mos de ““filosófico”* e que costuma chamadas ““coisas exteriores” (o
ter dois aspectos, em princípio inde- “mundo exterior”, ou “mundo ex-
pendentes um do outro, mas que se terno”*), mas o que chamaremos do-
|
345 IDEALISMO

ravante “eu”, “sujeito” ou “cons- tringir o idealismo propriamente di-


ciência”, termos que usaremos um to à idade moderna, polis mesmo
tanto como abreviaturas, pois, em quando nesta não são eliminados os
certos casos, poderiam — melhor motivos teológicos, vão adquirindo
ainda, deveriam — empregar-se vo- cada vez mais importância os moti-
cábulos como ““alma””, “espírito”, vos gnoseológicos e as teses metafí-
“pensar”, “mente”, etc. O vocábulo sicas derivadas desses motivos, ou in-
“idealismo” justifica-se, em particu- timamente relacionadas com eles.
lar, precisamente por ser o “eu” fun- Considerando-se, pois, o idealismo
damentalmente ““ideador”, isto é, fundamentalmente como idealismo
“representativo”. Com efeito, o moderno e levando-se em conta que
ponto de partida adotado é, para o ponto de partida do pensamento
empregar o vocabulário de Scho- idealista é o “sujeito”, pode-se dizer
penhauer, ““a representação do mun- que tal idealismo constitui um esfor-
do”, e não “o mundo”. Assim, o ço para responder à pergunta: ““Co-
idealismo começa com o ““sujeito””. mo podem as coisas ser, de modo ge-
Por isso, foi dito que o idealismo não ral, conhecidas?”* O idealismo é, por-
começou com a filosofia moderna, tanto, fundamentalmente ““des-
mas com o cristianismo, em particu- confiado” e, por conseguinte, essen-
clalmente ““cauteloso”*. Tal descon-
lar, com o pensamento de Santo
fiança não afeta apenas a chamada
Agostinho. É a tese de Heinz Heim-
soeth (entre outros). Segundo esse
“realidade sensível”, pois 1sso tam-
bém ocorria no ““platonismo” e no
autor, há idealismo desde o momen- agostinismo. A desconfiança em
to em que, ao contrário da ontolo- questão manifesta-se em relação a tu-
gia clássica ou “antiga”, destaca-se do o que é real ou, melhor dito, em
a realidade da pessoa como ““intimi- relação a tudo o que pretende ser real,
dade” e afirma-se que a alma é he- inclusive, pois, o inteligível ou os su-
terogênea em relação ao mundo — postos modelos da realidade sensível.
pelo menos, em relação ao mundo A pergunta “como, em geral,
“espacial”. podem-se conhecer as coisas?” não
A tese de Heimsoeth apóla-se num é, por isso, uma pergunta simples-
fato importante: o de que, ao menos mente gnosiológica, mas também —
na tradição agostiniana, “começa- e, às vezes, sobretudo — uma per-
se” com o ““sujeito”* e não com as gunta metafísica. De fato, em tal per-
“coisas”. A isso se deve o fato de gunta pressupõe-se que as coisas que
Santo Agostinho ter sido chamado se declararão ““reais” serão, funda-
“o primeiro filósofo moderno” e mentalmente, as que se admitirão co-
também que o agostinismo tenha in- mo ““cognoscíveis”, em particular,
fluído consideravelmente em autores como cognoscíveis com plena segu-
que, como Descartes e Malebranche, rança, segundo uma completa evi-
costumam ser considerados ““idealis- dência de que é detentor o sujeito
tas”. Não obstante, é razoável res- cognoscente.
IDEALISMO 346

Para o idealismo, ““ser” significa O caráter do idealismo poderá ser exa-


basicamente ““ser dado em (ou à) minado nas doutrinas correspondentes
consciência [no sujeito, no espírito, de cada um dos filósofos citados.
etc.]”*, “ser conteúdo da consciência Em Descartes — por vezes chama-
[do sujeito, do espírito, etc.]”º, ““es- do o “primeiro idealista” e, em to-
tar contido na consciência [no sujei- do caso, o “primeiro idealista mo-
to, no espirito, etc.]””. O idealismo derno”* —, o idealismo consiste ba-
é, assim, um modo de entender o ser. sicamente em radicar toda a evidên-
Isso não significa que todo o idea- cia no Cogito (ver COGITO, ERGO
lismo consista em reduzir o ser — ou SUM). Isso não significa que se ne-
a realidade — à consciência ou ao gue a existência do mundo exterior;
sujeito. apenas se enfatiza que o mundo ex-
Uma coisa é dizer que o ser ou a rea- terior não é simplesmente um ““da-
lidade são determinados pela consci- do” do qual se parte. O mundo ex-
ência, pelo sujeito, etc., outra é ma- terior é colocado entre parênteses a
nifestar que não há outra realidade se- fim de ser ulteriormente justificado.
não a do sujeito ou da consciência. Como isso ocorre mediante o ““ro-
Essa última posição é também idea- deio”* de Deus, pode-se dizer que o
lista, mas é só uma das muitas posi- idealismo cartesiano só é relativo. Em-
ções idealistas possíveis. bora a idéia de Deus apareça na cons-
Autores como Descartes, Male- ciência e no sujeito, surge neles co-
branche, Leibniz, Kant, Fichte, Schel- mo a realidade, o ens realissimum.
ling e Hegel costumam ser conside- Em Leibniz, o idealismo apresen-
rados idealistas. De um modo geral, ta-se sob a forma monadológica e é,
o idealismo moderno coincide com a rigor, um espiritualismo e também
o chamado ““racionalismo continen- um pampsiquismo. Como só as mô-
tal”, se bem que, no âmbito deste úl- nadas são reais, há que sustentar a
timo, haja autores, como Spinoza,
que não são propriamente idealistas,
idealidade do espaço e do tempo
em geral, de muitas das chamadas
e,
ao passo que no chamado ““empiris- “relações”. De certo modo, o idea-
mo inglês” (frequentemente contra- lismo de Leibniz é menos óbvio do
posto ao “racionalismo continental”) que o de Descartes. Em todo caso,
há autores, como Berkeley, que são não é um idealismo subjetivo, nem
claramente idealistas. Pois bem, tanto mesmo no sentido cartesiano de ““su-
a “dose” de idealismo quanto o ca- Jeito”. Em contrapartida, o idealis-
ráter deste mudam nos vários pen- mo é subjetivo e até, de certo modo,
sadores acima citados. Por exemplo, “empírico” em Berkeley, na medi-
ainda se observa em Descartes a so- da em que a realidade se define co-
brevivência de certos ““resíduos rea- mo o perceber ou o ser percebido.
listas”; em compensação, esses resí- No centro do pensamento idealis-
duos são imperceptíveis em Kant e ta encontra-se Kant, que repele o idea-
praticamente inexistentes em Fichte. lismo problemático de Descartes e
o
347 IDEALISMO

idealismo dogmático de Berkeley, em- que o idealismo autêntico coincide


bora encontre mais justificações pa- com esse idealismo alemão pós-
ra o primeiro do que para o segun- kantiano. Em tal idealismo, o “mun-
do. Mas a refutação dessas formas do” é equiparado à ““representação
de idealismo não o impede de formu- do mundo”, o que não significa a re-
lar seu próprio idealismo, o único que presentação subjetiva e empírica. De
considera aceitável: o idealismo trans- fato, mais do que de uma represen-
cendental. Este consiste em enfatizar tação, trata-se de um ““representar”,
a função do ““colocado”* no conhe- ou seja, de uma “atividade represen-
cimento. O idealismo transcendental tante”* que condiciona o mundo em
(ou formal) kantiano distingue-se, sua mundanidade.
pois, do que Kant chama ““dealismo O idealismo contemporâneo — en-
material” em não ser incompatível tendido como o conjunto de corren-
com o ““realismo empírico” e con- tes idealistas a partir das duas últi-
seguir até, pelo contrário, Justificar mas décadas do século XIX — ado-
este último. Não afirma, portanto, tou formas muito diversas mas, na
que os objetos externos não existem, maioria dos casos, estribou-se num
ou que sua existência é problemáti- dos tipos de idealismo explorados no
ca; afirma tão-só que a existência dos decorrer da época moderna. As cor-
objetos externos não é cognoscível me- rentes neokantianas e neo-hegelianas
diante percepção imediata. O 1dea- foram consideradas idealistas. São
lismo transcendental kantiano não exemplos delas o chamado idealismo
fundamenta o conhecimento no da- “anglo-americano** (Bradley, Bosan-
do, mas faz deste, em todo caso, uma quet, Royce, Bowne), o idealismo das
função do colocado. Pois bem, quan- escolas de Baden e Marburgo, o idea-
do se leva às últimas consequências lismo francês (Renouvier, Brunsch-
a doutrina kantiana da constituição vicg, Lalande, Hamelin) e o idealis-
do objeto como objeto do conheci- mo Italiano, principalmente o atua-
mento e se identifica a possibilidade lismo. Cumpre acrescentar a essas cor-
do conhecimento do objeto como pos- rentes os pensadores e as correntes
sibilidade do próprio objeto, o rea- que se declararam especificamente
lismo parece dissipar-se. idealistas (como Collingwood), bem
Tal realismo dissipa-se por com- como os autores e correntes que, sem
pleto, ou quase por completo, em se declararem idealistas, ostentam não
Fichte e, depois (por razões distin- poucos traços dessa orientação (Re-
tas), em Schopenhauer. Embora o né Le Senne, Louis Lavelle e outros).
chamado ““idealismo alemão” pós- Mas 1sso não esgota o idealismo con-
kantiano ofereça muitos aspectos di- temporâneo. Por um lado, houve o
versos em seus grandes representantes, chamado ““dealismo fenomenológi-
é característico de todos eles terem co”* de Husserl, o qual se distingue
prescindido da “coisa em si” kantia- claramente do idealismo transcenden-
na. Por isso, considera-se, às vezes, tal defendido pelos neokantianos (Ric-
IDEALISMO 348

kert, Cohen e outros). Uma das mais lismo perdeu a grande força que pos-
importantes diferenças entre os dois suía durante grande parte da época
tipos de idealismo foi assinalada por moderna e na filosofia contemporãâ-
Theodor Celms ao indicar que, en- nea entre aproximadamente 1870 e
quanto no idealismo fenomenológi!- 1914, não se pode dizer que tenha de-
co ““a consciência pura apresenta-se... saparecido por completo. E isso não
como uma multidão de sujeitos in- só porque ainda há autores influen-
dividuais puros (mônadas)”, no idea- tes que pertencem, de algum modo,
lismo transcendental só existe “uma à tradição idealista (Cassirer, Colling-
consciência pura, única e numerica- wood, etc.), mas também, e sobre-
mente distinta”. Por outro lado, fala- tudo, porque inclusive no seio de cor-
se (nem sempre justificadamente) de rentes não-idealistas surgem, de vez
idealismo em autores como Ernst em quando, problemas que não po-
Mach, sobretudo na medida em que dem ser devidamente tratados sem se
defenderam um ““percepcionismo”*”* levar em conta certos modos de for-
puro e um ““neutralismo”** ontológi- mulá-los e de entendê-los caracteriís-
co. Muitos marxistas, em todo caso ticos dos filósofos idealistas. Assim
(por exemplo, Lênin), atacaram Mach ocorre com o problema da função da
(e Avenarius, entre outros autores) consciência (ou do ““sujeito”*) no co-
como ““idealistas”*; além disso, fala- nhecimento, inclusive se se admite que
ram (em relação a Deborin) de um há, primordialmente, algo a conhe-
“idealismo menchevizante”, expres- cer. Se a consciência ou o sujeito não
são que só tem sentido no quadro do se limitam a refletir o real, há um mo-
desenvolvimento da filosofia soviética. mento de ““constituição deste que pa-
Em virtude do crescente predomínio rece inevitável. Por outro lado, não
de correntes realistas de todas as clas- se pode dar simplesmente por certo
ses na filosofia contemporânea, houve que há o real e que o real é como é
quem opinasse que o idealismo ““se e como se apresenta.
extinguira”'. Alguns autores, como No tocante à classificação das cor-
G. E. Moore, intentaram refutar o rentes ou formas do idealismo, limi-
idealismo por meio do senso comum. tamo-nos a apontar alguns modos de
Outros, como Nicolai Hartmann, Ur- ordenar essas correntes ou formas.
ban, etc., propuseram-se “superar” Em primeiro lugar, pode-se falar
tanto o idealismo quanto o realismo. de idealismo gnosiológico (ou basi-
Essa “superação de idealismo e rea- camente gnosiológico) e de idealismo
lismo”* também se verifica, pelo me- metafísico (ou basicamente metafí-
nos em intenção, na obra de pensa- sico). O idealismo gnosiológico resulta
dores como Ortega y Gasset e Hei- de um exame das condições do co-
degger. Poderiam ser mencionadas nhecimento e não pressupõe nenhu-
muitas outras críticas do idealismo ma tese sobre a estrutura da realida-
(por exemplo, Ottaviano). Contudo, de. Já o idealismo metafísico resul-
embora seja indubitável que o idea- ta de uma suposição acerca da estru-
349 IDÉIA

tura do real, na medida em que este aproxima-se da platônica na medida


se encontra ligado à consciência ou em que se refere à “forma” (geomé-
depende, inclusive, da consciência. trica) do átomo. Mas só em Platão
Na maioria dos casos, o idealismo encontramos uma extensa dilucida-
gnosiológico está misturado com o ção do problema (e problemas) das
metafísico, e a única coisa que se pode idéias.
fazer é tratar de ver que “dose” há São numerosas as passagens em que
de um ou de outro em determinada Platão se refere às idéias; a título de
doutrina. exemplo, citamos: Fáidon, 65, 100;
Em segundo lugar, pode-se falar, República, VI, 508, 510; VII, 517,
como fez Dilthey, de um “idealismo 523, 534; X, 597; Mênon, 81,85; Fár-
objetivo” e de um “idealismo da
berdade”', O idealismo objetivo sus-
li- don, 249; Parmênides, 131-35; Ban-
quete, 211; Tímaios, 46-51; Sofista,
tenta que a realidade é constituída por 254; O estadista, 277; Leis, XII, 965.
uma trama de conceitos, os quais Nessas — e em muitas outras passa-
constituem, por sua vez, a chamada gens — Platão trata do que são as
“consciência” enquanto ““consciência idéias (ou as “formas””), de sua ““re-
transcendental””. O idealismo da 1i- lação”? com as coisas sensíveis e com
berdade sustenta que o fundamento os números, das idélas como causas,
do conhecimento do real, e até o pró- como fontes de verdade, etc. No de-
prio real, encontram-se numa cons- correr de suas análises e reflexões,
ciência ativa e espontânea que é es- apresentam-se noções muito diversas
sencialmente ““exercício de liberda- de “idéia”; assim, por exemplo, as
de”. Um exemplo de idealismo ob- seis significações destacadas por C.
jetivo (também chamado, por vezes, Ritter (Neue Untersuchungen, 228 e
“lógico” é o de Hermann Cohen; um ss.): (1) Aparência exterior de algo;
exemplo de idealismo da liberdade é (2) Condição ou constituição; (3) Ca-
o de Fichte. racterística que determina um con-
ceito; (4) Conceito; (5) Gênero ou es-
IDÉIA O termo “idéia” procede do pécie; (6) Realidade objetiva desig-
grego tôéa, nome que corresponde ao nada pelo conceito. Em conseqgiiên-
verbo tôeiv (= ““ver”). cia dessa diversidade, foram propostas
O termo itôéa foi usado por vários muúltiplas interpretações da doutrina
pré-socráticos (por exemplo, Xenó- platônica das idéias (ver ESSÊNCIA).
fanes, Anaxágoras e Demócrito), mas Limitar-nos-emos aqui a assinalar que
sem ter o significado simultaneamente Platão concebe com muita frequên-
mais preciso e mais complexo que o cla as idélas como modelos das coi-
vocábulo adquiriu na filosofia de Pla- sas e, de certo modo, como as pró-
tão, a qual tem sido chamada com prias coisas em seu estado de perfei-
frequência ““a filosofia das idéias” ção. As idéias são as coisas como tais.
(ou, melhor, “das Idéias”). A expres- Mas as coisas como tais nunca são
são &Ttouos 1ôéa, usada por Demócrito, as realidades sensíveis, e sim as inte-
IDÉIA 350

ligíveis. Uma idéia é sempre uma uni- parado do múltiplo, enquanto, pa-
dade de algo que se apresenta como ra Aristóteles, é algo unido ao muúul-
múltiplo. Por isso, a idéia não é tiplo, xaTt& Tv tohNwr. Em outros
apreensível sensivelmente, só sendo termos, Aristóteles nega que as idéias
“visível” inteligivelmente. As idéias existam num mundo inteligível sepa-
“vêem-se” com o ““olhar interior”. rado das coisas sensíveis; as idéias são
Uma vez admitidas as idéias, cum- “imanentes” às coisas sensíveis. De
pre saber de que coisas pode haver. outro modo não se entenderia como
Em princípio, parece que pode ha- as idéias podem ““atuar” e, de pas-
ver idéias de qualquer coisa. Mas é sagem, explicar a realidade sensível.
duvidoso que haja idéias de “coisas A doutrina platônica das idéias
vis” ou de ““coisas insignificantes”. constitui a base de uma doutrina mui-
Por isso, Platão tende cada vez mais to difundida no final do mundo an-
a reduzir as idéias a idéias de obje- tigo: a doutrina segundo a qual as
tos matemáticos e de certas qualida- idéias são modelos existentes no seio
des que hoje em dia consideramos va- de Deus. Segundo Fílon de Alexan-
lores (a bondade, a beleza, etc.). Além dria, um dos principais promotores
disso, tende a ordenar as idéias hie- de tal doutrina, as idélas — ou
rarquicamente. Uma idéia é tanto “idélas-potências”, como as chama
mais “idéia” quanto mais exprima — são modelos imanentes no Logos
a unidade de algo que aparece como divino que servem de intermediários
múltiplo. Mas se essa unidade é uma entre Deus como Criador e sua cria-
realidade “em st”, coloca-sé a questão ção. O mundo foi criado de acordo
de que tipo de relação existe entre o com as “idéias exemplares”. Estas
uno (ideal) e o múltiplo. É nesse ponto formam um “mundo inteligível” de
que se manifesta a divergência clás- “razões seminais” (conceito que Fí-
sica de opiniões entre Platão e Aris- lon foi buscar nos estóicos). Isso não
tóteles. Este último autor escreve que significa que Deus seja simplesmen-
“não cabe admitir a existência de te um demiurgo no estilo platônico,
idéias, ou do Uno Junto [justapos- ainda que, com a doutrina de refe-
to, exterior] ao Múltiplo” (Segundos rência, sempre se apresente o proble-
analíticos, A, 11,77 a 5 ss.). O que ma de se Deus é ou não completa-
sucede, na realidade, é que “o Uno mente transcendente em relação às
está unido [é imanente] ao Múltiplo” “idéias exemplares”.
(Metafísica, À 9, 990 b 13; cf. tam- Esse problema está relacionado com
bém Metafísica, A 6, 987 b 8). A di- as consequências derivadas de
ferença entre Platão e Aristóteles, a sublinhar-se o caráter absolutamen-
esse respeito, costuma expressar-se te simples de Deus. Os neoplatôni-
com os mesmos termos usados pelo cos tinham reservado a pluralidade
Estagirita. Para Platão, o Uno (ou de idéias para a segunda hipóstase,
seja, a “unidade do múltiplo” antes uma vez que no Uno não podia ha-
referida) é rapa Ta ToNha, algo se- ver pluralidade nenhuma. Santo Agos-
351 IDÉIA

tinho adotou em grande medida a de conhecimento. Neste último caso,


doutrina neoplatônica das idéias, debateu-se com frequência a questão
mas não pôde aceitar a concepção do de se o homem conhece pelas idéias
Uno como “emanente””. Sendo Deus ou se conhece as idéias. Finalmente,
criador ex nihilo, encontra-se acima um uso lógico, segundo o qual a
de todas as coisas, inclusive, é cla- idéia é a apresentação simples da coi-
ro, das idéias. Mas, ao mesmo tem- sa na mente. Dentro do vocabulário
po, estas podem conceber-se como escolástico, temos diversas distinções
estando na inteligência divina. As de idéias: idéias abstratas, idéias con-
idéias são, para Santo Agostinho, al- cretas, idéias particulares, idéias co-
go assim como formae principales ou letivas, idéias completas, idéias in-
rationes rerum. São razões estáveis completas, idéias claras, idéias obs-
e imutáveis das coisas. Como tais, curas, idéias adequadas, idéias ina-
são eternas. Mas sua eternidade de- dequadas, etc. Essas distinções (nas
riva de estarem contidas na intel- quais o termo idéia tem, com fre-
ligentia divina (De div. quaest., quência, o sentido do termo concep-
LXXXIII, q. 46). Portanto, em vez tus) passaram em parte para a filo-
de serem as idéias que determinam sofia moderna.
a obra criadora de Deus, Deus é A única coisa que se parece po-
quem possui as idéias segundo as der assegurar é que, embora nos fi-
quais leva a cabo sua criação. A in- lósofos modernos encontremos dI-
teligência divina pode conter uma versos usos de “idéia”, predominou
pluralidade de idéias Justamente por- aparentemente o sentido de “idéia”
que essa pluralidade é da inteligên- como ““representação (mental) de
cia divina, mas não é idêntica a tal uma coisa. Embora os significados
inteligência. teológico, metafísico, lógico, etc., de
Tudo pode fazer supor que o ter- “idéia” não fossem abandonados na
mo ““idéia” foi empregado pelos fi- época moderna, muitos autores fo-
lósofos e teólogos cristãos somente ram propensos a conceber as idéias
do ponto de vista teológico. Mas não como resultados da atividade de um
é assim; além da concepção teológ!- sujeito cognoscente. Foi habitual
ca das idéias, há a concepção meta- considerar que, mediante as idéias
física (ou ontológica), a gnosiológi- que um sujeito possui (aspecto psi-
ca e a lógica. A rigor, os escolást!- cológico), é possível conceber-se ra-
cos abriram o caminho para vários cionalmente (aspecto lógico) o que as
usos do termo ““idéia””. Por um la- coisas são de verdade (aspecto me-
do, o uso teológico anterior. Depois, tafísico ou ontológico). O predomí-
um uso ontológico, estreitamente l1- nio do ponto de vista “epistemoló-
gado ao anterior, segundo o qual as gico”* foi comum tanto às tendências
idéias são concebidas como modelos. racionalistas quanto empiristas, em-
Ademais, um uso gnosiológico, se- bora as primeiras tenham desembo-
gundo o qual as idéias são princípios cado rapidamente no objeto conhe-
IDÉIA 352

cido, ao passo que as segundas se de- a partir do instante em que se subli-


tiveram no sujeito cognoscente. nhou o aspecto subjetivo da idéia, as
Os racionalistas tenderam a con- posições mantidas aproximaram-se
siderar que as idéias (pelo menos as das empiristas, e o problema que per-
idéias verdadeiras e adequadas) têm maneceu por resolver foi menos o da
duas faces: uma, serem ““conceitos essência das idéias do que o de sua
do espírito, que este forma por ser origem na mente.
uma coisa pensante”, como dizia Os empiristas usaram com abun-
Spinoza (Ertica, II, def. iii); a outra, dância o termo “idéia” em muitos
serem as próprias coisas enquanto casos, além de terem elaborado suas
vistas (mediante uma simplex men- teorias do conhecimento como uma
tis Inspectio, como afirmava Descar- espécie de “doutrina das idéias” —
tes. Este último aspecto levou a fi- no sentido de “doutrina das represen-
xar as idéias verdadeiras em Deus, tações das coisas do espírito”. Assim
especialmente quando, como em Spi- ocorre em Locke, Berkeley e Hume.
noza, se considerou que Deus é ““a Locke pede perdão ao leitor, no co-
única coisa pensante” (e não só um meço do seu Essay, pelo uso frequen-
modo de pensar), ou como quando, te da palavra “idéia”, mas indica ser
nos ocasionalistas, Deus foi conside- essa a melhor palavra para designar
rado o “ponto de vista absoluto”, a função de “representar” (stand for)
a partir do qual são vistas todas as qualquer coisa que seja o objeto do
colsas. Em consequência disso, os ra- entendimento quando um homem
cionalistas inclinaram-se para o ina- pensa. Idéia equivale a “fantasma”,
tismo. Pois bem, isso não levou, sal- “noção”, “espécie” (An Essay Con-
vo em casos extremos, a fazer sim- cerning Human Understanding, In-
plesmente das idéias modelos ou ar- trodução, 8). As idéias são, para Loc-
quétipos existentes em Deus. O as- ke, “apreensões” e não (ou ainda
pecto das idéias como ““conceitos do não) propriamente conhecimentos.
espírito (humano) manteve-se tam- Os homens têm em sua mente várias
bém como essencial para a com- idéias, como as de “brandura, dure-
preensão da natureza das idéias. za, doçura, pensamento, movimen-
Apoiando-se nele, tiveram lugar as to, homem, elefante, exército, ébrio,
numerosas discussões acerca da ori- etc.” (op. cit., II,1, 1). A maior par-
gem das idéias e sobre as categorias te das idéias procede de uma fonte:
de idéias: claras, obscuras, distintas, a sensação (ibid., II, i, 3). As idéias
confusas, adequadas, inadequadas, podem ser simples (recebidas passi-
etc. Quando os motivos teológicos vamente) ou complexas (formadas
perderam importância, os racionalis- por uma atividade do espírito). As
tas consideraram que as idéias (ver- idéias simples podem ser idéias de
dadeiras) podiam continuar sendo sensação (provenientes de um senti-
inatas por sua posse corresponder à do como o sabor ou a dureza; ou de
“natureza do homem”. Entretanto, ,
mais de um sentido, como a figura,
353 IDÉIA

O repouso, o movimento) ou de re- o termo ““coisa” por duas razões:


flexão (percepção ou pensamento, “Porque se supõe que o termo col-
vontade). Há também idéias com- sa, ao contrário de idéia, denota a:-
postas de sensação e reflexão (como go que existe fora do espírito; em se-
o prazer, a dor, a existência). As gundo lugar, porque coisa tem um
Idélas complexas são idéias de mo- significação mais abrangente do que
dos (como afeições das substâncias, idéia, uma vez que inclui tanto ob-
substâncias e relações). Os modos jetos e coisas pensantes quanto
são ““dependências ou afeições da idéias. Por conseguinte, como os ob-
substância, tais como triângulo, gra- jetos dos sentidos só existem no es-
tidão, assassinato” (ibid., II, xi), e pírito... prefiro designá-los median-
podem ser simples ou mistos. Os mo- te a palavra idéia” (ibid., 1, 39). Pa-
dos simples, como uma dúzia, são ra Berkeley, só existe perceber ou ser
“variações ou diferentes combina- percebido; portanto, há apenas espíi-
ções da mesma idéia simples”, en- ritos que percebem e idéias — que
quanto os modos mistos, como a be- são as “coisas” enquanto percebi-
leza ou o roubo, ““são compostos de das. Como vimos, esse pensador re-
idéias simples de várias categorias”. chaça as idéias gerais abstratas, em-
Pode-se falar também de idélas reais bora admita as idéias gerais desde
ou fantásticas, adequadas ou inade- que essas não pretendam designar
quadas, e até de idéias verdadeiras uma ““coisa geral”* ou uma “forma”
ou falsas (se bem que 1sso correspon- distinta das realidades particulares
da mais às proposições, na medida ou das percepções particulares. Hu-
em que as chamadas “idéias verda- me, por fim, distingue entre impres-
deiras” e “idéias falsas” são idéias sões e idéias, e chama idéias as “ima-
em que existe sempre alguma propo- gens fracas dessas [impressões] ao
sição tácita). O conhecimento con- pensar e ao raciocinar” (Treatise of
siste unicamente na ““percepção da Human Nature, IL, 1, 1). “As idéias
conexão e da concordância, ou da (tal como as impressões) podem ser
discordância e repulsa por qualquer simples ou complexas. As idéias sim-
das nossas idéias. Só consiste nisso” ples são as que não admitem distin-
(ibid., IV, 1, 2). Berkeley afirma que ção nem separação; as complexas,
os objetos do conhecimento huma
no consistem em idéias — idéias
-
aquelas nas quais podem distinguir-
se partes”* (loc. cit.). Numa nota des-
“efetivamente impressas nos sent1- sa seção do Treatise, Hume escreve,
dos, percebidas ao estarem presen- além disso, que ““talvez seja preferí-
tes nas paixões ou operações do es- vel restabelecer a palavra idéia em
pírito, ou, finalmente, formadas me- seu sentido original, aquele que Loc-
diante a memória e a imaginação” ke Ihe atribuiu ao fazê-la designar to-
(A Treatise Concerning the Princi- das as nossas percepções”.
ples of Human Knowledge, L, 1). Em An Enquiry Concerning Human
Berkeley usa o termo “idéia” e não Nature (seção II), Hume reformulou
IDÉIA 354

a sua doutrina das idéias, [tal como tratou de averiguar se tais idéias de-
expusera no Livro I do Treatise] ao terminam, segundo princípios, como
indicar que as “percepções do espí- deve empregar-se o entendimento
rito” podem dividir-se em duas ca- quando se refere à totalidade da ex-
tegorias, segundo o seu maior ou me- periência (pois nenhum objeto que
nor grau de força ou de vivacidade: seja congruente ou compatível com
as que possuem menor força e viva- uma idéia pode ser dado aos senti-
cidade são chamadas ““pensamentos dos). O número de idéias ou concei-
ou idéias”. As outras percepções po- tos puros da razão é, segundo Kant,
dem chamar-se impressões. Hume idêntico ao número de classes de re-
observa que, embora as idéias com- lações que o entendimento se repre-
plexas não sejam necessariamente senta mediante as categorias. Como
derivadas de impressões complexas nos conceitos de razão procuramos
(assim, a idéia de uma sereia não é sempre o incondicionado, temos o
derivada da impressão de uma se- incondicionado da síntese categóri-
rela), as idéias simples, por seu la- ca num sujeito, da síntese hipotéti-
do, derivam sempre de impressões ca nos membros de uma série e da
simples e representam-nas exatamen- síntese disjuntiva das partes num
te (Treatise, L, 1, 1). Em outras pala- sistema. A primeira classe de idéias
vras, “todas as nossas idéias ou per- transcendentais contém a unidade
cepções mais fracas são cópias de absoluta (ou incondicionada) do su-
nossas impressões ou percepções jeito pensante (objeto da psycholo-
mais nítidas” (Enquiry, sec. II). As gia rationalis); a segunda, a unida-
idéias podem ser separadas e unidas de absoluta da série de condições da
mediante a imaginação, mas esta é aparência (objeto da cosmologia ra-
guiada por ““certos princípios univer- tionalis); a terceira, a unidade abso-
sais” (Treatise, 1, 1, 4). As idéias luta da condição de todos os obje-
combinam-se mediante os princípios tos do pensamento em geral (objeto
da associação de idéias. da theologia rationalis) (K. r. V., À
Kant considerou que o uso do ter- 334, B 391). Essa classificação das
mo ““idéias” pelos empiristas (em idéias é analítica, começando com o
suas teorias do conhecimento) e pe- que é imediatamente dado à expe-
los racionalistas (em suas especula- riência e passando, pois, da doutri-
ções metafísicas) era claramente abu- na da alma à doutrina do mundo e,
sivo. Quando o conceito se forma finalmente, à doutrina de Deus. Do
com base em noções e transcende a ponto de vista sintético, as idéias, co-
possibilidade da experiência, temos mo objeto da metafísica, são Deus,
uma idéia (Idee) ou conceito de ra- liberdade e imortalidade (B 395 no-
zão (Vernunftbegriff) (K. r. V., À ta). Do seu exame (e, em particular,
320, B 377). do exame dos paralogismos e anti-
Os conceitos puros da razão cha- nomias da razão pura), conclui Kant
mam -se idéias transcendentais. Kant que as idéias transcendentais supe-
355 IDÉIA

ram toda a possibilidade de experiên- neoplatonismo. Ainda mais funda-


cla, encontrando-se quase completa- mental é o papel das idéias — OU,
mente segregadas das formas a priori melhor, de “a Idéia” — em Hegel.
da sensibilidade (espaço e tempo) e A filosofia de Hegel apresenta-se
dos conceitos puros do entendimen- centrada na noção de Idéia absolu-
to (categorias). Como sínteses meta- ta. Proclama ele, com efeito, que
físicas efetuadas pela razão pura, as “Deus e a natureza de sua vontade
idéias não são constitutivas. Mas ne- são uma única coisa, e esta é o que
gar que o sejam não é negar-lhes a filosoficamente designamos por a
possibilidade de um uso regulador. Idéia” (Lições sobre filosofia da his-
Pois bem, como também as analo- tória). A realidade, na medida em
gias da experiência e os postulados que se desenvolve para voltar a si
do pensamento empírico em geral mesma, é a própria Idéia que se val
têm uso regulador e não constituti- tornando absoluta. A Idéia absolu-
vo, O ser regulador não é suficiente ta é a plena e integral verdade do ser
para caracterizar as idéias transcen- (Lógica, ad finem). A Idéia é a uni-
dentais. Estas são princípios regula- dade do conceito e da realidade do
dores da razão (A 509, B 537). conceito e, por isso, Alles Wirkliche
As idéias da razão pura, que de- ist eine Idee: “Todo o real é uma
sempenham um papel modesto na Idéia”. Se quisermos, a Idéia é “o
Crítica da Razão Pura, vão adqui- verdadeiro como tal”*. A Idéia (ab-
rindo maior importância na obra de soluta) é a identidade do teórico e do
Kant à medida que essa obra se tor- prático; uma vez mais: “somente a
na menos crítica e mais sistemática. Idéia absoluta é ser”.
Em algumas passagens do Opus pos- Schopenhauer adotou a doutrina
tumum, as idéias da razão pura são kantlana das idéias e combinou-a
apresentadas como o fundamento da com a doutrina platônica, fazendo
possibilidade da experiência enquan- das idéias graus de objetivação da
to totalidade. Vontade (ver). A idéia é a objetivi-
Entretanto, não é legítimo confun- dade da vontade num certo grau (O
dir o pensamento de Kant, nem mes- mundo como vontade e representa-
mo o pensamento de seu último pe- ção, III, 31). As idéias funcionam,
ríodo, com o idealismo pós-kantia- assim, ao modo platônico, como
no. Neste, as idéias de razão adqui- “intermediárias” entre a Vontade
rem um significado não só metafís!- como colsa em si e o mundo feno-
co mas até mesmo teológico. Em mênico; a Vontade produz as idéias
Schelling, por exemplo, as idéias de- ao objetivar-se e, com Isso, os arqué-
sempenham o papel de “intermediá- tipos segundo os quais se constitui o
rias” entre o absoluto e as coisas sen- mundo.
síveis — num sentido de “interme- Nos séculos XIX e XX mistura-
diário” não muito distante do do ram-se com frequência a especulação
IDENTIDADE 356

metafísica e a descrição psicológica filosofia ambos os sentidos frequen-


na investigação da natureza e da fun- temente se misturaram — e até se
ção das idéias, por exemplo, em confundiram.
Bergson. Foi comum, em grande parte da
tradição filosófica, considerar que o
IDENTIDADE Tal como o concei- fundamento do princípio lógico de
to de contradição (ver), o de identi- identidade encontra-se no princípio
dade também tem sido examinado de ontológico, ou que ambos são aspec-
vários pontos de vista. Os dois mais tos de uma mesma concepção: aque-
destacados são o ontológico (seja o la segundo a qual sempre que se fa-
la do real fala-se do idêntico. A for-
ontológico formal, seja o metafísi-
co) e o lógico. O primeiro é patente ma extrema dessa concepção encon-
tra-se em Parmênides. A idéia de
no chamado princípio ontológico de identidade parece ser, então, o resul-
identidade (A = A), segundo o qual tado de certa tendência da razão —
toda a coisa é igual a si mesma ou dessa “razão identificadora” que foi
ens est ens. O segundo ponto de vis- tão corrente na história da filosofia.
ta manifesta-se no chamado princi A esse respeito, devem considerar-se
pio lógico de identidade, o qual é as indagações de Meyerson. Fala es-
considerado, por muitos lógicos de se autor da identidade como de uma
tendência tradicional, como o refle- inevitável tendência da razão a redu-
xo lógico do princípio ontológico de zir O ideal ao idêntico, isto é, a sa-
identidade e, por outros lógicos, co- crificar a multiplicidade à identida-
mo o princípio “a pertence a todo de com vistas à sua explicação. O
a”* (lógica dos termos), ou ainda co- princípio de causalidade é, assim, se-
mo o princípio “se p [onde p simbo- gundo Meyerson, o princípio de
liza um enunciado declarativo], en- identidade aplicado à existência dos
tão p”* (lógica das proposições). Al- objetos no tempo e constitui o caso
mais característico dessa identifica-
guns autores falaram também do
ção, para a qual tendem tanto a ciên-
princípio psicológico de identidade,
cia quanto o pensamento comum.
entendendo por ele a impossibilida-
de de pensar a não-identidade de um
“Afirmar que um objeto é idêntico
a sl mesmo — escreve Meyerson —
ente consigo mesmo; mas, tal como
parece uma proposição de pura 1ló-
fizemos no caso da noção de contra-
gica e, além disso, uma simples tau-
dição, também excluiremos aqui es- tologia, ou, se se prefere, um enun-
te último sentido. Limitamo-nos, ciado analítico, segundo a nomencia-
pois, neste verbete, a um exame dos tura de Kant. Mas a partir do instan-
sentidos ontológico (ou metafísico) te em que se lhe adiciona a conside-
e lógico da identidade. Advertimos, ração do tempo, o conceito desdo-
aliás, que a sua separação mútua não bra-se, por assim dizer, pois fora do
é fácil; no transcurso da história da sentido analítico adquire, como
acer-
357 IDENTIDADE

tadamente disse Spir, um sentido sin- essa noção se apresenta em várias for-
tético”. É analítico — prossegue Me- mas: é “uma unidade de ser, unida-
yerson — ““quando expressa simples- de de uma multiplicidade de seres ou
mente o resultado de uma análise do unidade de um só ser tratado como
conceito; e sintético, pelo contrário, múltiplo, como quando se diz, por
quando é entendido como uma afir- exemplo, que uma coisa é idêntica a
mação relativa à natureza dos obje- si mesma”. Aristóteles também falou
tos reais. Mas essa relação entre o da identidade do ponto de vista da
princípio da razão determinante e o igualdade (matemática).
de identidade já era perfeitamente Os escolásticos consideraram vá-
clara para Leibniz, como pode com- rios tipos de identidade (identitas).
provar-se pela exposição de Coutou- Cabe falar de identidade real, racio-
rat e como, aliás, indica a maneira nal ou formal, numérica, específica,
pela qual o próprio Leibniz estabe- genérica, extrínseca, causal, primá-
lece um paralelo entre os dois prin- ria, secundária, etc. A distinção mais
cípios na aludida passagem” (Iden- geralmente aceita é a já indicada, de
tité et Réalité, 1908). identidade lógica e identidade onto-
As reflexões de Meyerson sobre a lógica (ou metafísica). Os autores ra-
noção de identidade encontram apoio cionalistas foram propensos a con-
nos autores que adotaram como mo- siderar ambas em conjunto. Isso não
delo a equiparação da idéia de iden- quer dizer que esses autores tenham
tidade lógica à idéia de identidade me- “identificado”* por completo essas
tafísica ou ontológica. Isso parece ter duas formas de identidade, ou te-
ocorrido com Parmênides — a cuja nham derivado a identidade ontoló-
imagem ou idéia da “esfera”* Meyer- gica da lógica ou esta última daque-
son recorre repetidas vezes — ou com la. Quer apenas dizer que se inclina-
alguns dos últimos diálogos (dialéti- ram a pensar que a noção ontológi-
cos) de Platão, nos quais se faz sentir ca ou metafísica de identidade tem
a influência de Parmênides. Não uma forma lógica, e que o princípio
OCOITe, OU OCOITre Menos, com outros lógico de identidade tem um alcance
autores, que distinguem entre identi1- ontológico ou metafísico. Um exem-
dade lógica e identidade metafísica, plo disso é Leibniz, mas, afirman-
ou que falam de diversas noções de do-o, estamos dizendo muito pouco
identidade. acerca das importantes análises des-
Aristóteles não dedicou muita aten- se pensador a respeito da noção de
ção à questão da identidade; nem nos identidade. Algumas dessas análises
seus escritos lógicos, nem na Metafi- tiveram grande repercussão em sub-
sica, encontramos uma análise da sequentes trabalhos lógicos, sobretu-
identidade tão minuciosa quanto a do a partir de Frege. A tal respeito,
análise do princípio de não-contra- destaca-se o princípio leibniziano da
dição. Quando tratou de definir a identidade dos indiscerníveis.
identidade, Aristóteles observou que A noção de identidade metafísica
IDENTIDADE 358

foi criticada por Hume. Sua crítica dida em que é a atividade do sujeito
é a mesma por ele formulada a res- transcendental que permite, por meio
peito da noção de substância. Isso se dos processos de síntese, identificar
verifica principalmente quando Hu- diversas representações (num conceil-
me critica os que pretendem que há to). O problema da identidade pare-
um eu (self) substancial idêntico a si ce insolúvel (ou sua solução, arbitrá-
mesmo, ou idêntico através de todas ria) quando pretendemos identificar
as suas man!ifestações. No Treatise
(IV, v), Hume alegou que a idéia des-
a
coisas em si. Por outro lado, solu-
ção é insatisfatória como quando, se-
sa suposta identidade não deriva de
nenhuma “impressão” sensível. Pe-
a
guindo Hume, baseamos identida-
de na relativa persistência das impres-
netrar no recinto do suposto ““eu” sões. Em contrapartida, a identida-
equivale a encontrar-se sempre com de mostra-se assegurada quando não
alguma percepção particular; os cha- é empírica nem metafísica, mas trans-
mados ““eus” nada mais são do que cendental. Ainda mais: só a noção
feixes (bundles) ou coleções de dife- transcendental da identidade torna
rentes impressões. Para ““sustentar” possível, segundo Kant, um concei-
a persistência das percepções imagi- to de identidade. Isso se aplica não
na-se uma alma, eu ou substância apenas às representações externas,
subjacente a elas; supõe-se, além dis- mas também à questão da ““identi-
so, haver, num agregado de partes dade numérica” da consciência de
em relação mútua, “algo” misterio- mim mesmo em diferentes momentos
so que relaciona as partes indepen- (K. r. V., A 361 e ss.). Não há um
dentemente de tal relação. Mas co- substrato metafísico da identidade
mo, segundo Hume, tais frutos da pessoal que possa ser demonstrado
imaginação ou suposições carecem pela razão. Mas a identidade pessoal
de base, devemos repelir a idéia de aparece na razão prática como uma
que existe uma identidade metafís!- forma de postulado — se a imortali-
ca na noção de substância. Hume dade é um postulado da razão práti-
considerou que o problema da iden- ca, deve implicar a identidade pessoal
do ser imortal.
tidade pessoal (e, por extensão, o
problema de qualquer identidade Os idealistas pós-kantianos fize-
substancial) é insolúvel e contentou- ram da identidade um conceito cen-
se com a relativa persistência de fei- tral metafísico. Assim ocorreu espe-
xes de impressões nas relações de se- cialmente em Schelling, um de cujos
melhança, contiguúidade e causalida- sistemas se baseia na identidade de
de das 1déilas. sujeito e objeto. A identidade é, nes-
Kant aceitou as consequências da te caso, não só um conceito lógico,
crítica de Hume contra a concepção nem apenas o resultado de represen-
racionalista da identidade, mas não tações empíricas unificadas por meio
a solução de Hume. A identidade tor- da consciência da persistência, mas
na-se transcendental em Kant, na me- um princípio que se apresenta logi-
359 IDENTIDADE

camente como vazio, ainda que, me- titãt und Differenz, 1957, pp. 15-34)
tafisicamente, seja a condição de to- indica que a fórmula A=A refere-
do “desenvolvimento” ou ““desdo- se a uma igualdade (Gleichkeit), mas
bramento”* subseqiiente. Hegel dis- não diz que A é como ““o mesmo”
tingue entre a identidade puramente (dasselbe). A identidade pressupõe
formal do entendimento e a identi- que a entidade considerada é igual a
dade rica e concreta da razão. Quan- si mesma ou, como dizia Platão,
do o Absoluto é definido como ““o avTô 6º éauTO TAUTOV, QUE É O MES-
idêntico a si mesmo”', parece não se mo com respeito a si mesmo. Na
dizer nada sobre o Absoluto. Mas a identidade propriamente dita há a
“Identidade concreta” do Absoluto idéia da “unidade consigo mesma”
não é uma identidade vazia. Em re- da coisa — idéia essa já perceptível
sumo, a identidade não expressa (ou, nos gregos, mas desenvolvida somen-
para ser mais exato, não expressa so- te com Leibniz, Kant e, sobretudo,
mente) em Hegel uma relação vazia com os idealistas alemães: Fichte,
e abstrata, tampouco uma relação Schelling e Hegel. A partir deles, já
concreta e carente de razão, mas um não podemos representar a identida-
conceito universal, uma verdade ple- de como mera unicidade (Einerlei).
na e “superior” que absorveu todas A unicidade é puramente abstrata e
as identidades anteriores. A rigor, a nada nos diz sobre o ““ser em si mes-
própria forma do princípio de iden- mo com”, a que o princípio de iden-
tidade já indica, segundo Hegel, que tidade se refere metafisicamente. Co-
há nele mais do que uma identidade mo lei do pensar, o citado princípio
simples e abstrata; há o puro movi- só é válido “enquanto é uma lei do
mento da reflexão (reine Bewegung ser que enuncia: a todo o ente como
der Reflexion) em que ““o outro” tal pertence a identidade, a unidade
surge como ““aparência””. consigo mesma” (die Einheit mit ihm
Na filosofia contemporânea, o selbst).
problema da identidade foi examina- Trataremos agora da noção de
do de modos muito diversos. Uma identidade na lógica.
questão muito debatida foi a da O chamado ““princípio de identi-
“identidade pessoal”. Outra questão
discutida foi a da identificação de
dade” é apresentado como uma
da lógica sentencial, ou da lógica
lei
“objetos”, a qual pode ser — como proposicional, e, portanto, como
assinalou Quine — identificação de uma tautologia. Eis duas leis de iden-
objetos concretos (por exemplo, um tidade na citada lógica:
rio), no decorrer da qual se usam ter-
mos singulares, ou identificação de DP
objetos abstratos (por exemplo, um que se lê:
quadrado) no decorrer da qual se
empregam termos gerais. Heidegger
se p, então p,
(““Der Satz der Identitãt”* em Iden- e
IDENTIDADE 360

PD onde “é” equivale a “é idêntico a”,


que se lê: estabelecendo-se, por conseguinte,
uma identidade entre a Lua e o saté-
p se, e somente se, p, lite da Terra.
em que “p”* simboliza um enuncia- Mencionaremos duas leis da lógi-
do. Essa concepção da identidade foi ca da identidade.
antecipada pelos estóicos. Segundo A lei de substituibilidade da iden-
Lukaslewicz, os estóicos formularam tidade formula-se assim:
o princípio de identidade na lógica
dos enunciados, ao passo que Ale- A XY (X=Y) (Fx —FY),
xandre de Afrodisia (In anal. pr. de que se depreende que duas enti-
comm., Wallies, 34) formulou-o, dades, x e y, são idênticas se o que
com base na doutrina aristotélica, na é verdade acerca de x também é ver-
lógica dos termos. O princípio ““se dade acerca de y, e vice-versa. Se
o primeiro, então primeiro” contém, x” for “Cervantes”; “7”, “o au-
segundo Lukasiewicz, uma constante tor do Quixote”; e “F””, “o mais fa-
“se... então” e uma variável propo- moso novelista espanhol do Século
sicional “p”*, o que equivale a dizer de Ouro”, resulta que se Cervantes
que para “p”º só se pode dar uma é idêntico ao autor do Quixote, en-
proposição dotada de sentido, como tão Cervantes tem a propriedade de
em ““se é de dia, então é de dia”. Em ser o mais famoso novelista espanhol
contrapartida, o princípio exposto do Século de Ouro se, e somente se,
por Alexandre de Afrodisia: “Todo o autor do Quixote for o mais famo-
a é a” ou, então, ““a pertence a todo so novelista espanhol do Século de
a” contém uma constante “todo... Ouro.
é” e uma variável de um termo “a”. A noção de substituibilidade é en-
O citado princípio estóico também tendida da seguinte maneira: dois
pode ser considerado como um prin- termos são idênticos quando são mu-
cípio metalógico, porquanto const!- tuamente substituíveis salva verita-
tui um dos indemonstráveis. te. Por vezes, sustentou-se que a
A noção de identidade também é identidade pode ser contingente ou
desenvolvida na chamada “lógica da necessária. Em:
identidade””. Em conjunto com os
signos da lógica, emprega os signos O autor do Quixote =
“=” (que se lê “é”, “é idêntico a”, o maneta de Lepanto
“é igual a”, “é equivalente a”, etc.)
e
“” (que se lê “não é”, “é dis-
tinto de”, “é diferente de”, etc.).
(supondo que tivesse havido somen-
te um maneta como conseqiiência da
batalha de Lepanto e só um autor do
Um exemplo de enunciado perten-
cente a tal lógica é: Quixote) temos uma identidade con-
tingente. Um mundo no qual não te-
A Lua é o satélite da Terra nha existido nenhum maneta de Le-
361 IDENTIDADE

panto não é — ou não é forçosamen- o objeto denotado pela expressão à


te — um mundo no qual não tenha esquerda de “=” é o mesmo que a
existido Cervantes. Por outro lado, expressão à direita de ““ =** denota,
em: sendo ambas expressões sinônimas.
A identidade é, então, verdadeira,
A=B mas trivial. Por outro lado, se os
em que “A” e “B”” são, no vocabu- dois termos indicados não denotam
lário de Kripke, designadores rígi- o mesmo objeto, a (proclamada)
dos, a identidade é, segundo esse au- identidade deixa de ser trivial, mas
tor, necessária. é falsa. Se seguirmos Russell, resol-
Quando
a lei da substituibilidade
da identidade é formulada em termos
ver-se-á o paradoxo sustentando-se
que as descrições — como ““o autor
de propriedades extensionais, temos da Divina Comédia” — não são no-
o princípio de identidade dos indis- mes próprios, mas simbolos incom-
cerníveis, de que trataremos no ver- pletos.
bete INDISCERNÍVEIS (PRINCÍ- Fala-se também de identidade na
PIO DOS). álgebra de classes e na álgebra de re-
.A lei de transitividade da identi- lações. O signo usado para expres-
dade formula-se assim: sar a identidade em ambas as álge-
bras também é “=”*”. Na álgebra de
A XYZ((X=7Y) A V=2))>(X=2z) classes, a fórmula
de que se depreende que, se duas en-
tidades são iguais a uma terceira, elas
A=B
são Iguais entre s1. Sendo ““x” “Dos- lê-se:
toiévsk1i””, ““y”* “o autor de O Idio- A classe A é idêntica à classe B,
ta” e “z” “o mais profundo dos ro-
mancistas russos”, temos que se com o que se expressa que cada
Dostoiévski é o autor de O Idiota e membro da classe A é membro da
o autor de O Idiota é o mais profun- classe B, e cada membro da classe B
do dos romancistas russos, então é membro da classe A. A identidade
Dostoiévski é o mais profundo dos entre classes é assim definida:
romancistas russos.
Thomas Moro Simpson (Formas
A=B=def. À x (xXEA —xEB).
lógicas, realidade e significado, 1975, Quanto à álgebra de relações, a
$ 22) assinala que uma identidade fórmula
como: R=S
Dante=o autor lê-se:
da Divina Comédia
A relação R é idêntica à relação S,
dá lugar a um paradoxo, o chama-
do “paradoxo da identidade”. Com com o que se expressa que:
efeito, se a identidade é verdadeira, R=S
ILUSÃO 362

que se define mediante: sempre que ““omundo da ilusão” se-


ja declarado “inexistente”. A rigor,
A XY (CRY) — (XSy)) em muitos casos, não se trata de
Exemplo de identidade de classe: eliminá-lo, mas de explicá-lo, ou se-
ja, de averiguar como se produz a
A classe dos números primos É “ilusão” e dar uma explicação racio-
idêntica à classe dos números nal da mesma. É esse o sentido da
que só são divisíveis por si mes- famosa expressão platônica ““salvar
mos ou por |. as aparências” (ou as “ilusões”). O
Exemplo de identidade de rela- mundo da ilusão não é o “mundo
ÇÕES: real””, mas tampouco é um “mundo
completamente imaginário”. A ilu-
A relação criado de é idêntica à re- são não desaparece — como ocorre
lação servidor masculino de. no célebre exemplo da vara dentro
da água —, mas procura-se mostrar
ILUSÃO Em filosofia usa-se o ter- em que se baseia e, com 1sso, mos-
mo ““ilusão” principalmente em re- trar qual é a “realidade”.
lação à questão sobre se os sentidos Denunciar a realidade sensível co-
enganam ou não. Não se trata de elu- mo “completamente 1lusória” é im-
cidar se os sentidos enganam sempre possível, a menos que se conte com
e necessariamente; se os sentidos en- um critério pelo qual se saiba, ou se
ganassem sempre, e não houvesse ne- acredite saber, em que consiste para
nhum outro critério para formular algo ““ser verdadeiro” ou ““ser real”.
juízos considerados verdadeiros, a Gilbert Ryle indicou (Dilemmas,
não ser o proporcionado pelos sen- 1954, pp. 94 e ss.) que os argumen-
tidos, não se poderia falar de ilusão. tos produzidos com o propósito de
O conceito de ilusão origina-se quan- depreciar (e menosprezar) a percep-
do se observa que os sentidos podem ção sensorial — em especial, os ar-
enganar, ainda que uma única vez. gumentos apresentados com o fim de
Pergunta-se, desde então, se não se- depreciar toda percepção sensorial
rá melhor desconfiar metodicamen- — carecem de sentido, porquanto se
te dos sentidos. São numerosos os fundamentam no pressuposto (in-
exemplos dessa desconfiança na his- comprovável) de que “tudo é falí-
tória da filosofia. A distinção esta- vel””, Mas algo é falível somente se
belecida pelos filósofos gregos entre há algo que não o seja e a respeito
“realidade” e “aparência” está ba- do qual o seja. A moeda falsa so-
seada, em parte, na desconfiança da mente o é a respeito da “autêntica”.
percepção sensorial. O “mundo da O defeitos dos sentidos não permi-
aparência” é o “mundo da ilusão”. tem concluir que os sentidos não se-
Desse mundo só cabem ““opiniões” Jam capazes de perceber adequada-
(Parmênides, Platão), e não ““verda- mente; na verdade, há defeitos nos
des”. No entanto, isso não significa sentidos apenas enquanto houver,
363 ILUSÃO

para eles, possibilidades de percebe- Kant distinguiu entre ilusão


rem de modo adequado. Esses argu- (Schein) e aparência (Erscheinung).
mentos de Ryle são convincentes, A verdade ou a ilusão não estão, se-
mas não são distintos, em substân- gundo Kant, no objeto, mas no Juí-
cia, dos produzidos pela maior par- zo formulado sobre ele. Por isso,
te dos filósofos que desconfiaram da Kant considera que os sentidos não
percepção sensorial, exceto num podem errar, simplesmente porque
ponto: o de que muitos desses f1ló- não podem julgar. Pois bem, as cha-
sofos trataram de estabelecer um cri- madas ilusões podem ser de várias
tério não-sensorial com o objetivo de classes. Há as ilusões empíricas (““óp-
denunciar — e, de passagem, expli- ticas”), que se produzem com fre-
car — as “ilusões”. A dificuldade qiiência quando a faculdade de Juí-
consiste em saber se é possível esta- zo é deturpada pela imaginação. As
belecer-se um critério não-sensorial ilusões empíricas podem ser corrigi-
para determinar o caráter adequado das quando se empregam correta-
ou inadequado (ou por vezes inade- mente as regras do entendimento (em
quado, ou sempre e necessariamen- seu uso empírico). Há também as 1lu-
te inadequado), das percepções sen- sões lógicas, que são produzidas por
síveis. Muitos filósofos modernos falácias. Essas ilusões são geradas
trataram de mostrar que os critérios pela falta de atenção às regras lóg1-
estabelecidos com esse fim são acei- cas e podem ser eliminadas quando
táveis. Assim ocorre com Descartes, se presta a devida atenção a tais
Locke e, em geral, com todos os f1- regras. Há, finalmente, as 1lusões
lósofos que distinguiram entre qua- transcendentais, produzidas quando
lidades primárias e qualidades secun- se vai “mais além” do uso empírico
dárias (ou da sensação) (ver QUA- das categorias, ou seja, quando se
LIDADE). A possível ilusão causa- tenta aplicar as categorias a ““obje-
da pelos sentidos deve-se, segundo tos transcendentes” (K. r. V., A 295
esses filósofos, a que os sentidos só ss., 352 ss.). As ilusões transcenden-
percebem as qualidades secundárias, tais se acham tão arraigadas que fi-
mas não as primárias. Isso não sig- ca difícil desmascará-las. Uma vez
nifica que as qualidades secundárias que a dialética é definida como ““ló-
ou sensoriais produzam sempre 1lu- gica da ilusão”, o estudo das ilusões
sões do tipo das geradas pela vara transcendentais é empreendido na
submersa na água. Nos filósofos de “dialética transcendental”, a qual
que nos ocupamos agora, o concel- “contenta-se em desvendar a ilusão
to de “ilusão” está ligado ao de dos juízos transcendentais, ao mes-
“aparência” (ver): as coisas “apare- mo tempo que toma precauções pa-
cem” de modo distinto daquele co- ra não ser ludibriada por ela” (A
mo ““realmente”* são — se é que se 297, B 354). A ilusão transcenden-
supõe que o seu ser é constituído por tal é “natural” e “inevitável”, por-
qualidades primárias. quanto se apóia em princípios sub-
IMITAÇÃO 364

Jetivos que se apresentam como se imitação na Natureza, a imitação ar-


fossem objetivos. tística resulta ser uma dupla imita-
ção: a imitação de uma imitação.
IMITAÇÃO Os pitagóricos chama- Por isso, a arte da imitação não vai
vam “imitação”, upiunois, modoOo além, segundo Platão, de um fantas-
como as coisas se relacionavam com ma, um simulacro ou uma imagem,
os números, considerados como as etôwhovr, da coisa. Verifica-se, assim,
realidades essenciais e superiores que que mesmo em sua teoria da imita-
as coisas imitam. Aristóteles criticou ção estética Platão não abandona
essa doutrina na Metafísica (A 6, 987 sua doutrina da imitação metafísica.
b 12), declarando que não há dife- Aristóteles, em contrapartida, dilu-
cidou o problema da imitação como
rença essencial entre a teoria pitagoó-
ricas da imitação e a teoria platôni- um problema da poética, ou arte
ca da participação. produtiva. Segundo o Estagirita, as
A noção anterior de imitação é artes poéticas (poesia épica e tragé-
(predominantemente) metafísica. O dia, comédia, poesia ditirâmbica,
conceito de imitação também pode música de flauta e lira) são, em ge-
ser entendido numa acepção (predo- ral, modos de imitação (Poética, |
1447 a 14-16). O imitador ou artista
minantemente) estética. É o que su-
cede em parte com Platão e integral- representa, sobretudo, ações com
mente em Aristóteles quando apre- agentes humanos bons ou maus
sentam suas respectivas teorias da (ibid., II 148 a 1-2), havendo tantas
espécies de artes quantas forem as
imitação artística. Platão referiu-se maneiras de imitar as diversas clas-
a essa questão em vários diálogos.
ses de objetos (ibid., III 1448 a
Por exemplo, no Sofista (266 A e 18-20).
ss.), ao definir a imitação como uma A doutrina artística da imitação,
espécie de criação, ou seja, como especialmente em sua forma aristo-
uma criação de imagens e não de coi- télica, exerceu influência considerá-
Sas reais, pelo que a imitação é con- vel até meados do século XVIII.
siderada uma criação humana e não Em épocas mais recentes, a noção
divina; ou em Leis (II, 667 A), ao de imitação foi usada em investiga-
elucidar as condições que devem ser ções biológicas, psicológicas, socio-
satisfeitas pela imitação de algo: de lógicas e estéticas.
que seja imitação, se for verdadeira, Em biologia, estudou-se o fenô-
se for bela. Particularmente impor- meno da imitação como reprodução
tantes, no entanto, são as passagens ou duplicação pelos membros de
platônicas na República (X 595 Ce uma espécie dos movimentos efetua-
ss.), onde se indica que, quando um dos por outros membros da mesma
artista pinta um objeto, fabrica uma espécie e, às vezes, por membros de
aparência desse objeto; mas como, Outras espécies. A esses estudos per-
a rigor, não pinta a essência ou a ver- tencem as pesquisas de Piderit sobre
dade do objeto, e sim apenas sua a mimica animal.
365 IMORTALIDADE

Em psicologia, destacaram-se as “sombras” — vão parar num reino


pesquisas sobre a imitação efetuadas — o dos mortos — que é o reino do
por Theodor Lipps e, sobretudo, por sombrio. Saem, às vezes, desse reil-
Jean Piaget. no para intervir no mundo dos vivos.
A noção de imitação também sus- (4) A sobrevivência dos espíritos
citou interesse na estética e, em par- depois da morte depende da situação
ticular, na crítica e na história lite- social dos homens correspondentes:
rárias, como testemunham as Inves- somente sobrevivem certos indivi-
tigações a esse respeito de Erich duos da comunidade.
Auerbach em sua obra Mimesis, (5) Há sobrevivência, mas não é
Dargestelle Wirklichkeit tn der aben- individual; ao morrer, as almas in-
dlândischen Literatur [Mimese, a re- corporam-se a uma alma única.
presentação da realidade na literatu- (6) Ao morrerem, os homens são
ra ocidental | (1942). devolvidos ao lugar de onde provêm,
ao depósito indiferenciado da Natu-
IMORTALIDADE O problema da reza, que é o princípio da realidade.
imortalidade equivale à questão do (7) Não existe sobrevivência de es-
destino da existência depois da mor- pécie nenhuma; a vida do homem
te, ou seja, à da sobrevivência de tal reduz-se ao seu corpo e, ao sobrevir
existência. Muitas respostas foram a morte, ocorre a completa dissolu-
dadas ao problema pelas diversas re- ção da experiência humana indi!I-
ligiões, filosofias e concepções do vidual.
mundo. (8) Há sobrevivência individual, a
(1) Quando sobrevém a morte, a das almas.
alma do homem emigra para outro (9) Há sobrevivência individual
corpo, isto é, reencarna. A série de das almas, acompanhada logo pela
transmigrações e reencarnações cons- ressurreição dos corpos.
titui, por sua vez, uma recompensa (10) Sobrevive a psique humana,
ou um castigo; quando há castigo, as pelo menos durante certo tempo.
almas emigram para corpos Iinferio- Consideremos agora cada uma
res; quando há recompensa, para dessas respostas:
corpos superiores, até serem final- (1) Foi defendida por inúmeras
mente incorporadas a um astro. culturas, algumas das chamadas pri-
(2) As almas dos homens podem mitivas, outras em notável estado de
transmigrar, mas toda transmigração desenvolvimento intelectual. Os ór-
constitui um castigo. Para evitá-lo, ficos elaboraram essa concepção,
cumpre levar uma vida pura, a úni- que depois foi refinada pelos pitagó-
ca que pode suprimir o pesadelo dos ricos e influenciou grandemente Pla-
contínuos renascimentos e submer- tão. (2) É a concepção budista. (3)
gIr a existência no nirvana. E um resumo de muitas concepções
(3) As almas dos homens — enten- de povos primitivos, incluindo par-
didas como seus ““alentos** ou suas tes fundamentais da religião popu-
IMORTALIDADE 366

lar grega, especialmente aquelas em e argumentos platônicos. O primei-


que (como, segundo alguns autores, ro é que há em Platão, explícita ou
se observa ainda em Homero) se dis- implicitamente, referências à maior
tingue entre o princípio de vida, ape- parte das concepções anteriormente
nas individualizado, e a pálida vida enumeradas. O segundo é que ele in-
das “sombras”, indvidualizadas, fluiu de forma considerável sobre o
mas sem a “força” que o “ímpeto desenvolvimento posterior do pro-
vital” inculca. (4) É uma concepção blema, tanto nos que aceitaram suas
própria de muitos povos primitivos; teses, como nos que as negaram.
esteve vigente no Egito até que se ge- A concepção de Platão antes men-
neralizou a sobrevivência para todos cionada é clara: há uma vida depois
os membros da comunidade. (5) É da morte. Essa vida não é a semi-
uma concepção implícita em várias existência no pálido reino das “som-
culturas, mas filosoficamente elabo- bras”, mas uma existência mais ple-
rada apenas por algumas interpreta- na, sobretudo quando a alma foi pu-
ções dadas à teoria aristotélica do en- rificada. A reencarnação pode, por-
tendimento agente. (6) É a concep- tanto, ser necessária, mas tem um
ção estóica. (7) E a concepção natu- termo: o que a alma alcança quan-
ralista, a qual nega toda imortalida- do repousa em seu verdadeiro reino,
de. (8) É defendida por algumas re- que para alguns é o das idéias, para
ligiões, mas de modo maduro no outros o dos astros e ainda para ou-
cristlanismo; encontramos antece- tros o dos espíritos puros. Muitos
dentes em Platão e outros filósofos. são os motivos que levaram Platão
(9) É a concepção católica. (10) É a a defender semelhante concepção.
concepção de muitos metapsíquicos Por um lado, as influências recebi-
e de alguns espíritas. das dos pitagóricos; por outro, o de-
A maior parte do que se segue nes- sejo de deter a crescente dissolução
te verbete dedica-se a apresentar as da vida social produzida pela nega-
idéias e argumentos expostos por ção racionalista ou naturalista (ou
Platão sobre a imortalidade, tal co- ambas as coisas ao mesmo tempo) de
mo foram debatidos em vários diá- uma vida depois da morte. Final-
logos (Mênon, Fáidon, Fedro, Repuúu- mente, a percepção da possibilidade
blica) e sistematizados, em particu- de um certo ““desajuste” entre a al-
lar, num deles (Fáidon). Reconhece- ma e o corpo, desajuste que se expe-
mos que essas idéias representam so- rimenta Já em alguns momentos des-
mente uma parte das concepções de ta vida. Portanto, Platão opôs-se, a
Platão a tal respeito. Por outro la- esse respeito, não só aos que nega-
do, sabemos que o problema filosó- vam a imortalidade, mas também
fico da imortalidade não se reduz à
elucidação platônica. Dois motivos,
a
aos que concebiam que alma está
indissoluvelmente ligada ao corpo e,
entretanto, justificam o maior espa- portanto, que não existe alma sem
ço dedicado à exposição das idéias corpo — Idéia que implicava, por ve-
367 IMORTALIDADE

zes, a de que não há corpo sem al- to. A objeção contra esse argumen-
ma. De fato, Platão representa uma to — de que pode haver vida, morte
purificação de vários motivos prece- engendrada pela vida e, depois, con-
dentes e, como E. R. Dodds sugeriu, tinuação dessa morte — é contesta-
uma ““racionalização do conglome- da por Platão, indicando que, se as-
rado herdado”. Isso levou-o a defen- sim fosse, deter-se-la o movimento
der uma série de idéias, das quais da Natureza, pois a geração não po-
mencionaremos as principais: de seguir unicamente “uma linha
(1) O corpo é um obstáculo para reta”,
a alma. A alma está destinada a vi- O segundo argumento (72 E, 77 C)
ver num mundo puro, livre de toda consiste na chamada reminiscência.
mácula, mundo que pode ser com- É a afirmação de que, como possuí-
parado — caso não seja o mesmo — mos certos conhecimentos que não
ao das 1déias. podem proceder da percepção senso-
(II) O filósofo — e, em geral, to- rial (é o caso do conhecimento da
do homem — deve aspirar, pois, a igualdade de duas coisas — que não
libertar sua alma do cárcere do cor- pode ser extraído da experiência, vis-
po. Como 1sso ocorre no instante da to que nunca há duas coisas sensíveis
morte, esta pode constituir o mo- rigorosamente iguais — e, em geral,
mento mais feliz da vida e o que pos- do conhecimento das idélas), é neces-
sibilita que a vida seja “uma medi- sário reconhecer que eles procedem
tação acerca da morte”. Entretanto, da recordação que a alma tem de
essa morte não deve ser voluntária, uma vida em que não estava encer-
porque o homem não possui sua pró- rada no corpo. Mas se a alma tem
pria vida, a qual é um bem concedi- essa constituição, a alma é pura for-
do pelos deuses e que só eles podem ma, ou seja, uma entidade imortal.
arrebatar. O terceiro argumento (78 B, 84 B)
(III) Essas idéias podem ser de- é o da simplicidade. Afirma que to-
monstradas por meio da razão. Este das as coisas simples existem para
último ponto é de importância capi- sempre, já que somente as coisas
tal. É com base nele que se formu- compostas se dissolvem e perecem.
lam os famosos quatro argumentos Como a alma é uma coisa simples,
do Fáidon, que em seguida recapi!- deve existir para ser e ser imortal. Es-
tulamos. se argumento permite a Platão sus-
O primeiro argumento (70 C, 72 tentar a doutrina da purificação e
E) é o chamado dos opostos. Con- transmigração das almas até recupe-
siste em afirmar que todas as coisas rarem sua pureza e simplicidade ori-
que têm opostos são engendradas ginais.
desses opostos. São exemplos: o bem O quarto argumento (102 A, 107
e o mal, o justo e o injusto. Pois B) é o da concepção das idéias co-
bem, sendo a vida o oposto da mor- mo causas verdadeiras. Consiste em
te, tem de ser engendrada desse opos- afirmar que, como há coisas boas
IMPERATIVO 368

porque há a bondade e coisas verda- siste; é, pois, também, imortal. Os


deiras porque há a verdade, há coi- argumentos ““aristotélico-tomistas *
sas vivas porque há a vida. Essa vi- também são racionais, mas cumpre
da, princípio de todo o vivo, reside levar em conta que partem de bases
na alma, a qual é, assim, imortal. “empíricas”; com efeito, a prova to-
Esses argumentos de Platão foram mista da imortalidade do citado
objeto de numerosos comentários “princípio” da alma fundamenta-se
tanto de autores pagãos quanto cris- numa detalhada análise da noção de
tãos. Pois bem, ao passo que o pla- alma, das diversas classes de almas,
tonismo fendia a conceber a alma das operações da alma, do modo ou
por analogia com a idéia, o cristia- modos como a alma está unida ao
nismo concebeu-a sob a forma da corpo, etc. Observemos que na teo-
pessoa. A imortalidade cristã é, pois, logia tomista — e, em geral, na teo-
menos uma crescente purificação que logia católica — a imortalidade da
desemboca numa pura forma, cujo alma é considerada uma ““imortal1-
mundo é o das idéias, do que um es- dade por participação” e não como
pírito que se constitui no decorrer de a imortalidade de Deus, uma ““imor-
suas experiências íntimas e que está talidade por essência”.
destinado a viver no reino de Deus.
Os argumentos platônicos costu- IMPERATIVO Os mandamentos
mam ser considerados “argumentos éticos são formulados em linguagem
racionais”, embora seja possível en- imperativa. Esse imperativo é, por
contrar neles — inclusive em sua ba- vezes, positivo, como em ““honrarás
se — certas “intuições” que não são pal e mãe”, outras vezes, negativo,
propriamente ““racionais”. Assim, como em “não matarás”'. A lingua-
por exemplo, a intuição de que a “al- gem imperativa é, por sua vez, uma
ma” rechaça o “corpo” e de que o parte da linguagem prescritiva. Con-
“corpo” não “segue” a alma. Além tudo, nem toda a linguagem ética é
disso, há, nos argumentos platôni- imperativa. Por exemplo, os juízos
cos, idéias de procedência muito di- de valor moral que também perten-
versa, entre elas, idélas órficas rela- cem à ética, formulam-se em lingua-
tivas à “transmigração da almas”. gem valorativa. Os imperativos, por
Além dos argumentos platônicos, sua vez, podem ser de diversas clas-
foram muito influentes os chamados ses. Por exemplo: singulares e uni-
argumentos ““aristotélico-tomistas”', versals, ou — como indicou Kant —
expostos por Santo Tomás na S&S.
hipotéticos (ou condicionais) e ca-
Theol., q. LXXV, em Cont. Gent,, tegóricos (ou absolutos). Na ética
I, 57. Segundo Santo Tomás, há um atual, discutiu-se sobretudo a índo-
princípio intelectual que possui uma le lógica das expressões imperativas.
operação per se separada do corpo. Alguns autores declararam que, co-
Esse princípio, chamado ““intelec- mo os imperativos não são enuncia-
to”, é incorpóreo (imaterial) e sub- dos (imperativos esses que se expres-
369 IMPERATIVO

sam em modo indicativo), nada di- eà fórmula desse mandamento cha-


zZem e, por conseguinte, ficam à mar- ma-se um imperativo”. O imperati-
gem de toda ciência. Segundo essa vo — disse Kant (K. p. V., 36-7) —
teoria, os imperativos expressam uni- é uma regra prática que se outorga
camente os desejos da pessoa que os a um ente cuja razão não determina
formula, de tal modo que, quando inteiramente a vontade. Tal regra ex-
dizemos: ““obedece à tua mãe”, isso pressa a necessidade objetiva da
equivale a dizer: “desejo que obede- ação, de tal modo que a ação feria
ças à tua mãe”. Em suma, os impe- lugar inevitavelmente de acordo com
rativos não têm, nesse caso, outra a regra, se a vontade estivesse intei-
possibilidade de comprovação, senão ramente determinada pela razão. E
a comprovação de que a pessoa que esse o motivo pelo qual os imperati-
os formula tem, de fato, o desejo que vos são objetivamente válidos, ao
neles se exprime. É óbvio que essa contrário das máximas, que são prin-
teoria está muito estreitamente rela- cípios subjetivos.
cionada com a que reduz os Juízos Os imperativos são, como vimos,
axiológicos a Juízos aprobativos, ou de duas classes: hipotéticos ou con-
seja, a teoria que afirma que uma dicionais — nos quais os mandamen-
proposição como ““João comporta- tos da razão estão condicionados pe-
se mal” equivale à proposição ““não los fins que se pretende alcançar —,
aprovo a conduta de João”. Outros e categóricos ou absolutos — nos
autores propuseram reduzir os impe- quais os mandamentos da razão não
rativos a condicionais. Segundo eles, estão condicionados por nenhum
uma frase como ““não desejarás a fim, de modo que a ação se realiza
mulher do próximo” equivale à fra- por si mesma e é um bem em si mes-
se ““se desejares a mulher do próxi- ma. Os imperativos hipotéticos de-
mo, atrairás a vingança do próxi- terminam as condições da causalida-
mo”, ou à frase: “se desejares a mu- de do ser racional como causa efi-
lher do próximo, contribuirás para ciente, isto é, com referência ao efei-
a dissolução do vínculos familiares”, to e aos meios de alcançá-lo. Os im-
etc. Contra ambas as teorias obser- perativos categóricos determinam só
vou-se que, embora constituam uma a vontade, tanto se for adequada ao
análise lógica dos imperativos, repre- efeito como se não o for. Por isso,
sentam um sacrifício daquilo a que OS primeiros contêm meros preceitos,
tendem justamente os imperativos: ao passo que os segundos são leis
a expressão de normas de caráter práticas. Pois, embora as máximas
moral. Conforme escreveu Kant em também sejam princípios, não são
Fundamentação da Metafísica dos imperativos.
Costumes, ““à concepção de um prin- Kant subdivide os imperativos hi-
cípio objetivo, na medida em que se potéticos em problemáticos (ou im-
impõe necessariamente a uma von- perativos de habilidade) e assertóri-
tade, dá-se o nome de mandamento, cos (ou imperativos de prudência,
IMPERATIVO 370

também chamados pragmáticos). Os dem proposta por Paton e damos-


imperativos categóricos não se sub- lhes os mesmos nomes que esse au-
dividem, porque todo imperativo ca- tor sugere. São elas: (1) “Procede so-
tegórico é, simultaneamente, apodic- mente de acordo com a máxima pe-
tico. Podemos, pois, dizer que os im- la qual possas, ao mesmo tempo,
perativos ordenam ou hipotética, ou querer que se converta em lei univer-
categoricamente. Exemplo dos pri- sal”* (fórmula da lei universal); (II)
meiros é o imperativo: “deves con- “Procede como se a máxima de tua
siderar todas as coisas atentamente ação devesse converter-se por tua
a fim de evitares Juízos falsos”, o vontade na lei universal da Nature-
qual, de fato, equivale a uma pro- za” (fórmula da lei da Natureza);
posição condicional, pois também (III) “Procede de tal modo que uses
pode ser formulado da seguinte ma- a humanidade, tanto em tua própria
neira: “se queres evitar Juízos falsos, pessoa quanto na pessoa de outrem,
deves considerar todas as coisas aten- sempre ao mesmo tempo como um
tamente”*. Exemplo dos segundos é fim, nunca apenas como um meio”
o imperativo: ““sê justo”. Este é um (fórmula do fim em si mesmo); (IV)
dos muitos exemplos possíveis de im- “Procede de tal modo que tua von-
perativo categórico. Com 18so vemos tade possa considerar-se como cons-
que, mesmo quando é corrente usar tituindo uma lei universal por meio
a expressão ““o imperativo categóri- da sua máxima” (fórmula da auto-
co (de Kant)”, de fato todo impera- nomia); (V) “Procede como se, por
tivo que ordene incondicionalmente, meio de tuas máximas, fosses sem-
como se o ordenado fosse um bem pre um membro legislador num rei-
em sli, é categórico. Pois bem, se- no universal de fins” (fórmula do
guindo a tradição, referir-nos-emos reino dos fins). A fórmula que apa-
ao imperativo categórico (de Kant), rece na Critica da Razão Prática sob
enquanto princípio de todos os im- o nome de “lei fundamental da ra-
perativos categóricos, embora levan- zão pura prática” e que diz: “pro-
do em conta que tem sido formula- cede de modo que tua máxima pos-
do de diversas maneiras. Não são va- sa valer sempre, ao mesmo tempo,
riantes, mas formas que se entrela- como princípio de uma legislação
çam, de tal modo que se passa de universal”, aproxima-se muito de
uma para a outra dentro de um sis- (1), se bem que, no desenvolvimen-
tema moral consistente. Em confor- to que lhe dá Kant, na obra supraci-
midade com as indicações de H. JJ. tada, pareça ater-se a (III). O pró-
Paton em seu livro The Categorical prio filósofo fala de três formas do
Imperative (1948, cap. XIII, 1), da- imperativo categórico; podemos con-
remos as cinco formulações de Kant. siderar (I) e (II) como a primeira de-
Todas elas se encontram em Funda- las; (ITI) como a segunda, e (IV)e(V)
mentação da Metafísica dos Costu- como a terceira.
mes. Enumeramo-las na mesma or- Com o objetivo de mostrar como
371 IMPERATIVO

funciona o imperativo categórico, messa, mas possui suficiente cons-


Kant enumera vários exemplos de ciência moral para indagar-se se não
deveres, uns que são deveres da pes- será ilegal e contraditório com o de-
soa para consigo mesma, outros que ver eludir tal dificuldade fazendo se-
são deveres para com outras pessoas. melhante promessa falsa. Se se resol-
Mencionaremos três desses exem- ve a fazê-la, pensará: “Estou dispos-
plos. Os dois primeiros procedem da to a pedir dinheiro e a prometer
Fundamentação da Metafísica dos devolvê-lo, embora saiba que nunca
Costumes; o último provêm da Crí- poderei cumprir minha promessa. [s-
tica da Razão Prática. so estará, por certo, de acordo com
Entre os deveres da pessoa para a minha conveniência, mas será
consigo mesma pode apresentar-se o justo? Para saber a resposta, devo
seguinte caso: um homem desespe- formulá-lo mediante uma lei univer-
rado pelas desgraças ocorridas em sal e perguntar: o que ocorreria se a
sua vida e ainda na posse de sua ra- minha máxima se convertesse em tal
zão pergunta-se se não seria contrá- lei? Vejo imediatamente que não po-
rio ao seu dever para consigo mes- deria converter-se em semelhante lei,
mo suicidar-se. Investiga, então, se pois umalei dessa índole seria auto-
a máxima de sua ação poderia con- contraditória. Suponhamos que se-
verter-se em lei universal da Nature- ja uma lei universal que cada um que
za. E raciocina assim: “Adoto pro- se encontra em dificuldade possa
visoriamente como máxima o prin- prometer o que quiser pensando não
cípio de que posso encurtar minha cumprir com a sua promessa. Então,
existência quando a maior duração a própria promessa e o que uma pes-
desta só vier a proporcionar-me soa se propusesse a fazer com ela re-
maiores males do que bens. Pode um sultariam impossíveis, pois ninguém
tal princípio converter-se em lei uni- aceitaria que houve uma promessa e
versal da Natureza? Não, porque um consideraria toda e qualquer promes-
sistema da Natureza no qual fosse sa como uma falsa pretensão”.
uma leidestruir a vida por meio do Entre os deveres para com outros
mesmo sentimento que impulsiona a pode apresentar-se o seguinte caso.
melhoria da mesma seria contraditó- Suponhamos que alguém decidiu
rio consigo mesmo e não poderia obedecer à máxima de incrementar
existir como sistema da Natureza”. sua fortuna por todos os meios segu-
Entre os deveres para com outros ros ao seu alcance. Ocorre-lhe, num
pode apresentar-se o seguinte caso: momento dado, possuir um depósi-
um homem vê-se obrigado a pedir di- to de alguém que faleceu e que não
nheiro emprestado. Sabe que não deixou nenhuma vontade escrita a es-
poderá devolvê-lo, mas também sa- se respeito. Poderá converter-se em
be que não lhe emprestarão nada se lei prática universal a máxima de que
não prometer a devolução num pra- se pode negar a devolução de um de-
zo determinado. Quer fazer a pro- pósito em tais condições? A respos-
IMPERATIVO 372

ta, segundo Kant, é negativa. Pois se rico puro, “teremos que construí-lo
a máxima em questão se convertes- a priori ou, pelo menos, estilizar a
se em lei universal anular-se-ia a si experiência”. Com efeito, a fórmu-
mesma, uma vez que não haveria de- la “é necessário porque é necessário”
pósitos. pode ser imaginada como forjada
Formularam-se várias objeções à num instante em que a inteligência
doutrina kantiana do imperativo ca- expressa a inevitabilidade de uma
tegórico. ação prescrita pelo instinto. Por is-
Baselam-se, umas, no fato de que so, “um imperativo absolutamente
o imperativo categórico padece de in- categórico é de natureza instintiva ou
consistências. Exemplo disso é o ar- sonambúlica: ou é experimentado
gumento de Brentano numa nota como tal em estado normal, ou é
[15] de sua obra A Origem do Co- imaginado assim, quando a reflexão
nhecimento Moral. A clareza com desperta por um momento, o tempo
que esse filósofo o expressou mere- indispensável para formulá-lo, mas
ce que reproduzamos o parágrafo não para buscar-lhe razões” (As
pertinente: “Se, em consequência da Duas Fontes...).
lei, certas ações são omitidas, a lei Outros destacam que do impera-
produz um efeito e, portanto, é real tivo categórico não podem deduzir-
e de nenhum modo fica anulada. Ve- se conseqgiiências éticas. Como indiÓ-
Jam como seria ridículo tratar de um ca Brentano na obra antes citada, J.
modo semelhante a seguinte pergun- S. Mill já formulara essa objeção.
ta: “devo aceder a quem intente su- Mas ela encontra-se em todos os au-
bornar-me?', e respondesse: “sim, tores que criticaram o formalismo
porque se pensasses a máxima oposta ético kantiano. Os que levam essa
elevada a lei universal da Natureza, objeção às suas últimas consequên-
não haveria ninguém que tentasse su- cias indicam que não pode haver ne-
bornar ninguém e, por conseguinte, nhum princípio ético normativo de
ficaria a lei sem aplicação e, portan- caráter universal. Tais princípios, ar-
to, anulada por si mesma' (A Ori- gumentam eles, são completamente
”**

gem do Conhecimento Moral). vazios e, por conseguinte, não po-


Outros destacam que um impera-
tivo como o kantiano não tem suas
a
dem dar lugar nenhuma máxima
concreta.
raízes numa existência racional, na- Outras objeções, finalmente, refe-
da mais sendo do que a consequên- rem-se aos pressupostos a partir dos
cia de um instinto que, num momen- quais o imperativo categórico é for-
to dado, pode revelar-se racional- mulado. Indicou-se, de fato, que
mente. Exemplo de tal opinião é o uma ética como a kantiana é uma éti-
que propõe Bergson no cap. I de sua ca rigorista, que nega a espontanei-
obra As Duas Fontes da Moral e da dade da vida e atribui valor somen-
Religião, ao indicar que, se quiser- te ao fato contra os próprios impul-
mos um caso de imperativo categó- sos. O imperativo categórico seria,
373
IMPERATIVO

segundo essas objeções, a conse- lismo kantiano, sem por isso abando-
quência da universalização de tal ri- nar o “apriorismo””. Um caminho
gorismo ético. Essa objeção formu- semelhante foi seguido por Nicolai
la-se, por sua vez, a partir de distin- Hartmann.
tos pontos de vista. Uns são pontos Uma reformulação do imperativo
de vista sociológicos (o imperativo kantiano, consistindo em dar uma
categórico é a chave de uma ética do interpretação menos rígida do mes-
homem burguês). Outros são pontos mo que a habitual, foi proposta por
de vista teológicos (o imperativo ca- H. J. Paton, ao assinalar que “Kant
tegórico é o ponto culminante de um não trata de propor uma teoria es-
ética puramente autônoma, que atri- peculativa sobre a maneira como um
bui ao homem a possibilidade de fa- imperativo categórico pode produzir
zer O bem sem uma graça divina). efeitos no mundo fenomênico*' (op.
Outros mais são pontos de vista cit., cap. XIX, 5). Não se trata, pois,
psicológico-filosóficos (o imperativo de explicar como a razão pura pode
categórico faz depender a ética ex- ser prática. Analogamente ao que
clusivamente da vontade, sem aten- ocorre na Crítica da Razão Prática
der a outras possibilidades de percep- e na Fundamentação da Metafísica
ção dos valores éticos). Outros, por dos Costumes, a questão apresenta-
fim, são pontos de vista filosóficos da por Kant é uma questão de vali-
(o imperativo categórico é um impe- dade de certas proposições; nem os
rativo da razão que pode ser contrá- problemas psicológicos, nem as con-
rio aos imperativos da vida). Em to- sequências práticas, teriam, então,
dos esses casos, critica-se o impera- nada a ver em princípio com a for-
tivo categórico kantiano por sua ri- mulação de imperativos. É duvido-
gidez e sua ausência de pressupostos, so, porém, que, pelo menos no que
pelo que esse tipo de objeção coin- tange às consequências práticas, pos-
cide, por vezes, com a que destaca sa resolver-se o assunto duplicando
o excessivo formalismo do impera- o formalismo do imperativo com o
tivo. Sublinhemos que, dentro des- formalismo de sua interpretação.
se último gênero de objeções, pode Vários filósofos e lógicos ocupa-
incluir-se a explicação de um im- ram-se do que se chamou ““a lógica
perativo categórico puro dada por dos imperativos”, ou seja, a lógica
Bergson. que se ocupa das inferências que pos-
As respostas a essas objeções obri- sam ser feitas a partir de expressões
gam ou a refundamentar a ética, ou imperativas como “faz X” ou “obe-
a reformular o imperativo categóri- decer a Y"'. Alguns autores negaram
co kantiano, ou ambas as coisas ao a possibilidade de inferências impe-
mesmo tempo. Assim, Scheler, se- rativas propriamente ditas, mas ou-
guindo em parte Brentano, desenvol- tros (por exemplo, Héctor-Neri Cas-
veu uma “ética material dos valores” tafieda) afirmaram a possibilidade de
que, em seu entender, foge ao forma- tais inferências. Castafieda elaborou
IMPERATIVO 374

em detalhe as condições da lógica moral, expressões imperativas com


dos imperativos, formulando as ex- deônticas e axiológicas, fundamen-
pressões imperativas análogas aos tando-se em que, se se reconhece o
valores de verdade. Isso significa es- valor de algo — por exemplo, de
tabelecer “uma generalização fecun- uma determinada ação — o moral
da da noção de inferência, tal como consiste em proclamar que deve
essa se aplica a proposições indica- executar-se e, por isso, mandar que
tivas ordinárias, ou seja, como uso se execute. Não obstante, pode va-
possível de enunciados formalmen- lorizar-se uma ação sem mandar
te relacionados entre si de certos mo- executá-la, ou pode-se mandar exe-
dos especificados, independentemen- cutar uma ação sem considerá-la va-
te de serem verdadeiros ou falsos, e liosa. Como, por outro lado, há di-
de como são usados e por quem” ferença entre expressões axiológicas
(“Imperative Reasoning”, Philo- e expressões deônticas, não é legít1-
sophy and Phenomenological Re- mo estabelecer uma estrita ligação
search, XXI [1960-1961], p. 26; ver entre os três tipos de expressões.
também “A Note on Imperative A independência e a lógica própria
Logic”, Philosophical Studies, VI das expressões imperativas em rela-
[1955]). ção às deônticas e valorativas não
Por vezes, as expressões impera- impedem, porém, que possam esta-
tivas — ““fecha a porta”, “ajuda o belecer-se relações entre elas, sempre
próximo** — foram tratadas como que se forneçam as razões apropria-
se fossem expressões deônticas — das. Mas essas razões vêm, por as-
“deves fechar a porta”, “deves aju- sim dizer, “de fora” e não são con-
dar o próximo”? —, alegando-se que seqiiência de derivações lógicas stric-
mandar fazer algo é o mesmo que dÓ1- to sensu. Discutiu-se que relação
zer que deve fazer-se. Contudo, po- existe entre expressões por meio das
de-se mandar fazer algo sem pensar quais se diz que alguém deve fazer
que deva fazer-se; vice-versa, pode-se algo e os imperativos. As expressões
pensar que àlgo deve fazer-se sem por melo das áquais se diz que alguém
mandar fazê-lo. Portanto, cumpre deve fazer algo costumam ser conhe-
distinguir entre expressões imperati- cidas como expressões que implicam
vas e expressões deônticas. um ““deveria”. Assim, a questão que
Ocasionalmente, as expressões im- se apresenta é a da relação entre ex-
perativas também foram tratadas co- pressões como ““deverias cumprir
mo se fossem valorativas, isto é, Juí- tuas promessas” -e expressões como
zos de valor; em todo caso, conside- “cumpre tuas promessas”. Alguns
rou-se que certos imperativos — OS autores consideraram que ““deveria”
imperativos de caráter moral — re-. implica um imperativo, visto que, se
cebem sua legitimidade das valora- assim não fosse, não teria o menor
ções. Alguns autores trataram até de sentido dizer que alguém deveria fa-
combinar, pelo menos no terreno zer tal ou tal outra coisa. Outros afir-
375 INDISCERNÍVEIS (PRINCÍPIO DOS)

maram que ““deveria”* não expressa indiscerníveis em numerosas oca-


nenhum conteúdo que leve a formu- siões. Limitamo-nos a três passa-
lar imperativos. gens. Na Quarta Carta a Clarke (da
Também se discutiu se é ou não chamada ““Correspondência entre
uma característica dos imperativos Leibniz e Clarke”, de 1715-1716;
possuir uma dimensão causal. Ob- Gerhardt, VII, $ 393), Leibniz indi-
viamente, formular um imperativo ca que o princípio em questão é con-
não pode constituir, por sl, uma cau- seqiiência do princípio de razão su-
sa. Entretanto, alguns autores mani- ficiente, o que mostra, diga-se de
festam que um imperativo pode con- passagem, a fecundidade deste últi-
tribuir para que se leve a efeito uma mo e “grande princípio”. “Infiro
ação e que certos imperativos devem deste princípio [de razão suficiente],
levar a contribuir para que se leve à entre outras consequências, que não
efeito uma ação. Outros autores há na Natureza dois seres reais ab-
mantêm completamente separados solutos que sejam indiscerníveis, pois
Os imperativos e qualquer ação cau- se os houvesse, Deus e a Natureza
sal, mesmo se possível ou meramen- obrariam sem razão tratando um de
te desejável. modo distinto do outro.” Seria ab-
surdo, em suma, a existência de dois
INDISCERNÍVEIS (PRINCÍPIO seres indiscerníveis; dados dois seres
DOS) O chamado principium identi- assim, um deles não importaria mais
tatis indiscernibilium deve-se, sobre- do que o outro e não haveria razão
tudo, a Leibniz, pelo que também é suficiente para escolher um mais do
chamado de ““princípio de Leibniz”. que o outro. Nos Nouveaux Essais,
Escrevemos ““sobretudo”** porque se Livro II, cap. XXVII (Gerhardt, V,
enfatizou que Já alguns pensadores 213), Leibniz considera que as dife-
estóicos tinham reconhecido tal prin- renças externas não são suficientes
cípio, se bem que de uma forma pou- para distinguir ou individualizar um
co precisa e referindo-o somente a ser: “E necessário que, além da di-
seus resultados (a inexistência deAssim,
duas ferença de tempo e lugar, exista um
entidades exatamente iguais). princípio interno de distinção e, em-
Sêneca (Epístolas, 113,16) escreveu bora haja várias coisas da mesma es-
que todas as coisas são diferentes en- pécie, é certo, porém, que nunca há
tre si e que não há duas folhas ou, em coisas perfeitamente semelhantes.
geral, dois seres vivos exatamente Assim, embora o tempo e o lugar (ou
iguais. A mesma afirmação encontra- seja, a relação com o exterior) nos
se em vários pensadores renascentis- sirvam para distinguir as colsas que
tas, especialmente em Nicolau de não distinguimos bem por si mes-
Cusa, e modernos (em parte Suárez, mas, as coisas não deixam de ser dis-
Malebranche). tinguíveis em s1. O preciso [o carac-
Leibniz formulou, explicou e de- terístico] da identidade e da diversi-
fendeu o princípio da identidade dos dade não consiste, pois, no tempo e
INDISCERNÍVEIS (PRINCÍPIO DOS) 376

no lugar, ainda que seja certo que a APARÊNCIA) com as coisas em si


diversidade das coisas é acompanha- e, por conseguinte, com inteligíveis
da da do tempo ou do lugar, por- ou objetos do entendimento puro. Se
quanto trazem consigo impressões as aparências são coisas em si, O
diferentes sobre a coisa.”* Na Mona- princípio em questão, declarou Kant,
dologia, $ 9, Leibniz indica que ca- é indiscutível (K. r. V., A 264-320).
da mônada se distingue de todas as Mas as aparências são objetos da
demais. “Pois, na Natureza, jamais sensibilidade; a pluralidade e a dife-
existem dois seres que sejam perfei- rença numérica nos são dadas já por
tamente iguais e nos quais não seja meio do espaço como condição das
possível encontrar uma diferença in- aparências externas. Intuir duas coi-
terna, ou baseada numa denomina- sas em duas diferentes posições es-
ção intrínseca.” paciais é, pois, suficiente para con-
Os seres não diferem entre s1, por- siderá-las numericamente distintas.
tanto, só numericamente, solo nume- ““A diferença dos lugares (Orter) —
ro. Não está excluída in abstracto a escreve Kant — torna a pluralidade
existência de dois indiscerníveis, mas e a distinção dos objetos, enquanto
em virtude da razão suficiente cum- aparências, não só possível, mas ne-
pre excluir tal existência in concreto. cessária, sem que haja necessidade de
Os leibnizianos aceitaram o prin- outras condições” (A 272, B 328; cf.
cípio da identidade dos indiscerni- também A 281-2, B 377-8).
veis. Em sua Ontologia ($$ 179-224), Entre os pensadores contemporãâ-
Wolff trata De Identitate & Simili- neos, o princípio dos indiscerníveis
tude enquanto ““afeições do ente em foi examinado sobretudo do ponto
geral”º. Pode, então, definir a iden- de vista lógico. Mas, antes, cumpre
tidade como completa substituibili- observar que, à parte essa apresen-
dade de dois entes ($ 181); indicar tação, vários filósofos e lógicos dis-
que, se os entes determinantes são cutiram o sentido ou os sentidos em
iguais, os entes determinados são que o princípio pode ou não ser acei-
iguais e vice-versa ($$ 192-193); fa- to. Alguns autores indicaram que ca-
lar da identidade de duas coisas com rece de sentido, inclusive, afirmar ou
uma terceira como sendo todas idên- negar que duas coisas podem ter to-
ticas entre s1 ($ 223). Mas quando, das as suas propriedades em comum,
em sua Cosmologia ($$ 246-248), a menos que se tenham previamente
refere-se a entes que existem na Na-. distinguido. Outros assinalam que,
tureza, Wolff mantém o princípio da se o princípio pode ser negado sem
identidade dos indiscerníveis no sen- que a negação seja contraditória con-
tido leibniziano. sigo mesma, o princípio é desprovi-
Em contrapartida, Kant criticou o do de interesse. Outros sugerem que
princípio leibniziano da identidade pode imaginar-se um universo radi-
dos indiscerníveis manifestando que calmente simétrico, no qual tudo o
Leibniz confundiu as aparências (ver que sucede em qualquer lugar pode
377 INDIVÍDUO

ser exatamente duplicado num lugar divisível. Foi dito que o indivíduo é
a Igual distância, no lado oposto do algo indiviso mas não necessaria-
centro da simetria; nesse caso, have- mente indivisível. Entretanto, logo
ria objetos numericamente distintos, que se divide um indivíduo, ele de-
embora indiscerníveis. Ainda outros,
enfim, argumentam que, em seme-
saparece como tal indivíduo. É ra-
zoável, pois, admitir a indivisibilida-
lhante universo, seria possível a in- de (em princípio) do indivíduo.
discernibilidade de dois objetos nu- Segundo R. Eucken (Geschichte
mericamente distintos somente por- der philosophischen Terminologie
que se introduz um ponto de obser- [1879, reimp. 1960], p. 52), Cicero
vação em relação ao qual as duas empregou os termos individuus e di-
metades do universo estão situadas viduus. Mas parece não lhes ter da-
em dois lugares diferentes. do um sentido filosófico técnico. Es-
O princípio dos indiscerníveis é se sentido aparece, no entanto, em
assim formulado: outros autores.
Em De providentia, 5, Sêneca de-
A F(Fx = Fy)—(X=)Y) fine os indivíduos como entidades
Pode-se ver que duas entidades, x nas quais nada pode se separar sem
e y, são idênticas se têm as mesmas que elas deixem de ser tais: quaedam
propriedades (F). Nessa fórmula, separari o quibusdam non possunt,
quantifica-se o predicado, o que é coharent individuae sunt. O sentido
necessário para expressar a indiscer- de “indivíduo” é, aqui, o de qual-
nibilidade das entidades. Se as pro- quer entidade indivisa e indivisível.
priedades se entendem em extensão, O indivíduo não é necessariamente
o princípio é interpretado como ex- um ser singular e isolado, diferente
pressão da pertinência das entidades dos demais, isto é, um ser que existe
às mesmas classes. uma única vez. Em contrapartida,
A fórmula: Porfírio dá na Introdução (Isagoge)
uma definição de indivíduo como en-
AXY(X=Y—-(Fy=Fy)) tidade singular e irrepetível. Segun-
é só aproximada em relação ao prin- do Porfírio, os indivíduos (&rona)
cípio da identidade dos indiscerni- são entidades tais como Sócrates, es-
veis. Expressa a chamada ““lei de te homem, esta coisa, entidades que
substituibilidade da identidade”, se- possuem atributos que só são ditos
gundo a qual se duas entidades, x e de tal entidade determinada. Parece,
y, são idênticas, o que é verdadeiro pois, que os indivíduos, na acepção
para x, é verdadeiro para y. de Porfírio, rá &touna, são os “cada
coisa”, 1à xab' exaota. Entretanto,
INDIVÍDUO Como tradução do ter- ao passo que os indivíduos propria-
mo àrtounos, O vocábulo latino indi- mente ditos são entes completamen-
viduum (= “indivíduo”) designa al- te singulares, os indivíduos designa-
go simultaneamente in-diviso e in- dos pela expressão 1& xab* óxaoTAa
INDIVÍDUO 378

são, ou podem ser também, as infi- distinção de um indivíduo em rela-


mae species, os “individuóides”' ou ção a outros por meio das chamadas
“atomóides”, &rouaeiôn, indetermi- notae individuantes (características
náveis por meio de gênero e di- individuantes), tais como as clássicas
ferença. sete notae: forma, figura, locus, tem-
O sentido que Porfírio deu a ““in- pus, sStirps, patria e nomen.
divíduo” influenciou a maior parte Várias são as questões suscitadas
dos autores medievais. Eucken 1ndi- pela noção de indivíduo em seus as-
ca que, na Idade Média, empregou- pectos real e lógico. No aspecto real,
se individuum (e, em alemão, com a questão mais importante foi a tra-
Notke, unspaltis) como idêntico a tada sob a epígrafe “princípio de
“isto”, “esta coisa”, “este determi- individuação”? (ver INDISCERNTIT-
nado ser”, e que nesse sentido se em- VEIS, PRINCÍPIO DOS). No aspec-
pregaram as expressões individualis to lógico, a questão mais importan-
e individualitas (Geistige Strômun- te foi a da natureza do que alguns au-
gen der Gegenwart [1904], A3). tores chamaram de ““conceito indivi-
Ao comentar a Isagoge de Porfí- dual”. Esse “conceito” é o de um no-
rio, Boécio considerou que o vocá- me próprio, como “o homem mais
bulo individuum pode entender-se alto de Montevidéu neste momento”.
em três sentidos: ““Diz-se indivíduo Por vezes, diz-se que tal conceito de-
de vários modos. Diz-se daquele que nota um indivíduo. Esse indivíduo
não pode dividir-se [secari] por na- pode ser real, como é “meu amigo
da, como a unidade ou a mente; diz- Antônio, aqui presente” (se há tal
se do que não pode dividir-se por sua amigo, Antônio, e se está presente),
solidez [0b solidatem], como o dia- ou “irreal”, ou ainda não real, co-
mante; e diz-se do que não pode mo em “o primeiro homem que leu
predicar-se de outras coisas seme- a Odisséia em Júpiter”. Muitos ló-
Ihantes, como Sócrates” (Ad Isag., gicos destacaram o caráter real (ou
II). O primeiro sentido é geral; o se- possivelmente real) do objeto deno-
gundo, real ou “físico”; o terceiro, tado pelo supracitado ““conceito in-
lógico. Os escolásticos medievais dis- dividual””, em contraste com o cará-
tinguiram com frequência entre es- ter “ideal” das entidades designadas
sas noções de “indivíduo”. A noção por conceitos genéricos. Assim, po-
mais “geral” de “indivíduo” é a que de-se ver que os aspectos antes dis-
foi chamada individuum vagum (in- tinguidos do problema do indivíduo
divíduo vago) (cf. Santo Tomás, 5. — o “real” e o “lógico” —, nem
Theol., 1, q. XXX a 4). Exemplos de sempre podem ser completamente se-
tal “indivíduo vago” são “qualquer parados; em todo caso, a análise de
homem”, “qualquer árvore”. O 1n- um desses aspectos reflete-se com fre-
divíduo vago só se distingue nume- quência no outro.
ricamente dos demais indivíduos da Juntamente com as questões real
mesma espécie, em contraste com a e lógica, pode-se mencionar uma
379 INDIVÍDUO

questão gnosiológica: a que se refe- uma substância única. A resposta de


re à cognoscibilidade e à forma de Spinoza é positiva; a de Leibniz, ne-
cognoscibilidade de algo individual. gativa. Este último autor enfatizou
Uma doutrina muito comum foi a de ao máximo a singularidade de cada
declarar o caráter “incomunicável” indivíduo. Em geral, houve na filo-
do indivíduo: individuum est incom- sofia moderna uma tendência a con-
municabile, porquanto o que se diz siderar o indivíduo como algo singu-
dele é algo universal (um ou vários lar. A plena identificação entre in-
predicados). Em conseqiiência disso, dividualidade e singularidade é afir-
vários autores indicaram que do in- mada por Wolff ao dizer que o indÓ-
divíduo só se pode ter um conheci- víduo como ente singular é aquele
mento “intuitivo”. Outros manifes- ente que se encontra completamen-
taram que a única coisa que se pode te (ou seja, “onimodamente”*) deter-
fazer com um indivíduo é ““mos- minado: ““ens singulare, sive Indivi-
trá-lo””. duum esse illud, quod omnimode de-
As doutrinas medievais sobre a terminatum est” (Ontologia, $ 227).
noção de indivíduo são mais comple- Segundo Wolff, a noção de indiví-
tas do que podem levar a supor as duo compõe-se da noção de espécie
indicações anteriores. Pela natureza (na qual se insere) e da diferença nu-
da presente obra, vemo-nos obriga- mérica (1bid., $ 240). Os autores em-
dos a silenciar muitos aspectos da piristas inclinaram-se, de um modo
questão que ora nos ocupa. Indique- geral, a destacar o puro ““ser dado”
mos, porém, a título de ilustração, de todo o individual: o indivíduo é,
que nem sempre se admitiu que o in- então, um datum irredutível. Para
divíduo como tal fosse um ser sim- Kant, a noção de individualidade es-
ples. Por exemplo, Duns Escoto ob- tá determinada pela aplicação empií-
servou que a noção de indivíduo con- rica de diversas categorias (ver CA-
tém, pelo menos, dois princípios: sua TEGORIA). Hegel analisou a noção
natureza e sua entidade individuan- de indivíduo do ponto de vista da
te, entre as quais não existe distin- possibilidade de sua “individualiza-
ção real, nem tampouco racional, ção”. O indivíduo meramente par-
mas apenas formal. ticular é, para Hegel, um indivíduo
Na filosofia moderna, encontra- incompleto; só no processo de desen-
mos muitos modos diversos de con- volvimento dialético chega o indiví-
siderar a questão da natureza do in- duo a superar a negatividade do seu
divíduo e do individual. Por um la- ser abstrato. Assim, pode-se chegar
do, certos filósofos trataram essa à idéia de um “indivíduo universal”
questão sob o aspecto da relação en- ou indivíduo concreto que é, simul-
tre os entes singulares e a totalidade taneamente, singular e completo.
do universo (ou do ““ser”*). Indagou- O conceito de indivíduo também
se; a tal respeito, se os entes singu- foi objeto de numerosas análises e es-
lares são ou não simples modos de peculações enquanto ““indivíduo hu-
INDUÇÃO 380

mano” (e também enquanto “eu”, Isso significa, segundo esse autor,


“ego”, “pessoa”, etc.). Muitas des- averiguar as características dos es-
sas análises e especulações usaram quemas conceituais mediante os quais
noções derivadas do estudo do con- se fala acerca de entes particulares.
ceito de indivíduo dos pontos de vis- A identificação em questão não é,
ta geral, real e lógico, a que antes nos porém, suficiente, pois as pessoas
referimos. são, como reconhece Strawson, en-
Na época contemporânea tem si- tes individuais que não podem
do frequente tratar a questão do in- identificar-se do mesmo modo que as
dividual e do indivíduo com referên- coisas particulares. Em ambos osca-
cia a problemas como o status onto- sos, trata-se de categorias primitivas
lógico dos entes individuais (ou, não de individualidade. Zubiri ocupou-
raro, dos entes ““particulares” ou se igualmente da questão do indivíi-
“singulares”*), a expressão lógica de duo, distinguindo entre um tipo de
tais entes individuais, as condições de indivíduo que é um singulum, um en-
seu conhecimento, etc. A questão do te singular, e um tipo de indivíduo
indivíduo e do individual foi, portan- que é plenamente indivíduo, isto é,
to, tratada de vários pontos de vis- entre individualidade singular e in-
ta: lógico, ontológico, metafísico, dividualidade stricto sensu. Portan-
etc. De um modo geral, é difícil en- to, não é admissível para Zubiri a
contrar uma filosofia contemporãâ- equivalência tradicional singulare si-
nea que não se tenha ocupado, de ve individuum. A “individualidade
uma forma ou de outra, desse pro- estrita significa a constituição real in-
blema. Entretanto, há certas filoso- tegra da colsa com todas as suas no-
fias que colocaram esse problema no tas, quer sejam estas diferentes das
centro da reflexão. É o que ocorre, de outros indivíduos, quer sejam, pe-
por exemplo, com alguns autores no- lo contrário, total ou parcialmente
minalistas, como Nelson Goodman, comuns a vários outros indivíduos,
para quem o universo é “um univer- ou mesmo a todos”. Há, na realida-
so de indivíduos”. Em tal caso, só de, os dois tipos de individualidade:
se admitem ontologicamente entida- meros singuli e indivíduos propria-
des concretas (indivíduos) e não en- mente ditos (incluindo alguns entes
tidades abstratas — embora ““não que, como o homem, só são indiví-
admitir entidades abstratas” não duos stricto sensu e nunca singuli).
queira dizer, em absoluto, negar-se
a operar logicamente com elas. Tam- INDUÇÃO Em várias passagens dos
bém é importante o problema da no- seus diálogos, Platão empregou os
ção de indivíduo e do individual em verbos ênávelr E émáveodar (tradu-
P. F. Strawson, que se ocupou do zidos, segundo os casos, por ““indu-
problema de como podem ““identi- zir”, “conduzir a”, “dirigir para”).
ficar-se as entidades particulares” e Desses verbos, formou-se o substan-
das diversas classes de tais entidades. tivo éêmaywyn (epagoge, traduzido
381 INDUÇÃO

por inductio, “indução””). Diga-se, é um exemplo de indução. Por ou-


desde já, que o uso platônico não tro lado, Aristóteles também relacio-
tem caráter técnico. Pois bem, ain- na a indução com o silogismo, fazen-
da que enfatizando ao extremo os do da primeira uma das formas do
precedentes platônicos, o certo é que segundo. Assim, o raciocínio:
o primeiro pensador que proporcio-
(Se) o ouro, a prata, o cobre e o
nou um conceito suficientemente ferro são condutores de eletri-
preciso da indução e que introduziu
cidade,
OS termos êmávyel E êTAywyn como
vocábulos técnicos para designar cer- (e) oouro, a prata, o cobre e o fer-
to processo de raciocínio foi Aris- ro são metais,
tóteles. (então) todos os metais são con-
No entanto, há algumas dificulda- dutores de eletricidade,
des para conciliar dois modos distin- é um exemplo de indução. Advirta-
tos de entender a indução em Aris- se que, não obstante certas aparên-
tóteles. Por um lado, ele insiste em cias, a forma deste último raciocínio
sublinhar que há uma diferença en- não é igual à do precedente. Em pri-
tre silogismo (ver) e indução. No pri- meiro lugar, as duas premissas da-
meiro, o pensamento vai do univer-
sal para o particular (ou, melhor di1-
quele contêm uma enumeração de in-
divíduos, ao passo que as duas pre-
zendo, do mais universal para o me- missas deste enumeram gêneros ou
nos universal), ao passo que na se- classes (““o ouro” é o nome que de-
gunda o avanço efetua-se do parti- signa a classe,de todos os objetos de
cular para o universal (ou, melhor, ouro, “a prata” é o nome da classe
do menos universal para o mais uni- que designa todos os objetos de pra-
versal). Assim, o raciocínio: ta, etc.). Em segundo lugar, pressu-
(Se) todos os seres vivos são com- põe-se, no último exemplo, que se
postos de células, simbolizamos as classes enumeradas
(e) todos os gatos são seres vivos, nas duas premissas por “A”, a pro-
(então) todos os gatos estão com- priedade ““serem condutores de ele-
postos de células, tricidade” por “B” e a propriedade
“serem metais” por “C”, a classe C
é um exemplo de silogismo, ao pas- não é mais ampla do que a classe A.
so que o raciocínio: Dessa doutrina aristotélica, a es-
(Se) o animal A, o animal Be o colástica medieval — especialmente
animal C são compostos de cé- a que sofreu maior influência do Es-
lulas, tagirita — tomou sobretudo uma
(6) o animal A, o animal Be o ani- tendência: a que consiste em contra-
mal C são gatos, por a indução ao silogismo. Trata-
(então) todos os gatos são com- se de uma contraposição que afeta
postos de células, somente a forma da indução (forma-
INDUÇÃO 382

liter) e não a matéria (materialiter), tas, acrescentando que, embora se-


pois não há inconveniente em que se jam ambas suficientes para produzir
apresente silogisticamente a matéria induções legítimas, só as primeiras
da indução. Como, do ponto de vis- exibem claramente o mecanismo ló-
ta lógico, o que importa é a forma, gico do processo indutivo.
a referida contraposição é conside- Desde Bacon até o século XIX
rada fundamental. O processo indu- destacaram-se as seguintes concep-
tivo baseia-se, segundo a citada con- ções da indução:
cepção escolástica, numa enumera- (A) Concepções baseadas nas
ção suficiente que, a partir dos en- idéias baconianas, adotadas por al-
tes singulares (plano sensível), de- guns autores de tendência empirista.
semboca no universal (plano inte- (B) Concepções fundamentadas
ligível). nas idéias aristotélicas, adotadas pela
O problema da indução despertou maioria dos autores escolásticos e
O interesse de muitos filósofos mo-
por outros de tendência realista mo-
dernos, em particular os que se pro- derada e conceitualista.
puseram analisar e codificar os pro- (C) Concepções que insistiram nu-
cessos de raciocínio que tinham lu- ma noção ““positiva”* da indução,
gar (ou que supunham ter lugar) nas quase equivalente à idéia platônica
ciências naturais. A esse respeito, foi de “ascensão” da mente dos parti-
importante a contribuição de Fran- culares aos princípios, adotadas por
cis Bacon. Esse pensador (como ou- vários racionalistas, em especial por
tros da época) formulou com Iinsis- Leibniz.
tência a questão do tipo de enume- (D) Concepções segundo as quais
ração que deveria considerar-se co- O raciocínio indutivo baseia-se no há-
mo próprio do processo indutivo bito gerado pela observação de que
científico. Observando que, nas ciên- certos acontecimentos se seguem
cias, chega-se à formulação de pro- normalmente a outros, de modo que
posições de caráter universal a par- pode predizer-se que isso continua-
tir de enumerações incompletas, Ba- rá acontecendo no futuro. O Origi-
con formulou em suas tabelas de pre- nador dessas teorias foi Hume.
sença e de ausência uma série de (E) Concepções segundo as quais
condições que permitem estabelecer os Juizos indutivos — ou, melhor, a
induções legítimas. A tal respeito, Justificação de tais juízos — se ex-
alegou-se não ser Justo contrapor a plicam pela estrutura da conscliência
indução baconiana à indução aristo- transcendental. O pai dessas concep-
télica, pois Aristóteles e outros au- ções foi Kant.
tores antigos e medievais não excluí- Durante o século XIX, destaca-
ram as induções baseadas em enume- ram-se várias teorias da indução.
rações incompletas; o que fizeram John Stuart Mill desenvolveu
um SIS
foi distinguir entre enumerações tema de lógica indutiva, do qual um
completas e enumerações incomple- dos resultados mais importantes
e
383 INDUÇÃO

conhecidos são os cânones de indu- universal”, Alguns filósofos acredi-


ção. Idéias importantes sobre a in- tam que a primeira lei é bastante; ou-
dução são devidas a Peirce e a La- tros, que a segunda; outros, que são
chelier. equivalentes. Certos autores contem-
As doutrinas sobre a indução e o porâneos (Keynes, Broad) tentaram
raciocínio indutivo — sobretudo a substituir as duas leis anteriores por
respeito do raciocínio indutivo como outras, que Wisdom resume nas duas
raciocínio provável — proliferaram seguintes: o princípio da limitação da
no século atual. Indicamos alguns variedade independente e o princípio
dos autores que se ocuparam do pro- da geração uniforme de proprieda-
blema da indução a partir de pontos des. Outros autores postulam certos
de vista muito diversos: R. Carnap,
princípios, como o de continuidade
N. Goodman, C. G. Hempel, J. M.
espaço-temporal, com o objetivo de
Keynes, J. Nicod, C. S. Peirce, K. Justificar a validade do raciocínio in-
R. Popper, H. Reichenbach, R. von dutivo.
Mises e G. H. von Wright. O ““velho problema da indução”
A leitura de Nelson Goodman, fica “dissolvido”, quando se segue
que distingue entre ““o velho proble- Hume na idéia de que o importante
ma da indução” e o “novo enigma não é como Justificar as predições,
da indução”, pode ajudar a com-
mas por que se formulam predições.
preender algumas das teorias atuais Pode-se pensar que isso equivale a
sobre o raciocínio indutivo.
O ““velho problema da indução”,
dar uma interpretação “meramente
abundantemente tratado no século psicológica” ou “meramente gené-
tica” das predições. Mas não é as-
XIX, é, em substância, o problema
sim. Estabelecer se uma inferência
da “justificação da indução”. Trata-
se do problema de por que se consi-
indutiva está ou não de acordo com
deram válidos os Juízos (ou certos as regras gerais da indução é uma
Juízos) sobre casos futuros ou des- questão lógica (e epistemológica),
conhecidos; ou seja, do problema de mas não, ou não necessariamente,
por que algumas das chamadas ““in- uma questão psicológica. Também é
ferências indutivas”* são aceitas co- uma questão lógica (e epistemológi-
mo válidas. Uma solução típica pa- ca), e não necessariamente uma ques-
ra esse problema consistiu em mos- tão psicológica, a que consiste em
trar que a validade do raciocínio in- averiguar em que medida uma regra
dutivo fundamenta-se na lei de uni- geral de indução está de acordo com
formidade da Natureza, segundo a determinadas inferências indutivas.
qual, se dois exemplos concordam O “novo problema de indução” é,
em alguns aspectos, concordarão em assim, o problema do ajuste mútuo
todos. A essa lei acrescentou-se, por entre normas de indução e inferên-
vezes (como assinalou J«. O. Wis- cias indutivas. Somente quando se
dom), a chamada ““lei de causação procura determinar como se efetua
INTERESSE 384

esse ajuste é que surge, segundo Good - da e, talvez, refutada. “Uma verda-
man, “o novo enigma da indução”. deira prova para uma teoria”, escre-
E comum, na época atual, tratar ve Popper em Conjectures and Re-
a questão da indução em estreita re- futations (1962, p. 36) “é o intento
lação com a questão da probabilida- de invalidá-la ou refutá-la. Como
de. Duas escolas se enfrentaram a es- Carnap foi o alvo preferido das crí-
se respeito. Segundo uma delas (re- ticas *antiindutivistas', aludiu-se com
presentada por von Mises e Reichen- frequência aos debates sobre o pa-
bach, entre outros), o problema da pel da indução na ciência como a
“controvérsia Carnap-Popper
7299
indução deve ser tratado do ponto de ..

vista da teoria frequencial da proba-


bilidade. As inferências indutivas INTERESSE O conceito de interes-
convertem-se, então, em ““nferên- se é extremamente amplo. Estar in-
clas estatísticas”. Segundo outra es- teressado é ““estar entre”* (interesse).
cola (representada pela maior parte Nele se inclui a idéia de participação,
dos autores que estudaram o pro- especificamente a participação em
blema: Keynes, Carnap, Hempel, bens, de qualquer classe. Tem-se 1n-
Goodman, etc.), o problema da in- teresse por algo quando se orienta
dução deve ser tratado do ponto de para 1sso a apetência, o desejo ou a
vista da probabilidade como grau de vontade. Fala-se de vários tipos de
confirmação. Nesse último caso, a Interesses: interesses vitais, interes-
noção principal aqui implícita é a no- ses sociais, econômicos, culturais,
ção de confirmação. Referimo-nos etc. E frequente contrastar o interes-
ao assunto em maior detalhe no ar- se com o conhecimento porque, du-
tigo sobre essa noção; nele expuse- rante muito tempo, considerou-se es-
mos, além disso, alguns dos chama - te último uma atividade “pura” e
dos ““paradoxos da confirmação”. “desinteressada”, ao passo que o in-
Entre os filósofos da ciência tra- teresse não parece ser “puro”. As-
vou-se uma batalha em torno dessa sim, a noção de interesse enquadra-
questão: os ““ndutivistas” distin- se na chamada ““prática”* ou ““vida
guem entre ciência e pseudociência prática”, ao contrário da “teoria”
(ou seja, a metafísica), aduzindo que ou da ““vida teórica”. Quando se dis-
a primeira procede por via indutiva, tingue, principalmente, entre o inte-
o que não ocorre na outra; os “an- resse e o desinteressado, supõe-se,
tumdutivistas”', por sua vez, procu- em geral, que o desinteresse é supe-
ram um princípio demarcador não- rior ao Interesse e que, portanto, há
indutivo e não-empiírico. Popper é o que eliminar toda e qualquer espé-
mais conhecido ““antiindutivista”, já cie de “interesse”. Isso está vincu-
que, para ele, o autêntico teste para lado à idéia de que os interesses são
uma teoria não é a sua ““verificabil!- causa de ofuscações e à idéia de que
dade”, como para os indutivistas, são “irracionais”.
mas sua possibilidade de ser prova- O interesse pela noção de Interes-
385 INTERESSE

se cresceu à medida que, de um mo- várias teorias do interesse desenvol-


do mais ou menos obscuro, foram vidas pelos pensadores em questão
Observadas duas coisas: uma é que, há certos elementos de epicurismo,
de todos os modos, os chamados assim como do que depois se chamou
“interesses”, muito longe de nada te- ““utilitarismo”. Alguns autores pro-
rem a ver com atividades suposta- clamaram que os esforços para sa-
mente desinteressadas, constituem ciar os próprios desejos e satisfazer,
um importante motor de tais ativi- portanto, os interesses individuais,
dades, quando não o motor decisi-
vo. Aoutra é que a separação entre
levam alguns homens
a realizar co1-
sas que de outro modo não fariam,
interesse e desinteresse não equivale de sorte que, se considerarmos os in-
necessariamente a uma separação en- teresses próprios, sob sua forma
tre algo 1rracional e algo racional. “egoísta”, como ““vícios”, pode
Podem encontrar-se precedentes muito bem resultar destes, segundo
da noção de interesse no sentido de a expressão de Mandeville, um ““be-
que, em muitos autores (inclusive os nefício público”. Em geral, é carac-
que, desde Aristóteles, conceberam terístico de muitos autores do sécu-
e defenderam a possibilidade de ati- lo XVIII considerar que há uma
vidades desinteressadas), interesses coincidência entre os interesses do in-
ou impulsos movem os seres huma- divíduo e os da comunidade, em vir-
nos para alcançar determinados fins, tude do pressuposto de que os bene-
dentre os quais o conhecimento. No fícios individuais, somados, contri-
entanto, encontramos teorias mais buem harmonicamente para o bem-
elaboradas e detalhadas sobre o in- estar social. Isso inclui o conheci-
teresse em autores materialistas mo- mento, que desse modo fica integra-
dernos e em autores que deram gran- do' com os ““interesses”.
de atenção aos “impulsos”, ““senti- O conceito de interesse tem impor-
mentos” e “paixões”. Isso ocorre, tância na ética e, em geral, no que
em parte, em Hobbes e Hume. Es- se pode designar como ““a antropo-
pecificamente, dá-se em autores co- logia filosófica kantiana””. Numa
mo Helvétius, La Mettrie, Holbach nota da seção II da Fundamentação
e Mandeville. da Metafísica dos Costumes (Grun-
É comum aos autores menciona- dlegung zur Metaphysik der Sitten
dos por último destacar os “impul- (ed. da Academia, IV, 414), Kant de-
sos” que levam os homens a fazer o fine interesse como ““a dependência
que fazem, até a pensar o que pen- de uma vontade [na 1º? edição: ““de-
sam. Esses impulsos são ““egoistas”, pendência da vontade”*] casualmen-
na medida em que tendem a satisfa- te determinável segundo princípios
zer os desejos de cada um e, muito da razão”. Kant acrescenta que só
especialmente, os desejos, conside- existe interesse numa vontade depen-
rados perfeitamente naturais, de dente que não concorda por si mes-
conseguir o prazer e evitar a dor. Nas ma (o grifo é nosso) com a razão;
INTERESSE 386

não se pode conceber interesse na reitera que o interesse possibilita que


vontade divina. “Mas a vontade hu- a razão chegue a ser ““prática”', Isto
mana ainda pode tomar um interes- é, chegue a ser uma causa determ!-
se (ein Interesse nehmen) em algo, nante da vontade. Ao contrário dos
sem que Isso signifique proceder por animais, que possuem somente 1m-
interesse (aus Interesse... handeln). pulsos ditados pelos sentidos, os ho-
O primeiro significa interesse práti- mens “interessam-se” (por algo).
CO na ação; o segundo, interesse Pois bem, o interesse pode ser puro
pa-
tológico no objeto da ação. O pri- ou empírico. É puro, quando o in-
meiro mostra apenas dependência da teresse por uma ação, exclusivamen-
vontade em relação a princípios da te em virtude da validade universal
razão em si mesma; o segundo, de- de sua máxima, constitui uma base
pendência com respeito aos princí- suficiente para determinar a vonta-
plos da razão para o propósito da in- de. É empírico, quando a razão po-
clinação, porquanto a razão somen- de determinar a vontade somente por
te estabelece a regra prática mediante meio de outro objeto desejado, ou
a qual se ajuda às necessidades da in- quando leva em conta um sentimen-
clinação. No primeiro caso, interes- to particular do sujeito. O interesse
sa-me a ação; no segundo, o objeto da razão, isto é, proceder de deter-
é
da ação (na medida em que me gra-
to)”* (loc. cit. ). Kant recorda que, na
minada maneira, é, então, apenas 1n-
direto (op. cit., 460). O problema
1º seção da mesma obra, destacara que Kant elucida aqui é o de como
que, quando a ação é levada a efeir- é possível que (ou como é possível
to por dever, não cabe dar atenção conceber que) a razão pura prescre-
ao interesse pelo objeto, tendo-se que va-algo a um ser racional que está in-
atentar somente para a própria ação fluenciado pela sensibilidade, ou se-
e para o seu princípio na razão, ou Ja, como é possível que (ou como é
seja, na lei (moral). Assim, pois, em- possível conceber que) a razão tenha
bora Kant não ceda um milímetro no algum poder ou capacidade (Vermoô-
que diz respeito à pureza das noções gen). À questão do poder ou da ca-
de “boa vontade” e de “proceder pacidade não deve ser confundida
por dever”, nem por isso deixa de com a da validade da máxima; esta,
enfatizar o papel desempenhado pe- afirma Kant, é válida não por inte-
lo interesse como motor a serviço da ressar-nos, mas pelo motivo oposto:
vontade (e também como motor a
serviço da aspiração ao conhecimen-
Cúlida cper nós, RomnoniS «
POrSS
tOnNSsI1-

to). Trata-se de uma condição (psi- derações substancialmente parecidas


cológica) necessária, mas não (mo- com as aqui assinaladas são apresen-
ral ou, mesmo, epistemologicamen- tadas por Kant na Crítica da Razão
te) suficiente. Na seção da Funda- Prática, em especial na seção 3 do Li-
mentação intitulada “Do interesse l1- vro 1, Parte 1, intitulada “Dos im-
gado à idéia de moralidade”, Kant pulsos [incentivos] da razão
pura
387 INTERESSE

prática”. Do conceito de impulso ou pécie, podem ter um caráter predo-


incentivo (Triebfeder) deriva, segun- minantemente pessoal ou preponde-
do Kant, o conceito de interesse, que rantemente social. A primeira alter-
não pode ser atribuído a um ser des- nativa ocorre no caso de Kierke-
provido de razão. O conceito referi- gaard. A segunda, no de Marx. O ca-
do indica “um impulso da vontade ráter pessoal dos interesses foi des-
na medida em que é apresentado pela tacado por vários autores existencia-
razão”. Enquanto a lei moral deve listas; o caráter social dos mesmos,
ser, por si mesma, um impulso (ou por autores marxistas ou que, de al-
Incentivo) numa vontade moralmen- gum modo, trataram da problemá-
te boa, o interesse moral tem de ser, tica marxista. Um terceiro tipo de in-
por seu lado, interesse não sensível teresse — que poderia ser classifica-
da razão prática. A noção de inte- do de cósmico-metafísico — é o que
resse só é aplicável, assinala Kant, a se encontra implícito na filosofia
um ser finito, e não a um ser infini- schopenhaueriana da Vontade.
to como Deus. Com efeito, somente A noção de interesse já tem, pois,
num ser finito não há coincidência uma extensa história; mas só no
perfeita entre o caráter subjetivo da atual século o termo ““interesse””, ou
escolha e a lei objetiva da razão seus equivalentes em várias línguas,
prática. foi considerado um termo central
A noção de interesse — ou outras que designa uma noção capital.
noções que lhe são associadas — é Mencionaremos vários casos típicos.
importante em autores tão distintos Um deles é, sobretudo, de nature-
entre si quanto Comte, os utilitaris- za pedagógica, mas tem suas raízes
tas e Nietzsche. Em sua obra Ethics numa determinada concepção do ho-
and Language (1944, V, 1), Steven- mem. Irata-se da noção de interes-
son refere-se ao mesmo tempo a se nos chamados ““centros de interes-
Hobbes e a Nietzsche; ambos admi- se”* por parte do educando,
para os
tem, com efeito, haver motivos que quais autores como John Dewey e O.
podem determinar a “ação moral”; Decroly chamaram a atenção. Na re-
esses motivos são muito distintos em lação entre o educando e os bens cul-
cada um dos citados pensadores, mas turais que se supõe cumpre inculcar-
há de comum neles o fato de não des- lhe, Dewey e Decroly indicaram que
cartarem o que hoje se chamariam nenhum processo educativo é fecun-
“interesses”, incluindo, como assi- do se se começar por estabelecer uma
nalava Hobbes, o predomínio de um separação entre o “sujeito” e os cl-
certo egoísmo a respeito de determi- tados “bens”. A apropriação desses
nados assuntos. bens e sua possível modificação têm
Os interesses que movem as ações lugar mediante uma intervenção ati-
humanas, sejam ações que entram va do educando, e isso só se conse-
no domínio do moral (ou imoral), se- gue quando, em vez de apresentar-
jam produções culturais de toda es- lhe um sistema cultural já pronto e
INTERESSE 388

supostamente objetivado, formam- a uma série de fatores concretos de ca-


se “centros” que são os ““centros de ráter antropológico-social. Isso equi-
interesse” acima aludidos. A idéia da y
vale a dizer o que Ortega Gasset
educação desenvolvida em torno do frequentemente destacou, a saber:
“interesse” (do educando) remonta que o conhecimento ““é profunda-
a Rousseau, sobretudo no Emílio mente interessado”, mas Ortega y
(Livro III), onde se destaca a neces- Gasset difere de Scheler na medida
sidade de levar em conta a esponta- em que não estabelece, como Sche-
neidade do educando, e a Herbart, ler, uma distinção entre saber técni-
especialmente na medida em que rea- co, saber culto e saber de “salva-
giu contra toda unilateralidade e pas- ção”, nem tampouco associa, como
sividade no processo educativo. também faz Scheler em seu livro Or-
Fora do círculo pedagógico — ou do Amoris, o interesse e o amor. O
pedagógico-filosófico — encontra- amor, enquanto ““tomar interesse
mos o conceito de ““interesse” como por”, não é, para Ortega, como é
conceito central em autores que de- para Scheler, um ato primordial que
senvolveram a sociologia do conhe- se some aos conteúdos previamente
cimento (também chamada ““socio- dados à consciência.
logia do saber”*). Max Scheler con- De um modo geral, muitos filóso-
sidera que a pouca, ou escassa, aten- fos contemporâneos destacaram, im-
ção que muitos filósofos deram à no- -
plícita ou explicitamente, a noção de
ção de interesse deve-se ao predomí- interesse tanto por motivos socioló-
nio, nesses filósofos, de um intelec- gicos quanto filosófico-antropológi-
tualismo frequentemente combinado cos. Essa mistura de motivos apare-
com o idealismo. Os pensadores em ce num autor cujo pensamento gra-
questão não levaram em conta que vita, em grande parte, em torno da
pode haver uma “ordem do amor” noção de interesse: Jurgen Haber-
(ordo amoris), na acepção de Pascal mas. Para esse filósofo, o conheci-
e, antes, de Santo Agostinho; e, em- mento é induzido ou conduzido pe-
bora o “amor” não seja, propria- lo interesse (Erkenntnisleitende Inte-
mente falando, “interesse”, menos resse). Nesse sentido, Habermas vin-
ainda um interesse egoísta do tipo cula seu pensamento, ainda que na
descrito por Hobbes, existe nele, sem forma de diálogo crítico, à tradição
dúvida, um “interesse” que não se marxista, aos trabalhos de sociolo-
encontra (ou que supunha-se não se gia do conhecimento e a Peirce e De-
encontrava) no chamado ““conheci- wey. Vincula-o, também, à tradição
mento puro” ou “conhecimento de- da filosofia transcendental que co-
sinteressado”, a que Já nos referi- meça em Kant e continua em Fich-
mos. Em Scheler, a idéia de interes- te. Isso confere um duplo sentido à
se está ligada, por um lado, a um cer- noção de interesse em Habermas, ao
to “emotivismo”* — no sentido de mesmo tempo que uma inevitável
um intuição emotiva —, por outro, ambiguidade. Em Erkenntnis und
389 INTERESSE

Interesse, 1968, especialmente III, 9, de interesses. De um lado, há o inte-


pp. 235 ess. [cf. também “Erkennt- resse que surge do desejo de domi-
nis und Interesse”, incluído em nio e controle da Natureza; é um In-
Technik und Wissenschaft als “Tdeo- teresse “técnico”, mas, na medida
logie”* (1968)), Habermas declara em que a tecnologia se apóia na, ou
não pretender levar a cabo uma está intimamente ligada à, ciência
redução de ““determinações”' lógi- natural, cabe dizer que todo conhe-
co-transcendentais a ““determina- cimento científico é dirigido pelo in-
ções** empíricas. Por outro lado, teresse. De outro lado, há um inte-
tampouco se trata de uma noção me- resse comunicativo, que é o que le-
ra ou estritamente transcendental, va os membros de uma sociedade a
distanciada da história natural da es- se entenderem (e, às vezes, a não se
pécie humana. A rigor, sublinha Ha- entenderem) com outros membros
bermas, ““os interesses que condu- da mesma sociedade, ou o que leva
zem o conhecimento medeiam (como a entendimentos (e a mal-entendidos)
não posso aqui demonstrar, mas entre diversas comunidades. A ex-
apenas afirmar) entre a história na- pressão intelectual desse interesse são
tural da espécie humana e a lógica as “ciências do espírito”* — as ciên-
de seu processo de formação... Cha- cias humanistas e culturais — por ve-
mo interesses as orientações básicas zes agrupadas sob a “hermenêuti-
adscritas a determinadas condições ca”. Finalmente, há oO interesse
fundamentais da possível auto- emancipador ou libertador, próprio
reprodução e autoconstituição da es- da reflexão e manifestado nas ciên-
pécie humana, ou seja, o trabalho e clas propriamente críticas, como as
a interação” (Erkenntnis und Inte- teorias sociais, e pelo menos em par-
resse, p. 242). Habermas insiste, te do pensamento filosófico. A auto-
pois, em que não se trata de gratifi- reflexão pode converter-se numa
cações de desejos imediatos empiri- ciência, como ocorre com a psicaná-
cos, mas de uma solução de proble- lise e a crítica das ideologias, e nu-
mas. São os problemas que, por ma ciência que, além disso, é capaz
outro lado, suscitam esses mesmos de explicar — e também de transfor-
interesses, fundamentalmente os mar, as outras ciências, com os in-
processos de aprendizagem e a com- teresses concomitantes. O interesse
preensão mútua. Kant e Fichte des- emancipador resulta ser um interes-
cobriram a estreita relação entre in- se Justificador e explicativo, enquan-
teresse e razão na idéia dos interesses to Justificador.
da razão mas, sobretudo no caso de Nem sempre Habermas deixa cla-
Fichte, essa relação resultava função ro se os três diversos tipos de inte-
do eu construtivo transcendental. resse antes mencionados se distin-
Habermas trata de mostrar que o 1n- guem com perfeita nitidez entre si ou
teresse “mediador” é um processo constituem algo como uma hierar-
numa espécie de escala ou hierarquia quia mais ou menos contínua junto
INTERESSE 390

com o interesse emancipador, ou o interesse. A noção de interesse está


interesse pela emancipação, forman- ligada, em seu entender, a todas as
do a culminação desse movimento de noções afins de instinto, desejo, sen-
Interesses e, com isso, o ponto cul- timento, vontade e outras análogas
minante da auto-reflexão. Em todo (op. cit., p. 27), podendo ser consi-
caso, tal como se manifesta na críti- derada, pois, como uma abreviatu-
ca, especialmente na crítica através ra. Segundo Perry, há quatro rela-
das ciências sociais, o interesse eman- ções possíveis entre valor e interes-
cipador pode restabelecer, segundo se: (1) Pode-se considerar o valor co-
Habermas, o abismo entre razões e mo independente do interesse; (2)
decisões, entre instrumentos e fina- pode-se considerar o valor como al-
lidades. Mas não fica claro se o in- go que implica, evoca ou regula o in-
teresse emancipador não transcende, teresse; (3) podem-se atribuir valo-
então (a despeito do que se procla- res a objetos possuidores de certos
ma), todos os interesses, que ficam e determinados interesses; (4) pode-
relegados ao reino da instrumentali- se considerar que o valor, num sen-
dade irracional ou da decisão arbi- tido genérico, encontra-se próximo
trária, convertendo-se numa espécie “promiscuamente” de todos os ob-
de categoria transcendental fora da Jjetos de todos os interesses. Perry
história e, assim, fora inclusive do adota este último tipo de relação e
neomarxismo que se supõe ser carac- examina em detalhe os diversos mo-
terístico dos autores da Escola de dos de interesse, assim como o pa-
Frankfurt. pel que o interesse desempenha no
Menos conhecida, ou discutida, conhecimento. Também examina
hoje, que a teoria do interesse de Ha- complexos de interesses, inclusive a
bermas é a ampla investigação da no- comunidade, a subordinação e a mu-
ção de interesse por Ralph Barton tualidade de interesses (op. cit., pp.
Perry em seu livro General Theory 369-70). O conceito de interesse ocu-
of Value: Its Meaning and Basic pa, assim, um lugar central não só
Principles construed in Terms of In- na teoria dos valores, mas também
terest (1926). Como o próprio título na teoria da sociedade e no exame de
da obra já indica, Perry fundamen- bens, inclusive o chamado ““bem
ta toda a sua teoria dos valores no supremo”.
JUÍZO Vários são os significados ticos e neo-escolásticos; (5) é uma de-
atribuídos ao termo ““juízo”: (1) juí- finição proposta — entre outras —
zo é o ato mental por meio do qual por Bolzano; (6) é uma definição
nos formamos uma opinião a respei- proposta por Pfânder em sua lógica
to de algo; (2) juízo é o processo fenomenológica; (7) é uma definição
mental por meio do qual decidimos que se pode encontrar em vários ló-
conscientemente que algo é de um gicos atuais, os quais se baseiam ne-
modo ou de outro; (3) juízo é a afir- la precisamente para evitar empregar
mação ou a negação de algo (de um em lógica o termo “juizo” como
predicado) a respeito de algo (de um possuidor de um sentido demasiado
sujeito); (4) Juízo é um ato mental psicológico ou de uma significação
por meio do qual se une (ou se sin- demasiado ambígua; (8) é uma def1-
tetiza) afirmando, ou se separa ne- nição comum a vários autores dos sé-
gando; (5) juízo é uma operação do culos XVII e XVIII; (9) é uma def1-
nosso espírito em que se contém uma nição proposta por Kant; (10) é uma
proposição que é ou não conforme definição própria da antropologia f1-
à verdade e segundo a qual se diz que . losófica ou da crítica do Juízo em
o juízo é ou não correto; (6) Juízo é sentido kantiano.
um produto mental enunciativo; (7) Consideraremos os juízos de um
juízo é um ato mental por meio d ponto de vista lógico, e não do psi-
qual pensamos um enunciado; (8) cológico ou epistemológico. Por is-
juízo é um ato do entendimento ba- so, trataremos as definições (3), (4),
seado na força de convicção; (9) Juí- (5), (6) e (8), que destacam no juízo
zo é o conhecimento mediato de um principalmente sua qualidade de pro-
objeto; (10) juízo é a faculdade de duto mental ou objeto ideal. Isso nos
julgar ou o resultado da faculdade leva a dizer, com frequência, acerca
de julgar. Essas definições foram do Juízo, muitas das coisas que se
propostas por diversos autores e ten- dizem acerca da proposição (ver),
dências filosóficas: (1) é frequente quando esta é definida como o con-
em moralistas, empiristas (como Lo- teúdo do ato mental de julgar.
cke) e filósofos do senso comum; (2) É comum considerar que o juízo
é a definição própria de muitos psi- compõe-se de conceitos e que estes
cólogos; (3) é propriamente a def1- estão dispostos de tal forma, que não
nição da proposição, mas também é constituem mera sucessão. Por isso,
dada do juízo enquanto correlato conceitos como os homens bons não
mental da proposição; (4) é uma de- são Juízos. Em contrapartida, a sé-
finição frequente em textos escolás- rie de conceitos os homens bons são
JUÍZO 392

recompensados é um juízo. Donde dos os homens são mortais”, “todos


deve haver no juízo afirmação ou ne- os homens” é a expressão que desig-
gação, e deve o juízo ser verdadeiro na o conceito-sujeito, “mortais” é a
ou falso. Uma imprecação, uma sú- expressão que designa o conceito-
plica, uma exclamação, uma interro- predicado e “são” é a cópula que os
gação, não são juízos. Os escolásti- une. Discutiu-se, por vezes, se os JjJuí-
cos dizem, por isso, que os Juízos zos existenciais, ou Juízos da forma
constituem segundas operações do “x existe”, são propriamente Juízos
espírito, sobrepostas às primeiras ou não. O usual é responder afirma-
operações, que são apreensões de tivamente, de acordo com a tese de
conceitos. O que os juízos expressam que há juízos sempre que se possa
são enunciados (proposições ou ora- traduzir uma expressão com a for-
ções enunciativas). Quando se quer ma ““S é P”* ou “S não é P”. Como
eliminar ao máximo as implicações “x existe”” pode traduzir-se — con-
psicológicas, afirma-se (como faz forme se indica — pela forma ““x é
Pfânder) que, embora o Juízo seja algo existente”, “x existe” é consi-
afirmação ou negação, estas não se derado exemplo de Juízo. A mesma
determinam simplesmente pelo as- solução é dada a expressões como ““x
sentimento ou não assentimento, fuma”, que se traduz por ““x é fu-
mas constituem resultados da estru- mante”, e assim sucessivamente. Há
tura lógica do Juízo. várias classificações possíveis dos jJuí-
Os juízos compõem-se de três ele- zos. Vamos referir-nos aqui às mais
mentos. Um é o sujeito, o qual, sen- usadas.
do um conceito, pode ser qualifica- Do ponto de vista da inclusão ou
do como conceito-sujeito. Tendo co- não-inclusão do predicado no sujei-
mo símbolo a letra ““S”*, o conceito- to, os Juízos dividem-se em analíti-
sujeito distingue-se do termo que na cos e sintéticos (ver ANALÍTICO E
oração desempenha a função de su- SINTETICO). Do ponto de vista de
jeito, assim como do objeto a que se sua independência ou dependência
refere. Outro elemento é o predica- da experiência, os juízos dividem-se
do, o qual, sendo um conceito, po- em a priori (ver) e a posteriori. Do
de ser qualificado como conceito- ponto de vista do objeto considera-
predicado. Simbolizado pela letra do pelo conceito-sujeito, os juízos
“P””, o conceilto-predicado distin- dividem-se em juízos reais, ideais, de
gue-se do termo que na oração de- existência, de valor, etc. Do ponto
sempenha a função de predicado, as- de vista da intenção predicativa (ver
sim como do objeto a que se refere. PREDICADO), os juízos dividem-
Outro elemento, finalmente, é a ““có- se em determinativos, atributivos, de
pula”, que liga o conceito-sujeito ao ser, de comparação, de pertinência,
conceito-predicado. A cópula afirma de dependência e de intenção. Jun-
(“é”) ou nega (“não é**) o predica- to dessas classificações, há uma que
do do sujeito. Assim, no juízo ““to- ocupa um lugar central na doutrina
393 JUÍZO

“tradicional” do juízo, pelo que nos autores indicam que há também juí-
referiremos a ela em maior detalhe: zos singulares; um exemplo dos mes-
é a que distingue, no juízo, a quali- mos é “João é mortal”. A quanti-
dade (ver), a quantidade, a relação dade refere-se usualmente ao concei-
e a modalidade. to-sujeito.
Segundo a qualidade, os juízos Segundo a relação, os juízos di-
dividem-se em afirmativos e negati- videm-se em categóricos, hipotéticos
vos. Exemplo de juízo afirmativo é e disjuntivos. Exemplo de Juízo ca-
“João é bom”. Exemplo de juízo ne- tegórico é ““os suecos são fleumáti-
gativo é “João não é bom”. Segun- cos”. Exemplo do juízo hipotético é
do alguns autores, pode-se falar tam- “se se soltar uma pedra, ela cai no
bé, do ponto de vista da qualidade, chão”. Exemplo de juízo disjuntivo
de Juízos infinitos, igualmente cha- é “Homero escreveu a Odisséia ou
mados “indefinidos”, “ilimitados” não escreveu a Odisséia”. A relação
e “limitativos*””. Na “Lógica trans- refere-se à função secundária da có-
cendental”* da Crítica da Razão Pu- pula, ou seja, à função enunciativa.
ra, Kant distingue juízos infinitos Segundo a modalidade, os Juízos
(unendliche) (que se podem chamar, dividem-se em assertóricos, proble-
como assinalamos, ““ndefinidos”, máticos e apodícticos. Exemplo de
ou, ainda, “limitativos”, porquan- Juízo assertórico é “Antônio é um es-
to estabelecem limites “em relação tudante exemplar”*. Exemplo de jJuí-
com a matéria do conhecimento em zo problemático é ““os turcos são
geral”) e juízos afirmativos. O Juí- provavelmente bebedores de café”.
zo indefinido consiste em excluir um Exemplo de juízo apodíctico: ““os
sujeito da classe dos predicados a Juízos são necessariamente séries de
que o juízo se refere. Exemplo de conceitos formados de três elemen-
juízo indefinido é ““a alma é não- tos”. Discutiu-se muito acerca do
mortal””. Não obstante, muitos au- sentido da modalidade e sobre se es-
tores repelem os juízos indefinidos, ta é de caráter psicológico, lógico ou
pois consideram que, do ponto de ontológico. O sentido lógico tem si-
vista da forma, o juízo ““a alma é do correntemente o mais acentuado,
não-mortal”' é (como já reconhecia mas alguns autores pensam que a
Kant) um juízo afirmativo. A quali- modalidade lógica depende da onto-
dade do juízo refere-se à função pri- lógica.
mária da cópula: a função de refe- As combinações da qualidade com
rência. a quantidade nos juízos dão lugar a
Segundo a quantidade, os Juízos quatro categorias de juízos: univer-
dividem-se em universais e particu- sais afirmativos (A), universais ne-
lares. Exemplo de juízo universal é gativos (E), particulares afirmativos
“todos os homens são mortais”. (1) e particulares negativos (0). As re-
Exemplo de juízo particular é “al- lações entre essas categorias de juí-
guns homens são mortais”. Alguns zos são de quatro tipos: contrária,
JUÍZO (FACULDADE DO) 394

subcontrária, subalterna e contradi- quando define a faculdade do juízo


tória. O que dissemos a esse respei- como uma espécie de síntese harmô-
to nos verbetes sobre os conceitos nica entre a subjetividade e a objeti-
citados, assim como nos verbetes vidade, de modo que a verdade do
“Oposição” e “Proposição” (ver), juízo depende, em última instância,
pode valer também para os juízos, da objetividade absoluta, do objeto
pelo que nos remetemos àqueles. Ob- puro que se encontra mais além de
servemos que, em muitos tratados de todo julgar e que, portanto, não ne-
lógica do tipo que se qualifica de tra- cessita propriamente do Juízo. Este
dicional, as categorias de juízos se- surge em virtude da oposição men-
gundo a qualidade, a quantidade, a cionada, pela qual pode haver ver-
relação e a modalidade, assim como dade ou falsidade em maior ou me-
o estudo dos juízos segundo as com- nor grau, segundo a maior ou me-
binações de qualidade e quantidade, nor distância em que se encontra da
incluem-se não num capítulo sobre objetividade aquele que Julga. Uma
juízos, mas no capítulo, ou capítu- base metafísica — embora distinta
los, sobre a proposição ou o enun- da de Lask — também tem a concep-
ciado. Assim ocorre nos tratados ção tradicional, segundo a qual no
neo-escolásticos. Em contrapartida, juízo afirmamos, pomos ou propo-
os manuais de lógica que seguem as
orientações do século XIX, os que se
a
mos existência, de tal modo que o
juízo é propriamente ““Juiízo de exis-
apóiam em Kant e os que, como tência””. Assim, o juízo distingue-se
Pfânder, orientam-se pela fenome- da abstração; como disse Gilson (se-
nologia, tratam de tais divisões na guindo Santo Tomás), enquanto a
doutrina do juízo. abstração apreende a essência (ou a
natureza) das coisas, o Juízo apreen-
JUÍZO (FACULDADE DO) No ar- de as próprias coisas (isto é, o seu
tigo “Juízo” (ver), referimo-nos à existir).
definição de juízo como faculdade de A expressão ““faculdade do juízo”
julgar. Essa definição faz usualmente — às vezes traduzida simplesmente
parte da antropologia filosófica, em por “Juízo” — é empregada sobre-
especial quando se define o homem tudo em relação com a filosofia de
como o animal capaz de formular Kant. Segundo esse pensador, a fa-
juízos, em vez de limitar-se a ter im- culdade do juízo (Urteilkrafft) desig-
pressões. É muito comum, por isso, na a faculdade de pensar o particu-
o estudo da relação entre o Juízo e lar como subsumido no geral. Se o
a chamada experiência antepredica- geral estiver dado, a faculdade do
tiva, relação essa a que se refere em Juízo que subsume nele o particular
detalhe Husserl em seu livro Erfah- chama-se juízo determinante ou de-
rung und Urteil. Alguns autores as- terminativo; se estiver dado o espe-
sumem a esse respeito uma postura cial que é preciso subsumir no geral,
metafísica; é o caso de Emil Lask, a faculdade que busca o geral no
395 JUSTIÇA

qual há que subsumir o especial Logo se destacaram os aspectos


chama-se juízo reflexivo. O juízo re- sociais da justiça. Uma versão crua
flexivo é o tema central da Crítica do da concepção cósmica aplicada aos
Juizo, que se propõe adequar, subor- seres humanos é a seguinte: dada
dinar ou subsumir algo num fim. À uma ordem social aceita, qualquer
questão fundamental de semelhante alteração da mesma é injusta. Uma
crítica — “É possível julgar ser a Na- versão menos crua é esta: quando há
tureza adequada a um fim?** — re- um intercâmbio de bens de qualquer
presenta, pois, como indica Windel- espécie entre dois ou mais membros
band, a mais alta síntese da filoso- de uma sociedade, só se considera
fia crítica, “a aplicação da catego- que há justiça quando não se priva
ria da razão prática à razão teórica”. ninguém do que lhe é devido, quan-
do há equilíbrio no intercâmbio. Se
JUSTIÇA Muitos gregos, inclusive há desequilíbrio e, portanto, injus-
os grandes trágicos e alguns filóso- tiça, tem de haver uma compensa-
fos pré-socráticos, consideraram a ção, a que se dá, de forma redundan-
justiça num sentido bastante geral: te, o nome de “compensação Justa”.
algo é justo quando a sua existência Nesse sentido, chegou-se a conside-
não interfere na ordem a que perten- rar que é justo vingar-se por um da-
ce. Nesse sentido, a justiça asseme- no infligido e que tem de haver igual-
lha-se muito à ordem ou à medida. dade de danos: “olho por olho, den-
Que cada coisa ocupe seu lugar no te por dente”.
Universo, é justo. Quando isso não A distinção que muitos sofistas es-
ocorre, quando uma coisa usurpa o tabeleceram entre o que é ““por na-
lugar de outra, quando não se limi!- tureza” e o que é “por convenção”?
ta a ser o que é, quando há algum afetou, entre outras, a noção de jus-
excesso, uBous, produz-se uma injus- tiça. A tendência entre os sofistas foi
tiça. Cumpre-se a justiça somente considerar que a justiça é “por con-
quando se restaura a ordem original, venção”', ou seja, que algo é justo
quando se corrige e se castiga o quando se acorda que é justo, e que
excesso. é injusto quando se acorda que é in-
Pode-se chamar ““cósmica”* essa Justo. Que alguém seja feliz ou infe-
concepção da justiça. Toda realida- liz não tem, em princípio, nada a ver
de, inclusive os seres humanos, de- com ser justo ou injusto: pode-se ser
ve ser governada pela justiça. Esta Justo e infeliz e injusto e feliz.
pode ser considerada uma lei
univer- Em oposição aos sofistas, Platão
sal — a qual, com frequência, era declarou no Górgias que a justiça é
personalizada. Essa lei mantém ou, condição da felicidade; contra o so-
pelo menos, expressa a ordem e à fista Pólos e o cidadão Caliclés, Pla-
medida do cosmo inteiro, e por ela tão diz, pela boca de Sócrates, que
se restabelece essa ordem ou medi- o homem injusto não pode ser feliz.
da mal tenha sido alterada. A noção de justiça é um dos temas
JUSTIÇA 396

capitais, senão o principal, da Repiwú- símacos no Livro II da República.


blica de Platão, que se interessou pe- Para começar, considera três tipos de
la Justiça como virtude e como fun- coisas ou ““bens”*: as que são dese-
damento da constituição da cida- jáveis por si mesmas, independente-
de-estado, bem como da estabilida- mente dos seus resultados, como
de e da ordem sociais. Numa cidade- ocorre com os ““prazeres inofensi-
estado ideal deve reinar a justiça. VOS”; as que são desejáveis tanto por
(Pode-se dizer também que, quando si mesmas quanto por seus resulta-
reina a justiça, há uma cidade-estado dos, como sucede com a Justiça; e as
ideal.) que não são desejáveis ou gratas por
No primeiro dos dez livros da Re- si mesmas, ainda que o sejam por
pública, Platão examina e critica di- suas consegiiências, como a cura de
versas concepções da Justiça. De ime- doenças, ou seja, ““a arte do médi-
diato, considera inaceitável conceber co”. Platão trata de fazer ver que o
que a Justiça seja o restabelecimen- homem Justo é feliz. Isso poderia le-
to por quaisquer meios — inclusive var a pensar que, se se quer ser fe-
meios violentos — de algum desequi- liz, é preciso ser justo, o que equi-
líbrio produzido por um excesso. À valeria a subordinar a justiça à fel1-
Justiça não é mera compensação de cidade. A justiça é, entretanto, uma
danos. (Esta era uma idéia própria virtude tão elevada que, levando as
dos poetas e que foi expressa ““obs- colsas a um extremo, caberia inclu-
curamente*” por Simônides.) Platão sive sustentar que cumpre ser justo,
tampouco admite que a justiça con- aconteça o que acontecer, mesmo
sista em fazer bem aos amigos
eda-
no aos inimigos. Em particular, Pla-
que o exercício da justiça venha a
produzir a infelicidade. Estaríamos,
tão opõe-se à concepção do sofista assim, de acordo com a opinião que
Trasímacos, o qual afirmava que o se formulou através da expressão
que se chama ““justiça”* é um modo Fiat iustitia, perit mundus, “faça-se
de servir a seus próprios Interesses, Justiça, ainda que pereça o mundo”.
que são os interesses do que tem ou Platão parece retroceder ante essa
dos que têm o poder. Os poderosos possível consequência extrema. Na
são os fortes; estes falam de Justiça, realidade, e pelo que diz no resto da
mas, a rigor, querem reafirmar e Jus- República, pode-se concluir que o
tificar seu domínio sobre os demais
membros da comunidade. Em suma:
mundo
(a sociedade) não vai perecer
se se introduzir a justiça. Muito pe-
a Justiça é um encobrimento de in- lo contrário, o mundo (a sociedade)
teresses particulares; daí a definição poderá salvar-se graças à justiça. É
por Trasímacos da Justiça como ““o possível, e provável, que numa so-
interesse do mais forte (ou podero- ciedade justa (perfeita) nem todos os
so)” (339 a). cidadãos sejam felizes. Mas a felici-
Pela boca de Sócrates, Platão trata dade não deve medir-se, segundo
de desmontar os argumentos de Tra- Platão, individualmente ou conside-
397 JUSTIÇA

rando um determinado grupo ou Enquanto nas concepções gregas


classe da sociedade. Deve medir-se clássicas a justiça constitui o elemen-
levando em conta a sociedade intei- to fundamental da organização da
ra. Numa sociedade justa, há Justi- sociedade, nas concepções cristãs é
ça para todos. Se a sociedade justa superada pela caridade e pela mise-
é uma sociedade feliz, então todos os ricórdia. Para Santo Agostinho, por
membros da sociedade serão justos exemplo, o essencial é amar. Depois
e felizes. Sua Justiça e sua felicidade de amar, pode-se fazer ““o que se qui-
são a Justiça e a felicidade da comu- ser”, pois não há perigo de que seja
nidade inteira, da cidade-estado em injusto o que se fizer. Na Justiça,
seu conjunto. Nesse sentido, não se outorga-se a cada ser o que se lhe de-
pode dizer que, para Platão, a justi- ve; na caridade, mais do que se lhe
ça seja uma das coisas que tem más deve. Assinale-se, porém, que essa
consequências. Por 1sso, é uma das superação da justiça pela caridade
coisas ou bens que são desejáveis por (ou, pelo menos, por uma espécie de
si mesmos e por seus resultados. sentimento fraternal [pikhia]) tinha
Na Política, Aristóteles aceita gran- sido “antecipada” por alguns filó-
de parte das idéias de Platão no que sofos gregos, entre eles, Aristóteles:
se refere à Justiça. Pensa, como Pla- “quando os homens são amigos, não
tão, que a função primordial da jus- há necessidade de justiça, ao passo
tiça encontra-se no âmbito do Esta- que, quando são justos, também pre-
do. Mas introduz várias noções que cisam de amizade” (Etic. Nic., VII,
exerceram grande influência. Divide 1, 1155 a 27).
a justiça em ““Justiça distributiva”, Mas o antes mencionado ““prima-
que consiste na ““distribuição de hon- do da caridade” não significa que os
rarias, fortunas e todas as demais autores medievais prescindiram da
coisas que cumpre repartir entre os noção de Justiça, como seesta tives-
se ficado inteiramente absorvida na
que participam da constituição (Já
que em tais coisas é possível que ca- misericórdia. Santo Tomás, por exem-
da um tenha uma participação des1- plo, considerou a justiça como um
gual ou igual à de outro)”; e “Justi- modo de regulamentação fundamen-
ça comutativa” (“corretiva” ou ““re- tal das relações humanas. Seguindo
tificativa”), que “regula as relações Aristóteles (cf. supra). Santo Tomás
tanto voluntárias quanto involuntá- fala de três classes de justiça: a co-
rias de uns cidadãos com outros” mutativa, baseada na troca e regu-
(Étic. Nic., V, 1130 b 30). A justiça ladora das relações entre os membros
distributiva é adjudicação por um de uma comunidade; a distributiva,
terceiro, ao passo que a Justiça co- que estabelece a participação dos
mutativa, corretiva ou retificativa, é membros de uma comunidade nesta
intercâmbio. Só a Justiça distributi- e regula as relações entre a comuni-
va pode ser considerada como uma dade e seus membros; e a legal ou ge-
das mais altas virtudes. ral, que estabelece as leis a que se tem
JUSTIÇA 398

de obedecer e regula as relações en- desenvolvida, entre outros, por Gro-


tre os membros e a comunidade. tius. Para esse autor, a justiça está
(Ver, especialmente, Summa Theo- fundada na lei natural. Distingue-se
logica, ITa q. LVIII.) Essa divisão to- também entre lei natural e lei positi-
mista foi admitida por muitos auto- va. Esta última é a lei, ou série de
res, pelo menos no que se refere às leis, que rege uma sociedade, ou que
relações humanas. Segundo Josef uma sociedade adota em sua estru-
Pieper, a Justiça (nas formas propos- tura jurídica. Grotius mantém que,
tas por Santo Tomás) pode regular se a justiça está fundada na lei natu-
a maioria de tais relações. Mas não ral, as leis positivas só são Justas na
pode regular as relações entre Deus medida em que estão em conformi-
e o homem. Há certas formas de cul- dade com aquela lei.
pabilidade, de responsabilidade, etc., Autores como Hobbes parecem
cuja natureza impede que sejam re- defender uma concepção de justiça
guladas mediante justiça. Também baseada no poder absoluto do sobe-
se distinguiu entre justiça particular rano. Em todos os casos, o sobera-
e Justiça universal. Assim opina Leib- no representa o acordo a que chega-
niz, ao indicar que são três as for- ram os membros de uma sociedade
mas de Justiça: duas que pertencem com o fim de evitar a guerra de to-
à Justiça particular, que são a Jjusti- dos contra todos que provoca estra-
ça como respeito ao direito estrito e gos num suposto ““estado de Natu-
a Justiça como equidade pelo bem da reza”. Por meio de um ““contrato so-
comunidade; e uma que pertence à cial”, os membros de uma socieda-
Justiça universal, que é a justiça co- de delegam seu poder a um sobera-
mo piedade. no absoluto. Portanto, as leis esta-
Foi comum distinguir a lei divina belecidas por esse soberano devem
da lei natural, e houve diversidade de ser obedecidas. Em vista disso, pode-
opiniões a respeito da relação entre se pensar que essas leis são necessa-
esses dois tipos de leis. Alguns auto- riamente Justas, mas Hobbes não é
res consideraram que a lei divina é dessa opinião. E possível que as leis
absoluta e constitui o critério para estabelecidas pelo soberano não se-
qualquer outra classe de lei. Outros Jam justas. Entretanto, o membro da
consideraram que existe acordo en- sociedade governada pelo soberano
tre a lei divina e a lei natural. Ainda não tem direito de desobedecê-las,
outros opinaram que, embora não nem de criticá-las.
haja incompatibilidade entre a lei di- A atenção por vezes dada às leis
vina e a lei natural, deve-se conside- positivas levou alguns autores a de-
rar essencialmente esta última, não fenderem uma ““concepção formal”
sendo necessário recorrer à lei divi- do Direito. O Direito é a codificação
na para fundamentar a lei natural. formal e sistemática das leis positi-
Esta comporta seu próprio funda- vas. A Justiça é concebida, então, co-
mento. E a teoria do jusnaturalismo, mo um ingrediente dentro do cará-
399 JUSTIÇA

ter formal de ditas leis. Pode-se cha- tros. Segundo o outro princípio, de-
mar Isso de “concepção formal (ou ve haver uma distribuição de bens
positiva) da justiça”.
Tanto Hume como, sobretudo, os
econômicos
e sociais tal que toda de-
sigualdade resulte vantajosa para ca-
utilitaristas consideraram, embora da um, podendo, além disso, ter ca-
por razões distintas, que o justo é o da um acesso, sem obstáculos, a
que está em conformidade com o in- qualquer posição ou cargo (op. cit.,
teresse de todos os membros da so- p. 60).
cledade. A justiça é, pois, equipará- Depois de um exame minucioso do
vel à utilidade pública. Pode-se con- conteúdo desses princípios, Rawls
siderar isso como uma das versões da passa a formular um “enunciado f1-
“concepção material da justiça” — nal da justiça para as instituições”.
“material” no sentido de que se ba- De acordo com tal enunciado, o pri-
sela numa realidade concreta, que é meiro princípio estabelece que ““ca-
a utilidade de todos os cidadãos, ou da pessoa deve ter um direito igual
o maior bem possível para o maior ao sistema total mais extenso de l1-
número possível de indivíduos. berdades básicas iguais compatível
Se os utilitaristas sustentaram que com um sistema similar de liberda-
a Justiça resulta dos interesses públi- de para todos”'. O segundo princi-
cos, John Rawls (A Theory of Jus- pio estabelece: ““as desigualdades
tice, 1971), pelo contrário, afirmou. econômicas e sociais devem estar dis-
que, longe de ser a justiça o resulta- postas de tal modo que ambas (a) se-
do de interesses, por públicos que se- Jam para o maior benefício dos me-
jam, esses interesses são servidos so- nos favorecidos, consistente com o
mente pela justiça. Rawls fala prin- princípio das poupanças justas e (b)
cipalmente, se não exclusivamente, seencontrem agregadas a cargos e
de justiça distributiva, e examina posições abertos a todos em condi-
seus princípios partindo de uma ““po- ções de equitativa igualdade de opor-
sição original” ou estado inicial, por tunidade”, A primeira regra de prio-
meio do qual pode-se assegurar que ridade, que é a regra de liberdade,
os acordos básicos a que se chega estabelece que ““os princípios da jus-
num contrato social são justos e tiça têm que estar dispostos em or-
equitativos. A justiça é entendida co- dem léxica e, portanto, a liberdade
mo equidade (fairness) por ser equi- só pode ser restringida por amor à
tativa a posição original; de não o liberdade. Há dois casos: (a) uma li-
ser, produzir-se-lam injustiças. Na berdade mais ampla de que todos
“posição original”* adotam-se dois participam; (b) uma liberdade me-
princípios fundamentais: segundo o nor, que também deve ser aceitável
primeiro desses princípios, cumpre para os que tenham menos liberda-
assegurar para cada pessoa numa so- de”. A segunda regra de prioridade,
ciedade direitos iguais numa liberda- que é a prioridade da justiça sobre
de compatível com a liberdade de ou- a eficácia e o bem-estar, assevera que
JUSTIÇA 400

“o segundo princípio da justiça é le- dos os casos se postula uma redistri-


xicamente prévio ao princípio de efi- buição de acordo com um ““pa-
cácia e ao da maximização da soma drão””. Em face de todas as teorias
de vantagens; e a oportunidade equi- “estruturadas”, Nozick propõe uma
tativa é prévia ao princípio de dife- teoria de “intitulação” (entitlement
rença. Há dois casos: (a) uma desi- theory), segundo a qual a Justiça na
gualdade de oportunidade deve rea- distribuição de bens procede de uma
lizar as oportunidades dos que têm prévia distribuição justa — e legiti-
menos oportunidade; (b) uma pro- mamente Jjustificada. Assim, por
porção excessiva de poupança deve, exemplo, nessa teoria, é Justo pos-
por último, mitigar a carga dos que suir bens que foram adquiridos an-
sofrem essas privações”. A concep- tes e que não pertenciam a ninguém,
ção geral afirma que ““todos os bens ao passo que numa teoria distributi-
sociais primários — liberdade e va clássica os bens de referência têm
oportunidade, rendimentos e rique- de ser ““redistribuídos”* segundo o
za, € as bases do respeito a si mes- padrão que se adote. As idéias de
mo — devem ser igualmente distri- Nozick são, num sentido, “anarquis-
buídos, a menos que uma distribui- tas” ou ““libertárias””, mas, noutro,
ção desigual de quaisquer desses bens são ““reacionárias*”; por isso, pôde-
e de todos eles seja vantajosa para se falar, a seu respeito, de um “anar-
o menos favorecido” (op. cil., pp. quismo reacionário”.
302-303). Parece óbvio que, em muitas das
Por sua vez, Robert Nozick opôs- teorias modernas sobre justiça, dis-
se a Rawls em sua obra Anarchy, cute-se, sobretudo, o que é justo pa-
State and Utopia (1975). Em defesa ra o indivíduo numa sociedade. Na
do que chama ““Estado mínimo”, maioria dos casos, tratou-se de uma
como condição de um ““anarquis- distribuição — seja uma ““distribui-
mo” praticável, Nozick considera ção originária” ou considerada ori-
que há algo comum a todas as teo- ginariamente justa, seja uma distri-
rias da justiça de caráter distributi- buição que admite tantas ““redistri-
vo: o que nelas se pede é que seja da- buições”* quantas forem necessárias
do a cada um de acordo com um cer- para corrigir desigualdades ou abu-
to padrão — sejam as necessidades, sos. Os bens a distribuir podem ser
o trabalho, a condição social, etc. materiais ou não-materiais (cultu-
Essas teorias da Justiça são, segun- rais). Ainda que se leve em conta es-
do Nozick, ““estruturadas” (part- ses últimos, os primeiros são básicos.
terned). Embora as diferenças entre A grande maioria de doutrinas e
elas sejam consideráveis — pense-se sistemas sociais e políticos traz con-
na diferença entre dar a cada qual se- sigo uma idéia de justiça. De fato,
gundo as suas necessidades ou segun- tais doutrinas e sistemas são apresen-
do a sua condição social, que pode tados frequentemente como modelos
ser hereditária —, ocorre que em to- para explicar por que houve no pas-
401 JUSTIFICACIONISMO

sado certas concepções de justiça, apresenta-se-nos como “um princí-


PDOT que essas concepções não são pio de ação segundo o qual os seres
“Justas” e que concepção ““equita- de uma mesma categoria essencial
tiva” (ou “Jjusta”) da justiça pode- devem ser tratados de modo idênti-
se proporcionar para substituí-las. co” (cf. De la Justice, 1945; do mes-
Conservadorismo, liberalismo, so- mo autor: The Idea of Justice and
clalismo, comunismo, anarquismo e the Problem of Argument, 1963;
outros movimentos e teorias podem Justice et Raison, 1963).
ser descritos do ponto de vista de
suas Idéias e ideais respectivos, con-
cernentes à idéia de Justiça.
JUSTIFICACIONISMO A distinção
feita por Hans Reichenbach entre os
Posto que um dos aspectos que a chamados ““contexto de descoberta”
questão de Justiça assumiu é o refe- e “contexto de justificação” foi uma
rente ao que se supõe ““dever-se” — das bases de um tipo de metodolo-
ou ““ser devido”* — a cada um, o gia, epistemologia e, mais em parti-
problema da justiça relacionou-se cular, de filosofia da ciência que
frequentemente com o da igualdade atendeu principal, se não exclusiva-
humana. Apresentaram-se várias clas- mente, ao segundo dos contextos
sificações de tipos de justiça nessa mencionados. Desenvolveu-se com
base — os tipos que Nozick descre- eles uma tendência que recebeu o no-
ve e denuncia como ““estruturados”. me de ““Justificacionismo”*. Também
Mencionaremos, a título de exemplo, foram usados, para tanto, outros no-
a classificação proposta por Chaim mes, como ““reconstrucionismo* e
Perelman sob a forma de uma ““di- “validacionismo””, mas ““Justifica-
lucidação formal”? da noção de Jjus- cionismo” tem sido geralmente o
tiça. Segundo esse autor, pode haver preferido.
seis tipos de afirmação: (1) À cada Em sua forma mais radical, o jus-
um o mesmo. (2) A cada um segun- tificacionismo, seguido por muitos
do seus méritos. (3) A cada um se- empiristas lógicos, descartou por
gundo suas obras. (4) A cada um completo o estudo de todo contexto
segundo suas necessidades. (5) A ca- distinto da justificação ou validação
da um segundo sua posição social. dos enunciados científicos. Portan-
(6) A cada um segundo o atribuído to, descartou toda e qualquer consi-
pela lei — a qual pode ser entendida deração psicológica, sociológica, his-
ou formalmente, ou como algo que tórica, etc., que reputou não expli-
tem sobretudo um conteúdo. De cativas das estruturas proposicionais
acordo com Perelman, todas essas de uma ciência ou de uma teoria
concepções são iIncompatíves entre científica; essas considerações podem
si, mas há nelas algo de comum, se explicar, no máximo, como se origi-
decidimos precisamente praticar so- naram as teorias científicas, mas to-
bre elas uma formalização suficien- da explicação dessa índole é vista pe-
te. Nesse caso, o conceito de justiça lo Justificacionismo como uma pseu-
JUSTIFICACIONISMO 402

do-explicação e como um exemplo lo racionalismo e o empirismo clás-


de falácia genética. Descartou, inclu- sico; alega simplesmente que o c0O-
sive, o estudo de como se desenvol- nhecimento — ou o que merece Ser
veram, por assim dizer, “intracien- assim chamado — é impossível.
tificamente” as teorias, pois não se Em vista das dificuldades que o
tratou de construir tais teorias, mas justificacionismo apresenta nas for-
de reconstruí-las lógica, metodológi- mas indicadas antes, alguns autores
ca e, talvez, também epistemologi- mostraram-se favoráveis a um “pro-
camente. babilismo”, o qual nega a infalibili-
No estudo de Imre Lakatos, ““Fal- dade (não só de fato mas também em
sification and Methodology of Scien- princípio) e admite unicamente a
tific Research”, em Criticism and the possibilidade de provar mais ou me-
Growth of Knowledge, 1970, ed. [. nos, melhor ou pior, uma teoria da-
Lakatos e A. Musgrave, aquele au- da. O “probabilismo”* vê-se, se nes-
tor apresenta o Justificacionismo co- se caso, segundo Lakatos, diante da
mo uma tese característica do racio- temida conclusão de que se nenhu-
nalismo e do empirismo clássicos, se- ma teoria pode ser infalivelmente
gundo os quais o conhecimento se
compõe de proposições cuja verda-
provada, nenhuma é, a rigor, mais
suscetível de ser provada do que
de (ou suposta verdade) se conside- qualquer outra.
ra provada, seja por evidências in- O neojJustificacionismo liga-se, de
tuitivas, por princípios racionais, por algum modo, ao falibilismo em ge-
experiência, etc., usando-se para tal ral e ao falsacionismo em particular,
fim, segundo os casos, a lógica de- mas sobretudo às formas dogmáti-
dutiva ou a lógica indutiva, ou algu- cas deste último. Por vezes, é difícil
ma combinação de ambas. A mera distinguir entre um justificacionismo
negação do Jjustificacionismo é o ce- ou neoJustificacionismo, muito ate-
ticismo, mas o cético não rechaça a nuado, e um falsacionismo muito
idéia do conhecimento mantida pe- estrito.
K


K A letra “K” é usada por Lukasie-"- por “ A”. “K” antepõe-se às fórmu-
wicz para representar o conetivo “e” las, demodo que “p A q” escreve-se,
ou conjunção, que nós simbolizamos na notação de Lukasiewicz, “Kpq””.
L
LEI A palavra nómos, usada
voupos, esta carece de justificação se não for
pelos gregos, e que se traduz por acompanhada da razão. A referida
“Tel”, tem várias significações: a de razão é considerada, por vezes, uma
“uso”, “costume”, “convenção”, “razão natural”.
“mandato”. Hoje, tende-se a distinguir entre o
Há, grosso modo, dois conceitos sentido não natural (jurídico, social,
de Lei: o da lei humana e o da lei na- moral, etc.) e o sentido natural de
tural. A lei natural é a que corres- “Jei”. Entretanto, como a expressão
ponde à physis. Embora a própria “lei natural” foi, e é, usada também
noção de physis (Natureza) tenha so- para designar a lei fundada na razão
frido mudanças que a fizeram pas- natural, de acordo com a tradição do
sar do reino natural para o humano jusnaturalismo, emprega-se “lei cien-
ou moral, de um modo geral distin- tífica” para mencionar as leis de que
guiu-se entre physis (Natureza) e no- tratam as ciências. A noção de lei
mos (lei); assim, os sofistas pergun- científica mais frequentemente elu-
tavam-se se algo era “por conven- cidada é a atinente às leis nas ciên-
ção”, vojuw, ou “por natureza”, vv- clas naturais, como a física ou a bio-
OEL. logia. Também cabe falar de leis cien-
Da lei enquanto social, humana e tíficas no caso das ciências sociais.
moral, indagou-se se o seu funda- Nem semprese distingue entre ““lei”
mento se encontra na vontade de e “princípio”* — fala-se, por exem-
Deus (seja “arbitrária”,seja “racio- plo, de “lei de inércia” e “princípio
nal”), na de um legislador, no con- de inércia”. Considerou-se, por ve-
senso de uma comunidade (seja ge- zes, que uma lei é uma formulação
ral, seja majoritário), ou nas exigên- de relações constantes observadas
cias de uma razão que se supõe eter- entre fenômenos. A chamada ““pas-
na e idêntica em todos os homens. sagem do fenômeno à lei” é, então,
Segundo se acentue a vontade ou a a passagem de regularidades obser-
razão na origem, no estabelecimen- vadas a uma fórmula que sintetiza
to e na fundamentação das leis, fala- essas regularidades e permite predi-
se de tendência voluntarista ou inte- zê-las no futuro. Essa concepção,
lectualista. Alguns autores negam que tem sua origem em Hume, re-
que a vontade ou a razão possam, quer o chamado “fundamento da in-
por si sós, desempenhar um papel dução”. Mas se o fundamento da in-
determinante ou decisivo e inclinam- dução é o postulado da uniformida-
se a considerar que, embora sem de- de da Natureza, pressupõe-se aqui-
cisão voluntária não possa haver lei, lo que se tratava justamente de de-
LIBERDADE 406

monstrar. Kant considerava que, em- de Galileu; (b) a chamada ei causal,


bora as leis naturais (científicas) ex- como pode ser y = gt; e (c) a denom!-
pressem as relações constantes entre nada lei de conservação, como na fór-
fenômenos antes indicadas, elas têm mula a = g, em que ““g” é uma cons-
de possuir, para serem admitidas, as tante. Em sentido estrito, as três equa-
características de universalidade e de ções representam a mesma coisa, mas
necessidade, características essas que também pode-se falar de três leis dis-
são determinadas pelo sistema de tintas. Por isso, estudou-se se haveria
conceitos do entendimento. Muitos a possibilidade de reduzi-las umas às
autores admitem a universalidade e outras.
a necessidade das leis, mas conside- (3) Mario Bunge indicou que, em
ram que não têm por que basear-se virtude da excessiva variedade de sig-
num sistema transcendental de con- nificados dados a “lei”, convém es-
celtos como o kantiano. tabelecer certas regras de designação,
Na medida em que são universais, e propõe as seguintes: (a) ““Lei,”,
as leis não são generalizações obti- que pode chamar-se simplesmente
das circunstancialmente. Enquanto “lei”, denota qualquer relação cons-
essas generalizações resultam da ob- tante e objetiva na Natureza; (Db)
servação de regularidades, as leis têm “Lel,””, ou enunciado nomológico,
que explicar (e predizer) regularida- designa qualquer hipótese geral que
des. Uma lei científica não se limita se refira mediatamente a uma lei; (c)
a descrever o que ocorre, dado um “Lei, ou enunciado nomoprag-
certo número de fatores; ela formu- mático, designa qualquer regra por
la também o que ocorreria sempre meio da qual possa regular-se (com
que se apresentasse um certo núme- ou sem êxito) o curso de uma ação;
ro de fatores. (d) “Lei”, ou enunciado metano-
Entre várias distinções que se pro- mológico, designa qualquer princí-
põem em face do conceito de lei, pio geral sobre a forma ou a ampli-
cumpre citar: tude, ou ambas, dos enunciados le-
(1) A distinção entre lei causal e gais pertencentes a uma parte deter-
lei estatística, operando a primeira minada da ciência. O significado de
num sistema determinista, ao passo “lei,” depende da esfera correspon-
que a segunda sofre de uma certa — dente, da, realidade; o de “lei”,
embora não forçosa — indetermina- lei” e “lei” depende da esfera do
ção. Essa diferença, que é ocasional- conhecimento: a “lei,” refere-se ao
mente útil, pode, não obstante, pro- conhecimento de uma lei; a “lei”
vocar confusão, porquanto não há refere-se à comprovação e uso da lei;
razão alguma pela qual uma lei es- a “lei” refere-se aos modelos da
tatística não possa ser ““causal”, lei.
(2) J. Kemeny distinguiu três tipos
deleis: (a) a que envolve uma descrição LIBERDADE Os gregos usaram O
completa, como a equação S= 1/2gtº termo éXevôepos (eleuteros), livre,
407 LIBERDADE

para designar o homem não escravi- sário. De acordo com o contexto em


zado. Com efeito, o homem livre que se discute, pode-se falar de liber-
possui liberdade — é Xevoeoia (eleu- dade pessoal ou privada, liberdade
teria) — e liberdade de espírito ou li- pública, política, social, liberdade de
berdade (éXevOcorótTns). O adjetivo ação, de palavra ou de pensamento,
latino liber deriva de liberto, o qual, liberdade moral, etc.
segundo Onians (Origens do pensa- Em todo caso, há três noções ou
mento europeu, 1951, pp. 472 ess.), modos básicos de entendê-la:
aplicava-se ao “homem em quem o 1. Uma liberdade que pode cha-
espírito de procriação encontra-se mar-se “natural” e que, quando é
naturalmente ativo”. Essa interpre- admitida, costuma entender-se como
tação explicaria por que, para o jo- a possibilidade de furtar-se (pelo me-
vem, identificava-se a plena incorpo- nos parcialmente) a uma ordem cós-
ração à comunidade como cidadão mica predeterminada e invariável, a
livre com o recebimento da toga vi- qual se apresenta como uma ““coa-
ril, ou toga libera. Homem livre é, ção” ou, melhor dizendo, como uma
então, o não submetido, e desse sig- “forçosidade””. Essa ordem cósmi-
nificado derivam os subsequentes co- ca pode ser entendida, por sua vez,
mo, por exemplo, o de ser capaz de de duas maneiras. De um lado, po-
fazer algo por si mesmo. A noção de de ser concebida como modus ope-
liberdade não só inclui a possibilida- randi do Destino. De outro, pode ser
de de decidir, mas também a de au- concebida como a ordem da Natu-
todeterminação, a idéia de responsa- reza, na medida em que, nesta, to-
bilidade para consigo mesmo, mas dos os acontecimentos estão estrei-
também para com a comunidade tamente imbricados. No primeiro ca-
(nesse caso, ser livre implica a assun- so, o que pode chamar-se ““liberda-
ção de algumas obrigações). de em face do Destino” não é neces-
Assim, desde muito cedo, a noção sariamente (para muitos gregos, pe-
de liberdade implica, de um lado, a lo menos) uma demonstração de
capacidade de fazer algo e, de outro, grandeza nu dignidade humana. Pelo
uma forma de limitação. contrário, só podem furtar-se ao des-
Na literatura filosófica, o concei- tino aqueles a quem o destino não se-
to de liberdade tem sido interpreta- lecionou e, portanto, ““os que real-
do em termos muito diversos. Em al- mente não importam”. Nesse caso,
guns casos, como a capacidade de ser livre significa simplesmente “não
autodeterminação, a possibilidade de . contar”* ou “contar pouco”. Os ho-
escolher — um ato da vontade —, mens que foram escolhidos pelo Des-
ou, então, a espontaneidade de não tino para realizá-lo não são livres, no
estar determinado por nada, a ausên- sentido de poderem fazer ““o que qui-
cia de interferências. Também se en- serem”. Não obstante, são livres
tende como liberdade de algo ou pa- num sentido superior. Aqui já en-
ra algo, ou para realizar algo neces- contramos uma das concepções da li-
LIBERDADE 408

berdade como realizações de uma ne- dependência. Numa comunidade hu-


cessidade (superior) a que aludimos mana determinada, essa autonomia
antes. No segundo caso — quando ou independência consiste na poss!-
a ordem cósmica é a “ordem natu- bilidade de reger seus próprios des-
ral” —, o problema da liberdade tinos, sem a interferência de outras
apresenta-se de outro modo: trata- comunidades. Nos indivíduos que in-
se de saber, então, até que ponto e tegram uma comunidade, essa auto-
em que medida um indivíduo pode nomia ou independência consiste pri-
(caso, aliás, o “deva””) furtar-se à es- mordialmente não em furtar-se à lei,
treita imbricação interna, ou supos- mas em proceder de acordo com as
tamente Interna, dos acontecimentos próprias leis, isto é, as leis do pró-
naturais. Várias respostas foram da- prio “Estado” — ou da ““cidade-
das a esse problema, das quais men- estado”.
cionaremos apenas duas. 3. Uma liberdade que pode cha-
Segundo alguns autores, tudo o mar-se “pessoal” e que também é
que pertence à alma, ainda que tam- concebida como ““autonomia” ou
bém seja “natural”, é “mais fino” “independência”, mas, nesse caso,
e “mais instável” do que o que per- como independência das pressões ou
tence aos corpos. Por conseguinte, coações procedentes da comunidade,
pode haver nas almas movimentos quer como sociedade, quer como Es-
voluntários e livres devido à maior tado. Embora se reconheça que to-
indeterminação dos elementos de que do indivíduo é membro de uma co-
estão compostas. munidade e embora se proclame que
Segundo outros, tudo o que per- se tem deveres para com esta, per-
tence à ordem da liberdade pertence mite-se-lhe abandonar por um tem-
à ordem da razão. O homem só é l1- po o seu “negócio” e consagrar-se
vre enquanto ser racional e disposto ao “ócio” (isto é, ao “estudo”*), pa-
a agir como ser racional. Portanto, ra desse modo poder cultivar melhor
é possível que tudo no cosmo esteja sua própria personalidade. Quando,
determinado, inclusive as vidas dos em vez de permitir-se ao indivíduo
homens. Mas, na medida em que es- desfrutar desse ócio, o próprio indi-
sas vidas são racionais e têm cons- víduo o toma como um direito seu,
ciência de que tudo está determina- então sua liberdade consiste, ou es-
do, elas gozam de liberdade. Nessa tá prestes a consistir, numa separa-
concepção, a liberdade é própria so- ção da comunidade, eventualmente
mente do ““sábio”*; todos os homens baseada na idéia de que há no indi-
são, por definição, racionais, mas só víduo uma realidade, ou parte de
o sábio é eminentemente racional. uma realidade, que não é, em termos
2. Uma liberdade que pode cha- estritos, soclal”* mas plenamente
mar-se ““social””' — ou ““política”. pessoal”,
Essa liberdade é concebida funda- Essas três concepções de liberda-
mentalmente como autonomia ou in- de e os inúmeros matizes de
cada
409 LIBERDADE

uma delas manifestaram-se em diver- tância da ação. Além disso, em mui-


sOs períodos da filosofia grega, mas tos casos, concebeu-se a liberdade
há nesta uma certa tendência para como a consciência da necessidade;
enfatizar cada vez mais a terceira quando se é um ser racional, chega-
concepção, unida ao que se indicou, se à compreensão do destino, e essa
no final, a propósito da primeira compreensão é essencialmente ““I1-
concepção. Tal foi, com frequência, bertadora”. Por isso, o sábio é aque-
a concepção da liberdade adotada le que compreende e aceita a ordem
por diferentes escolas socráticas, as- cósmica, ou então o Destino, que
sim como, e principalmente, pelos deixam de ser, então, pelo menos no
estóicos. ““O exterior”* — seja a so- sentido ““pessoal”*”, uma ““coação””.
cledade enquanto mera sociedade, Deixamos até agora de lado as
sejam os fenômenos da Natureza, se- concepções acerca da liberdade sus-
Jam inclusive as “paixões” — é con- tentadas por filósofos da estirpe de
siderado, de algtum modo, como Platão e Aristóteles. Isso porque, de
“opressão” ou princípio de opres- um lado, há nas concepções desses
são. A liberdade consiste em ““dispor pensadores alguns elementos Já des-
de si mesmo**. Mas dispor de si mes- critos, por exemplo, o ideal de “au-
mo é impossível, a menos que o 1n- tonomia”; de outro, também porque
divíduo tenha se libertado do ““exte- era mais conveniente dizer agora al-
rior” ou “externo”, o que só pode gumas palavras sobre eles, na medi!-
ser levado a cabo quando se reduzem da em que suas idéias a esse respeito
a um mínimo o que antes se cons!- nem sempre são redutíveis às que
derava como ““necessidades”'. Des- apresentamos até agora. São espe-
se modo, o homem livre acaba sen- clalmente importantes, nesse sentido,
do aquele que se atém somente, co- as idéias de Aristóteles. Encontramos
mo diziam os estóicos, ““às coisas nesse pensador, entre outras, uma
que estão em nós”, ao que, segun- concepção da liberdade na qual se
do indicava Sêneca, “está em nossa coordenam, de algtum modo, a or-
mão”. Por isso, Epicteto (Diat., IL, dem natural e a ordem moral. A
1, 22, 105) e Marco Aurélio (XI, 36) principal razão dessa coordenação
diziam que ninguém nos pode arre- encontra-se na importância que ad-
batar nossa livre escolha. Liberdade quire a noção de fim ou finalidade.
é, aqui, liberdade para ser si mesmo. Com efeito, como todos os proces-
E para os filósofos que, como os sos têm um fim para o qual tendem
neoplatônicos, equiparavam ser si “naturalmente”, também o homem
mesmo a poder consagrar-se à ““con- tende “naturalmente” para um fim,
templação””, a liberdade consiste que pode resumir-se numa palavra:
fundamentalmente em ““contem- “felicidade”. Pois bem, o homem
plar”* e em recusar a ação — Ou, o não tende a esse fim do mesmo mo-
que dá no mesmo, a agir como se do que os processos naturais tendem
não se agisse, tirando toda a impor- a seus fins. E característico do ho-
LIBERDADE 410

mem poder exercer ações voluntá- fistas e de alguns céticos — Aristó-


rias. Segundo Aristóteles, as ações teles considerou que um homem que
involuntárias são as produzidas por conhece o bem não pode deixar de
coação ou por ignorância; as volun- atuar de acordo com ele. À única
tárias são aquelas em que não há coisa que pode acontecer é que não
coação nem ignorância. Estas últi- nos deixem atuar — que, por exem-
mas aplicam-se às ações morais; plo, alguém que não conhece o bem
mas, para que haja uma ação moral, (como o tirano antes mencionado)
é preciso que à ação voluntária — li- nos force a atuar segundo o mal.
berdade da vontade — se some uma Mas, na medida do razoável, a atua-
escolha — eleição ou livre-arbítrio. ção livre em favor do bem predomi-
Essas duas formas de liberdade en- na sempre, porque não se supõe que
contram-se estreitamente relaciona- o homem esteja em nenhum sentido
das, ao passo que não haveria liber- radicalmente “corrompido”. Assim,
dade de escolha se a vontade não fos- a “causalidade própria” e a autode-
se livre, e esta não seria livre se não terminação em que se alicerçam al-
pudesse escolher ou eleger, mas é gumas noções gregas de liberdade es-
possível estabelecer uma distinção tão sempre vinculadas a uma finali1-
entre elas — pelos menos como dois dade, e esta é sempre entendida por
“momentos” da liberdade. Aristó- meio de uma consideração racional.
teles reconheceu que a noção de li- Os autores cristãos levaram em
berdade, especialmente, a de liberda- conta muitas das idéias sobre liber-
de de escolha, oferece alguns para- dade desenvolvidas pelos gregos, e
doxos. Por exemplo, se um tirano delas fizeram frequente uso. Mas,
nos força a cometer um ato mau (por sobretudo a partir de Santo Agosti-
exemplo, assassinar o nosso vizinho), nho, inseriram o problema da liber-
ameaçando-nos com represálias (por dade num contexto de referência
exemplo, com a morte de um filho) muito distinto: o do conflito entre a
no caso de não sér obedecido, somos liberdade humana e a chamada ““pre-
obrigados a fazer algo involuntaria- destinação divina” ou, pelo menos,
mente (porque não queríamos fazê- a “presciência divina”. Por esse mo-
lo) e, ao mesmo tempo, voluntaria- tivo, o problema da liberdade no
mente (pois optamos, apesar de tu- pensamento cristão esteve, com fre-
do, por fazê-lo). Mas, não obstante quência, estreitamente relacionado
esses paradoxos, Aristóteles acredi- com a questão da graça (ver).
tou que se pedia argumentar razoa- De um modo geral, os pensadores
velmente em favor da liberdade nas cristãos consideraram que a liberda-
duas citadas formas, especialmente de como simples libertas a coactio-
na medida em que se associou a li- ne (liberdade ante a coação) é insu-
berdade, sob qualquer forma, à ope- ficiente. Tampouco é suficiente,
em
ração da razão. Como a maior par- geral, a liberdade de eleição: o /libe-
te dos gregos — com exceção dos so- rum arbitrium (livre-arbítrio), em es-
411 LIBERDADE

pecial o liberum arbitrium differen- sem o auxílio de Deus inclina-se pa-


tiae. Com efeito, o livre-arbítrio po- ra o pecado. Por isso, o problema,
de ser bem ou mal usado. Apesar do nesse caso, não é tanto o que pode-
racionalismo e do intelectualismo de ria fazer o homem mas, sobretudo,
quase todos os filósofos antigos em como pode o homem usar seu li-
questões éticas, a possibilidade de vre-arbítrio para ser realmente livre.
usar bem ou mal o livre-arbítrio ti- Não basta, de fato, saber o que é O
nha sido patenteada em várias oca- bem: é necessário poder efetivamente
siões (por Aristóteles em Értic. Nic., inclinar-se para ele. Pois bem, a es-
III, 1112 a 7-9, e por Ovídio nos fa- ta questão, e em estreita relação com
mosos versos em que proclama que ela, soma-se a questão de como po-
aprova o bem, mas pratica o mal). de conciliar-se a liberdade de eleição
Entretanto, não fora enfatizada com do homem com a presciência divina.
o radicalismo de São Paulo ao indi- Segundo Santo Agostinho, são con-
car que “não faço o que prefiro ciliáveis (cf. De libero arbitrio, 1, 1-3;
e, sim, o que detesto”* (Romanos, II, 4-5; III, 6-8; IV, 9-11). Que o ho-
7:15). Desde o momento em que se mem possui uma vontade e que atua
proclamou que a natureza do ho- nesta ou naquela direção, é uma ex-
mem tinha sido completamente cor- periência pessoal indiscutível. Por
rompida pelo pecado original, o que outro lado, Deus sabe que o homem
surpreendeu não foi que o livre-ar- fará voluntariamente isto ou aquilo,
bítrio pudesse ser usado para o bem o que não exclui que o homem faça
ou para o mal, mas que fosse usa- voluntariamente Isto ou aquilo. O que
do, ou pudesse sê-lo, para o bem. não explica, segundo Santo Agosti-
Daí a insistência na graça (ver) e o nho, aquilo a que se pode chamar o
problema de se essa graça não supri- “mistério da liberdade”, mas, pelo
me o ser livre do homem. menos, esclarece que a presença de
A maior parte das questões acer- Deus não equivale a uma determina-
ca da liberdade humana no sentido ção dos atos voluntários de tal sorte
cristão foram debatidas e elucidadas que os converta em involuntários.
por Santo Agostinho. Como vimos Os escolásticos trataram com abun-
no verbete ARBÍTRIO (LIVRE-), dância das questões relativas ao li-
Santo Agostinho distingue entre l1- vre-arbitrio, à liberdade, à vontade,
vre-arbítrio, como possibilidade de à graça, etc. As teorias produzidas
eleição, e liberdade propriamente di- a esse respeito são numerosas e qua-
ta (libertas), como a realização do se sempre sutis. Limitar-nos-emos a
bem com vistas à beatitude, se não assinalar algumas posições adotadas.
for a própria beatitude. O livre-ar- Para Santo Tomás (cf. S. Theol., |
bítrio está intimamente ligado ao q. LXAXXILI, a Le 2; LXXXIIL a [;
exercício da vontade, pelo menos no I-II, q. VI, a 1), o homem goza de
sentido da “ação voluntária”; com livre-arbítrio ou liberdade de esco-
efeito, a vontade pode inclinar-se e lha. Também possui, naturalmente,
LIBERDADE 412

vontade, a qual está livre de coação, A teoria da liberdade de Santo To-


pois se assim não fosse não merece- más, em grande parte estribada em
ria esse nome. Mas estar livre de coa- Aristóteles, move-se num horizonte
ção é uma condição, não é toda a “intelectualista””. Foi dito que a teo-
vontade. É necessário, com efeito, ria da liberdade de Duns Escoto é in-
que algo acione a vontade. Esse algo teiramente ““voluntarista”'. Isso es-
é o intelecto, que apreende o bem co- tá certo na medida em que há nesse
mo objeto da vontade. Parece, des- pensador uma completa equiparação
se modo, que a liberdade fica elimi- entre libertas e voluntas, mas Duns
nada. Mas o que ocorre é que não se Escoto não suprime, por 1Sso, a elei-
reduz ao livre-arbítrio; a liberdade ção enquanto guiada por aquilo que
propriamente dita é também o que lo- se escolhe ou pode escolher. A rigor,
go viria a ser chamada uma ““espon- Duns Escoto, distingue entre vários
taneidade”'., Esta consiste em seguir tipos de liberdade: uma liberdade
o movimento natural próprio de um que é a de simplesmente querer ou
ser e, no caso do homem, consiste em recusar; outra, que é a de querer ou
seguir o movimento para o bem. As- recusar algo; ainda outra, finalmen-
sim, não há liberdade sem escolha, te, baseada nas duas anteriores, e
mas a liberdade não consiste unica- mais completa, que é a de querer ou
mente em escolher e ainda menos em recusar os efeitos possíveis daquilo
escolher a si mesma, de forma com- que se escolhe. Além disso, Duns Es-
pleta e absoluta: consiste em escolher coto declara taxativamente que o que
algo transcendente. Nessa escolha pa- causa o ato de querer na vontade é
ra a qual o homem usa o livre-arbí- algo distinto da vontade (Op. Ox.,
trio, pode haver erro. Pode, com efei- Lib. II, dist. 25). Se se fala de um
to, escolher-se mal ou, o que vem a “voluntarismo”* em Duns Escoto,
ser o mesmo, escolher o mal. Eseo não se deve, pois, concebê-lo como
homem escolhe por si mesmo e sem afirmação de que a vontade huma-
nenhuma ajuda de Deus, escolherá na é absoluta, ou de que no ato de
certamente o mal. Desse modo, afir- escolha a pessoa escolhe por si mes-
ma-se que existe completa liberdade ma o que vai fazer.
de escolha, já que tal liberdade é, co- Durante a Idade Média, discutiu-
mo indica Santo Tomás, “a causa de se frequentemente a questão da in-
seu próprio movimento, posto que, diferença na escolha a que nos refe-
por seu livre-arbítrio, o homem em- rimos em ARBÍTRIO (LIVRE-), e
penha-se em atuar”. Mas que haja se- da qual temos um testemunho nos
melhante liberdade de escolha com- debates em torno do problema cha-
pleta não significa que somente ela mado do ““asno de Buridan” (ver).
exista; a liberdade não é mera liber- Também se debateu a questão da
dade de indiferença, mas, ao contrá- compatibilidade ou incompatibilida-
rio, liberdade de diferenças ou visan- de entre a liberdade humana e a pres-
do as diferenças. ciência divina. Muitas e sutis teorias
413 LIBERDADE

a esse respeito foram propostas nos próprio futuro”. Outros autores (co-
séculos XVI e XVII, abordando, por mo Hobbes, Locke e Voltaire) foram
exemplo, a questão de como Deus mais propensos a destacar o elemen-
move a vontade do homem: se de um to do “que quero” no ““ser livre”.
modo completo, de um modo indi- A discussão entre ““libertários”' e
ferente, por um concurso, etc. Mas, “necessitários*”* adquiriu uma nova
Já desde o século XVI, apresentou-se dimensão no modo como Kant en-
também um problema que, sem ter frentou o problema.
substituído por completo a citada Em Kant, não se tratava de ver se
questão teológica, ocupou muitos fi- a necessidade sufoca a liberdade, ou
lósofos até ao presente: o problema se esta pode subsistir em face da ne-
de saber se se pode dizer que o ho- cessidade; tratava-se de saber como
mem é livre quando se declara que eram possíveis a liberdade e a neces-
há determinismo (ver) na Natureza. sidade. Usando a própria terminolo-
E o famoso problema de ““liberdade gia de Kant, podemos dizer que, no
versus necessidade” (ou ““necessida- seu entendimento, todos os que se
de versus liberdade”). Esse proble- haviam ocupado do problema t1-
ma suscitou a maior parte dos deba- nham errado fundamentalmente, por
tes entre os chamados ““libertários”” uma simples razão: por terem con-
(no sentido de ““defensores da real1- siderado a questão da liberdade uma
dade da liberdade”) e os chamados questão passível de ser decidida den-
“necessitários '* (no sentido de ““de- tro de uma única e determinada es-
fensores da realidade — e universa- fera. Diante disso, Kant estabelece
lidade — da necessidade”). que, no domínio dos fenômenos, que
Alguns autores modernos (sobre- é o reino da Natureza, há um com-
tudo Spinoza; em parte Leibniz; pleto determinismo; é totalmente im-
também em parte, embora por ra- possível “salvar” dentro dele a liber-
zões distintas, Hegel) sustentaram dade. Esta, em contrapartida, apre-
que a liberdade consiste fundamen- senta-se dentro do domínio do nú-
talmente em ““seguir a própria natu- meno (ver), que é fundamentalmen-
reza”, na medida em que essa natu- te o reino moral. A liberdade, em
reza se encontra em estreita relação suma, não é, nem pode ser, uma
(harmonia preestabelecida ou o que “questão física”; é só e unicamente
seja) com toda a realidade. Por 1is- uma questão moral. E podemos di-
so, Spinoza é considerado um dos zer, aqui, não só que há liberdade,
mais obstinados ““deterministas””. como que não pode não haver. A li-
Leibniz tentou conciliar o determi- berdade é, com efeito, um postula-
nismo com a liberdade, enfatizando do da moralidade. Q famoso confli-
sobretudo, no conceito de liberdade to entre a liberdade e o determinis-
(ou, segundo os casos, de livre-arbi- mo, que a “terceira antinomia” (ver)
trio), o momento de ““seguir a pró- expressa, é um conflito aparente. Is-
pria natureza enquanto prenhe do so não significa, por certo, que “a
LIBERDADE 414

realidade” fica inteiramente cindida que coloca a si mesmo, ou autoco-


em dois reinos que não têm, nem po- locação pura, é o que, segundo Fich-
dem ter, nenhum contato. Significa te, caracteriza o Eu puro, O qual se
unicamente que o homem não é li- constitui em objeto de si mesmo por
vre porque pode afastar-se do nexo um ato de liberdade. Os sistemas de-
causal; ele é livre (ou, eventualmen- terministas, argumenta Fichte, par-
te, faz-se livre) porque não é intei- tem do dado. Um sistema fundado
ramente uma realidade natural. Por na liberdade parte do colocar a si
1Sso0, pode ser causa sui (pelo menos mesmo. Ora, como o colocar a si
moralmente falando) e, em todo ca- mesmo equivale a estabelecer-se, a
so, introduzir no mundo possíveis constituir-se como o que se é, a l1-
começos de novas causações. Desse berdade de que fala Fichte parece-se
modo, a liberdade aparece como um muito com o que alguns autores cha-
começo — o que só é possível na mam ““necessidadeé”*. Com efeito, o
existência moral, visto que na Natu- eu que se constitui a si mesmo como
reza não há tais “começos”, mas, livre necessita, para ser, ser livre.
pelo contrário, tudo nela é, por as- Schelling considerou que a concep-
sim dizer, “continuação”. Existe, ção fichteana da liberdade é uma de-
pois, como disse Kant, a possibilida- terminação, ou autodeterminação,
de de “uma causalidade pela liber- que anula a própria liberdade que se
dade”. Em seu caráter empírico, o propunha fundar. Em suas Investi-
indivíduo deve submeter-se às leis da gações filosóficas sobre a natureza
Natureza. Em seu caráter inteligível, da liberdade humana, Schelling in-
o mesmo indivíduo pode considerar- siste em que a liberdade é anterior à
se livre. A expressão “o mesmo 1n- autocolocação: é pura e simples pos-
divíduo”* é aqui fundamental, pois sibilidade. Essa possibilidade é o ver-
a conexão entre o reino da liberda- dadeiro fundamento do Absoluto.
de e o da necessidade não é mera Jus- Por isso, o próprio Deus está funda-
taposição, porquanto se dá no âm- mentado na liberdade. Quanto a He-
bito de uma realidade unitária, ain- gel, concebe a liberdade fundamen-
da que pertencendo, em sua unida- talmente como ““liberdade da Idéia”.
de, a dois mundos. A Idéia liberta-se no transcurso de
Desse modo, a liberdade não só fi1- seu autodesenvolvimento dialético;
ca justificada, mas seu caráter ““po- não que a Idéia não fosse livre antes
sitivo”* é enfatizado ao máximo. Esse de seu autodesenvolvimento, mas
caráter consiste, em quase todos os sua liberdade não era a completa 1|i-
idealistas alemães pós-kantianos, na berdade do que entrou em si mesmo
possibilidade de fundar-se a si mes- para “recuperar-se”, A liberdade da
ma. A liberdade não é nenhuma rea- Idéia não consiste, pois, num |i-
lidade. Tampouco é atributo de ne- vre-arbítrio; este é apenas um mo-
nhuma realidade. É um ato que co- mento do autodesenvolvimento da
loca a si mesmo como livre. Esse ato Idéia rumo à sua própria liberdade.
415 LIBERDADE

A liberdade, metafisicamente falan- do muitas posições intermediárias en-


do, é a autodeterminação. Indicou- tre o determinismo completo e o com-
se amiúde que o elemento de deter- pleto ““libertarianismo”, também fo-
minação a que se refere Hegel é uma ram muitos e diversos os modos de en-
negação da liberdade, mas deve-se tender a liberdade e os argumentos
ter presente que essa determinação é aduzidos para a negar ou afirmar, ou
O inverso de uma coação externa. À para determinar o grau, ou graus, de
verdadeira liberdade, supõe Hegel, liberdade dentro de certas condições.
não é O acaso, mas a determinação Com efeito, “liberdade” podia en-
racional do próprio ser. Liberdade é, tender-se, entre outras maneiras, co-
em ultima instância, ser si mesmo. mo um conceito metafísico capaz de
Esta noção da liberdade, embora referir-se a todo o real; como um con-
com fundamento metafísico, não é, ceito basicamente psicológico que se
para Hegel, uma abstração: é a pró- referia ao indivíduo humano; como
pria realidade enquanto realidade um conceito sociológico que se refe-
universal e concreta. Por isso, He- ria à relação entre o homem e a socie-
gel trata de mostrar que a liberdade dade; como um conceito religioso,
como autolibertação manifesta-se moral, etc. Materialistas e “espiritua-
em todas as fases do desenvolvimen- listas” foram propensos a entender a
to da Idéia, inclusive, obviamente, a liberdade metafisicamente, e seus ar-
história. Pois a própria história, co- gumentos foram primordialmente
mo regresso da Idéia a si mesma, po- “metafísicos”* ou, pelo menos, ““es-
de compreender-se como libertação: peculativos”. Alguns autores, porém
é uma “libertação positiva”, porque (como John Stuart Mill), trataram o
não consiste em emancipar-se de ou- problema, do ponto de vista empiíri-
tra coisa, mas de si mesma. co, como uma questão de fato, e não
Durante o século XIX foram abun- de direito. Foram importantes, na
dantes os debates em torno da noção questão que ora nos ocupa, as análi-
de liberdade, em especial, sobre se o ses proporcionadas por pensadores
homem é, ou pode ser, livre tanto a como Maine de Biran e Lachelier, que
respeito dos fenômenos da Natureza estudaram o problema da liberdade
quanto em relação à sociedade. Seria como um problema que afeta funda-
simplificar a questão dizer que hou- mentalmente o ““eu interior”, inde-
ve dois grandes grupos de doutrinas: pendentemente de quaisquer determi-
umas, que negavam a possibilidade de nismos, sejam eles físicos ou, inclu-
liberdade, outras, que a afirmavam. sive, psíquicos. Também foram im-
É certo que os materialistas e meca- portantes, a esse respeito, os argu-
nicistas inclinaram-se a favor do de- mentos produzidos por Jules Lequier
terminismo e do ““necessitarismo”* e por Renouvier, assim como as ten-
universais, enquanto os “espiritualis- tativas de provar que há liberdade
tas” sustentavam ser possível a liber- mostrando que existe um “contingen-
dade. Mas, à parte o fato de ter havi- tismo” nas leis da Natureza (Bou-
LIBERDADE 416

troux). Algumas dessa análises con- garam até a dizer que o livre-arbítrio
tinuaram até Bergson, que tratou de pressupõe o determinismo. Por con-
mostrar que a consciência (ou o seguinte, insistiu-se em que a propo-
“eu””) é livre — e mesmo fundamen- sição “X encontra-se causalmente
talmente livre —, porquanto não se determinado” não implica necessa-
rege pelos esquemas da mecanização riamente a proposição ““X não é lI-
e espacialização, mediante os quais vre”'. Ser livre não significa, nesse
se entendem e organizam conceitual- caso, “proceder sem nenhuma cau-
mente os fenômenos naturais. Tam- sa”; não ser livre tampouco signifi-
bém há que levar em conta, nas dis- ca “proceder de acordo com uma
cussões dos filósofos do século XIX causa”. De certo modo, as concep-
sobre a liberdade, os que a trataram ções da liberdade (e, em muitos ca-
de um ponto de vista religioso (co- sos, do livre-arbítrio) que derivam
mo Kierkegaard e, por um diferente das análises a que estamos fazendo
prisma, Rosmini) e os que aborda- menção parecem-se com algumas das
ram a questão do ponto de vista so- mais ““tradicionails”: parecem-se,
cial ou histórico (como Marx e, em por exemplo, com alguns dos modos
geral, os que, sustentando um deter- como Aristóteles considerou a liber-
minismo natural e social, defende- dade. Em todo caso, esses pensado-
ram ao mesmo tempo a possibilida- res estão de acordo com Aristóteles
de de que o homem alcance um dia em que não se pode falar de uma
a liberdade por meio de um ““salto ação ou de um ato, a menos que es-
para a liberdade”). tejam determinados de algum modo;
Os autores de tendência analítica a própria noção de ação ou de ato
inclinaram-se para o exame do que está, portanto, relacionada com a de
significa dizer que um homem age, “determinação”. Acham-se intima-
ou pode agir, livremente. Caracteris- mente relacionados a esse tipo de
tica desse modo de ver a questão é análise os trabalhos dos autores que
a análise da significação de ““é livre” se dedicaram a investigar, sobretu-
oferecida por G. E. Moore. Segun- do, o significado de “posso”. Uma
do esse autor, dizer que um homem análise de “posso” mostra que essa
agiu livremente é simplesmente dizer expressão tem não uma, mas várias
que não estava constrangido ou coa- significações. Essa multiplicidade de
gido, ou seja, que poderia ter agido significações é, de algum modo, pa-
de outro modo se assim tivesse esco- ralela à possível multiplicidade de ex-
lhido [decidido]. Como
é possível di-
Zzer 185850, mesmo no caso em que os
plicações que podem ser oferecidas
para uma ação humana. Os ““analis-
atos do homem em questão fossem tas”* acusam os filósofos ““tradicio-
determinados, não poucos autores nais” de terem reduzido a um só SIg-
chegaram à conclusão de que não há nificado expressões como “posso”,
incompatibilidade entre o livre-arbí- “pude”, “era livre de fazer isto ou
trio e o determinismo — alguns che- aquilo”, etc.; portanto, esses filóso-
417 LIBERDADE

fos deviam decidir-se pelo determi- eu escolho (op. cit., II, 181). Dal
nismo ou pela liberdade. Isso equi- uma diferença entre a liberdade exis-
valia a querer explicar o problema e tencial e as demais formas de liber-
encontrar uma solução definitiva pa- dade. A liberdade formal, disse Jas-
ra ele. Os “analistas”, desde G. E. pers, era poder e livre-arbítrio; a l1-
Moore até J. L. Austin, sustentam berdade transcendental era a auto-
que há vários significados — ou vá- certeza na obediência a uma lei ev1-
rios usos — das expressões mencio- dente; a liberdade como idéia era a
nadas e outras análogas, e que, em vida em seu todo; a liberdade exis-
vez de tratar de explicar, cumpre des- tencial é a autocerteza de uma ori-
crever o que sucede quando se em- gem histórica da decisão. “Só na l1-
pregam expressões relativas a ações berdade existencial, que é simples-
voluntárias ou involuntárias, inten- mente inapreensível, isto é, para a
ções, propósitos, etc. Isso não equi- qual não existe nenhum conceito, a
vale a dizer que os “analistas” solu- consciência da liberdade se realiza”.
cionaram o problema da liberdade; Daí resulta que a liberdade jamais é
equivale, antes, a dizer que se nega- absoluta. Ou, melhor dizendo, só há
a
ram reconhecer que haja propria-
mente um ““problema da liberdade”.
liberdade na medida em que existe
um absoluto em movimento. O ho-
Os autores que se orientaram pa- mem faz-se então na liberdade.
ra um tipo de pensamento ““existen- A idéia de liberdade como um ““fa-
cial”* também usaram a ““análise”, zer a si mesmo (livremente)” é fun-
mas, em muitos casos, não foi uma damental em vários autores, sejam
análise linguística, e sim fenomeno- ou não explicitamente ““existenciais”.
lógica — e, em certa medida, onto- O ““primeiro Heidegger” não mani-
lógica. Comum a todos esses pensa- festara grande (ou detalhado) inte-
dores é a idéia de que a pergunta resse pelo “problema da liberdade”,
acerca da liberdade não é uma per- mas Isso devia-se ao fato de que em
gunta “objetiva”; trata-se menos de seu pensamento ocupava um lugar
saber se alguém é ou não livre, do mais preponderante a noção de
que de saber se “é” ou não liberda- transcendência do Dasein como um
de. Nesse sentido, pôde Jaspers di- “estar-no-mundo”. De todos os mo-
zer que ““a pergunta acerca de se a dos, na medida em que o Dasein se
liberdade existe tem sua origem em encontra sempre “mais além de si”,
mim mesmo, que quero que a haja” cabe dizer não só que é livre, mas que
(Philosophie, II, 175). A liberdade O é necessariamente. Isso soa como
converte-se, então, em liberdade exis- um paradoxo quando se apresenta
tencial. Pois a escolha existencial não dentro do contexto do debate clássi-
é o resultado de uma simples luta de co “liberdade-necessidade”* ou ““li-
motivos, nem a obediência a um im- berdade-determinação”, assim como
perativo objetivamente formulado; quando se entendem em sentido
o decisivo da escolha é o fato de que “não-existencial”* termos como ““ne-
LIBERDADE 418

cessariamente”*; mas soa menos co- Ortega y Gasset já escrevera em


mo um paradoxo quando se consi- 1930 que, sendo a vida humana al-
dera que essa “liberdade” não é nem go que tem de se fazer — um “afa-
uma liberdade de algo, nem uma li- zer” — não há outro remédio senão
berdade para algo; é, mais exatamen- decidir a cada momento o que se val
te, uma liberdade para “nada” — no fazer, isto é, o que “vou” fazer. Co-
sentido de não ser para nenhum dos mo o que se tem de fazer é a própria
entes. O Dasein liberta-se propria- vida, intransferível e insubornável,
mente “para consigo mesmo”; a li- cada um decide a cada momento o
berdade como transcendência do Da- que vai fazer e, concomitantemente,
sein é a projeção deste, segundo suas quando deci-
o que vai ser, inclusive
próprias possibilidades (também na de não decidir. Não há, portanto,
acepção ““existencial”* de ““possibi- outro remédio senão ““inventar”* con-
lidade”). tinuamente a si mesmo, decidindo a
Essa ““liberdade-transcendência” cada momento que ““si mesmo” val
muda de sinal com a Kehre heideg- se causar. A liberdade não é algo que
geriana, mas certas semelhanças es- temos, mas algo que somos — OU,
truturais entre o pensamento do talvez, que vamos sendo: somos
“primeiro Heidegger” e do “segun- obrigados a ser livres.
do Heidegger”? permitem entender a Este último enunciado poderia ser-
mudança. O “segundo (ou último) vir de lema para grande parte de O
Heidegger”* falou com maior fre- ser e o nada, de Sartre. Para come-
quência do que o ““primeiro”* acer- çar, a relação entre a existência e a
ca de “liberdade”, mas tratava-se da essência não é, no homem, o que é
“Tiberdade do fundamento”. Não há nas coisas. “A liberdade humana
mais liberdade, senão a relativa à precede a essência do homem e tor-
fundamentação (ou ““fundação”). na-a possível; a essência do ser en-
Em última instância, a liberdade contra-se em suspenso em sua liber-
é fundamentação do fundamento dade. Aquilo a que chamamos liber-
(Grund), mas, como a fundamenta- dade não pode distinguir-se, pois, do
ção não está, por sua vez, fundamen- ser da “realidade-humana'. O ho-
tada (ou “fundada”)), “o último mem não é primeiramente para ser
fundo”* desse fundamentar é um depois livre, pois não existe diferen-
“não fundamento” não um ça entre o ser do homem e seu “ser-
Grund, mas um Abgrund, ““abis- livre ** (L'être el le néant, p. 61). As-
mo”. A liberdade continua, aqui, sim, não se trata de debater se o ho-
unida à transcendência; não é liber- mem é ou não livre, porque só o po-
dade “de” ou “para” qualquer coi- de ser na medida em que é livre. O
sa, mas uma liberdade mais “funda- estudo da estrutura do ““para-si”
mental”** — ou mais “fundamentan- mostra que, embora a “realidade hu-
te” — e não menos radical por ope- mana” esteja no mundo, lançada en-
rar na finitude. tre as coisas, ela também está, neces-
419 LIBERDADE

sariamente, ““adistância” das coisas; respeito, entre o “primeiro Sartre”


“para-si” é, no momento, em rela- e o “último” (ou “segundo”*) Sar-
Ção às coisas, “negação”; é como tre, entre O ser e o nada e a Crítica
um ““vazio” ou um “buraco” que da razão dialética. A diferença é
fende a monolítica solidez do ““em- grande em muitos sentidos. Mas a
si”. É certo que a realidade humana questão da liberdade continua sen-
trata de ocultar à si mesma sua pró- do central também na segunda obra
pria liberdade e, portanto, sua res- acima citada. Em todo caso, é tão
ponsabilidade, mas isso ocorre por- central quanto o é no marxismo, co-
que sente angustia diante delas. O mo ““filosofia viva” e “filosofia 1n-
homem, afirmou Sartre, está conde- superável do nosso tempo”. Certos
nado a ser livre (op. cit., p. 515), ain- autores apresentaram o marxismo,
da que se furte, ou não queira saber dogmaticamente, como uma doutri-
de tal condenação. Por isso, inven- na consideravelmente determinista;
ta artifícios e subterfúgios que lhe embora se alegue que não é nenhum
permitam não ter de assumir sua li- determinismo “mecânico”, mas um
berdade radical, isto é, que lhe per- processo dialético, continua-se insis-
mitam não ter de enfrentar a deci- tindo em que é inútil opor-se à “mar-
são do que terá de fazer com tal li- cha da História”. Considera Sartre,
berdade. Isso não significa que haja com outros intérpretes, que otmar-
uma ““liberdade interna” ou uma xismo, enquanto método de Interpre-
“liberdade profunda”, de estilo tação e guia para a ação, não nega
bergsoniano. O ser “interior” é, em a liberdade humana. De fato, as l1-
última instância, tão “coisa” quan- mitações da liberdade são servidões
to o ser “exterior”; a liberdade não que o próprio homem se forja. É cer-
é interior nem exterior; em face des- to que, na medida em que está con-
ses seres, é “nada”. A liberdade é, dicionado pela ““escassez”* na esfera
uma vez mais, a própria liberdade do que Sartre chama ““prático-iner-
humana na medida em que faz livre- te”, o homem não nasce livre, mas
mente a si mesma. Existir humana- escravo (cf. Critique de la raison dia-
mente é escolher, e o que se escolhe lectique, p. 369). Contudo, essa ““es-
é a “escolha original” (e originária), cravidão não é natural, ou seja, não
para a qual não há razões e que, do é o resultado de um processo da Na-
ponto de vista racional, parece en- tureza; o próprio homem, ao cons-
tão ““injustificada”' e “absurda”. tituir-se como homem, produz seus
Nada disso quer dizer que a liberda- próprios grilhões, porquanto ““inter-
de consista em desligar-se das coisas naliza” a “escassez”. Por outro la-
e do mundo; só entrelaçada com as do, no curso de sua existência social,
coisas e o mundo a realidade huma- o homem dá — ainda que não ““ne-
na se realiza como liberdade. cessariamente”* — uma série de pas-
Sublinhou-se ocasionalmente que sos que são outras tantas ““totaliza-
existe uma diferença notória, a esse ções” dialéticas, por meio das quais
LIBERTAÇÃO 420

vai se libertando de suas próprias ser- Segundo Sartre, é a filosofia que,


vidões. As relações de produção — quando existir uma liberdade real pa-
como sustentava Marx — condicio- ra todos, substituirá o marxismo.
nam a história, mas não ao modo co- “Mas não possuímos nenhum meio,
mo na Natureza funcionam as ca- nenhum instrumento intelectual, ne-
deias causais. Nem a alienação nem nhuma experiência concreta, que nos
a obJjetivação constituem processos permita conceber essa liberdade ou
que ocorrem na Natureza. ““Se se essa filosofia” (Critique, p. 32).
quer outorgar ao pensamento mar-
xista toda a sua complexidade, será
necessário dizer que o homem, no
LIBERTAÇÃO
O conceito de liber-
tação foi empregado com frequência
período da exploração, é, ao mesmo em estreita relação com o de liberda-
tempo, tanto o produto do seu pró- de. Em princípio, a noção de liberta-
prio produto quanto um agente his- ção parece ajustar-se melhor ao cha-
tórico que não pode, de nenhum mo- mado ““conceito negativo” de liber-
do, ser confundido com um produ- dade (a “liberdade de”* ou “comrres-
to. Essa contradição não está imo-
bilizada; tem de ser apreendida no
peitoa) do que ao ““conceito posit!-
vo” (“liberdade para”). Com efeito,
próprio movimento da práxis. Fica- libertação parece ser, de imediato, um
rá, então, esclarecida a frase de En- movimento no sentido da aquisição
gels: os homens fazem sua história de liberdade em face de algum gêne-
com base em condições reais anterio- ro de coação, seja a que possa exer-
res (entre as quais figuram os carac- cer algum semelhante, seja a que pos-
teres adquiridos, as deformações im- sa derivar de algum fenômeno de ca-
postas pelo modo de trabalho e de ráter mais ou menos ““Iimpessoal”.
vida, a alienação, etc.), mas os pró- Nesse sentido, fala-se de liberdade de
prios homens, não as condições an- dominação na acepção de liberdade
teriores, fazem a história. Caso con- contra a dominação ou de liberdade do
trário, os homens converter-se 1am temor na acepção de liberdade con-
em meros veículos de forças inuma- tra o temor ou diante do temor.
nas que, por meio deles, governa- Os movimentos de libertação são
riam o mundo social. E certo que es- tão antigos quanto a existência de al-
sas condições existem e podem, so- guma forma de domínio de uns ho-
mente elas, proporcionar uma dire- mens sobre outros. Em todas as
ção e uma realidade material às mu- grandes civilizações, além disso —
danças que se preparam. Mas o mo- chinesa, indiana, antiga ocidental e
vimento da práxis humana supera- “próximo-oriental”, etc. — ocorre-
as, conservando-as” (Critique, p. ram não só processos de libertação,
61). Mediante essa superação, pode- inclusive processos violentos, mas
rá, por assim dizer, “ir-se fazendo” também doutrinas e teorias de toda
a liberdade, pois ela está tão por fa- espécie para justificar a libertação ou
zer quanto a filosofia da liberdade. para opor-se a ela. Em épocas mais
421 LIMITE

recentes, usou-se o termo ““liberta- 2. Fala-se também de limite, ré-


ção” em referência especial à liber- pas, enquanto extensão física de um
tação de maioria — nações inteiras, corpo. O que “termina” um corpo
a mulher — e a libertações de mi- é o seu limite, o qual é, ao mesmo
norias — nacionalidades oprimidas tempo, o limite do corpo contíguo
dentro de um corpo estatal mais am- (ou corpos contíguos). Nesse senti-
plo, considerado como a única na- do, a noção de limite está relaciona-
ção, negros, imigrantes, etc. —, as- da com as idéias de continuidade, de
sim como libertações de grupos que contiguidade e de lugar.
podem ser quantitativamente majo- 3. “Limite” usa-se também na lin-
ritários ou minoritários — proleta- guagem matemática em referência a
riado, campesinato, etc. —, mas que “transposição do limite”, “cálculo
têm um status especial dentro da lu- do infinito” (“cálculo integral”* e
ta de classes. “cálculo diferencial”).
Na medida em que a noção de l1- 4. Também se fala com frequên-
bertação está relacionada com a de cia de “limites do conhecimento”.
liberdade, constitui uma noção que Quando esses limites foram concebi!-
interessou, ou que poderia interessar, dos como determinados pelo que não
aos filosófos. se conhece, surgiu a noção de con-
ceito-limite (Grenzbegriff). Ser um
LIMITE O conceito de limite tem s1- conceito-limite é uma das possíveis
do usado em filosofia com significa- interpretações do númeno (ver) kan-
ções muito diversas e em contextos tiano. Alguns autores (por exemplo,
muito distintos. Valhinger) usaram a noção de con-
1. O conceito de limite está impli- ceito-limite em referência às ficções.
cito na idéia de “termo”, óõoeos, Pode-se usar a noção de conceito-li-
terminus, no sentido literal desse vo- mite para referir-se também a certos
cábulo. Trata-se, aqui, de um “limite conceitos que não designam realida-
lógico”, de uma ““delimitação con- de, mas que podem ser empregados
ceitual”* em virtude da qual se des- para descrever certas realidades.
taca, se extrai ou se abstrai um ele- 5. A noção de limite desempenha
mento lógico de [da apreensão del] um papel importante na filosofia de
uma realidade. Hegel, que considera ser o limite
Acha-se relacionada ao sentido (Grenze ou Schranke) dado com o
anterior a idéia de que a determina- propósito de ser superado. O limite
ção de uma realidade é, ao mesmo contém o momento da negação, sem
tempo, a limitação dessa realidade, o qual não há momento de afirma-
de acordo com o princípio omnis de- ção e “superação”.
terminatio negatio est. Nesse caso, o 6. O limite pode ser entendido na
conceito de limite tem um alcance acepção de ““horizonte” (ver), sem-
metafísico (ou ontológico) e não ape- pre que se sublinhe o caráter de de-
nas lógico. terminação positiva do incluído no
LINGUAGEM 422

horizonte por meio de sua “limita- suma, a linguagem é, em muitos pré-


ção”. socráticos, ““a linguagem do ser”.
7. Jaspers introduziu a noção de Os sofistas examinaram a lingua-
“situação-limite” e de diversos tipos gem tanto do ponto de vista grama-
de “situações-limites”* (Grenz-Situa- tical quanto do retórico e “huma-
fionen) em sua análise da existência no”. Um de seus principais proble-
humana. mas foi examinar em que medida e
8. A idéia de limite está ligada com até que ponto os nomes da lingua-
frequência a idéias como ““inacaba- gem são ou não convencionais. Em-
mento”, “finitude”, ““cessação”, bora as teorias dos sofistas sobre a
etc. Não obstante, embora qualquer linguagem não possam reduzir-se a
umas dessas últimas implique, de al- uma única fórmula, era muito co-
gum modo, a noção de limite, esta, mum, entre esses pensadores, susten-
por si só, não origina nenhuma de- tar uma doutrina convencionalista
las. Somente especificando o senti- da linguagem e dos nomes. Os no-
do de “limite” é possível entender es- mes são, segundo eles, convenções
te como ““inacabamento”, ““finitu- estabelecidas pelos homens com o
de”, etc. objetivo de “entenderem-se”*. Esse
problema foi acolhido por Platão em
LINGUAGEM Começando pelos seu diálogo Crátilos. Nesse diálogo,
pré-socráticos, muitos pensadores gre- figuram Crátilos (que representa He-
gos equipararam de algum modo ráclito) e Hermógenes (que represen-
“linguagem” e “razão”: ser um ta Demócrito e Protágoras). Cráti-
“animal racional” significava, em los defende a doutrina de que os no-
grande parte, ser “um ente capaz de mes estão naturalmente relacionados
falar” e, ao falar, refletir o univer- com as coisas; Hermógenes, a dou-
so. Com o que o universo podia fa- trina de que os nomes são conven-
lar, por assim dizer, de si mesmo ções. Mais especificamente, as posi-
através do homem. A linguagem é ções discutidas e as dificuldades en-
um momento do logos ou é o pró- contradas em cada uma delas podem
prio logos. O logos-linguagem era, ser esquematizadas do seguinte
pois, equivalente à estrutura intel1- modo:
gível da realidade. Desde os primór- 1. Suponhamos que ““os nomes se-
dios da “filosofia da linguagem” ve- Jam nomes por natureza”. Isso não
mos, portanto, até que ponto a ques- se refere simplesmente à origem, mas
tão da linguagem e da realidade co- também à natureza dos nomes. Sig-
mo realidade estão estreitamente im- nifica que: (a) cada nome designa
bricadas. Não obstante as diferenças uma colsa, não mais e não menos do
entre Heráclito e Parmênides, eles que essa coisa; (b) qualquer modifi-
coincidem, pelo menos, em conside- cação introduzida num nome faz de-
rar a linguagem como um aspecto da le outro nome que designa outra coi-
realidade: a “realidade falante”. Em sa, ou nenhum nome, o qual não de-
423 LINGUAGEM

signa nada; (c) tem que haver tantos compõe de uma série finita (ou infi-
nomes quantas co1lsas há; os sinôni- nita) de nomes independentes entre
mos são, em princípio, impossíveis; si, uma vez que é dada num contex-
(d) pronunciar ou escrever um ““no- to. (b2) A significação não é o mes-
me falso” é o mesmo que pronun- mo que denotação. (c2) Uma lingua-
clar ou escrever uma série de sons ou gem formalizada não é o mesmo que
signos sem qualquer significação. uma linguagem não-formalizada (lin-
Há, pelo menos, uma dificuldade guagem natural ou corrente).
para cada uma das proposições aci- Foram abundantes, entre os estói-
ma. (al) A linguagem compõe-se de cos (que, segundo Poblenz, foram os
partículas que não são nomes: pre- primeiros a analisar filosoficamente
posições, conJunções, etc. Deve-se a linguagem) e os céticos (que trata-
aceitar o “significado” (que logo se- ram em detalhe da teoria dos signos),
rá chamado ““sincategoremático””) as considerações sobre a linguagem
dessas partículas, pois, do contrário, em Aristóteles. Referimo-nos a algu-
não se poderia falar — ou escrever. mas de suas opiniões a tal respeito em
O que Hermógenes pretende é en- outros verbetes, como NOME (ver),
contrar uma linguagem composta de em que apresentamos, além do mais,
puros nomes Justapostos. (b1) A parte das doutrinas sobre a linguagem
maior parte dos nomes têm signifi- defendidas por autores medievais,
cados que vão mudando com o tem- -
modernos e contemporâneos. Foi um
po. (cl) Todos os nomes — exceto traço comum a todas essas doutrinas
os “formalizados** por convenção — (ao menos, às de Aristóteles e dos es-
têm com frequência um significado tóicos) a introdução de outro elemen-
“vago”: o nome não reproduz a rea- to, além da linguagem e da ““realida-
lidade, assim como a imagem não a de”: referimo-nos ao conceito, ou no-
reproduz, pois em tal caso não se- ção, que pode ser entendido como um
riam nome e imagem, mas a própria conceito mental, ou como um concei-
realidade. (dl) Há proposições fal- to lógico (ou, como se disse oportu-
sas que possuem significação, pois namente, “formal”**). Os problemas
esta última ocorre no âmbito de uma da linguagem complicam-se a partir
linguagem e não no âmbito das coisas. dessa época com a questão da relação
2. Suponhamos que os nomes se- entre expressão linguística e concei-
jam convencionais. Isso significa to mental, expressão lingúística e con-
que: (a) os nomes podem ser muda- ceito formal, e entre cada um desses
dos à vontade; (b) cada nome pode conceitos, na medida em que são lin-
designar qualquer coisa; (c) há, em gúuisticamente expressados, e “a rea-
princípio, um número infinito de no- lidade”. Tudo isso concorre para que
mes para cada coisa. os problemas da linguagem deixem de
Há também, pelo menos, uma di- ser estritamente “gramaticais” para
ficuldade para cada uma dessas pro- converterem-se em problemas ““lógi-
posições. (a2) A linguagem não se cos”.
LINGUAGEM 424

Durante a Idade Média, as ques- modidade, assim costumam ser cha-


tões relativas à linguagem foram tra- mados — pouco se ocuparam expli1-
tadas no âmbito das pesquisas lógi- citamente da linguagem como tema
cas — num sentido bem amplo de “à parte”, embora o problema da
“lógicas”. Com efeito, uma das ques- linguagem fosse fundamental, por
tÕes capitais a esse respeito consis- exemplo, em Leibniz. Os empiristas,
tlu nas repercussões que teve sobre em contrapartida, costumavam tra-
a linguagem a posição adotada na tar da linguagem extensamente; foi
doutrina dos universais (ver). Quem o caso de Hobbes, Locke, Berkeley
se ocupou mais diretamente de ques- e Hume. Todos eles enfatizaram que
tões da natureza e formas da lingua- a linguagem é um instrumento capi-
gem foram os autores que escreve- tal para o pensamento mas que, ao
ram sobre gramática especulativa, mesmo tempo, é preciso submetê-la
abordaram os “modos de significar” à “crítica”, com o propósito de não
e trataram do problema da signifi- cair nas armadilhas que ““o abuso da
cação e das significações. Podemos linguagem” nos prepara, ou nos po-
concluir que houve, durante a Ida- de preparar. Uma dessas armadilhas
de Média, numerosas investigações foi incansavelmente denunciada pe-
filosóficas acerca da linguagem, mas los empiristas, em particular pelos
que não houve, propriamente falan- nominalistas: a que consiste em fa-
do, uma ““filosofia da linguagem”. zer-nos crer que, por haver um ter-
A filosofia da linguagem só veio mo ou uma expressão na linguagem,
a aparecer durante a Idade Moder- existe uma realidade designada por
na — se bem que ainda não como esse termo ou expressão.
disciplina filosófica, como ocorreria Em outra linha de pesquisa da lin-
em data mais recente. Acompanhan- guagem encontram-se os que, como
do Urban, podemos falar, grosso Vico e Herder, por exemplo, se in-
modo, de duas atitudes a respeito da teressaram principalmente por estu-
linguagem: uma atitude de “confian- dar o modo ou modos como a lin-
ça na linguagem (e em seu poder guagem ou linguagens surgem na so-
lógico)” e uma atitude de ““descon- ciedade e ao longo da história. Nes-
fiança em relação à linguagem”. À se caso, a linguagem apresenta-se co-
primeira atitude é representada, so- mo um dos elementos constitutivos
bretudo, pelos racionalistas, espe- da realidade social e histórica huma-
cialmente na medida em que foram, na e não, ou não apenas, como um
ademais, como ocorreu com alguns tema de investigação gramatical, se-
deles, ““realistas” (na questão dos miótica ou lógica.
universais). A segunda é representa- O maior florescimento na filoso-
da sobretudo pelos empiristas e, em fia da linguagem foi alcançado du-
particular, pelos que também foram rante o século XX, quando se che-
nominalistas. Em geral, os raciona- gou, inclusive, a considerar a crítica
listas — ou os que, por razões de co- da linguagem, a análise da lingua-
425 LINGUAGEM

gem, etc., como a ocupação princi- gem do ponto de vista da teoria do


pal, se não única, da filosofia. As simbolo e do simbolismo.
chamadas tendências analíticas, as- Em Heidegger, a linguagem apre-
sim como as neopositivistas (positi- senta-se, primeiro, sob a forma de
vismo lógico e outras similares), so- fala (Rede) como um dos modos em
bressairam nesse interesse pelas ques-
que se manifesta a degradação ou a
tões relativas à estrutura da lingua- inautenticidade do Dasein. Em face
gem ou das linguagens. Limitar-nos- desse modo inautêntico, a autentici-
emos, por ora, a salientar que as dade parece consistir não na fala,
doutrinas contemporâneas sobre a nem sequer em alguma linguagem,
linguagem podem ser examinadas mas no ““silêncio””, no “chamado”
sob, pelo menos, os cinco aspectos da consciência. Mas esse modo ““exis-
seguintes: (1) doutrinas pragmatis- tenciário”* de considerar a linguagem
tas, nas quais a linguagem é exami- transforma-se, em Heidegger, num
nada sobretudo como um instrumen- modo propriamente ““ontológico”,
to. Em alguns casos, essas doutrinas quando a linguagem é vista como o
estão ligadas ao intuicionismo — pe- próprio falar do ser. A linguagem co-
lo menos no sentido de Bergson — mo um ““poetizar primeiro” é o mo-
na medida em que se supõe que so- do como pode efetuar-se a “irrup-
mente a intuição pode alcançar o ção do ser”, de tal sorte que lingua-
fundo da realidade e que a lingua- gem pode converter-se, então, em
gem se limita a apreender a realida- “um modo verbal do ser”.
de sob a forma de manipulação; (2) Em Wittgenstein, a linguagem apre-
doutrinas mais ou menos ““existen- senta-se primeiro como uma espécie
clalistas** da comunicação, nas quais de impedimento para conseguir a
a linguagem apresenta-se, sobretudo, “linguagem ideal”º, onde a estrutu-
como “linguagem humana” e como ra da linguagem corresponde à da
“manifestação da pessoa”. Embo- realidade. Mas, ao abandonar essa
ra não possa ser considerada estrita- noção da linguagem ideal, Wittgens-
mente uma doutrina ““existencial”, tein fez a pesquisa linguística enve-
é impossível deixar de mencionar redar por um caminho muito distin-
aqui a importância crescente que ad- to; de “pai dos formalistas”* conver-
quiriu o tema da linguagem em Hei- teu-se no ““pali dos lingúistas*”* — dos
degger; (3) doutrinas lógico-positivis- “filósofos de linguagem corrente”.
tas e lógico-atomistas, nas quais a O que importou, então, foi a noção
formalização das linguagens desem- dos “jogos lingúísticos”', de que nos
penha um papel importante; (4) dou- ocuparemos no verbete seguinte (ver
trinas que se interessaram pela aná- LINGUAGEM, JOGOS DE).
lise da “linguagem corrente”, tal co- Em ambos os casos, o tema da lin-
mo foram desenvolvidas pelos cha- guagem apresenta-se como um tema
mados ““filósofos de Oxford”; (5) sobremaneira rico e, a rigor, como
doutrinas que examinaram a lingua- o tema capital da filosofia. Por is-
LINGUAGEM 426

so, pôde-se dizer, de vários pontos guagem ““interior” e linguagem ““ex-


de vista, que o pensamento filosófi- terior”* (linguagem como expressão
co atual é, basicamente, uma ““filo- e até como comportamento); entre
sofia lingitística” — o que não é ape- linguagem real e linguagem ideal; lin-
nas uma filosofia da linguagem, mas guagem como instrumento de com-
a filosofia como linguagem acerca da preensão e linguagem como Instru-
linguagem. Isso parece ter ““triviali- mento de ação, etc. Passamos em se-
zado” a filosofia por tê-la colocado
fora da ““realidade””. Não obstante,
guida a referir-nos em maior detalhe
a uma série de classificações de que
é possível ver, tanto no caso de Hei- se tem falado profusamente no pen-
degger como no de Wittgenstein — samento contemporâneo.
e muitos outros pensadores contem- 1. As linguagens podem dividir-se
porâneos —, que o interesse pela lin- em naturais (chamadas, por vezes,
guagem e temas relativos à lingua- ordinárias) e artificiais. As lingua-
gem (a linguagem e o ser; os jogos gens naturais são as produzidas no
linguísticos; a possibilidade ou im- transcurso da evolução psicológica e
possibilidade da chamada ““lingua- histórica; exemplos de tais lingua-
gem privada”, etc.) só em aparência gens são o copta, O grego, O sueco,
é uma “fuga da realidade” e um me- o espanhol. As linguagens artificiais
ro “falar sobre a fala”. Alguns dos são as construídas de acordo com
enunciados mais intrigantes da filo- certas regras formais; são exemplos
sofia contemporânea apresentam-se dessas linguagens a lógica e a mate-
sob a forma de proposições acerca mática.
da linguagem. Para nos limitarmos 2. As linguagens podem dividir-se
aos dois autores citados em último em linguagens que mencionam (lin-
lugar, eis alguns de seus enunciados: guagem como menção) e linguagens
“os limites da minha linguagem são que anunciam qu expressam (lingua-
os limites do meu mundo” (primei- gens como anúncio ou como expres-
ro Wittgenstein); “a filosofia é uma são). Esta divisão foi defendida por
luta contra o enfeitiçamento da in- vários fenomenologistas, entre eles,
teligência por meio da linguagem” Max Scheler. Exemplo de uma lin-
(último Wittgenstein); “a linguagem guagem que menciona é a frase ““as
fala” (spricht). Seu falar (Sprechen) folhas das árvores estão verdes nes-
fala para nós no falado” (último te verão”. Exemplo de uma lingua-
Heidegger). gem que expressa é a frase “dói-me
No tocante à classificação das lin-
|

a cabeça”.
guagens, podem adotar-se vários 3. As linguagens podem ser clas-
pontos de vista. Podemos distinguir, sificadas segundo três funções: a ex-
para começar, entre uma linguagem pressão, a chamada e a representa-
formalizada e uma linguagem não ção. Esta classificação foi proposta
formalizada; entre linguagem cien- por Karl Búhler. Exemplo de lingua-
tífica e linguagem corrente; entre lin- gem como expressão é a frase “que
427 LINGUAGEM

alegria te ver!”* Exemplo de lingua- as cognoscitivas no sentido antes as-


gem como chamada é a frase “vem sinalado. As linguagens prescritivas
cá!” Exemplo de linguagem como são as que proporcionam normas.
representação é a frase ““o sol saiu Estas últimas podem ser imperativas
hoje às 6h45min”'. — ou linguagens que formulam man-
4, Pode-se distinguir, em todo fe- damentos — e valorativas — ou lin-
nômeno linguístico, entre a lingua- guagens que formulam Juízos de
gem propriamente dita, a lingua (ou valor.
fala) e a palavra. Essas distinções fo- 7. As linguagens podem ser rever-
ram propostas por Ferdinand de sSíveis e irreversíveis. As linguagens
Saussure. A linguagem propriamente reversíveis são as compostas de ex-
dita é a expressão da estrutura co- pressões cujos elementos podem ter
mum a todo o idioma. A língua (ou sua ordem alterada sem que se mo-
fala) é a linguagem como fenômeno difique a significação dessas expres-
de uma comunidade humana. A pa- sões. Exemplo de linguagens rever-
lavra é a linguagem como fenôme- síveis são as linguagens científicas.
no individual. Exemplo de linguagens irreversível é
5. As linguagens podem dividir-se a linguagem poética.
em cognoscitivas e emotivas. Essa As classificações acima entrecru-
classificação foi adotada por muitos zam-se com frequência. Também po-
autores com maiores ou menores dem combinar-se de vários modos.
modificações. Também recebeu di1- Discutiu-se, por vezes, até que pon-
versos nomes. As linguagens cognos- to é legítimo estabelecer linhas divi-
citivas foram, por vezes, denomina- sórias rigorosas entre as diversas lin-
das indicativas, enunciativas, refe- guagens ou entre as diversas funções
renciais e simbólicas. As linguagens da linguagem. Quatro opiniões são
emotivas também foram chamadas possíveis: (a) as linhas divisórias são
evocativas. As linguagens cognosci- rigorosas, de modo que, por exem-
tivas são as que enunciam se algo é plo, uma expressão em linguagem
ou não é, se uma proposição é ver- poética nunca poderá ser cognosci-
dadeira ou falsa. As linguagens emo- tiva e vice-versa; (b) as linhas divi-
tivas expressam simplesmente o sórias devem manter-se, mas somen-
acontecer psíquico de um sujeito e, te como resultado de uma concepção
por isso, não se pode dizer de suas pragmática; são aceitáveis se forem
proposições que são verdadeiras ou úteis ou fecundas; (c) as linhas divi-
falsas. Exemplos de linguagens cog- sórias devem ser mantidas, mas sim-
noscitivas são as linguagens das ciên- plesmente como tendência, já que
cias. Exemplo de linguagens emoti- existe, por assim dizer, um ““contí-
vas são as poéticas. nuo” da linguagem; (d) não há li-
6. As linguagens podem dividir-se nhas divisórias. A opinião (c) é a
em indicativas e prescritivas. As lin- mais atraente; é também a mais di-
guagens indicativas coincidem com fícil de se demonstrar.
LINGUAGEM (JOGOS DE) 428

LINGUAGEM (JOGOS DE) A ex- jogos de linguagem. A linguagem


pressão ““jogos de linguagem” (ou não é, para Wittgenstein, uma tra-
“Jogos linguísticos”) — Sprachspie- ma de significações independentes da
len, language-games — foi introdu- vida de quem a usa: é uma trama in-
zida por Wittgenstein em seus cur- tegrada com a trama de nossa vida.
sos e acolhida em suas Investigações A linguagem é uma atividade, ou,
filosóficas (Philosophische Untersu- melhor dizendo, um complexo ou
chungen, 1953). Em substância, con- trama de atividades regidas por re-
siste em afirmar que o mais primá- gras — as “regras do jogo”. Por is-
rio na linguagem não é a significa- so, falar uma linguagem é parte de
ção, mas o uso. Para entender uma uma atividade ou de uma forma
linguagem cumpre entender como de vida (Lebensform) (op. cit., 23).
funciona. Pois bem, a linguagem po- Exemplos de tais de linguagem são,
de ser comparada a um jogo; há tan- entre outros: dar ordens e obedecê-
tas linguagens quantos jogos de lin- las; descrever um objeto segundo a
guagem. Portanto, compreender uma sua aparência ou dando suas medi-
palavra numa linguagem não é essen- das; informar sobre um aconteci-
clalmente compreender a sua signi- mento; formar e comprovar uma hi-
ficação, mas saber como funciona, pótese; inventar chistes e contá-los;
ou como se usa, dentro de um des- resolver um problema em aritmé-
ses “jogos”. A noção de significa- tica prática; perguntar, agradecer,
ção, ao invés de iluminar a lingua- praguejar, saudar, rogar.
gem, cerca-a de uma espécie de né- O que poderia chamar-se a ““legi-
voa (op. cit., 5). Em suma, o funda - timidade” ou a “Justificação” deum
mental da linguagem como jogo de Jogo de linguagem baseia-se em sua
linguagem é o modo de usá-la (Arts Integração com atividades vitais. Uma
des Gebrauchs) (op. cit., 10). Como linguagem (um jogo de linguagem) é
as palavras que usamos têm uma como um sistema de rodas. Se essas
aparência uniforme quando as le- rodas engrenam umas com outras e
mos, ou as pronunciamos, ou as ou- com a realidade, a linguagem é justi-
vimos, somos propensos a pensar ficada. Mas ainda que engrenem
que têm uma significação uniforme. umas com outras, se não engrenarem
Caímos, assim, na armadilha que com a realidade a linguagem carece-
nos estende a idéia da significação rá de base. Por isso Wittgenstein com-
enquanto suposto elemento ideal in- parou o Jogo de linguagem filosófi-
variável, em todos os sentidos da ex- co com uma roda que gira livremen-
pressão. Quando nos desvencilha- te, sem engrenar com o real, ou com
mos nessa névoa, podemos com- as atividades humanas integradas ao
preender não só o caráter básico da real.
linguagem, mas também a multipli- A noção wittgensteiniana de jogo
cidade (para Wittgenstein pratica- de linguagem parece contradizer uma
mente infinita) das linguagens — ou das idéias-chaves desse pensador: a
429 LINGUAGEM PRIVADA

de que o essencial num termo não é mente incomunicável. Também


sua significação, mas seu uso. Com pode-se interpretar como ““lingua-
efeito, a menos que “jogo” tenha gem privada” uma intuição no sen-
um significado, parece não haver tido bergsoniano do termo. Pode-se
possibilidade de relacionar uns jogos alegar que nem no caso da visão,
de linguagem com outros. À 1sso res- nem no da intuição, se trata de lin-
ponde Wittgenstein indicando que o guagem, já que, ao serem incomu-
que constitui a unidade dos jogos de nicáveis, fica-lhes vedado o acesso a
linguagem é ““o ar de família” (as toda possível expressão lingúística.
Familienâahnlichkeiten (op. cit., 67). Também se pode alegar que a mes-
Os jogos formam, pois, uma famií- ma visão mística ou a mesma intui-
lia; em todo caso, não se reduzem a ção podem ser possuídas por mais de
uma significação única. A idéia de uma pessoa, e, nesse caso, desapa-
que há uma significação única de rece a característica de ser algo com-
“jogo” impede que se saiba em que pletamente ““privado” ou ““particu-
consiste propriamente um jogo e, lar”. Entretanto, na medida em que
por conseguinte, um jogo de lin- o visto ou o intuído geram um mo-
guagem. do de “falar consigo mesmo”, dis-
tinto de qualquer outro ““público”,
LINGUAGEM PRIVADA Susci- e na medida em que cada visão mis-
tou-se em diversas ocasiões o proble- tica e cada intuição são irredutíveis
ma de se há, ou pode haver, uma lin- a outras, ou distintas de outras,
guagem privada, ou seja, uma lingua- pode-se afirmar que está implícita
gem particular de uma única pessoa, nelas a noção de “linguagem priva-
que somente essa pessoa seja capaz da”. Também se pode interpretar co-
de expressar e entender. Embora a mo “linguagem privada” a que uma
expressão “linguagem privada” (ou pessoa usa, ou pode usar, de tal for-
“linguagem particular”) só tenha t1- ma que só ela a entende e só ela é ca-
do curso na literatura filosófica a paz de a “traduzir” para outra. É o
partir aproximadamente de 1950, nas caso, por exemplo, da linguagem que
discussões em torno das seções 243 poderia inventar um homem que
a 315 das Investigações filosóficas nascesse e vivesse solitário numa ilha
(Philosophische Untersuchungen, desde antes de ter aprendido a falar.
1953), de Wittgenstein, a noção de- Pois bem, o problema da possibi-
signada por tal expressão é anterior lidade ou impossibilidade de uma
àquela data. Com efeito, pode-se in- “linguagem privada” adquiriu sta-
terpretar como uma ““linguagem pri- tus de natureza filosófica quando
vada” a visão mística, na medida em Wittgenstein o formulou e tratou de
que é entendida pela pessoa que pos- resolvê-lo contra a possibilidade de
sul, ou que se supõe que possui, es- tal linguagem. Wittgenstein tinha em
Sa visão, mas não por outras pessoas. conta, fundamentalmente, um tipo
Por 1sso, a visão mística é basica- de linguagem privada que se referia
LINGUAGEM PRIVADA 430

aos próprios processos psíquicos e, sações estarão vinculadas a minhas


em especial, às próprias sensações. experiências naturais de sensação?
Tal linguagem era a dos enunciados Nesse caso, minha linguagem não é
protocolares; esses enunciados des- “privada'. Outro poderia entendê-la
crevem algo experimentado por uma tanto quanto eu” (Philosophische
pessoa, mas descrevem-no enquan- Untersuchungen, 256). Se uma lin-
to experimentado pela pessoa — des- guagem fosse privada, não haveria
crevem, portanto, as sensações que a possibilidade de que fosse ““corri-
uma pessoa experimenta. Alguns au- gida”* por outra pessoa; não haveria
tores, como Carnap, propuseram a distinção entre obedecer a uma regra
doutrina do fisicalismo, com a fina- e pensar que se obedece a uma regra.
lidade de tornar possível a intersub- Além disso, numa linguagem pura-
Jetividade; propuseram inclusive que mente privada não haveria a possi-
todo enunciado protocolar é parte bilidade de comprovar se a memó-
integrante de uma linguagem fisica- ria comete ou não erros. As palavras
lista. Outros autores admitiram ha- de sensações, argumenta Wittgens-
ver certos enunciados que não são tein, estão submetidas a um critério
partes da linguagem fisicalista, mas público; a rigor, só podem estar sub-
pertencem a uma “linguagem priva- metidas a um critério público, pois
da”. Wittgenstein opôs-se a esta úl- não há possibilidade de um ““crité-
tima interpretação; mas, embora pa- rio privado”. Wittgenstein nega que
reça haver algo de fisicalismo em sua tese a esse respeito seja behavio-
suas idéias a tal respeito, elas não po- rista; se tudo, exceto o comporta-
dem ser simplesmente interpretadas mento, é uma ficção, não é uma
como puramente fisicalistas. Com ficção psicológica, mas gramatical
efeito, sua tese de que a linguagem (ibid., 307). O behaviorismo (psico-
privada não é possível deriva da sua lógico) não é, a rigor, antidualista;
idéia de linguagem como ““forma de ele afirma que a linguagem se reduz
vida” e, sobretudo, da idéia de ““jo- a comportamentos, mas deixa em
go de linguagem” (ver LINGUA- suspenso (e, portanto, em princípio
GEM, JOGOS DE) ou ““jogo lin- admite) a possibilidade de uma lin-
guístico””. Segundo Wittgenstein, as guagem privada. O behaviorismo
sensações podem ser privadas; a ex- gramatical, em contrapartida, evita
periência de uma pessoa é própria e o dualismo, pois elimina toda e qual-
exclusiva dessa pessoa. Mas Isso não quer possibilidade de tal linguagem.
garante que exista uma linguagem As teses de Wittgenstein sobre a
privada. “O que ocorre com a lin- impossibilidade de toda linguagem
guagem que descreve minhas vivên- privada suscitaram numerosas dis-
clas eternas e que só eu posso enten- cussões. Assim, por exemplo, R.
der? Como designo minhas sensa- Rhees defendeu Wittgenstein mos-
ções com palavras? Como o fazemos trando que “uma linguagem inven-
de costume? Minhas palavras de sen- tada” seria algo como uma série de
431 LÓGICA

figuras num papel de parede; não há propósito; prescinde, pois, de lingua-


linguagem, senão como parte de um gens, ou partes de linguagens, que
modo de viver. Inventar sinais ads- não tenham função determinada e
critos a vários objetos não é propria- que não sejam informativas nem
mente uma linguagem. Em suma: “a mesmo para quem usa a linguagem
linguagem é algo falado” (“Sympo- (“Wittgenstein on Private Language”,
sium: “Can There Be a Private Lan- Journal of Philosophy, 56, 1959,
guage? ”, em Proceedings of the 516-28). Houve outros debates em
Aristotelian Society, Supl. Vol. 28, torno da noção de linguagem priva-
1954, pp. 77-94). A. J. Ayer, em da; os que foram acima resumidos
compensação, impugnou as teses de são suficientes para se entender que
Wittgenstein, indicando que um Ro- direções a discussão tomou.
binson Crusoe que tivesse sido joga-
do numa ilha deserta antes de apren- LÓGICA Foram aplicados vários
der a falar, poderia denominar coi- qualificativos à “lógica”.
sas e inventar uma linguagem para Lógica oriental é O nome que se dá
si mesmo; ainda que tivesse inventa- aos trabalhos lógicos desenvolvidos
do uma linguagem para poder comu- sobretudo no âmbito dos sistemas da
nicar-se depois com semelhantes filosofia indiana; por exemplo, na
seus, continuaria sendo “uma inicia- posterior lógica Nyãya.
tiva privada”. Mas, além de deno- Lógica ocidental é O nome quere-
minar coisas, tal Robinson poderia cebe o conjunto do trabalho lógico
denominar suas próprias sensações no Ocidente (ou nas demais partes do
sem ter que verificar “publicamen- globo que seguem a tradição ociden-
te” suas denominações. “Não é ne- tal), desde os gregos até à presente
cessário para uma pessoa que usa data. Os qualificativos subseqiientes
uma linguagem dotada de significa- referem-se todos a essa lógica.
ção que outra pessoa a entenda; tam- Lógica tradicional (também cha-
pouco é necessário, ademais, que, mada às vezes clássica) é o nome que
para um enunciado descritivo ser en- recebe toda a lógica até Boole e Fre-
tendido por outra pessoa, ela seja ca- ge; por vezes, toda a lógica matemá-
paz de observar o que descreve” tica ou logística, qualquer que seja
(ibid., pp. 63-76). Clyde Laurence a época a que pertença; por vezes,
Hardin também refutou as teses de é a designação usada a respeito da
Wittgenstein: uma linguagem priva- lógica aristotélico-escolástica (quer
da (entende por isso uma linguagem na forma medieval, quer, simples-
puramente fenomenista) é psicologi- mente, na neo-escolástica); por ve-
camente improvável, mas não é im- zes, a lógica produzida entre Aristó-
possível do ponto de vista lógico. teles (exclusive) e a lógica escolásti-
Wittgenstein supõe que denominar ca medieval; por vezes, enfim, toda
só é possível quando os nomes pu- a lógica antiga e medieval. Dada a
tativos podem ser usados com certo multiplicidade de sentidos que tem
LÓGICA 432

tal expressão, convém ou limitá-la desde meados do século XIX até a


àqueles casos em que o contexto in- presente data. É comum dar também
dica sem dificuldade de que tipo de a essa lógica o nome de lógica aris-
trabalho lógico se trata, ou usá-la totélico-escolástica.
num sentido deliberadamente vago, Logica moderna é O nome que re-
sem pretender descrever uma orien- cebe, por vezes, a lógica de autores
tação ou período lógicos determina- da Época Moderna (a partir do século
dos e referindo-se apenas ““ao que se XVI), inclusive a de autores renascen-
vinha fazendo usualmente em lóg1- tistas; mas, às vezes, assim se deno-
ca no passado” mina a lógica iniciada por Boole e,
Lógica antiga é o nome que se dá sobretudo, Frege. Ativemo-nos com
à lógica grega e heleníistico-romana frequência a este último uso.
desde os pré-socráticos até Boécio, Lógica contemporânea chama-se,
aproximadamente. por vezes, o conjunto do trabalho ló-
Logica grega designa o trabalho gico desde meados do século XIX,
lógico desde os pré-socráticos até aos seja qual for a tendência a que seus
comentaristas gregos do Estagirita e autores pertençam; outras vezes, O
estóicos. trabalho lógico do século XX, ou
Lógica aristotélica é a lógica ex- apenas o de anos mais recentes; ou,
posta no Organon e em algumas ou- ainda, unicamente o trabalho lógico
tras partes do Corpus aristotelicum. na linha de Boole e Frege.
Constitui, por um lado, uma parte Também têm sido usadas com cer-
da lógica antiga; por outro, um ele- ta frequência as expressões ““lógica
mento fundamental da lógica tradi- simbólica”, “lógica matemática” e,
cional (nos sentidos primeiro e ter- durante um tempo, “logística”, pa-
celiro acima apontados). ra referir-se à mencionada ““lógica
Lógica estóica ou também estóico- contemporânea”. Empregou-se oca-
megárica é a desenvolvida principal- sionalmente a expressão “lógica no-
mente por alguns megáricos e estói- va” ou “nova lógica”.
cos, mas igualmente elaborada por Segundo Bochenski, a história da
muitos autores da Antiguidade e Ida- lógica pode ser representada median-
de Média. te uma sinusóide, com três períodos
Lógica medieval é nome que se
Oo
de grande desenvolvimento: de Aris-
costuma dar à lógica produzida en- tóteles ao estoicismo; a Idade Média
tre Boécio e o século XV (inclusive). nos séculos XII, XIII, XIV e parte
Lógica escolástica é, principal- do XV; a Época Contemporânea,
mente, a desenvolvida por autores desde Boole ou Frege. Nos períodos
escolásticos durante os séculos XII] intermediários produziram-se movi-
a XV. mentos de retrocesso, em parte por
Lógica neo-escolástica é a contida excessiva simplificação, em parte
nos textos de autores dessa tendên- por
esquecimento da tradição. Houve,
cia (principalmente neotomistas), por certo, exceções nos períodos de
433 LÓGICA

“retrocesso”, mas não conseguem correspondente distinção entre leis e


modificar muito a imagem delinea- regras (que no período aristotélico
da, pois até a grande exceção da não tinha sido formulada ou, no má-
Epoca Moderna — Leibniz — per- ximo, tinha sido implicitamente su-
maneceu durante muito tempo sem posta), constituem, pois, alguns dos
influência apreciável. mais destacados resultados dessa
Supõe-se que a lógica ocidental co- lógica.
meçou com Aristóteles. Durante mui- Muitos são os autores do período
to tempo, acreditou-se inclusive que pós-aristotélico que poderiam ser
a lógica aristotélica era simplesmen- mencionados como eminentes na his-
te a lógica; testemunho disso é a fa- tória da lógica; temos, entre eles, Ga-
mosa (e errônea) frase de Kant, se- leno, Porfírio — cuja Isagoge susci-
gundo a qual a lógica não dera, des- tou na Idade Média o problema dos
de Aristóteles, nenhum passo atrás, universais — e Alexandre de Afro-
mas tampouco nenhum passo à fren- disia. A maior parte de suas contri-
te. Depois, esteve na moda, durante buições foram examinadas por Boé-
algum tempo, considerar que a lógi- cio. Seus comentários de Porfirio,
ca de Aristóteles ou era uma manifes- das Categorias, dos Analíticos e dos
tação particular da sua metafísica e Tópicos, de Aristóteles, seus livros
da sua cosmologia, ou era um frag- sobre a definição e a divisão, seus
mento muito reduzido da lógica — tratados sobre os silogismos categó-
tão reduzido que, segundo esta últi- ricos e hipotéticos, constituíram a
ma opinião, poderia reduzir-se a um base da maior parte dos estudos de
fragmento da lógica quantificacional lógica na Idade Média; sua influên-
elementar. Também nesse caso, a ver- cia persistiu, inclusive, depois do sé-
dade se encontra num ponto médio. culo XIII, quando se conheceu na ín-
Com efeito, somadas às leis silogísti- tegra, no Ocidente, o Organon aris-
cas, encontramos em Aristóteles, em- totélico. Mas, desde Boécio até ao sé-
bora apresentadas de forma pouco culo XIII, a atividade na lógica não
sistemática e segura, diversas leis da teve maior destaque. Em compensa-
lógica da identidade, das classes e das ção, a partir do século XIII e até ao
relações. século XIV, houve, como assinala-
Como observou Lukasiewicz, a ló- mos antes, um novo florescimento
gica aristotélica é, principalmente, da lógica. Em conjunto com o desen-
uma lógica dos termos; por 1sSso, sua volvimento dos problemas que já ti-
contribuição mais importante encon- nham sido tratados na lógica antiga,
tra-se na lógica quantificacional. A há na lógica medieval o que Boch-
lógica dos megáricos e dos estóicos ner qualificou de novos elementos.
é, em contrapartida (principalmen- São eles, no entender desse autor: es-
te) uma lógica das proposições; as tudos sobre os termos sincategore-
leis do cálculo proposicional, as re- máticos, sobre as propriedades dos
gras de inferência desse cálculo, a termos (entre eles, os importantíssi-
LÓGICA 434

mos estudos sobre a teoria das supo- quet, J. H. Lambert, G. F. Castil-


sições), sobre os insolúveis, sobre a lon e G. J. von Holland. Todos eles
obrigação e sobre as conseqiiências. estiveram dominados pelo desejo —
Como
se pode verificar por essa enu-
meração, além das de natureza me-
que já fora intenso em Llull, cuja
Ars Magna era tão apreciada por
talógica e lógica, são tratadas as Leibniz — de constituir uma charac-
questões semióticas. Em alguns ca- teristica universalis e um calculus ra-
SOS, OS sistemas de lógica apresenta- tiocinator que lhes servisse de instru-
dos foram bastante completos (como mento. Quando ao mais, a idéia da
em Pedro Hispano) ou possuidores formalização leibniziana da lógica
de um elevado grau de formalismo estava estreitamente vinculada à idéia
(como em Walter Burley e em Alber- de que os princípios lógicos são ““in-
to de Saxônia). Em outros casos, variantes para todos os mundos pos-
misturaram-se os trabalhos lógicos síveis”. Daí as proposições lógicas
com as especulações de índole meta- fundamentais serem, para Leibniz,
física ou ontológica. A estes, deve- ao mesmo tempo, proposições onto-
mos somar os numerosos estudos de lógicas.
filosofia da linguagem, especialmen- O caso de Kant é diferente. Não
te através da gramática especulativa. podendo a lógica ser uma especif1-
A lógica moderna, da Idade Mé- cação das invariantes para todos os
dia até Boole, esteve caracterizada mundos possíveis, nem podendo
por: desenvolvimento da idéia da ló- tampouco ser dissolvida num con-
gica como uma ““arte de pensar” ou Junto de regras procedentes das leis
uma “medicina do espírito” (tão ca- psicológicas da associação, a lógica
racterística da lógica de Port-Royal, parece adotar em Kant um aspecto
inspirada no cartesianismo); tentati- formal, igualmente distanciado da
vas de voltar a sistematizar o conjun- ontologia e da psicologia. Mas o ter-
to da lógica formal sem apresentar, mo “formal” não possui em Kant
no entanto, contribuições muito ori- um sentido estritamente lógico. A
ginais (exemplo: J. Jungius e sua Lo- forma dos pensamentos não é, em
gica Hamburgensis); esforços no sen- seu entender, seu “envoltório””, mas
tido de desenvolver a lógica como algo que pertence a seu conteúdo.
um cálculo; intentos de constituir Mais ainda: os pensamentos são pen-
uma lógica determinada pela episte- samentos que possuem uma cons-
mologia ou sendo o fundamento da ciência, mais do que pensamentos de
epistemologia. uma realidade. Em Aristóteles, a rea-
A figura capital do primeiro dos lidade ficava refletida nos pensamen-
intentos citados é Leibniz, que du- tos, em Kant (e em muitos idealistas)
rante algum tempo foi considerado a consciência reflete a realidade me-
o “fundador da logística”. Mas ou- diante os pensamentos. Explica-se,
tros nomes devem somar-se ao dele: assim, a concepção kantiana da ló-
Jacob e Jean Bernoulli, G. Plouc- gica como ““lógica transcendental”
435 LÓGICA

e, também, a sua idéia dessa lógica plo, Goblot). Segundo eles, a lógica
como uma disciplina que “determi- responde à pergunta: “Como deve-
na” a origem, a extensão e o valor mos pensar para que nosso pensa-
objetivo dos conhecimentos”, que só mento seja correto?”
se ocupa das leis do entendimento e Podem ser qualificadas de meta-
da razão e que tem a ver unicamen- físicas, lato sensu, todas as tendên-
te com ““objetos a priori”, ao con- cias lógicas em que há, explícita ou
trário da “lógica geral”, que trata de implicitamente, uma ontologia sub-
“conhecimentos empíricos ou puros jacente; por exemplo, a citada lógi!-
sem distinção alguma”. Resulta, ca empirista poderia ser metafísica.
pois, que: (a) a lógica (transcenden- Exemplo desse tipo é a lógica dialé-
tal) depende da estrutura da cons- tica de Hegel, assim como as teorias
ciência; (b) a correspondência entre lógicas desenvolvidas por autores
os invólucros lógico-formal e trans- mais ou menos influenciados pelo
cendental não á causal, porque é pos- hegelianismo, como Bradley e Bo-
sibilitada pela “unidade da consciên- sanquet. É típico dessas duas últimas
cla”; (c) ao aplicar-se ao real, a ló- lógicas (que são, antes, doutrinas so-
gICa converte-se numa ciência nor- bre a lógica) o pressuposto de que,
mativa. não havendo na Realidade Absolu-
Uma das mais influentes linhas da ta (ou Absoluto), objeto da metafí-
lógica durante a segunda metade do sica, nenhuma separação entre o que
século XIX e no século XX é a cha- é a coisa e aquilo que a coisa é, a ló-
mada lógica empírica (e, por vezes, gica limita-se a traduzir O caráter
em virtude de sua preocupação prin- “compacto” e impermeável da Rea-
cipal, lógica da indução). Seu repre- lidade por meio de uma identifica-
sentante mais típico é John Stuart ção do sujeito com o predicado, con-
Mill. Essa lógica pressupõe que os firmando a tese da unidade absolu-
objetos de que trata são o resultado ta do Juízo.
de generalizações empíricas. Também podem considerar-se ““ló-
Outra linha é a psicológica, repre- gicas metafísicas”: a “lógica concre-
sentada, entre outros, por Beneke, ta”, a “lógica histórica”, a “lógica
Lipps, Baldwin, Ziehen e, talvez, vital”, a “lógica existencial”, pro-
Cornelius. Os princípios lógicos são, pugnadas por vários autores.
segundo eles, pensamentos, e a lógi- Pode-se perguntar se a ““lógica
ca revela-nos a estrutura objetiva dos dialética” desenvolvida pelo marxis-
mesmos. mo deve incluir-se ou não nesta se-
Uma terceira linha é a normativis- ção como exemplo de uma ““lógica
ta. Constitui uma das dimensões da não normal”. Por um lado, não pa-
idéia kantiana da lógica e foi defen- rece que deva incluir-se nesta seção,
dida, entre outros autores, por Her- Já que é difícil qualificá-la de ““lógi-
bart e numerosos tratadistas do sécu- ca metafísica” stricto sensu. Por ou-
lo XIX e começo do XX (por exem- tro lado, pode inclúir-se nesta seção
LÓGICA 436

porquanto se baseia, em última ins- ram a ser introduzidos no sistema de-


tância, no método dialético hegelia- dutivo postulado nos Principia; OS
no e porquanto é uma ““doutrina so- nomes de H. M. Sheffer, E. V. Hun-
bre a lógica”, mais do que uma ló- tington e J. Nicod merecem ser cita-
gica propriamente dita. dos a tal respeito. Adquiriu grande
Uma característica de todas essas importância a teoria dos tipos em
lógicas é que não cumprem com a suas diversas formas; além de Ber-
condição estabelecida por Wittgens- trand Russell, retenhamos nessa área
tein: lógica deve encarregar-se de
““a os nomes de Leon Chwistek, F. P.
si mesma” (Die Logik muss fur sich Ramsey, Norbert Wiener e Kazr-
selber sorgen). Com efeito, nenhu- mierz Kuratowski. A eliminação dos
ma das lógicas em questão se encar- paradoxos lógicos também foi ten-
rega de si mesma; na verdade, estão tada por meio das teorias axiomáti!-
sempre fundadas em algo distinto de- cas dos conjuntos (Zermelo, J. von
las. Por esse motivo é legítimo expor- Neumann e Paul Bernays, entre ou-
se o problema de se as “lógicas” a tros ). Procedeu-se, depois, à distin-
que nos referimos nesta seção mere- ção entre os paradoxos lógicos e os
cem efetivamente tal nome. paradoxos metalógicos (como os
E costume iniciar a história da ló- clássicos de “O Mentiroso” e os pro-
gica atual com Boole e Frege. Boole postos por P.E.B. Jourdain, L. Nel-
desenvolveu uma álgebra de classes, son, K. Crelling e outros autores);
assim como estudos de lógica proba- para a eliminação destes últimos,
bilística, ao passo que Frege intro- forjou-se a teoria da hierarquia de
duziu uma profunda revolução ao linguagens, com a noção de metalin-
fundamentar a matemática na lógi1- guagem, Já entrevista por Russell e
ca. Especialmente influente foi o sis- logo desenvolvida por A. Tarski eR.
tema dedutivo, elaborado por Pea- Carnap. As outras orientações logís-
no e pelos colaboradores do Formu- ticas foram ampliadas por C. [. Le-
laire des Mathématiques, para a fun- wis à lógica modal e por E. L. Post
damentação da aritmética com base e J. Lukasiewicz às lógicas polivalen-
em cinco axiomas e três elementos tes. Brouwer criou a sua lógica in-
primitivos: número, zero e sucessor. tuicionista — formalizada por A.
A descoberta por Russell dos para- Heyting — na base da chamada ““de-
doxos lógicos (ver PARADOXO) bilitação dos princípios lógicos” (es-
dentro da lógica quantificacional de pecialmente do princípio do tercei-
Frege obrigou a um trabalho de re- ro excluído). M. Schónfinkel iniciou
fundamentação da matemática. Es- em 1924 a chamada “lógica combi-
se trabalho culminou nos Principia natória”, que elimina as variáveis e
Mathematica, de Whitehead e Rus- utiliza funções tanto como argumen-
sell, um dos grandes momentos da tos quanto na qualidade de valores
história da logística moderna. Várias de outras funções. A “lógica com-
melhorias e refinamentos não tarda- binatória” foi elaborada e desenvol-
437 LOUCURA

vida também por Haskell B. Curry Quine, Hao Wang, Beth, Kleene, pa-
(e logo Robert Feys, em colaboração ra citar apenas uns poucos.
com Curry). Alonzo Church iniciou, O quadro atual da lógica é muito
ao mesmo tempo, a chamada ““lógi- rico, não só pelo número de traba-
ca lambda”, onde a “operação x” lhos realizados e resultados obtidos,
desempenha a abstração de uma fun- mas também pelas áreas exploradas.
ção de seu valor não-especificado. À Toda e qualquer classificação de
“Tógica lambda”* também contém campos lógicos tem forçosamente
combinadores; o chamado ““cálculo que resultar prematura. Fala-se de
de conversaão lambda” é uma lógi- lógica bivalente, por vezes também
ca combinatória cujas relações com chamada ““clássica”, lógica intuício-
a lógica combinatória de Schônfin- nista e lógicas polivalentes, mas 1Sso
kel-Curry foram postas em relevo constitui apenas um primeiro esque-
por J. B. Rosser. Os métodos de de- ma. O número de adjetivos, ou de
dução usados nos Principia Mathe- especificações, que se agregam a ““ló-
matica e durante muito tempo admi- gica” é quase esmagador; além de ló-
tidos por todos os lógicos foram mo- gica bivalente, polivalente e intuício-
dificados por S. Jaskowski e G. nista, fala-se ainda de lógica modal
Gentzen com seu ““cálculo seqgúuen- — a rigor, “lógicas modais** —, ló-
cial”*ou método de dedução natural, gica cronológica ou temporal, lógi-
bastante difundido. O método das ca probabilística, lógica erotética, ló-
tabelas de verdade foi crescentemen- gica deôntica, lógica da ação, lógica
te substituído por outros métodos das preferências, lógica da mudan-
mais simples e, ao mesmo tempo, de ça, lógica de imperativos, lógica epis-
maior alcance, como o das ““tabelas têmica, lógica da crença, lógica da
semânticas”, ou o “método de ár- informação, lógica pressuposicional,
vores”, de que tratamos no verbete lógica livre ou lógica com ““buracos”
sobre método de tabelas. livres, lógica sem pressupostos exis-
Os trabalhos em metalógica, me- tenciais, lógica nublada, lógica da
tamatemática e fundamentação da “relevância”, lógicas desviadas, etc.
matemática contam com resultados Fala-se, por vezes, de lógica ““pa-
importantes; além de Hilbert, Brou- drão””, em contraste com as lógicas
wer, Heyting e Gentzen, já mencio- “não-padrão”, e estas últimas são
nados antes, podem citar-se Gódel, tratadas como ““lógicas desviadas””
Lówenheim, Skolem, Herbrand e
Cohen. Juntam-se a eles as contribuil-
com vários graus de “desvio”
“semidesvio”.
e até

ções de autores poloneses (Tarsi, Lu-


kasiewicz, Lesniewski, Ajdukiewicz, LOUCURA Foi frequente considerar
Sobocinski e outros). Numerosos tra- a loucura como um delírio ou furor
balhos de importância em lógica e em que se apossa durante um tempo de
filosofia da lógica, assim como em ló- um homem e o faz falar ou atuar de
gica indutiva, devem-se a Carnap, formas distintas das usuais, ou con-
LOUCURA 438

sideradas usuais; em todo o caso, de menos que esteja um pouco fora de


formas extraordinárias. Exemplos si — a menos, pois, que ““não esteja
desse modo de conceber a loucura em seu juízo” (ibid., 533 D, 534 E).
nos são dados por muitas comunida- A loucura — como “loucura poéti-
des humanas, sobretudo entre as ca” — apresenta-se, aqui, como o
chamadas ““primitivas”. Aqui nos que faz “levantar” e “elevar” o poe-
interessa, porém, principalmente o ta acima do normal e do cotidiano.
modo ou modos como a loucura e O tema da loucura como ““loucu-
seus equivalentes ou formas (delírio, ra divina”, como possessão por uma
furor, êxtase, etc.) foram concebidas força divina, ou divinóide, ao con-
pelos filósofos, ou por autores que trário da loucura como simples en-
influíram, direta ou indiretamente, fermidade do corpo ou da alma, ou
sobre filósofos. Pois bem, o fato é de ambos, foi tratado por muitos au-
que também os filósofos começaram tores na Antiguidade, quase sempre
por observar o caráter de ““posses- seguindo a orientação platônica.
são” da loucura, uavia. Ainda mais: Está relacionado com a idéia de
a loucura pode ser considerada de loucura como simplicidade — ou re-
dois modos: ou como uma enfermi- gresso à simplicidade — o famoso
dade do corpo que se manifesta na Encomium moriae, o Elogio da lou-
“alma”, ou como uma possessão da cura, de Erasmo. Sem a moria (a
alma por algum “demônio”. Só nes- stultitia), não haveria, segundo Eras-
se segundo sentido a loucura — o de- mo, a menor possibilidade de viver
lírio, uavia — é O agente das maio- e de pensar saudável e simplesmen-
res bênçãos, como escreve Platão no te, longe do pedantismo dos sábios,
Fedro (244 A), e como, segundo se ou falsos sábios.
observou, já Demócrito indicara ao A loucura é, para Michel Fou-
enfatizar que só em estado de delí- cault, um problema ““epistemológi-
rio pode-se compor grande poesia. co”, isto é, um problema que só se
A loucura de que falaram essesfi- apresenta, ou só tem sentido, dentro
lósofos é comparável ao entusiasmo, de uma determinada episteme. A le-
enquanto “endeusamento”, evOov- pra tinha servido durante muito tem-
olaopos, ou possessão por um deus po como linha divisória: o leproso fi-
(ou um demônio). Também é com- cava excluído da sociedade, confina-
parável ao êxtase como estado no do nos leprosários. Quando desapa-
qual se encontra o criador, o poeta. receu a lepra, a loucura ocupou o seu
O estado de inspiração é, pois, algo lugar. Um dos símbolos da loucura
que vem, por assim dizer, “de fora”, é a “nau dos loucos”, a stultifera na-
embora tome posse do que há “mais vis. A loucura está separada da ra-
no Interior” da alma. zão em toda a época clássica (M.
No diálogo fon, Platão refere-se Foucault, História da loucura na
também ao poeta como ““coisa ala- Idade Clássica, Editora Perspectiva,
da”, incapaz de compor poesia, a S. Paulo, 1978), mas a separação da
439 LUGAR

loucura em relação à razão não quer doença mental chamada “loucura”.


dizer que aquela seja completamen- Em várias de suas obras (The Divr-
te independente desta. É uma ““for- ded Self, 1959 [trad. bras., O eu di-
ma relativa à razão”; a razão mede vidido, 2º edição, 1975); Madness
a loucura e esta mede a razão. Nes- and the Family, 1964 [com Aaron
se movimento recíproco, loucura e Esterson]; The Politics of Experien-
razão fundamentam-se mutuamente. ce, 1967), Ronald D. Laing e, com
A loucura fica relegada — e o louco ele, o movimento da ““antipsiquia-
internado —, mas justamente na me- tria”, insistiu em que a loucura, a
dida em que serve de espelho, ou doença mental, é um mito. Não é um
contra-espelho, daquilo que a rele- fenômeno psicológico-individual ou
ga. O que o louco diz não pode cir- fisiológico; é um fenômeno social,
cular normalmente entre os que não ou seja, um fenômeno produzido pe-
estão loucos, os que têm “uso da ra- la própria sociedade, que acredita
zão” e são considerados justamente poder doutrinar sobre a natureza da
como ““normais”'. O dizer da loucu- enfermidade mental e da loucura. Se-
ra não é verdadeiro. É certo que, por gundo Laing, a loucura, bem como
vezes, quando se escuta a palavra dos os estados psicóticos ou esquizofrê-
loucos, ela se apresenta como uma nicos, carecem de existência como
“palavra de verdade” (M. Foucault, fatos psicológicos, químicos ou neu-
L'ordre du discours, 1971), de mo- rofisiológicos. Daí resulta, no enten-
do que, ou a palavra do louco cai no der de Laing, que o usual diagnósti-
nada ou nela se decifra uma razão co de loucura seja um ato político e
“ingênua”. Mas, de fato, tal pala- não um ditame psiquiátrico.
vra não existe. Daí a “internação”
dos loucos; toda vez que, como en- LUGAR No artigo sobre a noção de
tre alguns ilustrados, fazem-se valer Espaço (ver), fizemos referência ao
seus direitos, não é para que seu dis- conceito de lugar em Aristóteles. In-
curso participe do discurso dos ho- dicaremos agora em que medida os
mens razoáveis, mas para que o por- conceitos de espaço e lugar foram re-
tador do discurso louco seja tratado lacionados no pensamento aristoté-
“humanamente”. Pode-se deixar ao lico. Duas sentenças opostas se apre-
louco a liberdade de ser louco, mas sentam a respeito. Para alguns au-
essa liberdade é uma clausura. tores, os dois conceitos são idênticos,
Durante muito tempo, a diferen- pois Aristóteles emprega quase sem-
ça entre loucura e não-loucura foi pre o termo t7oTos; além disso, tan-
equiparada à diferença entre anor- to se pode dizer que as coisas estão
mal e normal. Também por longo num lugar, como que estão no espa-
tempo a loucura foi mais tratada do ço, sendo portanto de escassa impor-
ponto de vista do indivíduo do que tância o termo usado para aquilo on-
da sociedade. Em todo caso, pouco de as coisas estão. Segundo outros
se duvidava de que existisse uma autores, há diferenças notórias entre
LUGAR 440

a noção de espaço e a de lugar, pois diferentes momentos), nem tampou-


o que Aristóteles disse a respeito de co algo inteiramente alheio ao cor-
lugar não pode se aplicar facilmente po; (5) o lugar é uma propriedade
ao espaço; além disso, ele (a) discu- não inerente aos corpos, nem perten-
te uma realidade semelhante à tradi!- cente à sua substância, não é forma,
cionalmente designada como espaço nem matéria, nem causa eficiente,
na teoria do lugar, só que na doutri- nem finalidade; tampouco é substra-
na da magnitude espacial; (b) não se to, pois, se fosse, seria equivalente
interessa propriamente pelo espaço, ao receptáculo platônico ou algo se-
mas pela posição no espaço. Desse melhante a este; (6) o lugar define-
conjunto de sentenças opostas talvez se como um modo de “estar em”.
se possa encontrar uma posição 1n- Essas definições de lugar mostram
termédia declarando que Aristóteles que Aristóteles, para elucidar a no-
considera o espaço do ponto de vis- ção, recorre a uma espécie de méto-
ta do lugar. do ““dialético””, afirmando e negan-
A questão do lugar foi elucidada do ao mesmo tempo a subsistência
pelo Estagirita em especial no Livro ontológica do lugar.
IV da Física. Um resumo da sua te- Entre os comentários modernos
se dá o seguinte resultado: (1) o lu- que a noção aristotélica de lugar sus-
gar não é simplesmente um algo, mas citou, destacamos o de Bergson, que,
um algo que afeta o corpo que está em L'iidée de lieu chez Aristote, ma-
nele; (2) o lugar não é indetermina- nifestou a opinião de que Aristóte-
do, pois, se fosse, seria indiferente les substituiu o espaço por lugar a
para um corpo dado estar ou não fim de evitar a “emancipação prema-
num lugar determinado; (3) o lugar, tura” do espaço, proclamada por
embora determinado, não está deter- Leucipo e Demócrito. Desse modo,
minado para cada objeto mas, por O espaço é reintegrado nos
corpos em
assim dizer, para classes de objetos; forma de lugar. E Kant usou o vo-
(4) embora o lugar seja uma ““pro- cábulo “lugar” (Orf) em outro sen-
priedade” dos corpos, isso não sig- tido, ao introduzir o conceito de lu-
nifica que o corpo arraste consigo o gar transcendental. Para ele, o lugar
seu lugar. Assim, o lugar não é o cor- transcendental é o que ocupa um
po (pois, se fosse, não poderia ha- conceito dentro da sensibilidade ou
ver dois corpos no mesmo lugar em do entendimento puro.
M
é
M A letra matúscula “M” usada na
lógica tradicional pararepresentaro
“o mau” e “mau”. “O mal” e
mau” são, respectivamente, um subs-
“9

termo médio no esquema de um jui- tantivo e um adjetivo substantivado,


zo ou de uma proposição. Assim, havendo certa tendência a ““reificá-
por exemplo, em “Nenhum M é P”, los”, isto é, a supor que há alguma
“Todos os M são S”. De acordo coisa que se chama ““o mal” ou “o
com o indicado em SILOGISMO mau”. Muitas concepções metafís!-
(ver), “M” aparece nas premissas cas do “mal” apóiam-se, explícita ou
maior e menor, mas nunca na con- implicitamente, em semelhante reif1-
clusão. cação. A distinção entre “o mal”
“o mau” nem sempre é clara, nem se
e
MAL Analisaremos: (]) os diferen- expressa em todas as línguas.
tes modos como foi e pode ser apre- “Mau” pode ser empregado num
sentado o problema do mal; (II) as sentido “absoluto”, quando falamos
teorias mais correntes acerca da na- de alto moralmente mau, mas 1SSO

tureza do mal; (III) as doutrinas mais equivale somente a dizer que é mau
destacadas sobre a procedência do porque é mau. “Mav” também se
mal; (IV) as várias classes de males emprega em sentido particular, clas-
admitidos; (V) as distintas atitudes sicamente chamado secundum quid,
e doutrinas propostas para enfrentar ou em relação a algo; é o que sucede
o mal; e (VI) algumas das teorias f1- quando dizemos que uma faca é má
losóficas mais gerais sobre o mal. E [ruim] porque não corta, ou seja,
inevitável que várias dessas seções se porque não corta adequadamente, is-
entrecortem; assim, as seções (II) e to é, “corta mal”.
(III) coincidem em numerosos aspec- (bl) Pode-se estudar o problema
tos, ao passo que a seção (VI) reto- do mal do ponto de vista psicológi-
ma alguns dos pontos apresentados co, sociológico, histórico, etc. Em tal
antes dela. Entretanto, manteremos caso é frequente oferecer uma inter-
a separação em seções, porque con- pretação relativista do mal, pois su-
sideramos que, assim, as explicações põe-se que o que se diga a respeito
e análises oferecidas ganham em cla- deste depende das circunstâncias psi-
reza. cológicas, sociais, históricas, etc.
Il. Aproximações do conceito de (cl) Alguns consideram que o mal
mal. é algo real não só psicológica, socio-
(al) Podem-se estudar os diversos lógica ou historicamente, mas de um
significados e usos de expressões co- modo mais amplo, de tal sorte que
mo ““o mal”* (por vezes, “o Mal”), os males particulares são definidos
MAL 442

como espécies de um mal real gené- de, porque, sem ele, a realidade se-
rico. Faremos referências a tais es- ria incompleta; logo, o mal pode ser
pécies na seção IV deste verbete. concebido como um elemento neces-
(dl) Vários autores declararam sário para a harmonia univesal. São
que o problema do mal é exclusiva- defensores dessa doutrina os estóicos
mente de índole moral; outros, que (ainda que, para eles, o mal seja
é só de natureza metafísica. Em am- principalmente algo ““para nós”,
bos os casos, pode-se ainda insistir 1oôs quas), em parte Plotino (quan-
em que o mal é predominantemente to admite que certos “males” geram
(conforme assinalamos no parágra- certos bens), Leibniz. Pope e vários
fo anterior) uma realidade (ou um otimistas modernos, Bergson (ao de-
ser), ou que é exclusiva ou primor- clarar que quando protestamos con-
dialmente um valor (melhor dito, um tra a criação por causa da experiên-
desvalor ou valor negativo). Conclui- cia do mal manifestamos nossa igno-
se, por vezes, que a definição do mal rância do fato de que o criado im-
como realidade (ou, se se quiser, ne- põe certas condições ao elã criador),
gação ou ausência de realidade) e co- etc. Essa teoria tende a resolver o
mo valor (ou desvalor) não são in- problema da natureza do mal com
compatíveis, pois que realidade e va- base numa resposta prévia — implí-
lor, por um lado, e negação da rea- cita ou explícita — à questão de co-
lidade e desvalor, por outro, são mo pode ser justificada a presença
equiparáveis. (ou a experiência) do mal (assunto
II. As teorias acerca da natureza abordado no final de V).
do mal. (a2-2) O mal é o último grau do
(a2) Segundo um grupo de teorias, ser. Essa pobreza ontológica do mal
o mal não é uma realidade separada é apresentada, habitualmente, atri-
ou separável; faz parte da única rea- buindo-se ao mal todos os valores
lidade verdadeiramente existente negativos (ou considerados negati-
(usualmente concebida em forma VOS) imagináveis: ilimitação, indeter-
monista, mas, por vezes, também em minação, dependência, passividade,
forma pluralista), embora seja o que temporalidade, inestabilidade, mate-
há de menos real dentro do real. O rialidade, etc. Observe-se que esses
mal a que se referem essas teorias é, valores negativos coincidem com os
principalmente, o mal metafísico que algumas teorias dualistas (por
(conferir IV), mas há ocasiões em exemplo, as pitagóricas) apresentam
que o referido mal metafísico se como estando incluídos na “coluna
apresenta sob o aspecto do mal físi- negativa”. Um defensor típico de tal
co ou do mal moral (ou de ambos). doutrina é Plotino, quando escreve
Pois bem, dentro desse grupo de que o mal “está para o bem, assim
teorias há muitas variantes. Apresen- como a falta de medida está para a
taremos algumas delas. medida, como o ilimitado está para
(a2-1) O mal faz parte da realida- o limite, como o ser eternamente de-
443 MAL

ficiente está para o ser auto-sufici- gânicas — entendendo-se essa ex-


ente; é sempre indeterminado, ines- pressão num sentido que transcende
tável, completamente passivo, jamais o biológico. ““Só na discordância en-
satisfeito, pobreza completa”. Te- tre as partes independentes e deter-
mos aí não os atributos ““aciden- minadas — escreve Scheler — res1-
tais”, mas a “própria substância” de o fundamento ontológico mais ge-
do mal. Vários autores substituem ral da possibilidade da dor e do so-
alguns dos valores negativos mencio- frimento num mundo qualquer.”
nados por outros; por exemplo, o Como se observará, o que é aqui de-
mal pode ser considerado algo ilimi- clarado um mal é, a rigor, a expe-
tado quando o limite, em vez de ser riência do sofrimento que resulta in-
proposto como um traço positivo do dispensável para que haja um bem
real, é declarado um valor negativo. no todo; por conseguinte, há uma
No entanto, em ambos os casos notória analogia entre essa teoria e
tende-se a colocar o mal no confim a apresentada em (a2-1).
do ser. (a2-5) O mal é uma falta comple-
(a2-3) O mal faz parte do real, mas ta de realidade, é pura e simplesmen-
como uma entidade que opera dina- te o não-ser. Essa teoria parece 1n-
micamente e contribui para o desen- conciliável com as doutrinas até aqui
volvimento lógico-metafísico do que resenhadas, porquanto as caracteri-
há. É o caso de Hegel, sobretudo zamos dizendo que, para elas, o mal
quando considera o mal como a ““ne- “faz parte da realidade”. Entretan-
gatividade positiva”. to, a teoria (a2-5) pode ser conside-
(a2-4) O mal é o sacrifício que uma rada o limite extremo alcançado pe-
parte executa em benefício do todo. las doutrinas apresentadas em (a2-1)-
Essa concepção se aproxima da apre- (a2-4). Por vezes, alguns dos auto-
sentada em (a2-1), mas oferece ca- res mencionados inclinam-se a favor
racterísticas que estão ausentes na- de (a2-5) ao identificar o “último
quela, especialmente a de apoiar-se grau do ser” com o ““não-ser”.
na relação todo-parte e a de subl1- (a2-6) O mal é uma aparência,
nhar o mal do ponto de vista do va- uma ilusão, um véu que impede a vi-
lor (ou desvalor), e não do ângulo do são do bem, identificado com o ser.
ser (ou carência de ser). Assim acon- Na medida em que tal ilusão ou apa-
tece em Max Scheler quando inter- rência é interpretada como algo pos-
preta o sofrimento como sacrifício suidor de certa realidade ontológica
do que tem valor inferior, em pro- (ainda que seja de extrema pobreza),
veito do que possui valor superior e, a teoria (a2-6) coincide em muitos
portanto, em benefício da hierarquia pontos com as teorias (a2-1)-(a2-4).
(correta) dos valores. Segundo esse Na medida em que se considera que
autor, o mal existe porque há totali- a ilusão designa um não-ser, a teo-
dades não compostas de somas, mas ria sustentada coincide com a apre-
de membros, porque há funções or- sentada em (a2-5).
MAL 444

(b2) É característica das doutrinas caiba primariamente à filosofia, se-


resenhadas em (a2) e suas variantes ja em forma de dialética, seja em for-
a afirmação de que a ausência, a po- ma de intuição intelectual; o “ser que
breza, a carência, etc. de ser, em que é”* constitui a expressão de um Deus
consiste o mal, não são afetadas por pessoal. Por outro lado, não sendo
determinações precisas. Mas há ou- o mundo produzido por emanação,
tro grupo de doutrinas que, conce- mas engendrado por criação, o ser
bendo o mal como privação do ser, e o mal não podem manter as mes-
sublinham que se trata de uma pri- mas ““relações” que foram típicas
vação determinada. Em alguns ca- das tendências platonizantes. Final-
sos, não se enxerga com clareza tal mente, embora Santo Agostinho exa-
determinação. Consideremos, com mine o problema do mal atendendo
efeito, Santo Agostinho. Ao pergun- ao aspecto metafísico, o fundo do
tar-se se era possível conceber que a seu pensamento a respeito está do-
substância divina possuísse o mal, minado pela questão do mal moral
respondeu negativamente; sua con- (ou, melhor dizendo, religioso-mo-
cepção do mal parece, além disso, a ral), isto é, do pecado. Desse ponto
esse respeito, uma concepção platô- de vista, o mal é concebido como um
nica, pelo menos na medida em que, distanciamento de Deus causado por
segundo Platão, o mal não pode uma vontade de independência em
existir na realidade pura, mas unica- relação à Pessoa divina; conforme o
mente quando há alguma ““mistura” definiria depois, seguindo a mesma
(nos “mistos”*). As fórmulas agos- tradição, São Boaventura: o mal (o
tinlanas parecem confirmar a coin- pecado) é o fato de que o homem fi-
cidência: ““a privação de todo bem zera algo por causa de si e não por
equivale ao nada. Portanto, enquan- causa de Deus (aliquid faveret prop-
to algo existe, é bom. Assim, tudo ter se, non propter Deum). Pode-se
o que é, é bom, e o mal cuja origem estabelecer inclusive, uma distinção
se buscava não é uma substância, sobre esse ponto entre a Patrística
pois, se fosse substância, seria bom. grega e a latina. Na primeira, o mal
Ou seria substância incorruptível e, continua conservando um aspecto
por 1sso, um grande bem, ou subs- predominantemente metafísico e,
tância corruptível, que não o seria se mesmo quando se abandona a ema-
não fosse boa” (Conf., VII, 2). Pois nação a favor da criação, o mal é
bem, não se pode 1r longe demais na concebido como uma mácula nesta
aproximação entre as concepções última, ou seja, como uma carência,
agostinianas e as platônicas (ou neo- uma privação metafísica, etc. Na se-
platônicas). De um lado, com efei- gunda, o mal é visto primordialmen-
"

to, o “ser que é** não se reduz, para te do ângulo religioso-moral, ou se-
Santo Agostinho, à Idéiá das idéias, Ja, como uma manifestação do pe-
à Idéia de Bem, ao Uno e, em geral, cado. É, pois, uma privação deter.
a nenhuma entidade cuja apreensão minada de um certo bem.
445 MAL

A tese do mal como privação de- a um sujeito bom, mas não o pode
terminada aparece, no entanto, de ser ao bem supremo ou Deus, que é
maneira mais clara, em vários auto- desprovido de todo mal e não pode
res escolásticos, os quais tentaram ser causa do mal — mesmo quando,
elucidar em que consiste a determi- sendo causa de tudo o que é, seja
nação do mal em geral e as determi- possível dizer que é, de certo modo,
nações dos males em particular. Pa- causa de que haja o mal que há. Se
ra esse efeito, eles procuraram levar permitiu que o mal exista, é por ter
em conta não só as duas tradições considerado os requisitos que im-
patrísticas acima aludidas, mas tam- põem a ordem, variedade e harmo-
bém certas contribuições aristotéli- nia do conjunto da criação. Em to-
cas, em particular as observações do caso, se o mal tem uma causa,
aristotélicas sobre as dificuldades não é uma causa eficiente, mas def1-
que apresenta a concepção de que o ciente, malum causam habet non ef-
mal é pura e simplesmente privação ficientem, sed deficientem, como di-
do bem — sobretudo quando, ao zia Leibniz, repetindo uma tese es-
identificar-se o bem com o ser, aca- colástica (Teod., VI, 115, e especial-
ba-se declarando que o mal é priva- mente VI, 122).
ção do ser. Consideremos, com efei- (c2) As teorias resumidas em (a2)
to, a doutrina de Santo Tomás. O e (b2) não são todas de índole mo-
mal também é definido como priva- nista. Algumas são pluralistas; ou-
ção, mas não como privação em ge- tras subentendem certo dualismo que
ral, pois, em tal caso, haveria que su- pode classificar-se de moderado. As
por que a privação num ser de algo teorias a que nos referiremos agora
que não lhe corresponde por natu- caracterizam-se, em contrapartida,
reza (por exemplo, a privação de es- por um dualismo radical; melhor
camas nos cães) faria de tal ser uma .
ainda, por um dualismo baseado na
entidade má. O mal tem de ser, pois, suposição de que os dois princípios
uma privação determinada, de mo- radicalmente opostos, que, em seu
do que o ser mau tem de ser enten- entender, existem no universo, estão
dido secundum quid. Isso é válido in- representados justamente pelo Bem
clusive quando a privação em ques- (ou série de entidades boas ou valo-
tão é muito mais geral do que a que res positivos) e pelo Mal (ou série de
o caso mencionado denota; pode-se entidades más ou valores negativos).
dizer, por exemplo, que existe mal Assim o vemos no zoroastrismo, no
quando há, em geral, uma privação maniqueísmo e no gnosticismo; as-
de ordem. Por outro lado, dado que sim o vemos também na doutrina da
tudo o que é, é (na medida em que tabela de oposições que alguns pi-
participa do ser) algo bom, o sujei- tagóricos apresentaram. Os artigos
to do qual se predica o mal tem de mencionados proporcionam indica-
ser qualificado (na medida em que ções mais detalhadas a respeito. As-
é) de bom. O mal é, pois, inerente sinalemos aqui, porém, que as teo-
MAL 446

rias dualistas radicais resolvem em tência de Deus ou com o objetivo de


sentido afirmativo uma questão que combater uma determinada idéia de
foi levantada com freqiência entre Deus — usualmente proposta por
os filósofos antigos, a saber, se o mal uma religião positiva. Mas chegam,
tem ou não caráter substancial. Em por vezes, a outras conclusões; por
compensação, resolvem em sentido exemplo, que Deus não pode ser a
negativo outra questão: a de se o mal causa de tudo, ou que há um ““Deus
pode penetrar no bem (ou, na lingua- que se faz”* no decorrer de um pro-
gem de muitos filósofos antigos, no cesso no qual o mal vai-se eliminan-
inteligível). Com efeito, o bem (ou
as potências boas) define-se por ex-
do progressivamente, ou que Deus
uma entidade limitada.
é
clusão do mal (ou das potências más) Por outro lado, pode-se indicar que
e, mesmo quando se admite — co- a expressão ““o mal procede, em últi-
mo ocorre com os maniqueístas — ma instância, de Deus** não deve ser
que existe “mistura”, acaba-se con- entendida no sentido de que o mal é
cluindo que tal mistura é o mal e que inerente a Deus, mas tão-somente (se-
se tem de aspirar não à reconciliação gundo já enfatizamos antes) que a ra-
do bem com o mal, ou à absorção zão da existência do mal é a produ-
deste por aquele, mas à sua comple- ção de um mundo. Se este não tivesse
ta separação. sido produzido, o mal não existiria;
III. O problema da origem do mal mas isso não quer dizer que o mal exis-
pode dar lugar a várias soluções. Eis tente no mundo torna desejável a não
algumas das que foram propostas: existência desse mundo. Ao contrá-
(a3) o mal procede, em última ins- rio, a existência de um mundo criado
tância, de Deus ou da Causa primei- é, em si, um bem, de modo que, ao
ra — nos vários sentidos que logo in- ser produzido, foi produzido um bem
dicaremos; (b3) o mal tem sua ori- enãoummal.
=

gem no homem ou em algumas de Finalmente, o mal pode ser con-


suas atividades — também nos vá- cebido como uma prova enviada por
rios sentidos que indicaremos; (c3) o Deus ao homem a fim de avaliar sua
mal é consequência do acaso; (d3) da paciência e pô-lo no caminho da san-
Natureza; (e3) da matéria ou (f3) de tidade.
outras fontes. No tocante à teoria (b3), também
Conforme indicamos, a teoria ex- pode ser entendida de vários modos.
pressa em (a3) pode ser entendida de Em primeiro lugar, pode-se supor
vários modos. Destacaremos três deles. que só a rebelião do homem contra
Por um lado, pode-se imaginar Deus ou seu distanciamento dele são
que, se Deus é a causa de tudo e, por- a causa do mal. Em segundo lugar,
tanto, também a causa do mal, este pode-se estabelecer que o mal reside
é inerente a Deus. Os que assim ar- na natureza humana, no sentido de
gumentam fazem-no, frequentemen- que só esta não é indiferente ao mal
te, com o propósito de negar a exis- (e ao bem).
447 MAL

Quanto às teorias restantes, são de panhar do “mal moral”, como de


duas classes. Numa delas, como em uma eflorescência ou epifenômeno.
(c3)-(d3), trata-se de buscar um ele- Alguns filósofos ““espiritualistas””,
mento que explique a origem do mal em contrapartida, sustentam que o
(ou dos males) sem tratar, na maior mal físico só tem sentido tomando
parte dos casos, de justificá-lo. Nou- como medida o mal moral. Quando
tras — como as que poderemos agru- o mal moral é identificado com o pe-
par em (13) —, determinam-se mo- cado, certos autores concluem que o
dos de se produzir o mal; fala-se, as- pecado constitui a origem do mal fi-
sim, de causa material, formal, efi- sico. Essa origem pode ser conside-
ciente e final do mal, da diferença rada do ângulo individual (relação
entre causa e origem do mal, do mal causal pecado-mal físico em cada ser
que surgiu substancialmente ou só humano), ou sob um prisma coleti-
por acidente, etc. Em muitos casos, vo (há mal físico na humanidade
a teoria acerca do mal está ligada à porque houve pecado, especialmen-
doutrina sustentada sobre a nature- te o pecado original). Pois bem, o
za. Assim, por exemplo, adscrever o mais comum é adotar uma posição
mal à matéria é típico das concepções que, sem negar as múltiplas correla-
para as quais o mal é um último grau ções existentes no homem entre mal
do ser. físico e mal moral (equiparado ou
não ao pecado), se negue a reduzir
|

IV. Na reflexão pré-filosófica co-


mum é frequente estabelecer uma um ao outro ou a considerar um co-
distinção entre o mal físico e o mal mo origem direta do outro.
moral. O primeiro é equivalente ao As distinções acima apontadas são
sofrimento ou à dor; o segundo é um as mais frequentes entre os filósofos.
tipo de padecimento que não se iden- Assim, Santo Agostinho distinguiu
tifica com o físico, mesmo quando entre o mal físico e o mal moral,
quem o experimenta não se veja l1- mesmo quando acrescentou que só
vre (e até possa encontrar consola- o mal moral (pecado) é, falando pro-
ção nisso) de certas alterações físicas priamente, um mal. Santo Tomás
(como a tristeza, que é um mal mo- distinguiu entre mal físico (dor),
ral, mas que pode ser acompanhada morte e pecado, etc. Não obstante,
de consideráveis alterações na tensão restringir a divisão dos males aos ci-
sanguínea). Essa distinção também tados, por aparecer a mesma com
é adotada por muitos filósofos, mas, maior frequência que outras divisões
às vezes, com a intenção de explicar na literatura filosófica (e teológica),
um tipo de mal pelo outro. Assim, seria esquecer que os males em ques-
alguns pensadores ““materialistas” tão costumam ser considerados, se-
afirmam que o que se considera co- gundo já indicou Santo Tomás, co-
mo mal moral é inteiramente redu- mo ““males no homem”. Somado a
tível a um mal físico e que, ao mes- estes, há que levar em conta que se
mo tempo, o mal físico se faz acom- fala também de um mal que ora é
MAL 448

concebido como o ““mal em geral” dade, quer em cada valor negativo


(mesmo quando é um mal secundum dos apontados, quer nos valores mo-
quid), ora como o conceito geral que ralis. Foi o que Raymond Polin fez
engloba todos os males, ora como o quando inclulu no domínio das nor-
fundamento último de qualquer es- mas morais não só o valor negativo
pécie de mal: trata-se do mal cuja no- “mal”, mas também valores nega-
ção explicamos nas seções anteriores tivos morais, tais como o imoral, o
(sobretudo em ID). É conhecido usual- infiel, o pérfido, a traição, a hipo-
mente pelo nome de mal metafísico crisia, a vulgaridade, a mediocrida-
— designação que circula sobretudo de, o vício, a perversidade, a cruel-
desde Leibniz, que classificou os ma- dade, a covardia, a vilanta, a infâ-
les em três tipos: metafísico, físico mia, o excessivo, o desprezível, o in-
e moral. Com 1sso, parece terem-se digno, o indecente, o depravado, etc.
esgotado os tipos possíveis de mal. V. A existência do mal criou para
Mas, em conjunto com os tipos, po- o homem um dos mais graves pro-
demos considerar outros dois ele- blemas: o de saber como enfrentá-
mentos: os gêneros e as variedades. lo. Descreveremos brevemente al-
O primeiro é examinado por meio de
guns dos modos mais ilustrativos.
uma análise conceitual, da qual re- (a5) A aceitação alegre do mal ou,
sulta que o mal pode ser concebido,
segundo vimos em parte, como um a
melhor dizendo, atitude que encon-
tra no mal — físico ou moral — uma
ser ou como um valor, como algo ab-
espécie de satisfação ou complacên-
soluto ou algo relativo, algo abstra-
cia. Tal atitude recebeu o nome de
to ou algo concreto, algo substancial
algofilia — amor ao mal ou aos ma-
ou algo acidental, etc. O segundo é
les. Alegou-se que é contraditória,
objeto de uma descrição fenomeno-
lógica que mostra o mal em suas ma- pols comprazer-se no mal significa
nifestações ou perspectivas. Essas experimentá-lo como se fosse um
perspectivas podem, por sua vez, ser bem. Entretanto, seria excessivo in-
examinadas de um modo geral; te- sistir demais na existência de uma
mos, então, duas possibilidades: o “contradição” na algofilia, uma vez
mal, em conjunto com a feiúra e a que, pelo menos no que toca ao mal
falsidade, são os aspectos capitais do físico, a complacência nele não anula
negativo, opostos aos transcenden- o fato de experimentar-se um pade-
tais (bem, beleza e verdade); o mal cimento.
é visto como resumo de todos os va- (b5) A aceitação resignada. Nesse
lores negativos (o profano, o feio, o caso, não há propriamente uma
falso, o injusto, etc.); ou, então — complacência no mal, porquanto se
segunda possibilidade —, tais pers- pode perfeitamente considerá-lo uma
pectivas podem ser examinadas de aflição. Mas na medida em que a re-
um modo mais particular e podem signação comporta certa passivida-
ser descritas todas as formas de mal- de, os males ficam reduzidos, amor-
449 MAL

tecidos, pela ausência de reação. Is- atividade predominantemente refle-


SO se deve quase sempre a que, na fi- xiva e espiritual.
losofia da resignação (estóicos), o (65) A “adesão”. Essa atitude —
mal é primordialmente identificado muito excepcional — pode manifes-
com as paixões, isto é, concebido tar-se quando se supõe, como ocor-
fundamentalmente como “um mal re entre os maniqueístas, a existên-
para nós”; de modo que somos nós cia de uma luta entre as forças do
que terminamos por dominar as pai- bem e as do mal. Pois bem, se se ad-
xÕes e, com Isso, por suprimir o mal. mite que estas últimas são mais po-
Observemos que uma das formas derosas do que as primeiras e termi-
mais generalizadas de aceitação re- narão por vencê-las, pode-se também
signada do mal é a sua racionali-
zação.
é
declarar que o melhor aderir a elas,
OU, se se quiser, reconciliar-se com
(c5) O desespero. Trata-se de uma elas.
atitude que pode ter um componen- (f5) A ação. Pode ser entendida de
te predominantemente teórico (como muitos modos: como ação indivi-
quando se diz “não há nada a fazer dual; como ação coletiva; como con-
contra o mal”); ou, então, um com- Junto de esforços destinados a trans-
ponente eminentemente prático (ca- formar radicalmente a pessoa; como
so em que é comum que o ato de combate para melhorar as condições
desesperar-se atue como uma espé- (sobretudo materiais) da sociedade,
cie de substituição do mal e, por con- etc. Na maioria dos casos, a ação é
seguinte, como uma forma de le- dirigida por uma teoria prévia, de
nitivo). modo que a maior parte das formas
(d5) A fuga. Em alguns casos, es- de (f5) não são incompatíveis com
sa fuga se manifesta como indiferen- muitas das mencionadas nos pará-
ça e, portanto, como uma das for- grafos anteriores. Destaquemos, po-
mas citadas em (b5). Em outros ca- rém, que certos autores insistem em
sos — a maioria deles —, a fuga ado- que existe um primado da ação so-
ta qualquer das seguintes formas: a bre toda e qualquer outra atitude, e
evitação do sensível para se elevar até em que, por conseguinte, a teoria
o inteligível (ou, mais sutilmente, vi- correspondente é um resultado e não
ver no sensível como se se contem- uma causa da ação.
plasse do ponto de vista do inteligí- (85) As formas de enfrentar o mal
vel); a libertação das paixões me- até aqui apresentadas podem ser
diante uma ““libertação do eu” ou qualificadas de atitudes, inclusive
até uma ““desegoização”* mais ou quando, como ocorre em (b5), há
menos radical; a purificação do sen- um componente importante de racio-
sível(frequentemente identificado nalização, sem o qual seria impossí-
com o mal) por meio do ascetismo, vel conseguir a resignação ou a indi-
quer entendido como uma série de ferença. Há uma série de posições,
exercícios físicos, quer como uma em contrapartida, que se orienta pa-
MARXISMO 450

ra motivos de índole basicamente ex- ou sob o aspecto de sua evolução to-


plicativa e justificativa: trata-se de tal, quer atendendo especialmente a
averiguar, então, que função tem o algumas de suas ““fases””. Esse pen-
mal (caso se admita que tem alguma) samento inclui um método, uma sé-
dentro da economia do universo. Esse rie de pressupostos, um conjunto de
problema surge principalmente quan- idéias de índole muito diversa e nu-
do, admitida a infinita bondade de merosas regras de aplicação tanto
Deus, suscita-se a questão de como teóricas quanto práticas; (II) um gru-
permitiu a existência de mal no mun- po de doutrinas filosóficas, sociais,
do. Esse é o problema da teodicéia; econômicas, políticas, etc., funda-
limitamo-nos aqui a mencioná-lo. mentadas numa interpretação do
VI. Também nos limitaremos a marxismo e tendentes à sua sistema-
mencionar uma série de doutrinas so- tização. Esse grupo de doutrinas ad-
bre o mal de caráter bastante genéri!- quiriu forma definida em Engels e foi
co. É o caso do otimismo, vinculado transformado por Lênin, dando en-
com frequência a diversas formas de tão origem ao chamado ““marxismo
humanismo, mas também a teses me- ortodoxo”; (III) uma variadíssima sé-
tafísicas, como a da identificação do rie de interpretações, procedentes de
mal com o não-ser ou a baseada na diversas épocas e formadas de acor-
suposição de que o mal só aparece do com distintas tradições, tempera-
quando considerado isoladamente, mentos, circunstâncias históricas, etc.
mas se reduz quando contemplamos Podem incluir-se nesse item as inter-
o universo em seu conjunto (Leibniz, pretações de Marx que não coaduna-
Wolff e Pope); o pessimismo, que po- ram com a forma mais ou menos mo-
de ser radical ou moderado e que en- nolítica que o marxismo adotou, de-
controu uma expressão metafísica em pois de Lênin, na União Soviética; as
vários sistemas (Schopenhauer, E. interpretações de Marx que prolife-
von Hartmann); o meliorismo, tan- raram uma vez quebrado o marxis-
to na forma do progressismo teórico mo ortodoxo antes citado; as que re-
quanto na da ação contra o mal efe- ceberam o nome de “marxismo oci-
tivo e concreto (Voltaire); o dualis- dental”*; a prática do marxismo no
mo, segundo o qual o mal possui certa pensamento de Mao Tse-tung; as ten-
substancialidade, sendo até, ocasio- tativas de revivificação do marxismo
nalmente, personificado, e que, co- com base no retorno às fontes, etc.
mumente, termina por supor que o Em alguns casos, chamou-se de
bem triunfará sobre o mal. É fácil “marxismo” os métodos, doutrinas
perceber que todas as doutrinas cita- eideais políticos adotados em vários
das apóiam-se numa axiologia. países e por numerosos grupos na
época da luta contra o imperialismo
MARXISMO Entendeu-se por e o colonialismo; chamou-se inclusi-
“marxismo”: (I) o pensamento de ve de “marxismo” todo programa
Marx, quer tomado em seu conjunto político revolucionário. É evidente
451 MARXISMO

que se recorreu, então, ao marxismo bém pelas circunstâncias que o leva-


de modo tão indiscriminado que, ram à vida jornalística e política, e
com frequência, o termo ““marxis- não à vida acadêmica, Marx, embo-
mo” perdeu seu significado. Não há ra solidamente formado na cultura
dúvida, porém, de que o marxismo filosófica e histórica da época, sen-
é um rio caudaloso, ao mesmo tem- tia forte inclinação para o estudo da
po ideológico e prático, capaz de realidade concreta — fatos históri-
diversificar-se consideravelmente e cos, estado das leis, condições eco-
que dá margem a constantes renas- nômicas e sociais, etc. Por isso, foi
cimentos e revivificações. dito que há em Marx — e, portan-
Trataremos do marxismo sob ca- to, no que logo se chamará ““marxis-
da um dos itens acima indicados, mo” — um hegelianismo ““inverti-
mas devem-se levar em conta dois do”, positivo e até “positivista”. À
pontos. O primeiro é que, embora dose que possa haver de hegelianis-
haja diferenças entre os três aspec- mo, invertido, transposto ou não, no
tos do marxismo assinalados, tam- marxismo é um tema que suscitou
bém existe algo em comum entre to- inúmeras discussões e deu lugar a at1-
dos eles, a saber: o que em cada ca- tudes muito diversas, desde os que
so se trata de revivificar, interpretar aproximam rigorosamente Marx de
ou transformar. O segundo é que Hegel até aqueles que os separam por
uma parte básica do que se entende completo, alegando que os elemen-
usualmente por “marxismo” está tos hegelianos são acidentais e que,
constituída pelas doutrinas chama- se tivesse produzido sua obra num
das “materialismo histórico” e “ma- outro momento, Marx teria realiza-
terialismo dialético””. Remetemos o do essencialmente a mesma obra
leitor, portanto, a esses dois verbe- dentro de um marco filosófico de re-
tes, assim como ao verbete sobre dia- ferência distinto.
lética, todos os quais devem ser con- Na medida em que se possa dar o
siderados suplementos do presente. nome de “marxismo” ao pensamen-
(1) Tem sido frequentemente subl1- to de Marx, esquecendo-se de que o
nhada a atração que exerceu sobre próprio Marx declarou numa ocasião
Marx o sistema de Hegel, sobretudo não ser marxista — o que significa,
tal como era exposto e propagado entre outras coisas, negar-se a ficar
pelos “jovens hegelianos** de Berlim, encerrado num pensamento mais ou
entre os quais se destacava Eduard menos ““congelado”* —, cabe falar
Gans. Mas logo essa atração foi con- do marxismo do “jovem Marx” ou
trabalançada pela hostilidade para do “primeiro Marx”. É o pensamen-
com todo pensamento puramente to que se expressou principalmente
“especulativo” e “idealista”, susce- nos Manuscritos econômicos e filo-
tível de toda classe de combinações sóficos de 1844, onde as marcas de
de idéias e distanciado da ação e da Hegel e Feuerbach ainda são muito
prática. Por temperamento e tam- fortes, mas onde se aponta para di-
MARXISMO 452

reções distintas das daqueles dois de um modo muito especial à luz da


pensadores. Trata-se do que foi cha- situação social, econômica e política
mado ““marxismo humanista”, no de seu tempo. A colaboração com
qual se destacam os temas anacron!-
camente qualificados de ““existen-
Engels foi de extrema importância,
o fato'de Engels ter enveredado pelo
e
ciais”. O principal desses temas é o caminho do materialismo dialético
da alienação. Hegel já tratara da (ver), o qual não é, por assim dizer,
alienação tanto na forma da exterio- “originariamente marxista”, não de-
rização (Entãáusserung) do Espírito ve fazer esquecer o fato de sua fre-
quanto nas diversas maneiras de ex- quente e estreita colaboração, tanto
cisão e alheamento da consciência. teórica quanto, especialmente no Ma-
Marx tomou a idéia da exterioriza- nifesto do partido comunista, de 1848,
ção especialmente sob o aspecto da política.
alienação (Entfremdung) do homem, Falou-se, por vezes, do “Marx ma-
em especial do trabalhador, numa duro” ou do “segundo Marx”', isto
sociedade em que existe separação é, o Marx da Crítica da economia po-
entre capital, renda e trabalho. Na lítica e de O capital, e estabelece-
sociedade capitalista, não se leva em ram-se diferenças e comparações en-
conta a relação direta entre o traba- tre os “dois Marx”. Certos autores
lIhador (o trabalho) e a produção; destacaram a importância do Marx
produz-se, desse modo, um trabalho humanista em face do Marx econo-
alienado. Assim, o produto do tra- mista e sociólogo; outros fizeram o
balho converte-se num objeto alheio oposto; ainda outros, enfim, subli-
ao trabalhador e que exerce poder nharam a continuidade do pensa-
sobre ele. Marx ainda emprega aqui mento de Marx, continuidade que pa-
o concelto de ““ser espécie” (ver) for- rece ter sido demonstrada com o ““elo
mulado por Feuerbach, mas, dentro perdido” dos Grundrisse de 1857-
dele, identifica a alienação do ser es- 1858. Referimo-nos a esses pontos no
pécie com a de um homem em rela- final do artigo sobre o materialismo
ção a seus semelhantes: É, pois, um histórico. Esse artigo pode servir,
fato de economia política, e não ape- além disso, como exposição de algu-
nas uma idéia filosófica. mas das orientações mais destacadas
Aquilo que Hegel chamava de ““Es- de Marx e equivale a um breve esbo-
piírito”* converte-se, pols, num con- ço do marxismo no sentido em que
ceito ou numa ideologia encobrido- O tratamos aqui. Completaremos a
ra da verdadeira realidade histórica.
Essa realidade histórica foi estudada
informação ali fornecida com a men-
ção aos resultados mais importantes
por Marx à luz dos economistas fran- da análise e da crítica marxista no que
ceses e ingleses (Ricardo, Quesnay, se refere à formação e à estrutura da
Adam Smith), dos socialistas utópi- sociedade, com particular referência
cos franceses (especialmente Fourier à análise e à crítica da sociedade bur-
e Proudhon) e de Saint-Simon, mas guesa capitalista.
453 MARXISMO

As idéias de Marx sobre o homem ções internas que separam a socieda-


como conjunto de suas relações so- de capitalista acentuam a sua crise.
ciais e sobre o caráter básico dos mo- As massas proletarizadas transfor-
dos e relações de produção levaram- mam radicalmente a sociedade. Po-
no a examinar como se processa a di- der-se-ia supor que nasce, então, ou-
visão de classes em várias sociedades. tro tipo de sociedade, em que ressur-
Em pelo menos duas ocasiões, Marx
fez referência ao “modo asiático de
ge a oposição entre possuidores e de-
sapossados. Entretanto, a transfor-
produção”, sem que se possa saber mação revolucionária causada pelo
em que medida esse modo é integrá- proletariado rompe a cadeia de uma
vel a outros, ou explicável em virtu- história em que se produzem conti-
de dos mesmos conceitos e usando o nuamente defasagens entre as forças
mesmo método empregado para en- de produção e as relações de produ-
tender outros. Mas, como quer que ção. A nova sociedade não é uma so-
seja, resulta clara a idéia de um co- ciedade em que há tensão entre clas-
munismo primitivo onde não há pro- ses, mas tampouco há harmonia en-
priedade privada, mas tampouco tre elas, já que é uma sociedade sem
existe divisão do trabalho. Isso im- classes e, por conseguinte, sem explo-
pede o progresso, que só se torna pos- radores nem explorados. Só então o
sível ao criar-se organizações sociais homem chega a ser livre e pode pro-
mais complexas. A divisão do traba- duzir-se o “salto definitivo para a l1-
lho que tem lugar nelas é vantajosa berdade”, que até então tinha sido
do ponto de vista da produção, mas meramente fictício. Do ponto de vista
gera desigualdades que se traduzem econômico-sociológico, o pensamen-
na formação de classes, em particu- to de Marx aponta para um planeja-
lar as duas classes fundamentais: a mento da produção de tal índole, que
classe dos possuidores, que dispõem ficam abolidas todas as divisões de
dos meios de produção, e a dos de- classes. Do ponto de vista jurídico,
sapossados, que constituem a classe aponta para uma supressão do Esta-
trabalhadora. Há vários tipos de so- do, que, sob a pretensão de liberda-
ciedades de classes, mas destacam-se des formais, constituíra-se num ins-
dentre elas a sociedade antiga, basea- trumento de exploração. Do ponto de
da na escravatura, a sociedade feu- vista filosófico, aponta para uma so-
dal e a sociedade capitalista burgue- ciedade global e realmente livre, sem
sa moderna. A sociedade capitalista disfarces ideológicos. A sociedade
é, de certo modo, a mais progressis- comunista sem classes, e sem Estado
ta, mas também a menos igualitária, — ou, pelo menos, sem Estado opres-
Já que as igualdades proclamadas ne- SOr —, constituirá o triunfo do ho-
la são meramente formais. Produz- mem sobre toda servidão.
se, então, ao mesmo tempo, um au- A filosofia econômica do marxis-
mento de riqueza e de miséria, derra- mo é complexa. Mas podem desta-
cionalização e de caos. As contradi- car-se nela algumas características
MARXISMO 454

capitais, como as seguintes: (1) os uma multidão de idéias filosóficas


produtos lançados no mercado têm que se concretizam especialmente nu-
um preço; (2) para obter esses pro- ma antropologia filosófica e numa fi-
dutos, usa-se o trabalho dos assala- losofia da história. Os que, como Al-
riados, trabalho a que também se dá thusser, sustentaram a existência de
um preço, convertendo-se em mer- um ““corte epistemológico” entre o
cadoria; (3) o que o assalariado pro- primeiro Marx e o segundo Marx, en-
duz tem um valor superior ao salá- fatizaram o caráter “espiritualista”
rio recebido pelo trabalhador, e isso desse pensamento como explicação
ainda descontando os custos de pro- das estruturas fundamentais da socie-
dução, distribuição, etc. O excesso dade humana; a exposição dessas es-
em questão é a mais-valia, que é sub- truturas torna possível compreender
traída ao trabalhador pelo capitalis- as estruturas superficiais e mais visí-
ta. O progresso técnico e as necessi- veis, e isso não só numa determina-
dades da concorrência obrigam os da fase da história, mas em toda a
capitalistas a formar grandes mono- história humana. Mas, ainda que
pólios, destruindo desse modo as pe- possa haver diferenças entre os ““dois
quenas empresas e a classe social Marx”, os interesses do “Marx ma-
possuidora dessas empresas — a duro”* não parecem alheios aos do
“pequena burguesia”; (4) ocorrem “Jovem Marx", pelo menos na me-
crises inevitáveis (crises de superpro- dida em que este também desenvol-
dução, por exemplo) no mercado ca- ve um esforço no sentido de descre-
pitalista; essas crises geram conflitos ver um tipo de alienação real e, em
(inclusive guerras), no decorrer dos última instância, estrutural que ca-
quais o capitalismo se autodestrói; racteriza o trabalho a partir do mo-
(5) a quantidade de proletários e de- mento em que deixa de funcionar o
sapossados aumenta à medida que a comunismo primitivo. Além disso, e
quantidade de capitalistas e opresso- sobretudo, há, em Marx, imperativos
res diminui. morais sem os quais não se entende-
A atenção dada à explicação da gê- ria a influência por ele exercida so-
nese, à descrição da estrutura e à crí- bre pensadores de procedências mui-
tica da sociedade capitalista, bem co- to diversas. A estreita relação entre
mo a predição da derrocada dessa so- teoria e prática, e a decidida negação
ciedade, vítima de suas crises inter- de um abismo entre fatos e valores,
nas e da força revolucionária do pro- constituem pressupostos que pare-
letariado, que vai assumir o poder cem constantes em todas as fases do
com o fim de implantar uma socie- pensamento de Marx.
dade sem classes, parecem fazer de Um dos pontos mais discutidos no
Marx, fundamentalmente, um eco- pensamento de Marx e, em geral, no
nomista e um sociólogo. Entretanto,
o pensamento de Marx, e não só o de
“marxismo” é o de se apurar se se
trata de uma doutrina determinista,
sua primeira época, é animado por segundo a qual há um conjunto de
455
MARXISMO

forças impessoais regidas por leis ine- modo de explicar (e mudar) a histó-
lutáveis. Se assim fosse, a transição ria, uma série de normas para a ação
de um tipo de sociedade para outra política que devem variar de acordo
seria inevitável, em virtude do desen- com as circunstâncias históricas, uma
volvimento dialético. ideologia, etc. As respostas que se dão
É plausível sustentar que, pelo me- em cada caso dependem, em grande
nos em Marx, não há semelhante de- parte, do modo como se entenda o
terminismo, nem mesmo dissimula- marxismo; mas, ainda assim, é difí-
do sob a forma de um processo dia- cil justificar uma resposta taxativa a
lético. É certo que Marx trata de en- favor de apenas uma das alternativas
contrar as leis que governam a estru- indicadas. Houve no próprio Marx
tura das sociedades e a passagem de mudanças a respeito. Mesmo que se
um tipo de sociedade a outra. Nesse enfatize ao máximo a continuidade de
sentido, as intenções, idéias, ideais seu pensamento, é óbvio que, en-
e atos dos homens enquadram-se em quanto no começo Marx trabalhava
leis. Mas não se trata de leis deter- dentro de limites normalmente con-
ministas de tipo físico. De fato, a siderados ““filosóficos”, seus interes-
evolução da espécie humana é a evo- ses especificamente filosóficos foram
lução e o progressivo desenvolvimen- diminuindo, ou atenuaram-se, em be-
to das possibilidades de influir sobre nefício de seus interesses sociológicos,
as estruturas soclais e, concomitan- políticos e econômicos. Por isso, se
temente, de influir sobre o domínio disse que o marxismo do Marx ma-
que os homens podem ter sobre si duro aspira a ser uma ciência. Embo-
mesmos. Daí a importância da ati!- ra admitindo essas diferenças, há,
vidade humana na configuração e na contudo, uma constante na atitude de
transformação sociais, e a possibili- Marx, que consiste em sua firme con-
dade de que o pensamento marxista vicção socialista e comunista. Na me-
tenha logrado desenvolver-se numa dida em que Marx tratou de dar uma
filosofia da práxis. explicação das mudanças sociais, seu
Subsiste ainda um questão impor- pensamento é de caráter sociológico.
tante, a qual tem sido debatida com O problema é saber se a sociologia de
frequência, não só a respeito do pen- Marx é ou não equivalente a uma
samento de Marx, isto é, a respeito clência social objetiva — na suposi-
do marxismo tal como se expõe nes- ção de que se admita a possibilidade
te verbete e naquele sobre o materia- de tal ciência. Aqueles que admitem
lismo histórico, mas também no to- que sim sublinham o aspecto cienti-
cante a muitas outras formas de mar- fico do marxismo. Os que, como
xIsmo: trata-se da questão de saber Korsch ou Lukács, negam que seja,
se o marxismo é uma concepção do enfatizam o caráter fundamental-
mundo, uma filosofia, uma antropo- mente ““partidista”* do marxismo, o
logia filosófica, uma ciência — espe- qual não é, nesse caso, uma sociolo-
cificamente, uma sociologia —, um gia no sentido “vulgar”, mas a filo-
MARXISMO 456

sofia social da classe trabalhadora. tores como Michel Henry sublinha-


Entretanto, isso suscita a questão de ram no marxismo elementos filosó-
saber se é ou não uma ideologia. Pa- ficos que, em princípio, parecem ser
rece evidente que, se é, não pode ser difíceis de reconciliar com a maior
uma ideologia como as outras, já que parte das interpretações. Autores
se trataria, então, de uma ideologia como Ernst Mandel deram grande
destinada a, e capaz de, desmasca- atenção ao sistema econômico de
rar todas as demais ideologias. Mas Marx, na medida em que este possa
se se admite que é uma ideologia, 1s- servir para uma reconstrução da teo-
so pode ainda ser interpretado de vá- ria econômica com os dados e os
rios modos. Alguns indicam que é Instrumentos metodológicos atuais.
uma ideologia que desaparecerá as- Aliás, Mandel acolhe, segundo escre-
sim que se cumprir o processo his- veu, “os ensinamentos econômicos
tórico mediante o qual se poderá dar de Marx” como ““síntese da totali-
o ““salto para a liberdade”. Outros dade do conhecimento humano”, de
estão de acordo em que está destina- modo que sua reconstrução de Marx
da a desaparecer, mas justamente 1s- é uma teoria empírica com base fi-
so não faz do marxismo uma ideo- losófica.
logia, muito menos uma ciência, mas (ID É frequente entender por
sim uma filosofia: a filosofia da épo- “marxismo” um grupo considerável
ca presente, por meio da qual esta das idéias resumidas no item anterior
época supera a si mesma. somadas às contribuições de Engels,
As conclusões que se obtêm de- não só nas obras em que este cola-
pendem, em boa parte, dos interes- borou com Marx, mas também em
ses intelectuais dos intérpretes. Au- obras próprias, desde o chamado
tores como Vilfredo Pareto, Karl Anti-Diúhring até seu livro sobre A
Mannheim e Max Weber, destaca- dialética da natureza. Alguns auto-
ram os elementos sociológicos do res consideram que Engels comple-
marxismo. Autores como Lukács, tou a obra de Marx; outros, que se
Sartre e Marcuse enfatizaram seus desviou dela. Para tanto, mencio-
elementos filosóficos — ou, em al- nam o materialismo dialético (ver),
guns casos, os elementos ideológicos que Engels defendeu em conjunto
no sentido sui generis de uma ideo- com o materialismo histórico, ao
logia que derrota todas as ideologias. qual Marx “se limitou”. Em todo
Autores como Lênin e Mao Tse-tung caso, seja por obra do próprio En-
— em formas muito distintas — des- gels, seja pela de alguns intérpretes,
tacaram os elementos políticos e tomou-se às vezes como ““mar&xis-
político-filosóficos. Autores como mo” um corpo doutrinário mais ou
Gramsci sublinharam os elementos menos unificado, fundamentado ao
“sociais” — que, aliás, são interpre- mesmo tempo em Marx e Engels.
tados como englobando aspectos po- Seria inadequado equiparar essa
líticos, econômicos e culturais. Au- forma de entender o marxismo com
457 MARXISMO

a “linha geral” da filosofia soviéti- negação da negação. Nesse sentido,


ca, porquanto esta inclui uma siste- O marxismo representa uma espécie
matização do leninismo e, por outro de emergentismo (ver EMERGEN-
lado, exclui aspectos do pensamen- TE) naturalista e materialista. As leis
to de Marx que não encaixam em dialéticas de referência continuam
certos contextos. Além disso, há na com um esquema que se atribuiu a
filosofia soviética elementos impor- Hegel: o esquema da tese-antítese-
tantes da forma de entender o mar- síntese (ver), ou seja, da tese como
xiIsmo a que nos referiremos neste afirmação, da antítese como negação
1tem. e da síntese como negação da nega-
Do ponto de vista filosófico, o ção. As negações não são negações
marxismo enquanto sistematização lógicas; sobretudo, a negação da ne-
de Marx e Engels sustenta que o ser gação consiste num movimento de
prima sobre a consciência. Esta re- “absorção” ou “superação”. A to-
flete o ser — ou a realidade — de talização, que era característica do
modo que se formula uma epistemo- método de Marx em seu estudo das
logia realista, não só contra todas as sociedades, converte-se, aqui, num
formas de idealismo, mas também conceito aplicável à realidade Inteira.
contra todas as formas de fenome- A Natureza é concebida como uma
nismo. Como o ser, ou realidade, de realidade material infinita no espa-
que se trata é a matéria, propugna- ço e no tempo; dessa realidade sur-
se um materialismo. Não é o mate- gem os organismos que continuam
rialismo mecanicista, mas o materia- sendo materiais e dos organismos
lismo dialético. Por nos termos re- surgem os processos psíquicos, que
ferido a este último no verbete cor- também estão enraizados na matéria
respondente, limitar-nos-emos a su- e são, em última análise, materiais.
blinhar, aqui, os pontos essenciais. O conhecimento tem lugar por meio
Entende-se que o que continua sen- dos órgãos dos sentidos, que são ma-
do chamado, de todos os modos, de teriais; conhecer é, pois, um modo
“marxismo” constitui uma Inversão de relação de uma ““matéria”* com
de Hegel, mas, ao mesmo tempo que uma “matéria”. A Natureza como
se refuta o conteúdo do pensamento realidade material também é com-
deste filósofo, adota-se seu método. preendida de acordo com certas ca-
Este é aplicável a toda a realidade e, tegorias fundamentais, entre as quais
para principlar, à realidade natural. destacam-se as da necessidade e as da
A dialética da Natureza rege-se por interação. Pois bem, tanto essa ne-
leis, das quais se destacam três que, cessidade quanto essa interação têm
segundo alguns autores, são as mais lugar não mecanicamente, porém,
fundamentais ou as únicas: a lei da uma vez mais, dialeticamente. O pu-
transformação da quantidade em ro mecanicismo é um fatalismo. O
qualidade, a lei da unidade e inter- idealismo é um ““contingentismo”
dependência dos opostos, e a lei da (radical) injustificado. Somente o
MARXISMO 458

materialismo dialético permite coor- te propugnada por Leon Trotsky e


denar a necessidade com a vontade. à adoção da “linha geral” de cará-
Pode-se dizer que o marxismo de ter stalinista, com as modificações
que estamos falando agora é um ma-
terialismo histórico suplementado
depois introduzidas pelo ““degelo”e
o período pós-stalinista. Outra in-
por um materialismo dialético e, se- terpretação deu origem a doutrinas
gundo alguns autores, alicerçado num filosófico-políticas não soviéticas,
materialismo dialético. Enquanto como as de Mao Tse-tung e Tito, e
materialismo histórico, esse marxis- a outras politicamente pró-soviéti-
mo sustenta fundamentalmente as te- cas, mas culturalmente independen-
ses de Marx descritas na seção an- tes, como a de Fidel Castro. Outra
terior. interpretação é a dos que, opondo-se
(III) No 1tem (II) descrevemos um ao marxismo-leninismo oficializado
corpo doutrinário que poderia cha- e institucionalizado, justificaram o
mar-se de Marx-Engels. Muitas va- marxismo leninista como a versão
riedades de marxismo, quer sob a mais adequada do marxismo na épo-
forma filosófica, quer como conjun- ca do imperialismo. Esses autores
to de diretrizes de ação política, le- destacaram que Lênin enfatizou o
varam em conta esse corpo doutri!- papel ativo e revolucionário do pro-
nário, nele introduzindo modifica- letariado, com o qual se opôs a um
ções mais ou menos profundas. determinismo histórico para o qual
Pode-se citar, a respeito, o chama- a revolução, em última instância, é
do ““revisionismo”*' (ver) de autores inevitável.
como Eduard Bernstein e o anti- Além do de Lênin, os movimentos
revisionismo de Karl Kautsky. Au- de interpretação e renovação do mar-
tores como Lênin e Plekhanov de- XISmo mais interessantes ocorreram
fenderam o que consideraram ser a fora do quadro estrito da filosofia
versão correta do marxismo; mas oficial soviética. É costume qualifi-
suas convicções políticas — ““bolche- car esses movimentos como ““marxis-
vistas” em Lênin e, durante certo mo não-ortodoxo* ou “marxismo
tempo, “menchevistas” em Plekha- heterodoxo*', mas os termos de refe-
nov — fizeram acentuar suas diver- rência podem prestar-se a confusões.
gências filosóficas. A versão mais De um lado, não é necessário, nem
influente do corpo doutrinário de certo, que o marxismo oficial sovié-
Marx-Engels foi a de Lênin, mas tico seja mais ortodoxo que os demais
também este foi interpretado de mo- movimentos marxistas em relação ao
dos distintos. Uma interpretação deu pensamento de Marx, ou até com res-
origem ao chamado ““marxismo- peito ao complexo ““Marx-Engels” e,
leninismo”* na versão da filosofia às vezes, com respeito ao próprio
oficial soviética, a qual seguiu a evo- “marxismo-leninismo”'. De outro,
lução política que levou à eliminação há, inclusive dentro da filosofia so-
da doutrina da revolução permahen- viética, tendências não estritamente
459 MATERIALISMO DIALÉTICO

ortodoxas; pelo menos, houve-as, an- “originário”, outros tratam de adap-


tes do predomínio completo de Sta- tar o pensamento de Marx (ou o de
lin, com Trotsky e Bukharin. Final- Marx e Engels) à nossa época; en-
mente, o chamado “marxismo não- quanto uns destacam o aspecto ““hu-
ortodoxo” ou “marxismo heterodo- manista”* do marxismo, outros en-
xo” inclui tal variedade de tendências fatizam seu caráter científico; en-
e interpretações que as palavras quanto uns se interessam por suas
“não-ortodoxo” ou ““heterodoxo” raízes hegelianas, outros tendem a
acabam por dizer muito pouco. esquecê-las quase por completo; en-
Se tomarmos, porém, “*“não-orto- quanto uns sublinham seu caráter de
doxo”* como indicando simplesmen- teoria social, outros insistem em seu
te que não segue a filosofia oficial aspecto de prática revolucionária.
soviética, poderemos incluir no pre- Alguns, por certo, tratam de unifi-
sente 1tem praticamente todas as car esses diversos aspectos ou, pelo
mais destacadas variantes do marxis- menos, vários deles. Falou-se, por
mo. Já nos referimos a algumas das vezes, de um “marxismo vivo” e,
que obtiveram maior ressonância po- também, de um ““neomarxismo”,
lítica ou às que se desenrolaram con- para caracterizar muitas dessas cor-
temporaneamente a Lênin. Há que rentes; mas, ainda que reduzamos
adicionar-lhes muitas outras, em es- seu número, continua sendo difícil
pecial as que se resumem sob a de- dar-lhes uma característica tão geral.
signação de “marxismo ocidental”, A possibilidade de diversificação do
à sombra da qual se congregam au- marxismo a que aludimos no come-
tores influentes e originais, como ço deste verbete fica confirmada pe-
Lukács, Gramsci e Bloch, além de los últimos desenvolvimentos. As
outros de orientações consideravel- disputas entre marxistas humanistas
mente diversas: Kosik, Kolakows- e marxistas estruturalistas é apenas
ki, Korsch, Lefêbvre, Lucien Gold- uma das fases da indicada diver-
mann, Sartre, Althusser, etc. Cum- sidade.
pre considerar também o ““austro-
marxismo” de autores como Max MATERIALISMO DIALÉTICO O
Adler e os trabalhos dos membros da materialismo dialético — expressão
“Escola de Frankfurt”, ainda que forjada por Plekhanov e abreviada
alguns deles sejam marxistas de um diamant — é uma das espécies de
modo bastante sui generis: Adorno, materialismo. Por vezes, identificou-
Horkheimer, Marcuse, Fromm, Ha- se “*“materialismo dialético” com
bermas, etc. “marxismo”, mas, em virtude das
É difícil estabelecer uma classifi- muitas e variadas espécies de marxis-
cação razoavelmente esclarecedora mo (ver), tal identificação é pouco
de orientações marxistas e paramar- plausível. Em todo caso, não se po-
xistas. Cabe dizer que, enquanto uns de identificar o materialismo dialé-
tratam de retroceder até um Marx tico com o pensamento de Marx,
MATERIALISMO DIALÉTICO 460

mesmo que se leve em conta que este va, que se supõe caracterizar ainda
foi materialista, que o seu materialis- as ciências, e estas puderem consti-
mo opôs-se ao materialismo mecani- tuir-se dialeticamente, ou materialís-
cista, que usou um tipo de pensamen- tica-dialeticamente.
to que ocasionalmente exibiu forte Engels desenvolveu o materialismo
cunho dialético e, inclusive, que deu dialético na obra A subversão das
sua aprovação ao que logo veio a ser ciências pelo Sr. Dúhring (Herrn
considerado como uma das leis dia- Duhring Umwalzung der Wissens-
léticas formuladas pelo materialismo chaften, 1878; publicada como uma
dialético, a saber: a passagem da série de artigos em Vorwaárts, 1877),
quantidade à qualidade, segundo o conhecida pelo nome de Anti-Duúh-
modelo da Lógica de Hegel. Entre- ring, bem como numa série de ma-
tanto, nada disso faz de Marx um ma- nuscritos procedentes de 1873-1883
terialista dialético stricto sensu; o ma- e publicados pela primeira vez em
terialismo de Marx é, em contrapar- 1925 com o título de DialekKktik der
tida, um materialismo histórico (ver). Natur (há edições posteriores e mais
A mais simples e influente formu- fidedignas). Embora Engels se opu-
lação do materialismo dialético en- sesse ao idealismo, inclusive ao 1dea-
contra-se em Engels, que, com 1sso, lismo de Hegel, encontrou nesse pen-
acreditou não se desviar de Marx, sador apoio para uma ““filosofia da
ou, em todo caso, acreditou comple- Natureza” que descartava e supera-
tá-lo. A formulação de Engels incor- va o materialismo mecanicista carac-
porou-se ao marxismo qualificado de terístico de grande parte da física
“ortodoxo”, que descrevemos no ar- (mecânica) moderna e, em particu-
tigo MARXISMO (II). Isso não sig- lar, das interpretações filosóficas da
ciência moderna que proliferaram no
nifica que somente os marxistas ““or-
todoxos”* sejam materialistas dialé- século XIX por obra de Ludwig
ticos. É possível sustentar o materia- Búchner e outros autores. Segundo
lismo dialético dentro de formas de Engels, esse materialismo é superfi-
marxismo ““não ortodoxo”? — pelo cial, não leva em conta que os mo-
menos, não ortodoxo a respeito do delos mecânicos não se aplicam a no-
aludido marxismo ortodoxo. Isso vos desenvolvimentos científicos, co-
pode ocorrer de vários modos, entre mo os registrados na química, na
OS quais se destacam como um inten- biologia e, em especial, como se ma-
to de suplementar e sistematizar o nifestam na teoria da evolução das
marxismo numa forma distinta do espécies. O materialismo mecanicis-
conglomerado hoje tradicional ta “vulgar” tampouco leva em con-
“Marx-Engels-Lênin”', ou “marxis- ta O caráter prático do conhecimen-
mo-leninismo”'; ou, então, como to e o fato de que as ciências não são
uma possibilidade para o futuro, independentes das condições sociais
quando se tiver “absorvido” por e das possibilidades de revolucionar
completo a razão analítica e positi- a sociedade.
461 MATERIALISMO DIALÉTICO

Enquanto o materialismo mecani- resultados das ciências; pelo contrá-


cIsta se apóia na idéia de que o mun- rio, explica, justifica e sintetiza es-
do está composto de coisas e, em úl- ses resultados. A despeito do exem-
tima Instância, de partículas mate- plo citado na matemática, indagou-
riais que se combinam entre si de um se amiúde até que ponto as ciências
modo ““inerte””, o materialismo dia- formais, especificamente a lógica,
lético afirma que os fenômenos ma- são dialéticas e estão submetidas às
teriais são processos. Hegel teve ra- leis enunciadas pelo materialismo
zão em insistir no caráter global e dialético. Engels expressou-se a res-
dialético das mudanças nos proces- peito de um modo um tanto ambi-
SOS naturais, mas errou ao fazer des- valente, pois enquanto a lei de refe-
sas mudanças manifestações do ““Es- rência tem, em seu entender, um al-
pírito””. Cumpre ““inverter” a idéia cance verdadeiramente universal, por
hegeliana e colocar na base a maté- outro lado as próprias leis dialéticas
ria, na medida em que se desenvol- constituem um elemento Iinvarlável.
ve dialeticamente. A dialética da Na- Dado que a própria lógica é dialét!-
tureza procede de acordo com as três ca, parece que não cabe indagar se
grandes leis dialéticas: lei da passa- a própria lógica dialética é ou não
gem da quantidade à qualidade, lei dialética; não parece que se possa ne-
da interpenetração dos contrários gar e lógica dialética por outra lógi1-
(ou opostos) e lei da negação da ne- ca não dialética. Além disso, a ne-
gação. Negar que há contradições na gação da negação dessa lógica dia-
Natureza é, segundo Engels, manter lética daria uma lógica dialética su-
uma posição metafísica; o certo é postamente ““superior”.
que o próprio movimento está cheio Se as leis dialéticas abrangem uma
de contradições. São contradições esfera de ação universal, terão que
“objetivas”, e não ““subjetivas”'. afetar todas as ciências, incluídas as
Sem a constante luta dos opostos é formais, como é o caso da lógica.
impossível explicar as mudanças. Cabe entender isto como (1) as ciên-
O caráter de luta e oposição de cias formais ““contêm” leis dialéti-
contrários é, segundo Engels, univer- cas — como a negação da negação;
sal. Manifesta-se não só na socieda- logo, a lógica dialética contém leis
de e na Natureza, mas também na dialéticas; (2) a lógica dialética é dia-
matemática. A negação da negação lética em si mesma; logo, terá que ser
manifesta-se em que de um germe negada (e superada) por outra lógi!-
procede uma planta que floresce e ca; se esta segunda lógica não fosse
morre, produzindo outro germe que dialética, teríamos de concluir que a
volta a florescer. Também se mani- denominada ““lógica dialética”* não
festa em que a negação de uma quan- engloba a citada esfera universal, já
tidade negativa dá uma quantidade que não se aplica à si mesma.
positiva. O materialismo dialético De outro lado, se essa lógica fos-
não é, segundo Engels, contrário aos se dialética, então seria necessário su-
MATERIALISMO DIALÉTICO 462

por uma lógica dialética “superior”, lismo dialético e a epistemologia


que, por sua vez, deveria ser negada “realista” e “científica” que o acom-
— e superada — por outra, com o panham é, segundo Lênin, a doutri-
que todo o processo de questões se na que se deve adotar para se lutar
iniciaria de novo. Em outras pala- em favor do comunismo. Isso pare-
vras, parece que, se a lógica é uni- ce converter o materialismo dialéti-
versal, não é dialética; e, se é dialé- co numa ideologia cuja verdade de-
tica, não é universal. No verbete pende da situação histórica. O ma-
DIALÉTICA já nos referimos a es- terialismo dialético é, em suma,
se tema da autonomia e heteronomia “partidista””. Não obstante, esse par-
da lógica formal em relação ao ma- tidismo não pode equiparar-se ao das
terialismo dialético. ideologias não-proletárias e não-re-
Depois de Engels, muitos autores volucionárias; se é uma ideologia, é
seguiram-no no caminho do materia- uma que contribui para trazer ao
lismo dialético, embora o modificas- mundo a ““teoria verdadeira”, que é
sem de vários modos. Foi o que su- a que corresponde à sociedade sem
cedeu com Lênin, com quem se ini- classes.
cia uma tradição de materialismo Nas discussões entre os materialis-
dialético chamada ““marxista-leninis- tas dialéticos surgiu com frequência
ta”. Lênin insistiu menos do que En- o problema de se, e até que ponto,
gels na noção de “matéria” como cumpre destacar o aspecto materia-
realidade submetida a mudanças de lista ou o aspecto dialético. Em es-
acordo com um processo dialético, critos posteriores ao antes citado, es-
porque lhe interessava mais defender pecialmente nos Cadernos filosófi-
o realismo materialista contra o idea- cos, Lênin parece ter sublinhado de
lismo e o fenomenismo dos que se- modo considerável o aspecto dialé-
guiam autores como Mach e Avena- tico e, concomitantemente, o que in-
rius. Em Materialismo e empiriocri- terpretou como o verdadeiro méto-
ticismo, de 1909, Lênin equiparou a do hegeliano; mas isso ainda não
realidade material com a realidade equivale a deixar de lado o materia-
do mundo real “externo”, refletido lismo, sem o qual se desembocaria
pela consciência, a qual “copia” es- num idealismo. Assim, enquanto a
te mundo mediante as percepções. dialética, no materialismo dialético,
Estas não são símbolos ou cifras, enfatiza aspectos ““idealistas” e “he-
mas reflexos da ““própria realidade gelianos”, o materialismo na mesma
(material)”*. Isso não quer dizer que doutrina destaca, ou pode terminar
as percepções ou as sensações descre- por destacar em excesso, aspectos
vam o mundo real físico tal como ele puramente “mecanicistas”* ou ““su-
é. O verdadeiro conhecimento deste perficiais”. Por isso, o equilíbrio en-
mundo é o conhecimento científico, tre dialética e materialismo no ma-
mas a percepção não é incompatível terialismo dialético é um dos deside-
com esse conhecimento. O materia- rata de muitos dos autores que ade-
463
MATERIALISMO HISTÓRICO

riram a essa tendência. Procurou-se mo tempo, do marxismo, especifica-


ocasionalmente resolver o conflito mente na forma que corresponde ao
entre os dois componentes do mate- pensamento de Marx. Discutiu-se
rialismo dialético acentuando-se os muito se o materialismo histórico Já
aspectos ““práticos”. Assim ocorre, foi elaborado, ou elaborado com su-
por exemplo, com o maoísmo e com ficiente plenitude, pelo jovem Marx,
várias tendências políticas mais inte- isto é, o Marx dos Manuscritos eco-
ressadas na realização de um progra- nômicos e filosóficos de 1844. Os au-
ma do que em discutir as bases filo- tores que o negam fazem correspon-
sóficas subjacentes a ele. der o materialismo histórico ao Marx
“maduro”, especificamente o da
MATERIALISMO HISTÓRICO O Crítica da economia política, de
que Engels Já chamava de ““concep- 1859, e o de O capital, cujo primei-
ção materialista da história”, o que ro volume foi publicado em 1867. Os
Plekhanov qualificou de ““materia- que o afirmam, encontram no jovem
lismo histórico”? (abreviado às vezes Marx indícios de materialismo histó-
como Hismat nas línguas que, como rico, ainda que este seja frequente-
o russo e o alemão, o adjetivo pre- mente expresso em formas mais fi-
cede o nome; em contraste com Dia- losóficas, éticas e humanistas do que
mant, abreviatura de “materialismo foi corrente nas obras ulteriores de
dialético”), é característico do pen- Marx. Assim, uma exposição cabal
samento de Marx, ou, menos, de do materialismo histórico deveria
uma parte fundamental desse pensa- tratar o problema da continuidade
mento. Pode-se considerar também ou descontinuidade, ou dos graus de
como uma característica básica do uma ou de outra em Marx, bem co-
marxismo (ver) em todas as suas va- mo a questão do papel que os Fun-
riantes, salvo aquelas que, por se damentos de crítica da economia po-
afastarem tanto do pensamento de lítica (escritos em 1857-1858, geral-
Marx, mal podem ser qualificadas de mente citados como Grundrisse) de-
“marxistas”. sempenham no quadro total do pen-
É possível — e, segundo alguns samento de Marx.
autores, plausível — sustentar o ma- Em todo caso, seria necessário
terialismo histórico sem sustentar o apresentar a evolução do materialis-
materialismo dialético. Em contra- mo histórico e averiguar sua ““gêne-
partida, parece difícil, caso seja pos- se”, como foi feito, entre outros, por
sível, adotar o último sem aderir ao Mario Rossi. Mas como 1sso resul-
primeiro. Para alguns, além disso, o taria excessivamente extenso e com-
materialismo histórico está incluído plexo no âmbito da presente obra,
no dialético. limitamo-nos a supor que há no jo-
Consideraremos, aqui, o materia- vem Marx, pelo menos, a gênese do
lismo histórico como o método ou a seu materialismo histórico. Admiti-
doutrina, ou ambas as coisas ao mes- da essa gênese, e considerando que,
MATERIALISMO HISTÓRICO 464

a rigor, não poderiam ser entendidas ças nas condições materiais da exis-
muitas teses de A miséria da filoso- tência são o fundamento das mudan-
fia, de 1847, de A ideologia alemã, ças sociais e históricas. As demais
que procede do período de 1845- atividades humanas e produtos des-
1846, e do Manifesto do partido co- sas atividades humanas, como as
munista, de 1848, sem uma dose con- constituições dos Estados, as leis, os
siderável de materialismo histórico, produtos culturais, etc., acham-se
pode este atribuir-se a Marx já em subordinados aos modos de produ-
sua primeira época. Como À ideo- ção.
logia alemã e o Manifesto são de Marx insiste no caráter material da
Marx e Engels, há que atribuir tam- existência humana e de sua relação
bém a Engels a idéia do materialis- com o mundo. Nesse sentido, susten-
mo histórico — alguns autores indi- ta-se um materialismo, assim como
cam, inclusive, que Marx a adotou um naturalismo. Mas o que interes-
estimulado por Engels. Mas atribu- sa a Marx não é só a natureza hu-
indo-se a Engels sobretudo o mate- mana, mas também e sobretudo o
rialismo dialético, pode-se, por ora, que esta faz com o mundo. A natu-
a bem da simplificação, equiparar reza humana é uma abstração; o que
“marxismo” a “materialismo histó- ela faz com o mundo é uma realida-
rico”. A essa simplificação acrescen- de concreta, que muda e evolui. O
tamos outra, que consiste em esbo- materialismo é um método para en-
çar alguns pontos capitais do mate- tender a natureza humana em seu ca-
rialismo histórico em seu conjunto e ráter concreto e histórico. Por isso,
sem levar em conta sua evolução e não se trata de estabelecer leis seme-
suas variedades. lhantes às das ciências positivas da
Uma idéia fundamental é a da Natureza, mas, antes, de compreen-
transformação do mundo material der os mecanismos da formação das
por meio do trabalho. Sobretudo nu- sociedades e as mudanças que nelas
ma sociedade como a capitalista, o ocorrem. Essas mudanças são de na-
trabalhador separa-se do seu traba- tureza dialética, no sentido de que se
lho, ou aliena-o, e este se converte produzem nas sociedades conflitos
num produto suscetível de compra e que se resolvem por meio de trans-
venda. Isso se deve ao modo de pro- formações fundamentais da estrutu-
dução dos meios de existência e às ra. A dialética usada no método do
relações de produção. Entender es- materialismo histórico não é uma
ses modos e essas relações de produ- dialética ontológica. Tampouco é
ção é entender a formação das socie- uma dialética da consciência ou uma
dades. Assim, o mundo material e o dialética conceitual. É uma dialéti-
que os homens fazem com ele cons- ca real, que permite entender que, na
tituem as bases para entender a his- história, enquanto luta de classes, há
tória dos homens como história das negação de uma classe por outra. As-
sociedades. Com efeito, as mudan- sim, as relações de produção ficam
465 MATERIALISMO HISTÓRICO

oportunamente defasadas a respeito determinam as estrututas sociais e,


dos modos. A classe dominante, que concomitantemente, a história das
dera impulso aos modos de produ- sociedades. Isso levou alguns auto-
ção, cai vítima de suas próprias ten- res a sustentarem que, de acordo
sões internas e contradições, para ce- com o materialismo histórico, a eco-
der o lugar a uma classe desapossa- nomia é a base da história e de to-
da, que irá tomar em suas mãos os das as suas estruturas. Mas, embora
modos de produção. De certa manei- seja certo que as relações econômi-
ra, a classe dominante auto-aniquila- cas de produção são básicas, não O
se, mas não de uma forma puramen- são à maneira de um setor da reali-
te mecânica; sem a atividade revolu- dade a que se reduzam todos os ou-
cionária da classe emergente, não ha- tros. O que mais exatamente sucede
veria destruição total da classe até é que, em todasas atividades huma-
então possuidora, e a história se es- nas, estão presentes os modos e re-
tancaria. lações de produção material. O ma-
Em todo caso, a consciência hu- terialismo histórico de Marx é menos
mana não determina a existência so- um “economismo” do que uma con-
cial, mas é o inverso que ocorre. No cepção ““globalista”* da sociedade,
“Prefácio” à Crítica da economia em função dos modos e relações de
política, Marx escreveu que ““no cur- produção. Nesse sentido, Marx foi
so da produção social que os homens fiel à sua famosa proposição na Sex-
empreendem, estes relacionam-se en- ta Tese sobre Feuerbach, segundo a
tre si de modos definidos e indepen- qual o homem é o conjunto de suas
dentes de sua vontade. Essas relações relações sociais.
de produção correspondem a um es- sendo uma investigação das estru-
tado definido do desenvolvimento turas sociais e da história humana,
dos seus poderes materiais de produ- o materialismo histórico é um méto-
ção. A soma dessas relações de pro- do que tem certo número de pressu-
dução constitui a estrutura econômi- postos em virtude dos quais funcio-
ca da sociedade — o verdadeiro fun- na. Acentuar excessivamente o seu
damento sobre o qual se edificam as caráter metodológico equivaleria a
superestruturas legais e políticas e ao fazer do materialismo histórico um
qual correspondem formas bem de- tipo de sociologia positivista. Acen-
finidas de consciência social. O mo- tuar excessivamente seus pressupos-
do de produção da vida material de- tos equivaleria a convertê-lo numa
termina o caráter geral dos proces- doutrina filosófica da realidade hu-
SOS sociais, políticos e espirituais da mana. No pensamento de Marx, pe-
vida”. O caráter básico da produção lo menos, esses dois elementos —
material e social equivale à afirma- método, doutrina — compensam-se
ção de que os recursos disponíveis, mutuamente; mas, em todo caso, é
os produtos obtidos, os modos de próprio do materialismo histórico
obtê-los e as relações de produção proporcionar uma explicação con-
MENTALISMO 466

creta das formas fundamentais das dualista ou monista. O monismo


estruturas sociais humanas e das con- mentalista identifica-se amiúde com
dições e leis que regem suas mudan- o idealismo.
ças no transcurso da história. Marx Também é costume contrapor-se
aplicou o método indicado, com os o mentalismo ao materialismo e ao
pressupostos já apontados, ao estu- fisicalismo. Tal como estes últimos,
do da formação de várias sociedades, o mentalismo também pode ser en-
em particular ao estudo e crítica da tendido como uma posição ontoló-
sociedade burguesa capitalista. Re- gica, como uma posição epistemoló-
ferimo-nos a esse ponto em (1) do ar- gica ou, segundo ocorre com fre-
tigto MARXISMO. quência, ambas ao mesmo tempo.
Os linguistas que aderiram à lin-
MENTALISMO Os psicólogos que gúística estrutural norte-americana
seguiram as orientações do behavio- desde a obra de L. Bloomfield, Lan-
rismo qualificaram de “mentalismo” guage (1933), também qualificaram
toda tendência em psicologia opos- de mentalismo a linguística que não
ta ao behaviorismo. Aí se inclui to- adota métodos behavioristas.
da psicologia que faça uso de noções Contra a linguística baseada no be-
como ““alma”, ““espírito””, ““psi- haviorismo, ou associada a ele,
que”, “mente”, “faculdades men- Chomsky defendeu o “mentalismo”,
tais”, etc., assim como — do ponto referindo-se especificamente a Des-
de vista metodológico — toda psico- cartes e a outros racionalistas moder-
logia que recorra à introspecção. nos como predecessores de suas pró-
Na medida em que se opõe ao be- prias idéias. O mentalismo de
haviorismo, ou também a qualquer Chomsky não é, porém, ou não é ne-
reducionismo neurofisiológico — cessariamente, uma teoria a priori, ou
que não é necessariamente equipará- o resultado de alguma especulação fi-
vel ao behaviorismo —, toda a psi- losófica; apresenta-se como uma hi-
cologia ““clássica”, desde Aristóte- pótese empirica relativa à estrutura da
les até Wundt, é “mentalista””. Em- mente humana, na medida em que
bora sem admitir a estrita equipara- possui uma gramática universal capaz
ção entre mentalismo e dualismo de engendrar, uma vez recebidos os
corpo-alma, um exemplo eminente estímulos e as informações pertinen-
de mentalismo é o dualismo cartesia- tes, um número infinito de orações
no, segundo o qual a alma é uma em qualquer linguagem — na lingua-
substância cujas propriedades são gem que a criança aprende com rela-
completamente distintas das proprie- tiva “facilidade”, graças às regras da
dades materiais, as quais são redutí- gramática universal e aos universais
veis a propriedades da extensão. Mas linguísticos inatos na mente.
também constitul exemplo de men-
talismo o espiritualismo de Berkeley. METAFÍSICA Segundo uma idéia
O mentalismo pode ser, portanto, ainda muito difundida, o termo ““me-
467 METAFÍSICA

tafísica”* foi o nome dado por An- Segundo Reiner, toda uma série de
drônico de Rodes no século I a.C. à autores antigos, como Alexandre de
série de livros de Aristóteles, orde- Afrodisia, Asclépio, Temístio e Sim-
nados por letras do alfabeto grego, plício, tinha clara consciência de que
que se referiam ao que o próprio a disposição e o arranjo dos livros
Aristóteles chamou ““filosofia pri- “metafísicos” era função das distin-
meira”, trowTn prhocoÇvLa (prima fi- ções apontadas. Do ponto de vista
losofia), “teologia”, deohloyia, ou da ordem dos princípios, ou o que
“sabedoria”, copia. Como os livros é primeiro por natureza, os livros
em questão foram colocados na clas- metafísicos constituem o que Aristó-
sificação e na publicação de obras do teles chamou ““filosofia primeira”.
Estagirita depois dos oito livros da São, pois, ““anteriores”. Mas do
Física, chamou-se-lhes 1a nero TO ponto de vista do modo como conhe-
quorxa, tá metdá tá physicá, quer di- cemos, isto é, “para nós”, esses |l1-
zer, “os que estão depois da física” vros são posteriores aos físicos; daí
ou, mais exatamente, ““as colsas que serem neta TO QuoLlXA. ASSIM, à
estão depois das coisas físicas”. “metafísica” vem “depois da física”
Considera-se geralmente que essa numa forma mais fundamental do
designação, que teve no começo me- que aparecer casualmente depois
ra função classificatória, resultou “dos (livros) físicos” numa ordem
muito adequada, porque com os es- bibliotecária. Na realidade, Andrô-
tudos que são objeto da “prima fi- nico de Rodes seguiu Eudemo — e,
losofia”* constituiu-se um saber que com ele, o próprio ““espírito aristo-
aspira a penetrar “mais além de” ou télico” — ao empregar o nome ““me-
“depois dos” estudos ““físicos”, 1s- tafísica”, já que ““filosofia primei-
to é, dos estudos referentes à “Na- ra”, embora mais adequado em si,
tureza””, de modo que a metafísica é inadequado na ordem dos conhe-
é um saber que transcende o saber cimentos.
físico ou ““natural”. Segundo parece, Franciscus Patri-
A opinião vigente foi criticada por cius (Francesco Patrizi) (1413-1494)
Hans Reiner em dois artigos: “Die foi um dos primeiros, se não o pri-
Entstehung und urspriúngliche Bedeu- meiro, a manter a origem ““bibliote-
tung des Namens Metaphysik”' (Zeit- cária” de “metafísica” em suas Dis-
schrift fur philosophische Forschung, cussiones peripateticae, |. Uma das
“Die Entstehung
8, 1954, 210-37) e razões que o induziram a sustentar
der Lehre vom bibliothekarischen essa opinião é que a expressão uetax
Ursprung des Namens Metaphysik”, quorxa é posterior a Aristóteles; se
(1bid., 9, 1955,77-99). Que saibamos, este tivesse tido uma idéia definida
da crítica de Reiner só se fez eco Ta- da metafísica como saber que vai
katura Ando em seu livro Metaphy- “além da física”, teria adotado esse
sics: A Critical Survey of its Meaning nome ou outro semelhante, em vez
(1963, 2º edição aumentada, 1974). de falar de “filosofia primeira””. Mo-
METAFÍSICA 468

dernamente, a opinião sobre o cará- vestigações depois chamadas ““meta-


ter não estritamente unitário da físicas”, não teria forjado o adjeti-
“Metafísica” de Aristóteles e sobre vo correspondente, ou se não teria
a origem do nome como designação deixado de vacilar na adoção de no-
de uma ordem seqiiencial na edição mes. Johann Gottlieb Buhle foi um
de suas obras, deve-se principalmen- seguidor da filosofia kantiana; embo-
te a Johann Gottlieb Buhle (1763- ra 1sso não garanta adoção das opi-
1821), autor de Uber die Echtheit der niões de Kant em todos os aspectos,
Metaphysik des Aristoteles (1788). é um tanto surpreendente ter sido pre-
Estas opiniões foram incorporadas cisamente Buhle o originador da opi-
na edição (1793) por Fabricius da Bi- nião hoje vigente. Pode-se acrescen-
bliotheca Graeca. Hans Reiner indi- tar a isso que é admissível imputar a
ca que a opinião vigente descrita no Fabricius o desconhecimento das in-
começo e adotada por eminentes co- terpretações gregas e das acepções
nhecedores de Aristóteles, como Bo- medievais, mas é mais difícil iImputá-
nitz, Brandis, Zeller, no século pas- lo à autores como Bonitz, Brandis,
sado, e Werner Jaeger, W. D. Ross, Zeller, Jaeger, Ross, etc. Entretanto,
Octave Hamelin e Heidegger no sé- há na tese de Reiner pontos impor-
culo atual, constituem uma aceitação tantes.
pouco crítica de Buhle, que desco- Em An. post. 71b 33-72 a 5, Aris-
nhecia as interpretações gregas e os tóteles estabeleceu uma distinção en-
dois sentidos de metaphysica, como tre dois sentidos de ““anterior” e
post physica e como trans physica, “mais conhecido”. Não é o mesmo
na época medieval, a que nos referi!- O que é anterior por natureza, voer,

mos adiante. Tudo isso é tanto mais e o que é anterior para nós, 1tpeos
surpreendente, aponta Reiner, por- nuas, assim como não é o mesmo o
quanto Kant, numas lições sobre me- que é mais conhecido por natureza e
tafísica (ed. M. Heinze, 1894), ex- o que é mais conhecido para nós. São
pressara dúvidas de que o termo anteriores e mais conhecidos para
“metafísica” tivesse uma origem me- nós, segundo Aristóteles, os objetos
ramente bibliotecária, uma vez que mais próximos da sensação, e são an-
resultava apropriado demais para teriores e mais conhecidos, simples ou
atribuí-lo a um acaso. absolutamente, aTthos, os objetos
As opiniões de Reiner podem, por afastados dos sentidos. As causas
sua vez, ser criticadas pelo menos em mais universais são as mais distantes
dois pontos. Dada a tendência de dos sentidos, embora sejam as mais
Aristóteles a usar adjetivos que carac- fundamentais na ordem real. O que
terizam um gênero de investigação, é primeiro para nós, toôs nuas mtooó-
como ocorre com “lógico”, Aoyix, TeQor, Opõe-se ao que é último para
e “físico”, qucixnm, pode-se pergun- nós, 1eôs juas voteRov. Mas o pri-
tar se, houvesse ele tido uma idéia meiro para nós é contrário ao primei-
bem definida sobre o caráter das in- ro por natureza.
469 METAFÍSICA

Segundo Aristóteles, “há uma ciên- que chama ““filosofia primeira” (ou
cia que estuda o ser enquanto ser, “metafísica””), ao ocupar-se do ser
Tô Ov 1 Ov, € O que propriamente lhe
como ser, de suas determinações,
pertence. Esta ciência não se confun- princípios, etc., ocupa-se, portanto,
de com nenhuma das chamadas ciên- de “algo” que é superior, e até su-
clas particulares, pois nenhuma de- premo, na ordem ““do que é” e tam-
las considera em geral o ser enquan- bém na ordem de seu conhecimen-
to ser, mas unicamente uma parte do to. Mas esse ““ser superior ou supre-
mesmo” (Mer., I”, I, 10003 a 20). mo” pode ser entendido de dois mo-
Em contrapartida, essa ciência inves- dos: ou como estudo formal do que
tiga “os primeiros princípios e as depois se chamarão “formalidades”,
causas mais elevadas” (op. cit., 1003 e nesse caso a metafísica será o que
a 25). Merece, por 1sso, ser chama- se chamará depois ““ontologia”, ou
da “filosofia primeira”, rowTN L- como estudo da substância separa-
Aogovia, em contraste com toda ““fi- da e imóvel — o primeiro motor,
losofia segunda”, dévtepa plhoco- Deus —, e nesse caso será, como
via (op. cit., 2, 1004 a 1). A filoso- Aristóteles lhe chama, ““filosofia teo-
fia, diz Aristóteles, tem tantas par- lógica”, prhocoçpia AeohoyLXN, OU SE-
tes quantas substâncias há; assim, a Ja, teologia, Oeohoyia (Met., E, 1,
parte que trata da substância natu- 1026 a 19).
ral é a “física” — uma “filosofia se- Admitam-se ou não os resultados
gunda”. Acima dessas partes, há da investigação de Reiner a que nos
uma ciência na qual se estuda o que referimos acima, parece que a me-
é enquanto é, e não alguma espécie taphysica teve, desde (relativamen-
ou forma particular desse ser. O que te) cedo, dois sentidos: um, ““trans-
é enquanto é tem certos princípios, natural”, o de post physica, e outro
que são os “axiomas”, e estes se “sobrenatural”, o de trans physica.
aplicam a toda substância como O primeiro sentido observa-se em
substância e não a este ou àquele t1- Domingo Gundisalvo, provavelmen-
po de substância. te com base em Avicena (e Averróis).
Desde que Aristóteles determinou No seu tratado De divisione philo-
o objeto da “filosofia primeira” e sophiae, diz que a metafísica é post
desde que se usou, além disso, o ter- physicam, quia id es de eo, quod est
mo ““metafísica”* (metaphysica) co- post naturam. O segundo sentido
mo equivalente a “filosofia primei- encontra-se difuso em vários autores.
ra”, muitos foram os problemas sus- Os dois sentidos pareceram unir-se
citados. Um deles, de que trataremos em Pedro Fonseca, para quem a me-
a seguir, é o do objeto peculiar da tafísica estuda simultaneamente as
“metafísica”. No próprio Aristóte- post naturalia e as super naturalia.
les há certa vacilação, que irá deter- Mas, ao mesmo tempo, nunca se per-
minar muitas das discussões ulterio- deu, no termo “metafísica”, o sen-
res a esse respeito. Por um lado, o tido de uma investigação formal, es-
METAFÍSICA 470

treitamente relacionada com a lógi- mente, a fonte de toda verdade”


ca (ainda que não identificável com (Contra Gent., 1, 1, 2). A filosofia
ela), de temas como o ser (e a analo- primeira, na medida em que cons1!-
gia ou univocidade do ser), os trans- dera as causas primeiras (in quantum
cendentais, a substância, os modos, primas rerum causas considerat) (1
a essência, a existência, etc., os quais met. pr.), tem tais causas como seu
têm sido tradicionalmente conside- objeto de estudo, se bem que a cau-
rados como ““objetos”* da metafísi- sa primeira real seja Deus. A meta-
ca. O estudo desses temas era consi- física trata do ser, o qual é “conver-
derado fundamental para estabelecer sivel”* com a verdade, mas sendo
as bases de qualquer ““filosofia se- Deus a fonte de toda verdade, Deus
gunda””, mas também era considera- é o objeto da metafísica. Por outro
do fundamental para a teologia, pe- lado, a metafísica é a ciência do ser
lo menos enquanto ““teologia racio- como ser e como substância, de en-
nal”*. Deve-se a 15s0 que, num mo- te sive de substantia. Nesse sentido,
mento dado, começou-se a usar a ex- não se “limita” a tratar do ser mais
pressão ““metafísica geral”º, em con- real, ens realissimum; ocupa-se do
traste com as diversas ramificações “ente em comum e do primeiro en-
dessa metafísica geral, uma das quais te, separado da matéria”, de ente in
era justamente a teologia. communi et de ente primo, quod est
Em todo caso, os escolásticos me- a materia separatum. Parece, então,
dievais ocuparam-se com frequência que se trata de duas ciências distin-
da questão do objeto próprio da me- tas; mas, na verdade, são dois mo-
tafísica. E, como o conteúdo da teo- dos de considerar a metafísica. Num
logia era determinado pela revelação, deles, a metafísica tem um conteú-
também se ocuparam amiúde das re- do teológico, o qual não é dado pe-
lações entre metafísica e teologia. As la própria metafísica, mas pela reve-
opiniões sobre esses dois problemas lação. No outro, a metafísica é a
foram muitas. ciência do ens, ente, na medida em
Muitos escolásticos medievais con- que é o primeiro que ““se submete ao
sideraram que a metafísica é ““a ciên- entendimento”'. Embora continue,
cia primeira” e a “filosofia primei- então, subordinada à teologia — e,
ra”: a metaphysica é uma disserta- portanto, à revelação — já possui
ção de ente, sobre o ente. Escreveu sua “razão própria”. Isso é possível
santo Tomás que a filosofia primei- pelo acordo fundamental que, segun-
ra, prima philosophia, é “a ciência do Santo Tomás, existe entre teolo-
da verdade, não de qualquer verda- gia e filosofia (metafísica). Exami-
de, mas daquela verdade que é a ori- nando em outro lugar a natureza da
gem de toda verdade, isto é, que per- metafísica, Santo Tomás escreve:
tence ao primeiro princípio pelo qual "Há, ademais, alguns objetos de
todas as coisas são. A verdade que ciência independentes da matéria em
pertence a tal princípio é, evidente- seu ser, pois ou existem sempre sem
47) METAFÍSICA

matéria — como Deus e as substân- acerca da metafísica propostas pelos


cias espirituais —, ou encontram-se escolásticos. Segundo Suárez, uma
às vezes na matéria, outras vezes não primeira opinião sustenta que o ob-
— como a substância, a qualidade, jeto total da metafísica é o ente con-
a capacidade, a atualidade, a plura- siderado na maior abstração possí-
lidade, a unidade, etc. Tais objetos vel, na medida em que engloba não
são tratados pela ciência divina que só a soma de entes reais, substanciais
também tem o nome de metafísica, e acidentais, mas também na medi-
isto é, além da física, pois dado que da em que compreende os entes de
temos necessariamente que proceder razão. Uma segunda opinião afirma
dos objetos sensíveis aos suprassen- que o objeto da metafísica é o ente
síveis, temos de ocupar-nos dela de- real em toda a sua extensão, consi-
pois da física. Também se lhe dá o derado de modo tal, que não inclua
nome de filosofia primeira, porquan- diretamente os entes de razão por
to todas as demais ciências a pressu- causa de sua carência de entidade e
pôem” (Opusc. XVI, Exposição, De de realidade. Outra opinião assina-
Trinitate, vol. 1). la Deus, enquanto supremo ser real,
Segundo Duns Escoto, a metafí- como único objeto da metafísica.
sica é primária e formalmente ciên- Uma quarta opinião indica que a me-
cia do ente enquanto ens communis- tafísica ocupa-se da substância ou
simum: é a prima scientia scibiles pri- ente imaterial, o que compreende
mis — ““clência primeira do primei- unicamente Deus e as inteligências.
ro cognoscível”* (Quaest. in Met., Também existe uma doutrina segun-
VII, q. 4, 3). Para Duns Escoto, co- do a qual o objeto próprio dessa
mo antes para Avicena, a metafís!- ciência é o ente classificado nos dez
ca é anterior à teologia, não porque predicamentos, seja porque as subs-
o objeto desta última se encontre su- tâncias imateriais finitas e seus aci-
bordinado ao objeto da primeira, dentes se inserem nas categorias e
mas porque, sendo a metafísica ciên- porque o ser supremo é excluído do
cia do ser, o conhecimento deste úl- objeto da metafísica, embora não to-
timo é fundamento do conhecimen- talmente, seja porque só o ente divi-
to do ser infinito. Para Guilherme de no nos dez predicamentos resulte ob-
Ockham, a metafísica não é propria- Jeto do saber metafísico. Finalmente,
mente nem ciência, nem ciência de há a opinião segundo a qual o objeto
Deus, nem ciência do ser, 1sso por- da metafísica é a substância enquan-
que pode-se dizer dela que tem por to substância, ou seja, enquanto se
objeto o ser como objeto primeiro abstrat do material e do imaterial, do
com primado de atribuição, e Deus finito e do infinito. Todas essas opi-
como objeto primeiro como prima- niões têm alguma Justificação, toda-
do de perfeição. via, ao mesmo tempo, são parciais.
Suárez (Disp. met., 1) resumiu e Resumindo assim uma larga tradição
analisou quase todas as opiniões escolástica, Suárez indica que a
METAFÍSICA 472

noção de metafísica não é tão am- mo ciência quando se apóia numa


pla quanto alguns supõem, nem tão verdade indubitável e absolutamen-
pouco extensa quanto outros admi- te certa, por meio da qual podem
tem; a metafísica é, em suma, como alcançar-se as “verdades eternas”. A
a definiram Aristóteles e Santo To- metafísica continua sendo, em gran-
más, o estudo do ente enquanto en- de medida, a ciência do ““trans-
te real, isto é, a ciência do ser en- cendente”º, mas essa transcendência
quanto ser, não concebido ao modo apóia-se, em muitos casos, na abso-
do gênero supremo e, portanto, sob luta imediação e na imanência do eu
a espécie da mera abstração total, pensante.
mas concebido como aquele ser que, Outros autores rechaçaram a pos-
ultrapassando todo gênero, pode ser sibilidade do conhecimento metafí-
chamado com toda a propriedade de sico e, em geral, de toda realidade
transcendens. Em princípio, ens est considerada transcendente. O caso
transcendens é, para Suárez, uma mais conhecido na Epoca Moderna
fórmula capital da metafísica, que é é o de Hume. A distribuição de to-
ciência primeira na ordem dos sabe- do conhecimento em conhecimento
res e ciência última na ordem do en- de fatos ou de ““relações de idéias”
sino (ou aprendizagem). deixa sem base o conhecimento de
Durante a Época Moderna susten- qualquer objeto ““metafísico”*; não
taram-se opiniões muito diversas há metafísica porque não há objeto
acerca da metafísica, incluindo a opi- de que tal pretensa ciência possa
nião de que não é uma ciência, nem ocupar-se. Em outra linha de pensa-
poderá sê-lo nunca. Francis Bacon mento, muitos autores trataram de
considerava a metafísica a ciência “formalizar” a metafísica, queremos
das causas materiais e finais, distin- dizer, de abordar as questões meta-
ta da física, que é a ciência das cau- físicas como questões acerca de con-
sas materiais e eficientes. Para Des- celitos básicos tratados formalmen-
cartes, a metafísica é uma prima phi- te. Isso já havia acontecido entre os
losophia que trata de questões como escolásticos e prosseguira com Suá-
“a existência de Deus e a distinção rez, Fonseca e outros. Durante o sé-
real entre a alma e o corpo do ho- culo XVII e começos do século
mem”, É característico de muitas X VIII, essa tendência fortaleceu-se.
das meditações ou reflexões chama- Muitos autores ocuparam-se em es-
das “metafísicas” na Epoca Moder- tudar o objeto da metafísica e em
na o fato de que, nelas, procura-se distinguir entre metaphysica e logi-
elucidar racionalmente problemas ca. Ambas as disciplinas são, como
transfísicos e de que, nessa elucida- escreve Johannes Clauberg (Ontoso-
ção, começa-se com a questão da phia, 1647, p. 288), disciplinae pri-
certeza e das “primeiras verdades” mae, mas por seu sujeito encontram-
ou, com frequência, da ““primeira se a uma distância infinita uma da
verdade”, A metafísica é possível co- outra, já que a metafísica sabe tudo
473 METAFÍSICA

(omnia scit) e a lógica não sabe na- tra a pretensão de alcançar um saber
da (nihil scif). A tendência de outros racional e completo da realidade,
autores foi de estabelecer uma dis- mas, ao mesmo tempo, encarou tam-
tinção entre metaphysica e ontologia. bém a sério o problema da possibil1-
Referimo-nos a esse ponto no arti- dade de uma metafísica. Em particu-
go ONTOLOGIA; apenas assinala- lar, interessou-se Kant por apurar co-
remos aqui que na ontologia se abri- mo é possível fundamentar a metafi-
ga o aspecto mais formal da metafí- sica de um modo definitivo, com a fi-
sica. A ontologia é concebida como nalidade de que deixe de ser o que tem
uma philosophia prima que se ocu- sido até agora: um ““tatear” (Her-
pa do ente em geral. Por 1lsso a on- rumtappen). À metafísica tem sido
tologia pode ser equiparada (como até agora “uma ciência racional es-
logo o seria por autores que fundi- peculativa completamente isolada”,
ram a tradição escolástica com a baseada unicamente nos conceltos, e
wolffiana) a uma metaphysica gene- não, “como a matemática, na apli!-
ralis. As dificuldades que apresenta- cação dos conceitos à intuição” (K.
vam muitas das definições anterio- r. V., B, xiv). A metafísica tem sido,
res de “metafísica” pareciam dissi- até agora, “a arena das discussões
par-se em parte: a metafísica como sem fim”; edificada no ar, só produ-
ontologia não era ciência de nenhum ziu castelos de cartas. Não se pode,
ente determinado, mas podia dividir- pois, continuar pelo mesmo caminho,
se em certos “ramos” (como a teo- dando rédea solta às especulações
logia, a cosmologia e a psicologia ra- sem fundamento. Por outro lado,
cionais) que se ocupam de entes de- não é possível simplesmente aderir ao
terminados, se bem que num sent1- ceticismo: é necessário fundar a me-
do muito geral e como princípio de tafísica para que “chegue a converter-
estudo de tais entes — isto é, num se em ciência”. Para tanto, há que
sentido ““metafísico””. proceder a uma crítica das limitações
A persistente e crescente tendência da razão. Em suma, a metafísica de-
das “ciências positivas” ou “ciências ve submeter-se ao tribunal da crítica,
particulares” em relação à filosofia à qual nada escapa nem deve escapar.
e, em especial, a respeito da parte Kant nega, pois, a metafísica, mas
mais “primeira” da filosofia, isto é, com o propósito de fundá-la. O mo-
a metafísica, aguçou as questões fun- do como, no pensamento de Kant, se
damentais que tinham sido apresen- leva a efeito essa “fundamentação”
tadas acerca da metafísica e, em par- é complexo e não pode ser resumido
ticular, as duas questões seguintes: (1) aqui. Limitamo-nos a indicar que,
se a metafísica é possível (como ciên- para começar, Kant mostra não ha-
cia); (2) de que se ocupa ela. Central ver possibilidade alguma de juízos
na discussão desses dois problemas é sintéticos a priori em metafísica. Por
a filosofia de Kant. Esse pensador le- conseguinte, a metafísica não parece
vôu a sério os embates de Hume con- poder ser uma ““ciência teórica” em
METAFÍSICA 474

nenhum caso. Daí a passagem à ““ra- giram, em fins do século XIX e co-
zão prática”, na qual a metafísica meços do século XX, várias tendên-
parece dar-se não como uma ciência, cias antipositivistas que, embora hos-
mas como uma realidade moral. tis em princípio à metafísica, termi-
Contudo, essa posição tampouco é naram por aceitá-la. O criticismo
satisfatória, se se quiser que a meta- neokantiano é um exemplo particu-
física se converta realmente em ciên- larmente esclarecedor dessa posição.
cia. Parte da obra de Kant, a partir Mas também o é o neocriticismo
da Crítica do Juízo, pode ser enten- francês, em particular o chamado po-
dida como um intento de responder sitivismo espiritualista. Em todos es-
a esse desafio da metafísica como ses movimentos, a metafísica é com
ciência. frequência revalorizada de “dentro
Tal como durante a Idade Média, para fora”, ou seja, desde o interior
a metafísica foi, portanto, durante a de um saber positivo. O mesmo ocor-
Época Moderna (e, depois, durante re em Bergson. A reabilitação Dberg-
a Epoca Contemporânea), um dos soniana da metafísica não pressupõe
grandes temas de debate filosófico. a adesão ao conhecimento racional
E 1sso a tal ponto, que a maior parte do inteligível; pressupõe Justamente
das posições filosóficas, de Kant até a negação ou limitação desse conhe-
hoje, podem ser compreendidas em cimento, e a possibilidade de uma
função de sua atitude diante da filo- apreensão intuitiva e imediata do
sofia primeira. As tendências adscri- real, que a ciência decompõe e me-
tas ao que poderíamos chamar a fi- caniza. Alguns negaram a metafiísi-
losofia tradicional não negaram em ca no sentido tradicional e reconhe-
nenhum momento a possibilidade da ceram, em compensação, a existên-
metafísica. O mesmo ocorreu com o cia de uma aspiração metafísica irre-
idealismo alemão, se bem que o pró- freável no homem. É o que ocorre
prio termo “metafísica” não tenha com Dilthey e com todos os autores
recebido com freqiiência grandes que, de um modo ou de outro, ten-
honras. Em contrapartida, desde o dem a transformar a metafísica nu-
instante em que se acentuou a neces- ma “concepção do mundo”, simul-
sidade de ater-se a um saber positi- taneamente inevitável e indemonstrá-
vo, a metafísica foi submetida a uma vel. Numa direção parecida, embo-
constante crítica. Na filosofia de ra de nenhum modo idêntica, à de
Comte 1sso é evidente, sem dúvida: Dilthey, caminhou Collingwood, ao
a metafísica é um modo de ““conhe- considerar que a única maneira de
cer” próprio de uma ““época da hu- tratar a questão da possibilidade da
manidade”', destinada a ser supera- metafísica é considerar que a meta-
da pela época positiva. Pois bem, es- física deve ter consciência de que é
sa negação da metafísica implicava, história. Outros autores não se ocu-
por vezes, a negação do próprio sa- param explicitamente da questão da
ber filosófico. Por esse motivo sur- natureza e possibilidade da metafísi-
475 METAFÍSICA

Ca, mas seu pensamento filosófico tes de mais nada, um pensar de al-
pode ser considerado fundamental- gum modo ““metafísico”. Em con-
mente metafísico — ou assim é con- trapartida, outras correntes contem-
siderado, pelo menos, por todas as porâneas opuseram-se decididamen-
tendências explicitamente antimeta- te à metafísica, considerando-a uma
físicas. Isso ocorre, por exemplo, pseudociência. É o que sucede com
com o existencialismo e com todas alguns pragmatistas, com os marxis-
as filosofias existenciais. Outros au- tas e, em particular, com os positi-
tores não seguiram, ou seguiram vistas lógicos (neopositivistas) e mur-
pouco, as tendências tradicionais re- tos dos chamados ““analistas*”*. Co-
lativas à natureza, finalidade ou pos- mum aos positivistas é o fato de te-
sibilidade da metafísica, mas desen- rem adotado uma posição sensivel-
volveram um pensamento decidida- mente análoga à de Hume. A posi-
mente metafísico, no qual a metafí- ção de Hume acrescentaram consi-
sica não é “ciência primeira” nem derações de caráter ““lingúístico”.
“ciência do ente”, mas “saber da Assim, sustentou-se que a metafís1!-
realidade radical”. Tal é o caso de ca surge unicamente como conse-
Ortega y Gasset, que pôde afirmar quência das ilusões em que a lingua-
não ser a metafísica propriamente gem nos envolve. As proposições
uma ciência, porquanto é o saber metafísicas não são verdadeiras nem
dentro do qual se dão os demais sa- falsas: carecem simplesmente de sen-
beres (sem que estes, quanto ao mais, tido. A metafísica não é, pois, pos-
derivem necessariamente daquele, Já sível, porque não existe “linguagem
que não é o mesmo ““basear-se em” metafísica”. Em suma, a metafísica
e “estar fundado ou ter raízes em”). é “um abuso da linguagem”.
Um modo de considerar a metafís!- Nos últimos anos, pôde-se obser-
ca em sentido distinto do tradicional var que, mesmo dentro das corren-
ou de muitos dos sentidos modernos tes positivistas e “analíticas” susci-
é, também, o de Heidegger. Com taram-se questões que podem ser
efeito, o conceito de ser, em Heideg- consideradas como metafísicas, ou
ger, não é comparável, ou não é que diminuiu o rigor contra a possi-
comparável em muitos aspectos, ao bilidade de existência de toda e qual-
conceito de ser “tradicional”, pelo quer metafísica. Alguns (Charles
que uma “introdução à metafísica” Morris) admitem a metafísica como
como ““introdução ao ser” não éo uma forma de ““discurso”*: o ““dis-
mesmo que uma introdução à ciên- curso metafísico”, o qual é pareci-
cia do ente enquanto tal. do com o lógico ou com o gramati-
Existencialismo, bergsonismo, atua- cal, mas, ao contrário desses, possui
lismo e muitas outras correntes do um tipo “formativo”. Entretanto, a
nosso século são ou de caráter decla- noção de verdade (ou falsidade) não
radamente metafísico ou reconhecem pode ser aplicada a tal “discurso”,
que o que se faz em filosofia é, an- que tem por finalidade organizar a
METAFÍSICA 476

conduta humana. Outros (Bertrand conceituais de interesse permanente,


Russell) disseram que “o complexo mas encontra-se a serviço da meta-
agnosticismo metafísico é iIncompa- física descritiva. Esta última parece-
tível com a defesa de proposições lin- se com a “análise conceitual”, no
guísticas”. Einstein declarou certa sentido da Escola de Oxford, embo-
vez que ““o medo da metafísica” é ra difira dela por seu alcance e ge-
uma “doença da atual filosofia em- neralidade. Mario Bunge indicou que
pírica”, doença que é apenas o ““con- a metafísica é legítima se preenche
trapeso daquele anterior filosofar certas condições de rigor e se está in-
nas nuvens, que acreditava poder timamente vinculada à ciência; mas
desfazer-se do dado aos sentidos e a metafísica rigorosa não é suficien-
prescindir dele”. Ainda outros dis- te: também tem de ser exata. Falou-
tinguiram entre uma “boa metafís1- se igualmente (N. Rescher) de meta-
ca” euma “má metafísica”. Assim, física taxonômica, metafísica arqui-
N. Hartmann distinguiu entre onto- tetônica e metafísica avaliatória. Al-
logia especulativa e ontologia críti- guns autores indicaram ser admissí-
ca. Essa distinção pode aplicar-se à vel uma análise metafísica ou uma
metafísica. Segundo ela, a metafísi- metafísica analítica. Nenhuma des-
ca especulativa é a metafísica cons- sas concepções da metafísica admi-
trutiva, mais inclinada a edificar sis- tiria a famosa frase (ou boutade) de
temas do que a examinar os pressu- Bradley: “A metafísica é a descober-
postos e implicações dos conceitos ta de más razões para o que acredi-
usados. A metafísica crítica, em con- tamos por Instinto, mas ao encontrar
trapartida, é fundamentalmente uma essas razões deixa de ser um instin-
análise lógica. P. F. Strawson distin- to”*, porque alegaria que, se as ra-
guiu entre uma metafísica revisionis- zOes são más, a metafísica também
ta e uma metafísica descritiva. A me- há de sê-lo.
tafísica revisionista (cultivada por A oposição à metafísica, assim co-
Descartes, Leibniz e Berkeley, entre mo o reconhecimento de sua legiti-
outros, embora não isenta de consi- midade ou de seu interesse, dizem
derações de tipo descritivo) é a que muito pouco acerca do que se enten-
se propõe erigir a melhor estrutura de em cada caso por “metafísica”.
conceitual possível para a compreen- Com efeito, um autor como Carnap
são e a explicação do real e de suas opôs-se geralmente à metafísica. O
diversas formas. A metafísica des- mesmo fez um autor como Heideg-
critiva (cultivada por Aristóteles e ger. Mas as tendências filosóficas de
Kant, entre outros, embora não isen- cada um desses pensadores são tão
ta de intenções de tipo revisionista) distintas que pode-se duvidar de que
é a que descreve ““a estrutura efeti- O que cada um entende
por ““meta-
va do nosso pensamento acerca do física” seja O mesmo. E se, porven-
mundo”. Segundo Strawson, a me- tura, ambos entendem por ““metafí-
tafísica revisionista cria produtos Sica” a mesma coisa — por exemplo,
477 MISOLOGIA

a “tradição metafísica ocidental” —, não ““a”* metafísica, ou eliminar es-


situam-se, porém, em relação a ela sa palavra, no que for possível, do
em posições muito diferentes. As ra- vocabulário filosófico. O que, então,
zÕões da recusa de tal tradição em se fizer filosoficamente será o que
Heidegger dificilmente são compará- importa, e não o fato de ser chama-
veis às razões da recusa dessa mes- do ou não de “metafísica”.
ma tradição em Carnap. Quando
certos autores de tendência analíti- MISOLOGIA No Fúáidon (89 D),
ca falam de metafísica, não enten- Platão faz Sócrates dizer que deve-
dem por ela a mesma coisa que au- se evitar converter-se em ““misólo-
tores de outras tendências. É possí- go”, nroóhovos, em gente que odeia
vel estar de acordo com a crítica da a razão (de uioew= odiar). Há pes-
metafísica (racional) por Kant e, ao soas que chegam a ser misólogas, as-
mesmo tempo, elaborar teses meta- sim como há as que chegam a ser
físicas. Também é possível e bastante “misantropas”', que têm ódio ou
frequente estar de acordo com o mo- aversão ao convívio humano. À mi-
do de fazer metafísica (ou ““filoso- santropia, diz Platão pela boca de
fia primeira”) de Aristóteles sem Sócrates, origina-se do fato de ter-
que, com 1SsSoO, se siga em quase ne- se depositado inteira confiança nu-
nhum ponto as metafísicas escolás- ma pessoa sem conhecê-la. Quando
ticas. Afirmar que a metafísica (ou, se descobre, depois, que uma pessoa
falando claramente, a ontologia) é desleal, passa-se a considerar que
ocupa-se das características mais ge- ela não é “o mesmo homem”. A re-
rais da realidade não leva necessaria- petição dessa experiência dá lugar à
mente a elaborar metafísicas de ca- misantropia, nroavOowTLIA. Coisa se-
ráter predominantemente especula- melhante ocorre com os raciocínios.
tivo; uma metafísica do tipo sugeri- Quando não se julga corretamente,
do pode ser científica. Por outro la- originam-se Juízos errados. Se isso se
do, há tipos de pensamento que se repete com frequência, odeiam-se to-
autodenominam metafísicos e que dos os raciocínios e deste modo sur-
não são analíticos nem científicos, ge a misologia, unicohovyia.
mas tampouco são especulativos no Na Fundamentação da Metafísica
sentido pejorativo dessa palavra. dos Costumes (Grundlegung zur Me-
Tendo em vista a variedade de op!- taphysik der Sitten, 1º Parte, Ed. da
niões sobre a metafísica, é quase ób- Akademie, 395), Kant introduz o ter-
vio não haver nada que se possa cha- mo Misologie. Afirma ele, com efei-
mar ““a metafísica”. Há modos de to, que “quanto mais se consagra
pensar muito diversos e que admitem uma razão cultivada à intenção de go-
distintos tipos de metafísica, fre- zar a vida e conseguir a felicidade,
qilientemente incompatíveis entre si. tanto menos satisfeito se acha o ho-
Parece razoável, então, ou abster-se mem; por 1sso, com muitos deles —
de discutir acerca de se é legítima ou a rigor, com aqueles que têm maior
MITO 478

experiência em seu uso — dá-se o ca- tumam ser apresentados de forma


so de que, contanto que sejam sufi- alegórica (como ocorre com os ““mi-
cientemente honestos consigo mes- tos solares”). Muito amiúde, os mi-
mos, sentem certo grau de misologia, tos comportam a personificação de
1sto é, de ódio à razão” (Hass der colsas ou acontecimentos. Pode-se
Vernunft). Isso ocorre, prossegue acreditar de boa-fé, e até literalmen-
Kant, quando certos homens se dão te, no conteúdo de um mito, aceitá-
conta de que as vantagens que lhes lo como um relato alegórico, ou
proporcionam as ciências, para não rechaçá-lo, alegando que todo o miíi-
citar os luxos (podendo-se conside- tico é falso.
rar as ciências como um luxo do en- Quando o mito é aceito alegorica-
tendimento), não compensam os mente, converte-se num relato que
problemas que engendram, de mo- tem dois aspectos, ambos igualmen-
do que pensam que, com 1sso, nada te necessários: fictício e o real. O fic-
se ganha no tocante à felicidade. Es- tício consiste em que, de fato, não
ses homens acabam por invejar a ocorreu o que o relato mítico descre-
gente simples e comum, em quem a ve. O real consiste em que, de algum
razão não guia (ou não parece guiar) modo, o que diz o relato mítico cor-
o comportamento. Entretanto, ain- responde à realidade. O mito é co-
da que a razão não possa, segundo mo um relato do que poderia ter
Kant, guiar a vontade relativamente ocorrido se a realidade coincidisse
a seus objetos, de modo que seria com o paradigma da realidade.
aparentemente melhor nesse sentido Os pré-socráticos consideraram o
deixar-se conduzir pelos instintos, a mito de um modo ambivalente. Por
verdade é que a razão nos é dada co- um lado, descartaram o mythos em
mo uma ““faculdade prática” (prak- nome do logos. Por outro lado, fi-
tisches Vermoógen), ou seja, uma fa- zeram crescer esse logos no solo de
culdade que tem de exercer influên- um mythos prévio. O mais frequen-
cia sobre a vontade. te foi entrelaçar os dois, pelo menos
na linguagem. Os sofistas, em con-
MITO Dá-se o nome de “mito” a trapartida, tenderam a separar o mi-
um relato de algo fabuloso que se su- to da razão, mas nem sempre para
põe ter acontecido num passado re- sacrificar inteiramente o primeiro,
moto e quase sempre impreciso. Os pols com frequência admitiram a
mitos podem referir-se a grandes fei- narração mitológica como invólucro
tos heróicos (no sentido grego de da verdade filosófica. Esta concep-
“heróicos”) que são considerados, ção foi retomada por Platão, espe-
com frequência, como o fundamen- clalmente na medida em que consi-
to e o começo da história de uma co- derou o mito um modo de expressar
munidade ou do gênero humano em certas verdades que escapam ao ra-
geral. Podem ter como conteúdo fe- ciocínio. Nesse sentido, o mito não
nômenos naturais, caso em que cos- pode ser eliminado da filosofia pla-
479 MITO

tônica, pois, como indica Victor Bro- mito e dos mitos: Vico e Schelling.
chard, desapareceriam dela a doutri- Vico fundamentou epistemologica-
nas do mundo, da alma e de Deus, mente a atitude antes esboçada de
assim como parte da teoria das que o mito é “uma verdade históri-
idéias. O mito é, pois, para Platão, ca”; com efeito, o mito é, para Vi-
com frequência, algo mais do que co, um modo de pensar que tem suas
uma opinião provável. No entanto, próprias caracteristicas e que condi-
ao mesmo tempo, o mito se apresen- ciona ou, pelo menos, expressa cer-
ta, em Platão, como um modo de ex- tas formas básicas de vida humana.
pressar o reino do Devir. Vico identificou o modo de pensar
Vários autores neoplatônicos tra- mítico com o modo de pensar ““poé-
taram da questão da natureza e das tico” (Scienza nuova, VI). Schelling
classes de mitos, bem como da Jjus- considerou que a mitologia é uma
tificação (filosófica) do caráter divi- forma de pensamento que represen-
no dos mitos. Assim, o filósofo neo- ta um dos modos como se revela o
platônico Salústio considerava, em Absoluto no processo histórico: o mi-
seu Tratado sobre os deuses e sobre to é, portanto, revelação divina (Phi-
o mundo (texto em grego, 529), que losophie der Mythologie, passim).
os mitos podem representar os deu- A noção de mito e o fato de que
ses e as operações realizadas pelos o homem tenha fabricado e continue
deuses no mundo. fabricando mitos suscitaram interes-
Na Antiguidade e na Idade Média, se entre vários filósofos contempo-
prestou-se especial atenção ao pró- râneos, assim como entre sociólogos
prio conteúdo dos mitos e ao seu po- e linguistas, interessados numa inter-
der explicativo. Desde o Renascimen- pretação geral do mito. Ernst Cassi-
to, surgiu um problema que, embo- rer considerou que o mito não é ob-
ra já tratado na Antigúidade, ficara Jeto unicamente de pesquisas empií-
um pouco negligenciado: o problema rico-descritivas, nem tampouco uma
da realidade e, por conseguinte, o manifestação histórica de algo ““ab-
problema da verdade, ou grau de ver- soluto””. Embora sejam necessárias
dade, dos mitos. Na medida em que as pesquisas e descrições empíricas,
múltiplas tendências céticas abalaram estas encontram-se enquadradas pe-
não poucas crenças, também acaba- la idéia do mito como modo de ser
ram por corroer os mitos. Vários au- ou forma da consciência: a ““cons-
tores modernos negaram -se a consi- ciência mítica”, que explica a persis-
derar os mitos como dignos de men- tência, a reiteração e a estrutura sl-
ção; a “verdadeira história”, procla- milar de muitos mitos. Segundo Cas-
maram eles, nada tem de mítico. Por sirer, há um princípio de formação
a
Isso, o historiador deve depurar his-
tória de mitos e lendas.
dos mitos que faz com que estes se-
jam algo mais do que um conjunto
Dois autores modernos deram acidental de imaginações e fabula-
grande importância ao fenômeno do ções. À formação de mitos obedece
MODELO 480

a uma espécie de necessidade ineren- Para Rudolf Bultmann, o mito


te à cultura, de modo que os mitos não é um modo de falar mais ou me-
podem ser considerados pressupos- nos oblíqua ou analogicamente acer-
tos culturais. ca do divino. Bultnann chama de
Lévi-Strauss reconhece que um “mito” um tipo de discurso sobre o
mito muda no curso de uma histó- divino usando os conceitos que não
ria, produzindo-se numerosas va- lhe correspondem, que não lhe são
riantes, e até mesmo que certas mu- próprios. Assim, por exemplo, é mí-
danças na estrutura do mito podem tico falar do divino em termos cien-
fazer com que ele se desintegre, ou tíficos. Também é mítico falar dele
se converta em outro mito. Não obs- em termos históricos. Por isso, Bult-
tante, dentro de certo âmbito de va- mann propôs e desenvolveu o pro-
riantes, um mito possui uma estru- grama do que designou por ““desmi-
tura independente, inclusive, de seus tificação*”* ou “desmitologização”.
conteúdos específicos, isto é, dos ti-
pos de entidades a que o mito se re- MODELO O termo ““modelo”* po-
fere, ou acerca das quais introduz de ser empregado em diversos senti-
suas narrações. Fundamental no mi- dos.
to é um sistema de oposições ou Metafisicamente, “modelo” pode
“dualidades””. Os elementos básicos designar o modo de ser de certas rea-
de que se compõe são os chamados lidades, ou supostas realidades, do
“mitemas”, os quais se combinam tipo das idéias ou formas platônicas.
em distintos níveis até constituir um Essas idéias ou formas são, com efei-
sistema. Embora os mitos não sejam to, paradigmas e, por conseguinte,
estruturas lógicas, sua constituição, modelos de tudo o que é na medida
desenvolvimento e transformação em que é. Sendo o modelo de uma
submetem-se a regras operacionais realidade equivalente a essa realida-
que podem expressar-se logicamen- de em seu estado de perfeição, o mo-
te. Não existe, aliás, análise estrutu- delo é aquilo a que tende toda reali-
ral de um único mito, mas sempre de dade a fim de ser o que é, ou seja,
grupos de mitos. Lévi-Strauss repe- a fim de ser plenamente ela mesma,
le as interpretações dos mitos como em vez de ser uma sombra, uma có-
explicações de fenômenos naturais, pla, uma diminuição ou um desvio
como expressões de atitudes psíqui- do que é. Nesse sentido, “modelo”
cas e até como formas simbólicas. equivale a ““realidade como tal”.
Embora haja relações entre mitos e Modelo, a esse respeito, é também
realidades sociais, não se trata de re- o “primeiro motor” e, em geral, to-
lações causais. Em última instância, do ser cujo modo de “mover-se”
as estruturas míticas são estruturas consiste em “mover (por atração) tu-
“inatas” da mente, isto é, conjun- do o mais”.
tos de disposições com regras pró- Esteticamente, “modelo” é um
prias. vocábulo empregado em vários con-
481 MODELO

textos e com diversos propósitos. o chefe e seus subordinados é cons-


Por um lado, o modelo estético po- ciente. Os modelos podem ser mui-
de ser equiparado ao que o artista to variados: pode se tratar de uma
procura (esteticamente) reproduzir. pessoa presente; de uma personali-
Por outro lado, pode ser equipara- dade do passado e até de uma per-
do ao que o artista tem em sua men- sonalidade criada por um poeta. Os
te como um ideal de que trata de modelos requerem de seus imitado-
avizinhar-se o mais possível. Final- res ou seguidores um modo de ser,
mente, pode ser equiparado a um va- um estado de ânimo ou humor, e não
lor ou série de valores, objetivos ou (como os chefes de seus subordina-
supostamente objetivos, que seriam dos) uma atividade.
os modelos últimos de toda realiza- Epistemologicamente, a noção de
ção estética. modelo foi, por sua vez, empregada
Eticamente — como também ““vi- em vários outros sentidos.
talmente”' e, de um modo geral, Falou-se, por vezes (vagamente),
“humanamente” —,““modelo” de- de modelo como de um modo de ex-
signa aquela pessoa que, por seu plicação da realidade, em especial da
comportamento e até, simplesmen- realidade física. Por exemplo, falou-
te, por seu modo de ser o que é — se de “modelo mecânico” equivalen-
por seu próprio ser —, exerce uma te ao mecanicismo e considerou-se
atração sobre outras pessoas. A no- que autores como Galileu e Newton
ção de modelo, nesse sentido, foi tra- seguiram esse modelo. É possível que
tada por vários pensadores, entre os fosse esse o sentido em que Lorde
quais se destacam Nietzsche, Berg- Kelvin indicou que só podia enten-
son e Scheler, especialmente estes der-se uma classe de processos fiísi-
dois últimos. Bergson fala da “atra- cos quando se podia apresentar um
ção” do herói, do santo e, em geral, “modelo mecânico”* dos mesmos.
da ““personalidade moral”*. Esses Foi, então, formulada a questão so-
“modelos” não exercem pressão so- bre se podiam ou não se apresenta-
bre seus semelhantes; seu modo de rem “modelos mecânicos” em áreas
atuar é, mais exatamente, o que de- como a teoria do campo eletromag-
riva de serem personalidades às quais nético.
se aspira — e que se aspira a imitar. Também se falou de modelo co-
Por isso, os modelos pertencem às mo de alguma forma de representa-
sociedades abertas. Scheler distin- ção de uma realidade ou série de rea-
guiu “modelos” (Vorbilder) e “che- lidades, de um processo ou série de
fes” (Fúhrer). O modelo não neces- processos, etc. Exemplo de um mo-
sita querer ser modelo, nem mesmo delo pode ser um desenho, um pla-
sabe que o é; o chefe, em contrapar- no, uma maquete, etc. Diz-se, por
tida, quer sê-lo e sabe o que é. A re- vezes, que um modelo é equivalente
lação entre o modelo e os imitado- a uma teoria. Indicou-se, outras ve-
res não é consciente; a que há entre zes, que há diferenças entre modelo
MONISMO 482

e teoria; sugeriu-se, ainda, que uma una. Como exemplos de monistas


teoria pode ter diversos modelos ou nesse sentido costuma-se mencionar
pode “modelar-se” de vários modos.
Parmênides e Spinoza. Entretanto,
Um modo muito comum de enten- podem considerar-se — e costumam
der “modelo” é tomar como tal um ser com mais frequência considera-
sistema que sirva para entender ou- dos — monistas os que sustentam
tro sistema, como quando se toma haver uma só espécie de substância,
a passagem de um líquido por um ca- ou de realidade, independentemen-
nal como modelo de tráfego. Nesse te do número de realidades existen-
caso, o sistema que se toma como tes. Assim, diz-se que são monistas
modelo tem um valor heurístico. os que afirmam que, embora haja
Outro modo de entender “mode- muitas coisas, todas elas são mate-
lo”? é tomar como tal um sistema do riais. O primeiro tipo de monismo
qual se trata de apresentar uma teo- pode chamar-se “monismo quanti-
ria. O modelo é, então, a realidade tativo”*; o segundo, “monismo qua-
— efetiva ou suposta — que a teo- litativo””.
ria trata de explicar. Pode haver vá- Parece evidente que o monismo
rias teorias para um modelo e pode- quantitativo pressupõe um monismo
se discutir que teoria o explica de ma- qualitativo, pois dizer que há uma só
neira mais satisfatória. Também po- coisa equivale a dizer que há uma
de haver uma teoria para a qual se só espécie de realidade.
procura um modelo, assim como O monismo qualitativo, segundo
uma teoria que, tendo resultado sa- o qual há uma pluralidade de coisas
tisfatória na explicação de um mo- (pelo menos duas), não pressupõe
delo, seja capaz de aplicar-se a ou- um monismo quantitativo, por ra-
tros modelos. zões simplesmente estipulativas: afir-
ma-se, com efeito, que há um só ti-
MONISMO Conforme indicamos no po de realidade, mas que há muitas
artigo DUALISMO, Wolff foi o pri- colsas, todas as quais são do mesmo
meiro a usar o termo ““monista” tipo.
(Monist) para referir-se aos filósofos
que não admitem mais do que uma
Em geral, o termo “monismo”
empregado para designar doutrinas
é
única substância (Psychologia ratio- segundo as quais há um só tipo de
nalis, 1734, $ 34). Como indica Euc- substância ou realidade. Como é pou-
ken (tanto em Die geistige Strômun- co proveitoso equiparar um tipo de
gen der Gegenwart, 1904, C 1, co- substância ou realidade com o que a
mo em Geschichte der philosophis- caracteriza, Ou seja, com os seus pre-
chen Terminologie, 1879, reimpr,., dicados, o referido monismo quali-
1960, p. 132), ao falar de uma subs- tativo apresenta-se unido a um ““plu-
tância Wolff referia-se não necessa- ralismo predicativo”.
riamente a uma substantia, mas sim, Wolff indicava que os monistas e
mais exatamente, a uma substância os dualistas são dogmáticos (em con-
483 MONISMO

traste com os céticos). Os monistas doutrinas monistas. O principal e


podem ser, por sua vez, idealistas mais característico representante do
(“espiritualistas”*) ou materialistas. monismo místico é Plotino, cuja no-
Em todos os casos, a doutrina que ção do “Uno” constitui o princípio
se contrapõe ao monismo é o dua- que dá lugar à oposição entre sujeil-
lismo; só se contrapõe ao pluralismo to e objeto mediante o processo de
quando se afirma que há um só tipo suas emanações. Como representan-
de substância e, além disso, somen- te do monismo panteísta, em contra-
te uma substância. partida, temos Spinoza, que solucio-
É característico do monismo, em na o problema do dualismo corpo-
qualquer de suas espécies, reduzir alma, colocado pelo cartesianismo
qualquer substância à que se consiI- por meio da noção da substância in-
dera como única existente, declaran- finita, em cujo selo se encontram os
do ou que ela não existe, ou que é atributos com seus modos infinitos.
unicamente uma mera aparência da A redução de todo ser à causa ima-
substância, ou do tipo de substância, nente das coisas converte esse tipo de
existente. O monismo é, pois, ““re- monismo num monismo simultanea-
ducionista””. mente gnosiológico e metafísico, que
O monismo pode ser gnosiológi- resolve tanto o problema da relação
co, metafísico ou ambas as coisas ao entre as substâncias pensante e exten-
mesmo tempo. Quando é somente sa, quanto a questão da unidade úl-
gnosiológico, a realidade a que o mo- tima, da existência absolutamente in-
nista reduz qualquer ““outra” real1- dependente, sem fazer dela algo
dade é o sujeito (no idealismo) ou o transcendente ao mundo. Na mesma
objeto (no realismo [gnosiológico]). linha encontra-se também Schelling,
Quando é somente metafísico, as em cujo sistema a absoluta indiferen-
realidades que se costumam conside- ça de sujeito e objeto é representada
rar como ““tipo único de realidade” pelo ponto de coincidência de todas
ou como “única realidade” são as Já as dualidades da Natureza e do Es-
citadas de matéria ou espírito, mas pírito que se apresentam alternativa-
podem ser outras — por exemplo, mente como sujeito ou como obje-
uma realidade que se suponha estar to, não obstante sua última e essen-
mais além, ou mais aquém, da ma- cial identidade.
téria e do espírito. As doutrinas mo- Na Epoca Moderna, o monismo
nistas também podem ser classifica- Surgiu, às vezes, como um espiritua-
das, como o fez Nicolai Hartmann, lismo que não nega a natureza, nem
em “monismo místico” e “monismo o mecanismo a que está submetida,
panteísta”'. O primeiro é representa- mas que a engloba na unidade mais
do, em parte, já por Parmênides, ampla de uma teleologia. A tendên-
cuja fórmula da identidade do ser cia materialista e naturalista prepon-
com o pensar predeterminou o cur- derou, entretanto, sobre a espiritua-
so subsequente da maior parte das lista, no monismo moderno. Essa
MONISMO 484

tendência foi defendida, sobretudo, zer que seja uma doutrina monista
por diversos representantes da ciên- stricto sensu. Alguns autores situa-
cia natural, em particular por Ernst dos na mencionada tendência incli-
Haeckel, que designa seu ponto de nam-se, porém, para um monismo
vista como um monismo naturalis- explícito. Isso ocorre sobretudo com
ta. A solução de toda dualidade é ob- o chamado ““monismo primário” de
tida, nesse caso, mediante a afirma- Rudolf Willy, como em tantos ou-
ção da matéria como única realida- tros partidários de Avenarius. Tam-
de, mas, ao mesmo tempo, como a bém é, especialmente, o caso de Bru-
atribuição à matéria das categorias no Wille, cujas doutrinas são, por
do espírito. Esse tipo de monismo vezes, afins das de Mach, mas que
pode ser designado pelo nome de foi mais propriamente influencia-
monismo hilozoísta, pois o proble- do por Fechner. Wille defende um
ma da atividade, da força, da ener- “ecristlanismo monista” e um ““mo-
gia e mesmo do espírito é soluciona- nismo faustiano” de caráter notoria-
do por meio da consideração da ma- mente pampsiquista. Cumpre men-
téria como algo vivo e dinâmico, co- clionar também o movimento monis-
mo o princípio de todas as proprie- ta defendido nos Estados Unidos por
dades. Por isso, Ostwald concebeu Paul Carus.
como realidade única, não a maté- Eucken (op. cit., supra) assinalou
ria, mas a energia, da qual deriva to- que, durante algum tempo, foi co-
da a passividade ulterior. O monis- mum chamar ““monistas” aos que
mo naturalista foi convertido por seguiam as doutrinas de Hegel. Tam-
seus representantes num monismo bém foram qualificados de “monis-
idealista, pois nele se considera que tas” todos os que identificaram a
"a matéria experimenta um processo realidade com algum Absoluto que
de contínua elevação no sentido da se expõe ou se manifesta, quer co-
autoconsciência, até alcançar o au- mo sujeito e objeto, quer como ma-
toconhecimento. No devir da maté-
ria forma-se, segundo esse monismo,
téria e espírito, etc. Um exemplo
pico de monismo é o da doutrina de
tí-
a própria divindade. Bradley. Nela se manifesta de manei-
O monismo também foi defendi- ra muito clara uma característica
do por várias correntes afins do em- fundamental do dualismo metafísi-
piriocriticismo e da filosofia da ima- CO OU, se se quiser, lógico-metafísico:
nência. Trata-se, nesse caso, de um o da chamada ““doutrina das relações
monismo ““neutralista”* que nega a internas”. Com efeito, para todo
diferença entre o físico e o psíquico, monismo, pelo menos do tipo de
e que, de um modo geral, analisa o Bradley, nenhuma relação — de es-
significado de ambos os termos no paço, tempo, causalidade, etc. — po-
contexto de uma descrição neutra de ser exterior a nenhuma realidade;
dos fenômenos, de tal maneira que, se assim fosse, teríamos que susten-
na maioria dos casos, não se pode di- tar a existência de realidades ““inde-
485 MORTE

pendentes”'. As relações têm de ser a designação de todo fenômeno em


Internas à realidade considerada, is- que se produz uma cessação. Stricto
to é, constituir essa realidade como sensu, em contrapartida, a morte é
tal. Desse modo, nenhuma ““realida- considerada exclusivamente com a
de” é independente, mas, pelo con- morte humana. O habitual tem sido
trário, está relacionada ou integra- ater-se a este último significado, ora
da ao Todo, que é, em última aná- por uma razão puramente termino-
lise, a única realidade. Qualquer lógica, ora porque se considerou que
enunciado sobre qualquer coisa é im- só na morte humana adquire plena
possível (ou parcial), a menos que se significação o fato de morrer. Isso
refira ao Todo. Daí que nesse tipo é especialmente evidente nas tendên-
demonismo só se possa falar de ver- cias mais “existencialistas” do pen-
dade como um todo, conforme Já fo- samento filosófico, não só as atuais,
ra proposto por Hegel. mas também as passadas. De certo
modo, poder-se-ia dizer que o sign!-
MORTE Platão afirmou que a filo- ficado da morte oscilou entre duas
sofia é uma meditação sobre a mor- concepções extremas: uma, que con-
te. Toda vida filosófica, escreveu Cí- cebe o morrer por analogia com a de-
cero mais tarde, é uma commenta- sintegração do inorgânico e aplica es-
tio mortis. Vinte séculos depois, San- sa desintegração à morte do homem,
tayana disse que “uma boa maneira e outra, em compensação, que con-
de provar o calibre de uma filosofia cebe inclusive toda a cessação por
é perguntar o que pensa acerca da analogia com a morte humana.
morte”. Segundo essas opiniões, Uma história das idéias sobre a
uma história das formas da ““medi- morte pressupõe, em nossa opinião,
tação da morte” poderia coincidir uma análise detalhada das diversas
com uma história da filosofia. Pois concepções do mundo — e não só
bem, tais opiniões podem entender- das filosofias — que se manifestaram
se em dois sentidos. Em primeiro lu- no transcurso do pensamento huma-
gar, no sentido de que a filosofia é no. Além disso, pressupõe uma aná-
exclusiva ou primordialmente uma lise dos problemas relativos ao sen-
reflexão acerca da morte. Em segun- tido da vida e à concepção da imor-
do lugar, no sentido de que a pedra talidade, quer sob a forma de sua
de toque de numerosos sistemas fi- afirmação, quer sob o aspecto de sua
losóficos é constituída pelo proble- negação. Em todos os casos, com
ma da morte. Só esse segundo senti1- efeito, resulta disso uma idéia deter-
do parece plausível. minada da morte. Limitamo-nos a
Por outro lado, a morte pode ser assinalar aqui que uma elucidação
entendida de duas maneiras. Em pri- suficientemente ampla do problema
meiro lugar, de um modo ambíguo; da morte subentende um exame de
depois, de um modo restrito. Enten- todas as formas possíveis de cessa-
dida num sentido amplo, a morte é ção, inclusive no caso de, em última
MORTE 486

instância, se considerar como cessa- conceito à realidade humana; ou, in-


ção em sentido autêntico somente a versamente, partir da morte huma-
morte humana. Realizamos em ou- na e, depois conceber todas as de-
tro lugar esse exame (cf. El sentido mais formas de cessação como espé-
de la muerte, 1947, esp. cap. 1). De- cies, quiçá “inferiores”, da morte
le resulta, resumidamente, que há humana. Trata-se, antes, de ver de
uma idéia distinta do fenômeno da que distintas maneiras “cessam” vá-
cessação, de acordo com certas con- rias formas de realidade e de procu-
cepções básicas acerca da natureza rar descobrir que grau de ““cessabi-
da realidade. O atomismo materia- lidade”? há no contínuo da Nature-
lista, o atomismo espiritualista, o es- za. Em El ser y la muerte investigo
truturalismo materialista e o estru- o tema não do ponto de vista da
turalismo espiritualista defendem, morte, mas da realidade. O que se
com efeito, uma idéia diferente da chama ““morte” é entendido, nesse
morte. Pois bem, nenhuma dessas caso, como um fenômeno, ou uma
concepções entende a morte num “propriedade”, que permite ““si-
sentido suficientemente amplo, jus- tuar” tipos de entidades no citado
tamente porque, em nosso entender, “contínuo da Natureza”.
a morte diz-se de muitas maneiras Foi comum estudar filosoficamen-
(desde a cessação até a morte huma- te o problema da morte como pro-
na), de tal sorte que pode haver, in- blema da morte humana. Entre os
clusive, uma forma de morte especi- pensadores contrapuseram-se duas
fica para cada região da realidade. teses extremas: segundo uma delas,
A analogia mortis que se destaca a morte é simples cessação; segundo
com tal motivo pode explicar por que a outra, a morte é “a própria mor-
— para citar casos extremos — a te”, irredutível e intransferível. Con-
concepção atomista materialista é ca- sideramos, por nossa parte, que a
paz de entender o fenômeno da ces- chamada ““mera cessação” e a mor-
sação no inorgânico, mas não o pro- te “propriamente humana” funcio-
cesso da morte humana, ao passo nam à maneira de conceitos-limites.
que a concepção estruturalista espi- Da morte humana pode-se dizer que
ritualista entende bem o processo da é “mais própria” do que outras for-
morte humana, mas não o fenôme- mas de cessação; contudo, a menos
no da cessação no inorgânico. que se corte por completo a pessoa
Não se trata, pois, de adotar uma humana de suas raízes naturais, de-
determinada idéia do sentido da ces- ve-se admitir que essa propriedade
sação numa determinada esfera da nunca é completa.
realidade e aplicá-la, por extensão, Em conjunto com uma pesquisa
a todas as demais esferas — por filosófica sobre a morte pode-se pro-
exemplo, conceber a morte principal- ceder a uma descrição e uma análise
mente como cessação na natureza das diversas idéias que se tiveram
inorgânica e, depois, aplicar esse acerca da morte no transcurso da his-
487 MORTE

tória, em particular no transcurso da da morte em vários ““círculos cultu-


história da filosofia. Pode-se, então, rais”, ou em distintos períodos his-
examinar a idéia da morte no natu- tóricos. Na maior parte dos casos, .
ralismo, no estoicismo, no platonis- esse estudo encontra-se ligado a um
mo, no cristlanismo, etc. Também exame das diversas idéias acerca da
podem-se estudar as diversas idéias sobrevivência e da imortalidade.
N
N A letra “N” é usada por Lukasie- O problema do nada surgiu de vá-
wicz para representar o conectivo rias maneiras na filosofia grega: co-
“não” ou negação, que nós simbo- mo problema da negação do ser,
lizamos por “1”. “N” antepõe-se, como problema da impossibilidade
como “1”, à fórmula, de modo de afirmar o nada, como problema
que ““]1 p”* escreve-se “N p”º na no- do espaço, do vazio, etc. Um traço
tação de Lukasiewicz. comum a muitos pensadores foi se-
guir a idéia mais corrente: o nada é
NADA Em evolução criadora
A4ÀA
a negação do ser; o que há é o ser
(1907), Bergson declarou que a idéia (ou um ser) e só quando se nega esse
do nada é, “com frequência, o mó- ser “aparece” o nada. Certos filó-

bil oculto, o motor invisível da es- sofos, como Górgias, sustentaram


peculação filosófica”. Em todo ca- que nada existe, que se algo existe é
so, muitos sistemas filosóficos têm- incognoscível e que se é cognoscível
se ocupado do chamado ““problema é inexprimível, mas não sabemos ain-
do Nada”. da se se tratava de tese filosófica ou
Étienne Gilson alega que a idéia de exercício retórico. Outros manti-
do nada não desempenha nenhum veram que só se pode falar com sen-
papel, ou, pelo menos, nenhum pa- tido do ser, já que, como afirmava
pel importante na filosofia grega. Se- Parmênides (e os eleatas), só o ser é,
gundo Xavier Zubirl, o pensamento e o não ser não é; ao contrário de
grego é fundamentalmente uma ““fi- Górgias, declara-se aqui que não se
losofia a partir do ser”, ao passo que pode nem conhecer, nem enunciar o
o pensamento cristão desde Santo não ser . Isso implica, em certos ca-
Agostinho a Hegel é “uma filosofia SOS (como sucedeu entre os megári-
a partir do Nada”. Por outro lado, COS), que só se admitiram como pro-
E. Bréhier (“L'idée de néant et le posições dotadas de sentido aquelas
problême de l'origine radicale dans que se referiam a algo existente; as
le néoplatonisme grec”', Revue de proposições sobre o que não é não
métaphysique, 26, 1918, 1955, pp. são, propriamente falando, propo-
248-83) manifestou que, embora te- sições. Muitos pensadores gregos
nha sido menos importante na filo- ativeram-se à tese de que do nada na-
sofia grega do que na cristã e não da advém; afirmar o contrário equi-
fosse, na filosofia grega, o funda- valia, como destacou Lucrécio (De
mento da especulação filosófica, a rerum natura, L, 150-210), a destruir
idéia do nada constituiu, em todo ca- a noção de causalidade, a admitir
so, um problema. que de qualquer coisa poderia sur-
NADA 490

gir qualquer outra coisa, a supor que ciona dentro de certas limitações. À
as coisas poderiam surgir do acaso concepção segundo a qual do nada
e em ocasiões impróprias. Outros provém o ser criado (ex nihilo fit ens
pensadores, sem porem em dúvida o creatum) destaca a “preeminência”
princípio ex nihilo nihil fit, trataram ou, em todo o caso, a “importância”
de apurar qual a função que uma do nada, não porque o próprio na-
“participação no nada” pode desem- da tenha algum poder ou eficácia,
penhar na concepção dos entes que mas porque, se Deus criou o mun-
são. Encontramos em Platão um do, esse mundo “vem”, de algum
exemplo nesse sentido (cf. especial- modo, do nada.
mente, Parmênides, 162 A). Aristó- Não obstante, cumpre distinguir
teles declara que embora se possa fa- entre o “filosofar a partir do nada”,
lar de privação e de negação, estas a que nos referimos antes, e o estu-
ocorrem no contexto de afirmações, do, por teólogos e filósofos cristãos,
Já que mesmo do não ser pode afir- do conceito de “nada”. Alguns au-
mar-se que é. Em geral, portanto, os tores, como Santo Anselmo, consi-
filósofos gregos abordaram o proble- deraram, seguindo em parte Santo
ma do nada do ponto de vista do ser. Agostinho, que o nome “nada” não
Mas o fato de que se propuseram significa nada, se o que é significa-
examinar a questão do não ser con- do por esse nome não for algo. Deve-
firma, como assinalamos, sua preo- se distinguir, afirma Santo Anselmo,
cupação com o problema. Aliás, a entre a forma de uma expressão e a
“positividade” do nada emergiu em expressão do que é. Essa distinção
diversas ocasiões, por exemplo, equivale à que formula Santo Tomás
quando se suscitou o problema da entre “nada”, como um nome usa-
matéria enquanto pura indetermina- do segundo a forma de falar (secun-
ção e quando se usou essa indeter- dum formam loquendi), e nome
a
Oo

minação para constituir o determi- “nada”, como nome segundo coi-


nado. sa (secundum rem). Distingue-se,
O princípio segundo o qual “do desse modo, entre um signo que tem
nada nada vem” (ver EX NIHILO uma função lógica e um conceito que
NIHIL FIT) é um “princípio de ra- se adequa ou não à verdade da coi-
zão”* geralmente considerado impug- sa. Fredegiso de Tours, numa Epís-
nável. Racionalmente falando, não tola sobre o nada e as trevas, assi-
se vê como poderia surgir algo do na- nala o paradoxo que resulta de di-
da — que não é nada, nem sequer zer que nada não é algo; então, com
negação do ser. Entretanto, a idéia efeito, diz-se de algum modo que é
de criação, tão fundamental na tra- algo.
dição religiosa Judaico-cristã e tão A análise kantiana da idéia do na-
importante na teologia e filosofia da tende a completar, segundo suas
cristãs, parece ou negar o menciona- próprias palavras, o sistema da ana-
do princípio ou admitir que só fun- lítica transcendental. Kant assinala
49] NADA

que o conceito supremo de que cos- mo diz Kant, dados vazios para os
tuma partir uma filosofia transcen- conceitos (K. r. V., A 290-293, B
dental é a divisão entre o possível e 346-350). O sentido ontológico da
o impossível. Como toda divisão su- negação e da privação é acolhido e
põe, no entanto, um conceito divi- até acentuado por Hegel quando,
dido, cumpre remontar a este, que, nos começos da Lógica, manifesta
independentemente de se tratar de que o ser e o nada são igualmente in-
um algo ou de um nada, é o concei- determinados: com efeito, ““o ser, o
to de objeto em geral. Kant aplica imediatamente determinado é, na
dessa forma os conceitos categoriais realidade, nada”, e “o nada tem a
a esse objeto em geral. Daí surge o mesma determinação ou, melhor, a
nada como um conceito vazio, sem mesma falta de determinação que o
objeto (ens rationis), como um gê- ser”. Tal identificação é possível, se-
nero sem indivíduo, à maneira dos gundo Hegel, porque o ser foi esva-
noumena, que não podem figurar ziado previamente de toda referên-
entre as possibilidades, mesmo quan- cia, com o fim de alcançar sua ab-
do tampouco possam ser excluídos soluta pureza; assim purificado, diz-
como impossíveis, ou à maneira da- se do ser o mesmo que do não ser —
quelas forças naturais que podem ser por conseguinte, o ser e o nada são
pensadas sem contradições, mas das a mesma coisa. O absoluto imedia-
quais não existem exemplos oriundos tismo do ser coloca-o no mesmo pla-
da experiência. Esse nada pertence à
categoria da quantidade. A de qua-
no que a sua negação
e só o devir po-
derá surgir como um movimento ca-
lidade dá origem a uma idéia do na- paz de transcender a identificação da
da como objeto vazio, sem conceito tese e da antítese. Essa concepção de
(nihil privaticum), como simples ne- Hegel foi criticada por Jacques Ma-
gação e ausência de uma qualidade; ritain. Segundo esse autor, Hegel re-
a de relação, a um nada que é uma correu a uma noção errônea da abs-
intuição vazia, sem objeto (ens ima- tração (ver ABSTRAÇÃO, ABS-
ginarium), com oO
espaço puro e O TRATO); em vez de ater-se a uma
tempo puro; por fim, a de modali- concepção “formal” da abstração,
dade dá origem à idéia do nada co- ateve-se a uma concepção ““nomil-
mo objeto vazio, sem conceito (ni- nal” (ou “total””).
hil negativum), como o contraditó- Spencer e Bergson ocuparam-se do
rio e impossível, tal como uma figu- problema do nada. Spencer afirmou
ra retilínea de dois lados. O primei- que um objeto não existente não po-
ro distingue-se do quarto por ser al- de ser concebido como não existen-
go que não pode figurar entre as pos- te (First Principles, II, $ 4). Bergson
sibilidades, mesmo quando não seja negou toda possibilidade de pensar
contraditório, ao passo que o último o nada. Segundo Bergson, a metafi-
anula a si mesmo. Em contraparti- sica do passado rechaçou a noção de
da, o segundo e o terceiro são, co- que a duração e a existência consti!-
NADA 492

tuem os fundamentos do ser, por ciência que tenho de mim mesmo; se


considerar que duração e existência suprimo esse interior, sua própria su-
são contingentes. Assim, a metafísi- pressão converte-se num objeto pa-
ca outorgou um caráter lógico-ma- ra um eu imaginário que, dessa vez,
temático ao ser e tratou, sem êxito, percebe como objeto exterior o eu
de deduzir a existência a partir da es- que desaparece. Exterior ou interior,
sência. As dificuldades em que a me- há sempre um objeto que a minha
tafísica se envolveu podem resol- imaginação se representa. É certo
ver-se, afirma Bergson, quando se que ela pode ir de um a outro e, desse
revela que a idéia do nada é uma modo, ir imaginando um nada de per-
pseudo-idéia, pois não pode ser ima- cepção externa ou um nada de percep-
ginada nem pensada. Não se pode ção interna, mas não ambos ao mes-
imaginar o nada (não se pode ima- mo tempo, pois a ausência de um con-
ginar que não há nada), porque mes- siste, no fundo, na presença exclusi-
mo quando se pudesse prescindir de va do outro. Mas do fato dos dois na-
"todas as percepções externas e de to- das serem alternadamente imaginá-
das as recordações, ainda ficaria a veis conclui-se erradamente que são
consciência do meu presente, redu- imagináveis ao mesmo tempo — con-
zida ao estado atual do meu corpo. clusão cujo caráter absurdo salta à vis-
“Não obstante, vou tratar de termi- ta, pois não se pode imaginar um na-
nar inclusive com essa consciência. da sem se perceber, ainda que de um
Atenuarei cada vez mais as sensações modo confuso, que se imagina esse
que me envia o corpo; ai de mim, a nada, isto é, que se age, se pensa e que,
ponto de se extinguirem, extinguem- por conseguinte, algo continua sub-
se, desaparecem na noite em que Já sistindo.”
se perderam todas as coisas. Mas Posto que Kant tinha mostrado
não! No mesmo instante em que mi- que a representação de um objeto é
nha consciência se extingue, outra igual à sua representação enquanto
consciência nasce — ou, melhor di- existente, a representação de um ob-
zendo, já nascera, surgira no instante Jeto não existente, diz Bergson, não
anterior para assistir ao desaparecil- consiste em retirar a idéia do atribu-
mento da primeira. Pois a primeira to “existência” da idéia do objeto.
não poderia desaparecer senão para A representação de um objeto não
outra e em relação a outra. Não me existente adiciona algo à idéia do ob-
vejo mais aniquilado (anéanti), do jeto: adiciona-lhe a idéia de exclusão.
que Já ressuscitado mediante um ato Ao pensar um objeto como não exis-
positivo, por involuntário e incons- tente, o objeto é pensado e, com 1s-
ciente que seja. Assim, faça o que f1- so, pensa-se algo incompatível com
zer, percebo sempre algo, seja de fo- a sua existência. O fato de que pen-
ra, seja de dentro. Quando já não samos na exclusão do objeto, mais
conheço nada mais dos objetos ex- do que na causa da exclusão, não eli-
ternos, é porque me refugio na cons- mina, porém, essa causa, pois o pró-
493 NADA

prio ato mediante o qual sustenta- timento de ausência causado pela fal-
mos que um objeto é irreal “coloca” ta de algo considerado útil. A ten-
a existência do real em geral. Em ou- dência da ação a proceder do ““na-
tras palavras, representar-se um ob- da” para o “algo” transpõe-se para
Jeto irreal não consiste em despojar- o domínio especulativo.
se de toda classe de existência, pois De um modo geral, portanto,
a representação de um objeto é ne- Bergson repeliu a possibilidade de
cessariamente sua representação co- “pensar o nada” e recusou-se a ad-
mo existente. Assim, há mais e não mitir que não haja experiência algu-
menos na idéia de um objeto não ma do “nada” — ou, melhor: a im-
existente. Tampouco se pode ““colo- possibilidade dessa experiência elimi-
car” (estabelecer) a existência da rea- na a possibilidade de semelhante
lidade inteira e logo eliminá-la com pensamento. As idéias de Bergson
um “não”, pois afirmação e nega- foram criticadas por Lachelier, en-
ção não são Juízos da mesma classe. tre outros. Lachelier exaltou o rigor
A negação não é um “não” soma- dos argumentos bergsonianos, mas
do a um “sim””. Uma afirmação ex- afirmou ser impossível suprimir a
pressa um Juízo sobre um objeto, en- idéia do nada e, ao mesmo tempo,
quanto uma negação expressa um sustentar a liberdade de um espírito
Juízo sobre outro juízo (ou seja, so- que, Justa e precisamente por ser li-
bre uma afirmação prévia). Assim, vre, pode recusar-se a afirmar a exis-
ao contrário do que ocorre com a tência de um ser qualquer.
afirmação, a negação não afeta di1- As opiniões de Heidegger sobre o
retamente o objeto. A negação afir- presente tema são inversas às de
ma algo de uma afirmação que, por Bergson. Enquanto este procura ex-
si mesma, afirma algo de um obje- plicar por que se afirma que há um
to. Resulta daí que a negação não é nada, Heidegger pergunta-se por que
o ato de um puro espírito separado não há, ou seja, formula-se a mes-
de todo e qualquer motivo e ocupa- ma pergunta de Leibniz: “Por que
do só de objetos enquanto objetos, há algo (“ente”) em vez de nada?”
pois a negação dirige-se a alguém: a Heidegger não tropeça, pois, na au-
nós mesmos ou a outra pessoa. À ne- sência do que procura; além disso,
gação tem um caráter soclal e peda- não procura um ente — o que, aliás,
gÓógico. muda a própria direção da ““pergun-
Bergson considerava que a insis- ta leibnizilana”'. O nada não é, para
tência na noção de que antes de, ou Heidegger, a negação de um ente,
“sob”, todas as coisas não há nada mas aquilo que possibilita o não e a
(ou “há “o Nada”), deve-se a que negação. O nada seria, nesse caso,
os “hábitos de ação” se nos impõem o “elemento” dentro do qual flutua
em nossos processos de pensamento. a Existência, esforçando-se por man-
A ação, afirmou Bergson, é inicia- ter-se à tona. Esse nada é descober-
da por uma insatisfação, por um sen- to por um fenômeno primordial, de
NADA 494

índole existencial: a angústia. Assim, ser e o tempo — escreve Priscilla N.


o nada é o que torna possível o trans- Cohn — considerou-se o Nada a par-
cender do ser, é o que “implica” — tir da posição do Dasein. Vimos aí
a estreita relação que existe entre o
em sentido ontológico e não lógico
— o ser. Por isso, há uma “evidên- Dasein e o Nada. Depois, em O que
cia” do nada sem a qual não have- é metafísica?, Nada aparece rela-
Oo

ria ipseidade nem liberdade. Pelo vi- cionado com o ente; no entanto,
gor com que expressou o seu pensa- quando começamos a divisar a for-
mento acerca do nada na conferên- ma em que era “um-com' o ente, ti-
cia (e folheto) de 1929, o conceito do vemos que retroceder de novo para
Nada nesse autor converteu-se numa considerar o significado que tinha
espécie de cause célêbre, chegando a para o Dasein. De qualquer perspec-
se identificar a filosofia de Heideg- tiva que se considere, pois, sem o Na-
ger com uma “filosofia do Nada”. da o Dasein não seria o Dasein. Mas
Por outro lado, encontramos escas- não podemos fechar o círculo por
sas referências ao Nada em O ser e completo sem um conhecimento adi-
o tempo, de 1927, e isso levou alguns
a afirmarem que não há um só pro-
cional: começamos
a ver que, embo-
ra se considere correntemente o Na-
blema importante no tocante ao Na- da como o concelto oposto à nega-
da na citada obra, mas tão-somente ção do ente, uma compreensão mais
na mencionada conferência. Ambas profunda dele mostra-nos a sua es-
as opiniões parecem errôneas. Em treita relação com o Ser.” Isso ex-
seu livro sobre a filosofia de Heideg- plica por que a questão do Nada vol-
ger, Através do nada, Priscilla N. ta a ser apresentada em 1955, ao re-
Cohn mostra que já em O sere o fletir “sobre a questão do Ser” (Zur
tempo a questão do Nada é impor- Seinsfrage).
tante, se não central. A conferência As idéias de Heidegger sobre o
de 1929 precisa e amplia o que se ex- Nada, em particular as expressas em
pressara na obra anterior. Mais ain- sua conferência de 1929, foram cri-
da: o “segundo Heidegger” ou “úl- ticadas por vários autores, especial-
timo Heidegger”* pode ser entendi1- mente por alguns de tendência ana-
do em função do modo como o pen- lítica e, de um modo mais especiífi-
samento do Nada, já claramente ex- co, neopositivista. O mais conheci-
presso em O ser e o tempo, se desen- do exemplo de crítica neopositivista
volve e se amplia, ao mesmo tempo de Heidegger encontra-se em Car-
em que se fundamenta. Desse modo, nap. Segundo esse autor, dizer que
o que poderia chamar-se ““a busca do “o Nada nadifica-se” é, logicamente
Nada” realiza-se a favor da ““per- falando, o mesmo que dizer ““a chu-
gunta pelo Ser”, que, de todo mo- va chove”. Não se trata, em nenhum
do, é, desde o princípio, a pergunta desses casos, de enunciados, mas de
fundamental de Heidegger e que per- ““pseudo-enunciados”'. São, pois,
siste através de seu Kehre: “Em O exemplos de má gramática e de uma
495 NADA

insubmissão à sintaxe lógica da lin- Na linguagem corrente, “nada”


guagem. usa-se no sentido de “coisa nenhu-
Curiosamente, Heidegger podia ma”', e essa última expressão apare-
estar de acordo com Carnap num ce dentro de algum contexto. Assim,
ponto: em que o que diz a propósito “não há nada em cima da mesa”
do Nada não pretende ser nenhuma quer dizer que não há coisa nenhu-
“proposição” acerca do Nada. Essa ma sobre a mesa. “Nada” é expri-
característica (aparentemente nega- mível em termos quantificacionais;
tiva) de não ser “acerca de” também no exemplo precedente equivale a di-
se encontra em Sartre. Admitindo em zer que para alguns x, não há ne-
princípio a descrição heideggeriana nhum x que esteja sobre a mesa. R.
do nada, Sartre corrige-a e destaca M. Martin procurou dar uma expres-
que, em vez de se dizer do nada que são lógica do conceito de “nada”
é, deve-se contentar com declarar que tratando-o como o indivíduo nulo
“foi”. O mesmo acontece com o na- que é nulo eternamente. Assim, se se
dificar do nada. Diz Sartre: o nada define “x N ft” como ““não há ne-
não se nadifica; o nada ““é nadifica- nhum 7, que seja parte de 7 e rela-
do”* (néantisé). Por 1sso, o ser pelo cione P com x” (onde P é uma rela-
qual o nada vem ao mundo deve ser, ção tal que um tempo 1 é parte de um
assinala Sartre, o seu próprio nada. indivíduo x, se x for um indivíduo
É provável que, para esses autores, que persista através de todo o tem-
somente a liberdade radical do ho- po 1), então “x Nt” poderá ler-se “x
mem permita enunciar significativa- é nulo (ou não atual [real, efetivo])
mente tais ““proposições”'. Sartre no tempo 1”. x será, pois, o indiví-
reconhece-o de modo explícito, ao di- duo que tenha a relação N (ser nulo
zer que o problema da liberdade con- o tempo todo). Isso constitui, segun-
diciona o aparecimento do problema do Martin, a contrapartida lógica do
do nada, pelo menos na medida em “princípio suposto nefando” de Hei-
que a liberdade é entendida como al- degger, segundo o qual, como vimos,
go que precede a essência do homem “o Nada nadifica”,
e a torna possível, isto é, na medida O autor da presente obra tratou de
em que a essência do ser humano es- dilucidar o conceito de nada consi-
tá na dependência da sua liberdade. derando que a sua substantivação —
Nesse autor haveria, por conseguin- na forma de “o Nada” — é um ar-
te, como em Heidegger, um suposto tifício linguístico mediante o qual ex-
último: o da “impotência” da lógi1- pressamos a noção tradicional de ““o
ca para abordar semelhante proble- nada privativo”, ou nada secundum
ma, pois a “lógica” apareceria so- quid. A análise ontológica desta no-
mente no instante em que houvesse ção é levada a efeito considerando de
um ser enunciador que se tornaria que modos se relacionam e se con-
ter
possível justamente por transcen- trapõem os dois conceitos-limites
dido o Nada. chamados ““ser” e “sentido”.
NATUREZA 496

à
In nuce, a tese é que só cabe falar épor natureza” como contraposto
de “o Nada” como uma tendência “o que é por convenção” e, outras
“ontológica” e em expressões como vezes, tratou-se de “Natureza” em
“tanto barulho para nada”, “no contraste com “Arte”, com “Espi-
fundo, não há nada”, etc. Isso ocor- rito”, com “o sobrenatural”, etc.
re quando há algum desequilíbrio O contraste entre que é por na-
““o
notório entre as disposições “ser” e tureza” e “o que é por convenção”
“sentido”. Em princípio, dever-se- foi estudado pelos sofistas (depois,
1a poder falar de “o Nada” ou de
por Platão e outros autores) para dis-
“nada” quando, dada uma realida- tinguir entre aquilo que tem um mo-
de ou complexo de realidades, há ne- do de ser que lhe é próprio e que
las muito pouco ser em relação ao cumpre conhecer tal como efetiva e
sentido, ou muito pouco sentido com “naturalmente” é e aquilo cujo ser
relação ao ser. O autor considera, ou modo de ser foi determinado de
entretanto, adotando um ponto de acordo com um propósito (humano).
vista manifestamente pouco equili- Assim, por exemplo, discutiu-se se os
brado, que só cabe falar de “nada” vocábulos da linguagem, especial-
ou “tendência para o Nada” quan- mente os nomes, são “naturais” ou
do há pouco sentido em relação ao “convencionais”. Também se discu-
ser, O que ocorre quando se pergun- tiu — e continuou-se discutindo até
ta, por vezes, “para que tanto (tan- ao presente — se as “leis”, enquan-
tas coisas)?” e se responde ““para na- to “leis de uma sociedade”, ou a
da (ou pouco menos que nada)”. Es- “constituição”* (de uma comunida-
sa idéia é menos unilateral do que pa- de), derivam de um modo, ou mo-
rece, se se levar em conta que o sen- dos, de ser anteriores, ou se são re-
tido não está confinado a atos hu- sultado de um pacto ou ““contrato
manos. Assim, por exemplo, mesmo social”. Em todas essas discussões,
que não houvesse seres humanos, só a noção de ““ser por natureza” era
o universo material, com sua “enten- próxima da noção de ““ter algo pró-
dibilidade”, suas complexas relações prio de si e por si””. Pois bem, esta
entre elementos, etc., já teria uma última noção não é alheia ao modo
notável proporção de sentido. como Aristóteles propôs suas in-
fluentes diminuições de “natureza”.
NATUREZA O conceito de ““natu- Escreveu Aristóteles que há vários
reza” tem sido entendido em dois sen- sentidos de “natureza” (qvo:s): a ge-
tidos, aliás nem sempre independen- ração do que cresce (qveoda.); o ele-
tes um do outro: o sentido de “natu- mento primeiro de onde emerge o
reza” principalmente como a chama - que cresce; o princípio do primeiro
da “natureza de um ser”, eo sentido movimento imanente em cada um
de “natureza” como ““a Natureza”. dos seres naturais em virtude de sua
A questão complica-se, além disso, própria índole; o elemento primário
porque, às vezes, entendeu-se ““o que do que é feito um objeto ou do qual
497 NATUREZA

provém; a realidade primária das que a faça desenvolver-se e agir de


coisas (Mer., À 4, 1014 b 16-1015 a acordo com o que é não tem essa
12). Segundo essas definições, pode- “substância” que se chama ““natu-
se dar o nome de “natureza” a mui- reza”. A natureza é, pois, simulta-
tas colsas ou a muitos processos: a neamente, substância e causa — ea
um princípio de ser, a um princípio causa é, simultaneamente, eficiente
de movimento, a um elemento com- e final.
ponente, ao elemento do qual estão Muitos escolásticos, especialmen-
feitos todos os corpos, etc. Mas o te desde Alberto Magno e Santo To-
próprio Aristóteles indica que todas más, empregaram o termo natura em
essas definições têm algo em comum: sentidos parecidos e às vezes idênti-
a natureza é “a essência dos seres cos aos de Aristóteles, mas não só
que possuem em si mesmos e en- neles. Assim, por exemplo, o vocá-
quanto tais o princípio de seu movi- bulo natura tem, em Santo Tomás,
mento” (Mer., à 4, 1015 a 13). Por significações muito diversas. De ime-
isso pode-se chamar de “natureza” diato, natura pode entender-se de
a matéria, mas só enquanto é capaz quatro modos: 1. como geração de
de receber o citado princípio de seu um ser vivo, porquanto nomen na-
próprio movimento; ou também a turae a nascendo est dictum; 2. co-
mudança e o crescimento, mas só en- mo princípio intrínseco [Imanente]
quanto movimentos procedentes de de um movimento, principium in-
tal princípio. “Natureza” é, assim, trinsecum motus; 3. como essentia,
“um princípio e uma causa de mo- Jorma, quidditas, de uma coisa (5.
vimento e de repouso para a coisa, Theol., I q. XXIX, 1 ad 4). Mas, se-
na qual reside imediatamente por si gundo Santo Tomás, também se cha-
e não por acidente” (Física, II, 1, 192 ma natura qualquer coisa do mun-
b 20). do, seja substância, seja acidente; a
De tudo isso deduz-se que a ““na- substância dita em certo modo; o
tureza”* de uma colsa — e mesmo, conjunto das coisas reais enquanto
poderia dizer-se, a “natureza” de to- obedecem a uma certa ordem, o or-
das as coisas enquanto ““colsas na- do naturae. O termo natura aparece
turais” — é o que faz com que a col- em considerável número de expres-
Sa OU as colsas possuam um ser e, sÕões, tais como, natura intellectiva,
por conseguinte, um chegar a ser ou natura sensibilis, natura completa,
“movimento” que lhes é próprio. natura corrupta, natura spiritualis,
Por isso, o que existe por natureza etc. Pode-se perguntar, em vista dis-
contrapõe-se ao que existe por outras so, se há ou não algumas significa-
causas, por exemplo, pela arte, réxvn ções predominantes. Consideramos
(Fisica, II, 192 b 18). Uma coisa que que sim e que são três: natura como
não possua o princípio do movimen- princípio intrínseco de movimento;
to — e, poderíamos dizer, mais ge- natura como essência, forma, índo-
ralmente, do “comportamento” — le, etc., de uma coisa, e natura co-
NATUREZA 498

mo o que se chamou, na Idade Me- várias “contraposições” em que In-


dia, o complexum omnium substan- terveio o conceito de Natureza: Na-
tiaruum — aquilo a que chamamos tureza e Arte, etc. Uma delas é a con-
“Natureza” enquanto cosmo ou uni- traposição entre a Natureza como o
verso. No primeiro caso, o sentido criado e Deus. Outra, de certo mo-
de natura é o de um modo de ser pró- do derivada da anterior, é a contra-
prio de certas entidades. No segun- posição entre natureza e graça.
do caso, é o que constitui certas en- Essa contradição não é, na maior
tidades ou parte de certas entidades. parte dos casos, uma exclusão mú-
No primeiro caso, o conceito de na- tua; pelo contrário, quase todos os
tureza é um conceito da ““física”* ou, autores cristãos, a começar por San-
se se quiser, da “ontologia da reali1- to Agostinho, consideraram que a
dade corporal” e, mais especifica- natura não é má por si mesma. A r1-
mente, da “ontologia da realidade gor, enquanto criada por Deus, a na-
corporal-orgânica””. No segundo ca- tura é fundamentalmente boa. As-
so, o conceito de natureza está cor- sim, a natura não é uma força má
relacionado com conceitos como os que se oporia a uma força boa. O
de hipóstase, substância, pessoa, mau na natura surgiu em consequên-
pressuposto, etc., Isto é, conceltos cia do pecado, o qual pode ser inter-
metafísicos ou, se se preferir, de ““fi- pretado metafisicamente como um
losofia primeira”. No terceiro caso, “movimento de afastamento da fon-
o conceito de Natureza é um conceil- te criadora”. Com o fim de redimir
to análogo ao de “mundo”, ou de a natura assim corrompida, é neces-
certos aspectos do “mundo”. sária a graça. Daí que a graça não
O termo natura pode aplicar-se a elimine a natureza, mas, pelo contrá-
toda classe de entes: criados, incria- rio, a aperfeiçoe. Santo Agostinho
dos, finitos, infinitos, etc.; melhor chegou a dizer que a natura é uma
dizendo, esse termo pode adjetivar- graça comum e universal; sobre es-
se de muitas e distintas maneiras. sa graça há outra, que é aquela pela
Mas foi muito comum, quando se qual alguns homens são eleitos.
tratou da natura (Natureza) como o Observe-se que o conceito de natura
conjunto das ““coisas naturais”, “de está aqui muito próximo do concei-
aqui embaixo”, “intramundanas”, to de criatura, isto é, do criado;
etc., aplicar a esse conjunto, mais do pode-se dizer até que se identifica
que a qualquer outro, o termo natu- com ela. A natura não é, ou não é
ra. Por esse conjunto ser natura, só, aquilo pelo qual uma coisa pos-
podia-se falar do que cada um dos sui uma índole própria, mas a índo-
seus elementos tem de natura. Pois le própria de todas as coisas enquan-
bem, num desses “elementos”, o to criadas por Deus. Por isso, a na-
conceito de natura pareceu sobrema- fura é cada coisa e, ademais, todas
neira importante: no ser humano. as coisas enquanto criadas. Segundo
Dissemos antes que se manifestaram as linhas de pensamento a que alu-
499 NATUREZA

dimos agora, as coisas criadas fo- vários modos de conceber ““Nature-


ram-no de acordo com as idéias resi- za” na Época Moderna são esque-
dentes no seio de Deus. Desse ponto máticas, porque, no decorrer dessa
de vista, pode-se dizer que a própria época, deram-se centenas de defin!-
natura não é inteligível, mas sensível, ções do termo ““natureza””, e 1SSO,
embora participando do inteligível — ademais, em diversos terrenos: nas
sem o que, aliás, não se poderia di- ciências positivas, na Jurisprudência,
zer que “é”. Não há dúvida de que, na ética, na teologia, na estética, etc.
filosoficamente falando, há muito Portanto, o mais razoável parece ser
nessa concepção de platônico, ou, se concluir que não há, na modernida-
se quiser, de neoplatônico. Mas, em de, nenhum conceito comum de ““na-
virtude dos últimos pressupostos cris- tureza””. Mesmo reduzindo tal con-
tãos, não se pode equiparar a contra- ceito ao que chamamos ““conceito
posição mencionada entre natura e cosmológico”, isto é, à idéia da Na-
criador, natura e graça, etc., com a tureza como conjunto dos ““corpos
contraposição platônica e neoplatô- naturais”, dos “fenômenos natu-
nica entre o sensível e o inteligível. rais”, etc., temos, durante a Epoca
Em todo caso, o conceito de ““na- Moderna, vários conceitos básicos
tureza”, dentro do pensamento cris- muito distintos entre si. Assim, por
tão, é basicamente compreensível co- exemplo, temos o conceito de Natu-
mo conceito ““teológico” e só por de- reza como o que poderíamos chamar
rivação adquire um sentido ““cosmo- uma ““região do ser”* (ou da ““real1-
lógico”. Na Época Moderna, não se dade”) caracterizada por determina-
abandonou inteiramente o sentido ções espaço-temporais e por catego-
“teológico” de “natureza” — ou de rias como a causalidade, como uma
natura, como prova o fato de que, ordem que se manifesta mediante leis
durante algum tempo, estiveram (deterministicas ou estatísticas); co-
muito vivas as discussões acerca do mo ““o que está aí” ou ““o nascido
conceito de graça e, portanto, acer- por “ser outro” ou ““exterio-
s1Ӽ, o
ca das distintas ““relações** possíveis ridade”* do Espírito, da Idéia, etc.;
entre natura e gratia. Mas é caracte- como um modo de ver a realidade ou
rístico de boa parte do pensamento parte da realidade que se deu no de-
moderno abordar outras ““contrapo- correr da história e que, portanto,
sições”. Durante os dois últimos sé- engendra um ““conceito histórico”
culos, especialmente, as seguintes ou “idéia da Natureza como histó-
“contraposições” foram objeto de ria”, etc. Em resumo, não parece ha-
múltiplos debates: natureza (enquan- ver, nem sequer dentro de limites
to conjunto de fenômenos naturais previamente fixados, “um conceito
que se supõem determinados por leis) de Natureza”, mas vários e, possi-
e liberdade; natureza e arte; nature- velmente, muitos conceitos de Natu-
za e espírito; natureza e cultura. reza distintos e provavelmente in-
As indicações anteriores acerca de compatíveis entre Si.
NÁUSEA 500

NÁUSEA No romance A náusea (La gratuito; este jardim, esta cidade, eu


nausée, 1938), Jean-Paul Sartre 1n- mesmo. Quando a gente acaba se
troduziu uma descrição da “náusea” dando conta disso, o coração fica
de que se tem feito um uso frequen- oprimido e tudo começa a flutuar...:
te para caracterizar o existencialis- els a náusea.”
mo, em geral, e a filosofia existen- Como Sartre trata brevemente da
cialista de Sartre, em particular. O náusea em O ser e o nada (L être et
principal personagem desse roman- le néant, 1943) e como, além disso,
ce, Roquentin, escreve que teve nesta última obra, refere-se especi-
“uma iluminação” e que esta con- ficamente à náusea como ““náusea
siste em descobrir o que quer dizer corporal”, foi dito, às vezes, que se
“existir”. Tinha pensado (ou supos- trata de uma simples manifestação li-
to), antes, que a existência era algo terária do pensamento existencialis-
vazio que se acrescenta às coisas de ta sartreano. Há nessa asserção al-
fora para dentro. Compreendia, ago- go de certo, pelo menos num ponto:
ra, que a existência não é nenhuma não se pode reduzir esse pensamen-
categoria abstrata, mas a “massa” to ao “sentimento fundamental da
de que estão feitas as coisas. As pró- náusea” (e do absurdo), por razões
prias coisas se desfazem para desper- análogas àquelas pelas quais não se
tar a existência. As coisas e suas re- pode reduzir o pensamento de Hei-
lações pareciam algo arbitrário e so- degger (inclusive só o do ““primeiro
bejo; tudo, incluindo o próprio Ro- Heidegger”) ao “sentimento funda-
quentin, lhe parecia sobejo (de trop). mental da angústia”, revelador do
O que era “absurdo”. Mas nesse ab- nada, ou ao “sentimento fundamen-
surdo se encontrava ““a chave da tal do tédio profundo”, revelador do
Existência, a chave de minhas náu- “Ser”. Entretanto, a idéia de “náu-
seas, de minha própria vida”. Era sea” desempenha um papel impor-
absurdo, porque não se explicava. O tante na ontologia fenomenológica
mundo das explicações era distinto de Sartre. Uma das seções mais de-
do mundo da existência. Um círcu- talhadas nessa ontologia fenomeno-
lo explica-se, mas não existe. Em lógica é a que Sartre dedica ao ““cor-
compensação, essa raiz que eu vejo po”. Mas a náusea é o modo como
existe na medida em que não se po- o meu corpo se revela à minha cons-
de explicar. ““O essencial — escreve ciência. Essa náusea é o fundamen-
Roquentin — é a contingência. Que- to de todas as possíveis náuseas que
ro dizer que, por definição; a exis- experimentamos em nosso contato
tência não é a necessidade... Ne- com o mundo.
nhum ser necessário pode explicar a
existência; a contingência não é um NECESSIDADE Tanto alguns pré-
simulacro, uma aparência que se socráticos (por exemplo, Anaxágo-
possa dissipar; é o absoluto: e, por- ras, Demócrito) quanto Platão em-
tanto, a perfeita gratuidade. Tudo é pregaram o conceito de necessidade,
501 NECESSIDADE

mas só Aristóteles forneceu sobre ele ao forum e o que tem quando se diz
precisões cabais. Uma passagem par- que é necessário (necesse est) que O
ticularmente esclarecedora a esse res- sol se mova. Desses três significados,
peito encontra-se em Mer., VII, 1072 pode-se eliminar o primeiro, porque
b ess. Segundo o Estagirita, o con- nada tem a ver com o que Porfírio
ceito do necessário tem os seguintes quer dizer (e, antes dele, Aristóteles)
sentidos: (1) à necessidade resulta da quando emprega o termo ““necessá-
coação; (2) a necessidade é a condi- rio”. Quanto aos dois outros senti-
ção do Bem; (3) é necessário o que dos — segundo e terceiro — mencio-
não pode ser de outro modo e o que, nados, o segundo quer dizer algo co-
por conseguinte, existe somente de mo “útil”; “é necessário irmos ao
um modo. O sentido (3) é o mais per- forum” equivale a “é útil que (ou
tinente para o nosso propósito e o convém que) vamos ao fórum”. SÓ
que exerceu maior influência. Me- o terceiro tem o sentido forte de ““ne-
diante o mesmo podemos distinguir cessidade”. Trata-se, no exemplo in-
entre necessidade, aváyxn, e desti- dicado, de uma necessidade ““real”,
no, eluaonpérm, assim como entre o mas se aquilo a cujo respeito se diz
que sucede por necessidade, xarT'a- que é necessário o for em virtude de
vayxnmv, e O que tem lugar por aci- alguma lei, caberá afirmar que a ne-
dente, xatà& ovupuBeBnxos. Pois bem, cessidade é “ideal”.
mesmo reduzida ao sentido (3), a no- É frequente, em muitos filósofos,
ção de necessidade pode entender-se passar da necessidade ideal à real e
de duas maneiras: (a) como necessi- vice-versa. No primeiro caso, supõe-
dade ideal e (b) como necessidade se haver uma razão que rege o un!-
real. (a) expressa encadeamento de verso. No segundo, que o rigoroso
idéias, enquanto (b), o encadeamen- encadeamento causal pode expres-
to de causas e efeitos. sar-se em termos de necessidade
Outros autores, além de Aristóte- ideal. Para evitar essas confusões, os
les, analisaram o sentido ou sentidos escolásticos propuseram confrontar
de ““necessário”* e ““necessidade”, a noção de necessidade com outras
Por exemplo, Boécio, no Livro [ de noções modais (entendidas em sen-
seus comentários à Isagoge de Por- tido ontológico) e distinguir entre vá-
fírio (In Isagogen Phorphyri Co- rios tipos de necessidade. No que se
menta, em Corpus &Scriptorum Eccle- refere ao primeiro ponto, afirmaram
siaticorum Latinorum, 48), observa que a necessidade inclui a possibili-
que, em latim, necessarius tem, co- dade, é contraditória com a contin-
mo avayxoatov, em grego, vários sig- gência (ver) e é contrária à impossi-
nificados. Entre eles, cabe mencio- bilidade. Quanto ao segundo ponto,
nar três: o que tem em Cícero, quan- propuseram várias distinções no con-
do diz que alguém é familiar seu (ne- ceito do necessário — definido co-
cessarium), o que tem quando se diz mo o que é e não pode não ser, quod
que é necessário (necessarium) irmos est et non potest non esse. Em pri-
NECESSIDADE 502

meiro lugar, há a necessidade lógi- cria as condições para que haja ne-
ca, a física e a metafísica. Em segun- cessariamente o que necessariamen-
do lugar, há a necessidade absoluta te há. Em outros autores, Deus e
(O necessário simpliciter, &vayxatov “necessidade” são aspectos diversos
ú&TNOs) e à necessidade relativa, de uma mesma realidade. Para Sp!-
condicionada ou hipotética (ava- noza, se algo é necessário, é porque
yxaotv é& vmobeécoemws). Em terceiro não há nenhuma razão que lhe im-
lugar, há a necessidade coativa e a peça de existir: necessarium est id
necessidade teleológica. Finalmente, quod nulla rationae causa datur,
há a necessidade determinada pelo quae impendit, quominus existat
próprio princípio de que o necessá- (Ética, 1, prop. XI), definição tau-
rio deriva: da forma, da matéria, etc. tológica somente se não se levar em
Com o que se estabelece uma grada- consideração que a definição do
ção entre formas de necessidade que campo ideal sobrepõe-se exatamen-
vão do absoluto ao mais condiciona- te, em Spinoza, ao que ocorre no
do e que permitem, inclusive, com- campo real. Em sua tentativa de
preender a necessidade condiciona- combinar as concepções modernas
da como uma atenuação da necessi- com as distinções antigas, Leibniz
dade absoluta. Na verdade, só de distingue mais exatamente entre os
Deus é costume dizer que não é pos- conceitos de necessidade metafísica
sível que não seja, non potest non es- ou absoluta; lógica, matemática ou
se. Entretanto, as verdades eternas geométrica; física ou hipotética, e
também são necessárias (pelo menos moral ou teleológica. A primeira ne-
para as concepções ““intelectualis- cessidade o é per se; a segunda, o é
tas”) mesmo quando dependam, se- porque o contrário implica contra-
gundo as concepções mais volunta- dição; a terceira, porque há rigoro-
ristas, da “arbitrariedade” divina. so encadeamento causal condiciona-
De um modo geral, a Epoca Mo- do por um suposto dado; a última,
derna entende a necessidade num porque o ato necessário deriva da
sentido preponderantemente ideal- prévia posição de fins. Não é preci-
racionalista, de tal modo que, em vez so dizer que a escola de Wolff ten-
de distinguir entre a necessidade ab- tou reduzir, também neste caso, as
soluta e a necessidade condicionada, diversas acepções ao conceito racio-
prefere distinguir entre a ideal e a nal, e a definição do necessário, tan-
real, e atribui à primeira um caráter to absoluto quanto condicionado,
absoluto (primeiro para a mente e, àquilo cujo contrário implica contra-
depois, para a própria coisa). Em dição (Wolff, Ontologia, $ 279). Por
Descartes, 1sso se torna possível por outro lado, as tendências empiristas
ter situado previamente Deus fora da descobriram na necessidade algo
esfera da necessidade propriamente muito distinto tanto de um conceito
dita: Deus não faz o que faz porque abstrato, quanto de um princípio on-
ISSO seja necessário, mas o
que faz tológico. Como toda idéia, a neces-
503 NECESSIDADE

sidade tem que surgir de uma impres- la da necessidade de um x e aqueles


são, de uma representação; daí por- em que se fala da necessidade, para
que, para Hume, a necessidade é re- um x, de ter a propriedade F. Foi co-
solvida, em última instância, num mum agrupar todos os enunciados
costume. Kant procura mediar entre de necessidade ontológica sob um tíi-
esses opostos com sua teoria da ne- tulo comum e considerar em pé de
cessidade como categoria da moda- igualdade enunciados tão diversos
lidade, procedente dos juízos apodic- quanto “é necessário que haja
ticos; a necessidade opõe-se, então, Deus”, “é necessário que Deus seja
à contingência e é “aquilo em que a onisciente”, “é necessário que esta
conformidade com o real está deter- mesa seja de madeira”, “é necessá-
minada segundo as condições gerais rio que uma cor seja extensa”, ““a so-
da experiência”. ciedade sem classes é (historicamen-
Entre os filósofos contemporâneos te) necessária”. Esse agrupamento só
que se ocuparam do problema da ne- se justifica porquanto, em qualquer
cessidade (em sentido ontológico) dos casos, se diz que a necessidade
destaca-se Nicolai Hartmann. Esse é inerente ao objeto, ao aconteci-
filósofo distingue (cf. Móôglichkeit mento, à situação, ao estado, à pro-
und Wirklichkeit, 1938, pp. 42 ess.) priedade, etc. Em todo caso, se se
os seguintes tipos de necessidade: a afirma que não é possível que algo
necessidade lógica, a necessidade es- não seja, não ocorra ou não tenha
sencial, a necessidade cognoscitiva e esta ou aquela propriedade, supõe-
a necessidade real. Contudo, o pró- se que tem de ser (existir), ocorrer ou
prio Hartmann reconhece que, do ter esta ou aquela propriedade neces-
ponto de vista ontológico, somente sariamente, seja em virtude de um
são fundamentais a necessidade real caráter absoluto, seja em razão de
e a necessidade essencial — por se uma certa estrutura, dentro da qual
tratar de “modos de ser”* primários. resulta ser necessário, ou por ser co-
O conceito ontológico de necess1-
dade pode expressar-se em enuncia-
mo
se diz que é em todos os mundos
possíveis.
dos como ““x é necessário”, “é ne- Classicamente, distinguiu-se na ne-
cessário que x”, “é necessário que cessidade — assim como, em geral, na
haja x”, “é necessário que ocorra modalidade — entre uma necessida-
x”, “x tem necessariamente a pro- de de re e uma necessidade de dicto.
priedade F”, etc. “x”* denota às ve- A necessidade de re é a que se refere
zes um objeto, às vezes um aconte- à própria realidade. A necessidade de
cimento ou uma situação, às vezes" dicto é a atinente ao que se diz, ao dic-
um estado; “F** denota uma pro- fio ou discurso.
priedade ou qualidade. É óbvio que A necessidade que qualificamos de
há grandes diferenças entre esses ti- “ontológica” é uma necessidade de
pos de enunciados, especialmente en- re. É a que foi tratada por muitos au-
tre dois deles: aqueles em que se fa- tores no passado e aquela a que se
NIILISMO 504

referem as pesquisas de Nicolai Hart-


mar que há entidades, acontecimen-
mann antes mencionadas. Alguns tos ou propriedades que são neces-
distinguiram entre a necessidade on- sários. Às mencionadas suspeitas
tológica e a lógica. Outros conside- uniu-se a oposição a toda lógica mo-
raram haver um paralelismo entre dal quantificada.
ambas, pelo menos no sentido de que O interesse pela noção de necessi-
a necessidade ontológica está inseri- dade, do ponto de vista ontológico,
da em contextos lógicos e de que es- ressurgiu quando o essencialismo foi
ses contextos incluem modalidades revitalizado por, entre outros pensa-
capazes de explicar a necessidade on- dores, Saul A. Kripke (“Naming and
tológica. Necessity”", em Semantic of Natural
A necessidade lógica é uma neces- Language, 1972, 2º edição, organi!-
sidade de dicto. Logicamente, a no- zada por Davidson e G. Harman,
ção de necessidade expressa-se me- pp. 252-355), Alvin Plantinga (The
diante a cláusula modal ““é necessá- Nature of Necessity, 1974), David
rio que” (simbolizada por “[1””) an- Lewis (Counterfactuals, 1973) e M1-
teposta a uma proposição, enuncia- chael A. Slote (Metaphysics and Es-
do ou sentença. Assim, “LL p” lê-se sence, 1975).
“é necessário que p”*. Em lógica mo-
dal, a cláusula “é necessário que” NIILISMO Um dos primeiros filó-
não tem por que ser tomada como sofos, se não o primeiro, a usar o ter-
cláusula primitiva, porquanto pode mo ““nillismo”* foi Willlam Hamil-
derivar-se de alguma outra cláusula ton. No vol. I de Lectures on Me-
estabelecida como primitiva. Por taphysics, Hamilton considerou que
exemplo, cabe definir “é necessário o niilismo (de nihil=““nada”) é a ne-
que p”* em termos de ““é possível que gação da realidade substancial. Se-
Pp” mais o conectivo “não”. Desse gundo Hamilton, Hume era um nii-
modo, ““é necessário que p”, em sim- lista. Em se negando que há uma rea-
bolos “LL p”* equivale a “não é o ca- lidade substancial, ou que há, em
so de não ser possível que não p””; realidade — ou ““na realidade” —,
em símbolos, “1 O 1p”. substâncias, só se cabe sustentar que
Enquanto cláusula modal, a noção se conhecem fenômenos. Desse pon-
de necessidade não é forçosamente to de vista, o niilismo é idêntico ao
atribuível a nenhuma entidade, acon- fenomenismo.
tecimento ou propriedade. Muitos O niilismo de que falava Hamil-
autores trataram a necessidade do ton passou a ser designado, depois,
ponto de vista lógico, considerando como ““nillismo epistemológico”, a
suspeita toda e qualquer noção de fim de o diferençar de outros tipos
necessidade ontológica. Uma coisa é de niilismo, como o niilismo moral
usar uma cláusula modal que afeta (negação da existência de princípios
uma proposição, enunciado ou sen- morais válidos), o niilismo metafísi-
tença, outra muito diferente é afir- co (pura e simples negação da ““rea-
505 NIILISMO

lidade”), etc. Entretanto, o niilismo (Sou o espírito que sempre


epistemológico e o niilismo metafí- [nega]!
sico também têm sido equiparados E o faz com razão, pois tudo o
com frequência. Hamilton já se re- [que nasce
feria a Górgias, para quem não ha- Não vale mais do que para
via nada — e, se houvesse algo, se- [perecer;
ria incognoscível, se fosse cognosci- Por isso seria melhor que nada
vel seria inexprimível, inefável ou in- [Surgisse.)
comunicável. Também se falou de O último verso pode relacionar-se
Pirron a propósito do niilismo; em com manifestações como os dois cé-
geral, nulismo e ceticismo, em par- lebres versos que Calderón de la Bar-
ticular o ceticismo radical, foram fre- ca põe na boca de Segismundo, em
quentemente examinados em con- La vida es sueho:
Junto como dois aspectos de um ““ne- Pues el delito mayor
gacionismo”' ou “nadismo” univer- del hombre es haber nacido.
sal. Posto que o ceticismo se mani-
festou muitas vezes como dúvida de (Pois o maior delito
que haja algo permanente no movi- do homem é ter nascido.)
mento e na mudança, o niilismo foi e outras manifestações semelhantes
entendido como a afirmação de que de poetas, que remontam (no Ocil-
tudo muda continuamente e, além dente) a Teógnis, poeta elegíaco de
disso, de que tudo varia de acordo Mégara (século VI a. C.). Mas cum-
com o sujeito. pre advertir que, em Calderón, pelo
O niilismo expressou-se, por vezes, menos, não se trata de nulismo, mas
na forma de uma ““concepção do do sentimento radical de ““criaturi-
mundo”. Pode se tratar da concep- dade”.
ção do mundo daquele que adota um Em O mundo como vontade e re-
pessimismo radical, ou então da con- presentação (Die Welt als Wille und
cepção de quem adere a um ponto de Vorstellung), Schopenhauer, cuja fi-
vista totalmente “aniquilacionista”. losofia é descrita amiúde como pes-
Nesse último sentido, o niilismo ex- simista ou niilista —, dois pontos de
pressou-se pela boca de Mefistófeles, vista afins — citou os mesmos ver-
no Fausto, de Goethe, ao dizer: sos do Fausto de Goethe e de La vi-
da es suefio de Calderón, assim co-
Ich bin der Geist, der stets mo versos de Teógnis. Schopenhauer
!
[verneint! considera que toda existência ““refle-
Und das mit Recht; denn alles, te”* o impulso irracional e incessan-
[was entsteht te da Vontade. Toda vida é luta, mas
Ist wert, dass es zugrunde geht; a vida humana, em particular, está
Drum besser war's, dass nichts cheia de sofrimentos: oscila a vida
[entstunde. como um pêndulo entre a dor do de-
NIILISMO 506

sejo (baseado na necessidade ou na mo final de um desenvolvimento his-


carência) e a dor não menos intensa tórico sem saída. Em outro sentido,
do tédio ou da inanidade (que se sen- cabe considerar como niilista a inter-
te quando todas as necessidades fo- pretação da existência humana e do
ram satisfeitas). Todo sentido e to- mundo proporcionada pela Europa
do propósito são mera ilusão. Quem cristã e pela Europa moderna, tanto
aspirar à beatitude terá que despren- no campo moral quanto no campo
der-se da Vontade, pois dar-se-á con- metafísico. Essa interpretação nega
ta de que a Vontade, a coisa em si, os autênticos valores superiores da
não é somente a causa do egoísmo força, da espontaneidade, do “su-
e da agressão humanos, mas também per-humano”, em proveito dos su-
a razão de todo mal em geral. Scho- postos valores da equidade, da hu-
penhauer reiterou que a vida é “um mildade, etc. Pode-se falar, assim, de
passo em falso”, “um erro”, “um um niilismo “mau”, que é o niilis-
castigo e uma expiação”. A vida é mo passivo da tradição moral e me-
uma divida contraída ao nascer (cf. tafísica. Mas também pode-se falar
Die Welt, suplemento ao Livro IV, de um niilismo “bom”, que seria
cap. XLV). Contestando a objeção mais adequado qualificar de “autên-
de que a eliminação do sofrimento tico”. Esse niilismo é um niilismo
implica a negação da Vontade e, com ativo e consiste justamente em des-
18s0, ““o resvalar para um nada va- truir o sistema de valores daquele n11-
z1i0””, Schopenhauer escreveu: ““Re- lismo passivo tradicional. O nillismo
conhecemos sem rodeios que, para dos ““espiritos fortes** põe um pon-
quem se ache repleto de Vontade, o to final no nulismo débil do pessimis-
que permanece depois da completa mo, do historicismo, do afã de com-
abolição da Vontade, é um nada. preender tudo, da idéia de que tudo
Mas, inversamente, para quem a é vão.
Vontade deu uma volta e negou a si O tema nietzscheano do niilismo
mesma, este nosso mundo, que é tão foi acolhido por Heidegger ao tratar
real, com todos os seus Sóis e suas da destruição da metafísica ociden-
Vias Lácteas, é um nada” (Die Welt, tal e até de toda metafísica como um
IV, $ 71). “acontecimento”. Atitudes niilistas
A noção de niilismo desempenha expressaram-se em outros autores,
um papel importante no pensamen- como Georges Bataille e, sobretudo,
to de Nietzsche. Em A vontade de E. M. Cioran, que desenvolveu a
poder (Der Wille zur Macht), Nietzs- idéia da “decomposição”. Também
che refere-se ao que chamade ““o nii- se fala de niilismo com referência a
lismo europeu”. Por outro lado, vê Sartre, visto que esse pensador usou
avançar por todos os lados ““a prea- a noção de “aniquilamento” (ou
mar do niilismo? (na frase de Orte- “nilação”) tanto em suas pesquisas
ga y Gasset). Num sentido, o niilis- sobre O Imaginário como em sua des-
mo é uma ameaça, porque é o ter- crição do ““para-si””. Entretanto, no
507 NOÇÃO

que toca a este último ponto, cum- reza dessa relação, mas não há rela-
pre ter presente que o “aniquilamen- ção se as realidades são distintas; e se
to”* e as correspondentes ““negativi- hárelação, então existe somente uma
dades”* (négatités) só são nulismo do realidade, da qual nada se pode pre-
ponto de vista do “em-s1t””. O ““nit- dicar e com a qual nenhuma outra rea-
lismo”* sartreano pouco tem a ver lidade pode relacionar-se.
com o niilismo em qualquer dos sen-
tidos antes apontados. NOÇÃO Cícero (Topica, VII, 31)
Interessante na história do niilis- introduziu o vocábulo notio (=no-
mo moderno é o niilismo russo, o ção) para traduzir os termos gregos
qual tem, em parte, raízes psicoló- Evvota é TooNnvis. Ambos significam
gicas, sociais e religiosas. Uma ex- “pensamento”, “idéia”, “imagem
pressão radical do niilismo encontra- no espírito”, “desígnio”; mas, en-
se em Bakunin, que afirmava que só
quanto évvota foi empregado por
a destruição é criadora. Todavia, a muitos autores gregos com o sIigni-
forma mais radical desse nulismo tal- ficado de “idéia” (em geraD), room
vez se encontre em Dimitri Ivano- Vis foi empregado pelos estóicos e
vitch Pisarév, o qual escreveu que
epicuristas com o significado de uma
“tudo o que pode quebrar-se, há que “idéia” ou “imagem” antecipada
quebrá-lo; o que aguentar o golpe,
será bom; o que rachar, será bom pa- que se forma de um objeto no espí-
rito. Por esse motivo, traduziu-se
ra o lixo. Em todo caso, há que dar TpoNnnVis por ““antecipação””. No
golpes à direita e à esquerda: disso
sentido de “pensamento”, ““idéia”,
nada pode resultar de mau”.
Uma forma de niilismo filosofica- “concelto” e outros vocábulos aná-
mente interessante é o chamado ““bu- logos, o termo ““noção” foi, e con-
dismo niilista”* ou “niilismo budis- tinua sendo, empregado de um mo-
do muito geral: chama-se “noção”
ta”, na forma em que foi desenvolvi-
da por Nagarjuna, no século IT d.C. à idéia ou conceito que se tem de al-
Nagarjuna propôs uma Interpreta- go e, mais especificamente, a uma
ção “justa” ou “média”, Madyvami- idéia ou conceito suficientemente bá-
ka, de Buda, que consiste em negar sico. A noção distingue-se da idéia
toda alternativa para uma posição propriamente dita já que, enquanto
dada e na negação dessa negação. esta última pode ser (segundo certos
Assim, Nagarjuna situou-se no cha- filósofos) o princípio de uma reali-
mado ““vazio”, sunya, o qual é ine- dade, a primeira só pode constituir
fável e é o verdadeiro Absoluto. o princípio do conhecimento de uma
Nagarjuna destacou as contradições realidade. Quando suficientemente
em que cai toda a afirmação de qual- básicas, as noções consideradas equi-
quer (suposta) realidade; se se afirma valem aos princípios, chamando-se
que uma realidade está relacionada nesse caso de “noções comuns” os
com outra, cumpre elucidar a natu- princípios que, segundo se supõe,
NOME 508

são — ou devem ser — admitidos dos sofistas e as de Hermógenes; os


por todo sujeito racional. nomes são simultaneamente conven-
O termo ““noção” foi usado por cionais e constantes. As coisas têm
Locke, por um lado, na acepção uma natureza fixa e o nome é ado-
de “idéia”, “espécie”, etc. (Ensaio tado para expressar essa natureza.
acerca do entendimento humano, |, Para Platão, o nome é um órgão
1, 8) e, por outro, de um modo mui- (Crátilos, 388 A), ou seja, um Óór-
to mais preciso, na acepção que têm gão ou instrumento destinado a pen-
todos os chamados “modos mistos”. sar o ser das coisas.
Como nome de tais modos, as no- Aristóteles chamou de “nome”
ções podem ser usadas sem qualquer um som vocal que possui um signi-
intenção denotativa (op. cit., II, xxil,
2). Berkeley também usou certas ex-
ficado convencional e que não
fere ao tempo — como sucede com
se re-

pressões que não se referem a real1- o verbo —, sem que nenhuma das
dades — ou seja, que não ““signifi- partes do nome tenha significado dis-
cam” ou “denotam” idélas —, mas tinto do do nome (De int., 1, 1 a 19
que servem, porém, para falar acer- ss.). Aristóteles dá como exemplo
ca de realidades. A noção é um ter- xoNAiTTOS, EM QUE O NOME LTTOS,
mo abstrato ou teórico; pode ser em- “cavalo”, não tem em si mesmo ne-
pregada, mas sempre que se preten- nhum significado, como ocorre com
da referir-se a algo com ela. a expressão xaXhôs utTos, “belo ca-
valo”. Isso é o que sucede nos no-
NOME |[.Epoca antiga e medieval. mes simples. Nos nomes compostos,
Os sofistas trataram com frequência a parte contribui para o significado
do problema da natureza do nome, do todo, ainda que não possua em
ovoua; pretendiam apurar se um no- si mesma qualquer significado. O
me é ““por lei””, vonmw, ou “por con- exemplo é éraxtEoxéNns “barco pi-
venção”; ou, então, se é “por natu- rata”. Segundo Aristóteles, xéMNns,
reza”, pvoer. Os sofistas inclinavam- “barco” nada significa por si mes-
se para a primeira opinião: um no- mo fora do composto. Isso deve ser
me não designa, por sua própria na- entendido do seguinte modo: ““bar-
tureza, a coisa; designa-a porque co” não significa nada fora do com-
fazem-no designar a coisa. É a tese posto, se pensamos no composto,
posteriormente chamada ““nomina- mas pode significar algo se não le-
lismo”* (ou um dos aspectos dessa varmos em conta o composto.
teoria). Hermógenes, personagem do Dentro da escolástica, foram os
Crátilos platônico que representa, no gramáticos especulativos e os termi-
diálogo, as opiniões de Heráclito, nistas que mais interesse mostraram
considerava que os nomes são justos pelo problema do nome. Os primei-
por natureza, mas encontram-se em ros preocuparam-se, sobretudo, com
constante mudança, como todas as
colsas. Platão rechaçou as opiniões
os diversos modosde significar o no-
me, distinguindo entre um modo es-
509. NOME

sencial e sumamente genérico de sig- comuns; de primeira e de segunda in-


nificar e modos de significar subal- tenção; universais, particulares, in-
ternos que iam de uma maior a uma dividuais e indefinidos; unívocos e
menor generalidade. Quanto aos ter- equívocos; absolutos e relativos; sim-
.ministas, desenvolveram amplamen- ples e compostos. Em todo caso, os
te a teoria dos nomes, mas, como nomes são marcas arbitrárias com as
usaram muitas vezes o vocábulo quais nos fazemos entender pelos ou-
“termo”, exporemos essa doutrina tros — ou entendemos os outros —
no verbete sobre esse conceito. em virtude de certas convenções que
Il. Época Moderna. Durante a não necessitam ser estabelecidas cons-
Época Moderna, o vocábulo ““no- cientemente, já que podem estar fun-
me” foi usado em sentidos menos damentadas na natureza da nossa
técnicos e precisos do que na filoso- psique.
fia aristotélica ou durante a escolás- Para Locke, não é certo que cada
tica. Os que mais se ocuparam do coisa possa ter um nome; ao mesmo
problema dos “modos de significar” tempo, quando podem designar-se
o nome foram os autores nominalis- várias colsas mediante um nome, este
tas ou empliristas, e estes, em mui- Justifica-se pragmaticamente, pela
tos casos, não fizeram mais do que comodidade do seu uso. Os nomes
reelaborar concepções medievais podem ser próprios (nomes de cida-
(terministas), ou dar-lhes um sent!- des, rios, etc.) e comuns (formados
do psicológico-epistemológico. E o por abstração nominal) (Essay, III,
caso de quatro autores significativos 111). Em geral, os nomes são com-
desse ponto de vista: Hobbes, Loc- preendidos em função das idéias que
ke, John Stuart Mill e Taine. O pri- designam. Assim, pode haver nomes
meiro definiu o nome em seu Com- de idéias simples, de idéias comple-
putation or Logic, Parte 1, cap. 1 xas, de modos mistos e de substân-
(Works, ed. W. Molesworth, 1839, clas (se bem que estes últimos sejam
pp. 13-28), dizendo ser “uma pala- duvidosos).
vra tomada arbitrariamente, que ser- John Stuart Mill proporcionou um
ve como marca capaz de suscitar em retorno à concepção epistemológica
nossa mente um pensamento pareci- do nome — sem esquecer as implica-
do com algumas outras coisas que ções lógicas e psicológicas. Sua dou-
havíamos tido antes e que, ao ser trina dos nomes está exposta em
pronunciada por outros, pode con- System of Logic: a parte I trata intei-
verter-se, para eles, em signo de que ramente dos nomes, mas a Parte IV
pensamento o espectador tinha em também contém algumas indicações
mente”. Essa extensa definição é a a esse respeito. No entender de JJ.
clara expressão de uma atitude ter- Stuart Mill, nomear constitui uma
minista a respeito do nome. Os no- função (psicológica ou psicológi-
mes podem ser, segundo Hobbes, co-epistemológica) de alcance lógico
positivos e negativos; contraditórios; (Parte IV, cap. 11, $ 1). Essa função
NOME 510

refere-se às próprias coisas, e não às III. Época Contemporânea. Os


idéias das coisas. Assim, Mill recha- problemas concernentes à noção de
Ççou a concepção dos sensualistas, nome foram objeto de investigação
por considerá-la “metafísica”, e ado- por Husserl (na primeira fase do seu
tou a tese segundo a qual um nome pensamento, a das Investigações ló-
dado é o nome de uma coisa e não gicas), Frege, Wittgenstein, Carnap
de nossa idéia dela (““o sol” é o no- e muitos outros autores.
me do sol e não de nossa idéia do Entre os pontos de vista adotados
sol). Pois bem, a classificação dos por Husserl sobre o problema, des-
“nomes das coisas” obedece às leis tacamos dois. Um baseia-se numa
próprias dos nomes, não às leis das distinção entre notificação (Kundga-
coisas. De acordo com a tradição be) e nominação (Nennung). Husserl
escolástica, Mill dividia os nomes indica (op. cit., investigação primei-
em sintagoremáticos (como ““a”, ra, $ 25) que as expressões podem ser
“com”, etc.) e categoremáticos (co- sobre objetos nomeados ou sobre v1-
mo “homem”, “mesa”, etc.). Os vências psíquicas. No primeiro caso,
adjetivos apresentam um problema. são expressões do objeto que no-
Por um lado, parecem não possuir meiam e, simultaneamente, notifi-
subsistência por si mesmos. Por ou- cam. No segundo, são expressões em
tro lado, são nomes de certas expres- que os conteúdos nomeados (ge-
sões, pelo menos se se explicitam (as- nanntes) e notificado são iguais.
sim, “o branco é agradável”*). Em Husserl também distingue entre no-
conjunto com a divisão acima men- mear e enunciar (op. cit., investiga-
cionada, Mill introduziu uma outra: ção quarta, $ 33). “Por nomes não
os nomes são gerais e individuais (ou devemos entender meros substanti-
singulares), abstratos e concretos, vos, os quais não expressam por si
conotativos (que indicam um sujei- só nenhum ato completo. Se quere-
to e implicam um atributo) e não- mos compreender o que são e signi-
conotativos (que significam só um ficam aqui os nomes, o melhor será
sujeito ou um atributo, pelo que considerar as conexões, principal-
também podem chamar-se absolu- mente os enunciados em que os no-
tos). Segundo Mill, todos os nomes mes funcionam em sua significação
concretos são conotativos (Parte |, normal. Vemos, então, que as pala-
cap. il, $ 1 e ss.). Finalmente, Mill vras, ou as complexões de palavras,
dividiu os nomes em positivos e ne- que devem ser consideradas como
gativos, relativos e não-relativos (ou nomes, só expressam um ato comple-
que expressam ou não relações). to quando ou representam o sujeito
Quanto a Taine, concebeu os no- simples completo de um enunciado
mes como uma espécie de signos (De — Caso em que expressam um ato-
VPintelligence, Parte LI, LI, 11). Os no- sujeito completo — ou, prescindin-
mes designam coisas particulares ou do das formas sintáticas, podem de-
complexos de coisas particulares. sempenhar num enunciado a função
S11 NOME

de sujeito-simples, sem alteração de ou, em vez disso, nomes ou signos


Sua essência intencional” (op. cit, de objetos. Segundo Frege, um no-
Investigação quarta, $ 34). me próprio (palavra, signo, combi-
Grande parte das discussões sobre nação de signos, expressão) exprime
a noção de nome entre lógicos e fi- seu sentido e designa a sua referên-
lósofos de tendência ““analítica” tem cia. Portanto, Frege opina que os no-
antecedentes na filosofia grega e me- mes próprios têm um ““sentido”
dieval. Os nomes podem ser comuns (Sinn). A doutrina de Frege, desen-
— como ““cão””, “casa”, “monta- volvida e aperfeiçoada por Alonzo
nha” — ou próprios — como ““Na- Church, sustenta que entre os nomes
poleão””, “Claude Lévi-Strauss”, próprios (ou, simplesmente, nomes)
“La Giralda”. Distinguiu-se entre figuram não só as expressões assim
nomes próprios e descrições — co- comumente consideradas, mas tam-
mo ““o mais importante estrategista bém descrições (ou frases descritivas)
francês do século XIX”, “o autor de e todas as expressões cuja estrutura
O pensamento selvagem”, ““o edifí- expressa o modo como se efetua a
cio mais conhecido de Sevilha”, que denotação. Na verdade, cabe dizer
correspondem aos três últimos no- também, ou sobretudo, que as des-
mes acima mencionados. Posto que crições incluem nomes, os quais são
a descrição “o mais importante es- descrições disfarçadas.
trategista francês do século XIX” A idéia de que os nomes próprios
descreve um indivíduo cujo nome foi não têm significação, ou, se a têm,
“Napoleão” e posto que a frase des- esta é formada pelo objeto nomea-
critiva de referência tem significação, do, foi desenvolvida por Wittgens-
apresentou-se o problema de se o no- tein no Tractatus. Também consti-
me correspondente também tem ou tui uma parte da doutrina de Russell
não significação. proposta em sua teoria das descri-
Esse problema é complexo e rece- ções (ver DESCRIÇÕES, TEORIA
beu várias soluções. Uma das mais DAS). Segundo Russell, cumpre dis-
conhecidas é a doutrina segundo a tinguir entre nomes próprios e des-
qual um nome próprio denota, ou crições, ou frases descritivas. Estas
refere-se a, uma entidade, mas não últimas funcionam como predicados
tem significação; 1sto é, um nome de um x quantificado. A frase des-
próprio está no lugar da entidade no- critiva não nomeia por si mesma; em
meada. A doutrina de J. Stuart Mill contrapartida, se a é um nome, tem
relativa aos nomes, esboçada na se- de exercer uma função nominativa.
ção precedente, sustenta o caráter Quine adaptou a teoria russellia-
denotativo e não significativo (ou co- na, inclusive ““radicalizou-a”, ao
notativo) dos nomes próprios. Fre- considerar que um nome próprio é
ge destacou as dificuldades que sur- suscetível de ser empregado descri-
gem mal se pergunta se o signo de tivamente. Em substância, a tese
identidade “=” relaciona objetos consiste em tomar o nome próprio
NOME 512

e fazer dele um predicado; isto pode introduzido mediante uma regra que
expressar-se verbalmente, no caso de se refira exatamente a uma proprie-
Sócrates, quando se diz que há um dade. Segundo Carnap, a distinção
x tal que x “socratiza”. de Frege antes apontada entre o sen-
A doutrina de Wittgenstein-Rus- tido e o denominado, ou nomina-
sell, por um lado, e as de Frege- tum, é uma forma particular do ci-
Church, por outro, parecem incom- tado método da ““relação de nome”.
patíveis. Entretanto, foram realiza- A complexidade do problema dos
dos esforços no sentido de harmoni- nomes e, especificamente, dos nomes
zá-las e de admitir a possibilidade de próprios, mostra-se assim que se for-
que, embora não seja necessariamen- mula a questão, tratada pelo último
te o disfarce de uma descrição, um Wittgenstein, das relações (ou falta
nome próprio pode ter um sentido. de relações) entre nomear e mostrar.
Carnap (cf. Meaning and Neces- Em princípio, parece que se pode sa-
sity, cap. III) analisou o método da ber o nome de algo mostrando o no-
“relação de nomes”. Trata-se, em meado, ou seja, dando uma ““defi-
seu entender, de um método alterna-
nição ostensiva”? do nomeado. Mas
tivo de análise semântica, mais usual
a “mostra” não chega a identificar
que o método da extensão e da in- o objeto que leva o nome proposto,
tensão. Tal método consiste em con- salvo se tem lugar dentro da trama
siderar expressões como nomes de
de uma linguagem comum ao que
entidades (concretas ou abstratas) se-
produz a mostra e ao que trata de
gundo três princípios: (1) cada no-
me tem exatamente um nominatum;
aprender o que é aquilo a que se dá
(2) qualquer enunciado (ou melhor, um nome mostrando um objeto. As
sentença) fala acerca dos nomes que complicações crescem quando se per-
cebe que há nomes que são disfar-
aparecem nele; (3) se um nome que
ces de descrições, mas que outros
aparece numa sentença verdadeira é
substituído por outro nome com o não o são; que há nomes que no-
mesmo nominatum, a sentença con- meiam um objeto existente e outros
tinua sendo verdadeira. Carnap ana- que nomeiam (ou propõem-se no-
lisa os problemas que oferece a du- mear) algo que não existe — ou ain-
plicação desnecessária dos nomes da não existe — e a que se propõe
manifestada em alguns sistemas on- dar um determinado nome; que há
de se usam nomes distintos para pro- nomes próprios usados como nomes
priedades e para as correspondentes comuns e nomes comuns que acaba-
classes. Segundo esse autor, um no- ram por adquirir o status de um no-
me para a propriedade Humano e me próprio, etc. (Cf. para todos es-
um nome distinto para a classe Hu- tes pontos o livro do autor desta
mano não só têm a mesma extensão, obra, Indagaciones sobre el lengua-
mas também a mesma intenção. Um Je, 1970, cap. 8: “Nombrar y mos-
nome para uma classe deve, pois, ser trar”).
513 NOMINALISMO

NOMINALISMO Na disputa sobre último, essa posição era adotada


OS universais durante a Idade Média,
porque se supunha que admitir uni-
o nominalismo, posição nominalis- versais (idéias) na mente de Deus era
ta ou “via nominal”, consistiu em limitar de algtum modo a onipotên-
afirmar que um universal (como uma cia divina, e admitir universais (idéias,
espécie ou um gênero) não é nenhu- formas) nas coisas era supor que as
ma entidade real, nem tampouco está coisas têm, ou podem ter, idéias ou
nas entidades reais: é um som vocal, modelos próprios, com o que tam-
Jlatus vocis (cf. infra). Os universais bém se limita a onipotência divina.
não se encontram ante rem, não es- Do ponto de vista filosófico, o no-
tão antes da coisa, ou são anteriores minalismo medieval tem anteceden-
à colsa, como sustenta o realismo tes em posições adotadas por filóso-
(ver) ou o platonismo. Nao estão fos antigos. Assim, alguns autores
tampouco in re — na colsa —, co- céticos podem ser considerados no-
mo sustentam o conceptualismo (ver), minalistas. Além disso, no modo co-
o realismo moderado ou o ““aristo- mo Porfírio apresentou para a Ida-
telismo”*. Os universais são simples- de Média a questão dos universais,
mente nomina, nomes, voces, vocá- vê-se claramente que uma das posi-
bulos, ou termini, termos. O nomi!- ções possíveis era a depois chamada
nalismo sustenta que só têm existên- “nominalista”* ou, pelo menos, ““con-
cia real os indivíduos ou as entida-
ceptualista”*: é a posição que Porfií-
des particulares. As posições filosó-
rio descreve ao dizer que os gêneros
ficas de Roscelin expressam a maior
e as espécies podem ser apresentados
parte das características do nomina- como ““simples concepções do espií-
lismo. Entre estas destacam-se: (a) a
rito”. Entretanto, só na Idade Mé-
noção de universal como som da
dia e mais tarde, já nas Épocas Mo-
voz; (b) a noção de que só são reais
derna e Contemporânea, o nomina-
os entes particulares; (c) a noção de
lismo ocupou um lugar central na sé-
que uma qualidade não é separável
da coisa da qual se diz que “tem” rie de atitudes possíveis acerca da na-
essa qualidade. Em (c) vemos que as tureza dos universais.
chamadas ““qualidades”* ou ““pro- Aos nominalistas opuseram-se, so-
priedades”* são nomes de universais. bretudo, os realistas, como Santo
Costuma-se falar de dois períodos Anselmo, que qualificava aqueles de
de florescimento do nominalismo na “dialéticos da nossa época”. Com
Idade Media: um, no século XI, no efeito, os realistas não podiam ad-
qual se distinguiu Roscelin de Com- mitir que um universal fosse apenas
piêgne, e outro, no século XIV, em uma vox e que esta pudesse ser defi-
que se distinguiu Ockham. Em am- nida, como fez Boécio, como sonus
bos os casos, a posição nominalista et percussio aeris sensibilis, como um
tinha raízes filosóficas. Nos dois ca- “som e percussão sensível do ar”.
sos, ademais, mas especialmente no Não podiam admitir, em suma, que
NOMINALISMO 514

um universal fosse somente um fla- coisas, como se elas mesmas com-


tus vocis, um “sopro” (da voz), um portassem o seu significado; deverá
“som proferido”. A rigor, se um originar-se, pois, por meio de uma
universal fosse unicamente o indica- “convenção”. Em todo caso, ser um
do, seria uma realidade física. Em tal nominalista do tipo terminista ou
caso, os nomes seriam um ““algo”, Iinscricionista não é o mesmo que ser
uma ““coisa”, res, e como tal have- um nominalista do tipo que poderia-
ria que dizer algo dela. O que se pu- mos chamar ““conceptualista”* (ad-
desse dizer dos sons como res seria mitindo que o que caracteriza de
dito por meio de um “universal”, o imediato um conceito é a sua sign!-
qual estaria pelo menos ““nos sons” ficação). Em todo caso, os nomina-
enquanto ““instituições da nature- listas afirmam que os nomes não se
za ". Assim sendo, o nominalismo encontram extra animam (seja nas
careceria de base. Essas objeções próprias coisas, seja num universo
(ou, mais exatamente, esse tipo de independente de nomes e significa-
objeções) de autores realistas ou, pe- ções), mas in anima. O matiz de no-
lo menos, não-nominalistas, obriga- minalismo adotado depende, porém,
ram os partidários da via nominal a
precisar o significado de sua posição.
do modo como se entenda esse estar
in anima. Isso explica porque, como
Para se manterem em suas posi- já indicava Victor Cousin na intro-
ções, os nominalistas têm de escla- dução à sua edição de escritos de
recer o que entendem por nomen, Abelardo (1936, p. clxxx1l1), o nomi-
vox, etc. Se Insistirem em que um no- nalismo — pelo menos o medieval —
men é uma realidade física, terão de oscilou continuamente entre um con-
adotar uma posição que recebeu, ceptualismo (que, por sua vez, se
convenientemente, o nome de ““ter- aproxima do realismo moderado) e
minismo” e que se manifestou con- um terminismo ou nominalismo stric-
temporaneamente sob o nome de to sensu. No final da Idade Média,
“inscricionismo”. Mas coloca-se, nes- o nominalismo que se impôs foi o ex-
se caso, a questão de como reconhe- presso por Ockham, por isso chama-
cer, sob diversos termos ou ““Inscri- do princeps nominalium, e pela scho-
ções”, o mesmo nome. Alguns au- la nominalium, também chamada
tores falaram, para esse fim, de ““s1- “terminismo”. Esse nominalismo
milaridade”' ou “semelhança”, mas consiste grosso modo em sustentar
outros indicaram que um nome ou que os signos têm como função o
voz pode expressar-se (oralmente ou supponere pro, ou seja, o “estar no
por escrito) em diferentes tempos e lugar de” as coisas designadas, de
espaços, e continuar sendo, não obs- modo que os signos não são propria-
tante, O mesmo nome ou voz, por mente das coisas, mas limitam-se a
causa da permanência de sua sign!- significá-las. Podem admitir-se, con-
ficação. Para um nominalista, essa tudo, outras versões do nominalismo
significação não pode derivar das da Idade Média; sobretudo, pode-se
515 NOMINALISMO

acentuar mais ou menos, no nomi- diferenças aparecem quando se tra-

minismo, etc.
o
nalismo, o convencionalismo, ter- ta de indicar que função têm as su-
postas entidades abstratas.
E frequente ler-se que a filosofia Várias tendências filosóficas con-
moderna foi fundamentalmente no- temporâneas foram explicitamente
minalista. Mas, se nos ativermos a nominalistas. Isso ocorreu, por exem-
uma concepção um pouco estrita do plo, com diversas formas de neopo-
nominalismo, não poderemos dizer sitivismo e, também, com várias es-
que a filosofia moderna (ou moder- pécies de intuicionismo e ““irracio-
na e contemporânea) tenha sido ba- nalismo””. Ernst von Aster (1880-
sicamente nominalista. É muito du- 1948) defendeu o nominalismo (Prin-
vidoso, por exemplo, que tenham s1- zipien der Erkenntnislehre. Versuch
do nominalistas autores como Spino- einer Neubegrindung des Nomina-
za ou Hegel. É óbvio que Husserl lismus, 1913), em oposição à teoria
não o foi. O próprio Locke não foi dos universais de Husserl. Nelson
nominalista, e sim, mais exatamen- Goodman e W. van Quine defende-
te, conceptualista e até realista mo- ram um “nominalismo construtivo”
derado. Nominalistas foram, por (“Steps Toward a Constructive No-
certo, em contrapartida, pensadores minalismӼ, The Journal of Symbo-
como Hobbes, Berkeley e Condillac, lic Logic, XII, 1947, 105-22). Esses
mesmo quando cada um deles o te- autores manifestam ““não acreditar
nha sido em proporções diversas e
em entidades abstratas”, mas reco-
por motivos distintos. Assim, Hob- nhecem que essa declaração de prin-
bes e Condillac foram praticamente
cípios é vaga demais e é imprescin-
“inscricionistas”', ao passo que Ber-
divel empregar termos mais precisos.
keley negava que se pudesse falar
Nelson Goodman, sobretudo, preci-
com algum sentido de idéias abstra-
sou e elaborou a mencionada dou-
tas, mas admitia as “idéias gerais”.
Por outro lado, Hobbes e Condillac trina (“A World of Individuals”, em
Il. M. Bocheúski, A. Church
estribavam seu nominalismo numa e N.
certa idéia da ciência e da linguagem Goodman, The Problems of Univer-
científica, ao passo que Berkeley fun- sals. A Symposium, 1956, pp. 15-31)
damentava o seu nominalismo em como doutrina segundo a qual “o
pressupostos teológicos semelhantes mundo é um mundo de indivíduos”.
aos de Ockham. Pode-se falar de um “O nominalismo, tal como o conce-
nominalismo moderado, de um no- bo — escreveu ele — não equivale à
minalismo exagerado e de um nomi- exclusão de entidades abstratas, es-
nalismo absoluto. Todas essas espé- píritos, insinuações de imortalidade
cies de nominalismo afirmam que ou nada desse tipo; requer unicamen-
não existem entidades abstratas te que, na medida em que é admiti-
(idéias, universais) e que só existem do como uma entidade, seja conce-
entidades concretas (indivíduos). As bido como um indivíduo.”
NOUS 516

NOUS O termo grego vous e sua ele. Não é, contudo, pura forma: o
transcrição nous empregam-se amiú- nous tem matéria e forma, se bem
de em textos filosóficos. Nous é uti- que sua matéria também seja de ca-
lizado em grego em vários sentidos: ráter inteligível. Para alguns neop!-
(1) como faculdade de pensar, inte- tagóricos, o vous é a unidade das
ligência, espírito, memória e, às ve- idéias (e dos números, ou dos
zes, como na Odisséia (VI, 320), sa- “números-idéias””, ou ““délas-
bedoria; (2) como o pensamento ob- números”). Segundo Numênio de
Jetivo, a inteligência objetiva; (3) co- Apaméia, considerado por alguns
mo uma entidade (impregnada de in- como um neopitagórico e por outros
teligência) que rege todos os proces- como um precursor do neoplatonis-
sos do universo. O sentido (1) é fre- mo, há, no ““segundo Deus”,
quente em Aristóteles, que concebe uma tríade: O primeiro vous, que
O nous como a parte superior da al- “nensa por desejo do segundo
ma, Vvuxn. Porém, sendo essa parte Deus”; o segundo vovs, relacionado
comum a todos os seres inteligentes, com o primeiro e criador (pelo dese-
objetiva-se até converter-se no enten- jo) do terceiro; e um terceiro vous,
dimento (ver) agente, com o que ad- relacionado com o pensamento hu-
quire a significação (2). Nesse sen- mano (K. S. Guthrie, Numenius of
tido, traduziu-se com frequência Apamea, The Father of Neo-Plato-
nis, Londres, 1914, Fr. XXXIX,
vous por intellectus, e foi definido
p. 40).
como um hábito (ver) da alma,
quando não como a própria alma en- NÚMENO O termo “númeno” sig-
quanto unidade de todas as suas at1- nifica ““o que é pensado”; no plural,
vidades. Em algumas ocasiões (como “númenos”, as “coisas que são pen-
em Santo Agostinho), o nous repre- sadas”*. Como ““ser pensado” se en-
senta a vida interna do espírito e, tende, nesse caso, no sentido de ““o
nesse sentido, equivale a mens. O que é pensado por meio da razão”
sentido (3) é o que lhe dá Anaxágo- (ou mediante uma intuição intelec-
ras (ver ESPÍRITO). A combinação tual), costuma-se equiparar “núme-
dos sentidos (3) e (2) encontra-se com no” ao “inteligível””. O mundo dos
frequência nos neoplatônicos. Assim
o vemos em Plotino, para quem o
númenos é, assim, o mundus intelli-
gibilis, contraposto desde Platão ao
vous é a segunda hipóstase emanada mundus sensibilis, o mundo dos fe-
do Uno e emanadora da Alma do nômenos. Dentro da (vagamente)
Mundo. O nous plotiniano é, por- chamada ““tradição racionalista” (e,
tanto, o ato primeiro do Bem e está geralmente, também realista), admi-
para o Uno assim como o círculo es- te-se que o mundo numênico ou nu-
tá para o seu centro. O nous é con- menal constitui a realidade última,
cebido então, com frequência, como ou realidade metafísica, que não só
a visão (inteligível) do princípio do essa realidade é cognoscível, mas
Uno, constantemente voltada para também a única plenamente cognos-
517 NUÚUMENO

cível — só essa realidade é objeto pode ser o nome pelo qual se desig-
de saber, em vez de ser mero objeto na a aparência, ou, se se quiser, O
de opinião. Pode suceder que tal sa- conceito de aparência); (2) supondo-
ber nunca se alcance; mas, se existe se que, enquanto a coisa-em-s1i é um
conhecimento verdadeiro, tem ele puro X — uma incógnita (aquilo a
que ser, segundo essa tradição, co- que Kant chama, por vezes, de um
nhecimento do mundo numênico e modo deveras impreciso, dado o uso
inteligível. técnico de ““transcendental””, ““ob-
“Númeno” é um vocábulo técni- jeto transcendental”) —, o númeno
co na filosofia de Kant. Com fre- é o outro aspecto, por certo Incog-
quência, é difícil distinguir em Kant noscível, do fenômeno; (3) supondo-
entre o conceito de númeno e o de se que, enquanto o conceito de coisa-
colsa-em-si (ver). “Númenos” e em-si não pode ter nenhum empre-
“colsas-em-s1””º são expressões que go, o de númeno tem, pelo menos,
designam o que se encontra fora do um emprego regulador; (3) é implau-
quadro de referência da experiência sível dentro do pensamento de Kant;
possível, tal como foi traçado na
“Estética Transcendental” e na
(1)
e 2) são igualmente admissíveis,
porque ambos supõem que não se
“Analítica Transcendental”* da Cri pode ir além dos limites da experiên-
tica da Razão Pura. Não obstante, cia possível. Em (1) admite-se haver
Kant introduziu também a noção de equivalência entre númeno e coisa-
númeno como distinta da coisa-em- em-s1; dado que a coisa-em-si é in-
si. Em K. r. V., A 249, escreveu que cognoscivel, o númeno também é in-
“as aparências (ver APARENCIA), cognoscível. Em (2) pressupõe-se que
na medida em que são pensadas co- o termo “númeno”' refere-se aos |li-
mo objetos, segundo a unidade das mites da experiência possível. Mas,
categorias, chamam-se fenômenos ainda que se possa conhecer tudo o
[phaenomena], ao passo que, se pos- que se encontra “aquém” desses li-
tulo coisas que sejam meros objetos mites, não se pode conhecer o que
do entendimento e que, no entanto, se encontra “além” deles. Como o
podem ser dadas como tais a uma númeno é positivamente incognos-
intuição, embora não a uma intui- cível, também cabe dizer-se dele que
ção sensível — portanto, dadas co- é “negativamente cognoscível”. Is-
ram intuitu intellectualis —, tais col- so equivale a admitir um conceito
sas poderiam ser chamadas númenos negativo de númeno em vez de um
[noumena] (intelligibilia)”. A distin- conceito positivo. Em duas passa-
ção em questão pode entender-se de gens bem próximas, Kant estabele-
vários modos: (1) supondo-se que ce essa distinção entre os sentidos ne-
“númeno” é o nome pelo qual se gativo e positivo de númeno e incli-
designa a colsa-em-sil, ou, se se qui- na-se para o primeiro sentido: ““Se
ser, o concelto da coisa-em-si (de por númeno' queremos dizer uma
modo parecido a como “fenômeno” coisa na medida em que não é um
NUÚUMENO
S18

objeto de nossa intuição sensível e te, “o que não é objeto de nossa in-
abstraída de nossa maneira de intuí- tuição sensível”*. Na medida em que
lo, então trata-se de um númeno no a colsa-em-si é também entendida
sentido negativo da palavra. Mas se como ““o que não é objeto de nossa
entendemos por “númeno' um obje-
to de uma intuição não sensível,
Intuição sensível”*, númeno
e coisa-
em-si são equivalentes. Mas Kant pa-
pressupomos, com isso, uma maneil- rece mais inclinado a admitir o con-
ra especial de intuir, isto é, a intul- ceito de númeno, pelo menos em
ção Intelectual, que não possuímos sentido negativo, do que o de coisa-
e da qual não podemos sequer en- em-si. Em todo caso, não propôs ne-
tender sua possibilidade. Isso seria nhuma distinção entre “sentido po-
o númeno' no sentido positivo da sitivo”* e “sentido negativo” de coi-
palavra” (K. r. V., B 307). “Se, por sa-em-si e nunca disse algo como: ““o
conseguinte, intentamos aplicar as que chamamos “coisa-em-si' deve
categorias a objetos não considera- entender-se unicamente em sentido
dos como aparências, teremos que negativo”.
postular uma intuição distinta da As mesmas razões que levaram al-
sensível, e o objeto será, então, um guns filósofos pós-Kantianos a des-
numeno em sentido positivo. Mas, cartar a noção de coisa-em-si indu-
como essa forma de intuição, a in- ziram-nos também a prescindir do
tuição intelectual, não faz parte da conceito de númeno. Para a inter-
nossa faculdade de conhecimento, pretação de Kant, é fundamental
segue-se que o emprego das catego- precisar o papel que desempenha es-
rias não pode ampliar-se mais do que te último conceito em seu sistema.
aos objetos da experiência. É indu- Se se tende à sua eliminação, ou se
bitável, por certo, a existência de en- se considera que o númeno, enquan-
tidades inteligíveis que correspon- to conceito-limite, é uma pura ““de-
dem às sensíveis. Também pode ha- claração de princípios” sem nenhum
ver entidades inteligíveis com as efeito ulterior na constituição crit1-
quais nada tenha a ver a nossa fa- ca do saber, a teoria do conhecimen-
culdade de intuição sensível. Mas, to de Kant adquire um forte matiz
como os nossos conceitos do enten- fenomenista. Em contrapartida, se
dimento são meras formas de pen- se enfatizar a importância do con-
samento para a nossa intuição sen-
sível, não podem de modo nenhum
ceito de númeno,
a teoria do conhe-
cimento de Kant inclina-se fortemen-
aplicar-se a elas. Portanto, o que te para o idealismo — se bem que
chamamos “númeno' deve entender- para um idealismo transcendental,
se unicamente em sentido negativo e não para um idealismo absoluto
(K. r. V., 308-309). Em suma, o nú- ou dogmático. Em todo caso, a dis-
meno em sentido negativo é um l1- tinção entre fenômeno e númeno é
mite (do nosso conhecimento). Di- importante na filosofia kantiana.
zer “númeno” é dizer, simplesmen- Um exemplo a respeito encontra-se
519 NÚMENO

na apresentação e discussão das an- tinomias terceira e quarta. Nessas


tinomias (ver ANTINOMIA) na ““Dia- antinomias, as antíteses referem-se
lética transcendental”, especialmente ao mundo fenomênico; as teses, ao
na apresentação e discussão das an- mundo numênico.
O
O A letra maiúscula “O” (segunda em tratados intitulados De obligatio-
vogal do termo nego) é usada na li- ne, De arte obligatoria e De arte
teratura lógica para representar sim- exercitativa. Nesses tratados, eram
bolicamente a proposição particular estabelecidas regras para a disputa,
negativa, negatio particularis, da começando com a chamada positio
qual um dos exemplos é a proposi- — que consistia em “formular uma
ção: proposição”? — e continuando com
Alguns homens não são morais. obligationes, como a petitio — que
consistia em ““pedir” ao interlocutor
Em textos escolásticos encontra-se que admitisse a proposição, etc. Em-
com frequência o exemplo (dado por bora as regras da obligatio pareçam
Boécio): ter nascido da disputa e da elabora-
ção de certas passagens da Analyti-
Aliquis homo non est iustus,
ca priora de Aristóteles, não podem
e em inúmeros textos lógicos aletra ser consideradas como simples regras
“O” substitui o esquema “alguns S para “disputar”. Os autores de tra-
não são P”, sobretudo quando se in- tados de obligatione insistiram cada
troduz o chamado quadro de Opo- vez mais no aspecto “formal” dos
SsIÇão. diversos ““passos” a seguir numa dis-
Nos textos escolásticos, diz-se de puta. Assim, a citada positio reque-
O que negat particulariter, nega par- ria condições lógicas como a inexis-
ticularmente. A letra “O” também tência nela de qualquer contradição.
se usa com frequência na doutrina Por isso, Ph. Boetner indicou que há
das proposições modais em vez de nos tratados de obligatione elemen-
66
U, : tos parecidos com os da axiomática
Lukasilewicz às vezes usa “O” pa- moderna.
ra representar o quantificador par-
ticular negativo. “O” antepõe-se às OBRIGAÇÃO O termo ““obriga-
variáveis “q”, “bb”, “e”, ete., de ção” é usado com freqgiiência, em éti-
modo que “Oab” lê-se “algum a não ca, como sinônimo de “dever”. Em
é ”* ou “b não pertence a algum a”. outros casos, usa-se “obrigação” co-
mo uma das características funda-
OBLIGATIO Em lógica, obligatio mentais — se não a característica
foi usado por vários autores medie- fundamental — do dever. Supõe-se
vais (por exemplo, Guilherme de que o dever “obriga”, Isto é, “pren-
Ockham, Walter Burleigh, Alberto de”* — como é indicado precisamen-
de Saxônia, William Shyreswood) te pelo sentido etimológico de ““obri-
OBSERVAÇÃO 522

gação”* em sua raiz latina obligatio mente”; conhece-se (e aceita-se) que


(0b + ligatio). Considera-se, em su- algo é obrigatório, porque corres-
ma, que os deveres são ““obrigató- ponde à chamada ““lei moral” ou à
rios”, isto é, que vinculam ou pren- certos “princípios práticos” intuit!l-
dem a pessoa, no sentido de que ela vamente óbvios, etc. Em todo caso,
é “forçada” (obrigada) a cumpri-los. é conveniente distinguir entre o cha-
A noção ética de obrigação pode mado ““sentido” (ou “sentimento”)
aplicar-se a uma só pessoa, já que da obrigação e um juízo de valor a
nada impede dizer que uma só pes- respeito de se algo é ou não obriga-
soa, enquanto entidade moral, tem tório. Com efeito, embora se possa
que cumprir o dever, ou seja, é obr!- ter dito “sentido” por causa de um
gada a cumpri-lo. Mas pode-se apli- juízo de valor, também pode haver,
car a uma comunidade de pessoas e em princípio, um juízo de valor sem
até se indica, por vezes, que a noção estar acompanhado do correspon-
de obrigação é basicamente interpes- dente “sentido” ou “sentimento” da
soal. Em qualquer dos dois casos, obrigação.
distingue-se entre a necessidade da
obrigação e outros tipos de necessi- OBSERVAÇÃO É corrente conside-
dade — como, por exemplo, a cha- rar que a observação é uma das ba-
mada ““necessidade natural””. Com ses do conhecimento. Muitos filóso-
efeito, supondo-se que esta última fos falaram da observação e enfati1-
exista, não se pode dizer que seja zaram até que ponto ela é necessária
propriamente obrigatória, porque a para o desenvolvimento e a afirma-
necessidade natural não pode deixar ção do saber. Alguns — como Aris-
de cumprir-se. Em contrapartida, a tóteles, Ockham, Francis Bacon, Ber-
obrigação moral pode deixar de cum- keley e John Stuart Mill — trataram
prir-se sem que, por 1sso, deixe de ser a noção de observação com extrema
forçosa. A obrigação moral é, pois, minúcia. De um modo geral, cabe di-
necessária em sentidos diferentes dos zer que os filósofos de tendência em-
desse tipo de inevitabilidade. pirista atentaram especialmente pa-
Colocam-se, com respeito à obri- ra a noção de observação.
gação moral, problemas muito seme- A observação pode ser interna —
lhantes aos que o dever suscita, em se se admite a possibilidade de intros-
especial dois problemas: o do funda- pecção — ou externa; a esta última
mento da obrigação e o do conheci- se refere quase sempre a noção de
mento (e consequente aceitação) da observação nas ciências. Embora de-
obrigação. Quanto ao conhecimen- vam ser incluídas nestas não só as
to (e aceitação) da obrigação, foram ciências naturais e sociais, mas tam-
propostas várias teorias, tais como: bém a história, o tratamento da no-
conhece-se (e aceita-se) que algo é ção de observação predominou nos
obrigatório, porque se trata de um trabalhos de metodologia e episte-
ato que se vem executando ““normal- mologia das ciências naturais.
523 ONTOLOGIA

A observação é, primordialmente, do se observam traços de um fenô-


observação de fenômenos ou dados. meno, quer “diretamente”, quer por
As expressões “fenômenos” e “da- meio de instrumentos, não fica tão
dos”* podem ser entendidas em sen- claro que se possa falar de observa-
tidos mais ou menos amplos. Alguns ção, nem mesmo indireta; é mais
autores tendem a restringir a obser- plausível falar de inferência. Não
vação à observação de propriedades obstante, como as chamadas ““enti-
fenomênicas, geralmente qualidades dades teóricas*”* também são inferi-
sensíveis. Outros estendem a obser- das, haveria que concluir que as en-
vação a complexos de fenômenos, os tidades teóricas são observáveis, por
comumente chamados ““fatos” (ver mais indiretamente que o sejam, me-
FATO), como o fato de que, num diante instrumentos, o que se pres-
momento determinado, começa-se a taria a confusões.
ver a imagem de uma foto batida
com uma máquina Polaroid, o fato ONTOLOGIA O que Aristóteles
de que a água e o azeite não se mis- chamou ““filosofia primeira” e que,
turam, etc. Alguns autores que fa- depois, passou a se chamar ““meta-
lam de “fatos fenomenológicos*”' ou física”? parece ter dois temas de es-
que se inclinam para o empirismo tudo. Um é, como Aristóteles o cha-
(ver), admitem uma observação de mou, ““o ser como ser” (ver SER) ou
tais fatos, mas o termo ““observa- ““o ente enquanto ente”. Nesse ca-
ção” entende-se, nesse caso, num so, toma-se o “ser” em toda a sua
sentido distinto dos demais, acima generalidade, independentemente de
indicados. que classe de ““ser”* se trate: pode ser
Tradicionalmente, distinguiu-se a finito ou infinito, material ou não-
mera observação da observação di1- material, etc. O outro tema de estu-
rigida ou controlada, na qual podem do é o “ser” ou o “ente” por anto-
levar-se em conta variáveis e focali- nomásia, isto é, aquele ser ou ente
zar a atenção nas variáveis indepen- principal do qual dependem, ou ao
dentes. qual estão subordinados, os demais
Por vezes, distinguiu-se fenôme- entes. Nesse caso, paradoxalmente,
nos diretamente observáveis de fenô- “o ser” de referência é menos geral,
menos não observáveis de modo di- porém mais básico. Classicamente,
reto, mas a expressão ““diretamente” este ser último é Deus, ou o objeto
nem sempre é muito clara. Se se vê da teologia.
um objeto à simples vista, diz-se que A metafísica oscilou tradicional-
é observado diretamente. O que ocor- mente entre ambos os temas de es-
re quando se necessita de óculos pa- tudo. Sob o mesmo nome tratou-se
ra vê-lo? Ou de um microscópio? É a metafísica como o que depois se
evidente que cabe falar, então, de chamou ““metafísica geral” e, tam-
observação ““direta” por meio de bém, como o que veio a se chamar
instrumentos. Por outro lado, quan- “metafísica especial” — ou uma qual-
ONTOLOGIA 524

quer das “metafísicas especiais”. É mo autor). Segundo Calovius, a


como metafísica geral que se estuda Scientia de ente é chamada Metaphy-
O Ser como ser ou ser “comunissi- sica no que se refere à “ordem das
mo”; como metafísica especial estu- colsas”', a rerum ordine, e chama-se
dam-se temas como Deus, a alma, etc. (mais apropriadamente) ovrrtoNoyia
A necessidade de distinguir entre quando diz respeito ao próprio tema
esses dois temas de estudo mediante ou objeto, ab objecto proprio. Em
dois nomes distintos fez-se sentir no sua obra intitulada Rationalis et rea-
século XVI. Autores como Suárez e lis philosophia (1642), J. Caramuel
Fonseca estudaram a metafísica em de Lobkowitz introduziu o termo
todos os sentidos, mas dedicaram equivalente ovrocoçgia (que usou
grande atenção à metafísica como também na transcrição latina onto-
disciplina geral de caráter “formal”. sophia, como equivalente de ontolo-
Algumas vezes, essa disciplina geral gia). O objeto da metafísica, escre-
de caráter formal foi de novo deno- veu Caramuel, é o ens, e chama-se
minada, como fizera Aristóteles, ““fi- OvTOGOÇÁia POTqUE É OvTOS COLA, iS-
losofia primeira””. No início do sé- to é, entis scientia. Caramuel parece
culo XVII, começou-se a se propor ter tido uma idéia mais clara da na-
um nome para esse tipo de metafísi- tureza e requisitos da “ontologia-on-
ca: “ontologia”. tosofia” do que a de Calovius (ver
Esboçaremos em seguida, em suas J. Ferrater Mora, “On the Early His-
linhas gerais, a história desse termo. tory of Ontology”', Philosophy and
O primeiro que o usou, na forma Phenomenological Research, XXIV,
grega ovrohoyia, foi Rudolf Gocle- 1963-1964, pp. 36-47).
nius em seu Lexicon philosophicum Foi dito com frequência — o pró-
quo tanquam clave philosophiae fo- prio autor da presente obra o disse
res aperiuntur (1613), mas limitan- em edições anteriores da mesma —
do-se a indicar, na p. 16: “ovtoXo- que o primeiro autor que usou ter-
Via, philosophia de ente”. Vinte e mos como ontologia e ontosofia foi
três anos depois, o termo óvToNoyia Johannes Clauberg em seus Elemen-
(que passou então a ser usado com ta philosophiae sive ontosophia,
mais frequência na transcrição lati- Scientia prima, de iis quae Deo crea-
na ontologia) foi empregado por turisque seu modo communiter attri-
Abraham Calovius (Calov), em sua buntur (1647). Vimos que 1sso não
Metaphysica divina, a principiis pri- está certo. O próprio Clauberg reco-
mis eruta, in abstractione Entis re- nhece a precedência de Calovius e
praesentata, ad S. S. Theologicam Caramuel de Lobkowitz a esse res-
applicata monstrans, Terminorum et peito (op. cit., p. 278 [a precedência
conclusionum transcendentium de Goclenius tem escassa significa-
usum genuinum abusum a hereti- ção filosófica; ainda menos tem a,
cum, constans (1616, reimpr. nos por vezes mencionada, de Jacobus
Scripta philosophica, 1654, do mes- Thomasius, em seu Schediasma his-
525 ONTOLOGIA

toricum, de 1655]). Mas, em todo ca- den kann (como escreve Clauberg,
so, é certo que Clauberg destacou a em alemão, dentro da obra latina —
importância da Ontologia — ou On- costume, aliás, cada vez mais fre-
tosophia. A referida obra divide-se quente em obras filosóficas acadêmi-
em quatro partes que tratam: (1) dos cas alemãs do século XVIII). Em
prolegômenos que informam sobre 1694, Clauberg publicou uma edição
a “ciência primeira”; (2) da didáti- anotada dos acima mencionados £Ele-
ca ou método de tal ciência; (3) do menta philosophiae sive ontosophia,
uso da mesma nas demais faculda- com o título de Ontosophia, quae
des e em todas as ciências, e (4) da vulgo Metaphysica vocatur (conten-
diacrítica ou diferença entre ela e as do como apêndice um escrito intitu-
outras disciplinas. Segundo Clau- lado Logica contracta). Nessa obra,
berg, a ontosophia (ou ontologia) é Clauberg indica que o nome ontoso-
uma scientia prima que se refere (por phia, “embora não fosse do gosto
analogia e não univocamente) tanto das pessoas doutas nas letras gregas,
a Deus quanto aos entes criados. fez seu caminho no público” e, de-
Trata-se de uma prima philosophia, polis, reiterou as idélas expressas nos
suscetível de sobrepor-se à mowTn Elementa e os nomes usados na Me-
orrogopia de Aristóteles, ou seja, de taphysica de Ente.
uma scientia quae speculantur Ens, As ““pessoas doutas nas letras gre-
prout Ens. Em 1656, Clauberg pu- gas” eram possivelmente humanis-
blicou uma obra intitulada Metaphy- tas e filólogos; “o público” não po-
sica de Ente, qua rectitus Ontoso- de ser outro senão ““o público filo-
phia, na qual define a ontosophia co- sófico”. E, de fato, esse “público”
mo quaedam scientia, quae contem- respondeu com simpatia ao novo vo-
platur ens quatenus ens est. Irata- cabulário. Em 1653, J. Micraelius
se da mesma ciência que é “comu- publicou um Lexicon philosophicum
mente” chamada Metaphysica, mas terminorum philosophis usitatorum,
que seria “mais apropriado” chamar de que se publicou uma segunda edi-
Ontologia ou scientia Catholica, er- ção em 1662. Embora não inserisse
ne allgemeine Wissenschaft, & Phi- nenhum verbete sobre “Ontologia”
losophia universalis. O ens de que ou “Ontosofia”, falou de óvrohoyia
trata a ontologia pode ser conside- no verbete “Philosophia”. A óovrto-
rado como pensado (intelligibile), co- Aoia foi definida por Micraelius co-
mo algo (aliquid) e como a coisa mo uma peculiaris disciplina philo-
(substantia). Não podemos deter-nos sophica, quae tractat de ente, ao que
aqui em várias e interessantes refle- acrescentou: quod tamen ab aliis sta-
xões de Clauberg, das quais parece tuitur objectum ipsius metaphysica,
deduzir-se que a ontologia é como O que pareceu um ““retrocesso” em
uma “noologia”, pelo menos na me- relação a Clauberg e até em relação
dida em que a ontologia trata de Al- a Caramuel, porquanto sobrepunha
les was nur gedacht und gesagt wer- ontologia a metaphysica. Em 1692,
ONTOLOGIA 526

Étienne (Stephanus) Chauvin publi- tantia et accidente. M. Grabmann


cou um Lexicon philosophicum (que (Mittelalterliches Geistesleben, 1, 1926,
leva no frontispício o seguinte títu- p. 547) indica que Jean Baptiste Du
lo: Lexicon rationale sive Thesaurus Hamel usou o termo ontologia em
philosophicus ordine alphabetico di- sua obra Philosophia vetus et nova,
gestus, o que explica que tenha sido, ad usum scholae accommodate, in
às vezes, citado com o nome de Le- regia Burgundia olim pertractata
xicon philosophicum e, outras vezes, (editio 3 multo emendiator), 2 vols.,
com o nome de Lexicon rationale). 1684, às vezes chamada Philosophia
Nessa obra e em sua segunda edição, Burgundica. Isso é correto, mas tam-
aumentada, publicada em 1713, Chau- bém o é que Du Hamel não parece
vin introduziu um verbete sobre dar grande importância ao nome e
“Ontosophia”, que definiu nos se- ao que ele pode significar. Menos in-
guintes termos: Ontosophia... ooçia teresse mostra Du Hamel a esse res-
óvTOS, Sapientia seu scientia entis. peito na primeira e segunda edições
Alias Ontologia, doctrina de ente. da citada Philosophia Burgundica,
No entanto, a maior informação so- intituladas respectivamente De con-
bre a “ontosophia” encontra-se não sensu veteris et novae philosophiae
no verbete ““Ontosophia”, mas libri duo (1663) e De consensu vete-
“Metaphysica”', da mesma obra. ris et novae philosophiae libri qua-
Nele escreve Chauvin que a me- tor, seu Promotae per experimenta
taphysica como catholica scientia seu philosophiae pars prima (1675). Por
universalis quaedam Philosophia, é outro lado, Antonio Genovesi [Ge-
chamada por alguns Ontosophia ou novese] usou ontosophia em sua
Ontologia e considera que esse uso obra Elementa metaphysicae mathe-
é mais apropriado, por ser realmen- maticum in morem adornata. Pars
te scientia entis, quatenus est ens. À prior. Ontosophia (1743), e Francis
ontosophia é 0ovia óvtTOs, Ou Seja, Hutcheson empregou o termo onto-
sapientia seu scientia entis. À onto- logia em sua Synopsis Ontologiam et
logia é Nóvyos óvtTOs, sermo seu doc- Pneumatologiam complectens (1742;
trina de ente. Segundo Chauvin, a 2? edição, 1744; 3º? edição, 1749: 4º
ontosophia parece ser propriamente edição, 1756; 5º edição, 1762; 6º edi-
a doutrina ou ciência do ente, e a on- ção, 1774). Ontologia foi introduzi-
tologia, um sistema que inclui o mé- da como termo técnico em filosofia
todo a usar na doutrina do ente. por Jean Le Clerc, no segundo tra-
Leibniz usou Ontologia em sua tado, intitulado “Ontologia sive de
“TIntroductio ad Encyclopaediam ar- ente in genere”, de suas Opera phi-
canamӼ (apud L. Couturat, ed,, losophica in quatuor volumina diges-
Opuscules et fragments inédits de fa (5* edição, 1772) (Julián Marias
Leibniz, 1903, p. 512), definindo-a opina que só Jean Le Clerc, ou Io-
como scientia de aliquo et nihilo, en- nannis Clericus [1657-1737], pode ser
te et non ente, re et modo rei, subs- considerado um verdadeiro precur-
527 ONTOLOGIA

sor de Wolff, mas a ““pré-história” que hoje geralmente se a conhece:


do termo ““ontologia”* que delinea- “prova ontológica” (ver ONTOLO-
mos antes parece desmentir essa opi- GICA, PROVA). Mas, a rigor, Kant
nião). dirigiu-se menos contra a ““ontolo-
Em todo caso, foi Wolff quem gia” do que contra a pretensão de
sintetizou e popularizou a ““ontolo- erigir semelhante ““ciência primeira”
g1a”* em sua Philosophia prima sive sem uma prévia exploração dos fun-
ontologia methodo scientifica per- damentos da possibilidade do conhe-
tracta, qua omnes cognitionis huma- cimento, isto é, sem uma prévia ““críi-
nae principia continentur (1730). tica da razão”.
Wolff define a ontologia seu philo- Em todo caso, é notório que os
sophia prima como uma scientia en- autores que usaram ““ontologia” ou
tis in genere, quatenus ens est (On- “ontosofia” tenderam a destacar o
tologia, $ 1). A ontologia emprega caráter “primário” dessa ciência, em
um “método demonstrativo” (isto é, face de qualquer estudo ““especial””.
racional e dedutivo) (ibid., 8 2) e Por isso, se a ontologia pôde conti1-
propõe-se investigar os predicados nuar sendo identificada com a me-
mais gerais de todos os entes como tafísica, o foi com uma ““metafísica
tais (1bid., $ 8). Na esteira de Wolff geral”* e não com a ““metafísica es-
— o qual, segundo Pichler, seguiu pecial”º. A ontologia foi — pelo me-
fundamentalmente Clauberg (em seus nos na chamada ““escola de Leibniz-
Elementa) e Leibniz (em seu “De pri- Wolff” — a primeira ciência racio-
mae philosophiae emendatione”, pu- nal por excelência; por 1sso, a onto-
blicado nas Acta eruditorum, 1694), logia como ontologia rationalis po-
à maneira do próprio Wolff (Onto- dia preceder a cosmologia rationalis,
logia, 8 7) —, Baumgarten falou da a psychologia rationalis e a theolo-
ontologia em sua Metaphysica (1740), gia rationalis. Por meio do nome
chamando-a também ontosophia, “ontologia”, designava-se o estudo
metaphysica, metaphysica universa- de todas as questões que afetam o
lis, architectonica, philosophia pri- chamado sermo de ente, ou seja, o
ma, como ““a ciência dos predicados conhecimento dos ““gêneros supre-
mais abstratos e gerais de qualquer mos das coisas”. A sobreposição da
coisa”? (Metaphysica, $ 4), na medi- ontologia à metafísica geral já repre-
da em que pertencem aos primeiros sentaria, portanto, um primeiro pas-
princípios cognoscitivos do espírito so em direção àquele processo men-
humano (ibid., $ 5). cionado de divergência das significa-
Essa pré-história do termo ““onto- ções nos vocábulos ““metafísica” e
logia”* permite compreender, entre “ontologia”. Com efeito, tudo o que
outras colsas, a posição de Kant a se refere ao “mais além” do ser vi-
respeito de Wolff e até o fato de que sível e diretamente experimentável,
a “prova anselmiana” tivesse sido ficaria como objeto da “metafísica
designada por Kant pelo nome com especial”, que seria, efetivamente,
ONTOLOGIA 528

uma frans-physica. A “metafísica Então, é uma ciência das essências


geral ou ontologia” ocupar-se-ia, em e não das existências; é, como se pre-
contrapartida, só de “formalida- cisou ultimamente, uma teoria dos
des”, embora de um formalismo dis- objetos. Alguns autores assinalam
tinto do exclusivamente lógico. Tal que essa divisão entre a ontologia
aceitação é patente, sobretudo, na- enquanto metafísica e a ontologia en-
quelas tendências da neo-escolástica quanto ontologia pura (ou teoria for-
do século XIX, que de algum modo mal dos objetos) é extremamente útil
tiveram — pelo menos terminolog1- na filosofia e que o único inconve-
camente — contatos com o wolffis- niente que apresenta é de caráter ter-
mo. Em todo caso, a citada expres- minológico; com efeito, argumentam
são já adquiriu carta de naturaliza- esses críticos, convém usar o vocá-
ção nos domínios da neo-escolásti- bulo “ontologia” para designar so-
ca. Por isso, seu nome tem sido apli- mente a ontologia como ciência de
cado retroativamente a todas as in- puras formalidades e abandoná-lo
vestigações sobre as determinações por completo quando se trata da me-
mais genéricas que convêm a todos tafísica. A invenção do termo ““on-
os entes, os transcendentais. Essa re- tologia”* já exprimiu, por si mesma,
ferência aos transcendentais explica, a necessidade de tal distinção. Ou-
aliás, o sentido em que foi tomada tros autores, ao contrário, conside-
a ontologia por Kant, que pôde che- ram que a divisão é inaceitável, e até
gar a concebê-la como o estudo dos deplorável, pois quebra a unidade da
conceitos a priori que residem no en- investigação do ser (esse), tema da
tendimento e têm seu uso na expe- metafísica e da ontologia ou, se se
riência. prefere, da metafísica-ontologia.
Pois bem, a mesma imprecisão Como disciplina especial da filo-
que vige na questão dos transcenden- sofia, a ontologia foi cultivada du-
tais faz que a ontologia seja enten- rante os séculos XVIII e XIX não só
dida de maneiras diferentes. Por um por autores que seguiram a tradição
lado, é concebida como ciência do escolástica e a escola de Wolff (ou
ser em sl, do ser último ou irredutí- ambas), mas também por outros au-
vel, de um primo ens em que todos tores e tendências. Assim ocorre com
os demais consistem, ou seja, do Herbart (para quem a ontologia é
qual dependem todos os entes. Nes-
se caso, a ontologia é verdadeira-
a ciência que investiga O ser dos
reais ). Com Rosmini, que faz das
mente metafísica, isto é, ciência da ciências ontológicas as ciências que
realidade ou da existência no senti- estudam O Ser como é, ao contrário
do mais próprio do vocábulo. Por das ciências deontológicas
que estu-
outro lado, a ontologia parece ter co- dam o ser como deve ser, etc.
mo missão a determinação daquilo Referir-nos-emos em seguida a di-
em que os entes consistem e mesmo Versos modos de entender a ontolo-
daquilo em que consiste o ser em si. gla no século XX (prescindindo das
529 ONTOLOGIA

definições escolásticas a que já alu- seocupa do ser enquanto ser, mas


dimos). não como mera entidade formal,
Para Husserl, que considera nos- nem como uma existência, e sim co-
sa disciplina uma ciência de essên- mo aquilo que torna possíveis as
clas, a ontologia pode ser formal ou existências. A identificação da onto-
material. A ontologia formal trata logia com a metafísica geral encon-
das essências formais, ou seja, da- trará nessa averiguação do ser como
quelas essências que convêm a todas transcendente a superação das limi-
as demais essências. A ontologia ma- tações a que conduz a redução da on-
terial trata das essências materiais e, tologia a uma teoria dos objetos ou
por conseguinte, constitui um con- a um sistema de categorias.
Junto de ontologias a que se dá o no- Para Nicolai Hartmann, em com-
me de ontologias regionais. Pois pensação, a justificação da ontolo-
bem, a subordinação do material ao gia consiste não na pretensão de re-
formal faz, segundo Husserl, com solver todos os problemas, mas no
que a ontologia formal pressuponha, reconhecimento do que é metafisica-
ao mesmo tempo, as formas de to- mente insolúvel. Por isso, propõe
das as ontologias possíveis. A onto- distinguir entre a antiga ontologia
logia formal seria o fundamento de sintética e construtiva, própria dos
todas as ciências e a material, o fun- escolásticos e racionalistas, que pre-
damento das ciências dos fatos; mas, tende ser uma lógica do ente e uma
como todo fato participa de uma es- passagem contínua da essência à
sência, toda ontologia material esta- existência, e a ontologia analítica e
ria, por sua vez, fundada na ontolo- crítica, que se ocupa de situar em seu
gia formal. lugar o racional e o irracional, o in-
Para Heidegger, há uma ontolo- teligível e o transinteligível, mais
gia fundamenal que é precisamente além de todo racionalismo, irracio-
a metafísica da Existência. À missão nalismo, realismo ou idealismo. O
da ontologia seria, nesse caso, a des- ente de que essa ontologia trata, diz
coberta da ““constituição do ser da Hartmann, tem um caráter muito
Existência”. A designação de funda- mais geral do que o ser limitado das
mental procede de que por ela se ave- teorias metafísicas aprioristas, pois
rigua aquilo que constitui o funda- engloba tudo quanto é e averigua em
mento da Existência, isto é, sua fi- todos os casos as determinações que
nitude. Mas a descoberta da finitu- correspondem a todas as esferas do
de da Existência como tema da on- real.
tologia fundamental, não é, para O uso do termo ““ontologia”* não
Heidegger, mais do que o primeiro se limita, como às vezes se supõe, a
passo da metafísica da Existência, e certos grupos de filosofias (raciona-
não toda a metafísica da Existência. lismo moderno, neo-escolasticismo,
A ontologia é, na realidade, única e fenomenologia, filosofia da existên-
exclusivamente, aquela indagação que cia, etc.). Também foi empregado
ONTOLOGIA 530

por filósofos de outras tendências. estreitas relações com várias partes


Mencionaremos a seguir três casos. da filosofia aristotélica.
O primeiro é o de J. Feibleman; o Quine distinguiu, na “semântica”,
segundo, o de Lesniewski; o tercei- a teoria do significado (que poderia,
ro, o de Quine. Em relação com es- por sua vez, chamar-se “semântica”)
se último uso, descreveremos sucin- da teoria da referência. A teoria do
tamente a discussão entre Quine e significado inclui, entre os seus con-
Carnap acerca da legitimidade ou ceitos, além do de significado, o de
ilegitimidade da formulação de ques- sinonímia (igualdade de significado),
tões ontológicas, pois essa polêmi- significação (ou possessão de signi-
ca projeta luz sobre o status da on- ficado), analiticidade (ou verdade em
tologia. virtude do significado) e implicação
Feibleman apresenta uma ““onto- (ou analiticidade do condicional). À
logia finita” destinada a mediar en- teoria da referência inclul, entre os
tre a atitude metafísica e a atitude seus conceitos, o de “denominação”
positivista; trata-se, como diz esse (naming), o de verdade, o de deno-
autor, de um ““positivismo ontológi- tação (ou verdade de), o de extensão
co”. A ontologia converte-se, assim, e o de valores de variáveis (From a
numa série de postulados que, em- Logical Point of View, 1953, p. 130).
bora primariamente de caráter for- A noção de “compromisso ontoló-
mal, são capazes de constituir uma g1coO*”* pertence à teoria da referên-

rede conceitual que apreenda a rea- cla (portanto, não à teoria do signi-
lidade. A ontologia é entendida, as- ficado). Dada uma teoria, cabe per-
sim, como uma ““construção” den- guntar por sua ontologia, mas tam-
tro da qual adquirem sentido certos bém por sua ““deologia” (pelas
conceitos metafísicos fundamentais, idéias que podem expressar-se nela).
como os de realidade, essência, exis- Não há correspondência simples en-
tência, etc. É uma disciplina funda- tre a ontologia de uma teoria e sua
mental que antecede toda investiga- ideologia: “duas teorias podem ter
ção filosófica e científica. a mesma ontologia e uma ideologia
Stanislaw Lesniewski chamou de distinta” (ibid., p. 131). Quine en-
“ontologia” a teoria e o cálculo de tende por “ontologia” a “ontologia
classes e relações. Segundo esse au- de uma teoria”.
tor, a ontologia distingue-se da pro- O autor da presente obra usou
totética (ou cálculo proposicional) e “ontologia” — diferentemente de e,
da mereologia (ou álgebra de classes, inclusive, em oposição a metafísica
com exclusão da classe nula). O de- — para designar toda investigação —
senvolvimento da ontologia dá lugar composta principalmente de análise
a uma “axiomática ontológica”. Se- conceitual, crítica e proposta ou ela-
gundo Kotarbinski e Leon Chwistek, boração de marcos conceituais de re-
a ontologia de Lesniewski, não obs- ferência — relativa aos modos mais
tante seu caráter lógico-formal, tem gerais de entender o mundo, isto é,
531 ONTOLOGIA

às realidades deste mundo. Em seu rentemente, mediante uma investiga-


entender, as investigações ontológi- ção que “transcendesse” os ““objJe-
cas devem estar em estreita relação tos internos”. Mas não é esse o ca-
com trabalhos científicos, não haven- so, segundo Carnap. As “questões”
“*

do uma linha claramente divisória en- externas” referem-se a assuntos des-


tre hipóteses científicas de certo grau providos de conteúdo cognoscitivo e
de generalidade e hipóteses ontoló- não são propriamente teóricas; são
gicas. O renovado uso do termo ““on- uma decisão que o filósofo toma so-
tologia”* também se apresenta em ou- bre o uso de uma “linguagem”, de
tros autores contemporâneos. Men- modo que sua formação como per-
cionamos, entre eles, Ernest Nagel e gunta teórica é ambígua e “desorien-
Gustav Bergmann. Este último assi- tadora””. As “““questões' externas
nala que ““o há (existe)”* quantifica- (pseudo-ontológicas) não são pro-
do não tem muito a ver com a ““exis- priamente ““questões” que necessi-
tência”* de que fala a ontologia tra- tem de justificação teórica, porque
dicional e propõe um ““padrão onto- “não implicam nenhuma asserção
lógico”? — em seu entender, mais pre- acerca de uma realidade”*. A “ques-
ciso que o de Quine — constituído tão” reduz-se à introdução ou não in-
por uma linguagem ideal (uma fic- trodução, à aceitação ou recusa de
ção) suscetível de esclarecer muitos determinadas “formas linguísticas”
problemas filosóficos. Em compen- que, seguindo o vocabulário anterior,
sação, R. Carnap ataca o problema designaremos por “marcos”. Só as-
das chamadas questões “falsamente sim, pensa Carnap, será possível ad-
ontológicas”, mediante uma distin- mitir variáveis de tipos abstratos sem
ção entre “““questões' internas” e necessidade de adesão ao ““platonis-
“““questões' externas”. As primeiras mo” ou a qualquer outra doutrina
são as suscitadas dentro de um “mar- “ontológica”. Carnap opõe-se, por-
co” qualquer (““marcos” de entida- tanto, à acusação de ““realismo” for-
des como ““o mundo das coisas”, ““o mulada por Quine e outros pensado-
sistema dos números”', ““as proposi- res e nega que seja legítimo aplicar
ções”, etc.). Perguntar: “Este xé real o termo “ontologia” à escolha de
ou imaginário?””, “há um número uma forma linguística. O problema
primeiro maior que 1007”, etc., são do status das “entidades abstratas”
questões internas. Por outro lado, as como questão semântica encontra-se,
“““questões' externas” referem-se ao segundo Carnap, submetido às mes-
próprio marco: ““Existe o mundo mas restrições apontadas para o pro-
real?” (ou, melhor, “existe a própria blema do ““marco”*; somente as ““as-
“coisa mundo ?*”), “que classe de ser serções internas” podem ser Jjustifi-
têm os números — entidades subsis- cadas, quer empiricamente, quer lo-
tentes, seres ideais, traços no papel gicamente (pois Carnap continua sus-
com os quais se calcula?”* Essas ques- tentando uma clara distinção entre as
tões deveriam ser respondidas, apa- duas justificações, ao invés de Qui-
ONTOLÓGICA, PROVA 532

ne, que não admite os limites infle- tude de que Deus concede o enten-
xíveis entre verdade lógica e verda- dimento à fé — assinala no capítulo
de fática). Todo o erro consistiria, II que, segundo os Salmos (XIV, 1),
pois, em tratar as ““ “questões' exter- O insensato disse no seu coração:
nas” (que não são propriamente “Não há Deus.” Este Deus é aquilo
“questões”*) como ““ “questões' inter- que nada maior pode ser pensado.
nas”, em vez de referi-las a decisões Mas quando o insensato ouve essa
Justificáveis, em última instância, expressão, entende o que ouve eo
por seus resultados. O ““princípio de que entende ““está em seu entendi-
tolerância” (nas formas lingúísticas) mento”, mesmo quando não enten-
foi invocado, uma vez mais, por da que esse aquilo do que nada
Carnap sem mais restrições do que maior pode ser pensado exista. Pois
a cautela e o espírito crítico nas ope- uma coisa é a presença de algo no en-
rações assertivas. tendimento, outra é entender que o
que está no entendimento existe.
ONTOLÓGICA, PROVA A prova Pois bem, o insensato deve admitir
de Santo Anselmo para a existência que o que ouve e entende está no en-
de Deus foi chamada, a partir de tendimento. Mas, além disso, tem de
Kant, prova ontológica — e também estar na realidade. Com efeito, se
argumento ontológico. Se bem que, aquilo de que nada maior se pode
com razão, se considere essa expres- pensar só estivesse no entendimento
são no mínimo ““desorientadora” e não seria o maior que se pode pen-
se proponha muitas vezes restabele- sar, polis lhe faltaria para 1sso ser
cer o uso da expressão ““prova an- real. “Se aquilo de que nada maior
selmiana”, o fato de que se tenha pode ser pensado [““id quo nihil ma-
continuado empregando na maioria Jus cogitari potest”*] está unicamen-
dos textos filosóficos o nome que lhe te no entendimento — disse Santo
deu Kant torna conveniente limitar- Anselmo —, esse aquilo de que na-
se a esse uso. Como uma das de- da maior pode ser pensado será
monstrações tradicionais da existên- maior que aquilo de que é possível
cia de Deus, deveria ser examinada pensar-se algo.”* Portanto, deve exis-
no artigo correspondente (ver tir, tanto no entendimento quanto na
DEUS. III. Prova de sua existência). realidade, algo maior que aquilo de
No entanto, por sua importância ca- que se possa pensar, e esse algo é pre-
pital, optamos por tratá-la aqui se- cisamente Deus.
paradamente. As diferentes formas assumidas
Tal como foi formulada, especial- pela prova são a repetição, de diver-
mente nos quatro primeiros capitu- sos ângulos, da mesma série de ar-
los do Proslogion, a prova desenvol- gumentos. ““Se se pode pensar a ine-
ve-se da seguinte maneira: Santo An- xiIstência daquilo de que nada maior
selmo — para quem, como
é sabido,
a fé requer o entendimento, em vir-
pode ser pensado, esse aquilo de que
nada maior pode ser pensado não é
533 ONTOLÓGICA, PROVA

maior do que aquilo de que nada ou são várias provas, interligadas ou


maior pode ser pensado; e isso é con- não. As discussões em questão che-
traditório. Assim, pois, é tão certo garam até a nossa época. Para dar
que existe aquilo de que nada maior apenas um exemplo de discussão re-
pode ser pensado, que é impossível cente, mencionemos a opinião de
pensar que não exista.” Assim, lê- Norman Malcolm. Segundo esse au-
se no cap. III do Proslogion. E o tor, há nos Proslogion de Santo An-
cap. IV reforça essa argumentação: selmo dois argumentos ontológicos
“Se, ou melhor dito, dado que ver- distintos: (1) algo é “maior” (maius)
dadeiramente pensou (pois disse em se existe do que se não existe; (2) al-
seu coração) e, ao mesmo tempo, go é maior se existe necessariamente
não disse em seu coração (pois não do que se não existe necessariamen-
pôde pensar), resulta que não há um te. O argumento (1), diz Malcolm,
único modo de dizer no coração ou fundamenta-se na idéia de que a exis-
de pensar. Com efeito, não se pensa tência é uma perfeição; e o argumen-
uma coisa do mesmo modo quando to (2), na idéia de que a impossibil1-
se pensa a palavra que significa e dade lógica de não-existência é uma
quando se entende a própria essên- perfeição. A “primeira prova” foi a
cia da coisa. Pois, do primeiro mo- que mais ocupou os filósofos que se
do, é possível pensar que Deus não propuseram elucidar a validade do
existe, mas do segundo modo não o argumento anselmiano. Muitos filó-
é, em absoluto. Portanto, ninguém sofos entenderam o argumento co-
que entenda o que é Deus pode pen- mo a afirmação de que o maior que
sar que Deus não é, a não ser que ele se possa pensar tem de ser real, pois,
diga essas palavras em seu coração caso contrário, faltando-lhe a reali-
sem nenhum significado ou com al- dade, não seria o maior que se pos-
gum significado estranho. Porque sa pensar, mas simplesmente a idéia
Deus é aquilo de que nada maior po- do maior pensável. O maior que po-
de ser pensado. Quem entende isso de ser pensado é, também, por con-
bem, entende igualmente que Deus seguinte, o perfeito. Se se trata de
existe, de modo que a possibilidade uma passagem da essência à existên-
de sua inexistência não cabe no pen- cia não é, pois, a passagem de toda
samento. Logo, quem entende que essência a toda existência, mas tão-
Deus existe desse modo não pode só o fato de que, quando se trata de
pensar que Deus não existe.” um ser perfeito e infinito, a existên-
A parte os argumentos a favor e cia está implicada por sua essência.
contra a prova anselmiana, a que nos Com isso, já se refuta, com o pró-
referiremos depois sumariamente, a prio Santo Anselmo, a objeção de
prova em questão foi objeto de mui- Gaunilo em seu Liber pro insipien-
tas discussões a respeito do que pro- te. O fato de que uma idéia como a
priamente diz, ou significa, e tam- de ilha perfeita não necessite existir
bém a respeito de se é uma só prova na realidade não serve de motivo su-
ONTOLÓGICA, PROVA 534

ficiente, diz Santo Anselmo, para fesa da prova anselmiana, ou de di-


que deixe de existir na realidade a versas formas dessa prova, sempre
própria perfeição infinita. Pois en- que se proceda a modificá-la (colo-
tre os dois tipos de perfeição há uma rari) em alguns de seus aspectos. Se-
diferença fundamental: o primeiro é gundo Duns Escoto, a prova em
o perfeito em seu gênero e constitui questão pode ser modificada ou re-
a qualidade de uma coisa; o segun- tocada (coloratur) do seguinte mo-
do é o perfeito em si e constitui a do: o que existe é mais cognoscível
própria coisa. do que o que não existe; isto é, pode
Santo Tomás critica a prova (S. ser conhecido mais perfeitamente. O
Theol., IL, q. Il, a 1; também Cont. que não existe em si mesmo, ou em
gent., 1, 2). Posta em forma silogís- algo mais nobre ao qual acrescenta
tica, logo universalmente admitida algo, não pode ser influenciado. Mas
pelo tomismo, concede-se a maior (a o influenciável (visível) é mais per-
de que por Deus se entende o ser feitamente cognoscível do que o não
maior que se possa pensar), mas influenciável; portanto, o ser mais
distingue-se a menor (a de que dei- perfeito que se possa conhecer exis-
xaria de ser o maior e mais perfeito te. Duns Escoto destaca que, para
que se pode pensar se não existisse aceitar a prova anselmiana, é neces-
real e verdadeiramente). Com efei- sário partir de que Deus é um ser
to, concede-se que deixaria de ser o cognoscível, sem contradição; só por
máximo, mas o fato de que, se não ser ““o ser maior que se pode pensar”
tivesse existência extramental deixa- em relação à sua essência, será ““o ser
ria de ser o máximo, só é admitido maior” em relação à sua existência.
na ordem real, não na ordem ideal. Se o “ser maior que se possa pensar”
Como já vimos (DEUS. IL. Provas estivesse só no entendimento que o
de sua existência), a proposição pensa, poderia simultaneamente exis-
“Deus existe” é evidente em si mes- tir (já que o pensável é possível) e
ma (per se nota quoad se), mas não não existir (já que não lhe convém
em relação a nós (quoad nos); por- existir por meio de uma causa
tanto, pode-se demonstrar que Deus alheia). Para Guilherme de Ockham
existe, mas não por uma prova a (Quodlibeta, L, q. 1), o nome “Deus”
priori nem a simultaneo, e sim uni- pode ser descrito pelo menos de dois
camente a posteriori. Daí as célebres modos. Um é: “Deus é algo mais no-
quinque viae que Santo Tomás pro- bre e perfeito do que qualquer ou-
põe. Parte-se, em cada caso, de um tra coisa distinta dele.”* O outro mo-
efeito, de um grau de perfeição, etc., do é: “Deus é aquilo mais nobre e
para se chegar à causa primeira, ao perfeito que o qual não há nada.”
ser perfeito, etc. Nas Quaestiones su- Se nos ativermos à primeira descri-
per Sententiarum (Opus Oxoniense, ção, não podemos provar de forma
I, dist. 2, q. 2), Duns Escoto procu- conclusiva, disse Ockham, que só
ra, em compensação, fazer uma de- existe um Deus. De fato, não se sa-
535 ONTOLÓGICA, PROVA

be com evidência que Deus, enten- va que chega à existência partindo de


dido nesse sentido, existe. A propo- uma essência (de uma certa e única
sição “Deus existe”* não é conheci- essência), do que da intelecção de to-
da por si mesma, já que muitos du- do ser desde o nível da infinita essên-
vidam dela. Não pode ser provada cla existente.
a partir de proposições conhecidas Leibniz defende a prova introdu-
por si mesmas, pois em todo argu- zindo sua conhecida correção: não
mento desse tipo haverá algo duvI- basta passar da idéia de um ser infi-
doso que é assumido por meio da fé. nito e perfeito à realidade; cumpre
Tampouco é conhecida por experiên- demonstrar previamente a sua pos-
cia. Se nos ativermos à segunda des- sibilidade. Mas, como a possibilida-
crição, não poderemos provar com de é demonstrada, a realidade resul-
evidência nem a unidade (unicidade) ta patente. Não se deve mencionar
de Deus, nem a proposição ““a uni- apenas que as direções empliristas re-
dade (unicidade) de Deus não pode Jeitam energicamente a prova, e que
ser provada conclusivamente””. Em essa rejeição deduz-se facilmente dos
suma, se nos ativermos à segunda pressupostos do pensamento de Gas-
descrição, não poderemos provar sendi e, em especial, de Locke e de
que Deus existe. Que há Deus, e que Hume. A separação estabelecida por
Deus é como propomos que é, é al- Hume entre as proposições analít!-
Cas e as que se referem aos fatos se-
go que somente derivamos da fé (hoc
fide tantum tenemus). ria suficiente para dar uma base à
A prova anselmiana foi defendi- crítica da prova; mas, além disso,
da por Descartes em várias passagens adverte-se que um raciocínio aprio-
de sua obra, em especial nas Medi- rístico não pode produzir qualquer
tações (III, V) e nas “Respostas às entidade, uma vez que não existe ne-
Objeções” (1, II, IV e V). Há dife- nhuma experiência limitante. No
renças entre as provas anselmianas fundo, portanto, o pressuposto úl-
e a prova cartesiana, na qual não po- timo da aceitação ou da rejeição da
demos deter-nos aqui; só destacare- prova consiste na ontologia que ca-
mos o fato de Descartes insistir na da um dos pensadores adota como
idéia de infinitude, e indicar que, em- base do seu pensar. Uma ontologia
a
bora seja certo que possuímos idéia
de infinito, e inclusive que essa idéia
realista é a favor da prova; uma on-
tologia nominalista é contra ela. Pois
é mais clara do que a de finito, tal bem, essa indicação tampouco ex-
idéia não pode ter surgido de um ser pressa as bases específicas .a partir
finito, mas teve de ser depositada ne- das quais a prova é tratada. Isso
le por um ser infinito, isto é, Deus. ocorre sobretudo no caso de Santo
Como diria depois Malebranche, o Tomás e de Kant. A rejeição por
finito só pode ser visto através do in- Santo Tomás da prova anselmiana
finito e “desde” o infinito. Por con- não se deve, é claro, a um nomina-
seguinte, trata-se menos de uma pro- lismo, nem a uma idéia do ser dis-
ONTOLÓGICA, PROVA 536

tinta da tradicional. Trata-se, antes, pelo fato de que concebo (mediante


de uma distinção — manifesta na a expressão é) o objeto como dado
menor — entre o ser tal como é con- absolutamente.” Em outras pala-
cebido por nós (o que se concede) e vras, o real não contém mais notas
tal como é realmente (o que se ne- do que o possível (pensado); cem tá-
ga), pois em tal caso a evidência só leres reais não contêm mais (em meu
poderia ser uma verdade, nota per pensar) do que cem táleres possíveis.
Se. Sua rejeição por parte de Kant, Para que haja realidade, deve haver
em contrapartida, deve-se ao fato de- um ato de “colocação” dela, sem
le enfatizar, com plena maturidade, que baste supor que o objeto está
uma idéia do ser em cujo âmbito a contido analiticamente no conceito.
prova ontológica não se pode ins- Pois bem, o fato de que o ser não é
crever. um predicado real transtorna radi-
Kant escreveu que ““ser” (Sein) calmente a própria possibilidade de
não é um predicado real, ou seja, um dar uma significação às proposições
conceito de uma coisa, mas a posi- do argumento ontológico. Segundo
ção (Setzung) da coisa ou de certas Kant, que nisso estaria plenamente
determinações em si mesmas. “No de acordo com a orientação de Hu-
uso lógico — escreve Kant (K. r. V., me, não pode haver Separação entre
A 598, B 626), — não é mais do que a coisa e a existência da coisa; am-
a cópula de um juízo. A proposição bas são, dizia Hume, uma mesma
Deus é onipotente contém dois con- realidade, de modo que a proposição
ceitos: Deus e onipotente. O termo “algo existe”* não é agregação de um
é ainda não constitui, por sl mesmo, predicado, mas a expressão da cren-
um predicado, mas unicamente o ça (““a posição”) na coisa (cf. Trea-
que põe em relação o predicado com tise on Human Nature, L, 11, 6). Com
o sujeito. Pois bem, se tomo o su- O que se nega o que constituíra o pró-
Jeito (Deus) com todos os seus pre- prio pressuposto não só da prova an-
dicados (nos quais está incluída tam- selmiana, mas também das formas
bém a onipotência) e digo que Deus que lhe deram Leibniz e Descartes.
é, ou que Ele é um Deus, não acres- O fato de a existência pertencer às
cento nenhum predicado novo (ou perfeições, o fato de se demonstrar
seja, nenhum conceito-predicado) ao a própria possibilidade da idéia de
conceito de Deus; tudo o que faço perfeição absoluta, não são suficien-
é colocar o sujeito em si mesmo com tes nesse caso, pois aqui é a própria
todos os seus predicados e, ao mes- -
função do Juízo que fica transtorna-
mo tempo, é claro, o objeto que cor- da. Em sua análise da prova ontoló-
responde ao meu conceito. Ambos gica, Brentano (Vom Dasein Gottes,
devem conter exatamente a mesma ed. A. Kastil, 1929, pp. 20 e ss.) jul-
coisa e, portanto, não se pode adi- ga que as considerações de Hume são
cionar nada mais ao concelto que ex- muito profundas, embora negue que
pressa simplesmente a possibilidade, “A” e “existência de A” sejam o
537 ONTOLÓGICA, PROVA

mnesmo pensamento. Diz Brentano: ontológico é, pois, uma confusão: a


“O que ocorre, mais exatamente, é de uma definição nominal com uma
que, no segundo caso, “A” está uni- definição real, e a de um Juízo nega-
do à representação de uma crença tivo com um juízo afirmativo. Em
Justificada””, dado que ““existência outros termos, no argumento pres-
de A” seria um conceito mais com- supõe-se que Deus é um ser infinita-
plexo do que Hume supõe. O neces- mente perfeito, quando isso supõe o
sário em si, assinala Brentano, pode que se tratava de demonstrar, ou se-
existir, embora não se diga em que ja, a existência de Deus. Assim sen-
consiste. Menos sujeita a objeções é do, cabe afirmar que o que reside na
a crítica de Kant, na qual não se natureza de uma coisa não pode ser
identifica a existência de uma coisa dito a priori de maneira categórica,
com a coisa, nem se supõe que a mas tão-só hipotética. A opinião
crença é uma classe especial de repre- kantiana de que a “absoluta neces-
sentação, nem se afirma a falta de sidade do juízo não é uma necessi-
relação do Juízo existencial, nem se dade absoluta das coisas” deve ser,
supõe contraditória, finalmente, a pois, transformada na idéia de que,
idéia de uma existência absolutamen- no que tange ao ser perfeito, a sua
te necessária. Em compensação, Bren- verdade é necessária, embora não,
tano não admite o caráter puramen- para nós, aprioristicamente. Assim,
te sintético do juízo existencial. Pa- Brentano chega a uma delimitação
ra Kant, o juízo existencial é um Juí- precisa das possibilidades da prova
zo categórico em que a relação en- que o leva a rejeitá-la em sua formu-
tre sujeito e predicado não é umare- lação tradicional, sem por isso cair
lação entre dois conceitos mas entre numa ontologia de tendência nitida-
um conceito que ocupa o lugar do mente nominalista. A conclusão de
sujeito e o objeto. Para Brentano, o suas argumentações foi apresentada
erro de Kant é considerar, como Já por esse filósofo numa série de pro-
fizera Santo Tomás (com pressupos- posições que definem o conceito de
tos distintos), que o juízo é uma possibilidade no âmbito de um am-
comparatio rei et intellectus, compa- plo empirismo. Assim, se Deus é ver-
ratio que teria aqui o mesmo senti- dadeiro, é necessariamente verdadei-
do do relacionar, ou Beziehen kan- ro, se é falso, é necessariamente fal-
tiano. A falha da prova ontológica so; se é possível, é necessariamente
seria, pois, a que deriva de um ““pa- possível; se não é possível, é neces-
ralogismo por equivocação” (op. sariamente impossível. Em outras
cit., p. 39). Com efeito, diz Brenta- palavras, se “Deus é”, não é neces-
no, em todos os nomes há equivo- sariamente falso, é (necessariamen-
cações por tríplice substituição (1) te) verdadeiro que seja. |
quando a palavra substitui a coisa, A análise de Brentano permite com-
(2) o conceito ou (3) a própria pala- preender alguns dos mais graves pro-
vra. O que ocorre com o argumento blemas lógicos e ontológicos ocultos
ONTOLÓGICA, PROVA 538

na prova anselmiana, mas esta con- ter analítico e tautológico, mas Jja-
tinuou sendo examinada de ângulos mais poderia ter um fundamento
muito diversos na filosofia contem- existencial. Assim, algumas das úl-
porânea. Aqueles que, seguindo He- timas tendências, simultaneamente
gel, consideraram que ““o finito é al- empiristas e analíticas, repeliram a
go não verdadeiro”, reabilitaram a prova — e, de um modo geral, toda
prova, possivelmente porque o fun- argumentação acerca de um princíi-
do desta consiste na afirmação do in- pio transcendente —, não só pela ale-
finito atual como realidade e não, gada impossibilidade de sua compro-
como assinalava Hegel, na contrapo- vação ou verificação empírica, ou
sição da representação e da existên- pelas falhas descobertas na própria
cia do finito ao infinito. Quando os trama da argumentação racional, mas
idealistas negaram o esforço hegelia- também porque as proposições con-
no da prova, 1sso se deu porque, co- tidas nela foram consideradas caren-
mo no caso de Bradley, houve a ten- tes de significação, ou seja, pseudo-
dência a estabelecer uma distinção proposições que não se referem nem
entre a perfeição teórica, cuja de- ao lógico-tautológico, nem ao empi-
monstração se admitiu, e a perfeição ricamente comprovável.
prática, cuja prova se negou (cf. Ap- O interesse pela prova ontológica
pearance and Reality, pp. 149-50). ressurgiu com os trabalhos de Nor-
Alguns tentaram uma demonstração man Malcolm e Charles Hartshorne.
do necessário pelo valioso; assim, Já indicamos antes que Malcolm dis-
Lotze assinala que, desse ponto de tingue entre duas provas (ou dois ar-
vista, ““o contingente conota o que gumentos) em Santo Anselmo. A
realmente existe, mas não tem signi!- prova mais interessante é, segundo
ficação nenhuma em virtude da qual Malcolm, não a primeira — como
necessite existir”; o necessário, em pensou a maioria dos autores —,
contrapartida, “não designa algo mas a segunda. Dela se depreende
que deve ser algo, mas algo tão in- que, se se conceber um ser maior que
condicionalmente valioso que só em o qual nada existe, esse ser é um do
virtude dele merece uma existência qual cabe dizer, em termos de lógi-
incondicional”*. Com o que “somen- ca modal, que é necessário. Que exis-
te nesse sentido pode-se dizer que o ta ou não esse ser, é necessário; é lo-
Princípio do Universo é necessário” gicamente necessário que exista, ou
(Mikrokosmos, IX, cap. iv, $ 2). é logicamente necessário que não
No referente às tendências empi- exista (isto é, é logicamente impos-
ristas, rejeitaram em geral a prova ou sível que exista). Se não há contra-
consideraram que ela, no máximo, dição em admitir que existe, então
remete a um fato suficiente, mas não pode-se concluir que existe necessa-
a uma razão suficiente, que seja, riamente. Hartshorne adere a um ar-
além disso, existente. Pois a razão gumento semelhante, baseando-se nu-
suficiente seria unicamente de cará- ma Idéia, que qualifica de “neoclás-
539 OPINIÃO

sica”, segundo a qual ““a perfeição do devir e, portanto, não pode ser
não é um estado, um actus purus, simplesmente menosprezada. Entre-
mas um devir”". A perfeição é, em tanto, o que caracteriza o filósofo é
suma, perfectibilidade. Assim, quan- o fato de não ser “amigo da opi-
to mais perfeito é um ser, menos nião”, isto é, o fato de estar conti-
atual ele é, de modo que ““o infinito nuamente voltado para o conheci-
absoluto da potencialidade divina” mento da essência imutável. A con-
é a “coincidência (ou co-extensivida- cepção platônica da opinião perma-
de) com a possibilidade como tal”. necia, pois, estreitamente vinculada
Hartshorne recorre às leis da lógica à admissão da existência e do prima-
modal — segundo a qual dizer ““p é do do mundo inteligível; não era sim-
possível”* equivale a dizer “necessa- plesmente uma crença, mas, como
riamente p é possível”, e dizer “é vimos, uma faculdade especial e 1r-
possível que p seja necessário” equi- redutível, algo intermediário para um
vale a dizer “necessariamente p é ne- ser também intermediário. Não obs-
cessário”* — e considera que é váli- tante, o caráter provável da opinião
da a prova ontológica da existência em face da segura certeza da visão
de Deus (que se converte, então, em intelectual do inteligível tornou pos-
“prova modal”). sível a lenta transição para o conceil-
to atual de opinião como algo dis-
OPINIÃO Na República (V, 477-480 tinto, ao mesmo tempo, do saber e
A), Platão assinala que o que é ab- da dúvida; na opinião, não há pro-
solutamente também é cognoscível priamente um saber, tampouco uma
absolutamente, e que o que não exis- ignorância, mas um modo particu-
te absolutamente não é conhecido lar de asserção. Essa asserção está
sob nenhum aspecto. Mas havendo tanto mais próxima do saber quan-
coisas que, ao mesmo tempo, são e to mais prováveis são as razões em
não são, isto é, coisas cujo ser é O que se apóia; uma possibilidade ab-
estar situadas entre o ser puro e o pu- soluta dessas razões faria coincidir a
ro não ser, cumpre postular, para a opinião com o verdadeiro conheci-
compreensão delas, a existência de mento.
algo intermediário entre a ignorân- Segundo os escolásticos, na opi-
cia, à&yvoia, e a ciência, émoTíunm. nião há sempre um assentimento, as-
A esse saber intermédio das coisas Sensus, mas um assentimento em que
também intermédias pertence a opil- existe sempre formido partir oppo-
nião, dota. Trata-se, segundo Pla- sitae, temor do sustentado pela as-
tão, de uma faculdade própria, dis- serção contrária. Por isso os escolás-
tinta da ciência, de uma faculdade ticos assinalam que a razão formal
que nos torna capazes de ““julgar a da opinião, ou seja, aquilo que a dis-
aparência” (477 E). Como conheci- tingue da certeza, é Justamente o ser
mento das aparências, a opinião é o assensus informus seu cum formidi-
modo natural de acesso ao mundo ne contradictorii.
ORFISMO 540

Essa concepção da opinião refere- pédocles (As purificações) e em Pla-


se sempre a um sujeito ou indivíduo tão. O orfismo apresenta-se, aí, co-
que a sustenta. É diferente o caso mo uma das religiões de mistérios,
quando se trata da chamada opinião oscilando entre o mágico-religioso e
pública, investigada sobretudo pela o filosófico. A questão é, não obs-
sociologia. A opinião é, então, um fe- tante, muito complicada. Até relati-
nômeno social que não se encontra si- vamente pouco tempo acreditava-se
tuado no mesmo plano do saber ou que o orfismo filosófico era uma de-
da certeza, mas que expressa, de cer- puração do orfismo mitológico. Su-
to modo, uma forma especial de com- punha-se, além disso, que tinha exis-
portamento. A “opinião pública” é, tido uma seita órfica da qual Pitá-
por 1sso, mais um modo de agir do goras aproveitou parte de seus ensi-
que de se pronunciar sobre a realida- namentos. Contudo, Dodds mostrou
de, mesmo quando se trata de um agir que o contato com as culturas xama-
nísticas pode perfeitamente explicar
que implica sua manifestação em cer-
tos pronunciamentos. as idéias órficas da “excursão psíqui-
ca” da alma, a afirmação da possi-
ORFISMO Chama-se “orfismo” a bilidade da presença desta em vários
doutrina propagada pelos adeptos lugares ao mesmo tempo, a idéia de
dos mistérios órficos e dos ritosl1- owua nua (ou o corpo como sepul-
gados a tal doutrina. Esses ritos ba- cro da alma) e outras doutrinas aná-
selam-se numa mitologia: a de Dio- logas. Segundo essa interpretação, a
niso, filho de Zeus e Perséfone, que doutrina da separação entre o cor-
foi devorado pelos Titãs, salvo o co- poral e o anímico não provém da tra-
ração, entregue a Zeus por Atena. dição grega, a qual concebia (inclu-
Destruídos os Titãs pelos raios de sive depois do orfismo) que o corpo
Zeus, emergiram de suas cinzas os e a alma são realidades equivalentes
homens, cuja existência alberga em (cf. E. R. Dodds, The Greeks and
seu íntimo o mal dos Titãs e o bem the Irrational, 1951, pp. 147 e ss.).
de Dioniso. Dioniso nasceu nova-
mente do coração engolido por Zeus. ORGÂNICO, ORGANISMO Como
Essa ressurreição é fundamental na o vocábulo opya&vror (“órgão”) sig-
doutrina órfica e em seus ritos: por nificou originalmente ““instrumen-
um lado, levou à crença na transmi- to”, o termo “orgânico” refere-se ao
gração; por outro, à abstinência da caráter de um órgão e, sobretudo, ao
carne. Atribui-se ao poeta Orfeu (sé- fato de que um órgão (ou instrumen-
culo IV a.C.) ter fixado os pontos es- to) compõe-se de partes desiguais,
senciais de tal mitologia e doutrina embora combinadas, montadas ou
nos chamados ““hinos órficos”*. Do armadas de forma que ele possa exe-
ponto de vista filosófico, interessam cutar a função, ou funções, para as
sobretudo os testemunhos que há so- quais foi designado. Rudolf Eucken
bre o orfismo em Pitágoras, em Em- lembra que essa significação de ““or-
541
ORGÂNICO, ORGANISMO

gânico”, que se encontra em Aristó- redução baseando-se nas idéias do


teles (por exemplo, em Política, 1259 chamado ““mecanicismo clássico”,
b 23), persiste até pelo menos mea-
ou, então, tratando de ampliar e en-
dos do século XVIII. Assim, por riquecer a doutrina mecanicista. O
exemplo, Suárez definiu um corpus antimecanicismo nega-se a reduzir o
organicum da seguinte maneira: Dij- orgânico ao mecânico, mas, dentro
CItur corpus organicum quod ex par- dessa tendência negativa comum,
tibus dissimilaribus componitur, e manifesta-se de forma positiva em
Baumeister (discípulo de Wolff) as- várias correntes. As principas são: O
sim: Corpus dicitur organicum quod vitalismo extremo (que explica, ou
vi compositionibus suae ad peculia- procura explicar, o não-orgânico
rem quandam actionem aptum est. com base no orgânico e, em geral,
A essas definições de “orgânico”, o inerte com base no vivo); o vitalis-
ou, melhor, de “corpo orgânico”, mo estrito, que é costume designar
mencionadas por Eucken poderiam simplesmente por ““vitalismo” e, em
ser acrescentadas outras semelhan- algumas de suas manifestações, por
tes; por exemplo, Santo Tomás fa- “neovitalismo”, que procura um
lou de corpus organicum como o princípio do orgânico (um ““princí-
corpo equiparado com ““instrumen- pio dominante”, uma “enteléquia”,
tos”. Nesses sentidos, não há incom- etc.) característico do vivo e somen-
patibilidade entre “orgânico” e “me- te dele; o organismo biológico, tam-
cânico””. Ainda hoje, fala-se de ““or- bém chamado ““biologismo”, que
ganização”* em muitos sentidos, in- afirma a irredutibilidade do orgâni-
clusive referindo-se às máquinas, as co ao não-orgânico, mas tende a fun-
quais podem estar efetivamente ““or- damentar essa irredutibilidade não
ganizadas”'. em algum princípio especial ou espe-
Entretanto, a partir de meados do cífico do orgânico, mas no modo co-
século XVIII, a tendência passou a mo o orgânico está estruturado. São
ser para usar “orgânico” como ad- representantes do vitalismo extremo
jetivo que qualifica certos corpos: os os filósofos que defenderam o orga-
corpos ““biológicos”' ou ““organis- nicismo como concepção do mundo
mos”. Tornou-se, por 1sso, cada vez e, também (pelo menos em parte),
mais comum contrapor o orgânico autores vitalistas biológicos como
ao mecânico e, por conseguinte, as Bergson. São representantes do vita-
concepções chamadas ““organicis- lismo estrito ou neovitalismo biólo-
tas” às chamadas ““mecanicistas””. gos e filósofos da biologia como
O mecanicismo esforça-se por re- Hans Driesch, Jacob von Uexkull e
duzir o orgânico ao mecânico, quer Johannes Reinke. Entre os represen-
de um modo definitivo, quer numa tantes do organicismo biológico ou
determinada fase do conhecimento biologismo, temos biólogos como
dos organismos. Ao mesmo tempo, Oscar Hertwig, E. S. Russell, J. S.
o mecanicismo pode proceder a tal Haldane e Ludwig von Bertalanffy.
OSTENSIVO 542

OSTENSIVO Em An. pr., 1, 23, 40 A questão dos termos ostensivos


b, 25 ess., Aristóteles refere-se a dois ligou-se freqiientemente ao proble-
modos de provar silogismos: a pro- ma da aprendizagem do significado
va indireta e a prova direta. A prova de certos termos, em particular ter-
indireta é à prova apagógica ou por mos ““sensíveis*” ou que expressam
redução ao absurdo, que Aristóteles “dados dos sentidos”. Foi muito co-
considera parte da prova baseada em mum considerar esses termos como
hipóteses. Numa prova indireta, es- inevitavelmente ostensivos. Assim,
tabelece-se que uma premissa é vál!1- por exemplo, o significado de “azul”
da mostrando que da aceitação da ne- poderia ser aprendido mostrando-se
gação da mesma obter-se-la uma con- um objeto azul e dizendo “azul”. E
tradição. A prova direta, em contra- até o significado de ““três”* poderia
partida, não pratica a redução apa- ser aprendido mostrando-se três ob-
gógica, mas a chamada ““redução os- jetos e dizendo ““três””. Entretanto,
tensiva”. Aristóteles fala, para esse Wittgenstein fez notar que se se en-
efeito, dos silogismos ostensivos (ou sinar a alguém o significado do nú-
de demonstração direta), os quais se mero dois — se se Ihe ensinar a def1-
reduzem às três figuras. A prova con- nição de “dois” — mostrando-lhe
siste em assumir um silogismo no qual duas nozes, .o aprendiz não saberá
se quer concluir P de S. Em tal silo- ainda se “dois” é o nome do núme-
gismo, o termo médio deve estar uni- ro dois, ou de um particular grupo
do a cada um dos extremos. O termo de nozes (Philosophische Untersu-
médio tem três posições correspon- chungen, 28). Pode-se especificar o
dentes às três figuras. que se quer ensinar indicando-se que
Falou-se, por vezes, de “defint- se trata de um número. Mas, então,
ções ostensivas”, entendendo-se com há que explicar o que significa ““nú-
1sso as definições de termos ou con- mero” antes que se possa aprender
ceitos que consistem em ““ostentar”* a definição ostensiva (hinweisende).
ou mostrar o que se supõe ser desig- Aprender um significado ostensiva-
nado pelo termo ou pelo conceito. mente implica, segundo Wittgens-
Alguns autores negam que possa ha- tein, possuir um conhecimiento do
ver definições ostensivas, seja porque uso linguístico que é levado em con-
não há termos ostensivos, seja por- sideração por aquele que ensina o
que uma definição não pode consis- significado. ““Já é necessário saber
tir em não mostrar nada. Outros des- (ou poder fazer) algo para pergun-
tacam que as definições ostensivas só tar nomes” (op. cit., 30). Denomi-
o são de termos que têm designata. nar tem lugar dentro de um jogo lin-
Ainda outros indicam que unicamen- gúuístico. Mas ao dizer-se ““isso se
te termos como os pronomes de- chama...”", o pronome demonstrati-
monstrativos são ostensivos, embo- vo “isso” não é nenhum nome (se
ra, nesse caso, tenha-se que admitir fosse, “isso” seria o nome de isso
a ausência de significado. que quero denominar) (op. cit., 38).
543 OTIMISMO

O autor da presente obra observou gado isoladamente, mas em relação


(Indagaciones sobre el lenguaje, 1970, com a totalidade da criação, a qual,
pp. 178 e ss.) que as chamadas ““de- em virtude da infinita bondade de
finições ostensivas”* oferecem diver- Deus, não pode ser melhor do que
sos gêneros de dificuldades; para é. A criação é, pois, “ótima”, ou se-
evitá-las, cumpre estabelecer, em ca- ja, o mundo é um optimum. Nesse
da caso, vários tipos de convenções, caso, o otimismo é simples reconhe-
tácitas ou implícitas. “Se uma pes- cimento da “otimidade” do mundo.
soa que aprende o português quer sa- Voltaire intitulou Candide, ou l”op-
ber os nomes das cores nesse idioma, timisme, o romance em que, entre
pode acontecer que, ao mostrar-lhe outras coisas, escarnece das idéias ou
um livro cinzento, enquanto digo “li- pronunciamentos do doutor Pan-
vro', acredite que “livro? é o nome gloss, o qual segundo se supõe, re-
da cor cinzenta. Posso corrigir esse presenta a concepção leibniziana, ou
erro mostrando-lhe um livro “azul' derivada de Leibniz, e toda forma de
e dizendo de novo “livro; mas, para “teodicéia”. Diante de crueldades e
estar seguro de que meu ato pedagó- desgraças em série, o doutor Pan-
gico é eficiente, tenho de saber pre- gloss acha que tudo corre bem e que,
cisamente que o campo léxico cro- se não tivesse sucedido o mal que
mático no idioma que o aprendiz usa ocorreu, não teria acontecido o bem
é o mesmo que no que aprende... Es- que ora se celebra. Assim, pois, tu-
pecialmente se se produzem dentro do está bem: tout est hien dans le
de certas condições e convenções, as meilleur des mondes.
definições ostensivas não conduzem Dado que o pessimismo é o con-
a qualquer interpretação do nome trário do otimismo, caberia pensar
proferido. Não obstante, tampouco que, se Voltaire investe contra o úl-
levam a uma interpretação única... timo, é porque se manifesta a favor
Não entender em absoluto de que se do primeiro. Entretanto, embora Vol-
fala quando se define ostensivamente taire olhe a história com ““pessimis-
alguma coisa, suporia não usar ne- mo”, como uma sucessão de desgra-
nhuma chave, o que tornaria impos- ças, estas foram produzidas pela im-
sível toda comunicação, inclusive a becilidade humana. As coisas podem
que consiste em produzir “definições melhorar eliminando a imbecilidade
ostensivas* 9) ”. e a ignorância, e incentivando a ra-
zão, a qual se refugiou, temerosa, no
OTIMISMO Nas Mémoires de Tré- fundo de um poço, sendo necessário
voux (fevereiro de 1737), introduziu- fazê-la sair dele. Voltaire é, nesse
se o termo optimisme ou ““sistema do sentido, um ““meliorista”* em face do
optimum*' para designar a doutrina pessimismo suscitado pelo terremo-
defendida por Leibniz na Teodicéia: to de Lisboa e do qual dá testemu-
o mal (ver) que pode ser encontrado nho no Poême sur le désastre de Lis-
na criação de Deus não deve ser jul- bonne, 1756.
OTIMISMO 544

As tendências ao pessimismo ou Pode-se distinguir entre um otimis-


ao otimismo são anteriores à intro- mo racional, e até racionalista; um
dução dos vocábulos corresponden- otimismo temperamental, que não ne-
tes. Em muitos casos, também são cessita buscar justificações racionais
específicas, isto é, relativas a um de- (ou que as encontra com facilidade),
terminado ponto ou fim. Assim, por e um otimismo ativo, ou pragmáti-
exemplo, Hobbes é um pessimista a CO, que se alicerça numa concepção
respeito da condição humana em es- libertadora da ação. Nenhum desses
tado natural, ao passo que Rousseau otimismos tem muitos defensores en-
é um otimista. Por outro lado, Hob- tre os filósofos. As manifestações de
bes é, no mínimo, ““meliorista”* em otimismo são escassas em compara-
relação às possibilidades de encami- ção com as várias formas de intenso
nhar a condição humana pela via de pessimismo que se manifestaram no
um Estado autoritário que neutrali- século XIX (Schopenhauer, Eduard
ze O egoismo de cada indivíduo, e von Hartmann, etc.) e que, após um
Rousseau também é, no mínimo, “me- período de “confiança” (pelo menos
liorista”* a respeito das possibilida- entre certas camadas sociais no Oci-
des de eliminar as perversões intro- dente), ressurgiu em estreita relação
duzidas pela “cultura” e de restabe- com as preocupações relativas a pos-
lecer a bondade natural do homem. síveis catástrofes ecológicas.
P
P Na lógica tradicional, a letra con em sua obra de mesmo título,
maiúscula “P” é usada para repre- publicada (sob pseudônimo) em
sentar o predicado no esquema do 1720. Tanto Toland quanto Fay en-
Juízo ou da proposição que serve de tendiam por ““panteísta”* o que crê
conclusão num silogismo. Assim, que Deus e o mundo são à mesma
por exemplo, “P” em “todos os S colsa, de modo que Deus não tem ne-
são P”'; “alguns S$ são P””. A mes- nhum ser fundamentalmente distin-
ma letra serve para representar o su-
to do do mundo; e por “panteísmo”,
jeito no esquema dos Juizos ou pro- a correspondente crença, doutrina
posições que servem de premissa ou filosofia. Embora o nome seja
maior ou menor num silogismo. As- moderno, a crença ou doutrina não
sim, por exemplo, “P” representa o o são tanto; a identificação de Deus
sujeito na premissa maior dos esque- com o mundo foi afirmada, ou da-
mas que correspondem à segunda e da por axiomática, em várias doutri-
à terceira figuras (ver FIGURA). nas do passado, tanto orientais (es-
Na lógica sentencial, a letra minús- pecialmente na Índia) como ““ociden-
cula “p” é usada para simbolizar tais” (na Grécia, Roma, Idade Mé-
sentenças. “P” representa um enun- dia). Isso não significa que o panteis-
ciado declarativo e é chamado letra
mo pré-moderno seja igual ao mo-
sentencial. Outras letras usadas pa-
derno; a rigor, certas doutrinas não
ra esse efeito são “q”, “r”,
todas essas letras seguidas de linhas:
“se modernas orientais e “ocidentais”,
não são corretamente entendidas
Ps qd, 66799 6 199
Ss, Pos
66 1199
Fo,
66 199 66 199

quando qualificadas de ““panteís-


“go, ro,
1199 66MMOI CENTO)
so eto.
tas”, pela simples razão de que seu
PANTEÍSMO Segundo S. E. Boeh- “panteísmo”º não identifica Deus
mer (De pantheismi nominis origine com o mundo, mas parte de uma
et usu et notione [1851], apud R. unidade prévia que não é possível se-
Eucken, Geschichte der philosophis- parar nos dois aspectos, “Deus” e
chen Terminologie [1979, reimpr. “mundo”. Por exemplo, é duvido-
1960], pp. 94, 173), o termo ““pan- so que sejam propriamente panteiís-
teísta”*(Pantheist) foi usado pela pri- tas as doutrinas dos pré-socráticos,
meira vez por John Toland em sua ou o neoplatonismo — ou, se conti-
obra Socinianism Truly Stated (1705), nuam sendo qualificadas de ““pan-
e o termo “panteísmo” (Pantheism) teistas”*, haverá que se chegar, então,
pelo adversário de Toland, J. Fay, a um entendimento sobre o signifi-
em seu Defensio Religionis (1709). cado peculiar desse termo. Seria pre-
Toland usou o vocábulo Pantheisti- ferível, portanto, quando se trata do
PANTEÍSMO 546

“panteísmo” pré-moderno, ou não além disso, tende a sustentar que o


usar o vocábulo, ou usá-lo com Ii- princípio do mundo não é uma pes-
mitações. De um modo geral, é mais soa, mas algo de natureza impessoal.
adequado restringir o panteísmo ao Foi usual na Época Moderna con-
panteismo moderno”. siderar a filosofia de Spinoza como
Tido geralmente como uma ideo- o mais eminente e radical exemplo de
logia filosófica e, em especial, como doutrina panteísta, por causa do sen-
uma ““concepção do mundo” por tido do famoso Deus sive Natura
meio da qual podem filiar-se certas (Deus ou Natureza) spinoziano. Se-
tendências filosóficas, é possível cha- ja ou não panteísta (e, ao que pare-
mar-se “panteísmo” à doutrina que, ce, “acosmística””), o certo é que
defrontando-se com os dois termos, desencadearam-se inúmeros debates
“Deus” e “mundo” — por conse- em torno da doutrina de Spinoza.
a
guinte, não previamente eles —,
passa a identificá-los. Nesse sentido,
Para começar, foi muito corrente
nos séculos XVII e XVIII, inclusive
o panteismo é uma forma de monis- em autores que sentiam por Spino-
mo, ou, pelo menos, de certos tipos za grande admiração, ““fugir” dele
de monismo (ver). Pois bem, o pan- — e “acusá-lo” — por causa dos
teismo oferece diversas variantes. “perigos” em que poderia fazer in-
Por um lado, pode-se conceber Deus correr seu panteísmo, ou suposto
como a única realidade verdadeira, panteísmo. Tal foi o caso, entre ou-
à qual se reduz o mundo; então, es- tros, de Leibniz e Bayle. Em fins do
te é concebido como manifestação, século XVIII, voltou à baila o ““ca-
desenvolvimento, emanação, proces- so Spinoza” e, com ele, “o proble-
so, etc., de Deus — como uma ““teo- ma do panteísmo”', na famosa ““dis-
fania”'. A esse panteísmo deu-se o puta do panteísmo” (Pantheismuss-
nome de ““panteísmo acosmístico”* treit). Os principais momentos da
ou simplesmente “acosmismo”. Por disputa foram os que seguem. Em
outro lado, pode-se conceber o mun- suas Briefe an Moses Mendelssohn
do como a única realidade verdadei- úber die Lehre des Spinoza [1785]
ra, à qual se reduz Deus, o qual cos- (Cartas a M. M. sobre a doutrina de
tuma ser concebido, então, como a Spinoza), Jacobi acusou Lessing de
unidade do mundo, como o princi- panteísmo. Mendelssohn — que já
pio (geralmente “orgânico”) da Na- antes enfatizara a possibilidade de
tureza, como o fim da Natureza, co- conciliar o panteísmo com uma ati-
mo a autoconsciência do mundo, etc. tude religiosa e moral — contestou
Esse panteísmo é chamado ““panteis- com seu Moses Mendelssohn an die
mo ateu”, ou “panteísmo ateísta”. Freunde Lessings [1786 (póstumo,
Em ambos os casos, o panteísmo ed. Engel] (M. M. aos amigos de
tende à afirmação de que não existe Lessing), defendendo Lessing contra
nenhuma realidade transcendente e as acusações de Jacobi. Jacobi
con-
de que tudo que existe é imanente; testou por sua vez com F. H. Jacobi
547 PARADOXO

wider Mendelssohns Beschuldigun- segundo vários critérios. Temos de


gen in dessen Schreiben und die nos referir, de entrada, a duas clas-
Freunde Lessings [1786] (F. H. J. ses de paradoxo: o lógico e o exis-
contra as acusações de M. em seu es- tencial; a primeira dessas pode sub-
crito aos amigos de Lessing). Esses dividir-se em paradoxo lógico, se-
e outros escritos foram publicados mântico e de confirmação.
num volume que colocou ““a dispu- Paradoxos lógicos. Os mais co-
ta do panteísmo”* diante dos olhos nhecidos são os seguintes:
do “público”. O interesse pela ““ques- (a) Paradoxo de Burali, apresen-
tão do panteísmo** continuou vivo, tado por esse autor em 1897 e já ob-
décadas depois, em decorrência das servado por Georg Cantor em 1895.
polêmicas em torno de Fichte e He- E o chamado ““paradoxo do maior
gel, a quem também se acusou, com número ordinal”. Todo conjunto
razões mais ou menos válidas, de cantoriano bem ordenado tem um
panteiísmo. número ordinal. Os números ordi-
nais correspondentes estão dispostos
PARADOXO Etimologicamente, em ordem de grandeza, de forma
“paradoxo”, maçeadoéa, significa que, dados dois números ordinais, x,
“contrário à opinião (ôo£a)”, isto é, y, então x>y e também y <x. Todo
“contrário à opinião recebida e co- conjunto de ordinais numerados da
mum”'. Há exemplos de paradoxos forma indicada está bem ordenado,
na Antiguidade (cf. Crísipos, apud sendo o seu ordinal maior do que
Diógenes Laércio, V, 49, VII, 196; qualquer elemento do conjunto. Se
Epiícteto, Discursos, II, xvil, 34; Sex- considerarmos o conjunto de todos
to Empírico, Esboços pirronianos, os ordinais ordenados na forma in-
II, 244; Aulo Gélio, Noites áticas, dicada e, portanto, bem ordenado,
XVIII, ii, 10) e na Idade Média. Em- deveremos atribuir-lhe um número
bora a palavra “paradoxo” seja em- ordinal. Esse número ordinal é, si-
pregada ocasionalmente como equi- multaneamente, um elemento do
valente de “antinomia”, esta última conjunto de todos os números ordi-
é — considerada com propriedade — nais e maior do que qualquer ele-
um tipo especial de paradoxo, a sa- mento de tal conjunto. Há, assim,
ber, aqueles paradoxos que envol- um número ordinal que é e não é ao
vem contradição, embora sejam em- mesmo tempo o maior de todos os
pregados para defender uma forma números ordinais.
de raciocínio tida como válida (ver (b) Paradoxo de Cantor, desco-
ANTINOMIA). Uma vez que reser- berto por esse autor em 1899, não
vamos o termo “antinomia” para as publicado e redescoberto por Russell
antinomias kantianas, utilizaremos a dentro da lógica de Frege em 1902
palavra “paradoxo” para todas as (e publicado em 1903). Atribuindo-se
formas de paradoxo, com exceção a cada conjunto um número cardi-
dos de Zenão, e classificá-los-emos nal e considerando-se o conjunto de
PARADOXO 548

todos os conjuntos, descobre-se que predicável, não se aplica a si mesma


há um poder de tal conjunto cujo nú- e é, portanto, impredicável. Se, pe-
mero cardinal é maior que o núme- lo contrário, esta propriedade é im-
ro cardinal atribuído ao conjunto e predicável, aplica-se a si mesma e,
tem mais conjuntos que o conjunto portanto, é predicável.
de todos os conjuntos. Mas, ao mes- Paradoxos semânticos. Menciona-
mo tempo, todos os conjuntos se en- mos alguns dos mais conhecidos.
contram no conjunto de todos os (a) Paradoxo chamado “O Men-
conjuntos. Há, assim, um número tiroso”* e também “Epimênides” ou
cardinal que é e não é simultanea- “O Cretense”. Segundo esse parado-
mente o maior de todos os números XxO, afirma-se o seguinte:
cardinais.
(c) Paradoxo das classes, desco-
Epimênides é cretense e afirma
berto por Bertrand Russell em 1901. que todos os cretenses mentem.
Há classes que não pertencem a si Se Epimênides é cretense e todos
mesmas, como a classe de todos os Os cretenses mentem, então, quando
cães, que não é um cão. Há classes Epimênides afirma:
que pertencem a si mesmas, com a Todos os cretenses mentem,
classe de todas as classes, que é uma
classe. afirma uma proposição que é verda-
(d) Paradoxo russelliano das rela- deira. Portanto, Epimênides não
ções. Dadas três relações, O, O, R, mente quando afirma que todos os
há que admitir que P relaciona R cretenses (incluindo Epimênides)
com OQ se e somente se não for certo mentem.
que P relaciona P com OQ. Mas, le- Por conseguinte:
vando-se em conta que, se algo é cer- 1. Epimênides mente se e somen-
to do todo, é certo de um elemento te se não mente (1sto é, diz a verda-
do todo, resulta que R relaciona R de).
com Q se e somente se não é certo 2. Epimênides não mente (isto é,
que R relaciona R com OQ. diz a verdade) se e somente se mente.
(e) Paradoxo russelliano das pro- O paradoxo em questão simplifi-
priedades. Há propriedades que não cOou-se, às vezes, mediante a suposi-
se aplicam a si mesmas, como a pro- ção de que alguém diz somente:
priedade de ser uma cadeira, que não “minto”.
é uma cadeira. São as chamadas (b) Paradoxo de P. E. B. Jour-
“propriedades impredicáveis”. Há dain. De acordo com o mesmo, apre-
propriedades que se aplicam a si mes- senta-se um cartão em um de cujos
mas, como a propriedade de ser con- lados está escrito o enunciado:
cebível, a qual é concebível. São cha-
madas “propriedades predicáveis”'. No dorso deste cartão há um
Consideremos a propriedade de ser enunciado verdadeiro (1)
impredicável. Se esta propriedade é Vira-se o cartão e lê-se o seguinte:
549 PARADOXO

No dorso deste cartão há um deria considerar-se como tal (““o


enunciado falso (2) ser”, “o uno”) não é uma classe, por
Se (1) é verdadeiro, então (2) tem estar — como sublinharam muitos
escolásticos — além de todo gênero
de ser verdadeiro e, portanto, (1) tem
e espécie. Ockham assinalou que ne-
de ser falso.
Se (1) é falso, então (2) tem de ser
nhuma proposição pode afirmar na-
da de si mesma, pois, do contrário,
falso e, portanto, (1) tem de ser ver-
dadeiro. gera-se automaticamente um círcu-
lo vicioso. A divisão dos paradoxos
Em consequência, temos:
em lógicos e semânticos, proposta
(1) é verdadeiro se e somente se (1)
é falso. por Ramsey, contribuiu na época pa-
ra a elucidação do problema.
(2) é falso se e somente se (2) é ver- A mais famosa solução para os
dadeiro.
paradoxos lógicos é a dada por Rus-
(c) Segundo o paradoxo de Grel- sell com o nome de ““teoria dos ti-
ling, todas as expressões podem ser pos”. Essa solução sofreu diversas
classificadas em dois tipos: as que se modificações, devidas principalmen-
referem a si mesmas — como ““po- te a Chwistek e a Ramsey. Segundo
lissilábico””, que é uma expressão a teoria simples dos tipos hoje usa-
propriamente polissilábica — e as da, modificam-se as regras de forma-
que não se referem a si mesmas, co- ção do cálculo quantificacional su-
mo ““escrito com tinta vermelha”, perior e declara-se que não se pode
quando não está assim escrito. As do pospor nenhuma variável individual
primeiro grupo denominam-se anto- ou variável predicado de um tipo da-
lógicas, ao passo que as segundas são do a uma variável predicado do mes-
heterológicas. Se nos perguntásse- mo tipo; esta última variável deve ser
mos agora se “heterológico” é uma de um tipo imediatamente superior
expressão efetivamente heterológica às primeiras. As fórmulas nas quais
ou não, verificaríamos que uma res- aparecem os paradoxos são, portan-
posta afirmativa a faria coincidir to, eliminadas como malformadas,
consigo mesma — e ser, portanto, isto é, como não ajustadas à regra
antológica — ao passo que a nega- de formação proposta na citada teo-
ção, isto é, que “heterológico” não ria dos tipos.
é heterológico, mas antológico, ao Uma solução muito aceita hoje em
não se referir a si mesma teria de ser dia para o paradoxo semântico é a que
considerada uma expressão hetero- se apóia na teoria da linguagem e na
lógica. metalinguagem, e que consiste basi-
segundo Bochenski, Aristóteles já camente em distinguir uma linguagem,
teve certo conhecimento do parado- a metalinguagem dessa linguagem, a
xo lógico das classes e procurou so- metalinguagem da metalinguagem,
lucioná-lo negando a classe de todas etc. O paradoxo do mentiroso, por
as classes e afirmando que o que po- exemplo, desaparece assim que pas-
PARADOXO 550

Samos a considerar “verdadeiro” ou O conceito de confirmação é mui-


“falso” como pertencentes a uma to complexo. Podemos distinguir,
linguagem distinta daquela que se como fez Carnap, entre uma concep-
utiliza para dizer “minto”, ou seja, ção semântica e uma concepção ló-
como uma metalinguagem dessa ou- gica da confirmação, e, no primeiro
tra. Eis a razão pela qual os parado- caso, entre uma concepção classif1-
xos semânticos também se denomi- catória, comparativa ou quantifica-
nam paradoxos metalógicos. dora.
Paradoxos de confirmação. Quan- Também é possível diferençar di-
do se trata de formular com preci- versos graus de confirmação ou
são as condições requeridas para que “confirmabilidade”, para os quais
uma asserção possa ser considerada cabe utilizar distintos termos ou va-
confirmação de uma outra, depara- lores numéricos.
mo-nos com vários paradoxos. Con- Esse tipo de paradoxos, inicial-
sidere-se o seguinte exemplo: mente apresentados por Hempel,
também foi discutido por Popper e
Todos os cisnes são brancos (1) J. N. W. Watkins, entre outros.
Ainda se discute se é ou não para-
equivale, logicamente, a
doxo (e, caso for, como classificá-lo)
todo o não-branco é não-cisne (2) o seguinte exemplo: na segunda-fei-
É óbvio que ra, o juiz condena um acusado a ser
fuzilado em qualquer dia de uma de-
A é um cisne branco (3) terminada semana, sempre e quan-
do este não saiba com um dia de an-
é a confirmação de (1), e, como (2) tecedência que 1rão fuzilá-lo nesse
tem de ser logicamente o equivalen- dia; no caso de saber, ser-lhe-á per-
te de (1), então: doada a pena. O advogado de defe-
B é um sapato marrom (4) sa fala com o réu e convence-o de
que não há qualquer possibilidade de
o que confirma (2) e também deve se executar a sentença. Não pode ser
confirmar (1). Justiçado no sábado, porque na sex-
Portanto, de um modo geral, tu- ta o saberia seguramente — posto
do aquilo que não é branco, nem é que é o único dia que resta dentro do
um cisne, confirmará que: prazo marcado de uma semana; tam-
Todo o não-branco é não-cisne pouco pode ser a sexta, uma vez que
— excluído o sábado — o saberia na
e, portanto,
todos os cisnes são brancos; quinta. Nem na quinta, excluídos a
sexta e o sábado, pela mesma razão.
logo, C é um gato preto,
Não obstante, o fato é que o conde-
D é uma pedra preciosa e nado pode ser fuzilado qualquer dia,
E é um sorvete de baunilha
por exemplo, na quarta, sem possi-
confirmarão que ““todos os cisnes bilidade de que o saiba por anteci-
são brancos”. pação.
551 PARALOGISMO

Os paradoxos existenciais são com- dictio ou “modo de falar” (cf. Aris-


pletamente diferentes dos paradoxos tóteles, De Soph. El., 8, 169 b 30 e
lógicos. No paradoxo existencial não ss.). Um sofisma é um argumento
há contradição, mas, antes, o que po- aparente, enquanto um paralogismo
demos designar por “choque”; se ele é um silogismo falso por causa de sua
gera ou reflete o absurdo, o faz num forma. Usaremos aqui o termo ““pa-
sentido de “absurdo” distinto do ló- ralogismo” no sentido especial que
gico, ou do semântico. O paradoxo lhe deu Kant na “Dialética transcen-
existencial — do qual encontramos dental” da Crítica da Razão Pura.
exemplos em autores como Santo Kant distingue, com efeito, entre os
Agostinho, Pascal, Kierkegaard e paralogismos formais, ou falsas con-
Unamuno — propõe-se restabelecer clusões em virtude da forma, e os pa-
“a verdade” (enquanto verdade ralogismos transcendentais, que têm
“profunda”) em face das “meras ver- sua base na natureza humana e pro-
dades” da opinião comum e até do co- duzem uma ““lusão que não se po-
nhecimento filosófico e científico. de aclarar”*. Os paralogismos trans-
Kierkegaard defendeu o paradoxo cendentais são a primeira classe das
nesse sentido. Tal paradoxo manifes- “conclusões racionais dialéticas””
ta-se, por exemplo, no fato de que o fundadas em idéias (no sentido kan-
homem escolhe ou decide-se por Deus tiano) transcendentais. Entre os pa-
mediante um ato de rebelião contra ralogismos transcendentais ou da ra-
Deus. zão pura destacam-se os paralogis-
mos engendrados pelos argumentos
PARALOGISMO Os termos ““para- da psychologia rationalis, à qual
logismo” e “sofisma” são frequen- conclui que um ser pensante só po-
temente intercambiáveis. Por vezes, de ser concebido como sujeito, isto
entretanto, distingue-se entre sofis- é, como substância. Há quatro pa-
ma e paralogismo. Algumas das dis- ralogismos da razão pura:
tinções propostas são: (1) o sofisma (1) O paralogismo da substancia-
é uma refutação falsa com consciên- lidade, que diz: (a) à representação
cia de sua falsidade e para confun- do que é sujeito absoluto de nossos
dir o antagonista, tanto o que sabe Juízos, e que não pode ser usada pa-
quanto o que não sabe; o paralogis- ra determinar outra coisa, é uma
mo é uma refutação falsa sem cons- substância; (b) eu, como sujeito pen-
ciência de sua falsidade; (2) o sofis- sante, sou o sujeito absoluto de to-
ma é uma refutação baseada numa dos os meus Juízos possíveis, e esta
prova inadequada; não é, portanto, representação de mim mesmo não
propriamente, uma refutação: é um pode ser empregada como predica-
argumento (uma ““refutação sofiísti- do de outra coisa; (c) eu, como ser
ca”) em que falta um ingrediente es- pensante (ou alma), sou substância.
sencial por defeito no discurso (dic- (2) O paralogismo da simplicida-
tio). O paralogismo diz respeito à de, que diz: (a) a ação daquilo que
PARALOGISMO 552

não pode ser considerado como uma ses paralogismos apóia-se nas idéias
concorrência de várias coisas atuan- desenvolvidas na “Analítica trans-
do ao mesmo tempo é uma ação sim- cendental”'. As categorias ou concei-
ples; (b) a alma, ou eu pensante, é tos do entendimento introduzidos na
tal classe de ser; (c) a alma, ou eu “Analítica” não possuem significação
pensante, é simples. objetiva — não são ““aplicáveis” —,
(3) O paralogismo da personalida- salvo na medida em que têm como
de, que diz: (a) aquilo que é cons- matéria as “intuições”. As proposi-
ciente da identidade numérica de si ções de que tratam os paralogismos
mesmo em distintos momentos é em questão não são, entretanto, apli-
uma pessoa; (b) a alma é consciente cáveils a intuições, pois transcendem
da identidade numérica de si mesma a possibilidade de toda experiência.
em diversos momentos; (c) a alma é Segundo Kant, não se pode confun-
uma pessoa. dir a unidade do ““eu penso” (que
(4) O paralogismo da idealidade, acompanha todas as representações)
que diz: (a) a existência do que só se com a unidade transcendental do eu
podeinferir como causa de percepções como substância simples e como per-
dadas tem existência puramente du- sonalidade. Daí decorre que a de-
vidosa; (b) todas as aparências exter- monstração racional da imortalida-
nas são tais, que sua existência não é de, substancialidade e imaterialida-
imediatamente percebida e só podem de da alma baseia-se em paralogis-
ser inferidas como causas de percep- mos. A existência da alma e seus pre-
ções dadas; (c) portanto, a existência dicados só podem ser, para Kant,
de todos os objetos dos sentidos exte- postulados da razão prática.
riores é duvidosa (K. r. V., A 348-81). As objeções formuladas por Kant
Na segunda edição da Crítica da contra as demonstrações — ou pre-
Razão Pura, Kant indica que todo tensas demonstrações — da psycho-
modo de proceder da psicologia ra- logia rationalis são rejeitadas por
cional encontra-se dominado por um quem admite um tipo de intuição ca-
paralogismo. Este pode tornar-se ex- paz de apreender diretamente a rea-
plícito mediante o seguinte silogis- lidade, unidade ou personalidade do
mo: (a) o que não pode ser pensado eu. Assim ocorre com os idealismos
de outro modo, senão como sujeito, pós-kantianos (intuição intelectual)
não existe de outro modo, senão co- e, na época contemporânea, com au-
mo sujeito, e é, portanto, substân- tores como Bergson (intuição direta
cia; (b) um ser pensante, considera- da intuição). Cumpre observar, po-
do meramente como tal, não pode rém, que os autores citados não tra-
ser pensado de outro modo, senão tam de provar a existência da ““al-
como sujeito; (c) portanto, existe so- ma” no sentido tradicional, mas de
mente como sujeito, ou seja, como intuir uma realidade psíquica, ou
substância (K. r. V., B 410-412). psiquico-espiritual, diretamente ex-
A refutação kantiana de todos es- perimentável.
553 PARTICULAR

PARTICULAR Tradicionalmente, Jam irritáveis. Em ambos os casos,


Juízos ou proposições particulares exclui-se o ser irritável de Tiago e dos
são os que afirmam ou negam um gregos. Em nenhum dos casos, Tia-
predicado de um ou vários sujeitos. gO OU OS Bregos se irritam.
Exemplos de tais juízos ou proposi- Há, porém, uma diferença lógica
ções são ““Tiago é irritável”, “alguns entre o “não” anteposto ao predi-
gregos são Irritáveis”', “Tiago não é cado e o “não” anteposto ao juízo
Irritável””, “alguns gregos não são ir- ou à proposição inteiros, como se
ritáveis”. pode ver na diferença entre:
Diz-se, por vezes, que as proposi-
v X ((Sx) À (1 D)) (1)
ções ou Juízos particulares são os que
afirmam um predicado de um ou vá-
rios sujeitos. São exemplos os cita- vx | ((Sx) À (D)) 2)
dos “Tiago é irritável”º e “alguns ou entre:
v x ((Gx) À (1 D)) (3)
gregos são Irritáveis”. Nesse caso,
considera-se que negar um predica-
do de um ou vários sujeitos consiste vx 1((Gx) À ([x)) (4)
em antepor ““não” ao predicado, Consideremos, por enquanto, so-
quer apenas ao adjetivo que serve de mente (3) e (4). Como em (3) “1”
predicado — como em ““Tiago é não precede “Tx”, 3) é um esquema ló-
irritável””, “alguns gregos são não I1r- gico correspondente a Juízos ou pro-
ritáveis”” — quer, mais idiomatica- posições do tipo “7”, isto é, aos cha-
mente (no vernáculo) e, também, mados ““enunciados particulares ne-
mais em consonância com o modo gativos”'. Quando se fala de Juízos,
moderno de entender ““predicado” proposições ou enunciados particu-
(ver), à cópula e ao adjetivo — co- lares negativos, entende-se com isso
mo em ““Tiago não é irritável”, “al- aqueles em que se nega o predicado.
guns gregos não são irritáveis”. O esquema lógico (4) não é, obvia-
Não obstante, pode-se antepor o mente, equiparável a (3).
“não” seja da forma que acabamos Consideremos agora (1) e (2). Por
de indicar, seja ao juízo ou à propo- se tratar de um único x, de uma úni-
sição inteiros. Neste último caso te- ca entidade, falou-se de juízos ou
mos ““não é verdade (não é certo, proposições singulares, em vez de
etc.) que Tiago seja irritável””, “não particulares. Na lógica moderna, a
é verdade (não é certo, etc.) que al- distinção entre Juízos ou proposições
guns gregos sejam Irritáveis”. particulares ou singulares encontra-
Do ponto de vista da linguagem se dentro do quadro da quantifica-
comum, não há diferença entre di- ção. Ambos os tipos de juízos ou
zer que Tiago não é irritável e não proposições são quantificados par-
é verdade que Tiago seja irritável, ou ticularmente — ou, como também se
que alguns gregos não são Iirritáveis disse, existencialmente —, de modo
e não é verdade que alguns gregos se- que ambos correspondem à forma
PARTICULAR 5954

“para alguns x (pelo menos um)...”


A diferença entre particular e singu-
péger E pegos, “em parte”
xaATÁÃ

“segundo a parte”, respectivamen-


e
lar só é perceptível se se considera- te — ao contrário do caráter “total”,
rem quantificadores numéricos. geral ou universal do não particular
Isso é intuitivamente compreensi- — por isso chamado, justamente,
vel do seguinte modo: se um enuncia- “geral” e “universal”.
do singular afeta um só indivíduo, ha- Também se fala de entidades par-
verá pelo menos um x e, no máximo, ticulares em contraposição com en-
um x que tenha a propriedade que se tidades universais (ver). Usam-se, en-
Ihe atribui; isso significa haver somen- tão, os termos ““particular” e “par-
te um x que tem a propriedade que se ticulares” como substantivos (““o
Ihe atribui, ou seja, há exatamente n particular”, “um particular”, “os
x que tem (têm) F, onde n =|]. particulares”) — analogamente a co-
No exemplo citado, “Tiago é Irrl- mo se usam “universal”, “um uni-
tável””, pode-se entender que Tiago versal”, “os universais” como subs-
é o mesmo que x. Nesse caso, é cla- tantivos. O problema do status on-
ro, “Tiago” não é o nome de nenhu- tológico dos particulares foi discuti-
ma propriedade x; é simplesmente x. do na teoria dos universais.
Também se pode entender que se Não é fácil, se é que é possível, dis-
chamar pelo nome ““Tiago” é uma tinguir de um modo rigoroso entre
propriedade de x, e que, além disso, o aspecto lógico e o aspecto ontoló-
não há nenhuma outra entidade que gico da questão do ““particular”* ou
tenha essa propriedade de chamar- dos ““particulares”*, sobretudo quan-
se (ou de ser chamada) do modo 1in- do o aspecto ontológico está unido
dicado. Então, resultará que para al- a questões semânticas. Isso ocorre ao
guns x, y, z... qualquer deles tem a se apresentar o problema de
se, e até
propriedade de chamar-se pelo no- que ponto, um nome ou uma descri-
me “Tiago” — ou, se se quiser uma ção usados para se referir a um úni-
tradução behaviorista, de responder co particular se refere efetivamente
ao estímulo produzido pela proferi- a ele, quando tal nome ou descrição
ção do nome “Tiago” —, mas de tal foram usados como nome ou descri-
sorte que Y=), yY=z, etc. Se, em ção de outro ou outros indivíduos.
contrapartida, houvesse duas variá- É o que se designou como ““o pro-
veis quantificadas, x, y, tais que Tx blema da referência ambígua”. Es-
e Ty, mas de modo que x*7y», então se problema pode ser solucionado de
haveria duas entidades que respon- vários modos: supondo-se que não
deriam ao nome de Tiago. há referência ao nome ou à descri-
O que se diz acima afeta a (1) e ção; considerando-o, ou remetendo
não, ou não necessariamente, a (2). ao contexto lingúístico no qual se usa
Tradicionalmente, sublinhou-se o o nome ou descrição; especificando
caráter “parcial” do particular — o que o nome ou descrição se aplicam
que é revelado pelas expressões eév
a um particular, na medida em que
555 PERCEPÇÃO

são usados para se referir a tal par- lhor dizendo, de atributo, a fim de
ticular. lhe incutir um sentido. Isso equivale
Uma questão mais geral é a de o a dizer que, se algo existe, não é um
que cabe entender por “um particu- puro particular, tampouco um feixe
lar” ou “uma entidade particular”. de predicados, mas o que “há” em
Se o particular é “o que é uma deter- cada caso. ““O papel do que se cha-
minada coisa”, ou “aquilo que é uma mou “sujeito” é ser especificável me-
determinada coisa”, 1sto é, “o que” diante o chamado “predicado, mas
ou “aquilo que” tem determinados esse predicado só pode especificar
predicados, então os predicados de- uma coisa especificável, isto é, um
terminam a entidade particular, a sujeito. Assim, o sujeito remete ao
qual deixa de ser particular para se predicado, e este àquele, sem que ne-
converter num feixe de propriedades. nhum deles possa subsistir por si
E, como essas propriedades são ““ge- mesmo. Não são realidades ou par-
rais” ou “universais”, no sentido de tes de realidade, mas pólos onto-
que se aplicam, em principio, a diver- lógicos, cuja confluência permite
sos particulares, resulta nada haver apressar a constituição ontológica e
que seja, stricto sensu, um particular. especificamente entitativa [diferente
Por outro lado, se se sublinha o as- de “significativa ] de qualquer real1-
pecto “último” (ou ““básico”*) do dade.”
particular, ou ““a própria particula-
ridade como tal”, independentemen- PERCEPÇÃO
rios
Os gregos usaram vá-
traduzem
te dos predicados, temos o que foi termos que se por
chamado, por vezes, um “mero par- “percepção”: a&vTINfVis, xaTÁNN-
ticular”* ou um ““puro particular”. Vis. O sentido mais comum desses
Mas um ““mero (ou puro) particular”? termos é o de “recolhimento”, co-
é um substrato do qual não se pode mo ação e efeito de recolher algo
dizer mais do que é um substrato ou (que se reclama). Em latim, percipio
suporte. Se se procurar corrigir essa (percipere) é o mesmo que “tomar
“deficiência”, será necessário, então, posse de”, “cobrar”, “recolher”.
caracterizar de algum modo o parti- Cicero usa a expressão perceptiones
cular, mas isso não parece poder ser animi, dando a entender com ela
feito sem que se recorra a predicados uma “apreensão” de notas intelec-
ou a propriedades. tuais ou traços intelectuais (concei-
Uma solução possível para o con- tuais), isto é, de noções, notiones.
flito apontado pode ser a proposta Num sentido semelhante falavam os
pelo autor (cf. El ser y el sentido, estóicos de xatknvis, catalepsis. À
1967, XI, $ 2), ao indicar que, em- “fantasia cataléptica”, parTacia
bora não haja puros particulares ou xATANnNTTLUXN, É UMA ““Tepresentação
meros particulares, a noção de par- compreensiva”, ““representação
ticular pode ser tratada como uma apreensiva” ou, simplesmente, ““re-
noção-limite, de predicado ou, me- presentação”.
PERCEPÇÃO 556

Ao longo da história da filosofia como ““percepção”, perception, per-


(ocidental), o significado dos termos, cezione, Wahrnehmung, etc.
cuja designação é a noção de percep- Os chamados pensadores ““racio-
ção, oscilou entre dois extremos: a nalistas”, como Descartes e Spino-
percepção como percepção sensorial za, seguiram, em parte (apud H. A.
— e, em última instância, como sen- Wolfson, The Philosophy of Spino-
Sação — e a percepção como percep- za, cap. XIV, 1), as doutrinas de Ber-
ção nocional ou “mental”*. Em mui- nardino Telésio (Telesius) sobre a
tos casos, a percepção foi entendi- percepção e a sensação, tal como fo-
da como uma atividade ou um ato ram expostas na obra deste último
de natureza psíquica que inclui al- autor, De rerum natura (especial-
gum elemento sensorial e algum ele- mente, VII, 2).
mento intelectual ou nocional. Foi- Segundo Descartes (Princ. Phil.,
se acentuando cada vez mais a ten- I, 32), há dois modos de “pensamen-
dência a entender a “percepção” co- tos” (cogitationes, num sentido am-
mo ““percepção sensorial”, diferen- plo desse termo) ou dois modos de
te de outras operações mentais con- “pensar” (cogitares, também num
sideradas não-sensoriais — ou, pe- sentido amplo do termo). “Uma
lo menos, não diretamente derivadas consiste — escreve Descartes — em
dos sentidos. Entretanto, mesmo perceber pelo entendimento, a outra
nesse caso, foi muito comum distin- em determinar-se pela vontade. As-
guir entre percepção e sensação, sim, sentir, imaginar e, inclusive,
stricto sensu. A distinção adotou, conceber coisas puramente inteligí-
com frequência, a seguinte forma: veis são apenas modos distintos de
pode haver sensação sem percepção, perceber; mas desejar, ter aversão,
mas não pode haver percepção sem assegurar, negar, duvidar, são mo-
sensação. dos diferentes de querer”. Spinoza
Na medida em que os problemas seguiu Descartes de perto nesse pon-
relativos à chamada ““origem do co- to (Princ. Phil. Cart., IL, prop. 15, es-
nhecimento” (ver CONHECIMEN- col.). Ambos seguiram Telésio, o
TO), à relação entre os sentidos e os qual, como Já vimos, apolou-se em
conceitos, ou noções, etc., foram dis- grande parte em Aristóteles, inclusi-
cutidos nas filosofias antiga e medie- ve ao entender, de um lado, que há
val, a questão da natureza da percep- uma distinção entre sensação e per-
ção, de como se percebe, do que se cepção (porventura “intelecção””*) e,
percebe, etc., é importante nessasfi- de outro, que a sensação se dá no
losofias. Contudo, limitamo-nos a “âmbito da percepção” — em Aris-
tratar do conceito de percepção na fi- tóteles, possivelmente mediante o
losofia moderna, porque nesta se lhe sentido comum, o qual não é um sen-
dedicou uma atenção muito especial. tido específico, mas unifica todos os
Isso é testemunhado pelo uso abun- sentidos. Entretanto, nem sempre fi-
dante em línguas modernas de termos ca claro o que Spinoza entende por
557
PERCEPÇÃO

“percepção”, perceptio, e pode ale- nos referimos antes. No Essay (II, ix,
Bgar-seque existe ambigúidade no seu 1), escreve que “como a percepção
uso desse termo. Em todo caso, em- é a primeira faculdade da mente
bora fale de percepção como incluin- exercida sobre as nossas idéias, é a
do tanto o que se apreende median- primeira e mais simples idéia que te-
te os sentidos quanto a chamada ex- mos da reflexão, e é chamada por al-
perientia vaga (De intellectus emen- guns pensamentos em geral”. Con-
datione, 7), Spinoza considera que a siderando o poder ou potência (po-
percepção, ao contrário do ““conhe- wer) da percepção, esta pode cha-
cimento "*; só apreende coisas singu- mar-se “entendimento”. “A percep-
lares (Etica, II, prop. XL, escol.). ção com que identificamos o ato de
Wolfson chama a atenção para o fa- entendimento é de três classes: (1)
to de Spinoza afirmar que a mens percepção de 1idélas em nossas men-
humana ““deve perceber tudo o que tes; (2) percepção da significação de
ocorre no corpo humano” (Erica, IL, signos; (3) percepção do acordo e de-
prop. XIV, demonst.), o que, segun- sacordo (““conexão” e “repugnân-
do o citado historiador, correspon- cia”) entre as nossas “idéias” .”* (Es-
de a “uma parte do terceiro elemen- say, II, xx1, 5) Hume dividiu todas
to da sensação, tal como foi estabe- as “percepções” em “impressões” e
lecido por Telésio, isto é, a percep- “idéias”: “Essas percepções que in-
ção, mediante a mente, de suas pró- gressam com a máxima violência po-
prias operações e movimentos”. dem ser chamadas impressões, e en-
Fiel à sua idéia de continuidade, tendo por esse nome todas as nossas
Leibnizinclina-se a pensar que a per- sensações, paixões e emoções, na me-
cepção não é uma operação que se l1- dida em que fazem sua primeira apa-
mita à alma humana. Há percepção, rição na alma. Por idéia quero dizer
assim como apetência, nas plantas as tênues imagens daquelas impres-
(Nouveaux essais, II, ix). Pode-se fa- sÕes ao pensar e ao raciocinar...”
lar de um “contínuo da percepção” (Treatise, 1, 1, 1). Em Enquiry, IL,
em Leibniz, que vai das percepções in- Hume fala das impressões como
sensíveis ou pequenas percepções, até “nossas percepções mais vívidas,
o mais elevado grau de percepção, ou quando ouvimos ou vemos, ou sen-
seja, a apercepção (ver). timos, ou amamos, ou odiamos, ou
Não é provável que Telésio tives- desejamos, ou queremos”. À noção
se influenciado os filósofos “empi- de percepção é fundamental no pen-
ristas” da forma que, como se viu, samento de Berkeley, na medida em
influenciou vários autores ““raciona- que, para ele, ser é “perceber ou ser
listas”, mas os problemas tratados percebido”. Uma noção fundamen-
em ambos os casos são semelhantes. tal dessa classe é quase sempre mui-
Locke toma a percepção num senti- to complexa, mas há na percepção
do muito mais amplo, freqiente- em Berkeley vários traços persisten-
mente análogo ao do cogitare a que tes. No que antes se chamou o Com-
PERCEPÇÃO 558

monplace Book e agora tem o título ral, “passivas”, ao passo que as per-
de Philosophical Commentaries, cepções são complexas e geralmente
Berkeley fala da “mente que perce- “ativas”. A distinção entre sensação
be”, na medida em que tem uma e percepção, por um lado, e percep-
“percepção passiva de idéias” (The ção e pensamento, por outro, foi
Works of George Berkeley, ed. por proposta por Kant. A sensação é, pa-
A. A. Luce e T. E. Jessup, [: “No- ra esse autor, como o conteúdo a que
tebook B”', 301); a mente é uma a percepção dá forma, mediante as
““colsa ativa”, isto é, “eu mesmo” intuições do espaço e do tempo. S1-
(1bid., 362 a); percepção é ““a mera multaneamente, as percepções, en-
recepção passiva ou o ter idéias” quanto percepções empíricas, cons-
(1bid., 378; 10; cf. também ““Note- tituem o material ordenado pelos
book A”, 673). Nos Principles of conceitos nos atos do juízo. Os con-
Human Knowledge, IL, Berkeley fa- ceitos sem percepções (intuições) são,
la das sensações ou idéias que só exis- segundo Kant, vazios. Pois bem, en-
tem no espírito que as “percebe”, e quanto Kant considerava que os con-
nos Three Dialogues between Hylas ceitos se impõem, por assim dizer,
and Philonous (Dial. 1) expressa a desde fora ao material das percep-
mesma noção. Embora não o indi- ções (sensíveis), Hegel e, em geral,
que de forma explícita, essa noção os idealistas propunham que há na
só parece ser entendida em relação percepção um elemento de universa-
com a mencionada atividade. Berke- lidade. Os autores cuja tendência em
ley destaca que o ser percebido não epistemologia foi realista sustenta-
é um ““ser inerte”, ao contrário da ram, de um modo geral, que a per-
“matéria” de que falam os “ateus”. cepção tem um caráter mediato. Os
Muitos autores entenderam por autores de propensão idealista des-
“percepção” apenas a percepção tacaram o caráter imediato da per-
sensorial ou percepção pelos órgãos cepção.
dos sentidos. Outros consideraram De um ponto de vista psicológico,
que a percepção inclui não só os cha- assim como epistemológico, foram
mados sentidos ““externos”, mas propostas várias teorias sobre a per-
também os “internos” — o querer cepção e, em especial, sobre o mo-
ou o amar, tanto quanto o ver ou o do como as realidades “externas” se
tocar. Como também se entendeu “apreendem” com as percepções. As
por ““sensação” a ““sensação exter- teorias mais importantes a esse res-
na”, ou esta em conjunto com a “in- peito foram: a teoria realista da per-
terna”, não é fácil estabelecer uma cepção, segundo a qual o conteúdo
distinção entre “sensação” e ““per- das percepções é constituído pelas
cepção”. Entretanto, essa foi uma próprias realidades: a teoria causal
distinção muito comum. Baseou-se da percepção, segundo a qual há
por vezes na idéia de que as sensa- uma diferença entre perfeição e
rea-
ções são operações simples e, em ge- lidade percebida, já que esta é causa
559 PERCEPÇÃO

daquela; e a teoria fenomenista, se- na unidade” (Du fondement de l'in-


gundo a qual o que se percebe são duction, 1871, ed. 1924, p. 94). Isso
fenômenos ou aspectos fenomênicos pressupõe, segundo Lachelier, duas
da realidade. Esta última teoria po- condições: (a) que em vez de disper-
de desembocar numa distinção entre sar-se no tempo e no espaço, a for-
fenômenos e realidades, mediante a ça e o movimento se juntem num cer-
introdução de noções como as dos to número de sistemas; (b) que o de-
dados dos sentidos ou dos chamados talhe desses sistemas se concentre
“sensíveis”, ou pode, ao contrário, ainda mais, refletindo-se numa pe-
terminar por uma afirmação de que quena quantidade de “focos” onde
não há distinção de princípio entre a consciência é estimulada por uma
“percepção” e ““percebido”. Há espécie de acumulação e de conden-
uma diferença básica entre os que sação. Por isso, a alma é definitiva,
sustentam que, quando alguém vê nesse caso, como a “unidade dinâ-
um objeto, vê a aparência de um ob- mica do aparelho perceptivo”, pela
Jeto (ou o objeto enquanto aparên- mesma razão pela qual a vida é de-
cia), mas não o objeto; e aqueles que finida como ““a unidade dinâmica do
mantêm que, quando alguém vê um organismo”.
objeto, o objeto se lhe aparece sem Em sua análise da percepção,
distinção nenhuma entre este e uma apresentada em Matiêre et mémoire,
“aparência”. Bergson não entende a percepção co-
Também se discutiu o problema mo apreensão de uma realidade por
da “interioridade” ou “exteriorida- um sujeito psíquico. A noção de per-
de” das percepções ou dos atos de cepção dá origem a duas concepções
percepção — problema semelhante, distintas. De um lado, a noção tra-
sob alguns aspectos, ao já apontado dicional de percepção não pode ex-
antes, quando se examinou se, e até plicar a “ordem da Natureza” para
que ponto, as percepções não são uma consciência “na qual todas as
apenas ““sensoriais”, mas também imagens dependem de uma imagem
incluem atos “internos”. Muitas teo- central, o nosso corpo, cujas varia-
rias “interioristas” da percepção vin- ções continuam”, a menos que se
à
culam os atos de percepção exis-
tência de alguma “força”. E o que
adote uma hipótese arbitrária: a de
uma harmonia preestabelecida entre
sucede com Lachelier quando afirma a realidade e o espírito. De outro, di-
que “o movimento desenvolvido na ta noção também não pode explicar
extensão não tem consciência de si a variabilidade e a seletividade das
mesmo, porque está, por assim di- imagens de um ponto de vista cien-
zer, inteiramente fora de si mesmo”, tífico, a menos que se adote outra hi-
mas que “o movimento concentra- pótese arbitrária: a de consciência
do na força é precisamente a percep- como um epifenômeno ou uma es-
ção tal como a definiu Leibniz, ou pécie de “fosforescência” da maté-
seja, a expressão da multiplicidade ria. As doutrinas antagônicas do
PERCEPÇÃO 560

idealismo e do realismo postulam vidualidade da memória. Transfor-


Igualmente a noção gratuita de que mar uma realidade objetiva numa
perceber é conhecer”. Bergson re-
pele essas concepções, não só em vir-
“imagem representada” é isolá-la de
todas as demais imagens, assim co-
tude dos argumentos apontados, mas mo de sua relação passada e futura
também por razões empíricas. O que com essas imagens. A representação
essas noções afirmam revela-se fal- é, pois, uma diminuição; a represen-
so, “com base num mero exame da tação de uma imagem é menos do
estrutura do sistema nervoso na sé- que a sua presença. Os seres vivos,
rie animal”. enquanto ““centros de indetermina-
Para Bergson, a percepção é, so- ção”, eliminam essas partes dos ob-
bretudo, ação e envolve “uma rela- jetos que não lhes interessam. Berg-
ção variável entre o ser vivo e a in- son compara a percepção a uma re-
fluência mais ou menos distante dos flexão incompleta, ou seja, a uma re-
objetos que influem sobre ele”. O cé- flexão em que não fica refletido o
rebro funciona à maneira de uma objeto inteiro, mas apenas seus con-
central telefônica, indicando ““certo tornos. O que fica descartado em
número de ações possíveis ao mes- nossa representação da matéria é O
mo tempo” ou organizando uma de- que não tem nenhum interesse para
las. O cérebro não produz imagens as nossas necessidades. Assim, a re-
mentais; sua função consiste em ““re- presentação consciente das coisas
ceber estímulos, proporcionar os torna-se possível pelo fato de que se
aparelhos motores e apresentar o refletem contra os centros de ação es-
maior número possível desses apare- pontânea. Em outras palavras, en-
lhos a um estímulo dado. Quanto quanto a consciência elimina, a per-
mais se desenvolve, mais distantes f1- cepção tudo absorve — ainda que
cam os pontos do espaço que o põem não o saiba. A percepção não é, pois,
em relação com mecanismos moto- “uma fotografia das coisas”.
res cada vez mais complexos”. A da
O problema percepção foi exa-
minado com detalhe
percepção, regulada pelo sistema por muitos dos
nervoso, está encaminhada para a ““neo-realistas” ingleses. Esses filó-
ação e não para o conhecimento pu- sofos não são propriamente realistas,
ro. Isso explica por que a crescente porquanto não admitem a tese antes
riqueza dessa percepção simboliza descrita do imediatismo na percep-
“o mais amplo raio de indetermina- ção, mas tampouco são idealistas,
ção deixado à escolha do ser vivo em porquanto não fazem intervir, como
sua conduta relativamente às col- termo imediato, nem o pensamento,
sas”. Se houvesse uma pura percep- nem a reflexão. A esse respeito, o
ção sem memória, encontrar-se-la to- neo-realismo desses pensadores
pa-
talmente encerrada num presente. rece-me, em muitos casos, com um
Seria uma ““percepção impessoal”, fenomenismo, pelo menos na medi-
sobre a qual não se imporia a indi- da em que atribuem considerável im-
561 PERCEPÇÃO

portância aos chamados sensa como tos realistas” na percepção, os quais


elementos entre o objeto e o ato de desembocam num claro representa-
percepção do objeto. Esses sensa fo- cionismo. Reagindo contra essa ten-
ram comparados às species, em par- dência, certos autores, como A. C.
ticular às species sensibles escolásti- Ewing (nasc. 1900: Idealism, A Cri-
cas, mas não há que extremar demais tical Survey, 1934), destacam a im-
a comparação. Característica dos possibilidade de perceber sem cate-
neo-realistas ingleses é a tendência a gorizar, de algtum modo, o perce-
considerar os atos de percepção e as bido.
percepções como ““acontecimentos”” O exame da percepção pelos neo-
(events), de tal sorte que, conforme realistas ingleses é uma espécie de
assinalamos antes, pode-se falar in- “fenomenologia da percepção”, dis-
clusive de um percipient event, ou tinta das especulações metafísicas e
“acontecimento percipiente”, no ca- também das teorias psicológicas e
so do ato da percepção. Entretanto, neurofisiológicas. O problema da
dentro de uma tendência comum, há percepção foi objeto de detalhado
diferenças nos modos como os neo- tratamento por parte dos fenomeno-
realistas ingleses (filósofos como C. logistas. Husserl falou de uma per-
D. Broad, T. Percy Nunn, H. A. Pr!- cepção interna enquanto ““percepção
chard, Norman Kemp Smith, John imanente” e de uma percepção ex-
Laird, H. H. Price) explicam a per- terna enquanto ““percepção transcen-
cepção. Uns, como T. Percy Nunn, dente”. A percepção imanente é a
inclinam-se para o que poderíamos das vivências intencionais, cujos ob-
chamar ““objetivismo realista”, na Jetos pertencem ao mesmo ““fluxo vl-
medida em que atribuem os citados vencial”', A percepção transcenden-
sensa aos próprios objetos. Outros, te é a das vivências intencionais, em
como H. H. Price, supõem que os que não tem lugar semelhante ““ime-
sensa, ou, melhor, os sense-data, diatismo””. A percepção é sensível
pertencem ao objeto, constituindo quando apreende um objeto real, e
famílias de sense data. Mas assina- categorial quando apreende um ob-
lam, ao mesmo tempo, que não se Jeto ideal. Segundo Husserl, na per-
pode dizer muita coisa sobre o ““pró- cepção sensivel “é apreendido dire-
prio objeto” e que, só pelas dificul- tamente, ou está presente in perso-
dades que apresenta uma teoria ““re- na, um objeto que se constitui de
presentacionista”' da percepção, é modo simples no ato da percepção”.
preferível ater-se a um certo fenome- Na categorial, em contrapartida,
nismo. constituem-se novas objetividades.
Alguns filósofos, como J. E. Tur- O problema da percepção é cen-
ner (nasc. 1875: A Theory of Direct tral no pensamento de Merleau-
Realism, and the Relation of Realism Ponty. Segundo o resumo que esse
to Idealism, 1925), chegam a subli- autor proporcionou de sua doutrina
nhar o que se pode chamar ““elemen- (Bulletin de la Société Française de
PERCEPÇÃO 562

Philosophie, 1947), as bases ontoló- um processo ou estado psicológico,


gicas da mesma podem reduzir-se a ou um processo simultaneamente
três pontos: (1) a percepção é uma corporal e psicológico. Ryle susten-
modalidade original da consciência. ta que, embora a óptica, a acústica,
O mundo percebido não é um mun- a neurofisiologia, etc., revelem im-
do de objetos como o que a ciência portantes conexões acerca do ver, do
concebe; no percebido há não só ouvir, etc., não é legítimo fundamen-
uma matéria, mas também uma for- tar-se em tais crenças para resolver
ma. O sujeito percipiente não é um os dilemas da percepção. Estes po-
“interpretador” ou “decifrador” de dem resolver-se, pelo contrário, me-
um mundo supostamente ““caótico” diante uma análise que elucide os
e “desordenado”. Toda percepção sentidos em que se usam expressões
se apresenta dentro de um horizon- como ““percebo””, “parece-me que”,
te e no mundo; (2) tal concepção da etc. Segundo Ryle, “perceber” é ba-
percepção não é somente psicológi- sicamente distinto de, por exemplo,
ca. Não se pode sobrepor ao mundo “correr”. “Correr”. não significa
percebido um mundo de idéias. A “ter corrido”, mas ““estar corren-
certeza da idéia não se fundamenta do”. Por outro lado, “perceber” é
na certeza da percepção, mas repou- um verbo do tipo de “encontrar”.
sa nela; (3) o mundo percebido é a Não se pode estar encontrando algo,
base sempre pressuposta por toda ra- já que encontrar é, de algum modo,
cionalidade, todo valor e toda exis- ter encontrado. Analogamente, não
tência. se pode estar percebendo algo. Não
As análises de Merleau-Ponty, em- há um processo de perceber; o que
bora não sejam, rigorosamente fa- há é levar a cabo ou “executar” um
lando, psicológicas, apólam-se em ato de percepção. Mas, ainda que
dados psicológicos, especialmente os não se apóie em considerações psi-
proporcionados pela psicologia ges- cológicas ou neurofisiológicas, a
taltista (Gestaltpsychologie), ou psi- análise linguística de Ryle tem con-
cologia da estrutura, que dedicou sequências psicológicas, ou, em to-
grande atenção ao estudo das con- do oO
caso, epistemológicas. Com
dições e formas das percepções. Um efeito, ao não considerar o perceber
ponto de vista distinto é o adotado como um processo, descartam-se
por vários filósofos analíticos, que, tanto os possíveis ““atos internos”
em lugar de atenderem a resultados como todo e qualquer “intermediá-
psicológicos, dedicam especial aten- rio” entre o ato de perceber e o ob-
ção à análise de expressões. Um jeto percebido. Também se descarta
exemplo a esse respeito é o de Gil- toda idéia de que a percepção é ““cau-
bert Ryle ao manifestar que é errô- sada”* por um objeto. Outro exem-
neo examinar a percepção filosofi- plo de análise da percepção é o de
camente, supondo-se que perceber autores como C. J. Ducasse, R. M.
é um processo ou estado corporal, ou Chisholm e Wilfrid Sellars, que de-
563 PERCEPÇÃO

fenderam a chamada ““teoria adver- “bases físicas” — neurofisiológicas


bial da percepção”. Segundo essa — da percepção (W. Grey Walter,
teoria, uma vez que toda percepção W. Pitts, E. D. Adrian, W. Kóhler
o é de uma pessoa percipiente, é ne- e outros). Auxiliados pelas técnicas
cessário analisar o modo como cabe eletroencefalográficas, os neurofisio-
dizer que alguém tem uma percep- logistas alcançaram resultados já
ção, mediante a tradução de toda ex- muito satisfatórios. Importante, em
pressão do tipo “A apresenta uma particular, foi a descoberta do cha-
aparência redonda a S” para uma mado ““ritmo alfa”* emitido pelo cór-
expressão em que fique claro que o tex cerebral. Esse ritmo é registrado
percipiente tem a percepção. O mo- quando um indivíduo se encontra em
do mais claro é, segundo aqueles au- estado de repouso e sofre uma ““per-
tores, o adverbial, de modo que a ex- turbação”* quando ocorrem percep-
pressão citada “A apresenta uma ções (especialmente visuais). O ritmo
aparência redonda a S”º traduz-se alfa opera à maneira de uma emis-
mediante ““$ percebe redondamente são contínua de ondas sobre a qual
a respeito de4º. Foi observado que se “modulam” outras emissões. Por
os autores que defendem a teoria 18sso, foi comparado ao tônus mus-
mencionada aspiram a eliminar to- cular permanente sobre o qual se
da pretensa realidade ““substantiva” modulam os diversos movimentos
e que a teoria adverbial da percep- musculares; e até se falou de um ““tô-
ção pode ser um aspecto de uma teo- nus cortical””. Como a emissão con-
ria mais geral, segundo a qual é ne- tínua cortical oferece analogias com
cessário descartar todo ato psíquico as emissões contínuas dos aparelhos
do qual se pode falar como se exis- emissores de radar e televisão, pensa-
tisse por si mesmo. Assim, por exem- se que, sem necessidade de chegar a
plo, “A vive em estado de tristeza” “reducionismos” precipitados entre
seria uma (ilegítima) substantivação os dois fenômenos, o estudo das se-
de vive tristemente”.
““A gundas pode projetar considerável
Em contraste com esse tipo de luz sobre a compreensão da primeira.
análise, encontramos os trabalhos Estão relacionadas em parte com
em que os problemas da percepção, os trabalhos anteriores as investiga-
sem perder necessariamente o inte- ções da percepção que fizeram uso
resse filosófico, são tratados em es- dos processos perceptivos, ou supos-
treita relação com Investigações psi- tamente perceptivos, que têm lugar
cológicas, fisiológicas, neurofisioló- em certas máquinas construídas pa-
gicas, ópticas, etc. Isso ocorreu den- ra tal efeito. A mais conhecida des-
tro de várias orientações psicológi- sas máquinas é o chamado ““Percep-
cas de interesse ou alcance filosófi- tron”', que consiste num dispositivo
co, entre as quais se destacaram o be- que permite efetuar seleções de estí-
haviorismo e o ““gestaltismo””. Tem- mulos (por exemplo, cores), com ba-
se trabalhado muito no problema das se em “percepções” anteriores regis-
PERFEIÇÃO, PERFEITO 564

tradas e armazenadas pela máquina. tampouco nada lhe sobra para ser o
As analogias entre as percepções hu- que é. Nesse sentido, diz-se que al-
manas e as “percepções” da máqui- go é perfeito quando é Justa e exata-
na foram reforçadas por meio de co- mente o que é. Essa idéia de perfei-
nexões relativamente “arbitrárias”, ção inclui a idéia de “limitação”,
semelhantes às conexões que existem “acabamento” e “finalidade pró-
no sistema nervoso e, sobretudo, por pria”, e é uma das idéias que ressur-
meio de conexões em que se dão ““re- gem constantemente no pensamen-
petições” e “redundâncias”. Ainda to grego. Foi dito, inclusive, que
é tema de debate se, neste caso, ha- “perfeito”, “terminado”, “clássi-
vemo-nos com autênticas ““percep- co” e “helênico” são diversos aspec-
ções”, ou se se trata unicamente de tos de um mesmo e único modo de
uma analogia entre dois sistemas, e ser, segundo o qual tudo o que não
não de uma igualdade de natureza é limitado e, por assim dizer, “fecha-
entre eles. Uma teoria completamen- do em si mesmo” é imperfeito.
te “fisicalista” da percepção no sen- Se o perfeito é o que acabamos de
tido apontado, isto é, baseada na dizer, será também o melhor em seu
idéia de que quaisquer percepções gênero, pois nada haverá que possa
sensíveis — e todas as formas da cha- superá-lo; toda mudança no perfeir-
mada ““consciência”* — que se en- to introduzirá nele alguma imper-
contram no homem podem ser pro- feição.
duzidas, em princípio, em máquinas Essas duas significações de ““per-
ou robôs, foi proposta por James T. feito”* foram destacadas por Aristó-
Culbertson (The Minds Robots: Sen- teles em sua análise dos sentidos de
se Data, Memory, Images and Beha- T€ Aetov (Met., à 16, 1021 b 12-1022
vior in Conscious Automata). a 2). À esses dois sentidos, Aristóte-
Também se fala, por vezes, de les acrescentou outro: o sentido que
“percepção extra-sensorial”* para de-
signar as percepções, ou supostas
tem ““perfeito”* quandose refere a al-
go que atingiu o seu fim, enquanto
percepções, que têm lugar indepen- fim louvável. Aristóteles também en-
dentemente dos quadros de referên- fatiza que ““perfeito”* usa-se, às ve-
cla psicológicos e neurofisiológicos zes, metaforicamente, para se refe-
normais. Observemos que, por ve- rir a algo que é mau, como quando
zes, incluíram-se entre as chamadas se diz “um perfeito ladrão”. Que
“percepções extra-sensoriais”* certos Aristóteles considere este último uso
tipos de percepção, especialmente como simplesmente metafórico já in-
aguda, induzida em geral por drogas. dica que em sua idéia de perfeição
e em todas as significações da mes-
PERFEIÇÃO, PERFEITO Diz-se ma está contida a noção de algo que
de algo que é perfeito quando está é bom per se. Com efeito, não deve-
“completado” e “acabado”, de tal ria, em princípio, haver qualquer in-
modo que não lhe falta nada, mas conventente em admitir que algo
565
PERFEIÇÃO, PERFEITO

mau, ou supostamente mau, é per- pria perfeição. Um exemplo disso es-


feito ainda que seja “mau”, já que tá numa das formas da prova onto-
mesmo neste caso é perfeito em seu lógica (ver ONTOLÓGICA, PRO-
gênero, o qual é um gênero da “mal- VA), em que ser (ou existência) e per-
dade”. Mas excluir o mau do perfei- feição são equiparados. A idéia de
to tem em Aristóteles, e no pensa- perfeição foi, além disso, estreita-
mento grego em geral, uma razão de mente relacionada com os chamados
ser: a de que se considera que o “princípio de ordem” e “princípio
“mau” é, de algum modo, algo de-
feituoso e, portanto, não pode ser
de plenitude””. Nada disso significa
que os termos ““perfeição” e ““per-
perfeito, como não o é tudo o que feito” tenham sido sempre entendi-
possua algum defeito ou em que falte dos do mesmo modo. Os escolásti-
algo. cos, por exemplo, tiveram o maior
Se o perfeito é algo “limitado”, cuidado em distinguir entre várias
então tudo o que for ilimitado será formas de perfeição. Em princípio,
imperfeito. Em virtude disso, foi dito a perfeição era equiparada à bonda-
que os gregos consideravam o infi- de (bonitas), na medida em que se
nito imperfeito, porquanto só o que chama ““perfeição”* qualquer bem
é “finito” pode estar “acabado”; in- possuído por algo. Posto que se tra-
diquemos aqui apenas que, na me- ta de um bem, trata-se também de
dida em que o infinito seja concebi- uma realidade ou atualidade, de mo-
do como o “inabrangível”º, parece do que o contrário de perfectus é de-
que o infinito deverá ser identifica- Jfectus; a imperfectio é, em suma,
do com o imperfeito. Mas o infinito uma privatio. O perfectus é conce-
pode ser concebido de outros modos bido também como completus. Mas
e num deles, pelo menos, pode ma- nem toda perfectio é a mesma. Dois
nifestar-se a idéia de perfeição; quan- tipos de perfeição são claramente
do o infinito é algo absoluto. De to- distintos entre si: a perfeição abso-
dos os modos, é certo que houve en- luta, segundo a qual o que é decla-
tre os gregos uma tendência a excluir rado perfeito o é de um modo com-
da perfeição a idéia de infinito, ex- pleto, e a perfeição relativa, que só
ceto quando se começou a sublinhar é perfeição a respeito de algo que é
que o infinito não é negativo, mas absolutamente perfeito ou perfeito
positivo, isto é, que o infinito não é em sl. SÓ Deus pode ser considera-
negação (de limites), mas a afirma- do perfeição absoluta; tudo o mais
ção (de ser). tem (se tiver) uma perfeição relat!-
A idéia de perfeição teve conside- va. Além disso, distinguiu-se entre
rável importância em toda a histó- diversas formas de perfeição de acor-
ria do pensamento ocidental, sobre- do com aquilo a cujo respeito se diz
tudo a partir do cristianismo, isto é, que algo é perfeito. A idéia de per-
quando Deus foi concebido como o feição foi equiparada à idéia de ato,
modelo da perfeição, se não a pró- de modo que a perfeição absoluta,
PERFEIÇÃO, PERFEITO 566

ou perfeição absolutamente pura, é (6) pode fazer de si mesmo um Ser


aquela que exclui qualquer potência, harmonioso e ordenado; (7) pode vi-
ou seja, qualquer imperfeição. Em ver à maneira de um ser humano
todo caso, a ordem do universo foi idealmente perfeito; (8) pode chegar
considerada, com frequência, uma a ser como Deus”.
“ordem da perfeição”, desde a per- Alguns desses modos de entender
feição absoluta e completa, que é a que o homem é perfectível estão su-
de Deus, até a Terra, que ocupa o lu- bordinados a algum outro; assim,
gar inferior na citada ordem. por exemplo, certos autores diriam
Se se entende a perfeição como que (5) e (6) são equivalentes a (2),
“perfeição humana”, pode-se sus- (3) ou (4). Consideremos, agora, a
tentar a distinção primária entre per- noção de perfeição a respeito do que
feição num determinado aspecto e algo é e do que algo vale. Por um la-
perfeição pura e simples. Em sua do, algo pode ser perfeito no que é.
obra sobre a perfectibilidade do ho- Por outro lado, algo pode ser per-
mem (cf. especialmente pp. 19 e 27), feito no que vale. Finalmente, algo
John Passmore indica que, para co- pode ser perfeito, ao mesmo tempo,
meçar, cabe falar de três diferentes no que é e no que vale.
“modos de perfeição”: a perfeição Cada um dos três significados an-
“técnica”, que ““consiste em exe- teriores pode ocorrer em cada um dos
cutar, com máxima eficácia, uma
tarefa determinada”; a perfeição
a
seguintes tipos de perfeição: perfei-
ção absoluta (absolute, per se) e a per-
“obedienciária””, que ““consiste em feição relativa (secundum quid). As-
obedecer aos mandatos de uma au- sim, haverá: (1) o absolutamente per-
toridade superior, tanto Deus como feito no que é; (2) o absolutamente
um membro da elite”; e a perfeição perfeito no que vale; (3) o absoluta-
“teleológica”, que “consiste em al- mente perfeito no que é e no que va-
cançar aquele fim no qual a própria le; (4) o relativamente perfeito no que
natureza encontra plena satisfação”. é; (5) orelativamente perfeito no que
Temos uma série de distinções mais vale; (6) o relativamente perfeito no
refinadas quando o citado autor pro- que é e no que vale.
põe oito modos de entender que o Cumpre observar que o relativa-
homem é perfectível, a saber: “(1) há mente perfeito, em qualquer dos três
alguma tarefa na qual todos e cada significados indicados (4), (5) e (6),
um dos homens podem aperfeiçoar- pode ser entendido, por sua vez, de
se tecnicamente; (2) o homem é ca- dois modos: como o perfeito em
paz de subordinar-se completamen- princípio, ou simpliciter, e como o
te à vontade de Deus; (3) pode alcan- perfeito do que há (ou o melhor do
çar o seu fim natural; (4) pode en- que há), que pode chamar-se ““sin-
contrar-se inteiramente livre de de- gelamente” perfeito. Essa distinção
feito moral; (5) pode fazer de si mes- parece-nos importante para tornar
mo um ser metafisicamente perfeito; possivel entender-se a perfeição em
567
PLURALISMO

relação com as possibilidades exis- do monismo e do dualismo, o que


tentes para realizá-la. Pode valer co- geralmente importa no pluralismo é
mo exemplo o seguinte: Aristóteles mais o tipo do que o número de rea-
considerou que a melhor e mais alta lidades. Entretanto, há casos em que
atividade humana é a contemplação; se afirma haver um número conside-
portanto, a contemplação é algo per- rável, talvez infinito, de realidades
feito, sendo um bem para todos os que são substancialmente do mesmo
homens, independentemente das cir- tipo e em que se indica tratar-se de
cunstâncias sociais, históricas, con- doutrinas pluralistas. É o que suce-
cretas, etc. Pois bem, essa perfeição de com o atomismo e com as teorias
o é, conforme indicamos antes, ““sin- monadolórgicas.
gelamente”', ou seja, no âmbito da O pluralismo pode ser metafísico
cidade-estado, tal como foi concebi- (ou ontológico) ou epistemológico.
da por Aristóteles. “Entre o que en- O pluralismo epistemológico é an-
tão havia”, a contemplação é o per- ti-reducionista, ao passo que o mo-
feito. Mas se “há outras coisas”, a nismo costuma ser reducionista. E
perfeição pode ser outra entre elas. possível manter um monismo onto-
Assim, é possível que, no âmbito do lógico em conjunto com um plura-
Estado moderno, haja outra idéia lismo epistemológico. Para tanto,
admissível do que é melhor, ou mais cumpre reconhecer que os tipos de
perfeito, para os homens; essa per- realidade e, em todo caso, as lingua-
feição seria, ao mesmo tempo, rela- gens mediante as quais se fala do que
tiva e “singela”, mas não deixaria de se supõe serem tipos de realidade,
ser perfeição. não são reciprocamente redutíveis,
mas que, subjacente na pluralidade
PLURALISMO A doutrina segun- de linguagem, existe um contínuo da
do a qual existe uma só realidade, ou realidade.
só um tipo de realidade, é chamada Do ponto de vista metafísico (ou
“monismo””. Toda doutrina segun- ontológico), fala-se de diversas espé-
do a qual há mais de uma realidade cies de pluralismo: “monopluralis-
ou mais de um tipo de realidade po- mo” (há uma pluralidade derealida-
de chamar-se ““pluralismo””. Não des, ou de tipos de realidade, inde-
obstante, como há um nome deter- pendentes, na medida em que cada
minado para as doutrinas segundo as um não necessita de outras, mas inter-
quais há dois tipos de realidade (ver relacionadas, na medida em que ca-
DUALISMO) e até mesmo um para da uma se acha em interação com ou-
as doutrinas segundo as quais há três tras); “pluralismo absoluto” (não há
tipos de realidade (““trialismo””), dá- nenhuma ligação ou interação entre
se o nome de pluralismo a toda e realidades); “pluralismo harmônico”
qualquer doutrina que afirme haver (cada realidade ou tipo de realidade
muitos, possivelmente infinitos, ti- é metafisicamente independente, mas
pos de realidade. Tal como no caso há um princípio de harmonia que
PLURALISMO 568

conjuga todas as realidades e todos mo toda tendência a negar que haja


os tipos de realidade entre si). Falou- relações internas leva ao pluralismo,
se também de ““pluralismo atomis- é possível considerar como pluralis-
ta”, de “pluralismo monadológico”, tas as doutrinas do tipo do atomis-
etc., de acordo com o que se supõe mo lógico.
serem os constituintes da realidade A mais conhecida das doutrinas fi-
declarada ““plural”. losóficas pluralistas contemporâneas
A mais conhecida série de doutri- é a de William James. O pluralismo
nas filosóficas pluralistas é a que se de James baseia-se na idéia de uma
desenvolveu entre os pré-socráticos, liberdade interna e constitui, por as-
especialmente enquanto aspiraram a sim dizer, uma monadologia orien-
resolver as dificuldades que eram tada para a realização de uma sínte-
apresentadas, por um lado, por Par- se entre a continuidade e a desconti-
mênides, por outro, por Heráclito. nuidade. Por esse motivo, embora
Na filosofia moderna e contempo- admitindo o ““caráter sublime do
rânea, desenvolveram-se várias for- monismo noético”, James acusa-o
mas de pluralismo como reação às de engendrar dificuldades insolúveis:
tendências monistas do idealismo não levar em conta a existência da
alemão e do materialismo de meados consciência finita, originar o proble-
do século XIX. Muitos filósofos que ma do mal, contradizer o caráter da
trataram de evitar as consequências realidade como algo perceptivamente
“deterministas” das doutrinas mo- experimentado e inclinar-se para o
nistas e que tampouco aderiam ao fatalismo. Em contrapartida, o plu-
idealismo de tipo fichteano elabora- ralismo supera, segundo William Ja-
ram doutrinas pluralistas. Exemplos mes, todas essas dificuldades e ofe-
de pluralismo são as doutrinas Teich- rece um determinado número de
muúlller, Lotze e Wundt. Em alguns vantagens, a saber: seu caráter mais
casos, o pluralismo limitava-se ao “crentífico””, sua maior concordân-
domínio psíquico; em outros, esten- cia com as possibilidades expressivas
dia-se a toda a realidade, consideran- — morais e dramáticas — da vida,
do-se que a afirmação da liberdade seu apoio aos fatos que mostrem al-
dos indivíduos humanos tinha de guma pluralidade, por mais insigni-
fundar-se numa esfera de entidades ficantes que esses sejam. A escolha
não relacionadas internamente. Re- entre o pluralismo e o monismo pa-
nouvier elaborou de maneira siste- rece, não obstante, ter de se resolver
mática uma doutrina pluralista de num dilema, já que o monismo ofe-
caráter monadológico, na qual se ad- rece, por outro lado, a vantagem de
mitiam princípios diversos de séries sua afinidade com a fé religiosa e o
“livres” de fenômenos. O pluralis- valor emocional radicado na concep-
mo esteve frequentemente ligado ao ção do mundo como um fato unitá-
personalismo, sobretudo aos aspec- rio. Assim, decidir-se pelo pluralis-
tos metafísicos do personalismo. Co- mo é, para James, acima de tudo, a
569 PÓS-ESTRUTURALISMO

consequência de sua vontade de sal- “o Saber”, identificado com ““o Po-


var a possibilidade de que haja ““no- der”, a trama no interior da qual, e
vidade no mundo”. só no interior da qual, acontece a his-
tória. Cronologicamente, pelo me-
POS-ESTRUTURALISMO Pode-se nos, também podem ser considera-
dar esse nome — neutro, cômodo e dos ““pós-estruturalistas”* vários au-
vago — à “fase” da filosofia fran- tores cujo pensamento não está des-
cesa sucessiva ao estruturalismo (ver) ligado do de Foucault, embora, em
e que a ele se vincula. face de certas críticas, seus fatores
Foucault foi considerado estrutu- entendam que de modo nenhum seu
ralista, embora ele próprio tenha re- pensamento é anti-revolucionário e
pelido essa designação. Ao mesmo ainda menos ““direitista”*. Desse pon-
tempo, parte do seu trabalho insere- to de vista, a obra dos autores de re-
se nos desenvolvimentos que ocorre- ferência é mais um desenvolvimen-
ram depois do florescimento do es- to da polêmica em torno do marxis-
truturalismo, pelo menos no sentido mo. Assim, destacou-se com fre-
de Lévy-Strauss. Há mais razões pa- quência que os resultados obtidos pe-
ra chamar de ““pós-estruturalistas”* la aplicação — ou suposta aplicação
autores como Jacques Derrida e Gi- — do marxismo em vários países, so-
les Deleuze, a respeito de quem, bretudo na União Soviética, não cor-
aliás, Foucault disse que ““este sécu- respondem ao que se esperava dele,
lo será “deleuziano'? ou não será”, quer do ponto de vista da aspiração
ainda que apenas por motivos ““ge- à liberdade, quer do ponto de vista
racionais”. Talvez fosse mais apro- da aspiração à igualdade, quer ain-
priado falar-se de ““desconstrucionis- da sob o prisma do bom funciona-
mo” no caso de Derrida e de “esqui- mento da economia. Tanto os mar-
zo-analitismo”* no caso de Deleuze. xistas não-ortodoxos quanto os au-
O peso das circunstâncias históri- tores tradicionalmente opostos ao
cas e, especificamente, políticas, ou marxismo criticaram tais resultados,
político-sociais, é importante no de- em particular as tendências totalitá-
senvolvimento do ““pós-estruturalis- rias e “campo-concentracionárias”.
mo”, como o foi (sobretudo no ca- Os pressupostos em que esses auto-
so de Althusser) para o do estrutu- res se apoiaram são, contudo, distin-
ralismo. Esse peso manifesta-se, às tos. Os marxistas não-ortodoxos exa-
vezes paradoxalmente, na recusa em minaram criticamente os modelos
considerar de modo explícito essas marxistas sem abandonar o marxis-
circunstâncias e em supor que há mo; pelo contrário, trataram de rein-
uma espécie de “racionalidade abso- terpretá-lo e, em algumas ocasiões,
luta” — ou de “irracionalidade ab- de radicalizá-lo. Alguns considera-
soluta”* —, que é a racionalidade, ou ram, porém, que os defeitos proce-
a irracionalidade, do que se chamou, dem do próprio marxismo, o qual
as vezes, “o Mestre”, outras vezes, tem de culminar necessariamente nos
POSTULADO 570

resultados criticados. Segundo esses Isto é, não evidentes por si mesmas.


autores, nenhuma forma de marxis- Assim, os postulados distinguem-se
mo leva em conta a realidade, por dos axiomas, mas também de certas
1SSO resvala
sempre para o totalita- proposições que se tomam como ba-
rismo. se de uma demonstração, mas não
Os autores a que estamos nos re- têm alcance universal. Nos Elemen-
ferindo são os chamados ““novos fi- tos de Euclides, a noção de postula-
lósofos”, les nouveaux philosophes. do recebeu uma formulação que v1-
Os mais citados são (por ordem al- gorou durante muitos séculos: o pos-
fabética): Jean-Marie Benoist (nasc. tulado é considerado, aí, uma pro-
1942: Marx est mort, 1970; La révo- posição de caráter fundamental pa-
lution structurale, 1975; Tyrannie du ra um sistema dedutivo que não é
logos, 1975; Pavane pour une Euro- evidente por si mesma (como o axio-
pe défunte, 1976), Jean-Paul Dollé ma) e não pode ser demonstrada (co-
(nasc. 1939: Le désir de révolution, mo o teorema). Exemplo de um pos-
1972; Votes d'accês au plaisir, 1974; tulado euclideano é: “postula-se que
Haine de la pensée, 1976), André de qualquer ponto a qualquer pon-
Glucksmann (nasc. 1937: Le discours to pode traçar-se uma reta”. Outro
de la guerre, 1967; Stratégie de la ré- exemplo é o famoso ““postulado das
volution, 1968; Les maitres-penseurs, paralelas” que durante muito tem-
1977), Bernard-Henri Lévy (nasc. po procurou-se, sem êxito, demons-
1949: La barbarie à visage humain, trar e cuja rejeição deu lugar às di-
1977), Philippe Nemo (nasc. 1949: versas geometrias não-euclideanas. O
L?ºhomme structural, 1975). significado original de “postulado”,
As idéias dos “novos filósofos” attnua é “petição” ou “requerimen-
foram combatidas por autores mar- to”* (do verbo atTeiv, “tTequerer””).
xistas, que os consideraram uma “Postula-se” é expresso em grego
“nova diversão” da direita, servin- mediante nmiodw, Oo
que significa
do de ajuda à “ideologia principal” propriamente ““que tenha sido reque-
(contra-revolucionária). Os “novos rido”* (e não simplesmente ““que se-
filósofos” replicaram que só preten- ja requerido”).
dem enfrentar a realidade sem ilu- Muitas são as discussões travadas
sões, especificamente sem essas ilu- em torno da noção de postulado. A
sões da ““cidade ideal”*, que nunca maioria dos autores considera hoje
se converterão em realidade. São, que não se pode manter a diferença
pois, pessimistas, embora não seja clássica entre axioma e postulado. O
injusto qualificar esse pessimismo que se chama “axioma” também po-
metodológico de ““realista”. de chamar-se ““postulado””. Basta
descartar a duvidosa expressão ““evi-
POSTULADO Aristóteles conside- dente por si mesmo” e ater-se à po-
rava que os postulados eram propo- sição de uma proposição dentro de
sições não universalmente admitidas, um sistema dedutivo: “postulados”
571 POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA

ou “axiomas” são os nomes que re- dem ser engendrados por meio de
cebem as proposições iniciais dentro processos iguais ou semelhantes aos
do sistema. necessários para a primeira. Por sua
Podemos, entretanto, distinguir vez, (b) pode ser: (1) invenção de cál-
entre “postulado” e “axioma”, se culos para gerar linguagens com a fi-
nos ativermos ao grau de generalida- nalidade de determinar os ramos da
de e aplicabilidade dos sistemas. As- matemática ou ciência; (2) invenção
sim, cabe chamar de ““postulados” e comparação de cálculos que não
as proposições iniciais numa deter- têm nenhuma relação particular com
minada ciência ou ramo da ciência nenhuma linguagem em seu uso em-
— por exemplo, postulados da fisi- pirico ou matemático.
ca óptica — e de “axiomas” as pro-
posições iniciais num sistema dedu- POSTULADOS DA RAZÃO PRÁ-
tivo não interpretado e aplicável a TICA Na Crítica da Razão Pura,
várias ciências. Kant observou que, caso existam leis
O método de postulação (método práticas absolutamente necessárias,
postulativo) é o empregado quando cumpre admitir-se que, se tais leis
se introduzem num sistema novas ex- pressupõem a existência de um ser
pressões que servem de termos pri- que seja a condição da possibilida-
mitivos. O método de postulação de de seu poder obrigatório, a exis-
distingue-se do método de constru- tência de dito ser deve ser postulada
ção (método construtivo), no qual as (K. r. V., A 634, B 662). Assim, a
novas expressões introduzidas no sis- existência de Deus resulta ser um
tema são definidas mediante termos postulado das leis práticas absoluta-
previamente inseridos. Tem havido mente necessárias, o que é distinto
discussões em torno da chamada de — e mesmo oposto a — susten-
“técnica postulativa”, por meio da tar que tais leis pressupõem a exis-
qual se erigem os sistemas postulati- tência de Deus. Na Crítica da Razão
vos (também chamados ““axiomáti- Prática, Kant trata com detalhe do
cos”). Segundo K. Britton (Mind, que chama ““postulados da razão
N.S., 50, 1941, 169 e ss.), podem prática” ou ““postulados da razão
distinguir-se na lógica formal os se- pura prática”. Observa, em primei-
guintes elementos: (a) uma lógica ro lugar, que esses postulados dife-
fundamental, ou seja, uma teoria da rem dos da matemática pura. Estes
dedução que trata da codificação dos têm certeza apodíctica, mas só para
princípios básicos de inferência de- o uso de uma razão prática. Não se
dutiva comuns a toda argumentação; trata, em nenhum caso, de uma cer-
(Db) uma técnica postulativa; (c)
uma teza teórica (K. p. V., ed. da Acade-
série de intentos destinados a mos- mia, V, 12). Kant define “postula-
trar que os princípios da lógica fun- do da razão pura prática” do seguin-
damental engendram os das matemá- te modo: “Uma proposição teórica,
ticas puras, ou que estes últimos po- não demonstrável, contudo, como
POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA 572

tal, mas que depende inseparavel- de uma razão puramente imparcial.


mente de uma lei prática incondicio- E ““isso pode ser feito na suposição
nalmente válida.” (ibid., V, 123). da existência de uma causa ajustada
A imortalidade da alma e Deus são a esse efeito, isto é, deve postular a
postulados da razão pura prática. existência de Deus como pertencen-
Uma vontade determinável pela lei do necessariamente à possibilidade
moral tem como objeto necessário do sumo bem” (op. cit., V, 124).
“a realização (Bewirkung) do sumo Os postulados da razão pura prá-
bem”. “Em semelhante vontade, a tica, escreve Kant, “procedem todos
adaptabilidade completa das inten- do princípio da moralidade, que não
ções à lei moral é a condição supre- é um postulado, mas uma lei me-
ma (oberste) do sumo (hóôchstes) diante a qual a razão imediatamen-
bem. Portanto, essa adaptabilidade te determina a vontade, vontade es-
deve ser possível como seu objeto, já ta que, por sua vez, está determina-
que se encontra contida no manda- da de tal modo que, enquanto von-
to que requer promovê-lo. Mas a tade pura, exige essas condições ne-
complexa adaptabilidade da vonta- cessárias para a obediência do seu
de é a santidade — uma perfeição da preceito. Esses postulados não são
qual nenhum ser racional é capaz, no dogmas teóricos, mas pressupostos
mundo sensivel, em nenhum mo- de alcance necessariamente prático,
mento do tempo. Entretanto, uma os quais, embora, a rigor, não am-
vez que é promovida como pratica- pliem o conhecimento especulativo,
mente necessária, só pode encontrar proporcionam, no entanto, às idéias
sua completa adaptabilidade num da razão especulativa em geral (por
progresso infinito. Segundo os prin- meio da sua relação com a prática),
cípios da razão prática, é necessário uma realidade objetiva e a justificam
supor tal progresso prático como ob- em função de conceitos cuja possi-
jeto real da nossa vontade” (ibid,, bilidade nem sequer poderiam atre-
V, 122). O progresso em questão, ver-se a afirmar de outro modo”
afirma Kant, só é possível se se pres- (op. cit., V, 133). Aos postulados, já
supõe uma existência e uma perso- citados, da imortalidade e da existên-
nalidade do próprio ser racional que cia de Deus soma-se o da liberdade
dure infinitamente (eternamente). Is- considerada positivamente, isto é,
so pressupõe a imortalidade da alma, como a causalidade de um ser na me-
daí ser esta um postulado da razão dida em que pertence ao mundo in-
pura prática. A mesma lei [moral] teligível. O postulado de imortalida-
leva-nos a afirmar que o sumo bem de deriva da exigência de duração
requer uma felicidade (que é a “con- adequada ao cumprimento perfeito
dição de um ser racional no mun- da lei moral. O postulado da existên-
do”) ajustada a essa moralidade. Is- cia de Deus deriva da exigência de
so tem de acontecer de um modo pu- pressuposição do sumo bem inde-
ramente desinteressado e em virtude pendente. O postulado da liberdade
573 PRAGMATISMO

(positiva) deriva da suposição neces- tos do entendimento ou categorias


sária de independência em relação ao (ver CATEGORIA) — e, assim,
mundo sensível e da capacidade de acentuar os aspectos pragmáticos, ou
determinar a vontade pela do mun- pragmatistas, da epistemologia kan-
do inteligível. tiana. Alguns autores falam, a esse
Ainda que haja um “salto” dara- respeito, não só de Kant e Peirce,
zão teórica para a prática em Kant, mas também de Kant e F. C. S.
como por vezes se afirma, esse salto Schiller. É o que acontece com Jo-
nunca é tão grande que apague a siah Royce, para quem o humanis-
conclusão estabelecida pela crítica da mo e o pragmatismo de Schiller são
razão pura (teórica). Nosso conhe- formas do que ele denominou ““idea-
cimento, sustenta Kant, estende-se, lismo empírico”, representado, se-
em virtude da razão pura prática, a gundo Royce, por Kant. Se nosso co-
uma realidade que era transcenden- nhecimento está limitado aos fenô-
te e inalcançável para a razão teóri!- menos e, por sua vez, a “conscliên-
ca. Mas essa extensão do nosso co- cia” desempenha um papel ativo e
nhecimento nunca é teórica; trata-se “fundamentante””, quer nas formas
sempre e tão-somente de um ““pon- do conhecer, quer no tocante aos
to de vista prático”. Não por serem seus “interesses”, haverá uma estrel-
postulados da razão pura prática, a ta relação entre a epistemologia kan-
natureza da alma, o mundo inteligí- tliana e o que depois se chamou
vel e Deus são conhecidos como são “pragmatismo” (cf. J. Royce, Lec-
“em si mesmos '/. Seus respectivos tures on Modern Idealism, 1919).
conceitos uniram-se num concelto Independentemente de suas ori-
prático do bem mais alto como ob- gens, dá-se o nome de “pragmatis-
e
jeto da nossa vontade, 18so foi fei-
to de um modo inteiramente a prio-
mo” a um movimento filosófico, ou
grupo de correntes filosóficas, que se
ri por razão pura. Não obstante, desenvolveu sobretudo nos Estados
“uniram-se tão-somente mediante a Unidos e na Inglaterra, mas com re-
lei moral e só relacionados com ela” percussão em outros países, ou que
(op. cit., V, 133). nestes se manifestou de forma inde-
pendente com outros nomes. Assim,
PRAGMATISMO A distinção kKkan- por exemplo, certos movimentos
tiana entre “constitutivo” e ““regu- anti-intelectualistas no século XX
lativo”* foi interpretada, por vezes, (Bergson, Blondel, Spengler, etc.) fo-
como possível origem da tendência ram considerados pragmatistas, ou,
que viria a receber o nome de ““prag- pelo menos, parcialmente pragmatis-
matismo”'. A influência de Kant so- tas. Algumas opiniões de Simmel
bre Peirce contribuiu para essa inter- têm um ar “muito pragmatista””.
pretação. Em todo caso, é possível Também foram consideradas prag-
destacar a função reguladora de cer- matistas certas tendências dentro do
tos conceitos — não só dos conceil- pensamento de Nietzsche — por
PRAGMATISMO 574

exemplo, suas idéias sobre ““a utili- niões semelhantes. A rigor, e para
dade e o prejuízo da história para a não destacar uma única figura, pode-
vida” e sua concepção da verdade se. dizer que o pragmatismo norte-
como equivalente ao que é útil para americano surgiu no seio do ““Me-
a espécie e a conservação da espécie. taphysical Club”* de Boston (1872-
Entretanto, convém reservar o no- 1874), ao qual pertenciam, entre ou-
me “pragmatismo” para caracteri- tros, Chauncey Wright, F. E. Abbot
zar ou identificar as correntes filo- (1836-1903), Peirce e James. Não se
sóficas a que nos referimos no iní- deve desdenhar nessas origens uma
cio e, sobretudo, certas correntes fi1- certa influência de A. Bain, o qual
losóficas nos Estados Unidos e na In- já definira a crença como ““aquilo so-
glaterra. Podem incluir-se entre as bre o que o homem está preparado
tendências explicitamente pragmatis- para agir” — definição esta de que,
tas o chamado ““pragmatismo italia- segundo Peirce, o pragmatismo é um
no”, defendido por autores como “corolário” (cf. Peirce, “The Fixa-
Mario Calderoni (1879-1914: 7l prag- tion of Belief””, publicado em no-
matismo [em colaboração com Gio- vembro de 1877, antes do artigo no
vanni Vailati], 1920, ed. G. Papini. Popular Science Monthly a que nos
— Scritti, 2 vols., 1924 [incomple- referimos infra). Aos supracitados
tos]), Giovanni Vailati e, em sua pri- pensadores cumpre acrescentar ain-
meira época, o escritor Giovanni Pa- da: John Fiske (1842-1891: Outlines
pini (1881-1956), todos eles colabo- of Cosmic Philosophy, 1874. —
radores da revista Leonardo (1903 a Through Nature to God, 1899) e Ol1-
1907), para a qual também colabo- ver Wendell Holmes (1809-1894). Os
raram Peirce — a quem principal- propósitos desses pensadores foram
mente seguiam os pragmatistas 1ta- esclarecidos por Peirce, que formu-
lianos — James e F. C. S. Schiller. lou em seu artigo “How to Make
Mas o pragmatismo italiano (de que Our Ideas Clear” (Popular Science
se ocupa Ugo Spirito) não teve a am- Monthly, 12 [1878], 286-302; em
plitude nem a influência do pragma- Collected Papers, 5:538-40) a chama-
tismo saxão ou anglo-americano. da “máxima pragmática” (pragma-
segundo Edward H. Madeen, o tic maxim: C. P., 5:402), como re-
pragmatismo anglo-americano, ou, sumo das. afirmações de que “toda
mais especificamente norte-america- função do pensamento é produzir
no, foi antecipado por Chauncey hábito de ação” e de que ““o que sig-
Wright, especialmente a propósito de nifica uma coisa é simplesmente os
sua crítica da filosofia de Spencer e hábitos que ela envolve”. Essa má-
com base numa epistemologia empi- xima diz: “Concebemos o objeto de
rista e numa ética utilitarista. Mas, nossas concepções considerando os
na época em que Wright desenvol- efeitos concebíveis como capazes de
via doutrinas de caráter pragmatis- alcance prático. Assim, pois, nossa
ta, começavam a manifestar-se opil- concepção desses efeitos equivale ao
575 PRAGMATISMO

conjunto de nossa concepção do ob- tativas de dar uma definição sufi-


Jeto.”* Entretanto, Peirce propôs ul- ciente ou pelo menos adequada de
teriormente o nome de ““pragmaticis- “pragmatismo” fracassaram em vir-
mo” (pragmaticism) para a sua dou- tude da multiplicidade de tendências
trina, com o propósito de opô-lo às acobertadas sob esse nome. Parece
deformações que, em seu entender, mais apropriado distinguir entre vá-
lhe sucederam e, em particular, pa- rias formas de pragmatismo ou, co-
ra diferenciá-lo do pragmatismo de mo fez Arthur O. Lovejoy, entre vá-
William James, que é menos uma de- rios “pragmatismos”'. Segundo Lo-
formação do que uma transposição vejoy, embora a palavra “pragma-
para o campo ético do que tinha si- tismo”* aludisse originariamente a
do primitivamente pensado num sen- uma teoria sobre o significado das
tido cientifico-metodológico puro e proposições, sua ambiguidade resol-
simples. Peirce distingue o seu prag- veu-se rapidamente em duas tendên-
matismo do pragmatismo defendido cias: a primeira afirma que o ““sig-
por F. C. S. Schiller e, ainda mais, nificado de uma proposição consis-
do pragmatismo que ““começa a apa- te nas futuras consequências de ex-
recer nas revistas literárias”, indican- periências que (direta ou indireta-
do que há pelo menos certa vanta- mente) prediz que vão ocorrer, sem
gem na concepção original da dou- que importe que se creia ou não nis-
trina que não se encontra nas acep- so”; a segunda sustenta que ““o sig-
ções dos seguidores: a de que se re- nificado de uma proposição consis-
laciona mais facilmente com uma te nas consequências futuras de se
prova crítica de sua verdade. Pois o acreditar nela”. A primeira dessas
pragmatismo é menos uma doutrina acepções deu origem a uma forma de
que expressa conceitualmente o que pragmatismo que dizia respeito à na-
o homem concreto deseja e postula tureza da verdade e afirmava que “a
— ao modo de F. C. S. Schiller —, verdade de uma proposição é idên-
do que a expressão de uma teoria que tica à ocorrência das séries de expe-
permite outorgar significação às úni- riências que ela prediz, e só se pode
cas proposições que podem ter sen- dizer que é conhecida quando se
tido. completam tais séries”. Dessas acep-
O chamado ““pragmatismo anglo- ções derivaram três formas de prag-
norte-americano” inclui não só F. C. matismo que Lovejoy enumera logi-
S. Schiller, William James e Peirce, camente do seguinte modo: ““7T. Teo-
mas também John Dewey e George rias pragmatistas da significação: (1)
Herbert Mead. Ocasionalmente, não o “significado? de qualquer juízo
se usou ou foi usado com modera- consIiste inteiramente nas futuras
ção o termo “pragmatismo”, falan- consequências por ele preditas, quer
do-se a maioria das vezes de ““instru- se acredite nele ou não; (2) o signifi-
mentalismo”, “experimentalismo” e cado de qualquer Juízo consiste nas
até “humanismo”. Todas as ten- consequências futuras de se acredi-
PRAGMATISMO 576

tar nele, eosignificado de qualquer da vontade; não há, portanto, ver-


idéia ou Juízo consiste sempre, em dades “necessárias'; (10) há algumas
parte, na apreensão da relação entre verdades necessárias, mas estas não
algum objeto e um propósito cons- são muitas nem praticamente ade-
ciente. IT. Pragmatismo como teoria quadas, sendo necessário e legítimo
epistemologicamente não-funcional, recorrer, mais além delas, aos pos-
referente à “natureza? da verdade: (3) tulados; (11) entre os postulados que
a verdade de um juízo “consiste' na é legítimo tomar como equivalentes
completa realização da experiência da verdade, os que ajudam as ativi-
(ou séries de experiências) anterior- dades e enriquecem o conteúdo da
mente indicadas por esse juízo; as vida moral, estética e religiosa, ocu-
proposições não são, mas chegam a pam um lugar coordenado com
ser verdadeiras. III. Teorias pragma- aqueles que pressupõem o sentido
tistas do critério de validade de um comum e a ciência física como base
Juizo: (4) são verdadeiras as propo- das atividades da vida física. IV.
sições gerais que viram realizadas na Pragmatismo como teoria ontológi-
experiência passada as predições im- ca: (12) como o temporal é uma ca-
plicadas, não havendo outro critério racterística fundamental da realida-
da verdade de um juízo; (5) são ver- de, os processos da consciência têm
dadeiras as proposições gerais que nesse devir sua participação essencial
mostraram, no passado, serem bio- e criadora. O futuro é estritamente
logicamente úteis a quem viveu de não-real e seu caráter parcialmente
acordo com elas; (6) toda apreensão indeterminado, dependendo de mo-
da verdade é uma espécie de “satis- vimentos da consciência cuja natu-
fação', pois o verdadeiro Juízo cor- reza e direção só podem ser conhe-
responde a alguma necessidade, sen- cidas nos momentos em que se tor-
do “toda transição da dúvida para a nam reais na experiência. (““The
convicção a passagem de um estado Thirteen Pragmatisms”', The Jour-
de pelo menos insatisfação parcial a nal of Philosophy, Psychology and
um estado de relativa satisfação e Scientific Method [atualmente, The
harmonia; (7) “o critério de verdade Journal of Philosophy], 5 [1908],
de um juízo é a sua satisfatoriedade 5-12, 29-39, reimpr. na obra de Lo-
como tal, sendo a satisfação pluri- vejoy: The Thirteen Pragmatisms,
dimensional'; (8) “o critério de ver- and Other Essays, 1963, pp. 1-29).
dade de um juízo reside no grau em As diferentes formas de pragmatis-
que corresponde às “exigências” teó- mo analisadas por Lovejoy englobam
ricas da nossa natureza; (9) “o úni- uma quantidade considerável de ten-
co critério de verdade de um juizo é dências pragmatistas. Tomando o
sua utilidade prática como postula- pragmatismo num sentido muito am-
do, não havendo mais verdade geral plo, há formas do mesmo sobre as
senão a postulada em consequência quais Lovejoy não fala ou às quais
de alguma determinação motivada apenas alude. Além do pragmatismo
577 PRÁXIS

clássico — ou dos pragmatismos clás- quando se orienta para a realização


sICOSs — de
autores como C. S. Peir- de algo que transcende o agente, €
ce, William James e G. H. Mead, po- “interior”, quando tem por final!-
dem ser mencionadas as seguintes for- dade o próprio agente. O termo
mas ou aspectos de uma inclinação “práxis” também pode designar o
pragmatista bastante geral: conjunto das ações realizadas pelo
(1) o já mencionado instrumenta- homem. É nesse sentido que Ploti-
lismo de John Dewey; no fala de práxis, a qual, em seu en-
(2) o “biologismo”, enquanto “bio- tender, é uma diminuição ou enfra-
logismo epistemológico”, ou tenta- quecimento da contemplação (Enn.,
tiva de interpretação dos processos III, viil, 5). Assim, a práxis contra-
cognoscitivos em termos de ativida- põe-se à ““teoria””.
de e, sobretudo, “utilidade” bioló- Para muitos dos sentidos de ““prá-
gIcCa; xis” usa-se o vocábulo ““prática””. E
(3) o postulado da economia do hoje usual reservar o nome de ““prá-
pensamento no sentido, entre outros, xis” para caracterizar um dos ele-
de Ernst Mach; mentos fundamentais do marxismo
(4) alguns aspectos da chamada (ver), especialmente em algumas de
“filosofia da Imanência”, em auto- suas tendências (como, por exemplo,
res como Schuppe e Schubert-Sol- em Georg Lukács). O marxismo foi
dern; apresentado, inclusive, como uma
(5) o ficcionalismo de Hans Vair- “filosofia da práxis” (A. Gramsci).
hinger; Com efeito, no marxismo, a chama-
(6) Oo
operacionalismo; da “práxis humana” constitui o fun-
(7) o pragmatismo conceptualista damento de toda ““teorização” pos-
de C. IL. Lewis; sível. Isso não equivale a subordinar
(8) os trabalhos semióticos de o teórico ao prático, no sentido ha-
Charles Morris; bitual ou mais comum desta última
(9) o chamado ““holismo pragmãá- palavra; a rigor, à práxis é, no mar-
tico” de Quine e os aspectos prag- xiIsmo, a união da teoria com a prá-
matistas da “tese de Duhem-Quine”. tica.
Entre os filósofos contemporâneos
PRÁXIS Os gregos chamavam roã- que usaram o termo ““práxis”* como
&vis (práxis) a uma tarefa, transação termo fundamental figura, além de
ou negócio, ou seja, à ação de levar muitos marxistas, Jean-Paul Sartre.
a cabo algo, modoow (infinitivo, O primeiro volume da Crítica da ra-
Toaooerv). O termo toãéis tam- zão dialética contém uma ““teoria
bém foi usado para designar a ação dos conjuntos práticos”. Sartre to-
moral. Num dos sentidos de ““práti- ma a práxis no sentido de Marx e tra-
ca”, a práxis designa a atividade ta de descobrir na práxis ““a racio-
prática, em contraste com a teóri- nalidade dialética”. A práxis não é,
ca. A práxis pode ser ““exterior”, pois, para Sartre, um conjunto de
PRAZER 578

atividades (individuais) regidas pela coisas podem causar prazer, embo-


razão dialética como uma razão ““ex- ra não seja uma sensação de prazer
terior”* à práxis. Tampouco é a ma- Strictu sensu, como ocorre no caso
nifestação da razão dialética. A prá- de uma conversa com um bom ami-
x1s contém, segundo Sartre, sua pró- go, da satisfação de um dever cum-
pria razão e esta é justamente uma prido, etc.
razão dialética (tipos de) (ver). À Concomitantemente, o conceito de
práxis manifesta, diz Sartre, uma sé- dor também foi tomado num senti-
rie de metamorfoses, entre as quais do muito geral, incluindo-se no con-
se assinala o perder-se a fim de ceito a sensação que se experimenta
converter-se em mera ““práxis-pro- quando se sofre fisicamente, quando
cesso”. De um modo que lembra o se perde uma pessoa amada, etc.
uso do conceito de “compreensão” Tomados nesses sentidos gené-
(Verstehen) por Heidegger, se bem ricos, muitos debates aconteceram
que com um propósito muito diver- acerca dos conceitos de prazer e de
so, Sartre chega a declarar que ““a dor. Por exemplo, sustentou-se que
compreensão não é outra coisa senão o prazer é o contrário da dor, de mo-
a translucidação da práxis para si do que se sentimos um prazer não
mesma, quer produza, ao constituir- podemos sentir uma dor, e vice-
se, as suas próprias luzes, quer se en- versa. Também se afirmou que é
contre na práxis do outro” (Critique possível sentir prazer e dor ao mes-
de la raison dialectique, I, 1960, p. mo tempo, como sucede em certas s1-
160). Sartre considera o que chama tuações supostamente anormais e
de “práxis individual” como uma to- “mórbidas”, nas quais se sente pra-
talização ““que transforma pratica- zer ao sentir dor, cujo exemplo mais
mente o ambiente numa totalidade” citado é o masoquismo. Alguns dis-
(ibid., p. 170). O “prático-inerte” seram que sentir prazer e dor ao mes-
não é um fundamento da práxis, mas mo tempo significa simplesmente
o contrário, ou seja, o resultado da sentir prazer por uma coisa e dor por
totalização da própria práxis. outra coisa muito distante, de mo-
do que o prazer é certa sensação a
PRAZER Fo! bastante comum entre determinado respeito, que exclui a
os filósofos tomar o conceito de pra- dor a esse mesmo respeito. Por
zer num sentido muito genérico, que exemplo, se sinto prazer escrevendo
engloba, ou supõe-se que engloba, um “Dicionário de Filosofia”, não
todas as classes de prazeres e de sen- posso sentir dor ao escrevê-lo, em-
timentos de prazer. Assim, conside- bora possa senti-la por outras razões,
rou-se que certas coisas podem cau- como o fato de escrevê-lo me dar, in-
Sar prazer porque causam sensações clusive literalmente, muitas dores de
prazerosas, agradáveis, como ocor- cabeça.
re com o sabor de um bom vinho. Num nível semelhante de genera-
Também se considerou que outras lidade foram feitas afirmações de ca-
579 PRAZER

ráter antropológico ou ético, como mando que nem sempre é fácil dis-
as de que o homem persegue, por na- tinguir entre esses dois tipos de pra-
tureza, o prazer e evita a dor, ou que zer; que o prazer corporal, pelo me-
o objetivo do ser humano é aumen- nos nos organismos biológicos rela-
tar ao máximo o prazer e reduzir ao tivamente desenvolvidos, pressupõe
mínimo a dor. Este último objetivo um ““sentimento”* desse prazer, e esse
pode ser entendido de um modo sentiniento é psíquico e não físico;
principalmente subjetivo, caso em por outro lado, não há prazer pura-
que temos uma das formas do hedo- mente psíquico ou mental no senti-
nismo, ou de um modo que inclua do de ser completamente indepen-
todos os indivíduos de uma comuni- dente dos estados do organismo. Al-
dade, caso em que temos o utilita- guns sustentaram que só há prazer,
rismo. ou dor, quando há consciência de-
O nível de generalidade até agora les, mas não é claro o que se enten-
referido quase nunca fo! satisfatório. de por “consciência de”. Se se res-
Em vista disso, proporcionaram-se tringe demasiado o sentido dessa ex-
várias definições de ““prazer” que pressão, chega-se à conclusão (erra-
restringiram o significado desse ter- da) de que os animais não podem
mo. Por exemplo, o prazer consiste sentir prazer nem dor.
na satisfação de necessidades; con- Certas doutrinas morais, especifi-
siste na ausência de mal-estar, sen- camente o hedonismo (ver) e o util1-
do essa ausência de mal-estar um tarismo (ver), enfatizaram que o pra-
bem-estar; consiste numa espécie de zer de que falam tão assiduamente é
euforia, do corpo ou da mente, ou um prazer “moderado”, ou que, em
de ambos, etc. Numerosas objeções todo caso, cumpre ““calcular” o al-
foram apresentadas contra essas de- cance e as possíveis conseqgiiências do
finições e outras similares: podem- prazer, de modo que se possa saber
se satisfazer necessidades sem que se se um determinado prazer não vai
sinta prazer; não é legítimo equipa- produzir dor. Caso produza, descar-
rar “prazer” a “bem-estar”, “satis- ta-se semelhante prazer a fim de pro-
fação”', “alegria”, etc., porque ca- curar outro cujas consequências se-
da um desses termos tem um conjun- Jam o menos dolorosas possível.
to de usos próprios não redutíveis, Num artigo sobre a noção de pra-
de um modo estrito, aos outros. zer, Gilbert Ryle (com W. B. Gail-
Também se indicou que a noção de lie, “Pleasure” em Proceedings of
prazer torna-se menos vaga quando Aristotelian Society, supl. do vol.
se especificam os tipos de prazer. XXXVI, 1954, 135-146, 147-164,
Dois desses tipos têm sido mencio- reimpr. em Dilemas, 1954, pp. 54-67)
nados com frequência: o prazer cor- advertiu contra o que considera duas
poral e o prazer psíquico ou mental, falsas concepções. Uma delas consis-
ou seja, o prazer físico e o prazer es- te em supor que, somado ao compra-
piritual. Respondeu-se a isso afir- zer-se com (ou desfrutar de) algo, há
PREDICADO 580

um prazer que se sobrepõe a esse te desnecessário. Continua sendo útil


comprazer-se (ou desfrute). O pra- para caracterizar certo tipo de expe-
zer, disse Ryle, expressa sempre al- riências, entre as quais sobressaem as
gum ato do tipo que outros filóso- de agrado. É bem possível que o con-
fos chamam ““intencional””. “Sentir ceito oposto ao de prazer não seja,
prazer” (“desfrutar”) é, para esses, como tradicionalmente se conside-
um verbo transitivo. Ryle indica que rou, o de dor, mas o de desagrado.
houve três modos de entender o con- É curioso, em todo caso, que, en-
ceito de prazer e que em cada um de- quanto alguns filósofos se empenha-
les se cometeu algum tipo de falácia ram em explicar e até em justificar
categorial. Um consistiu em colocar por que existe a dor — uma das es-
os conceitos de gostar, desfrutar (e, pécies do mal (ver) — no mundo,
correlativamente, não gostar, não não parece necessário encontrar uma
desfrutar) como se pertencessem à justificação para os motivos pelos
mesma categoria de ter uma dor. quais há prazer — quando há. Seja
Mas é possível sentir uma dor, e ex- como for, parece ser aceito como
perimentar prazer em senti-la. Outro ponto pacífico que o prazer const1-
consistiu numa concepção ““mecâni- tui algo digno de ser perseguido.
ca” do prazer e da dor (ou dos ver-
bos que expressam o experimentar PREDICADO Na lógica qualifica-
prazer ou o sentir dor, como ““gozar da de “clássica”? ou “tradicional”,
de”, “sofrer”, etc.) como se se tra- o predicado (usualmente representa-
tasse de acontecimentos que funcio- do por “P”** no esquema “S é P”)
nam como causas e efeitos de outros é o nome do predicado.
acontecimentos. Mas desfrutar de al- Na lógica atual, não se considera
go (experimentar prazer) não cons- como nome do predicado o que se
titui um processo, como se verifica segue a “é” no esquema tradicional
quando consideramos que, enquan- “S é P”. Nesse esquema, a lógica
to um processo pode ser rápido ou atual considera que “S” é o nome
lento, um prazer não pode sê-lo. Um do sujeito e “é P”* o nome do pre-
terceiro modo consistiu em equipa- dicado. Em geral, consideram-se no-
rar prazer e dor a algum tipo de mes de predicados todos os que se
“paixão” análoga ao terror, ao des- usam para enunciar algo a respeito
gosto — e, poderíamos acrescentar, de um sujeito, sejam propriedades
à euforia. Mas, embora haja coisas
ou relações. Consideremos os seguin-
como ““êxtase”, “arroubo”, ““exal- tes exemplos:
tação”, etc., elas não são compará-
vels aos ““prazeres”. Cecilia vai à missa uma vez
Não parece fácil saber a que ““ca- a cada dez anos (1)
tegoria” pertence o conceito de pra- Wamba XII foi imperador
zer. Por outro lado, isso não faz com da Tanzânia - O)
que esse conceito se torne totalmen- O tonel está debaixo da mesa (3)
561 PRESCRIÇÃO

Os chimpanzés são mais cional de primeira ordem” e ““cál-


inteligentes do que as culo funcional de segunda ordem”,
centopélas (4) respectivamente.
Lola é boa (5) Foi discutido o problema do que
O carteiro entregou ao designam, supondo-se que designem
vizinho um convite para alguma coisa, as letras-predicados,
o baile (6) ou seja, o problema dos designata de
As expressões ““vai à missa uma predicados. Esse é o problema do
vez a cada dez anos”, “foi impera- status ontológico dos predicados.
dor da Tanzânia”, “está debaixo da Formular esse problema equivale a
mesa”, “são mais inteligentes do que enfrentar a questão dos universais.
as centopéias”, “é boa” e “entregou Por vezes, distingue-se entre pre-
ao vizinho um convite para o baile” dicado e atributo, considerando-se o
são nomes de predicados que corres- primeiro como um traço que não
pondem, respectivamente, a (1), O), pertence essencial e constitutivamen-
(3), 4), 5) e (O). te ao sujeito, na medida em que o se-
O esquema usado em lógica para gundo é considerado como expressão
o predicado é habitualmente “Fx”, de um traço que pertence essencial
onde “PF” simboliza o nome do pre- e constitutivamente ao sujeito. Se se
dicado e é denominada ““letra-predi- adota essa terminologia, o que os es-
cado”. Outras letras usadas como le- sencialistas chamam ““propriedades
tras-predicados nos esquemas de essenciais” equivale aos atributos.
enunciados predicativos são “G”, Outras vezes, distingue-se entre pre-
“AT, PF”, “GG”, “ET, RT”, dicado e atributo, estimando-se que
GM e CEO, etc. o primeiro é um termo específico e
Fala-se de predicados monádicos, o segundo, um termo genérico.
diádicos, triádicos e, de um modo ge- Enquanto ““predicado” é o termo
ral, poliádicos, segundo afetem a que se usa normalmente em lógica,
um, dois, três ou mais argumentos. “atributo” e “propriedade” têm
Na lógica de predicados procede- amiúde conotações não estritamen-
se à quantificação. A lógica na qual te lógicas. E comum o uso gramati-
se quantificam “sujeitos” — os x, cal de “atributo” e o uso ontológi-
y, etc., em Fx, Gx, Hx, Fxy, Gxy, co de “propriedade”.
Hxy, etc. — é a lógica quantifica-
cional elementar ou lógica de predi- PRESCRIÇÃO Numa prescrição
cados de primeira ordem. A lógica ordena-se, preceitua-se ou manda-se
na qual se quantificam os predica- algo. Assim, “deve-se dizer sempre
dos é a lógica quantificacional su- a verdade”, ““a audiência deve ser
perior ou lógica de segunda ordem. solicitada em folhas assinadas pelo
Quando se fala de sistemas logísti- requerente”, “só atravessar a rua
cos, Isto é, de cálculos lógicos, em- nos locais sinalizados”, “há que lu-
pregam-se os nomes ““cálculo fun- tar para acelerar o processo de liber-
PRESCRIÇÃO 5682

tação das classes oprimidas”, ““de- das as prescrições são unicamente


ve-se desapertar à porca com uma instruções; (2) além de serem instru-
chave inglesa”, “adicione-se 10 mi- ções, são descrições do modo como
ligramas de ácido pantotênico para se levam a cabo as instruções, se se
cada 20 miligramas de niacinami- quiser atingir um fim determinado,
da”, são exemplos de expressões de modo que as prescrições são re-
prescritivas, ou prescrições. dutíveis a descrições.
É óbvio que o que cabe entender Os que se inclinam para a afirma-
por “prescrição” é tão variado, que ção (2) são partidários do chamado
convém, em cada caso, especificar o “descritivismo”, pelo menos numa
tipo de prescrição referido, a menos das acepções desse termo. Os que se
que se convencione dar o nome de inclinam a favor da afirmação (1)
“prescrição”? somente a um certo ti- não são necessariamente descritivis-
po de prescrições. ““Deve-se desaper- tas em nenhum sentido do termo,
tar a porca com uma chave inglesa” mas poderiam ser chamados ““instru-
é, num sentido muito amplo, uma cionistas””,
prescrição, mas não é nem uma or- Os filósofos que não são descrit1-
dem nem um mandato; poderia ser vistas nem instrucionistas a respeito
dito “instrução” ou “orientação”. das prescrições tendem a acentuar
“Adicione-se 10 miligramas de áci- mais o caráter moral destas do que
do pantotênico para cada 20 miligra- os adeptos daquelas duas correntes.
mas de niacinamida” é uma especi- Entendem, então, as prescrições co-
ficação para a fabricação de muliti- mo expressões que incluem impera-
vitamínicos. Muito do que se diz pa- tivos (morais, lato sensu) e juízos de
ra mostrar como se faz alguma coil- valor (morais, em sentido amplo,
sa, ou como se “deve” fazer algo pa- mas também possivelmente estéti-
ra fazê-lo com inteira propriedade, cos). O uso de ““prescrição” em qual-
ou com o fim de obter determinados quer destas últimas acepções é pró-
resultados, são especificações, orien- prio do chamado ““prescritivismo”,
tações ou Instruções. sobretudo se se considera que as
Caberia perguntar se não são ins- prescrições são formuladas como
truções todas as chamadas ““prescri- gulas para a ação ou como expres-
ções”, de modo que uma ““prescri- sões destinadas a persuadir e a con-
ção”? como ““deve-se dizer sempre a vencer.
verdade” não será outra coisa senão As prescrições podem ser absolu-
uma instrução ou orientação de con- tas (como ““faz o bem”, “cumpre o
duta que poderia ter a forma ““deve-se teu dever”, “sê o que és”, etc.) ou
dizer sempre a verdade, se não se qui- relativas (como ““faz caridade ao po-
ser ver alguém colhido de surpresa”. bre”, “respeita os anciãos”, etc.). É
Pode-se dar ao que antecede uma uma questão largamente debatida se
resposta afirmativa e Interpretar-se as prescrições consideradas como ab-
tal resposta de duas maneiras: (1) to- solutas têm um conteúdo determina-
583 PRESCRITIVISMO

do ou, no caso de não o ter, exercem mo coincide com o emotivismo na


pelo menos a função de um impera- Oposição ao intuicionismo; mas, en-
tivo categórico no sentido kantiano quanto os emotivistas, começando
(ver IMPERATIVO). Também po- com C. L. Stevenson, pensavam que
dem ser singulares ou universais de a linguagem moral está destinada a
acordo com o seu alcance. Enquan- influir sobre a conduta, Hare e os
to as prescrições absolutas são uni- prescritivistas negam-no. Se digo
versails, as prescrições relativas (ou “deves dizer sempre a verdade”, não
condicionais) podem ser universais estou, com isso, influindo necessa-
ou singulares. Uma prescrição uni- riamente sobre a pessoa a quem o di1-
versal não absoluta é o que fregquen- go, pois ainda que pudesse influir so-
temente se entende por “norma mo- bre ela ao dizê-lo, essa influência, ou
ral”” e também “máxima moral”. o propósito de exercê-la, não é um
traço fundamental do meu dizer. Po-
PRESCRITIVISMO Num sentido deria dizê-lo sem ter o propósito de
geral, pode-se dar o nome de ““pres- influir sobre a conduta da pessoa em
critivismo” a toda e qualquer ten- questão, ou poderia influir sobre a
dência segundo a qual certos grupos conduta da pessoa em questão dizen-
de expressões, que às vezes se cons!i- do outra coisa, ou não dizendo na-
dera serem enunciados, especifica- da, ou forçando-a fisicamente a di-
mente enunciados declarativos ou in- zer sempre a verdade.
formativos, não enunciam ou, pelo O prescritivismo sustenta que a
menos, não descrevem nada e não linguagem moral é feita de prescri-
veiculam informação nenhuma; tra- ções (ver PRESCRIÇÃO), que não
ta-se de prescrições, de normas ou de proporcionam informação nem in-
regras. Desse ponto de vista geral, o fluem necessariamente sobre a con-
prescritivismo equivale ao que fora duta, mas oferecem uma orientação,
chamado ““normativismo”'. um guia para a conduta. Hare indi-
De um modo mais específico, deu- ca que a linguagem prescritiva pode
se o nome de ““prescritivismo” a uma ser formada por imperativos (os
tendência da ética (e metaética) con- quais podem ser singulares ou uni-
temporânea, principalmente desen- versals) ou por juízos de valor (que
volvida por R. M. Hare, em oposi- podem ser morais ou não-morais)
ção não só ao naturalismo ético, mas (The Language of Morals, 1952, p. 3).
também ao intuicionismo ético e a Dai resulta que nem todas as pres-
qualquer doutrina em que se admita crições são imperativas e nem todos
poderem aplicar-se predicados (ain- OS imperativos são universais. Entre-
da que sejam predicados ““não natu- tanto, os imperativos são especial-
rais”) a sujeitos, ou a atos de sujei- mente importantes, visto que, embo-
tos, com o propósito de descrever ra um juízo moral não seja, estrita-
realidades ou comportamentos mo- mente falando, imperativo, todo juí-
rais. De algum modo, o prescritivis- zo moral implica um imperativo. Se
PRIMEIRO MOTOR 584

assim não fosse, não teria o menor O prescritivismo é fundamental-


sentido o propósito de guiar a con- mente uma teoria metaética e não ét!-
duta, já que a aceitação de um im- ca, mas apenas no sentido de que
perativo equivale a aceitar fazer o não indica, e além disso reconhece
que o imperativo diz que ““teria de” que não tem por que indicar, quais
ser feito. Tampouco teria sentido al- prescrições — e proscrições — devem
guém proferir um imperativo de ca- ser defendidas. Por outro lado, co-
ráter prescritivo se não tivesse a in- mo ocorre com a maior parte das
tenção de que a pessoa a quem é di- teorias metaéticas, ele proporciona
rigido o imperativo fizesse o que o uma descrição e uma Justificação do
imperativo indica (op. cit., p. 13). modo como a linguagem moral se
Hare sustenta que os Juízos morais entrelaça com a conduta, de modo
são universalizáveis e que Isso per- que não pode ser considerado uma
mite distinguir tais juízos, expressos “mera investigação lingúística *. En-
imperativamente em linguagem pres- tre as objeções que têm sido formu-
critiva, dos Juízos não-morais, que ladas contra o prescritivismo, desta-
também podem ser formulados im- ca-se a de que ele se apóia quase ex-
perativamente em linguagem prescri- clusivamente num único tipo de lin-
tiva, mas que não são, ou não são guagem moral, o que se expressar de
necessariamente, universalizáveis. Is- modo imperativo, desprezando ou-
so se deve a que se considera de al- tros objetos dessa linguagem.
gum modo que, dada uma situação O termo ““prescritivismo” também
que origina um juízo moral, toda e tem sido usado em relação com a dis-
qualquer outra situação comparável puta a respeito dos modos como se
deve dar origem ao mesmo Juízo mo- produzem definições. Nesse caso, o
ral — uma tese que se pode conside- prescritivismo é uma das várias for-
rar ligada a um pressuposto ainda mas de convencionalismo, a saber,
não justificado por si mesmo, sto é, a forma segundo a qual as definições
o de “situação moral”*. Em todo ca- não proporcionam informação, mas
so, Hare manifesta-se decididamen- indicam unicamente os modos como
te a favor do que chama ““prescrit!- OS signos podem ser usados.
vismo universal”* — ““ou seja, uma
combinação de universalismo (a idéia PRIMEIRO MOTOR Segundo Aris-
de que os juízos morais são univer- tóteles, todas as coisas estão em mo-
salizáveis) com prescritivismo (a vimento. Esse movimento, porém,
idéia de que tais juízos são, pelo me- não é igual em todas as esferas da
nos, tipicamente prescritivos)” realidade (ver DEVIR). À medida
(Freedom and Reason, 1970, p. 16) que nos elevamos na hierarquia dos
— e argumenta que não é fácil ata- entes, O movimento vai-se acercan-
car de forma consistente e simultâ- do cada vez mais da imobilidade. As-
nea ambos os aspectos da mesma sim, enquanto o movimento na es-
doutrina. fera sublunar inclui a geração e a
585 PRIMEIRO MOTOR

corrupção, o movimento das estre- A primeira doutrina oferece a vanta-


las fixas na esfera celeste é local e de gem de que torna mais fácil a com-
caráter circular. Pois bem, tudo o preensão da impressão de movimen-
que está em movimento é movido to aos demais céus, mas tem o incon-
por algo. E como o primeiro motor ventente de dificultar o entendimen-
que põe em movimento o resto da to de como uma realidade imaterial
realidade não pode ser movido por pode “estar” num ponto dado. A se-
nada, pois nesse caso haveria ainda gunda doutrina está de acordo com
alguma realidade superior a ele que a índole imaterial de tal realidade,
o moveria, cabe supor que é imóvel. mas esbarra em graves dificuldades
Existe, pois, segundo Aristóteles, um quando se trata de explicar a trans-
motor imóvel, um primeiro motor, missão efetiva de movimento.
TEOWTOV xXLWVOUV, primum mobile, que 2. Segundo alguns, o primeiro mo-
é Causa do movimento do universo. tor é causa final. Para outros, é cau-
Aristóteles refere-se a essa concepção sa eficiente. A primeira doutrina tem
em várias passagens de suas obras; o Inconveniente de afirmar como rea-
mencionamos
a respeito o Livro VIII
da Física, o Livro V da Metafísica
lidade atual o que deveria somente
aparecer como momento final no mo-
e o Livro II do tratado Sobre o céu. vimento da realidade. A segunda tem
É tradicional descrever esse pri- o inconveniente de fazer do modo de
meiro motor imóvel mediante certo ação próprio do motor algo equipa-
número de características. Antes de rável às demais causas. Em vista dis-
tudo, é uma substância simples e so, Indicou-se que o primeiro motor
eterna. Depois, é pura forma (ver) e é simultaneamente causa final e cau-
pura inteligência. Em terceiro lugar, sa eficiente. É causa final na medida
move, como o objeto do desejo, me- em que tudo se põe em movimento
diante atração. Finalmente, é um por aspiração na direção dela. É cau-
pensar que, por causa da sua perfei- sa eficiente na medida em que tudo
ção, não tem como conteúdo do seu se põe em movimento em virtude de-
pensamento mais do que a si mesmo la. A rigor, o primeiro motor é o mo-
e é, por conseguinte, pensamento de delo que o céu supremo e mais exten-
pensamento, vonols vonoews. so imita à sua maneira por meio do
Uma vez estabelecidas essas carac- movimento circular. Esse céu é imi-
terísticas, suscita-se, porém, uma sé- tado pelo céu inferior a ele, e assim
rie de problemas. sucessivamente, até chegar ao tipo de
1. Segundo alguns, o primeiro mo- movimento ínfimo. Trata-se de uma
tor é imanente ao mundo; embora se- causa eficiente que opera de um mo-
ja o mais externo dos céus, é, não obs- do análogo ao de um general quan-
tante, um céu: o primeiro deles. Se- do põe em movimento um exército
gundo outros, é transcendente ao dando ordens aos oficiais inferiores,
mundo, pois sendo imaterial não po- e assim sucessivamente, mas cumpre
de ser equiparado a nenhum dos céus. levar em conta que, no caso do pri-
PROCESSÃO 566

meiro motor, o conceito de mando considerar que cada um dos céus ne-
deve ser substituído pelo de atração. cessita de um motor imóvel, haven-
3. Discutiu-se se o primero motor do tantos motores imóveis quantos
tem somente conhecimento de si forem os céus (ou, melhor dizendo,
mesmo ou se também o tem do uni- quantos forem os tipos de movimen-
verso. Alguns comentaristas inclina- to). Eudoxos propusera 26 esferas;
ram-se a favor do primeiro ponto. Calipos, 33; Aristóteles fala de 47 ou
Outros (especialmente os aristotél1- 55. Argumentou-se que a teoria da
cos cristãos) aderiram ao segundo pluralidade dos primeiros motores é
ponto, sobretudo ao declarar que o física e astronômica, e não metafís1-
primeiro motor tem conhecimento ca. Jaeger destacou que, especial-
do mundo mediante o conhecimen- mente o capítulo 8 do Livro A da
to que possui de si mesmo. Essa Metafísica, é um corpo estranho na
questão está relacionada a uma ou- obra, adicionado posteriormente,
tra, a de saber em que medida se po- sendo de um estilo distinto do resto
de dizer do primeiro motor que é (com exceção de uma passagem den-
uma Providência. As sentenças a esse tro dele na qual se menciona de no-
respeito foram respectivamente ne- vo a existência de um motor imóvel).
gativas ou afirmativas, de acordo Como sublinha o citado autor, já no
com as duas concepções antes men- livro VIII da Física, Aristóteles che-
cionadas. gou à mesma opinião, mas sem a de-
4, Alguns autores sustentam que o clarar de um modo peremptório.
primeiro motor é uma entidade im- .

pessoal. Outros, que pode ser inter- PROCESSÃO A relação entre o


pretado num sentido teiísta. Impor- Uno e as realidades dele emanadas,
tante, a esse respeito, foi a discussão assim como, em geral, entre as rea-
entre Zeller — que se declarou favo- lidades de ordem superior e as de or-
rável à primeira opinião — e Brenta- dem inferior, é, segundo Plotino, co-
no — que defendeu a última. Esta foi mo uma irradiação, mepihapveis.
defendida pela maior parte dos auto- Com efeito, o superior irradia sobre
res cristãos aristotélicos, embora re- o inferior sem perder nada de sua
conhecendo em muitos casos que os própria substância, à maneira da luz
próprios textos do Estagirita nem que se derrama sem se perder, ou do
sempre são explícitos a respeito. centro do círculo que aponta, sem se
5. O usual é falar do primeiro mo- mover, para todos os pontos da pe-
tor supondo que só existe um. En- riferia. Como se lê nas Enéades (V,
tretanto, em várias passagens (Físi- 1, 7), todos os seres produzem
neces-
ca, VIIT 258 b 11; 259 a 6-28; Me- sariamente ao seu redor, por sua pró-
taf., A 8, 1074 a 31-38), Aristóteles pria essência, uma realidade que ten-
refere-se a uma pluralidade de pri- de para o exterior e depende do seu
meiros motores. Esta última opinião poder atual. Trata-se, pois, de uma
deve-se a que Aristóteles chegou a projeção em forma de “imagem”.
58687
PROCESSÃO

Essa forma especial de comunicação está confinada, tampouco, aos siste-


e projeção é a processão, toedodos, mas emanatistas. À esse respeito,
segundo a qual se realiza a emana- pode-se admitir que a noção de pro-
ção das hipóstases. De certo modo, cessão foi durante muito tempo tão
essa processão é um ““desvio” (En,, geral quanto o indicado por Bréhier.
I, vit, 7) ou, se se prefere, um “en- Por exemplo, a teologia cristã, so-
fraquecimento por transmissão”. bretudo a teologia católica de inspi-
Entretanto, não deve ser interpreta- ração helênica, elaborou detalhada
da sempre como uma ““queda” no e profundamente o conceito de pro-
sentido do gnosticismo (ver), mas, cessão. Na verdade, a noção de pro-
no máximo, como uma diminuição cessão — não reduzida, então, a um
da tensão em que consiste a hipós-
tase superior. Escreve Bréhier: “O
único conceito, nem relegada
a
temas como o de Escoto Erígena e,
sis-

termo processão indica o modo co- em geral, a sistemas de propensão


mo as formas da realidade dependem panteísta — é uma das que permitem
umas das outras; a idéia que evoca ter acesso intelectual ao mistério da
é comparável, por sua generalidade Trindade. Em todo caso, a proces-
e importância histórica, à idéia atual são é uma das maneiras possíveis de
de evolução. Os homens do final da produção, Juntamente com a trans-
Antiguidade e da Idade Média pen- formação, a emanação (ver) e a cria-
sam as coisas sob a categoria de pro- ção. Já se vê, portanto, que emana-
cessão, como os dos séculos XIX e ção e processão não se encontram
XX as pensam sob a categoria de forçosamente no mesmo plano. Mas
evolução.” (La philosophie de Plo- tal processão tampouco tem uma sig-
tin, 1922, IV, p. 85) Assim, o inver- nificação unívoca. Conquanto, por
so de processão é a conversão ou re- ora, nos refiramos apenas às coisas
versão, émiotTEO&Wn, E São justamen- criadas, logo veremos que a proces-
te a contraposição e o jogo da pro- são pode ser entendida de dois mo-
cessão e da reversão ou conversão o dos, ou, melhor dizendo, o modo de
que pode explicar todo o movimen- procedência de uma coisa da outra
to e a geração do universo. Como es- pode ser entendido de duas manei-
creveu Proclo, toda reversão se rea- ras distintas. Em primeiro lugar, a
liza mediante a semelhança dos ter- processão pode ser uma operação
mos revertidos com o que constitui (chamada processio operationis) do
o final do processo de reversão (Ins- tipo da volição, relativamente ao su-
titutio theologica, prop. 32), e toda Jeito que quer. Em segundo lugar, a
processão se realiza mediante a se- processão pode ser o termo (chama-
melhança do secundário com o pri- do processio operantr[) do tipo de
mário (op. cit., prop. 29). Pois bem, uma obra “exterior” qualquer rea-
ainda que desenvolvida especialmen- lizada. Pois bem, mediante uma con-
te no neoplatonismo, a noção de sideração analógica poderemos ver
processão não é exclusiva dele nem de que maneira seria possível enten-
PROCESSO 5886

der a processão dentro de Deus se entre o sujeito e seus poderes), as fa-


partirmos do conceito da processio culdades pelas quais se produzem as
operanti. Esta pode ser, com efeito, operações seriam, na teologia, o mo-
de dois tipos: a processão ad extra, do de relacionar processualmente —
também chamada transitiva, que tem numa processão de termo ad intra —
lugar quando o termo ou a obra pas- as Três Pessoas, sem negar no Pai o
sam, por assim dizer, fora do que o Princípio e admitindo, por conse-
produz; e a processão ad intra, tam- guinte, sua singular “não procedên-
bém chamada imanente, quando o O
cla o

termo permanece em seu princípio.


Neste último caso, temos um concel- PROCESSO Equiparou-se, por ve-
to da processão — a processio ope- zes, “processo” (processus) à ““pro-
ranti ad intra — que se aproxima da cessão” (processio); o que dissemos
definição tradicional de comunica- sobre o último conceito poderia apl1-
ção completa sem divisão de substân- car-se, pois, ao primeiro. Ao mes-
cia de uma natureza imutável a vá- mo tempo, muito do que foi dito so-
rias pessoas. Com efeito, a proces- bre “processo” poderia aplicar-se a
são em questão é a que tem lugar na “processão””. Assim, por exemplo,
relação do Espirito Santo e do Filho entendeu-se, às vezes, ““processão””
com o Pai e, por analogia, na rela- (processio) como ““derivação de al-
ção entre o Verbo mental e a intel1- go “principiado' de seu “princípio? ”,
gência (talvez, por 1sso, o Logos pos- e esta derivação (eductio) pode ser
sa ser interpretado num sentido mui- entendida tanto em sentido metafí-
to parecido ao da Palavra com que sico ou teológico, como lógico. Oca-
os hebreus designavam a comunica- sionalmente, o conceito de ““proces-
ção). Do ponto de vista filosófico, so” foi equiparado ao conceito de
limitar-nos-emos aqui a sublinhar a “raciocínio”; é que ocorre quan-
O
necessidade de não confundir proces- do se fala de um processus ad im-
são com emanação e de distinguir possibile (ou prova indireta; prova
não só entre diversas formas de pro- pelo absurdo) ou de um processus
cessão, como também entre a ope- compositivus (analítico) ou resoluti-
ração e o princípio operante. É, pre- vus (sintético).
cisamente, esta última distinção a Na filosofia do século XX, intro-
que permite, até certo ponto, deter- duziu-se a noção de processo como
minar que em Deus a processão não equivalente aproximado das noções
pode ser de operação. Por outro la- de devir (ver) e de mudança. Por
do, não se pode confundir, dentro da conseguinte, as chamadas ““filosofias
operação, o ato operante com o po- do processo”? foram entendidas co-
der pelo qual se realiza. No caso da mo filosofias segundo as quais o que
distinção entre Deus e suas faculda- há não é redutível a entidades ou a
des (distinção que, obviamente, não coisas em princípio invariáveis; as
equivale à que existe simplesmente colsas ou entidades são explicáveis
589 PROCESSO

mais exatamente em função de, ou don. Segundo esse autor, o proces-


no contexto de, processos. O proces- so é o “oposto polar” da própria po-
SO contrapõe-se ao ser (estático) laridade e o que torna possível, pa-
ou
à substância (ver). ra a polaridade, “pôr-se em movi-
Falou-se de “processualismo””. As mento”. Sem o processo, as polari-
filosofias do processo, ou filosofias dades permaneceriam ““fixas””, sem
processualistas, orientaram-se para se relacionarem mutuamente. O pro-
O concreto, o indeterminismo e o
cesso, escreve Sheldon, é “o grande
contingentismo. remédio da Natureza, a poção tera-
Com frequência, a idéia de proces- pêutica que suplementa as imperfei-
SO exerceu um papel importante em ções que maculam a ordem polar...
psicologia filosófica, como ocorreu A missão do princípio do processo
com William James e Henri Bergson. é eliminar o choque e o conflito en-
O processualismo psicológico fez uso tre os opostos polares... O processo
das idéias de “fluxo de consciência”, intervém para ajudar a polaridade e,
de ““corrente de consciência”, de com isso, a si mesmo” (Process and
“consciência como duração”, etc. Polarity, 1944, pp. 11 e 118).
Enquanto as filosofias não-proces- Entre os autores que promoveram
sualistas tomaram como paradigma a idéia de processo destaca-se A. N.
a noção de ““coisa”* — bem como a Whitehead. Sob a sua égide consti-
de “agente” enquanto substrato de tulu-se, inclusive, uma tendência f1-
mudanças — e seguiram, implícita losófica denominada ““processualis-
ou explicitamente, o ideal de alguns mo” ou “filosofia do processo”. Se-
escolásticos, Operari sequitur esse, o gundo Whitehead, há dois tipos de
fazer segue-se ao ser, as filosofias “fluência”, já descobertos no sécu-
processualistas, em contrapartida, lo XVII: aquele que alude à consti-
tomaram como paradigma as noções tuição real interna de algo particu-
de “mudança”, “movimento” e lar existente (concreção) e aquele que
“novidade”, e delas poderá dizer-se alude à passagem de algo particular
que seguem o ideal Esse sequitur existente a outro algo particular exis-
operari, o ser segue-se ao fazer. No- tente (transição). Esses dois signifi-
ções básicas nas filosofias não- cados apresentam-se unificados na
processualistas são as de indivíduo, teoria das ““entidades atuais”, as
espaço (ou situação no espaço), ato- quais substituem as ““coisas” hipos-
micidade e descontinuidade. Noções tasiadas ou substancializadas da
básicas nas filosofias processualistas “antiga” metafísica e designam, sim-
são as de totalidade, tempo (especial- plesmente, a radical individualidade
mente duração), funcionalidade e e novidade de cada coisa em sua con-
continuidade. creção ““absoluta”. Daí resultam
Exemplo de uma filosofia que des- duas espécies de processo: o proces-
taca e aspira a englobar todas as for- so macroscópico, ou transição de
mas de processo é a de W. H. Shel- uma ““atualidade alcançada” à “atua-
PRODUÇÃO 590

lidade no alcançar-se””, e o processo termo ““processo” tem


se caso, que o
microscópico, ou conversão das con- um sentido tão amplo que resulta
dições que são meramente reais nu- praticamente ingovernável. Embora
ma atualidade determinada. O pri- os autores ““processualistas” nem
meiro tipo é o processo que vai do sempre tenham estabelecido distin-
atual ao meramente real; o segundo, ções formais entre “processo”, “acon-
o que vai do real ao atual. O primei- tecimento”, “ação”, etc., nos con-
ro é, pois, de natureza eficiente; o se- textos onde apresentam suas ““filo-
gundo, de índole teleológica (Process sofias do processo”? destaca-se um
and Reality, an Essay in Cosmology, uso relativamente bem circunscrito
1929, cap. X, seção 5). A filosofia desse termo. Quando há dúvidas, é
do processo é, portanto, uma ““filo- preciso discernir entre “processo” e
sofia do organismo”. Mas esse or- “acontecimento” — mesmo consi-
ganismo deve ser entendido num sen- derando-se que um processo com-
tido dinâmico e não estático, de tal põe-se de uma série de acontecimen-
sorte que, então, ““cada entidade tos —, e, em todo caso, cumpre dis-
atual resulta, por si mesma, descri- tinguir entre “processo” e ““ação”
tível somente como processo orgâni!- — mesmo supondo que toda ação é
co, descrevendo no microcosmo o um processo ou tem um caráter
que é o universo no macrocosmo”' “processual”,
(loc. cit.).
Embora a noção de processo se- PRODUÇÃO Num sentido muito
ja, em princípio, axiologicamente amplo, a noção de produção foi tra-
neutra, tem sido corrente nas filoso- tada em filosofia como a ação e o
fias do processo sustentar que o pro- efeito da operação de algum ser. Na
cesso (ou a mudança, o devir, etc.) Et. Nic., VI, 4, 1140 a 1-24, Aristó-
é preferível a toda realidade de ca- teles estabelece uma influente distin-
ráter ““estático”. Por essa razão, ção entre produzir, ou fazer, e atuar.
supôs-se que o processo equivale a Por exemplo, na ““arte” produz-se
um ““progresso””. Entretanto, Ma- ou faz-se algo, pois a arte não diz
nuel Garcia Morente (Ensayos sobre respeito a coisas que são ou vêm a
el progreso, 1934) propôs a distinção ser por necessidade, nem a coisas que
entre “processo” e “progresso”. Se obram de acordo com a natureza e
bem que haja progresso quando se têm sua origem em si mesmas. Aris-
incorporam valores no decorrer de tóteles usa o termo roinous, poiesis
um processo, não é necessário que (literalmene, ““poesia”) para o que
haja progresso sempre que existe um chamamos ““produção”.
Processo. Na Antiguidade, discutiu-se sobre
Entendeu-se, às vezes, “processo” se uma coisa ser o que é equivale a
não só como todo e qualquer ““pro- “produzir”; os neoplatônicos incli-
gresso””, mas também todo aconte- navam-se para a afirmativa, ao pas-
cimento e toda ação. É evidente, nes- so que a maioria dos filósofos nega-
591
PRODUÇÃO

Va que ser e produzir pudessem produção (os recursos de que se dis-


identificar-se. Os escolásticos cria- põe para produzir), as forças de pro-
ram a expressão operari sequitur es- dução (o trabalho que os indivíduos
Se, que se traduz usualmente por ““o realizam; os conhecimentos técnicos
realizar segue-se ao ser” e que tam- aplicáveis ou aplicados para produ-
bém poderíamos traduzir por ““o zir; Os sistemas de organização orien-
produto segue-se ao ser”, isto é, “só tados para a produção) e as relações
quando há um ser pode-se dizer que de produção (os mecanismos institu-
esse ser produz algo”* — o conjunto cionais dentro dos quais as forças de
de suas “operações”. As tendências produção operam). O estudo das es-
“dinamicistas” e “funcionalistas”, truturas nas quais intervêm, de dis-
assim como as pragmatistas, tende- tintas formas, os meios, as forças e
ram a sustentar o inverso, isto é, que as relações de produção é o estudo
o ser é o resultado de algum produ- dos aspectos básicos da espécie hu-
zir, ou “produzir-se”. mana. As citadas estruturas concre-
A noção de produção num senti- tizam-se em distintos modos de pro-
do primordialmente (se não exclusi- dução. São comumente citados os
vamente) econômico e econômico- modos de produção feudal, capita-
social foi tratada por filósofos e eco- lista e socialista em sucessão históri-
nomistas do século XVIII, como Ri1- ca, dado que Marx ocupou-se aten-
cardo e Adam Smith. Uma distinção tamente das diferenças entre o mo-
fundamental a esse respeito foi a es- do de produção feudal e o modo de
tabelecida entre produção e consu- produção capitalista e dedicou espe-
mo; outra distinção básica foi a pro- clal atenção a este último como eta-
posta entre o trabalho produtivo — pa histórica que precede o modo de
que dá lugar a mercadorias — e O produção socialista (ou, melhor, co-
trabalho improdutivo — como o tra-
balho intelectual e muito do que ho-
munista). Mas deve-se também levar
em conta outros modos de produção
je se chama ““serviços”. Marx colo- de que falou Marx, tais como o mo-
cou a noção de produção no centro do de produção primitivo tribal, o
do seu pensamento filosófico, eco- modo de produção ““antigo”, basea-
nômico e político-social. Simplifi- do na escravatura, e o modo de pro-
cando ao máximo, as idéias de Marx dução ““astático”*. Em todo caso, é
a tal respeito são as seguintes: característico de Marx e de boa par-
Enquanto os animais não produ- te dos marxistas considerar atenta-
zem seus meios de subsistência, o ho- mente as estreitas relações de inter-
mem os produz. Desse modo, ele dependência entre as forças de pro-
produz sua vida material. O desen- dução e as relações de produção.
volvimento da espécie humana pode A noção marxista de produção é
ser entendido em função dessa pro- uma noção social-econômica, mas
dução dos meios de subsistência. também, por assim dizer, antropo-
Cumpre distinguir entre os meios de lógico-filosófica, na medida em que
PRODUTO 592

serve tanto para explicar as estrutu- “9 consumo também é diretamente


ras das sociedades humanas quanto produção”. Isso não significa, po-
a natureza das mudanças históricas. rém, que haja equivalência ou iden-
Marx entende “produção” num sen- tidade entre produção e consumo;
tido ao mesmo tempo amplo e deter- há, entre eles, uma relação que con-
minado. Nos Grundrisse (a parte tribui para tomar parte na estrutura
desse extenso manuscrito já publica- social e econômica.
da por Karl Kautsky em 1904 e, mais As noções desenvolvidas por Marx
tarde, na íntegra, em 1957-1958), no que se refere ao concelto-de pro-
Marx considera o que chama ““pro- dução são mais complexas do que as
dução material” — a qual não é sim- acima esboçadas. Assim, por exem-
plesmente “econômica”, no sentido plo, cabe distinguir entre meios e
estrito dado a esse termo pelos eco- condições de produção. Através de
nomistas clássicos do século XVIII. todas as distinções e refinamentos,
Marx sublinha fortemente o caráter permanece incólume para Marx a
não individual, mas social, da pro- idéia de que a noção de produção
dução contra o individualismo de tem caráter social; uma produção
Adam Smith e Ricardo, e o natura- não social, indica Marx, é tão absur-
lismo de Rousseau. da quanto a idéia de um desenvolvi-
A noção de “produção” é uma meénto da linguagem sem indivíduos
noção abstrata per se, uma vez que que vivam juntos e se comuniquem
não existe produção em geral, e sim entre si. Também permanece incólu-
modos específicos de produção — me para Marx a idéia de conflito en-
determinados pelas condições estru- tre as forças de produção e o modo
turais acima apontadas; no entanto, de produção. Esse-conflito engendra
é necessário recorrer a tal noção abs- o mecanismo que leva à transforma-
trata para entender o que existe de ção de um modo de produção dado
comum em todos os modos de pro- em outro.
dução. Em contraste com os autores
que o precederam, Marx indica que PRODUTO O termo ““produto” é
o consumo faz parte da produção; usado em lógica principalmente em
as faculdades desenvolvidas na pro- três áreas.
dução são consumidas no ato de pro- Na álgebra de classes diz-se que
dução, afirma Marx. Mas, além dis- uma classe C é o produto das clas-
so, a produção é consumo de meios ses A e B, quando C é a classe com-
de produção. Assim, ““o ato de pro- posta de todas as entidades que per-
dução é, também, em todos os aspec- tencem ao mesmo tempo a A e a B.
tos, um ato de consumo”. Embora O símbolo do produto lógico de clas-
reconheçam Isso sob a designação de ses é “ N”*, de modo que “A N) B”
“produção consumidora”, os “eco- lê-se “o produto lógico das classes
nomistas”*. dão ao consumo um as- A e BD”. Exemplo de produto lógico
pecto ““destrutivo”* quando, a rigor, de classes é a classe dos chinelos ver-
593
PROPOSIÇÃO

melhos, que é o produto lógico da não é sempre válido. Mas o produto


classe dos chinelos e da classe das en- “P* é associativo, ou seja:
tidades vermelhas. O produto lógi-
co de classes define-se do seguinte ((RISIO) = (RI(SIQ))
modo: é válido.

ANB=def.X(xeA A xeEB).
PROPOSIÇÃO Consideraremos: (1)
Na álgebra de relações, diz-se que as diferenças entre “proposição” e
uma relação Q é o produto lógico “juízo”; (II) a estrutura e a divisão
das relações R e S, quando Q é a re- das proposições na lógica tradicio-
lação de todas as entidades x com to- nal; (III) a estrutura das proposições
das as entidades y, de tal modo que na fenomenologia (incluindo os pre-
R relaciona x com y e S relaciona x cedentes de Bolzano, Meinong e ou-
com y. O símbolo do produto lógico tros autores); (IV) a estrutura e a di-
de relações também é “ N””. Exem- visão das proposições na lógica mo-
derna ou atual; (V) a classificação
plo de .produto lógico de relações é
epistemológica das proposições; (VT)
a relação cidadão honorário de, que
o problema da interpretação existen-
é o produto das relações cidadão de
cial (e não-existencial) de várias pro-
e homenageado por. O produto ló- posições; (VII) a questão da distin-
gico de relações define-se do seguin- ção entre a lógica dos termos e a das
te. modo: proposições.
(1) Proposição e juízo. A chama-
RNS=def. XP? (xXxRy À xSy).
da lógica ““clássica”* ou ““tradicio-
O produto anterior é, por vezes, nal” (pelo que entendemos, grosso
chamado produto absoluto. O adje- modo, a de inspiração aristotélico-
tivo “absoluto”* emprega-se com a escolástica) distingue entre proposi-
finalidade de distinguir tal produto ção e Juízo (ver). Enquanto o juízo
do chamado produto relativo. Com é o ato do espírito mediante o qual
efeito, chama-se produto relativo de se afirma ou se nega algo a respeito
uma relação S a relação de todos os de algo, a proposição é o produto ló-
x com todos os y, de tal modo que, gico desse ato, ou seja, o pensado
v z(XxRz A ZzRy). O símbolo do pro- nesse ato. Ora se usa, em vez do ter-
duto relativo é ““1”*. O produto rela- mo “proposição”, o vocábulo “enun-
tivo de duas relações define-se do se- clado”* (ver); ora se empregam indis-
guinte modo: tintamente os dois. Em alguns ma-
nuais escolásticos, a doutrina da pro-
RIS = def. Xp v z XRz À zRY). posição apresenta-se assim: De enun-
tiatione seu propositione. Com fre-
O produto e? não é sempre co- qúuência, “enunciado” designa a pro-
mutativo, quer dizer:
posição na medida em que faz parte
(RIS) =(SIR) do silogismo. Por vezes (como em
PROPOSIÇÃO 594

Santo Tomás: 1 anal. 5 b), “propo- gico), não pode esta ser invariavel-
sição”* é tomada em sentido mais es- mente imputada a Aristóteles. Tam-
treito do que “enunciado”: este úl- pouco cremos que possa ser imputa-
timo constitui o aspecto objetivo (no da aos comentaristas aristotélicos e
sentido clássico de ““objetivo””) da escolásticos, que fizeram sua e desen-
proposição. Entretanto, o próprio volveram a interpretação objJetivis-
Santo Tomás equipara, às vezes, ta (na acepção moderna de ““objeti-
“proposição” com “enunciado” (S. vo”) da proposição, dando azo à dis-
Theol., I q. III, 4a 2). “Enunciado” tinção entre proposição e Juízo, tal
usa-se ocasionalmente num sentido como se admite hoje em dia. Em
neutro, indicando-se que o juízo é contrapartida, na época moderna
seu aspecto subjetivo (na moderna registraram-se vários exemplos de
acepção de ““subjetivo”*) e à propo- confusão entre os dois termos. Um
sição, seu aspecto objetivo (na acep- é o da lógica de Port-Royal. Outro,
ção moderna de ““objetivo”*”). Em- o de Kant. Ainda outro, o dos 1dea-
pregamos com frequência o termo listas (como Bradley). E, finalmen-
“enunciado” com essa significação. te, o de alguns autores nominalistas
Quanto à proposição, sempre a dis- (como Hobbes).
tinguiremos de Juízo (ver), assim co- "(IDA estrutura e a divisão das
mo de inscrição e de sentença. proposições na lógica clássica. AÀ
A distinção entre proposição e Juí- proposição define-se, na esteira de
zo, e entre proposição e enunciado, Aristóteles, como um discurso enun-
não se apresenta sempre destacada ciativo perfeito que expressa um juí-
com clareza entre os filósofos. O zo e significa o verdadeiro ou o fal-
próprio Aristóteles refere-se, às ve- so. A proposição é enunciativa, ao
zes, a enunciados no sentido de pro- passo que o Juízo é Judicativo. A pri-
posições, roeotageis, em Top. e em meira expressa a verdade ou a falsi-
An. Pr. Por outro lado, em An. dade per modum repraesentationi; o
Post., há considerações de índole segundo expressa-as per modum as-
psicológico-epistemológica onde os sensus. Um exemplo simples de pro-
enunciados são considerados como posição é:
Juízos, dotar, formulados por um su-
Maximiliano é bom,
jeito. Em De int., a definição da pro-
posição e a divisão das proposições cujo esquema na lógica clássica é:
podem ser interpretadas em um ou SéP,.
outro sentido, embora a interpreta-
ção que está mais próxima da mente Trata-se de uma proposição categó-
do autor seja provavelmente a ““ob- rica atributiva, em que se atribui um
jetivista”*. Isso mostra que (como foi predicado (P) ao sujeito (S) por meio
indicado por Maier e Ross), se hou- da cópula verbal “é”. A proposição,
ve confusão da proposição (objeto em sentido clássico, tem, pois, sujei-
lógico) com o juízo (objeto psicoló- to, verbo (cópula) e atributo. Quan-
595 PROPOSIÇÃO

do o verbo não se expressa median- gente e remota), as proposições em


te “é”, reduz-se a “é”. Assim, questão subdividem-se em:
João fuma (a) necessárias: aquelas em que se
enuncia algo que não pode ser de ou-
reduz-se a: tro modo (““S é P”* na proposição
João é fumante. “A planta é um ser vivo”);
(b) contingentes: aquelas em que
A proposição, no sentido da lógi- se enuncia algo que pode ser de ou-
ca clássica, tende a seguir o modelo tro modo (““S é P” na proposição
atributivo anterior, mas o que se cha- “A planta é verde”);
ma ““divisão das proposições” mos- (c) impossíveis: aquelas em que se
tra uma grande variedade dessas. enuncia algo que não pode ser de
Nos autores escolásticos observam- modo nenhum (““S é P”** na proposi-
se dois tipos gerais de classificação. ção ““A planta é racional”).
Um desses tipos parte da divisão em Como se observa, o esquema “S
proposições simples e proposições é P”* não basta, por si só, para de-
compostas. As simples dividem-se terminar de que classe de proposi-
em função da matéria, da forma, da ções se trata. Cumpre acrescentar, se
quantidade e da qualidade. As com- se conserva o esquema, os termos de-
postas dividem-se em evidentemen- terminantes: “S é necessariamente
te e ocultamente compostas. O ou- P””, “S é contingentemente [ou pos-
tro tipo inclui a divisão das proposi- sivelmente] P”, “S não pode ser P”.
ções em simples e compostas, den- Quando se usam exemplos, supõe-se
tro das proposições, em função da que os termos indicam a natureza da
forma. Seguiremos o primeiro tipo. proposição, mas é óbvio que isso po-
A classificação aqui apresentada ba- de dar origem a ambiguidades. Al-
sela-se nos traços mais comumente guns autores dão exemplos nos quais
aceitos pelos tratadistas escolásticos. a partícula “é” não intervém. Para
Proposições simples. (a): “2+3=5"; para (b): “A água
São as proposições em que um ferve aos 100º centígrados”; para
conceito (P) une-se a um conceito (S) (o): “2+3=4"”, De outros ângulos,
em virtude da cópula verbal. Tam- as proposições (a) e (b) podem ser
bém se chamam categóricas, predi- chamadas, respectivamente, analiti-
cativas ou atributivas. Há quatro ra-
zões de divisão dessas proposições.
cas e sintéticas, mesmo quando tal
condição não se cumpre em todos os
l. Em função de sua matéria exemplos que se podem dar. Como
(“matéria”* =““os termos em sua re- (a), (Db) e (oc) atendem aos modos, são
lação mútua, com anterioridade à expressões da modalidade.
enunciação efetiva formulada no Jjuí- 2. Em função da forma (““for-
zo”), conhecem-se as razões diver- ma” = “união do predicado e do su-
sas pelas quais P convém a S. Sendo jeito por meio do enunciado do juí-
a matéria tripla (necessária, contin- zo”) ou da cópula que manifesta a
PROPOSIÇÃO 596

composição ou a divisão, pode-se co- dicados metalógicos acrescentados à


nhecer o nexo entre Pe S. As pro- proposição. Deveriam ser usados,
posições resultantes dessa considera- pois, os esquemas “““S é P' é verda-
ção podem ser: deiro” e ““S é P' é falso”, respecti-
(al) afirmativas (“S é P”); vamente.
(bl) negativas (*“S não é P”). 4, Em função da quantidade ou ex-
Também pode-se falar de propo- tensão, as proposições dividem-se em:
SIÇÕES: (a3) universais (“todos os S são
(cl) infinitas (também chamadas, P' );
por vezes, “indefinidas”*), nas quais (b3) particulares (“alguns S são
se enuncia: “S é não-P”". Contudo, P””);
essas proposições são redutíveis às (c3) singulares (“este S é P”).
afirmativas (como ““o homem não é Alguns autores acrescentam a es-
falivel”* reduz-se a “o homem é in- sas proposições as:
falível””). (d3) indefinidas ou indeterminadas
A razão da divisão pela forma é (“S é P” em “o homem é risível”).
uma função da qualidade essencial, As proposições em função da
distinta da qualidade acidental. quantidade combinam-se com as pro-
Alguns autores incluem como sub- posições em função da forma. Há au-
divisão de [2] as proposições categó- tores que chamam de qualidade a for-
ricas (simples) e as proposições hipo- ma da proposição. Essa terminolo-
téticas (compostas). Outros conside- gia, hoje muito difundida, faz com
ram que a modalidade pode ser con- que se fale quase sempre das propo-
siderada um aspecto da forma. As sições obtidas pela combinação da
proposições podem ser divididas em quantidade e da qualidade. Essas
dois tipos: proposições in esse ou ab- proposições são de quatro tipos:
solutas e proposições modais (de re (1) proposições universais afirma-
ou de dicto). tivas, representadas por meio da le-
3. Em função da qualidade, as tra “A”. Exemplo: “todos os ho-
proposições dividem-se em: mens são mortais”;
(a2) verdadeiras (“S é P” em “os (2) proposições universais negati-
corpos são extensos”); vas, representadas por meio da letra
(b2) falsas (“S é P” em “o homem “E”. Exemplo: “nenhum homem é
é um número primo”). mortal”;
Afirmam muitos lógicos que os (3) proposições particulares afir-
termos da proposição permitem ver mativas, representadas por meio da
se ela é verdadeira ou falsa, mas tam- letra “1”. Exemplo: “alguns homens
bém destacam as ambiguidades a que são mortais”;
pode dar origem o uso de um mes- (4) proposições particulares nega-
mo esquema para representar as duas tivas, representadas por meio da le-
proposições. A divisão em função da tra “O”, Exemplo: “alguns homens
qualidade refere-se, de fato, aos pre- não são mortais”.
597 PROPOSIÇÃO

Como esquemas dessas proposi- proposições ocultamente com-


21.
çÕes usam-se também ““SaP”, “SeP, postas, também chamadas virtual-
“SIP” e “SoP””. Na seção IV do pre- mente hipotéticas. São as proposi-
sente verbete indicamos a tradução ções cuja estrutura é aparentemente
simbólica empregada atualmente pa- simples, mas, na realidade, é com-
ra os exemplos das proposições de t1- posta. Subdividem-se em:
pos A, E, [, O. (as) exclusivas, nas quais intervém
Proposições compostas. “só”: “só S é P”.
São as que resultam da combina- (b») exceptivas, nas quais inter-
ção de proposições simples com ou- vém ““exceto”: “todo S, exceto S,
tras proposições simples ou com ou- é P”;
tros termos. Alguns autores conside- reduplicativas, nas quais in-
(cs)
ram tais proposições sob o nome de tervém “enquanto”: “S, enquanto
proposições por matéria remota, S, é P”;
diferenciando-as das proposições por comparativas, nas quais 1n-
(do)
matéria próxima. Outros autores 1n- tervém ““mais do que” ou “menos
cluem entre as proposições compos- do que”: “S é mais cognoscível do
a
tas as modais. Seguimos classifica-
ção das proposições compostas mais
que P”, ““S$ é menos cognoscível do
que P*”;
universalmente aceita entre os esco- (62) exponíveis, nas quais inter-
lásticos. Baseia-se em dois grandes vém “nenhum... que não”: “Sé P;
tipos: nenhum S que não seja S, é P”.
li. proposições manifestamente Há autores que acrescentam à
(ou evidentemente) compostas (tam- classificação anterior uma divisão de
bém chamadas formalmente hipoté- proposições em função da origem.
ticas). São as proposições cuja estru- As proposições são, então, analíticas
tura manifesta a presença de duas ou sintéticas. Outros indicam que es-
proposições. Subdividem-se em: sa divisão não é lógica, mas episte-
(a) copulativas ou conjuntivas, mológica. Do ponto de vista lógico,
nas quais intervém a conjunção “e”: tais proposições são equiparadas por
“PéSseQ"; muitos lógicos de tendência clássica
(bi) disjuntivas, nas quais inter- às descritas em 1l(a) e 1(b).
vém a conjunção “ou”: “PésSsou Como muitas das adotadas na ló-
" 3. , gica tradicional, as classificações an-
teriores baselam-se fundamental-
(ci) condicionais, nas quais inter-
vém o conectivo ““se..., então”: “Se mente na estrutura da linguagem or-
PéS, então P é Q”. dinária.
Alguns autores acrescentam-lhes (III) A proposição na lógica mo-
as: derna ou atual. Não se admite hoje
(di) causais: “S é P, porque É que a proposição componha-se de
Q;(e) sujeito, verbo e atributo, menos ain-
relativas: “tal S, tal P”. da que o verbo seja a cópula ““é”,
PROPOSIÇÃO 598

ou reduza-se a ela. Durante muito as letras “Do, CB, pr, çchamadas


29
;
66,79?
Pp ;
tempo, combateu-se tal estrutura,
alegando-se que era uma conseqiiên-
go, Sr, Ás, eto.,
“letras proposicionais”'. Entretanto,
cia da “metafísica inadmissível da na lógica contemporânea, tem sido
substância-acidente”'. Esse tipo de frequente tomar os enunciados no ní-
crítica foi abandonado hoje em dia. vel linguístico. Por esse motivo, tais
Indica-se, simplesmente, que o es- letras funcionam como letras senten-
quema “S é P”* só representa a tra- clais e o cálculo estabelecido é um
dução linguística de uma das muitas cálculo sentencial. As proposições
formas possíveis de proposição. A são, então, o que se expressa por
logística afirma que na proposição meio da série de símbolos que se cha-
não há três, mas dois elementos: o mam ““sentenças”.
argumento (sujeito) e o predicado Durante muito tempo não houve
(verbo). O modelo da proposição é grande acordo no que se refere à in-
um esquema quantificacional atômi- terpretação do termo ““proposição”.
co que se compõe de letras predica- Mencionamos a seguir algumas das
dos — “E”, “GG”, “H” — e letras definições dadas.
argumentos — ““w”, “x”, É”, Para Russell, a proposição é ““a
“z”. Em tal esquema afirma-se um classe de todas as sentenças que pos-
predicado de um argumento. Assim, suem a mesma significação que uma
sentença dada”. Segundo Wittgens-
F (x) tein, a proposição é uma descrição
é um esquema quantificacional atô- de um fato ou ““a apresentação da
mico. Pode-se ler “Pedro corre”, se existência de fatos atômicos”. A
x” substitui “Pedro” e é““F”* subs- proposição também foi definida co-
titui “corre”, ou “Pedro bom”, se mo uma sentença declarativa. Para
“x” substitui “Pedro” e ““F”* subs- Carnap, a proposição é uma classe
titui “é bom”. As letras argumentos de expressões. Estas podem ser pro-
podem ser uma ou mais de uma. posicionais (não-lingúísticas) ou não-
Assim, proposicionais (lingúísticas). As ex-
pressões proposicionais não-linguis-
FX >)
ticas (ou proposições como tais) não
é um esquema quantificacional que se acham, pois, nem no nível da lin-
pode ser lido “Pedro ama Maria”, guagem, nem no nível dos fenôme-
se “x” substitui “Pedro”, “F” nos mentais; são algo objetivo que
substitui “ama” e “7” substitul pode ou não ser exemplificado na
“Maria”. Mas esse exemplo pode Natureza. As proposições, como as
também ser representado mediante propriedades, são de natureza con-
o esquema quantificacional ““F(x)”, ceitual (usando ““conceitual”* num
se “F” substitui “ama Maria”. sentido objetivo).
No cálculo proposicional, as pro- As definições anteriores são ape-
posições são simbolizadas mediante nas algumas das muitas que foram
599 PROPOSIÇÃO

forjadas nas últimas décadas. O qua- nificam. Outros admitem (5) e (6),
dro abaixo fornece uma idéia dos mas de (5) escolhem entre (7), (8) ou
sentidos em que se emprega ““propo- (9). (8) é usado em sentido bastante
sIÇão” e outros termos relacionados
ambíguo, mas nem sempre se iden-
com ela na maior parte dos textos tifica exatamente com (3). Russell,
contemporâneos. entre outros, considera que (10) tem
uma propriedade chamada ““forma
lógica”. Autores como Donald Ka-
(1) Signo
lish consideram que a forma lógica

T—
Escrito ou (2) Não escrito
é uma propriedade de (3).
Nos atuais tratados não se dedica
Não sentencial um capítulo especial à divisão das
Sentencial proposições, mas admitem-se diver-
(3) Sentença = (4) Enuciado sos tipos delas (que correspondem
aos tipos admitidos de sentenças).
Citaremos os mais habituais.
(5) denota (ou designa)
As proposições podem ser atômi-
(6) Significa
cas ou moleculares. Às proposições
(7) Fatos
atômicas não incluem conjunções; as
proposições moleculares incluem-
(8) Proposições nas. Exemplo de proposição atômi-
(9) Valores
ca é “Zacarias medita”*. Exemplo de
de verdade (o proposição molecular é: ““se Zacarias
Verdadeiro e medita, Helena treme”. A distinção
o Falso) das proposições em atômicas e mo-
leculares aproxima-se da divisão clás-
(10) ObJjetivamente:
proposições sica das proposições em simples e
compostas. As proposições também
(11) Subjetivamente: podem ser quantificadas e não-quan-
Juízos
tificadas. As quantificadas podem
Às vezes, (10) emprega-se como ser particulares e gerais.
equivalente, ou como interpretação, (IV) O problema da interpretação
de (3) ou de (4). (11) é pouco usado existencial e não existencial de várias
na lógica formal moderna, mas não proposições. A relação subalterna
excluído em princípio. (9) expressa entre as proposições deu origem a vá-
a concepção de Frege e Church. A rias sentenças. Discorreremos mais
distinção entre (5) e (6) é análoga à extensamente sobre este ponto daqui
estabelecida por Frege entre Sinn e a pouco, mas antes expressaremos na
Bedeutung (ver REFERÊNCIA). Al- linguagem simbólica da lógica atual
guns autores excluem inteiramente os esquemas das proposições dos ti-
(5), alegando que só as sentenças sig- pos A, E, 1, O.
PROPOSIÇÃO 600

O esquema das proposições do ti- dro aristotélico de oposição, acres-


po À é: centando a (1) a cláusula existencial
A X
(Fx Gx) (1) “vx (Fx).
Essa opinião foi criticada por vá-
O esquema das proposições do ti- rios filósofos e lógicos. Mencionare-
po E é: mos aqui duas críticas: uma, proce-
dente de autores escolásticos; outra,
AX (Ex 1Gx) Q)
procedente de alguns pensadores,
O esquema das proposições do ti- não só de formação escolástica, co-
po |[ é: mo Maritain, mas também de outras
tendências, como Strawson.
vVX(FxXAGXxX) (3)
(V) Lógica dos termos e lógica das
O esquema das proposições do ti- proposições. Desde os primeiros tra-
po O é: balhos históricos de Lukasiewicz
(1923; cf. especialmente o mais co-
VX(FxXA 1Gx) (4) nhecido artigo, “Zur Geschichte der
(1) e (2) podem ser interpretados
de dois modos: existencial e não
Aussagenltogik”', Erkenntnis,
1935, 111-131), observou-se que há,
,
existencialmente. A interpretação na lógica antiga, duas tendências:
existencial é própria da lógica clás- uma (a aristotélica), orientada para
sica; a não existencial, é própria de os termos, outra (a megárico-estó1-
muitos lógicos modernos. Segundo ca), orientada para as proposições.
a interpretação existencial, os exem- Estas últimas foram, por vezes, cha-
plos de (1) e de 2) não são verda- madas atiounata pelos estóicos e
deiros se não há x que satisfaça F. consideradas formas completas dos
Essa interpretação oferece um in- AexTA (Ou ““coisas ditas”, enquanto
conventente, o de ser válida para ca- “significadas”, ou seja, enquanto
SOS como: expressem a ““compreensão”*). Os
trabalhos de Duúrr, Bochenski, Boh-
Todos os suecos são homens;
ner, Clark e outros autores destaca-
mas não ser válida para casos como: ram que o mesmo ocorre na lógica
medieval. Acreditou-se, a princípio,
Todos os estudantes
cumpridores de seus deveres que a lógica dos termos impusera-se
serão recompensados, por completo sobre a lógica das pro-
posições, mas logo se reconheceu que
o qual deve ser considerado verda- o assunto é mais complexo e que
deiro, sem que seja necessário haver existem, a rigor, muitas combinações
estudantes cumpridores de seus de- das duas tendências. O próprio Lu-
veres. Por esse motivo, muitos lógi1- kasiewicz mostrou, por exemplo, que
cos modernos propuseram a inter- Aristóteles utilizou (pelo menos in-
pretação não existencial de A e de E, tuitivamente) certas leis da lógica
e restabeleceram a validade do qua- proporcional nas provas de silogis-
601 PROPOSIÇÃO

mos imperfeitos dadas em An. pr., dências a misturar as duas lógicas em


II, 4, 57 b 3. Do ponto de vista his- autores como Boécio e Pedro Hispa-
tórico, entretanto, a diferença entre no. A diferença entre a lógica dos
as duas lógicas é muito elucidativa termos e a lógica das proposições
e pode ser sustentada. Diremos, as- manifesta-se com frequência no vo-
sim, que há uma direção para uma cabulário empregado. Aristóteles
lógica dos termos em autores como empregou para designar a proposi-
Aristóteles e Santo Tomás, e uma di- ção o termo toóTAMNLIS; OS estÓóIcos
reção para uma lógica das proposi- usaram o vocábulo Muna e também
ções nos megárico-estóicos, com fen- a citada palavra atiopataA.
Q
QUALIDADE Segundo Aristóteles, riações de grau, embora haja algu-
a qualidade é uma categoria (ver). mas exceções a esta última regra, co-
Em Cat. VIII, 8 b 25, Aristóteles mo se mostra com o exemplo da qua-
afirma que a qualidade é aquilo em lidade de triangularidade. De fato,
virtude de que alguém tem algo, ou as únicas características verdadeira-
seja, a qualidade é algo pertencente mente próprias da qualidade são, se-
à “gente”. Pode-se entender essa gundo Aristóteles, a semelhança e
concepção desde que se entenda que a dissemelhança. Em outro texto
as qualidades são propriedades co- (Met., A 14, 1020 a 33 e ss.), Aristó-
mo “é branco”, “é alto”, “é estú- teles define a qualidade de quatro
pido”, etc., mas se pode ampliar es- maneiras: (a) como a diferença da es-
sa definição de qualidade afirman- sência (o homem é um animal que
do que a qualidade é aquilo em vir- possui determinada qualidade por-
tude de que alguma coisa tem algu- que é bípede); (b) como proprieda-
ma propriedade: alto, belo, rugoso, de dos objetos imóveis matemáticos
redondo, etc. O termo “qualidade” (o que há na essência dos números
tem em Aristóteles vários sentidos. além da quantidade); (c) como pro-
Por exemplo, a qualidade pode ser priedades das substâncias em movi-
um hábito ou uma disposição — des- mento (calor e frio, alvura e negru-
de que se leve em conta que os hábi- ra); (d) como algo referente à virtu-
tos são ao mesmo tempo disposições, de e ao vício, e, em geral, ao bem e
mas nem todas as disposições são há- ao mal. Essas quatro significações
bitos. Também pode ser uma capa- reduzem-se a duas; (x) a qualidade
cidade — como ser bom corredor, ou como diferença da essência (à qual
ser duro ou mole. Pode ser algo sen- pertence também a qualidade numé-
sível como a doçura (ou o resultado rica); (y) a qualidade como modifi1-
de uma qualidade efetiva, como ser cação das coisas que se movem en-
branco). Pode ser, enfim, a figura e quanto se movem, e as diferenças
a forma de uma coisa, como a cur- dos movimentos.
vatura. Certas propriedades, como A classificação de qualidades ado-
a densidade, não são consideradas tadas por numerosos escolásticos é
qualidades por Aristóteles, mas o re- semelhante à aristotélica: podem to-
sultado de relações (ibid., 10 a 18). mar-se como qualidades o hábito e
Característico das mencionadas clas- a disposição, a potência e a impotên-
ses de qualidades — às quais pode- cia, a fórmula e a figura. Entretan-
riam ser acrescentadas outras — é O to, ao tratar-se de uma classificação
terem contrários e o admitirem va- muito simples, logo surgiu o proble-
QUANTA (TEORIA DOS) 606

(c) As qualidades são concebidas “E” se lê “energia”, “v” se lê fre-


como propriedades redutíveis a ou- quência de vibração e “h”* simbol!-
tra propriedade ou a outra série de za a “constante de Planck” ou quan-
propriedades (mecanicismo). As qua- tum, expressa que a energia de um
lidades são então subjetivas. A con- quantum é diretamente proporcional
servar-se o nome ““qualidade” tam- à frequência da onda associada. O
bém para as qualidades objetivas, valor de “h” é 6,61 x 10” erg/se-
introduz-se, neste caso, a citada dis- gundo. Einstein valeu-se da hipóte-
tinção entre qualidades primárias e se de Planck para explicar o chama-
secundárias. do ““efeito fotoelétrico”* (1905) e
(d) As qualidades são concebidas para explicar que a capacidade caló-
como entidades irredutíveis. Esta po- rica dos sólidos é muito pequena
sição aproxima-se de (a) e tem mui- quando se aproximam do grau O de
tas variantes (Bergson e sua doutri- temperatura (1907). Max Bom e
na dos dados imediatos; Mach e o fe- Niels Bohr aplicaram a hipótese de
nomenismo; certas partes da feno- Planck, que assim se foi converten-
menologia de Husserl; Alexander e do numa hipótese central da física.
vários dos adeptos da evolução emer- Nos anos 20, Louis de Broglie esten-
gente). deu às partículas elementares então

QUANTA (TEORIA DOS) Rotula-


mais conhecidas, como
o elétron e o
próton, a concepção do dualismo en-
se com esse nome um conjunto de tre partícula e onda, postulando uma
teorias físicas desenvolvidas a partir relação entre energia e momento da
de 1900, com o trabalho de Max
Planck intitulado “Zur Theorie des
e
partícula, por um lado, frequência
e comprimento de onda das ondas
Gesetzes der Energieverteilung im associadas, por outro, que corres-
Normal-Spektrum” (Para a Teoria pondia à relação encontrada para a
da Lei de Distribuição de Energia no luz. Na mesma época, Erwin Schróô-
Espectro Normal). Até esse momen- dinger proporcionou o aparato ma-
to supusera-se que a energia radiat!- temático que permite descrever o
va, ou energia emitida por corpos comportamento ondulatório, dando
quentes, comportava-se como ondas origem à chamada ““mecânica ondu-
eletromagnéticas, sendo emitida e latória”*. Heisenberg desenvolveu um
absorvida continuamente por áto- cálculo de matrizes equivalente ao
mos. A teoria de uma emissão con- aparato matemático de Schrôdinger.
tínua não concordava com os expe- A desde então chamada ““mecâni-
rimentos sobre a relação entre a in- ca quântica” é a desenvolvida por
tensidade e a frequência da energia. Schrôódinger e Heisenberg, e depois
Planck postulou a emissão ou absor- por Paul Adrien, Maurice Dirac e
ção de energia em forma desconti- John (Johannes) von Neumann. Her-
nua, segundo certas “quantidades”' senberg formulou suas relações de
ou quanta. A fórmula E = hv, onde incerteza — também chamadas, pa-
607 QUANTA (TEORIAS DOS)

ra abreviar, “princípio de incerteza” tica; significa, porém, que muitas


ou ““princípio de indeterminação”. flutuações consideradas insuperáveis
Niels Bohr formulou o princípio de em mecânica quântica e, em todo o
complementaridade. De tudo isso caso, não submetidas a leis causais
surgiu a chamada ““Escola de Cope- precisas, podem predizer-se mais exa-
nhague”', liderada por Bohr, e con- tamente em outra teoria — numa
siderada a intérprete ortodoxa da teoria que admita “parâmetros ocul-
mecânica quântica. Na maioria dos tos” “níveis subquânticos” — e
e
casos, quando se fala de teoria dos podem estar submetidas a leis cau-
quanta e interpretações filosóficas sais. Em geral, os que atacaram o
dessa teoria, trata-se de mecânica “indeterminismo” da Escola de Co-
quântica e de suas interpretações f1- penhague afirmaram a possibilidade
losóficas. de restabelecimento de um ““determi-
As interpretações filosóficas da nismo”', ainda que, provavelmente,
mecânica quântica comportam fre- distinto do determinismo clássico, ou
quentemente uma teoria física e vice- mais refinado do que ele.
versa; não há aqui diferença funda- Outros críticos consideram que as
mental entre teoria física e interpre- implicações filosóficas admitidas ou
tação filosófica da teoria. A Escola adotadas pela Escola de Copenhague
de Copenhague basela-se fundamen- são desnecessárias e outras interpre-
talmente numa concepção positivis- tações filosóficas podem ser propos-
ta e operacional das realidades fis1- tas. O problema consiste em saber se
cas tratadas. Essas ““realidades”* não estas últimas alteram ou não as cons-
são, propriamente, realidades, mas truções da mecânica quântica. Se
são observáveis. Isso permite falar de não as alteram em absoluto, então
partículas e de ondas; ambas são cabe afirmar que a crítica da Escola
igualmente observáveis, de modo que
sua dualidade não é, a rigor, uma
de Copenhague é Irrelevante. Entre-
tanto, existe um amplo consenso em
dualidade real. Permite igualmente que a eliminação de inconsistências,
aceitar as relações de incerteza e con- dificuldades e até obscuridades na
siderar, em especial por intermédio mecânica quântica, por meio de uma
do teorema de von Neumann, que é interpretação filosófica, pode pelo
impossível eliminá-las. menos abrir o caminho para invest1-
Os críticos da Escola de Copenha- gações que estão estritamente veda-
gue podem dividir-se, grosso modo, das dentro da Escola de Copenha-
em duas classes. A dos que — como gue. Assim, por exemplo, se se co-
Louis de Broglie, Jean-Pierre Vigier meça por postular uma interpretação
e David Bohm — dizem haver uma (epistemologicamente) realista da
teoria alternativa à da mecânica mecânica quântica, altera-se a pró-
quântica. Isso não quer dizer que se pria natureza daquilo de que se tra-
neguem os ““resultados”' das inves- ta; em vez de serem observáveis, se-
tigações físicas em mecânica quân- rão entidades físicas, com proprieda-
QUANTIFICAÇÃO, QUANTIFICACIONAL, QUANTIFICADOR 608

des físicas determinadas e determi- tuma qualificar de tradicional. Esta


náveis. A interpretação realista não consiste em supor que em todo enun-
significa necessariamente atribuir de- cilado há três elementos: o sujeito, o
signata a todos os conceitos de que verbo — também chamado ““cópu-
se vale a mecânica quântica; pelo la” — e o predicado ou atributo. As-
contrário, pode consistir em abster- sim, os sujeitos de (1), (2) e (3) são,
se de usar conceitos para os quais respectivamente, ““Pantagruel”,
não haja referentes físicos precisos. “Hesíodo” e “A Terra”, os verbos
são “come”, “é” e “gira”; os preê-
QUANTIFICAÇÃO, QUANTIFI- dicados, “muito” (“muitas coisas”),
CACIONAL, QUANTIFICADOR “poeta grego” e “em torno do seu
Os enunciados: eixo”. Em muitos casos, prefere-se
reduzir o verbo à cópula ““é””. Neste
Pantagruel come muito (1),
Hesiodo é um poeta grego (O),
caso (1), traduz-se por “Pantagruel
é um comilão” e (3) por “A Terra
A Terra gira em torno do
é uma entidade que gira em torno do
seu elxo G),
seu eixo”; (2) deixa-se tal como es-
podem ser considerados sem levar tá. Assim, os predicados de (1) e (3)
em conta a sua composição. Neste
caso, cada um deles pode ser simbo-
convertem-se em “um comilão”
“uma entidade que gira em torno do
e
lizado mediante uma qualquer das le- seu eixo”. NÓs seguiremos o uso
tras sentenciais “p””, “q”, “Fr”, ete. atual e trataremos o enunciado so-
Em contrapartida, quando conside: mente com os dois elementos men-
ramos sua composição, não pode- cionados: argumento e predicado.
mos simbolizá-los mediante letras Simbolizaremos os argumentos
sentenciais e teremos de averiguar de

e,
com as letras CW”, x”
ÉS c“

C“

que elementos se compõem, usando EX, ey”, O. " etc., ha


argunentos"
para cada um deles uma determina- madas ““letras e os
da série de símbolos. Pois bem, qual- predicados mediante as letras ““F”,
quer dos citados enunciados pode “GC”, “O, E”, “GG”, “O”,
decompor-se em dois elementos: o etc., chamadas “letraspredicados”.
argumento — ou sujelto — e o pre-
dicado — ou verbo. Em (1) o argu-
Antepondo as
letras predicados às le-
tras argumentos, simbolizaremos (1)
mento é ““Pantagruel”; em (2) é mediante:
“Hesíodo”; em (3), “A Terra”. Em FX,
(1) o predicado é “come muito”; em
(2) é “é um poeta Brego'; em (3), em que “x” se lê “Pantagruel” e
“gira em torno do seu eixo”. Cum- “FF” se lê “come muito”. (Embora
pre advertir que esta divisão entre ar- seja usual colocar entre parênteses a
gumento e predicado, empregada na letra — ou letras — argumento, co-
lógica simbólica atual, não coincide mo “F()”, nós os suprimimos pa-
exatamente com a divisão que se cos- ra maior simplicidade.) Analoga-
609 QUANTIFICAÇÃO, QUANTIFICACIONAL, QUANTIFICADOR

mente, podemos simbolizar (2) e (3) nais atômicos”. Esses esquemas ou


mediante “Fx” se, no primeiro ca- outros análogos podem unir-se me-
so, “x” for lido como “Hesíodo”
“F” como “é um poeta grego”; e,
e diante conexões e formar esquemas
quantificacionais moleculares. É o
no segundo caso, “x” se ler “A Ter- que ocorre com os esquemas:
ra” e “F” seller “gira em torno do
seu eixo”. Assinalemos que ““Fx” Fx— Gx
pode simbolizar enunciados com (Fx A Gx)— Hz
mais de um predicado gramatical. É
O que ocorre em:
cujos exemplos podem ser:

Júlio César foi assassinado por Se Antônio lê, então Margarida


Bruto (4), costura,
Se Antônio lê e Margarida
se “Júlio César” se simboliza por costura,
“x” e “foi assassinado por Bruto” então a casa está silenciosa.
por “F””. Entretanto, (4) também
pode simbolizar-se por: Procedamos agora à quantificação
dos enunciados. Essa quantificação
FXY
pode abarcar somente os argumen-
se “x” “Júlio César”, “7” se
se lê tos ou os predicados também. No
lê “Bruto” e “F”* se lê “foi assassi- primeiro caso, a lógica de que se tra-
nado por”. Analogamente, ta é uma lógica quantificacional ele-
mentar. No segundo caso, trata-se de
Miguel percorre lentamente a uma lógica quantificacional supe-
estrada que vai de Córdoba a rior.
Madri Consideremos, de momento, ape-
pode simbolizar-se mediante “Fx” se nas a quantificação de letras argu-
“x” se ler “Miguel” e “F” se ler mentos. Vejamos os seguintes enun-
“percorre lentamente a estrada que clados:
val de Córdoba a Madri”; mediante Todos os homens são mortais (5),
CEI” se “x” seller “Miguel”,
estrada que
se ler ““a
7”
vai de Córdo-
Nenhum homem é unicelular (6),
Alguns gregos são filósofos (7),
ba a Madri” e “F” se ler “percorre
Alguns gregos não são atletas (8).
lentamente”; mediante “Fxyz” se
“x” for lido como “Miguel”, ““y” No artigo sobre a noção de pro-
como ““a estrada que vai de Córdo- posição, vimos que (5), (6), (7) e (8)
ba”,
como
Ex como q Madri”, e Fr”
““percorre lentamente”. Ob-
são, respectivamente, exemplos das
proposições de tipo A (universal afir-
serve-se que o advérbio ““lentamen- mativa), E (universal negativa), |
incorpora-se ao predicado. (particular afirmativa) e O (particu-
e
te”*

Px, CP “EFxyz” recebem


o nome de “esquemas quantificacio-
lar negativa). (5) e (6) estão quanti-
ficados universalmente; (7) e (8) o es-
QUANTIFICAÇÃO, QUANTIFICACIONAL, QUANTIFICADOR 610

tão particularmente — ou existen- de tal negação é, pois:


clalmente. Passemos agora a expli-
car como se formam os esquemas
A X
(Fx| Gx)
quantificacionais de que (5), (6), (7) que pode ler-se:
e (8) são exemplos.
Se tomarmos o esquema: Nenhum homem é unicelular

Fx— Gx se “F” se lê “é um homem” e “GG”


se lê “é unicelular””.
poderemos lê-lo assim: Se tomarmos agora o esquema:
Se x homem, então x é
é Fx AGxX
mortal (9).
poderemos lê-lo:
Substituindo “x” por um termo
singular, como em: x é grego e x é filósofo (11)

Se Sócrates é homem, então Substituindo ““x*”* por um termo sin-


Sócrates é mortal gular, como em:
(9) converter-se-á num enunciado. Sócrates é grego e Sócrates
Mas se não substituirmos “x” por é filósofo,
um termo singular, (9) não será um (11) converter-se-á num enunciado.
enunciado. Com o fim de conver-
Mas se não substituirmos “x” por
ter (9) num enunciado, teremos de
um termo singular, (11) não será um
quantificar universalmente “x”. À
enunciado. Para converter (11) num
quantificação universal terá por re-
sultado: enunciado, teremos de quantificar
particularmente “x”. A quantifica-
Para todos os x, se x é homem, ção particular terá como resultado:
então x é mortal (10)
Para alguns x, x é grego
equivalente a: e x é filósofo (12)
Todos os homens são mortais. equivalente a:
“Para todos” é simbolizado me- Alguns gregos são filósofos.
diante “ A [a notação antes corren-
”*

te era “()”*], a que se dá o nome de “Para alguns” é simbolizado me-


“quantificador universal”. (10) se- diante “ v ”* [a notação antes corren-
rá então simbolizado por: te era “(3)”], o chamado ““quanti-
ficador particular”.
A X
(Fx Gx) (12) será então simbolizado por
A negação de tal quantificação vV X(Fx À Gx)
universal leva-se a efeito afirmando
que se para todos os x, x é F, então A negação de tal quantificação
não é o caso de x ser G. O esquema particular é levada a efeito afirman-
611 QUANTIFICAÇÃO, QUANTIFICACIONAL, QUANTIFICADOR

do que para alguns x, xé F e não é Consideremos agora, brevemente,


G. O esquema de tal negação é, pois: a quantificação também de letras
VX(EFXA 1Gx) predicados e o uso de letras predica-
dos como argumentos. Essas duas
que pode ler-se: possibilidades, que estavam excluí-
Alguns gregos não são atletas das da lógica quantificacional ele-
mentar, são admitidas na lógica
se “F” selê “é grego” e “G” se lê quantificacional superior. Nesta úl-
“é atleta”. tima lógica incluem-se, por conse-
Observemos que “ v x”* pode ler- guinte, fórmulas como:
se de vários modos: ““Para alguns
x”, “Há um x tal que”, “Há pelo VF(FXAFY)
menos um x tal que”, “Há no má- F (G)
ximo um x tal que”, etc. A indica-
que podem ler-se, respectivamente:
ção de “Há pelo menos nx tais que”,
“Há no máximo nx tais que”, “Há O homem e o animal têm um traço
exatamente nx tais que” expressa-se em comum,
por meio dos quantificadores numé- Ser racional é uma qualidade
ricos. A análise desses quantificado- desejável.
res efetua-se por meio da introdução
Em virtude disso, a lógica quantifi-
do sinal de identidade (ver) “=”,
cacional superior permite apresentar
Podem quantificar-se universal ou
em linguagem lógica um número
particularmente quaisquer letras ar-
consideravelmente maior de enuncia-
gumentos. Entretanto, nem todas as
letras argumentos estão quantificadas
dos do que era permitido na lógica
em todas as fórmulas quantificacio-
quantificacional elementar. Entre-
nais. As letras argumentos quantifi- tanto, como a lógica quantificacio-
cadas chamam-se “ligadas”; as não nal superior aloja em seu interior um
quantificadas, “livres”. Os esquemas certo número de paradoxos lógicos,
é necessário modificá-la com o pro-
que possuem todas as letras argumen-
tos quantificadas chamam-se ““esque- pósito de eliminá-los. Referimo-nos
mas fechados”; os que possuem ao a este ponto no artigo sobre a noção
menos uma letra argumento não de paradoxo.
quantificada chamam-se “esquemas Empregamos até aqui o termo
abertos”. “quantificador”. Mas alguns auto-
Podem quantificar-se também não res preferem o vocábulo ““opera-
só, como se fez antes, esquemas dor”. Entre estes autores figura H,.
quantificacionais moleculares, mas Reichenbach, que assinala que não
ainda os esquemas quantificacionais se pode usar “quantificador”º para
atômicos. Assim, por exemplo, “Fx” as operações destinadas à união ou
em “ v xEx””, que pode ler-se “Algo vinculação de variáveis, porquanto
é agradável”. os enunciados universal ou particu-
QUESTÃO 612

larmente quantificados são qualita- tência implica ou não a questão de


tivos e não quantitativos. ser depende já de que forma de pen-
samento existencial adotemos. As-
QUESTÃO
O conceito de
“questão”
ou “pergunta” pode ser discutido de
sim, por exemplo, para Heidegger,
a questão é sempre, fundamental-
dois pontos de vista: o lógico e o exis- mente, uma questão em torno do ser.
tencial. Desde o ponto de vista da ló- Aquilo sobre o que questionamos de-
gica, aquelas expressões que impliI- termina de algum modo a trajetória
cam pergunta ou interrogação per- da pergunta e da resposta: o ques-
tencem à “lógica erotética” (de éoço- tionado elucida a questão. Heideg-
ua, perguntar). Alguns estudiosos, ger insistiu tanto no tema do ques-
como A. N. Prior, objetam que esta tionar que se pode dizer que o seu
lógica, se não é impossível, é pelo me- pensamento é fundamentalmente
nos muito difícil. Outros pretende- “interrogativo”. Por outra parte, é
ram desenvolver esta lógica, propon- curioso como na obra de Heidegger
e
do uma série de axiomas novos uti-
lizando o sinal ““?9”*. Entre eles, Ge-
são abundantes as expressões inter-
rogativas. Também as encontramos
rald Stahl, que baseou sua lógica das em outros pensadores — como Una-
questões em alta lógica quantificacio- muno — em quem o questionar não
nal. Também David Harrah traba- é algo estritamente lógico, uma vez
lhou nesta área da lógica, que ele que vem a representar a dúvida que
achava dever ser incluída na lógica acompanha toda fé.
proposicional. As questões ou, me- Jeanne Delhomme (La pensêe in-
lhor dizendo, o processo pergunta- terrogative, 1954) desenvolveu o pen-
resposta é para Harrah algo como um samento interrogativo com um cará-
jogo em que a informação dada coin- ter mais ou menos existencial. A vi1-
cide com a que fora solicitada. Em da nada é, exceto ao Interrogar-se so-
contraste com Stahl, Harrah não em- bre si mesma. Essa questão radical
prega o sinal ““?9”* como específico da pode assumir diversas formas: amor,
lógica erotética. medo, angústia, etc., são outros tan-
De um ângulo existencial, a ques- tos sentimentos de natureza interro-
tão — ou, melhor, o questionar — gativa. Logo, a questão que Delhom-
pode considerar-se um modo de ser me apresenta não se refere simples-
próprio da existência humana, mo- mente ao pedido de uma resposta;
do de ser que se diferencia do modo não há um último interrogante, sal-
de comportar-se em que se pergunta vo que tratemos do silêncio absolu-
a respeito de algo distinto do próprio to. Assim, pois, o ser recorta-se con-
ser. Assim, nem toda questão é exis- tinuamente.
tencial; somente o é quando a exis- Poderíamos considerar que a filo-
tência se questiona a sil mesma, as- sofia não é somente — como $se pre-
sim se convertendo em ““o questio- tende, às vezes — uma questão fun-
nável”'. Se a questão acerca da exis- damental (O que é o ser? Por que o
613 QUESTÃO

ser e não o nada? etc.), mas, de fato, deixam deter caráter filosófico. Não


o questionar radical, já que tão de- se trata, porém, de questionar por
pressa quanto se resolva uma pergun- questionar, nem é tema que envolva
ta, ambas — pergunta e resposta — somente problemas insolúveis.
R
R Na lógica das relações, a letra dizer “é racional”, que é o que se
malúscula ““R” serve como notação tratava de saber. Dizer que o homem
abreviada para os abstratos duplos. é racional, ou é um ser racional, é ca-
Assim, no esquema relacional racterizar o ser humano mediante um
“xXRYy',aletra “R” lê-se “tem a re- predicado que requer, por sua vez,
lação R com” e o esquema comple- explicação.
to lê-se “x tem a relação R com y”*. Um dos usos mais difundidos de
Outras letras usadas com o mesmo “racionalidade” deve-se à introdu-
propósito são “O” e “S”. Diz-se, ção, por Max Weber (“Soziologische
então, “a relação O”, “a relação Grundbegriffe”", nos Gesammelte
R”', “a relação S”. Aufsàãtze zur Wissenschaftslehre, 2º
Para o uso da letra minúscula ““r” edição, 1951, ed. J. Winckelmann,
na lógica sentencial, ver P. pp. 527-65), das expressões Zweck-
rationalitãt (racionalidade dos fins)
RACIONALIDADE O predicado e Wertrationalitãt (racionalidade do
“é racional”* pode ser aplicado de valor). O primeiro tipo de racionali-
modos diversos: Pode-se dizer que o dade refere-se a fins que são meios
mundo é racional, que o homem é para outros fins; é, polis, uma racio-
um ser racional, que os meios que se nalidade ““relativa””. O segundo tipo
utilizam são racionais, que os fins de racionalidade refere-se a valores
que se perseguem são racionais, que preferidos; é, pois, uma racionalida-
uma proposição é racional, etc. Al- de que se supõe, ou se declara, ““ab-
gumas dessas aplicações ou não são soluta””. Uma distinção que teve,
muito claras, ou são demasiado cla- aparentemente, muito efeito na lite-
ras, no sentido de que não chegam ratura filosófica e sociológica con-
a dizer nada. Dizer que o mundo é temporânea é a estabelecida entre
racional equivale a dizer que é inte- “racionalidade dos meios” (que po-
ligível, que é suscetível de ser enten- dem incluir a racionalidade dos fins
dido racionalmente, etc. Mas não se que são meios para outros, ou a
sabe bem o que se quer dizer com 1s- mencionada Zweckrationalitãt webe-
so, ou, se se sabe bem, ou se crê sa- riana) e “racionalidade dos fins” co-
ber bem, é porque se repete o que Já mo tais. Não fica sempre claro o que
foi dito ou pressuposto. Se definimos se entende por ““fins””, menos ainda
“é racional” por “é entendido racio- por que se deve chamar de ““racio-
nalmente”, necessitaremos definir nais” certos “fins”. Se o fim perse-
“é entendido racionalmente”, a me- guido é, por exemplo, uma socieda-
nos que com isso queiramos apenas de economicamente igualitária ou, se
RACIONALIDADE 616

se quiser, economicamente ““Justa””, dos fins e a racionalidade dos meios


cabe declarar que tal sociedade é tem seu paralelo em outras distin-
mais racional do que uma sociedade ções, como a estabelecida por Karl
não igualitária, ou injusta, mas, en- Mannheim entre racionalidade subs-
tão, o adjetivo “racional” é empre- tanclial e racionalidade funcional, ou
gado como equivalente de ““preferi- como a proposta por Horkheimer e
vel”, “melhor do que”, “tem valor outros membros da Escola de Frank-
intrínseco”, etc. Uma sociedade eco- furt entre razão e “mera” razão ins-
nomicamente igualitária tem certas trumental. Na base dessas distinções
características e uma sociedade eco- encontra-se a idéia de que só a racio-
nomicamente não igualitária tam- nalidade dos fins ou alguma de tipo
bém tem certas características, opos- similar é verdadeiramente racional;
tas às da primeira, mas ambas po- a racionalidade dos meios é conside-
dem ser igualmente racionais (ou não rada subordinada. Alguns conside-
racionais), dependendo da validade ram que a racionalidade dos fins, a
ou não validade das razões que se racionalidade dos valores, a raciona-
forneçam para preferir uma à outra. lidade substancial, etc., por um la-
São, polis, as razões — principalmen- do, e a “racionalidade dos meios”,
te razões justificativas — ou os enun- por outro, são independentes entre
ciados que as sustentam que podem si, de modo que podem pôr-se em
ser qualificados de ““racionais”* ou prática meios perfeitamente racio-
“não racionais”. Tampouco fica nais ou assim considerados, para
muito claro o que se deve entender atingir fins não racionais. Em prin-
por “meios”, e ainda menos por que cípio, dever-se-la aceitar a possibil1-
se pode chamar de ““racionais” cer- dade oposta, 1sto é, que meios não
tos meios. Se, para alcançar o teto racionais pudessem levar a cabo ou
de um quarto, necessito de uma es- realizar fins racionais; de fato, a
cada, custa pensar que a escada seja idéia do artifício da razão hegeliana
racional porque permite alcançar o é um exemplo dessa possibilidade.
teto, ao passo que, por exemplo, um Vários autores consideram que a ra-
banquinho seria irracional por não cionalidade de fins ou racionalidade
permitir chegar-se ao fim proposto. substancial é ou uma série de atos
O que é racional (ou não racional) mentais ou um tipo de organização
é o uso da escada (ou do banquinho), de acordo com um certo modelo, ao
uso que se justifica como racional passo que a racionalidade de meios
(ou não racional) por corresponder ou racionalidade instrumental (fun-
a um determinado método de aces- cional) é um conjunto de atividades.
SO (ou não acesso), método que, com A racionalidade de fins ou de valo-
efeito, pode ser qualificado de racio- res é vista como um conjunto de nor-
nal ou de não racional (ou irracio- mas cujo valor é independente da ef!-
nal). cácia; a racionalidade de meios é
A distinção entre a racionalidade considerada um conjunto de funções.
617 RAZÃO, TIPOS DE

O conceito de racionalidade de um modo dogmático e, paradoxal-


fins e o de racionalidade de meios mente, irracional, porque não são
são intuitivamente compreensíveis, oferecidos critérios mediante os
mas, com o propósito de os tornar quais se adotem tais ou tais propo-
claros, cumpre traduzir em cada ca- sições, princípios, crenças, etc. O se-
so os fins ou meios de que se trata gundo modo é menos imperativo,
para os termos dos quais se pode di- porquanto não indica que proposi-
zer, em forma menos confusa, que ções, princípios, crenças, etc., são
são racionais ou não racionais, Isto aceitos, limitando-se a apontar que
é, que cumprem ou não certas ““con- critérios cumpre usar a fim de que
dições de racionalidade”. Exemplos tais proposições, princípios, crenças,
desses termos são proposições, cren- etc., possam ser aceitos. Esse segun-
ças, atos, etc., especificamente as do modo evita, na medida do possi-
proposições, crenças, atos, etc., ma- vel, o dogmatismo, especialmente
nifestados, possuídos, executados, quando se oferece a possibilidade de
etc., por seres humanos. Pode-se de- mudar de critérios sempre que se
bater então sobre que condições são apresentam novos fatos, novos con-
ou não aceitáveis como condições de textos, etc. Por esse motivo, o segun-
racionalidade, mas há poucas dúvi- do modo está ligado ao terceiro. O
das de que é imprescindível haver inconvenitente deste último está em
certas condições ou, como se indicou que consiste num modo tão mera-
antes, certos critérios. Estes não de- mente regulador, que quase se limi1-
terminam o conteúdo das aludidas ta a propor a adoção de critérios de
proposições, crenças, atos, etc., mas racionalidade que sejam os mais per-
os métodos em virtude dos quais se tinentes em cada caso.
aceitam ou não, se executam ou não
esses termos. Os métodos em ques- RAZÃO, TIPOS DE Com freqiiên-
tão devem consistir em justificar os cla, quando se falou de razão, esta
passos dados para a sua aceitação ou foi especificada, indicando-se de que
não aceitação, execução ou não gênero, classe, forma, modo ou ti-
execução. po de razão se trata. A lista é exten-
A racionalidade pode ser conside- sa: “razão universal”,“razão par-
rada de três modos: expressando um ticular”, “razão natural”, “razão
conteúdo (proposições, princípios, adequada”, “razão humana”, ““ra-
crenças, etc.); expressando um crité- zão divina”, etc. Nem todos os ad-
rio ou série de critérios para formu- jJetivos adicionados à ““razão” pres-
lar juízos; expressando uma atitude. supõem o mesmo conceito de razão.
O primeiro modo é muito preciso: Em alguns casos, entende-se ““ra-
são racionais tais ou tais proposi- zão”* como uma faculdade; em ou-
ções, princípios, crenças, etc. Ao tros, como um conceito; em outros,
mesmo tempo, apresenta grandes in- equipara-se “razão” e “intelecto”:
convenientes, em particular o de ser ainda em outros, fala-se de “razão”
RAZÃO, TIPOS DE 618

como equivalente de “prova”;eem tica a si mesma, Isto é, critica os seus


outros, enfim, como se se tratasse de pressupostos. Por isso, a atitude f1-
uma explicação, em particular de losófica correspondente foi rotulada
uma explicação capaz de distinguir- de “criticismo””. Também recebeu o
se da explicação causal. nome de ““razão crítica” a forma de
Razão analítica. A distinção, a razão adotada pelos filósofos que de-
classificação, a dedução, a decompo- senvolveram o racionalismo crítico
sição de um todo ou conjunto em (Popper, Hans Albert, etc.). O tipo
suas partes e outras operações cos- de razão de que se valeram os pen-
tumam ser consideradas analíticas. sadores que elaboraram a chamada
A razão analítica tende a usar mo- “teoria crítica” também pode ser de-
delos formados por objetos abstra- nominado ““razão crítica”.
tos e, nesse sentido, há estreitas re- Razão dialética. Assim se chama
lações entre razão analítica e razão o tipo de razão desenvolvido por He-
abstrata, a ponto dessas expressões gel, Marx e numerosos autores. Um
serem usadas, por vezes, indistinta- dos usos mais conhecidos da expres-
mente. Em muitos casos, a razão são ““razão dialética” encontra-se em
analítica dedica grande atenção aos Jean-Paul Sartre, que empreendeu a
processos lógicos e matemáticos de elaboração e o desenvolvimento de
inferência e dedução.
uma ““crítica da razão dialética”
Razão concreta. À razão concre-
(Critique de la raison dialectique. T.
ta consiste, fundamentalmente, em Théorie des ensembles pratiques,
descrições, constituindo assim a ba-
1960), a qual tem por objetivo exa-
se do que se designou por razão nar-
minar ““o limite, a validade e à ex-
rativa ou razão histórica. Ambas, a
tensão da razão dialética”.
razão narrativa e a razão histórica,
são concretas. Em termos gerais, a
Razão histórica. Esse conceito de
razão está ligado à noção de cons-
noção de ““razão concreta” é menos ciência histórica e aos esforços rea-
precisa do que qualquer das outras
lizados com o fim de conceituar tal
duas.
consciência. A idéia da razão como
A razão dialética é, por vezes, de-
nominada ““razão concreta”, para razão histórica está difusa — em vá-
diferenciá-la da razão abstrata. Es- rios sentidos de “difusa” — em Dil-
sa expressão, “razão concreta”, Já they, que orientou a sua reflexão pa-
fora utilizada por alguns escolásti- ra uma ““crítica da razão histórica”
cos, porém, seu uso mais comum, enquanto razão que, à semelhança
hoje em dia, é o dado por Hegel. da dialética, tem em si mesma o seu
Razão crítica. Trata-se do tipo de fundamento, uma vez que a razão
razão de que se valeu Kant Justamen- histórica é o seu próprio desenvolvI!-
te para examinar (criticamente) a ra- mento no transcurso de seu passado,
zão (pura). A razão crítica é a razão na constituição do seu presente e das
que se examina e, portanto, que cr!- possibilidades para o seu futuro.
619 REALISMO

Razão instrumental. A razão ins- tem sentidos diversos que nem sem-
trumental é a que se encontra a ser- pre estão incluídos no conceito de
viço de algum outro tipo de razão “teórico”. À parte o uso que teve em
que se considera ser a principal; as- Aristóteles e nos escolásticos, o que
sim, a razão instrumental é ancilar Kant lhe deu foi o de maior influên-
e subordinada a uma razão ““subs- cia.
tantiva”* ou “substancial””. A razão Segundo Kant, as duas razões —
Instrumental é também chamada a teórica e a prática — não são dois
“razão funcional”. O conceito de ra- tipos distintos de razão, mas a mes-
zão Instrumental é mais sociológico ma razão, a qual difere em sua apli-
e (ocasionalmente) ético do que on- cação. A razão, em seu uso prático,
tológico ou epistemológico. Em prin- ocupa-se das razões determinantes
cÍpio, parece que a razão Instrumen- da vontade, da liberdade, etc., e en-
tal consiste num ““saber como”, dis- tão seu uso é ético ou moral.
tinto de um “saber que”.
Razão mecânica. Alguns autores REALISMO Três sentidos podem
estabeleceram uma distinção entre ser adotados do ponto de vista filo-
“razão mecânica” e “razão dialéti- sófico.
ca”. Essa distinção é, em muitos as- 1. “Realismo” é o nome da atitu-
pectos, semelhante à que foi feita en- de que se limita aos fatos “tal como
tre “razão analítica” e “razão dia- são”, sem pretender sobrepor-lhes
lética””. Entretanto, o conceito de ra- interpretações que os falseiam ou
zão mecânica encontra-se no modo sem aspirar a violentá-los por meio
de pensar mecanicista, segundo o dos próprios desejos. No primeiro
qual a máquina como objeto e a me- caso, o realismo equivale a uma cer-
cânica como ramo da física consti- ta forma de positivismo, já que os
tuem o modelo de explicação racio- fatos a que se faz referência são con-
nal da realidade. A razão mecânica cebidos como ““fatos positivos” —
é, segundo esses autores, uma razão em contraste com as imaginações, as
que se desenvolve mediante partes teorias, etc. No segundo caso, temos
componentes que se articulam num uma atitude prática, uma norma (ou
conjunto, o que a diferencia da ra- conjunto de normas) para a ação. O
zão dialética, que parte de um con- chamado ““realismo político” perten-
junto ou do que se chamou ““totali- ce a esse realismo prático. Alguns
zação”. acreditam que sem esse realismo não
Razão prática (“e” razão teórica). se pode conhecer (e, portanto, domi-
A expressão “razão prática” deve ser nar) nada da realidade e que conhe-
entendida principalmente em con- cer (e dominar) esta última equivale
traste com a expressão ““razão teó- a obedecê-la. Outros argumentam
rica”. Por vezes, esta última é tam- que as idéias e os ideais são tão ope-
bém designada como ““razão especu- rantes, pelo menos, quanto os pró-
lativa””, mas este último vocábulo prios “fatos” e que um ““realismo
REALISMO 620

completo” deveria ser o mesmo que Idade Média, Santo Anselmo e rea-
um ““positivismo total”, ou seja, lista extremo costuma ser considera-
uma posição que não pretendesse ig- do Guilherme de Champeaux. Este
norar nada do que é, em vez de li- último, porém, sustentou uma teo-
mitar o que é a certos aspectos da ria que também pode ser qualifica-
realidade. da de “realismo empírico”*. Como a
2. “Realismo” designa uma das posição realista opunha-se à nomi-
posições adotadas na questão dos nalista (e à conceptualista), um dos
universais: a que sustenta que os uni- melhores modos de entender aquela
versais existem realiter ou que uni- consiste em examinar estas duas úl-
versalia sunt realia. Na realidade, há timas, especialmente o nominalismo.
três formas de realismo: duas extre- Extensas análises nesse sentido são
mas e uma moderada. encontradas em vários autores me-
O primeiro autor que adotou uma dievais, sobretudo em Abelardo.
teoria realista dos universais foi Pla- As idéias de Abelardo prepararam
tão; por 1sso, o realismo foi chama- o caminho para o realismo modera-
do, com certa frequência, “realismo do, o qual aspirava a encontrar um
platônico” ou ““platonismo”. Con- ponto médio entre o realismo extre-
tudo, a doutrina platônica é comple- mo e o extremo nominalismo. O rea-
xa e não pode simplesmente ser iden- lismo moderado é a posição segun-
tificada com uma posição realista, do a qual o universal não está fora
menos ainda com o realismo abso- da mente, como se fosse uma coisa
luto ou exagerado. Atribui-se a Aris- entre outras, mas tampouco está na
tóteles uma posição realista modera- mente, como se fosse apenas um pro-
da que coincide em grande parte com cesso psíquico. O universal está fo-
o conceptualismo, mas também nes- ra da mente, mas só como res con-
se caso deve-se levar em conta que cepta, “coisa concebida”, e está na
se trata de uma simplificação e, em mente, mas só como conceptio men-
boa medida, de uma certa interpre- tis, “concepção mental”, isto é,
tação (principalmente a chamada “conceito”. Ainda que não fora da
“aristotélico-tomista”!) da posição mente, o universal tem um funda-
aristotélica. O realismo agostiniano mentum in re, está fundamentado na
tem muito de platônico, a ponto de colsa ou na realidade, porquanto, se
ser fregiientemente qualificado de assim não fosse, seria mera ““posi-
“realismo platônico-agostiniano”'. ção” de algo ou mera “imagina-
Sua principal característica consiste ção”. O problema que se debate aqui
em que “situa”, por assim dizer, os é o do caráter “separado” (ou ““pre-
universais (ou idéias) na mente div1- ciso””) dos universais. Seguindo a po-
na, em vez de considerá-los existen- sição do realismo moderado, Santo
tes num mundo supraceleste ou in- Tomás expressou o citado caráter
teligível. Realista num sentido mui- nos seguintes termos: “As palavras
to próximo do agostiniano foi, na universal abstracto significam duas
621 REALISMO

cOIlSas: a natureza de uma coisa e sua ciência (ou pelo sujeito). O realismo
abstração ou universalidade. Portan- metafísico afirma que as coisas exis-
to, a própria natureza, à qual ocor- tem fora e independentemente da
re ser entendida ou ser abstraída, ou consciência ou do sujeito. Como se
a intenção de universalidade, somen- vê, o realismo gnoseológico ocupa-
te existe nas coisas singulares, mas se unicamente do mdo de conhecer;
o ser entendido ou o ser abstraído, o metafísico, do modo de ser do real.
ou a intenção de universalidade [o O realismo gnoseológico pode,
ser considerado como universal] es- por sua vez, ser concebido de duas
tão no intelecto” (S. Theol., L, a. maneiras: ou como realismo “ingê-
LXXXV, a 2, ad. 2). nuo” ou “natural”, ou como realis-
3. “Realismo” é o nome que se dá mo científico, empírico ou crítico. O
a uma posição adotada na teoria do realismo ingênuo supõe que o conhe-
conhecimento ou na metafísica. Em cimento é uma reprodução exata
ambos os casos, o realismo não se (uma ““cópia fotográfica”) da reali-
opõe ao nominalismo, mas ao idea- dade. O realismo científico, empír!-
lismo. co ou crítico adverte que não se po-
A contraposição entre realismo e de simplesmente equiparar o perce-
idealismo foi frequente durante a bido com o verdadeiramente conhe-
Época Moderna. No decorrer dessa cido e que é preciso submeter o da-
época, desenvolveram-se várias cor- do ao exame e ver (para depois le-
rentes idealistas (como ocorre, em var em conta quando se formulam
parte, em Descartes, de um modo Juízos definitivos) o que há no co-
mais acentuado em Kant — ou nu- nhecimento que não é mera reprodu-
ma das possíveis interpretações de ção. É fácil verificar que o realismo
Kant — e de um modo decidido nos científico, empírico ou crítico pode
autores do chamado ““idealismo ale- receber o nome de ““realismo mode-
mão”). O realismo gnoseológico rado” e aproximar-se, então, do que
confunde-se, por vezes, com rea-
oO poderia ser classificado como ““idea-
lismo metafísico, mas tal confusão lismo moderado”.
é desnecessária; com efeito, pode-se Depois de ter sido combatido (ou
ser realista gnoseológico e não ser menosprezado) durante boa parte da
realista metafísico, ou vice-versa. O Época Moderna, o realismo, tanto o
realismo gnoseológico afirma que o gnoseológico quanto o metafísico,
conhecimento é possível sem ser ne- recuperou importância no pensa-
cessário supor (como fazem os idea- mento contemporâneo. À maior par-
listas) que a consciência impõe à rea- te dos filósofos desta época aderiu,
lidade — tendo em vista seu conhe- com efeito, explícita ou implicita-
cimento — certos conceltos ou cate- mente, ao realismo. Isso ocorre in-
gorias a priori; o que importa no co- clusive com os autores neokantianos,
nhecimento é o dado, de maneira ne- que transformam seu ““idealismo crií-
nhuma o que é colocado pela cons- tico” de modo a situá-lo numa po-
REALISMO 622

sição muito próxima do que chama -


mos ““realismo crítico”. Certos filó-
fundou-se a (já conhecida) “Associa-
tion for Realistic Philosophy”.
sofos autodenominam-se ““realistas Encontramos uma exposição de-
críticos”, como é o caso de A. Riehl, talhada das teses aludidas não só no
A. Messer, Johannes Volkelt, O. livro de Wild, mas também no volu-
Kulpe e N. Hartmann, entre outros. me intitulado The Return to Reason
Alguns sustentam um ““realismo vo- (1953), escrito por H. M. Chapman,
litivo””, baseado na concepção da J. Wild e outros.
realidade como resistência; é o caso Certos autores transformaram o
de Dilthey, M. Frischeisen-Kóbhler, realismo num reísmo, de que encon-
M. Scheler e muitos outros. As es- tramos um exemplo no pensamento
colas neo-escolásticas e neotomistas de T. Kotarbinsk1. Esse reísmo é uma
também revalorizaram o realismo, das conseqiiências de certo positivis-
proclamando que não tiveram de mo radical que, segundo X. Zubiri,
pode ser classificado de “reíismo sem
passar, como os autores modernos,
idéias” e que nada mais é do que uma
pelo ““erro idealista”. Mas isso não
significa que o realismo de todos es- reação extremada contra a posição
do ““ideíismo sem realidade”. Outros
ses pensadores seja o mesmo. Inclu-
sive entre os neo-escolásticos e os autores partiram de bases realistas
neotomistas produziram-se muitas para desembocar numa nova forma
de idealismo: o “idealismo fenome-
formas diversas de realismo. Assim, nológico”? de Husserl é o caso mais
enquanto alguns mantiveram a dou- eminente. Pois bem, junto com o de-
trina do realismo-cópia, outros sus- senvolvimento do realismo em suas
tentaram o chamado ““realismo ime- diversas formas, houve (inclusive em
diato””. autores realistas em princípio) uma
Juntamente com correntes realis- forte tendência a levar a cabo o que
tas de diversos matizes, há certas es- se chamou ““a superação do idealis-
colas que consideram o realismo co- mo e do realismo”? — quando esses
mo sua posição central. Tais escolas dois termos passaram a ser entendi-
foram abundantes na Inglaterra e dos tanto numa acepção gnoseológi-
nos Estados Unidos. Acrescente-se ca quanto numa acepção metafísica.
que, em época recente, surgiu nos Em parte, a fenomenologia moveu-
Estados Unidos outro movimento se nesse sentido (não obstante o su-
chamado filosofia realista, que se di- pracitado idealismo fenomenológi-
fundiu sob a inspiração de John co), como muitos escritos do próprio
Wild (nasc. 1902), o qual pretende Husserl atestam, assim como as ten-
seguir, em seu livro Introduction to dências do “realismo fenomenológi-
Realistic Philosophy (1948), a tradi- co” elaborado por A. Pfânder. Mas
ção de Platão, Aristóteles, Santo também encontramos esses esforços
Agostinho e Santo Tomás (entre ou- para situar-se “aquém” dessas posi-
tros). Com base nas idéias de Wild, ções nas orientações ““neutralistas”
623 REFERÊNCIA

vigentes nos começos do século. Es- sOse prestaria a confusões. Qualquer


sas correntes tendem a considerar su- das palavras indicadas — ““denota-
Jeito e objeto como dois aspectos de ção”, denotatum, “referência” — é
uma mesma realidade em princípio adequada, mas preferimos a última,
“neutra”. Finalmente, a idéia da a qual, além disso, parece ser a que
Existência como Ser-no-mundo, a mais tem sido empregada. Quanto a
concepção da vida ou do homem en- Sinn, poderia traduzir-se por ““signi-
quanto aberto para a realidade e ou- ficação”, “significado”, “sentido”,
tras concepções análogas mostram mas também preferimos esta última
que a controvérsia realismo-idealis- palavra.
mo não se resolve sempre por meio O problema apresentado por Fre-
da afirmação de uma dessas duas ge é o de saber se “ =”** relaciona ob-
teorias, com exclusão completa da jetos, ou então nomes ou signos de
outra, ou por meio de uma posição objetos. Há dificuldades em todos
simplesmente eclética, mas também esses casos. Assim, se
pela indicação de que tal controvér-
sia está baseada no desconhecimen- a estrela matutina
= a estrela vespertina (1)
to de que o realismo e o idealismo
podem ser ““posições teóricas” so- é verdadeiro,
*

brepostas a uma descrição pura ou a estrela matutina


a um prévio aprofundamento das = a estrela matutina (2)
idéias de consciência, sujeito, exis-
tência, vida humana, etc. Desse mo- deveria significar o mesmo que (1).
do, novas concepções são propostas Mas (2) não proporciona nenhuma
acerca do problema do mundo exter- informação, ao passo que (1) forne-
no e procura-se ir “além” do realis- ce informação. A informação pro-
mo e do idealismo. porcionada por (1) é resultado de
uma descoberta astronômica. Por
REFERÊNCIA O ensaio de Frege, outro lado, se
“Úber Sinn und Bedeutung”, foi ““aestrela matutina” =
traduzido de vários modos: “Sobre =““a estrela vespertina” (3)
o sentido e a denotação”, “Sobre
sentido e denotatum”', “Sobre signi- as expressões à direita e esquerda de
ficação e denotação”, “Sobre si- “=” em (3) devem ser nomes do
gnificação e denotatum”, “Sobre mesmo objeto. Que sejam tais no-
significação e referência”, “Sobre mes, sabe-se unicamente em virtude
sentido e referência”. Há acordo em de uma descoberta astronômica.
que, embora o vocábulo alemão Be- Segundo Frege, é necessário distin-
deutung se traduza correntemente guir entre o sentido e a referência de
por “significação” ou “significado” um signo. “E natural pensar — es-
— como em ““... bedeutet...””, “... creve Frege — que está ligado com
significa...”* — no caso de Frege 1s- um signo (um nome, uma combina-
REFERÊNCIA 624

ção de palavras, um grafismo), além ma da referência” foi minuciosa-


daquilo que por ele é designado e que mente tratado por Russell em sua
se pode chamar de referência do sig- teoria das descrições. Russell usou a
no, aquilo que eu denominaria o sen- expressão ““frases denotativas”, tam-
tido do signo, no qual está contido bém empregando a expressão ““fra-
o modo de apresentação” (in T. M. ses referenciais” (ou ““referentes””)
Simpson, Semântica filosófica). Por — na acepção de ““frases que se re-
“signo” ou “nome” entende Frege ferem a”. Essas frases não são no-
“qualquer designação que seja um mes próprios porque, ao contrário
nome próprio, cuja referência é, por- destes últimos, elas carecem por si
tanto, determinado objeto (enten- mesmas de significação. A expressão
dendo esta palavra latu sensu) e não “frases referenciais” é inadequada,
um conceito ou uma relação” (op. segundo Peter Thomas Geach (Re-
cit.). Em outras palavras, ““a referên- Jference and Generality, 1962, p. 47),
cia de um nome próprio é o próprio mas esse autor acrescenta que a usa
objeto que designamos por meio de- porque ela seria apropriada se as teo-
le”* (op. cit.) e não a imagem subje- rias que a expressão trata de descre-
tiva que possamos ter do objeto. Em ver fossem corretas. Geach especifi-
outros termos: “Um nome próprio ca “frase referencial”* do seguinte
(uma palavra, um signo, uma com- modo: (1) uma frase de tal natureza
binação de signos, uma expressão) que se encontra sempre formada por
exprime o seu sentido e designa ou um termo geral substantival (não só
reporta-se à sua referência” (op. termos gerais, mas também comple-
CIf.). XxOS); (2) consiste num termo geral

Ordinariamente, a coisa de que se mais um ““aplicativo”* do tipo de


fala é a referência da expressão que “um”, “o”, “alguns”, “nenhum”,
se usa para falar dessa coisa. As ve- “cada”, “só”, “todos exceto dois”,
zes, pode-se falar das próprias pala- “a maior parte de”, etc. Para
vras, como ocorre no caso de uma Geach, Russell cometeu várias con-
citação, isto é, no caso de uma des- fusões ao falar de “frases denotati-
crição ou relato do que alguém diz. vas” e ao entendê-las do modo co-
Outras vezes, o que se diz tem como mo o fez, especialmente ao consi-
referência o sentido corrente, como derar, por exemplo, “nenhum ho-
sucede em orações indiretas em que mem como uma frase denotativa.
intervêm verbos como ““sabe que”. O pior de tudo, opina Geach, foi
Frege termina distinguindo entre a Russell ter afirmado que o seu pró-
referência corrente e a referência in- prio uso primitivo de “denotar” cor-
direta por um lado, e o sentido cor- responde ao uso por Frege de bedeu-
rente e o sentido indireto, por outro. ten. Tudo está cheio de confusões em
Assim, a referência indireta de um “denotar”; melhor seria, sugere, del-
termo é o seu sentido corrente. xar de lado esse termo e os modos
O que se pode chamar de ““proble- como foi entendido — por exemplo,
625 REFERÊNCIA

“aplicar-se a”, “ser verdadeiro de”. “objeto” a que o termo se refere, ou


Geach recorda que o modo de refe- supõe-se que se refere.
rência de uma frase referencial é o Quine ocupou-se amiúde do pro-
que os autores medievais chamavam blema de como se adquire o meca-
Suppositio. nismo da referência, ou seja, de co-
Leonard Linsky (Refering, 1967, mo se aprende a referir-se a objetos,
p. 106) fala de “referência pura” e a falar de objetos (cf. Word and Ob-
de “referência impura”; pela primei- Ject, especialmente $ 12; Ontological
ra entende a transparência referen- Relativity, and Other Essays, espe-
cial e pela segunda a opacidade re- cialmente o cap. I; The Roots of Re-
ferencial. Indica Linsky que o ““re- ference, especialmente III). Por ora,
ferir-se”" não tem a onipresença que cabe distinguir entre referência não
se lhe outorga na literatura filosófi- dividida — a que tem termos-massa
ca e que, em todo caso, há multipli- como “água”, “vermelho”, que se
cidade de usos de ““referir-se a” e referem “cumulativamente” e não
“referência”, assim como de ““dei- dividem, ou não dividem muito, sua
referência — e referência dividida —
xar de se referir a” e “falta de refe-
rência”. De imediato, existe uma dis- com a qual surge a individuação, me-
diante termos gerais ou singulares.
tinção entre ““referir-se a” e “fazer
Esta última é a mais interessante e,
uma referência”, e aquilo que os fi-
lósofos chamam de ““denotar”* ou ao mesmo tempo, a mais difícil de
se explicar. É a mais interessante,
“referir-se a”. Referir-se a algo ou
fazer uma referência a algo são at1- porque, ao descrever como se adqui-
re o aparelho lingúístico da referên-
vidades executadas pelos que usam cia, no sentido indicado, pode-se ex-
a linguagem, enquanto que o ““deno- plicar como se chega a dominar a lin-
tar” ou o ““referir-se a” — e, por- guagem cognoscitiva, que inclui fra-
tanto, também a referência —, em ses observacionais, predicação, quan-
sentido filosófico, deve ser entendi- tificação, valores veritativos, etc.
do como uma forma de relação en- Quine adota um ponto de vista be-
tre a linguagem e aquilo que a lin- haviorista mutatis mutandis; sua on-
guagem diz (op. cit., pp. 116 ess.). tologia da referência é, ao mesmo
Segundo as teorias referencialistas tempo, uma psicologia do conheci-
da significação, o significado de um mento. As dificuldades na elucida-
termo é o objeto ao qual esse se re- ção da noção de referência aparecem
fere. Essas teorias foram alvo das se- em relação com, ou paralelamente à
guintes objeções: primeiro, não le- indeterminação da tradução. Muitos
vam em conta a distinção já apon- autores tinham acreditado que é di-
tada entre sentido e referência; se- fícil, se não impossível, explicar a no-
gundo, há termos que não são, de ção de significação. Quine faz ver
modo algum, referenciais; terceiro, que é difícil, se não impossível, en-
não fica nada clara a natureza do tender a noção de referência. Em seu
REFERÊNCIA 626

mais conhecido exemplo: se não co- nard, orgs., Conceptual Change,


nhecemos a língua de uma comuni!- 1973, pp. 199-221, reimpr. em Hilary
dade e procuramos saber ostensiva- Putnam, Mind, Language and Rea-
mente a que se refere a palavra “Ga- lity, Philosophical Papers, vol. 2,
vaga!” quando se aponta para um 1975, pp. 196-214) mencionou várias
coelho — ou o que, em princípio, su- posições que cabe adotar ao colocar-
pomos ser tal —, apresenta-se-nos se a questão de se, e como, um con-
um problema mais básico do que o ceito se refere ou não a algo (ou à
problema wittgensteiniano de saber alguém). É possível que um concei-
a que se refere alguém ao mostrar os- to — como ocorre amiúde com o
tensivamente a cor sépia. Pois ““sé- conceito de uma ““classe natural”
pia” é, no fim das contas, um termo- (por exemplo, a classe natural dos
massa, com referência dividida, ao peixes) — não seja estritamente ver-
passo que “coelho” é um termo com dadeiro acerca de nada e, não obs-
referência não dividida. Mas por tante, refira-se a algo. Também é
“Gavagal” — o esquivo ““coelho” possível que vários conceitos — co-
— cabe referir-se a um coelho indi- mo acontece com conceitos de algu-
vidual, a uma parte não separada do ma realidade física (frequentemente
coelho (onde ““coelho” é algo como designados pelo mesmo nome) — em
o coelho total) ou a um estágio ou teorias distintas se refiram à mesma
fase de coelho. Ser ostensivo não coisa. Os partidários de uma teoria
basta. Quine fala, por conseguinte, idealista do significado têm de sus-
da ““inescrutabilidade da referên- tentar que um conceito depende da
cia”. Para tornar a referência mais teoria (no vocabulário já bastante di-
“escrutável”, é necessário pôr em fundido, ““está carregado de teoria”;
funcionamento um complexo meca- com 1sso, as noções de referência e
nismo que envolve um sistema de de verdade também dependem de
traduções mediante as chamadas uma teoria). Os partidários de uma
“hipóteses analíticas”. Em conso- teoria realista do significado consi-
nância com o ““holismo epistemoló- deram que um conceito é ““transteó-
gico” de Quine, cita-se um amplo rico” no sentido em que Dudley Sha-
contexto lingúístico e também um pere empregou o termo, isto é, que
amplo contexto referencial, em vez tem a mesma referência em várias
de manter o problema da referência teorias. Para o realista, verdade e re-
numa estreita relação biunívoca en- ferência são transteóricas. Putnam
tre um termo e “o” suposto objeto introduz uma teoria causal do signi-
a que se refere. ficado, segundo a qual, embora um
Em seu exame e seu cotejo das conceito (um termo) possa ter, ou ir
chamadas ““teorias idealistas** com tendo, várias intensidades, estas não
as teorias realistas do significado, são incompatíveis entre s1, nem de-
Hilary Putnam (“Explanation and pendem da teoria adotada. O concei-
Reference”, em G. Pearce e P. May- to (termo) pode ter, através de suas
627 REFERÊNCIA

várias intensidades, o mesmo referen- Não é fácil, mas não é impossível,


te. Putnam indica que deve parte de elucidar e especificar essa relação.
Suas idéias a esse respeito a uma obra No domínio dos conceitos científi-
de Kripke (não publicada) acerca de cos, Bunge distingue entre conceitos
nomes próprios. Uma noção capital faticamente não-referenciais e con-
dessa obra é a de que alguém pode ceitos faticamente referenciais (in-
usar um nome próprio para referir-se cluindo, estes últimos, variáveis co-
a algo ou a alguém, mesmo sem pos- mo ““célula”, “campo”, ““ecossiste-
suir idéias verdadeiras sobre o mes- ma”, que podem referir-se a variá-
mo. O uso de um nome próprio para veis-objetos ou a variáveis-predica-
“referir-se a” envolve a existência de dos). No que tange à significação,
uma cadeia causal entre o que usa o Bunge (Treatise, II, XX, pp. 42 ess.)
nome (ou seu uso do nome) e o por- sustenta que deve ser entendida co-
tador do nome. Putnam não parece mo ““o sentido mais a referência”.
1r tão longe quanto Kripke nesse Um símbolo designa um construto;
par-
ticular e sustenta que, no mínimo, o o sentido mais a referência são a sig-
que usa o nome próprio para referir- nificação do construto e a ““signif1-
se a algo ou a alguém deve possuir al- cância”' do símbolo. Um exemplo
gumas idéias aproximadamente ver- simples é o signo ou termo ““ho-
dadeiras acerca do portador do no- mem”, que designa o, ou, melhor d1-
me. (Essas idéias, diga-se de passa- to, um conceito de homem; o sent1-
gem, são produzidas por um uso co- do é dado pela antropologia, e a clas-
letivo da linguagem e por uma espé- se de referência é a totalidade dos hu-
cie de “atitude coletiva” a respeito manos. Um signo que não chega a
das referências.) designar um construto tem uma sig-
Mario Bunge (Treatise on Basic nificação vazia. Se um signo é signi-
Philosophy, LI, pp. 32 ess.) distingue ficante, o é através de algum cons-
entre o conceito semântico de refe- truto. Segundo Bunge, essas teses
rência — a suppositio dos lógicos
medievais — e a noção psicológica
evitam o nominalismo
e a variedade
de hilemorfismo que consiste em ou-
ou pragmática de referência. Esta úl- torgar a simples marcas proprieda-
tima noção não ajuda na compreen- des semânticas; por outro lado, não
são daquele conceito. Ocupamo-nos aderem ao platonismo, uma vez que
do conceito semântico de referência não adotam a hipótese de que os
quando perguntamos, por exemplo, construtos possuem um ser indepen-
quais são os referentes dos enuncia- dente (op. cit., p. 45). E óbvio que,
dos de uma teoria e como podem tanto em suas Idéias sobre à noção
identificar-se tais referentes. A refe- de referência, como sobre a noção de
rência é, segundo Bunge, uma rela- significado — na medida em que é
ção entre o que ele chama ““constru- sentido mais referência —, a idéia de
tos”* (conceitos, enunciados e teo- “construto”* desempenha em Bunge
rias) e objetos de qualquer classe. um papel central.
REIFICAÇÃO 628

Na opinião do autor desta obra za peculiar do processo, o qual, afir-


(cf. “Cuestiones de palabras”, em mam, não deve ser ““reificado””.
Las palabras y los hombres, 1972, (3) Várias orientações filosóficas
pp. 120-121), significado (ou senti- opuseram-se ao que é designado por
do) e referência não são completa- “reificação””. Por exemplo, os idea-
mente independentes entre si. Isso se listas opuseram-se à reificação da
deve a que, embora haja termos que consciência. Os existencialistas repe-
não são verdadeiros de nada (ou, liram a reificação da existência hu-
melhor dito, de alguma coisa), po- mana.
dem referir-se a algo. Essa é a ““teo- (4) Ver os seres humanos como
ria refinada do sentido e da referên- coisas, ou tratá-los como se fossem
cia” que Hilary Putnam deduz de al- coisas, é uma reificação e desuma-
gumas Observações do Anti-Diúhring nização do humano.
de Engels. A essa teoria pode-se (5) Marx usou o termo Verdingli-
acrescentar a exposta em O ser e o chung — traduzível por ““reificação”
sentido (VII, 4): há expressões que e por “coisificação”* — para se re-
têm referência direta, outras que têm ferir ao processo por meio do qual
co-referência, outras que têm hete- se produz a alienação dos frutos do
ro-referência e ainda outras que têm trabalho. Ao reificarem-se esses pro-
transreferência. As duas noções mais dutos, também se reifica ou se coisi-
fundamentais são, aqui, as de co-re- fica o homem que os produziu me-
ferência e de transreferência. Em vir- diante o trabalho; o ser humano con-
tude da co-referência, não há termo verte-se, então, numa ““coisa” cha-
que se possa considerar inteiramen- mada ““mercadoria”.
te a-referencial; mesmo que não exis-
ta aquilo de que se fala, cabe enten- RELATIVISMO Por ““relativismo”
dê-lo em função de algo que existe pode-se entender:
e que tem, ou pode ter, referência di- (1) uma tese epistemológica segun-
reta e plenária. Termos transferen- do a qual não há verdades absolutas:
ciais são aqueles que designam con- todas as ““verdades” são relativas, de
ceitos ontológicos e, de um modo ge-. modo que a verdade ou validade de
ral, conceitos categoriais. uma proposição ou de um juízo de-
pendem das circunstâncias ou condi-
REIFICAÇÃO Entendeu-se ““reifi- ções em que são formulados. Essas
cação” em vários sentidos. circunstâncias ou condições podem
(1) Para alguns, o fisicalismo é ser uma determinada situação, um
uma reificação das realidades, porque determinado estado de coisas ou um
consiste em interpretar as realidades determinado momento;
como se fossem coisas, especialmen- (2) uma tese ética segundo a qual
te coisas físicas ou objetos físicos. não se pode dizer a respeito de nada
(2) Para outros, a reificação con- que é bom ou mau absolutamente.
siste em não compreender a nature- A bondade ou maldade de algo tam-
629 REPRESENTAÇÃO

bém depende de circunstâncias, con- tágoras: “O homem é a medida de


dições ou momentos. todas as coisas”, tomando-se como
Tanto (1) quanto (2) podem enten- “medida de todas as coisas” o ho-
der-se de duas maneiras: mem como indivíduo (ver HOMO
(A) de um modo radical, afirma- MENSURA). Se “medida de todas
se que nada é verdadeiro (nem fal- as coisas” é o ser humano como es-
so) e nada é bom (nem mau); os pécie, então o relativismo não é in-
predicados ““verdadeiro”, “falso”, dividualista, mas “específico”. Es-
e
“bom” “mau” devem ser simples-
mente proscritos;
ta última forma de relativismo é clas-
sificada, com frequência, de antro-
(B) de uma forma moderada, afir- pomorfismo. É possível tomar como
ma-se que, como os juízos ou pro- ponto de referência especificações da
posições acompanhados de predica- espécie humana como uma comuni!-
dos dos tipos ““é verdadeiro”, “é fal- dade, uma raça, uma época históri-
so”, “é bom” e “é mau” referem-se ca. Se se adota esta última, o relat1-
a determinadas circunstâncias, con- vismo converte-se em historicismo.
dições, situações, momentos do tem- Alguns autores consideram que,
po, etc., a especificação dessas cir- no nível epistemológico, o relativis-
cunstâncias, condições, situações, mo brota de uma atitude cética e, no
momentos do tempo, etc. permite nível moral, de uma atitude cínica.
admitir juízos ou proposições acom-
panhados dos mencionados predica- REPRESENTAÇÃO O termo ““re-
dos, os quais são, então, admitidos presentação** é usado como vocábu-
de forma restritiva. Assim, embora lo geral que pode referir-se a diver-
não se possa dizer que p é (absolu- sos tipos de apreensão de um objeto
tamente) verdadeiro, cabe sustentar (intencional).
que p é verdadeiro (e o é, então, ab- Assim, fala-se de representação
solutamente) dentro de condições es- para se referir à fantasia (intelectual
pecificadas. ou sensível) no sentido de Aristóte-
As circunstâncias, condições, etc. les; à impressão (direta ou indireta),
que, de acordo com o relativismo, no sentido dos estóicos; à apresen-
nos sentidos (1) ou (2), condicionam tação (sensivel ou intelectual, inter-
a verdade, falsidade, validade ou não na ou externa) de um objeto inten-
validade de uma proposição ou de cional ou repraesentatio, no sentido
um juízo, podem ser “externas” ou dos escolásticos; à imaginação, no
“internas *. Quando são externas, sentido de Descartes; à apreensão
pode-se falar de relativismo ““objJe- sensível, distinta da conceitual, no
tivo”; quando são internas, fala-se sentido de Spinoza; à perfeição, no
de subjetivismo. sentido de Leibniz; à idéia, no senti-
Segundo Husserl, o conceito pri- do de Locke, de Hume e de alguns
mário de relativismo (epistemológi- “ideólogos”'; à apreensão geral, que
co) é definido pela fórmula de Pro- pode ser, como em Kant, intuitiva ou
REPRESENTAÇÃO 630

conceitual; à forma do mundo dos (1a) representações baseadas no


obJetos como manifestações da Vonta- predomínio de um sentido, falan-
de, no sentido de Schopenhauer, etc. do-se de representações Ópticas,
Essa multiplicidade de sentidos e acústicas, etc.;
usos de “representação” faz com que (2a) representações baseadas na
esse termo seja quase sempre ambií- forma, falando-se de representações
guo em três formas: dentro da psico- eidéticas, conceituais, afetivas, voli-
logia, na epistemologia e na relação tivas, etc.
entre a epistemologia e quaisquer ele- No âmbito da epistemologia a re-
mentos ““psicológicos”* que se adu- presentação pode ser entendida em
zam para esclarecer a natureza e for- dois sentidos básicos.
mas de conhecimento. (1b) representação como conteú-
Dentro da psicologia (tradicional), do mental. A representação é enten-
pode-se distinguir entre as seguintes dida, então, como um ato e confere-
acepções de ““representação”: se-lhe, na maioria das vezes, um sen-
(1) a representação como apreen- tido “subjetivo” e “privado”;
são de um objeto efetivamente pre- (2b) representação como aquilo
sente. É usual equiparar, então, are- que se representa no ato de represen-
presentação à percepção, ou a algu- tar, ou seja, como o objeto intencio-
ma de suas formas; nal de semelhante ato.
(2) a representação como reprodu- Os escolásticos já tinham propos-
ção na consciência de percepções pas- to a distinção entre representações
sadas. Trata-se, então, das chamadas objetivas (na acepção escolástica do
“representações da memória” ou termo) e representações formais. Es-
“recordações; tas últimas aproximam-se muito de
(3) a representação como antecipa- (20). Essa distinção parece ter-se per-
ção de acontecimentos futuros, com dido na Epoca Moderna. Em todo
base numa combinação de percepções caso, embora ainda se descortinem
passadas, reprodutiva ou produtiva. vestígios dela em autores como Des-
É usual equiparar, então, a represen- cartes, é difícil encontrá-los nos em-
tação à imaginação; piristas, sobretudo na medida em
(4) a representação como a união que se interessam por explicar a gê-
na consciência de várias percepções nese do conhecimento e, em conse-
não atuais (mas tampouco passadas quência, recorrem a noções ““psico-
ou antecipatórias). Nesse caso, fala- lógicas” com finalidades epistemo-
se também de imaginação e, até, de lógicas. Stephen Toulmin assinala
alucinação. que, em seu esforço para escapar à
Os quatro sentidos acima indicados contraposição entre as posições ra-
referem-se ao que se convencionou cionalista e empirista em epistemo-
chamar de “atualidade da represen- logia, Kant reformulou os problemas
tação”. Podem considerar-se, além epistemológicos em termos de repre-
disso, os seguintes tipos: sentações, usando para tanto o vo-
631 REVISIONISMO

cábulo Vorstellung, que costuma tra- ma categorial. Trata-se, então, de


duzir-se por “representação”. Não uma estrutura conceitual, de uma ca-
obstante, Kant usou esse termo de tegoria, de um “esquema”, etc., mas
modo ambíguo, visto que, por um Hamelin aspira a dar-lhe um ““con-
lado, parecia tratar-se de atos de ex- teúdo”* mental e opõe-se a equipará-
periência — de caráter “mental” — la a uma forma transcendental no
e, por outro, de certas estruturas que sentido kantiano.
não são, sem dúvida, coisas em si,
mas tampouco são estruturas men- REVISIONISMO Num de seus sen-
tais, subjetivas e privadas, e sim pú- tidos estritos, o termo ““revisionis-
blicas. A palavra alemã Darstellung, mo” foi usado para caracterizar e cri-
que também se traduz por ““represen- ticar as posições adotadas por
tação”, mas não tem um sentido psi- Eduard Bernstein dentro do marxis-
cológico, e sim epistemológico, é mo. Como Bernstein defendeu uma
mais adequada, segundo Toulmin, reforma e uma revisão do marxismo
para expressar o que Kant queria di1- num sentido favorável à manutenção
zer. É a palavra usada por autores das instituições democráticas dentro
como Hertz, Karl Búhler e Wittgens- das quais, em seu entendimento, po-
tein, justa e precisamente num sen- der-se-ia abrir caminho, pacífica,
tido análogo ao de “modelo”, ““pla- evolutiva e legalmente, para o socia-
no”, “esquema”, etc., ou seja, num lismo, um considerável número de
sentido similar a como uma partitu- autores marxistas, como Kautsky,
ra pode servir de ponto de partida consideraram que Bernstein tinha
para uma ““representação”', a qual abandonado as teses capitais do mar-
dá origem, então, a experiências pri- xismo. A palavra ““revisionismo”*
vadas e a “representações” privadas. passou, desde então, a ser frequen-
Assim, a representação (Darstellung) temente empregada como rótulo con-
é “objetiva” (ou na acepção escolás- denatório de posições consideradas
tica, “formal”*), ao passo que a re- heterodoxas. ““Revisionismo” foi
presentação (Vorstellung) é “subje- muitas vezes sinônimo de ““desviacio-
tiva” e mental. nismo”. De um ponto de vista orto-
A distinção entre (1b) e (2b), em- doxo, uma posição revisionista é uma
bora útil, não elimina todos os pro- posição errônea, quer “objJetivamen-
blemas, porque possivelmente não te”, quer “subjetivamente”*'.
pode ser tão radical quanto, às ve- O uso mais extenso de ““revisionis-
zes, se desejaria. Há a possibilidade mo” é encontrado na literatura filo-
de “intermédios”' entre os dois tipos sófica e política soviética, sobretudo
de representação. Temos um curio- durante a época stalinista. Embora
so exemplo disso em Octave Hame- o revisionismo possa ser de direita ou
lin, quando chama de representa-
*
de esquerda, é comum associá-lo a
ção” os atos por meio dos quais O um desvio direitista. A extrema or-
concreto e diverso é pensado sob for- todoxia da filosofia oficial soviética
632
REVOLUÇÃO

fez cair no âmbito do revisionismo bora se trate de uma revolução cícli-


muitas posições de renovação do ca, considerou-se importante que
marxismo (ver), que seus autores fossem os corpos celestes e, em par-
consideram justamente mais fléis às ticular, os planetas que, em conjun-
intenções de Marx e aos métodos ela- to com a Terra, gravitassem ou efe-
borados por ele. Daí o paradoxo de tuassem sua ““revolução”*? em torno
que os autores marxistas heterodo- do Sol. Isso representou, ao mesmo
xos, por vezes chamados ““neomar- tempo que a idéia de revolução pla-
xistas”, tenham podido considerar, netária, a idéla de uma revolução
por seu turno, como ““revisionistas”” científica. Ambas as idéias influíram
as posições defendidas pela filosofia sobre o conceito político de revolu-
oficial soviética em nome da ortodo- ção. Entretanto, há outra fonte pa-
xia, já que essas posições consistiram ra esse conceilto, que consiste na con-
numa revisão e num posterior ““con- sideração das próprias mudanças po-
gelamento”* de uma série de teses líticas, as quais foram julgadas sufi-
mais ou menos simplificadas. clentemente importantes para mere-
cer o nomede “revolução”, enquan-
REVOLUÇÃO O conceito de mu- to mudança súbita destinada a esta-
dança política, especificamente a belecer uma nova ordem, ou a res-
mudança de regime político (oligar- tabelecer, por meios violentos, uma
quia, tirania, democracia, etc.), tem ordem anterior considerada mais jus-
sido objeto de frequente tratamento ta ou adequada. Filósofos e historia-
e descrição na filosofia política e na dores começaram a falar de revolu-
historiografia antigas, tanto grega ção e de revoluções, e esse vocabu-
quanto romana. Cumpre distinguir, lário foi usado para descrever tam-
porém, entre a idéia de mudança e bém a história política do passado.
a de revolução tal como foi desen- O termo ““revolução” adquiriu gran-
volvida a partir do século XVI, em de difusão no século XVIII com al-
especial do século XVII em diante. guns dos escritos dos enciclopedistas
Há pelo menos duas fontes no desen- franceses e, sobretudo, com as duas
volvimento dessa idéia. Uma é de ca- revoluções consideradas arquetípi-
ráter astronômico. A revolução é en- cas: a Revolução Americana e a Re-
tendida, nesse caso, como uma ro- volução Francesa — esta última des-
tação (dos corpos celestes) na expres- crita simplesmente, por vezes, como
são “revolução copernicana””. Em- “a” Revolução.
S Na lógica tradicional, a letra ponto no qual torna-se eminente: é
maiúscula ““S”** é usada para repre- o salto para o religioso — especial-
sentar o sujeito nó esquema de um mente o salto do ético para o religio-
Juízo ou de uma proposição que ser- so. Com efeito, segundo Kierkega-
ve de conclusão num silogismo. É ard, não há possibilidade de se con-
O caso, por exemplo, de “S” em siderar o estágio religioso como o úl-
“todos os S são P” e em “alguns timo de uma série contínua. A plau-
S são P”'. A mesma letra serve para sibilidade do contínuo e a demons-
representar o predicado no esquema tração racional da fé são o oposto do
dos juízos ou proposições que ser- ato de liberdade por meio do qual
vem de premissa maior ou menor chegamos ao paradoxo absoluto —
num silogismo. Assim, por exemplo, o paradoxo do cristlanismo. Cumpre
““S” representa o predicado na pre- observar que a noção — ou catego-
missa menor dos esquemas que cor- ria — do salto é algo que correspon-
respondem à terceira e à quarta fi- de à existência individual e jamais
guras. tem lugar dentro do universal.
Para o uso de na lógica das
“S”**
relações, ver R. Para o uso da letra SANTO O termo grego à&7Los E O VO-
minúscula ““s”, na lógica sentencial, cábulo latino sanctus, traduzidos por
ver P. “santo”, designavam um recinto
consagrado aos deuses e ao culto. O
SALTO Kierkegaard usa a noção de reservado aos deuses chamava-se ce-
salto como metáfora por meio da pós, sacrum, sagrado. O recinto no
qual caracteriza o movimento da qual se reverenciavam os deuses era
existência, movimento essencialmen- o fanum. Antes de se ingressar nes-
te distinto do devir lógico-metafísico te havia um outro recinto, o profa-
propugnado por Hegel. Com efeito, num, “profano”.
no sistema hegeliano o movimento Há uma relação estreita entre san-
efetua-se por uma transição que, em- tidade e divindade. É certo que tam-
bora não gradual, jamais chega a ser bém se pode entender santo como o
uma ruptura: a mediação intervém que está sancionado (““santificado”)
com a finalidade de reconciliar os por alguma lei, e que esta pode ser
opostos. No pensamento de Kierke- uma lei humana. Em todo caso, fala-
gaard, à ruptura é essencial. Essa se, por vezes, da “santidade da lei”.
ruptura tem lugar nos diversos ““es- Mas, ainda nesse caso, supõe-se que
tágios da vida” e nas modificações a última sanção (ou ““santificação””)
tem origem na divindade.
que essa experimenta, mas há um
O
SER 634

Segundo Kant, a santidade é a não é necessário dizer que é; pode-


completa conformidade com a lei se dizer, de imediato, que existe e
moral. No estado de santidade, é im- também pode-se dizer que “há x”,
possível transgredir a lei moral pela ou seja, quantificar x existencialmen-
própria natureza da vontade, e não te (ou particularmente). Se se parte
em virtude de um esforço realizado do sentido existencial de “é”, então
com o propósito de ser moralmente parece ser lícito passar a um sentido
bom. existencial de “ser”. É justamente o
Kant indicava que a santidade de que ocorre quando se fala de ““o ser”
Deus não é igual à santidade da lei (ou até de ““o Ser”), significando-se
moral; nesta, ao contrário daquela, com isso o que existe, o “sendo” ou
existe um dever. “ente”.
A noção de santo foi investigada Ao tentarem traduzir a substant!-
por Rudolf Otto como uma catego- vação verbal grega |rô óv, Os autores
ria especial: a categoria de “o numi- latinos clássicos deram-se conta das
noso”. Trata-se de uma categoria ex- dificuldades que issp implicava. As-
clusivamente religiosa, distinta de sim o vemos em Sêneca. Conforme
qualquer outra. escreve na Epístola L VIII, o latim
vê-se impotente para traduzir 7ô o».
SER 1.O conceito de ser. A palavra Pois não é simplesmente equi-
7ô óv
“ser” é usada em contextos muito valente a quod est; isso obrigaria,
diferentes. Desde muito cedo, pro- com efeito, a traduzir um substanti-
puseram-se os filósofos apurar se se vo por um verbo. Com o que Já se
deve entender ““ser”* no sentido da comprova a diferença, destacada por
cópula ou no chamado ““sentido exis- Aristóteles, entre ser e o fato de
tencial””. Se “ser” for entendido co- que algo seja. Voltaremos a refe-
mo cópula, então requer a menção rir-nos mais adiante a esse ponto.
de alguma propriedade, qualidade, Assinalemos apenas, por agora, que
relação, etc. Em ““x é branco”, “é”
expressa o fato de que x é branco
(como alguns diriam, ““a brancura de e o ente, ens; o primeiro foi consi-
XX”). Nesse caso, não se pode dizer derado, com efeito, aquilo (mais pre-
simplesmente ““é”* porque, como foi cisamente, aquela perfeição) que faz
observado por vezes, cabe então per- com que o segundo seja. Mas como,
guntar “o quê?”* — se se diz “x é”, às vezes, se entende o esse no senti-
pode-se indagar “é o quê?” e
ponder, por exemplo, ““branco”.
res- do da existência (ver) e outras vezes
no sentido da essência (ver), o uso
Por outro lado, se “é” for entendi1- anterior não eliminava todas as di-
do em sentido existencial, então ficuldades. Estas aumentaram para
entende-se por “é” algo como ““exis- os filósofos árabes pelo fato de que,
te”; nesse caso, “x é” quer dizer “x como assinala A.-M. Goichon (a
existe”. Mas para dizer que x existe quem seguimos neste ponto), não há -
635 SER

em árabe um termo que correspon- gico e do lógico: o “ponto de vista


da exatamente ao verbo ““ser””. metafísico”. Com a “filosofia pri-
Os gregos estavam conscientes des- meira”, Aristóteles iniciou a discus-
ses problemas. Esse conceito está pelo são em torno do problema do ser. O
menos implícito na primitiva indaga- “ser como ser”, ôõv hõv, aristotélico
ção grega de que falaremos nã segun- pode ser interpretado de duas manei-
da parte do presente verbete. ras. Na primeira, ser é o ser mais
oO

Manifesta-se de modo explícito na in- comum de todos, válido para todos


terrogação 7i 7ô ov, que se traduz por os entes e, por conseguinte, possui-
“o que é o ser?””, mas que poderia dor da máxima extensão. Na segun-
mais justamente traduzir-se neste ca- da, o ser é o ser superior a todos e
so por “quem é o ser?” , isto é, “qual princípio de todos. Os filósofos de-
é a coisa que propriamente é?”*, Pen- pois de Aristóteles (comentaristas an-
saram, assim, que o ser é um atribu- tigos e pensadores escolásticos) deba-
to que pertence a tudo o que é no mes- teram essa questão inúmeras vezes:
mo sentido. Foi dito que, desse mo- uns indicaram que o problema do ser
do, se confundem proposições do ti- pertence ao que se chamou moderna-
po “xéy”, com proposições do tipo mente “ontologia geral”; outros, que
“xé”;mas não é correto supor sem- é objeto da “teologia”. Uma das
pre que na mente dos gregos campea- doutrinas que com mais êxito se im-
va semelhante confusão. De fato, al- pôs é a que foi proposta por Avicena
guns pensaram que o ser de que se fa- e, depois, defendida e precisada por
lava era algo mais geral do que qual- Santo Tomás: a de que a noção do ser
quer substância determinada — tão é, num primeiro momento, suma-
geral, a rigor, que não era possível d1- mente comum, de modo que tal no-
zer dele outra coisa senão que “é”. ção de ser (em Santo Tomás, ens) é
É o problema de Parmênides. Foi elu- a primeira que se integra na apreen-
cidado a fundo por Platão e depois, são (ou no entendimento). Não é pos-
sobretudo, por Aristóteles quando es- sível, pois, confundir o ser — ou, nes-
ses filósofos observaram que o fato te caso, o ente — com um gênero su-
de que ““ser” é um conceito geral não perior: o ser é um transcendental,
significa que seja o mais elevado de porque está absorvido em todos os se-
todos os gêneros. Aristóteles, princi- res e, ao mesmo tempo, acima de to-
palmente, percebeu com clareza que dos eles, transcendendo-os. Pois
conceber o ser como a classe de to- bem, mesmo admitindo que o ser não
das as classes leva a contradições (a se reduz nem ao particular, nem ao
contradição sobre as classes a que nos universal meramente lógico, há várias
referimos em Paradoxo (ver) e que foi interpretações possíveis. A tomista
posta em relevo pela lógica contem- apoiava-se na concepção aristotélica
porânea). Portanto, parece que se segundo a qual ““o ser assume várias
tem de adotar a respeito do ser um acepções”, mas “em cada acepção
ponto de vista distinto do cosmoló- toda denominação se faz por relação
SER 636

com um princípio único”. Essa fa- fica tradicional, a qual, no entender


mosa tese de que ““o ser se diz de desse autor, suscitou o problema,
muitas maneiras” é a tese da analo- mas não chegou sequer a equacioná-
gla (ver) do ser; de acordo com se- lo (não proporcionou ““horizonte”
melhante tese, pode-se dizer que são para o mesmo). Por 1sso, o pensa-
tanto as substâncias (as quais exis- mento de Heidegger sobre o ser não
tem) como o que não são substân- é exprimível no vocabulário usual de
cias, por exemplo, os universais (os muitos outros filósofos. Muitos fi-
quais propriamente falando não exis- lósofos existencialistas continuaram
tem). Mas outros escolásticos, sem debatendo a questão. Vários pensa-
deixarem de ser aristotélicos, defen- dores cristãos (embora não-escolás-
deram a univocidade do ser. ticos, como, por exemplo, Gabriel
Portanto, qualquer que fosse a in- Marcel, Lavelle, etc.) trataram-na
terpretação dada a uma doutrina co- como uma questão central. E até
mum sobre o ser, os escolásticos re- mesmo pensadores que, por sua for-
Jeitariam em bloco algumas das mação, tenderam durante muito
Idéias modernas sobre esse conceito. tempo a considerar o problema do
Por exemplo, a idéia kantiana, se- ser como um falso problema cons1-
gundo a qual o ser não é um predi- deraram que, pelo menos, apresen-
cado real a que nos referimos no nos- ta-se como um problema ontológico
so artigo sobre a prova ontológica (ou, se se quiser, semântico, uma das
(ver). Ou a idéia hegeliana, segundo dimensões que também tem a ques-
a qual a falta de determinismo do ser tão do ser em Aristóteles ou nos es-
aproxima-o e, em última instância, colásticos).
identifica-o com o nada. Ou, ainda 2. A pergunta pelo ser. Se enten-
mais, a idéia comum a vários filóso- dermos por ““ser” algo como ““o que
fos contemporâneos segundo a qual verdadeiramente há”, “o que verda-
o problema tradicional do ser não deiramente existe”, etc., poderemos
passa de um pseudoproblema; ““o afirmar que a chamada ““pergunta
ser” dissipa-se ao comprovar-se que pelo ser”* surgiu na Grécia com os
se trata simplesmente de um verbo... pré-socráticos. Esses perguntaram
do qual se diz que se tem abusado. pelo que depois se chamou ““o ser das
Em algumas ocasiões pareceu, inclu- coisas”, entendendo-se por 1sso a
sive, que esta última idéia predomi- realidade última, ou tipos de reali-
nou nos autores não-escolásticos e dade última, que constituem as coi-
que a filosofia contemporânea e a fi- sas e a qualidade das coisas que se
losofia do ser eram incompatíveis. E apresentam aos sentidos.
fácil ver, porém, que não é esse o ca- Foi assinalado que há vários traços
so. Heidegger considerou que o pro- dignos de menção em semelhante
blema do ser é um problema central “pergunta pelo ser”*. Um deles é su-
da filosofia e procurou dar-lhe uma por-se que o ser das coisas não está
resposta distinta da resposta filosó- imediatamente presente. Como se
637 SER

disse, “o ser”* acha-se oculto — ocul- menos, a que se ater a respeito do


to pela “aparência”. A aparência foi mundo. Com a evaporação das cren-
equiparada, com frequência, ao mo- ças, produziu-se uma instabilidade.
vimento, ao devir ou à mudança. Se- Para enfrentar essa situação é neces-
gundo Bergson, quase todo o pensa- sário preencher o vazio produzido,
mento grego está dominado por um recorrendo a algum outro sistema de
pressuposto: o de que o devir não é crenças. Esse sistema pode ser, a ri-
apenas menos compreensível do que gor, um ““sistema de idéias”. O ““ser
O ser, mas é tambem ““menos real” das coisas”, na medida em que é des-
que este. Por tal motivo, o ser pelo coberto pela razão, é um desses sis-
qual se pergunta pode caracterizar-se temas de idéias.
como um ““ser sempre”, ou um ““con- Posteriormente, os filósofos ela-
tinuar sendo sempre o que é”. É cer- boraram diversos conceitos destina-
to que Heráclito afirmou que a reali- dos a formular abstratamente os mo-
dade encontra-se em constante devir dos como se pode responder à ““per-
e consiste, inclusive, em ser constan- gunta pelo ser”*. Dois desses concei-
te mudança. Mas esse devir ou mu- tos se destacaram. Por um lado, o
dança também está “oculto” e cum- termo ““essência” (ver) pode respon-
pre descobri-lo. der à pergunta pelo ser. Por outro,
Outra característica da “pergun- pode-se responder em termos de exis-
ta pelo ser”* na Grécia é que não se tência (ver). Isso explica que as no-
dirige aos deuses, ou aos intérpretes ções de ““essência”, “existência” e
dos deuses, mas ao próprio ser hu- “ser” tenham estado amiúde intima-
mano, especificamente à razão hu- mente interligadas. —-—

mana. Perguntar pelo ser, nesse sen- 3. Os contrastes do ser. Pode-se


tido, equivale a ter conflança em que estudar a noção de ser mediante o
se pode encontrar uma resposta me- contraste com outras noções. Subli-
diante o exercício da razão. nhamos ““contraste”* porque preten-
Também se notou que, se alguns demos, por assim dizer, confrontar
homens perguntam pelo ser — ou se a noção de ser com outras, e não
alguns homens procuram explicações simplesmente distingui-la de outras.
racionais das coisas e dos aconteci- Assim, não consideramos que as no-
mentos — é porque se acham perdi- ções de essência, existência ou subs-
dos no mundo. Isso significa, como tância possam ser propriamente con-
sugeriu Ortega y Gasset, que se pro- trastadas com a de ser, porquanto o
duziu um vazio no sistema de cren- ser pode ser dito essência, existência
ças — religiosas, mitológicas, polí- ou substância. Em alguns casos, é di-
tico-sociais, etc. — de uma comuni- fícil indicar se se trata de um contras-
dade humana. Esse sistema de cren- te ou de uma diferença: é o caso da
ças proporcionava à comunidade, e relação entre o ser e o ente. Portan-
a cada um de seus membros, uma to, consideraremos contrastantes so-
certa “estabilidade”: sabia-se, pelo mente as seguintes noções: o nada,
SER 638

a aparência (ver), o pensar, o devir pensar, mas este último será enten-
(ver), o valor, o dever ser, o ter e o dido, então, como a visão direta do
sentido. que é.
|

O contraste entre o ser e o nada tem O contraste entre o ser e o devir


sido interpretado, por vezes, como tem lugar quando este último é con-
um contraste entre o ser e o não ser. cebido ao mesmo tempo como um
Em tal caso, um é simplesmente a ne- invólucro e até uma aparência do ser.
gação do outro. Outras vezes, porém, Às
vezes, o contraste dissipa-se pela
o nada foi entendido como funda- declaração de que o devir é o ser; em
mento do ser e, com Isso, à oposição tal caso, origina-se uma concepção
de negação não resulta tão patente. análoga à que destacamos no final
A primeira dessas teorias tem um sen- do parágrafo anterior sobre o con-
tido predominantemente lógico e é traste entre o ser e o aparecer.
equivalente ao contraste entre a afir- O contraste entre o ser e o valor
mação e a negação; a segunda teoria pode ser real — quando os valores
é principalmente metafísica e vale-se, são concebidos como entidades que
entre outros, do conceito da liberda- fundamentalmente ““não são** — ou
de do fundamento. somente conceitual — quando ser e
O contraste entre o ser e a aparên- valor são considerados como distin-
cia exclui, em princípio, qualquer tos pontos de vista sobre a mesma
identificação; cada um desses ele- realidade. O primeiro é próprio de
mentos só o é por referência ao ou- muitas das filosofias modernas do
tro. Entretanto, é possível conceber valor; o segundo, de muitas das fi-
que não há ser escondido atrás da losofias tradicionais baseadas na no-
aparência e que esta é todo o ser, ção dos transcendentais.
concepção que coincide, paradoxal- O contraste entre o ser e o dever
mente, com a que afirma que o ser equivale ao contraste entre a realida-
está sempre imediatamente presente de efetiva e a realidade que deveria
por si mesmo e, por conseguinte, é, existir segundo certas normas dadas
ao mesmo tempo, aparente, ou se- de antemão. Como essas normas
ja, evidente. são, com frequência, de caráter mo-
O contraste entre o ser e o pensar ral, trata-se de um contraste que im-
é de natureza distinta dos anteriores. plica a separação entre o reino físi-
Trata-se, com frequência, da corre- co e o reino moral. Por vezes, entre-
lação de dois elementos que são dis- tanto, o dever ser é entendido meta-
tintos em tudo, mas que podem ser fisicamente; nesse caso, o contraste
isomórficos. Especialmente nas me- dá-se no campo metafísico, do qual
tafísicas racionalistas, o menciona- um dos aspectos é o físico e o outro
do isomorfismo é sublinhado como pode ser o moral.
indispensável para o conhecimento. O contraste entre o ser e o sentido
Alguns filósofos, como Parmênides, suscita vários problemas metafísicos
afirmam que o ser é o mesmo que o de índole particularmente difícil. En-
639 SER

tre tais problemas mencionamos os ve de toda significação (ou de todo


seguintes: (a) o ser tem sentido ou sentido). Semelhante ser não pode ter
não? (b) o sentido aparece em algu- acidentes nem atributos; tampouco
ma dimensão do ser? (c) pode-se re- pode ser encerrado em nenhuma ca-
duzir, em última instância, ser ao
oO
tegoria. Alguns autores consideram
sentido? Se se afirma que o ser tem que um puro ser em si é irracional, na
sentido, ou que carece de sentido, ou medida em que é inteiramente opaco
que pode reduzir-se ao sentido, o e impenetrável. Outros autores, em
contraste desaparece. Em contrapar- contrapartida, mantêm que a expres-
tida, subsiste quando se sustenta que são da completa imanência equivale
o sentido surge em alguma dimensão à posse, por tal ser, de uma absoluta
do ser. Mesmo assim, porém, pode- transparência e, por conseguinte, de
se conceber esse surgir como a con- uma perfeita racionalidade. Não nos
sequência de uma potencialidade pronunciaremos sobre esse ponto.
prévia ou, então, como um emergen- Apenas diremos que, em nossa opil-
te. Propriamente falando, só neste nião, o mencionado conceito do ser
último caso é possível falar-se, com é um conceito-limite; não designa ne-
todo rigor, de um contraste entre o nhuma realidade, mas unicamente
ser e o sentido. uma tendência que essa realidade po-
4. As formas do ser. O estudo das de possuir.
formas do ser é um tema da ontolo- O ser fora de si parece, em princí-
gia enquanto ontologia fenomenoló- pio, oposto ao acima descrito; em
gica. Embora esse estudo tenha sido vez de permanecer sempre em sl mes-
especialmente cultivado na época mo, o ser fora de si caracteriza-se por
contemporânea (N. Hartmann, J.-P. sua tendência à alteridade. Ora, es-
Sartre, etc.), encontram-se contribui- sa alteridade pode ser entendida de
ções muito importantes para o mes- duas maneiras. Por um lado, é o
mo em todas as grandes filosofias ser-outro, por conseguinte, a trans-
(por exemplo, Aristóteles, Hegel). formação de uma realidade em ou-
O ser em si é definido usualmente tra distinta dela. Nesse caso, pode-
como o ser que permanece dentro de se dizer — transpondo para a onto-
si mesmo, ou seja, como o ser perfei- logia a linguagem psicológica e mo-
tamente imanente. Deu-se, às vezes, ral — que, ao ser fora de s1, o ser é
como exemplo de tal ser, a substân- infiel a si mesmo. Mas, por outro la-
cia. Contudo, a substância é o prin- do, a alteridade do ser fora de si po-
cípio de suas próprias manifestações de dever-se a que tal ser se constitua
e, por conseguinte, não pode ser in- somente na medida em que — em-
teiramente imanente a si mesma. pregando de novo o citado vocabu-
Exemplo do ser em si é, ao contrário, lário — amplia o âmbito de sua rea-
esse ser compacto e informe, hostil a lidade por meio de novas formas ou,
toda separação e a todo movimento, como às vezes se diz, de novas ““ex-
que, segundo Sartre, carece inclusi- periências”'.
SER ESPÉCIE 640

O ser para si é descrito, em mui- si”*pode ser concebido como estáti-


tas ocasiões, como a forma estrita- co ou como dinâmico. Alguns auto-
mente oposta à do ser em sl. A ra- res defendem que o ser estático cons-
zão de tal oposição é clara: enquan- titui o fundamento do ser dinâmico,
to O ser em si constitui-se mediante ou então, simplesmente, que o ser é
a pura imanência, o ser para si re- sujeito do devir, segundo a fórmula
quer a transcendência — e até, se- operari sequitur esse. Outros, pelo
gundo alguns autores, a completa contrário, mantêm que o ser dinâmi!-
transcendência. De um modo geral, co é o único ““ser real” e que o está-
observa-se que o ““para si”* não de- tico é tão-somente a visão atempo-
ve ser interpretado como um refluir ral do devir e do transformar-se con-
do ser sobre si mesmo para desligar- tínuos em que consiste o ser.
se inteiramente do que lhe é alheio.
Se assim fosse, o ser para si e o ser SER ESPÉCIE Traduzimos desse
em s1 equivaleriam ao mesmo. O modo a expressão Gattungswesen,
“para si” expressa, antes — empre- que desempenha um papel importan-
gando de novo o vocabulário psico- te em Feuerbach e que Marx adotou
lógico — a intimidade e, por conse- para a elaborar e submeter, depois,
guinte, a possibilidade de manifes- à crítica. Usamos ““ser espécie” no
tar-se continuamente a si mesmo e, sentido de “ser (o homem) uma es-
inclusive, de transcender incessante- pécie”, “ter (o homem) a natureza
mente a si mesmo. Alguns filósofos de uma espécie” e também de ““ser
pensam que o ser para si é o resulta- (o homem consciente de constituir
do de um movimento determinado uma) espécie”.
pela constituição interna do ser em No início de seu livro A Essência
si; Hegel está nesse caso. Outros con- do Cristianismo (1841), afirma Feuer-
sideram que o ser para si surge co- bach que a consciência é a caracteris-
mo o completamente indeterminado tica mais simples e geral que distin-
no ser em si e, por conseguinte, não gue o homem dos animais. Essa cons-
pode ser considerado um desdobra- ciência deve ser entendida no ““senti-
mento deste. Ainda outros, por fim, do forte” enão apenas como ““senti-
equipararam o ser para si com sen-
oO mento de s1”, de percepção e de ca-
tido, ou com a existência real, dis- pacidade de analisar e julgar coisas ex-
tinguindo-o, assim, do ser em si; é, ternas ““segundo características sen-
pois, equivalente ao puro e simples síveis”', pois tal sentimento de si tam-
fato ou à mera “objetividade”. bém os animais possuem. O animal
"Também se falou de ser estático e faz-se objeto para si mesmo enquan-
ser dinâmico. Embora o chamado to indivíduo, mas não enquanto es-
“ser estático” tenha sido equipara- é
pécie. A ciência, porém, “ciência de
espécies”. O animal tem uma vida
do amiúde ao ser em si, e o “ser di-
nâmico”' ao ser para si, é possível simples; o homem, uma vida dupla:
considerar que pelo menos o “ser em a exterior e a interior. “A vida inte-
641 SER ESPÉCIE

rior do homem é a vida em relação todesenvolvimento do homem como


com a sua espécie.” (Das Wesen des espécie.
Christentums, em Sáâmtliche Werke, Marx tomou primeiro a idéia feuer-
vol. VI, ed. Wilhelm Bolin, p. 2). bachiana do ser espécie como uma
Enquanto o animal não realiza ne- idéia básica para caracterizar o ho-
nhuma “função de espécie” (Gat- mem. Nas páginas sobre o trabalho
tungsfunktion) sem outro indivíduo, alienado, dos Manuscritos econômi--
o homem é capaz de realizar essa co-filosófico, de 1844, Marx quasere-
função por si mesmo — assumindo, produz a definição feuerbachiana de
por assim dizer, sua própria espécie homem como um ser espécie: o ho-
por inteiro. Por Isso, o homem é, ao mem é Gattungswesen “não só por-
mesmo tempo, ““eu e tu”, e pode que, na teoria e na prática, adota a
pôr-se no lugar do outro. O homem, espécie como seu objeto”, mas tam-
em suma, tem como objeto sua es- bém porque considera a si mesmo
pécie, sua natureza, e não só a sua “um ser universal e, portanto, um ser
individualidade. livre””. Marx, porém, enfatiza que a
As idéias de Feuerbach parecem universalidade do ser homem na Na-
constituir uma fusão de várias e ca- tureza perde-se na alienação do tra-
pitais noções hegelianas, ou deriva- balho. O trabalhador alienado vê-se
das de Hegel (como, por exemplo, a afastado da Natureza a que perten-
noção de consciência como ““auto- ce. Em princípio, o homem prova que
afirmação” [Selbstbetháltigung, op. é um ser espécie consciente pela fa-
cit., p. 71, com idéias difundidas por bricação de um mundo de objetos.
David Friedrich Strauss em suas Ao contrário do animal, que ““só pro-
obras polêmicas sobre o cristianismo duz a si mesmo” e para suas necessi-
e a figura de Jesus (como a própria dades imediatas, o homem produz
noção de espécie [Gattung]). Feuer- (ou pode produzir) objetos ““univer-
bach, aliás, usou essas idélas na for- salmente””. O homem pode, pois,
mulação de sua filosofia “antropo- confrontar livremente seu produto.
lógica”, segundo a qual o centro da Mas, ao alienar seu trabalho, o ser es-
realidade se desloca de Deus para o pécie transforma-se num ser alheio.
homem. Para Feuerbach, a ““espé- “O homem fica alienado do ho-
cie” não é um mero pensamento; mem; o ser alheio a cujo serviço se
existe nos sentimentos e na “energia faz o trabalho é o próprio homem.
do amor” (op. cit., p. 324). “Um co- Assim, a alienação adquire um cará-
ração amante — escreve Feuerbach, ter soclal. Isso ocorre porque, ao con-
— é o coração da espécie” (op. cit.). trário do que pensava Feuerbach, o
E até o próprio Cristo (obviamente homem não é um ser abstrato. Feuer-
desdivinizado), “enquanto consciên- bach também se opusera à ““abstra-
cia do amor, é a consciência da es- ção”, mas ficara preso à ““generici-
pécie”. Em vez do autodesenvolvi- dade”. Marx insiste, em contrapar-
mento hegeliano da Idéia, há o au- tida, em que a realidade do homem
SILOGISMO 642

não é separável de suas relações (con- “desalienação”* que tem lugar no


frontação e alienação) com os de- curso histórico por meio da ação re-
mais homens. As abstrações da volucionária, a qual leva em conta
“Tdéia” e de “ser espécie” feuerba- as condições objetivas, não é conse-
chianas são repelidas por Marx em quência de um ““apelo moral”: é
favor da consideração do homem no uma ação que se executa tendo em
conjunto de suas relações sociais, re- vista a realidade e com o propósito
lações de produção e de trabalho. de transformá-la.
Em vista disso, é compreensível a
crítica de Marx a Feuerbach. Quan- SILOGISMO Em An. pr., 1 24 b
do se arrebata ao homem o objeto 18-23, Aristóteles definiu o silogismo
de sua produção, arrebata-se-lhe, ao do seguinte modo: “Um silogismo é
mesmo tempo, a vida como espécie, um argumento no qual, estabelecidas
1sto é, sua objetividade real. Ora, a certas colsas, outra coisa distinta das
natureza humana (das menschliche antes estabelecidas resulta necessaria-
Wesen) “não énenhuma abstração mente delas, por ser o que são”.
inerente a cada indivíduo isolado. É. Observou-se, com frequência, que es-
sua realidade no conjunto das rela- sa definição é tão geral que se pode
ções sociais” (“Tese sobre Feuer- aplicar não só à inferência silogísti-
bach”, VD). Em suma, Feuerbach ca, mas também a muitos outros ti-
abstraiu o homem do seu processo pos de inferências — se não à inferên-
histórico, ou histórico-social, e fez cia dedutiva em geral. Contudo, Aris-
do homem, entendido como gênero, tóteles tratou de exemplificar tal de-
uma simples generalidade interna, finição mediante inferências de um ti-
“que une de um modo meramente po especial: aquelas nas quais se es-
natural os diversos indivíduos”. Não tabelece um processo de dedução que
compreendeu que o ““sentimento re- leva ao estabelecimento de uma rela-
ligioso”* é, “por si mesmo, um pro- ção do tipo sujeito-predicado a par-
duto social””, de modo que ““o indi!- tir de enunciados que também mani-
víduo abstrato por ele analisado per- festam a relação sujeito-predicado.
tence a uma forma particular de so- Nesse processo dedutivo supõe-se,
ciedade” (“*“Tese sobre Feuerbach”, ademais, que a conclusão — que tem
VII. dois termos — é inferida em duas pre-
A crítica marxista de Feuerbach missas, cada uma das quais também
constitui uma etapa em direção à no- tem dois termos, um dos quais não
ção de classe desenvolvida em O ca- aparece na conclusão. A classificação
pital. Essa noção desaloja por com- dos silogismos pode corresponder a
pleto a de ser espécie. Com 1sso, a distintos critérios. Em Top., VIII, 11,
alienação deixa de ser um defeito 162 a 15-20, Aristóteles enumera qua-
moral para se converter numa reali- tro tipos de silogismo (raciocínio, ou
dade social objetiva, suscetível de raciocínio silogístico): o filosofema,
descrição científica. O processo de o epiquerema, o sofisma e o apore-
643 SILOGISMO

ma. Limitando-se aos três primeiros claro que as duas primeiras propo-
tipos dessa classificação, alude-se a sições estão ligadas por uma conjun-
silogismos demonstrativos ou apo- ção. Tampouco é exemplo correto de
dícticos, dialéticos e sofísticos (às ve- silogismo o raciocínio:
zes, denominados erísticos). Os silo- Todos os homens são mortais
gismos demonstrativos são necessá- Sócrates é homem
rios, porquanto a conclusão decor-
Sócrates é mortal,
re necessariamente das premissas. Os
dialéticos são prováveis, isto é, a pois, além de Ihe faltarem os conec-
conclusão tem apenas um certo grau tivos antes assinalados, contém um
de probabilidade a respeito das pre- termo singular (“Sócrates”).
missas. E os silogismos sofísticos são Vemos claramene que um silogis-
falsos. O tipo mais usual de silogis- mo categórico é um condicional que
mo é, sem dúvida, o demonstrativo se compõede três esquemas quanti-
— frequentemente apresentado co- ficados. O antecedente do condicio-
mo categórico. Eis um exemplo: nal compõe-se de dois esquemas,
chamados premissas. A primeira é a
Se todos os homens são mortais
premissa maior, a segunda, a premis-
e todos os australianos são sa menor. O consequente do condi-
homens, cional é outro esquema: a conclusão.
então todos os australianos são Cada esquema tem duas letras pre-
mortais. dicados. Usaremos agora as letras
Observemos que o exemplo ante- “SP, “PU e “M” (por vezes, em-
rior é de um condicional e que todos prega-se “F”, “G” e “FH””). Essas
letras designam os chamados termos
os termos introduzidos (“homens”,
do silogismo. Os nomes que recebem
“mortais”, “australianos”) são un!-
versais. Queremos destacar, com 1s- os termos são os seguintes: termo
médio, termo menor, termo maior.
so, que muitos dos exemplos de si- O termo médio (representado por
logismos dados na literatura lógica
tradicional não são propriamente si- )
“M” está nas duas premissas, mas
não na conclusão. Em nosso exem-
logismos. Por exemplo: plo, “homens” é o termo médio; o
Todos os homens são mortais termo menor é o primeiro dos termos
Todos os australianos são da conclusão; o termo maior, o se-
homens gundo dos termos da conclusão. As-
sim, ““australianos”* e “mortais”
Todos os australianos são mortais,
são, respectivamente, os termos me-
em que o traço horizontal colocado nor e maior do silogismo.
acima da conclusão costuma ler-se No silogismo categórico deve-se
“portanto”, não é um exemplo cor- considerar a figura e o modo.
reto de silogismo, pois não aparece A figura é a maneira como estão
nele a forma condicional, nem se vê dispostos os termos nas premissas.
SORITES 644

Como expusemos no verbete FIGU- mum para esse polissilogismo expres-


RA, há várias maneiras de dispor tais sa-se no esquema: A é B; BéÉ C; C
termos e, portanto, várias figuras. é D; logo A é D. Também se deno-
O modo é a forma em que estão mina sorites o polissilogismo em que
dispostas as premissas em função da a conclusão de cada um dos seus
quantidade e da qualidade, e, por componentes está implícita, e somen-
conseguinte, em função da maneira te a última é formalmente explicita-
como os esquemas das premissas e da; assim, por exemplo, se A é B, C
da conclusão podem ser substituídos é A, DÉC, E é D, então E é B. Nes-
pelos enunciados A, E, 1, O (ver se exemplo estão implícitas as con-
PROPOSIÇAO). Os modos foram clusõôes Cé Be E ÉC.
batizados com nomes latinos, nos
quais a disposição das vogais indica SUBSTÂNCIA O vocábulo latino
o tipo de proposição (A, E, I ou O) substantia corresponde ao verbo
que as premissas e a conclusão, res- substo (infinitivo, substare) e signi-
pectivamente, constituem; assim, por fica, literalmente, ““o fato de estar
exemplo, em Barbara há três propo- debaixo de” e “o que está debaixo
sições do tipo A. de”. Supõe-se que uma substância
Os seguintes 15 modos são os que está sob qualidades ou acidentes,
numerosos lógicos consideram váli- servindo-lhes de suporte ou susten-
dos: Barbara, Celarent, Daril, Ferio, táculo, de modo que as qualidades
Cesare, Camestres, Festino, Baroco, ou acidentes podem mudar, enquan-
Datisi, Ferison, Disamis, Calemes, to a substância permanece — uma
Fresison (ver), Bocardo e Dimatis. mudança de qualidades ou acidentes
Sobre a validade dos modos Darap- não equivale necessariamente a que
ti, Felapton, Bamalip e Fesapo há, a substância passe a ser outra, ao
em compensação, mais discussão. passo que uma mudança de substân-
Aristóteles argumentou sobre os cia é uma mudança para outra subs-
silogismos modais com base na sua tância.
teoria do silogismo categórico. Por estar sob qualidades ou aci-
dentes, a substância subsiste, de mo-
SORITES A palavra ““sorites”* cor- do que, em princípio, poderia ser
responde, em filosofia, a dois signi- chamada de ““subsistência” (subsis-
ficados distintos. De um lado, refere- tentia). Entretanto, se bem que se
se a um determinado tipo de argu- possa dizer que as substâncias são
mentos falsos (ver FALÁCIA). De “subsistências”, enfatizou-se com
outro, alude a um polissilogismo em frequência o fato de que nem todas
que o atributo de cada uma das pro- as subsistências são substâncias.
posições que o compõem vem a ser Além disso, o termo ““subsistência”
o sujeito da seguinte, ao passo que adquiriu outras significações que não
a premissa maior e a conclusão têm coincidem com a de substância.
um mesmo sujeito. A forma mais co- Tampouco o significado de ““subs-
645 SUBSTÂNCIA

tância”* coincide sempre com o de dem Griechischen, 2º edição, 1954),


termos que assinalam algo ““substan- a concepção fundamentalmente ““subs-
te” — princípio, essência, matéria, tancialista” da realidade entre a maior
substrato, etc. parte dos filósofos gregos deve-se à
Prantl (Geschichte der Logik im forma de pensar — ““o pensar está-
Abendlande, 1, 514), Rudolf Eucken tico” — dos gregos, em contraste
(Geschichte der philosophischen Ter- com a forma de pensar — ““o pen-
minologie, p. 53) e outros autores 1n- sar dinâmico”? — dos hebreus. Se-
dicaram que Quintiliano foi o pri- gundo Boman, os gregos, assim co-
meiro a usar o vocábulo substantia, mo os povos indo-europeus em ge-
mas Curt Arpe (“Substantia”, Phi- ral, tendem a conceber o ““ser””, ou
lologue, 94, 1941, 65 e ss.) revela que a “realidade”, como ““presença”, ao
Sêneca (Ep., 58, 15; Nat. quaest., L, passo que os hebreus e, talvez, todos
6, 5 el, 15,5) usou substantia antes os povos semíticos tendem a conce-
de Quintiliano. O significado origi- bê-lo como um ““devir real”* (hayah).
nário de tal termo era ““ser corporal” Conceber o ““ser”* como ““presença ”'
ou ““realidade””, em contraste com equivale a concebê-lo como ““subs-
“ser imaginário” (imago, menda- tância””. Argumentou-se que Isso po-
cium). Todos esses significados ad- de dever-se às correspondentes estru-
quiriram um caráter mais filosófico turas linguísticas — sujeito-predica-
quandose introduziu substantia pa-
ra se referir às categorias ou predi-
do nas línguas indo-européias; for-
mas verbais nas línguas semíticas —,
camentos aristotélicos. O vocábulo mas também que essas estruturas lin-
usado por Aristóteles é ovaa, que foi guísticas amoldam-se a certas formas
interpretado e traduzido de diversos culturais e sociais.
modos; tem um paralelo linguístico Aristóteles indica (Cat., 5, 2a 11
em essentia, mas, com Marco Vito- e ss.) que, em seu sentido próprio,
rino, Santo Agostinho e Boécio, foi a substância é o que não é afirmado
traduzido por substantia para desig- de um sujeito, nem se encontra num
nar a “substância primeira” de Aris- sujeito, como o homem e o cavalo
tóteles. individuais. Essa substância é a cha-
O interesse pela noção de substân- mada ““substância primeira”, ovoia
cia no pensamento grego explica-se, TpwTn, substantia prima, porque,
em boa parte, pelo tipo de questões para Aristóteles, o primeiro é o ser
que se equacionaram desde os pré- individual do qual se predica algo;
socráticos — especialmente a ques- o ser individual existe (ou pode exis-
tão acerca do que constitui ““verda- tir), enquanto o que não é um ser in-
deiramente” a realidade, o mundo. dividual é tão-somente, de imediato,
Ao mesmo tempo, é uma noção que o que se possa dizer dele. Assim, do
pode estar culturalmente condiciona- homem individual pode-se dizer que
da. Segundo Thorleif Boman (Das é homem, ou seja, aplicar-lhe o no-
hebrãische Denken im Vergleich mit me “homem”, com o que tal nome
SUBSTÂNCIA 646

é algo afirmado do homem indivi- se determina a si mesmo e se basta


dual. O homem individual é uma (ontologicamente) a si mesmo; é al-
substância (primeira), mas o nome go que poderia existir ainda que não
“homem” não. Do homem indivi- existisse outra coisa — o que Aris-
dual pode-se dizer também que é um tóteles indica ao sublinhar que, co-
animal racional, que é branco, que mo tudo o que não é substância pri-
possui a ciência, etc.; o fato de ser meira se estriba nas substâncias pri-
um animal racional, de ser branco, meiras como sujeitos, nada poderia
de possuir a ciência, são predicados existir se não existissem as substân-
(essenciais ou acidentais) do homem cias primeiras (Cat., 5, 2 b 5).
individual e, portanto, não são subs- O que se diz, ou se pode dizer, da
tâncias (primeiras). As substâncias substância primeira é uma ““substân-
(primeiras) são o substrato de tudo cia segunda”, ovoia deúvtepa, subs-
o mais, pelo que são substâncias por tantia secunda — ou ““substância se-
excelência, xaT'etoxnv. As substân- cundária”, ou, se se quiser, “subs-
clas primeiras não diferem entre si no tância em sentido secundário e não
grau de substancialidade, pois toda próprio”. Por que razão Aristóteles
substância primeira é um homem, continua usando o termo ““substân-
um bol, uma árvore, etc. As substân- cia” para se referir a entidades que
cias primeiras não têm contrários não são, propriamente falando,
(como sucede com as qualidades: substâncias, é uma questão interes-
buraco-negro), mas admitem quali- sante, mas nada fácil de se resolver.
ficações contrárias, ôexTlIVOV TOY Em parte, deve-se ao fato de que
EvavTiwWr (como quando se diz que Aristóteles não nega que o que se diz,
tal homem é branco ou que tal ho- ou se pode dizer, das substâncias pri-
meiras também tem certa entidade,
mem é negro).
O primado da substância (primei- embora não seja uma entidade pró-
ra) em Aristóteles pode ser com- pria e independente das substâncias
preendido em razão do significado primeiras. As substâncias segundas
de ovoia. A substância primeira é são impropriamente substâncias,
ovoía porque possui sua própria ri- mas continuam sendo, de algum mo-
queza ou, melhor dizendo, porque o do, substâncias. Além disso, Aristó-
fato de subsistir independentemente teles afirma que, entre as substâncias
de quaisquer qualificações que lhe segundas, a espécie é “mais substân-
caibam é ““seu””. Nesse sentido, a cia do que o gênero”; parece, pois,
substância (primeira) possu!l as carac- que uma substância segunda será
terísticas a que se refere Wolfgang “menos substância segunda” e
Cramer (Das Absolute und das Kon- “mais substância primeira” (sem
tingente. Untersuchugen zum Subs- coincidir, porém, com esta última),
tanzbegriff, 1958, 2º ed., 1976), é al- quanto mais se “avizinhar” da subs-
go individual, irredutível, único, que
tância primeira, como quando sediz
não está em outra coisa; é algo que que Pedro é um homem — o ser ho-
647 SUBSTÂNCIA

mem torna Pedro mais “preciso” do substâncias segundas determinam o


que o ser simplesmente animal, de que as substâncias primeiras são. No
modo que o ser homem está mais que se refere a “estar em”, poder-
“perto” de Pedro do que o ser ani- se-la dizer que as substâncias primei-
mal. Cumpre observar que as subs- ras “estão nas” substâncias segun-
tâncias segundas não são, como ter- das, mas é preciso ter cuidado ao in-
se-la podido interpretar do que se diz terpretar esse ““estar em”: não é es-
acima, tudo o que se possa dizer de tar contido como um acidente está
um sujeito como substância primei- contido num sujeito, mas estar con-
ra. Com efeito, somente o que se pa- tido como os indivíduos estão con-
rece de algtum modo com a substân- tidos nos universais, ou seja, de um
cia primeira é substância segunda. Is- modo distinto de ser “parte de”.
SO OCOTTe Com OS gêneros e as espé- Em Mer., A 8, 1017 b 10-25, Aris-
cies porque, como as substâncias pri- tóteles diz que substâncias são enti-
meiras, podem ser “suportes”. Não dades como os elementos (terra, fo-
ocorre com os acidentes — que são go, água, ar), OS corpos e seus com-
sempre “suportados”* — e, na con- postos, e as partes desses corpos. Em
cepção que nos ocupa, tampouco outro sentido, chama-se de ““subs-
acontece com as relações. O que as tância” a causa imanente da existên-
substâncias, primeiras e segundas, cia das coisas naturais. Ainda em ou-
“suportam” é uma questão muito tro sentido, diz-se que são substân-
debatida. clas as “essências” expressas na de-
Tanto as substâncias primeiras co- finição. De todos esses sentidos,
mo as segundas têm em comum não destacam-se dois: a substância é o
estar num sujeito. Isso parece óbvio “sujeito último” que não se afirma
no caso das substâncias primeiras, em nenhum outro e é o que, sendo
pois se estivessem num sujeito pode- um Indivíduo em sua essência, é ““se-
riam ser ditas de um sujeito, o que parável””, de modo que a forma de
não ocorre: o sujeito é o sujeito e, cada ser é a sua substância. Em Mert,,
por conseguinte, é o “este”, 700e€, Z, 1-17, 1028 a 10-1041 b 35, Aris-
que está ““separado”, isto é, que tóteles examina amplamente a noção
“subsiste por si mesmo”. Parece me- de substância como primeira catego-
nos evidente no caso das substâncias ria do ser e como ““primeiro sujeito”,
segundas, mas também deve ser ad- e diz a esse respeito que tal sujeito
mitido, segundo Aristóteles, pois di- é, num sentido, a matéria, em outro
zer de Pedro que é um homem não sentido, a forma e, num terceiro sen-
significa que homem seja uma parte tido, o composto de matéria e for-
de Pedro, como seria ser branco, ca- ma, o “todo concreto”, ovúvvoXovr
paz de tocar guitarra, etc. A diferen- (op. cit., 3, 1029 a 3-5). Aristóteles
ça entre substâncias primeiras e se- nega que os universais e as idéias se-
gundas não reside no “não estar” ou jam substâncias, mas indica que a
“estar” num sujeito, mas em que as substância é de duas classes: “todo
SUBSTÂNCIA 648

composto” e forma. As substâncias ria; estas últimas — se não eram pu-


da primeira classe são corruptíveis; ramente acidentais — equivaliam às
as da segunda, incorruptíveis (op. essências.
cit., 15, 1039 b 20-25). Como todo A escolástica cristã, sob o domínio
concreto, a substância é uma coisa de Avicena, utilizou ““substância”
determinada, 70Ôe; como forma, a para tratar da essência. Alguns esco-
substância de cada ser é a essência. lásticos destacavam como traço ca-
Em Mer., A, 1068 a 13, Aristóteles racterístico na noção de substância o
fala de três espécies de substância. ser-por-si-mesmo (quod est per se es-
De início, temos a substância sensí- se); entre estes últimos, Tomás de
vel, que é móvel, e a substância não Aquino definia a substância como o
sensivel, que é imóvel. A substância ser-por-si (ens per se), embora escla-
sensivel, objeto da ““física”, pode ser recendo que essa não é uma defini-
corruptível (como os animais e as ção apropriada, Já que seria necessá-
plantas) ou eterna (como os astros). rio determinar a ““razão essencial”
A substância não sensível, objeto da desse ser. Assim dito, uma substân-
“metafísica”, é incorruptível. A cia é totalmente independente, quan-
substância não sensível não tem ne- do, na realidade, a absoluta indepen-
nhum princípio comum às demais dência só corresponde a Deus, en-
classes de substâncias (op. cit., 1, quanto as criaturas só são indepen-
1969 b 40). dentes em grau relativo.
Na alta Idade Média, a palavra Descartes define a substância des-
“substância” (substantia) era empre- tacando o momento da independên-
gada como tradução dos termos gre- cia. Mas destaca-o de um modo, por
gos úrrooTtTAMNIS E ovola. Este último assim dizer, “negativo”: substância
era também traduzido por essentia. é, diz Descartes, ea res quae ita exis-
Por substantia entendia-se ““o que tit ut nulla alia re indigeat ad exis-
subsiste”, isto é, o que existe sob tendum, aquilo que existe de tal mo-
(sub) e, de alguma forma, à margem do que não necessita de nenhuma ou-
dos acidentes, ao passo que essência tra coisa para existir (Princ. Phil., L,
(essentia) aludia “ao que o ser (es- 51). Eis o lado “metafísico”. Quanto
se) possui”. Num certo sentido, pois, ao lado “gnoseológico”, temo-lo na
os significados coincidem, se bem idéia de que “chama-se substância
que, ao falar de substância, esta era toda coisa na qual se encontra ime-
interpretada como uma realidade diatamente, como no sujeito, ou pela
concreta ou individual, ao passo que qual existe algo que percebemos, is-
a essência referia-se a realidades abs- to é, qualquer propriedade, qualida-
tratas, como predicados ou proprie- de ou atributo cuja idéia real está em
dades. Daí os pensadores medievais nós” (IIº Resposta, Def. 5). Só
utilizarem expressões como substan- Deus é verdadeiramente substância;
tia concreta, ou substância primeira, não necessita real e verdadeiramen-
e substantia abstracta, ou secundá- te de nada mais para existir, já que
649 SUBSTÂNCIA

sua essência implica sua existência. niz, em contrapartida, destaca a plu-


Mas são também substâncias (fin!- ralidade de substâncias e sua ativi-
tas) a substância extensa e a substân- dade. A substância tem de ser, pois,
cia pensante, as quais recebem de para Leibniz, individual, ativa e, por
Deus a causa última de sua existên- assim dizer, “rica”. Cada substân-
cia. Embora definida da forma ““ne- cia tem de ser distinta e “distinguí-
gativa” assinalada, há algo de emi- vel” de qualquer outra substância,
nentemente positivo na concepção
'
e todas as substâncias devem estar re-
cartesiana de substância: o fato de lacionadas mediante uma harmonia
que, como diria Suárez, tudo o que preestabelecida. As substâncias são
constitui a substância é substancial. “formas substanciais” — um conceir-
Como as substâncias pensante e ex- to que Leibniz aspira a “reabilitar”
tensa são dependentes (de Deus), pa- (Nouveau systême, etc., 3); são “en-
recem mais ser atributos substancia- teléquias primeiras” ou, melhor, ““for-
lizados do que substâncias. Descar- ças primitivas que contêm uma atl-
tes aproxima-se, com Isso, de Spino- vidade original”. Trata-se de ““pon-
za, mas sem o alcançar. Para Spino- tos metafísicos* (op. cit., 11); as
za, a substância é id quod in se est substâncias não são ““entidades lógi-
et per se concipitur: hoc est id, cuius cas”, mas “entidades reais” — as
conceptus non indiget conceptus al- “entidades mais reais” (Carta a De
terius rei, a quo formari debeat, Volder de 23 de junho de 1699; Ger-
aquilo que é em si e se concebe por hardt, II, 182). Basta acrescentar que
si mesmo, isto é, aquilo cujo concei- Leibniz tratou de ““restabelecer” a
to não necessita, para ser formado, noção de substância, fazendo dela
do conceito de nenhuma outra coisa não tanto um ser que subsiste por si,
(Ética, 1, Def. iii). A substância é, quanto, primordialmente, “um cen-
pois, aqui, a Substância: o Deus si- tro simples de atividade” (cf. tam-
ve Natura. Do dualismo (ou trialis- bém Nouveaux essais, II, xxill).
mo) de Descartes passou para o mo- Um dos problemas capitais susci-
nismo. Por vezes, não parece ser um tados durante a Época Moderna foi
monismo completo, pois, junto com o da chamada “comunicação das
a Natura naturans, temos a Natura substâncias”, enquanto questão de
naturata. Mas esta última depende, como substâncias diversas podem
substancialmente falando, da primei- comunicar-se entre si em geral e, so-
ra; se é substância é, em todo caso, bretudo, enquanto questão de como
algo como ““substância emanada”. se comunicam as substâncias “exten-
Tanto Descartes quanto Spinoza sas” ou “corporais” com as substân-
sustentam a independência da subs- cias “espirituais”. O ocasionalismo
tância e recusam-se a chamar os in- pretendeu resolver o problema ne-
divíduos de ““substâncias”. Além gando que houvesse verdadeira co-
disso, parecem tender a uma concep- municação entre as substâncias, ain-
ção “estática” da substância. Leib- da que se desse correspondência, já
SUBSTÂNCIA 650

que, por ocasião de uma mudança damos o nome de ““substância”. “Se


numa substância, produzia-se mu- alguém se examinasse com respeito
dança em outra — e Isso por uma à sua noção de substância pura em
harmonia mais ou menos preestabe- geral, descobriria que não possui de-
lecida. Assim, Leibniz dirá que as la nenhuma outra idéia, excetuando
colsas sucedem como no caso de dois apenas uma suposição de não saber
relógios postos exatamente na mes- o que sustenta tais qualidades que
ma hora, e cujas badaladas logica- são capazes de ocasionar em nós
mente se correspondem, mas em ne- idéias simples, cujas qualidades são
nhum caso são causa ou efeito umas geralmente denomindas acidentes”?
das outras. (Ensaio acerca do entendimento, LL,
Os autores ditos “empiristas” ma- cap. xxill, 2). Mas, embora não sai-
nifestaram, de hábito, certa descon- bamos o que é esse “não saber o
fiança em face da noção de substân- quê”, partimos de algum modo de-
cia e em alguns casos completa hos- le e desembocamos nas idéias de ““es-
tilldade a ela. Para Locke, a substân- pécies particulares de substâncias”,
cia é uma das idéias complexas, jun- quando aprendemos ““essas combi-
to com as idéias complexas de mo- nações de idéias simples descobertas
dos (simples e compostos) e de rela- pela experiência” (op. cit., II, cap.
ções. Aqui aparece o problema da xxil1, 3 e 6). A idéia de substância pu-
substância tratado gnosiologicamen- ra em geral é obscura; a de substân-
te; com efeito, Locke aspira a mos- cia individual é mais clara, mas só
trar como se origina a idéia comple- quando levamos em conta não a pró-
xa de substância individual. Cumpre pria idéia pura, mas os modos de
distinguir entre tal idéia complexa e comportamento das ““substâncias”.
o que se pode chamar ““idéia geral Locke supunha, pois, que existe
de substância”. Esta última não é algo como um substrato material, do
uma idéia obtida mediante a combi- qual nada sabemos. Berkeley rejei-
nação ou a “complicação” de idéias tou tal substrato por desnecessário.
simples; trata-se, antes, de uma es- Se ser é “perceber ou ser percebido”,
pécie de pressuposição: pressupõe-se tudo o que há são percepções e su-
a idéia geral de substância simples- jeitos percipientes. “Sob” as percep-
mente porque fica difícil, se não im- ções não. há nenhum substrato ou
possível, conceber a existência de fe- substância. Não há, a rigor, substân-
nômenos, por assim dizer, “no ar”, cias materiais. Mas há uma causa das
sem ““residirem”* numa substância. percepções ou idéias percebidas, e es-
Isso não quer dizer que Locke afir- sa causa é a substância espiritual ou
“substância ativa incorpórea” (Prin-
me a existência de substância do pon-
to de vista metafísico. Desse ponto ciples, I, 26). “Substância” signifi-
de vista, a opinião de Locke é nega- e
ca, pois, o mesmo que “alma” ““es-
tiva. Em todo caso, ignoramos em pírito” (op. cit., 1, 139). O espírito
é uma substância que sustenta ou
que consiste esse “substrato” a que
651 SUBSTÂNCIA

percebe idéias, mas não é, ele pró- sumo, a substância é uma ficção, e
prio, uma idéia (op. cit., 1, 135). Em o nome “substância”, um mero no-
suma, aquilo que os filósofos cha- me que não denota nada.
mam de ““substância material” é Em vista do que se disse até aqui,
“inexistente” (Three Dialogues, 1). parece haver apenas duas atitudes
As doutrinas segundo as quais possíveis a respeito da noção de subs-
existem substâncias podem ser cha- tância: aceitá-la ou rejeitá-la. Há,
madas, em geral, de “substancialis- porém, uma terceira atitude: “dedu-
tas”, inclusive quando, como em zi-la”* no sentido de Kant, ou seja,
Locke, fazem da substância uma “iustificá-la”. É o que faz Kant em
idéia muito genérica, ou quando, co- sua “dedução transcendental das ca-
mo em Berkeley, as substâncias se re- tegorias”'. Kant não aceita a idéia
duzem a substâncias espirituais. As metafísica da substância. Por outro
doutrinas segundo as quais a idéia de lado, não admite que a idéia de subs-
substância não tem nenhum funda- tância se resolva numa coleção de
mento podem ser chamadas de ““fe- impressões. Kant “deduz” o concei-
nomenistas”. Hume foi um dos mais to ou categoria de substância dos Juí-
destacados representantes dessa úl- zos de relação chamados categóricos;
tima tendência. Ele rejeita a idéia de a eles pertence a categoria de relação
substância por não encontrar nenhu- denominada ““inerência e subsistên-
ma impressão (de sensação ou de re- cia” (substantia et accidens) (K. r.
flexão) que constitua o seu funda- V., A 80, B 106). O conceito de subs-
mento. As substâncias, ou o que su- tância “sobrepõe-se” a uma multi-
postamente o são, não são percebi- plicidade, ordenando-a de forma que
das pelos sentidos, porquanto não possibilite a formulação de juízos so-
são visíveis, não cheiram, nem pro- bre “algo”, ou seja, sobre entidades
duzem sons. Por outro lado, não são que possuem determinadas proprie-
derivadas das impressões de reflexão, dades. A primeira analogia (ver) é “o
pois essas resolvem-se em nossas pal- princípio de permanência da subs-
xões e emoções, nenhuma das quais tância””. “As substâncias na aparên-
pode representar substância alguma. cia são os substratos de toda deter-
“Por conseguinte, não temos nenhu- minação no tempo” (op. cit., A 188,
ma idéia de substância distinta da de B 231). Quanto ao esquema da subs-
uma série de qualidades particula- tância, consiste na “permanência do
res... A idéia de substância... nada real no tempo” (op. cit., À 143, B
mais é que uma série de idéias sim- 183). Em suma, Kant admite a no-
ples unidas pela imaginação e às ção de subsistência no plano trans-
quais se atribui um nome particular cendental, e o conceito de substân-
por meio do qual podemos recordar- cia é um dos que torna possível o co-
nos de tal série, ou recordá-la a ou- nhecimento dos objetos naturais.
tros” (Tratado sobre os princípios do Portanto, é equivocado rejeitar to-
entendimento humano, 1, 6). Em re- talmente esse conceito. Mas também
SUPER-HOMEM 652

é um equivoco trasladá-lo para o pla- conceito de substância pelos de for-


no metafísico, pois surgirá, então, ça, energia ou função. As chamadas
um dos ““paralogismos*' da “razão “substâncias” foram concebidas co-
pura”, o chamado ““paralogismo da mo complexos de funções ou de re-
substancialidade””, segundo o qual lações funcionais. As estruturas não
há um “sujeito absoluto” de todos se compõem de elementos passíveis
os meus possíveis juízos, o qual é de serem qualificados como ““subs-
uma substância. tâncias”; elas são, antes, o resulta-
Hegel também tratou a noção de do dos modos como esses elementos
substância como uma categoria, mas funcionam. Whitehead procurou a
com uma intenção distinta da de noção de substância em ““aconteci-
Kant. As categorias de substância e mentos que são, em algum sentido,
acidente são, para Hegel, formas de a última substância da Natureza”
manifestação da Essência (ver) abso- (The Concept of Nature, 1920, p. 19).
luta. São, portanto, manifestações Também se propôs a idéia de proces-
da “necessidade”, Nesse sentido, pa- so para substituir a de substância,
rece haver uma analogia entre a con- propugnando-se filosofias ““proces-
cepção hegeliana e a concepção spi- sualistas” no lugar de filosofias
nozista de substância. Entretanto, “substancialistas”.
verifica-se pelo menos uma diferen-
ça fundamental: em Spinoza, a ma- SUPER-HOMEM Walter A. Kauf-
nifestação da substância — se é que mann (Nietzsche: Philosopher,
se pode falar de “manifestação” — Psychologist, Antichrist, 1950, pp. 270
é “eterna”; em Hegel, pelo contrá- não foi o
e ss.) indica que Nietzsche
rio, é uma manifetação real, dialéti- criador do termo Ubermensch
ca. Tal como a descreve na Enciclo- (super-homem). “Pode-se encontrar
pédia, a Substância é, para Hegel, a hyperanthropos [imeodkrdiowToOs]
Permanência que se manifesta em nos escritos de Luciano, no século II
acidentes, os quais contêm a Subs- d.C. [em Kataplous, 16] — e Nietzs-
tancialidade. Assim, há algo nos aci- che, em sua qualidade de filósofo
dentes que permanece, porque os acl- clássico, estudou Luciano e fez-lhe
dentes são, a rigor, a “Substância frequentes referências em seus Phy-
como acidentes”. Mas a Substância lologica. Em alemão, a palavra já fo-
é uma manifestação parcial da Es- ra usada por Heinrich Muúller (Geis-
sência; tem de ser superada pela cau- tliche Erquickungsstunden, 1664),
sa, pelo efeito e, em última instân- Herder, Jean Paul e Goethe, num
cia, pela ação recíproca. poema (Zueignung) e no Fausto
Fenomenalistas, positivistas, sen- (parte I, verso 490), onde um espiíri-
sualistas (ou sensacionalistas), neu- to manifesta seu desprezo pelo ate-
ralistas, etc., evitaram comumente morizado Fausto que o conjurou e
falar em termos de substâncias. Por que o chama de Ubermenschen. Por-
vezes, foi proposta a substituição do tanto, é característico que o jovem
653 SUPER-HOMEM

Nietzsche aplicasse primeiro o termo sentido da terra”. Nem os grandes


ao Manfredo de Byron... e o cha- nem os pequenos homens que Zara-
masse de Ubermenschen que contro- tustra viu são super-homens; uns e
la os espíritos.” Os dois versos em outros são “demasiado humanos”.
que se encontra em Goethe a expres- Parece, pois, que o super-homem se-
são Ubermenschen são os seguintes: ja para Nietzsche um “ideal”. E em
Welch erbármlich Grauen
certa medida o é, enquanto é ““coisa
B do futuro”. Mas trata-se de um ideal
Fast Ubermenschen dich! Wo ist
distinto de todos os ideais, porque
[der Seele Ruf? consiste em ser ser mais real de
““o
Mas, embora não tivesse sido todos”*. O super-homem é, em rela-
Nietzsche o criador da palavra em ção ao homem, o que este é em rela-
questão, o fato é que ela se tornou ção ao macaco; o super-homem é o
famosa pelo sentido, ou sentidos, outro extremo da corda na qual an-
que ele Ihe conferiu. da, como um funâmbulo, o homem.
Em primeiro lugar, Nietzsche não Entre o super-homem e o animal, o
entende por “super-homem” o““gran-
de homem”, enquanto personalida-
homem caminha sobre o abismo. O
super-homem é, pois, algo que, por
de historicamente célebre. Se bem assim dizer, “reduz as dimensões do
que alguns personagens históricos cé- homem”. O super-homem é o Inver-
lebres (César, Napoleão, etc.) fossem so da mediocridade, da conformida-
super-homens, à maneira nietzschea- de ao estabelecido, porque aspira a
na, foram-no por muitas razões dis- erigir um novo quadro de valores. O
tintas daquelas que lhes deram cele- super-homem é como ““a mais alta
bridade. Tampouco entende por espécie humana” ou “o mais alto na
“super-homem” um homem biolo- espécie humana”; no fim das contas,
gicamente superior, descendente evo- o super-homem é ““super”, mas tam-
lutivo do homem. O super-homem bém é “homem”, está “além” do
tampouco é o herói, o santo e, em homem, mas o homem é seu ponto
geral, qualquer dos tipos “idealis- de partida. O super-homem é uma
tas”; não pode sê-lo, porque Justa- transfiguração do homem.
mente esses tipos representam os va- Kaufmann (op. cit., p. 278) afir-
lores que o super-homem derrubou ma que o super-homem nietzschea-
e superou. no é o “homem dionisíaco”* — no
Se é relativamente fácil precisar o sentido que tem ““dionisíaco” quan-
que o super-homem não é em Nietzs- do se refere ao homem que se disci-
che, é mais difícil circunscrever o que plinou. Isso pode ser admitido, mas
é. Em primeiro lugar, porque, pro- sempre que se sublinhe que essa -au-
priamente falando, o super-homem todisciplina é uma consequência da
não existe — ou melhor dito, não suprema liberdade, de modo que ““li-
existe “ainda”. O super-homem é berdade” e “autodisciplina” são,
anunciado por Zaratustra como ““o nesse caso, a mesma coisa. Seja co-
SUPER-HOMEM 654

mo for, a idéia nietzscheana de super- tade de poder (Der Wille zur Macht,
homem é a idéia de algo “completo”, 5 V, 1001, na ordem admitida antes.da
de algo que “culmina”, não como um edição coordenada por Karl Schlech-
final, mas sim como os “gonzos” do te), é a meta final do homem. Pode-
eterno retorno. O super-homem é o se dizer que o super-homem é o que
“forte”, o “nobre”, o “senhor”; tam- diz “eu sou”, que é superior a “eu que-
bém é o “legislador” e, por 1sso, pode ro” (1ibid., IV, 940). Por 18So, o super-
ser considerado o “autêntico filóso-
fo”. O super-homem, não a humani-
homem não
se caracteriza por nenhu-
nenhum ato; caracteriza-se
ma crença,
dade, escreve Nietzsche em À von- unicamente por ser.
I
TABELAS DE VERDADE Cha- onde ““V” se lê “verdade” ou “é ver-
mam-se “tabelas de verdade” as que dadeiro” e “F””, “falsidade” ou ““é
podem ser formadas a fim de deter- falso”.
minar “mecanicamente” a verdade Quando se têm duas letras senten-
ou falsidade de uma fórmula senten- ciais, as duas colunas compõem-se de
cial (ou de um enunciado sentencial), quatro linhas por haver quatro pos-
uma vez conhecidos os valores de sibilidades de valores de verdade; as-
verdade das fórmulas componentes. sim, para “p”, “q” são:
Um dos mais frequentes usos das ta-
belas de verdade, em lógica, consis- LL
V
qa
V
te na identificação de tautologias.
As tabelas de verdade podem ser F V
formadas para qualquer fórmula V F
sentencial. Entretanto, convém co- F F
meçar, para efeitos de simplicidade, Construamos, agora, as tabelas de
pela formação de tabelas de verda- verdade correspondentes aos seis co-
de correspondentes aos conectivos nectivos mencionados.
e,EA
e
66
A >,
66
V
e o
LN 66 amo O
Para “1” temos:
Para tanto, coloca-se à esquerda Pp 71p
da tabela a coluna ou colunas que V F
contêm por ordem de aparecimento
F V
as letras de que se compõe a fórmu-
la sentencial e por baixo delas todas Para “ A” temos
as suas possibilidades de verdade ou
falsidade. À esquerda da tabela co-
Pp q PNQ
loca-se a coluna com os valores de V V V
verdade da fórmula sentencial. F V F
Quando se tem uma única letra sen-
V F F
tencial, a coluna compõe-se de duas F F F
linhas, por haver somente dois valo- Para “ v ”*
temos
res possíveis; assim,
luna é:
para ““p” a co- Pp q
V
PY
V
V
Pp
F V V
V V F V
F F F F
TABELAS DE VERDADE 656

Para “—* temos: Vamos supor, agora, que nos pro-

Pp
V
F
q V
V
p>4
V
V
pomos averiguar os valores de ver-
dade para as seguintes fórmulas:
(DAq)—-pP
V F F l(p>-(pvqg)
F F V 1(DAQ)
Para “(paq) — p” temos:
Para “—*” temos:

q
q panq (pnqQ-—-Dbp
pq
PDP

Rs
V V V
V V V V
F V F V
F V F V F F V
V F F F F F V
F F V
o que mostra que a citada fórmula
Para ““«&” temos: é uma tautologia, visto que em to-
dos os casos resultam V.
Pp q pD*q
V V F
Para “l(p—-(pvqg))' temos:
F
V.
V
F
V
V pq pva p-(pvga) Ip>-(Ppvo)
F F F VV V V F
FV V V F
Segundo Sheffer, também é pos- VF V V F
sível formar tabelas de verdade pa- FF F V F
ra os conectivos “1” e “1”. o que mostra que a citada fórmula é
Para “|” temos: uma contradição, visto que em todos

q
OS Casos resultam Fºs.

Pp pia Para “I(pAq)” temos:


V V F
F Pp dq PNQ J(pAq)
F V
V F F V V V F
F F V F V F V
V F F V
Para ““1”* temos: F F F V

Pp q PIq o que mostra que a citada fórmula


V V F é uma fórmula indeterminada, visto
F V V que dá um F e três V's.
V F V A construção de tabelas de verda-
F F V de para fórmulas com mais de duas
657 TABELAS DE VERDADE

letras sentenciais faz-se de acordo o que mostra que a citada fórmula


com o mesmo método. Tomemos co- é uma tautologia.
mo exemplo as letras sentenciais As tabelas acima compreendem
“D”, qo,
ÁP.ASs colunas de V e somente dois valores de verdade;
F para as mesmas são: pertencem à lógica bivalente. Podem
ser formadas tabelas de verdade pa-
ra lógicas polivalentes. Tomemos co-
mo exemplo uma lógica trivalente,
com valores de verdade designáveis
mediante ““1””, ““2”* e “3”, que po-
dem ler-se, respectivamente, “é ver-
m<m<m<m<|s mm<<mm<<|s mmmm<<<<)

dadeiro””, “não é verdadeiro nem


falso”* e “é falso”.
A coluna para uma letra senten-
cial “p” é:
Consideremos a fórmula:
Pp
p-q)-((rvp-(rvqag))) l
A tabela de valores de verdade pa- 2
ra essa fórmula é: 3

pq
V V
r
V
p-q rvp
V V As colunas para duas letras sen-
F V V V V tenciais, “p” e “q”, são:
V F V F V
F F V V V
V V F V V
F V F V F
V F F F V
F F F V F wLWNNNHWD|a

(Dq)
(FAD) —((r vp)
rnq —-(rvag) —(rvq))

<<<LC<L<L<
A tabela de verdade para ““1”
é:
<mM<<<<<<
<<<<L<L<L<L<

PD O»
1 OO

2 NM

3
MM
=
TABELAS DE VERDADE 658

A tabela de verdade para “ A” é: 1” q pD>qG

1 1 ]
Pp q PANA
2 1 2
1 ] ]
3 ] 3
2 1 2 2
1 2
3 1 3
2 2 1
] 2 2
3 2 2
2 2 2 1 3 3
3 2 3
2 3 2
] 3 3
3 3 ]
2 3 3 |
3 3 k A tabela de verdade para ““v” é:

A tabela de verdade para “ v ”


é: Pp q p%Éq
1 ] 3
Pp q PY 2 1 1

l ] 1 1 2 2
2 ] 1 2 2 3
3 l 1 3 2 2
l 2 1 1 3 1

2 2 2 2 3 2
3 2 2 3 3 3
] 3 1

2
As tabelas de verdade foram usa-
2 3
3
das para mostrar que as fórmulas do
3 3
cálculo sentencial de Whitehead-
A tabela de verdade para “—” é: Russell são decidíveis. Uma fórmu-
la de tal cálculo sentencial pode ser
Pp q p>4q provada se, e somente se, for uma
] tautologia.
l ]
O método das tabelas de verdade
2 ] 1

] 1
constitui um aspecto do chamado
3
2 “método de tabelas” (ver TABE-
] 2
2 LAS, MÉTODO DE). Por outro la-
2 1

3 2 1 do, deu-se o nome de “método de ta-


Í 3 3 belas” a um método menos enfado-
2 nho do que o das tabelas de verdade.
2 3
3 3 ] Não faltam indícios de que a idéia
subjacente nas tabelas de verdade era
A tabela de verdade para “ —” é: conhecida na Antiguidade. Isso ocor-
659 TABELAS DE VERDADE

re com o condicional ““Se... então”, falsidade” (Adv. math., II, 110). É


“—” Sexto Empírico (Adv. math.,
º, evidente, pois, que alguns filósofos
II, 112-14) afirmou que todos os antigos estavam familiarizados com
“dialéticos” estão de acordo em que o que se denominou ““implicação
uma proposição hipotética é válida material”* (aquela que seguimos ao
“quando seu consequente segue [lo- apresentar a tabela de verdade para
gicamente] seu antecedente, mas há “—”) e que, também, tinham uma
idéia do que se chamou “implicação
discordância a respeito de quando e estrita”. Filon de Mégara defendia
como isso ocorre, e foram propos-
tos critérios opostos sobre esse “se- a primeira; Diodoros Cronos, a se-
guir' ”*. Segundo Sexto Empirico, gunda. Peirce foi, que saibamos, o
Filon de Mégara declarou que todas primeiro a chamar a atenção (em
as proposições hipotéticas são verda- 1885) para esse fato. Em seus Cofl-
deiras, salvo para as que começam lected Papers (3.375) deu o seguinte
exemplo: “a—<b” (onde “<“”éo
com o que é verdadeiro e terminam
com o que é falso. Portanto, para Fi-
lon de Mégara, uma proposição hi1-
signo usado para o nosso “—”*”
que outros autores escrevem — ”
6
e
potética é verdadeira em três modos Mostrou que essa proposição é ver-
(toixmws) e falsa apenas num modo.
dadeira ““se a é falso ou se b é ver-
Assim, se começa com o verdadeiro dadeiro, mas que é falsa se a é ver-
dadeiro enquanto b é falso”. Em
e termina com o verdadeiro, é ver-
Collected Papers (3.441), Peirce
dadeira, como em ““se é dia, há luz”. referiu-se à antiga disputa entre Fi-
Se começa com o que é falso e ter-
lon de Mégara e Diodoros Cronos.
mina com o que é falso, também é
Segundo Peirce, o ponto de vista de
verdadeira, como em ““se a Terra Diodoros Cronos é o natural nos que
voa, tem asas”. Se começa com o falam “os idiomas europeus”; o
falso e termina com o verdadeiro
ponto de vista de Fílon “teve a pre-
também é verdadeiro, como em ““se ferência da maior parte dos lógicos.
a Terra voa, existe”. Só as proposi- Sua vantagem é que é perfeitamente
ções que começam com o verdadei- inteligível e simples. Sua desvanta-
ro e terminam com o falso são fal- gem é que produz resultados que pa-
sas, como em ““se é dia, é noite”. Em recem ofender o senso comum”.
Hyp. Pyrr., II, 110, Sexto Empirico As tabelas de verdade foram da-
reproduz argumentos análogos aos das — embora sem adotar a fórmu-
que foram dados por Fílon de Mé- la tabular — por Whitehead-Russell
gara. Em ambos os escritos, Sexto nos Principia mathematica, 1, 6, não
Empiírico refere-se à discordância en- só para o condicional, mas para to-
tre Fíilon de Mégara e Diodoros Cro- dos os outros conectivos. Não obs-
nos, o qual afirmou que “uma pro- tante, esses autores assinalaram em
posição hipotética é verdadeira se I, 8, que a verdade “não pode ser for-
não admitiu nem admite que come- malmente provada em cada caso par-
ça com a verdade e termina com à ticular”', deixando assim de reconhe-
TABELAS (MÉTODO DE) 660

cer uma lei geral que permite identi- Pelo uso que se faz nas tabelas de
ficar verdades sentenciais e tautolo- verdade das árvores, fala-se, por ve-
gias. Somente Lukasiewicz, E. Post zes, em “método de árvores”.
e Wittgenstein reconheceriam esta O uso do método de tabelas tem
última. três vantagens sobre o método das
tabelas de verdade. Em primeiro lu-
TABELAS (MÉTODO DE) Um dos gar, este último é quase sempre en-
métodos de tabelas é o das chama- fadonho. Em segundo lugar, o mé-
das “tabelas de verdade” (ver) ou ta- todo das tabelas de verdade não
belas veritativo-funcionais. Entretan- acompanha os modos como se pro-
to, designam-se especificamente por duzem naturalmente os raciocínios
“métodos de tabelas” os que obede- que validam consequências a partir
cem aos procedimentos recomenda- de premissas. Em terceiro lugar, as
dos por Gerhard Gentzen no seu sis- tabelas de verdade só se aplicam à ló-
tema de dedução natural. Podemos gica sentencial (proposicional), sen-
remontar a Gentzen (““Untersuchun- do inoperantes na lógica (quantifica-
gen uúber das logische Schliessen””, Ma- cional) de primeira ordem. Com efei-
thematische Schriften, 39 [1934-1935], to, uma série de enunciados pode re-
176-201, 405-431) os vários métodos sultar consistente em relação à sua
de tabelas hoje empregados. O mé- dimensão veritativo-funcional e in-
todo de prova de ““sequências” de consistente no tocante à sua compo-
Gentzen, junto com o das tabelas de sição quantificacional — e vice-
verdade, encontra-se nas origens da versa. Em contrapartida, o método
formação por Evert W. Beth (Les fon- de tabelas proporciona provas de
dements logiques des mathématiques, consistência-inconsistência na ordem
1950; sobretudo, The Foundations of veritativo-funcional e na ordem quan-
Mathematics, 1959) do que chamou tificacional.
“tabelas semânticas” (tableaux séman- Há várias versões do método de
tiques). Jaakko Hintikka (Two Pa- tabelas, mas em todas elas se faz uso
pers on Symbolic Logic, em Acta phr- de árvores. Podem-se empregar (co-
losophica fennica, 8 [1955]) propôs mo Beth) duas árvores ou (como
um método semelhante ao de Beth Hintikka e Smullyan) uma árvore.
para construir conjuntos-modelos. Ou, empregando-se uma única árvo-
Raymond M. Smullyan (First-Order re, pode-se proceder de modo. que
Logic, 1968) desenvolveu umas tabelas cada ponto da árvore seja (como em
analíticas (analytic tableaux), baseadas Hintikka) um conjunto finito de fór-
nas tabelas semânticas de Beth. Ri- mulas ou (como em Smullyan) uma
chard C. Jeffrey (Formal Logic: Its só fórmula. A tendência parece ser
Scope and its Limits, 1967) deu pela a do uso de uma só árvore com uma
primeira vez ampla circulação ao mé- única fórmula em cada ponto (Smul-
todo de tabelas sob a forma difun- lyan e Jeffrey).
dida de um “método de árvores”. Na versão de Jeffrey e Smullyan
661 TABELAS (MÉTODO DE)

respeitam-se duas regras básicas: de- O ramo simples aparece fechado


composição de compostos e fechamen- por inconsistência de “p” com
to do ramo da árvore no qual se ob- “Tp”. A inconsistência é mostrada
serve uma inconsistência. Um ramo “remontando”º o ramo correspon-
que fica aberto, mas que não continua, dente, que neste caso é só um.
e no curso do qual não há contradição, Consideremos agora as seguintes
indica (em princípio) que nenhuma in- expressões:
consistência ocorre. O fechamento é
assinalado mediante o signo “XX”. João não corre e não é verdade
Exemplo de árvores para simples que não fuma,
conectivos são: João corre ou não dorme,
Se João fuma, então é verdade que
PNQ PYAG Pp>Aq 11p dorme.
p
Pp
ÁNÁN
q lp q
Traduzidas para o simbolismo da
lógica sentencial (proposicional), es-
q Sasexpressões escrevem-se, respect!1-
Esses exemplos são suficientemen- vamente:
te claros. Observemos que para lIpAlliq,
““—” adota-se a regra de ramificar PV lr,
o antecedente e o consequente, de q— r.
modo que se negue o antecedente.
Podem-se formar facilmente árvores Para formar uma tabela (analít!-
ca), escrevem-se primeiro as fórmu-
para outros conectivos. Assim: las em linhas separadas, procedendo-
pqq se em seguida à sua decomposição
p
q pp
em ramos:
IpAllig l
Comparemos uma simples tabela pv lr 2
de verdade com uma tabela analít!- q—r 3

ca. A fórmula “pAa |1p” é incon- 7p 4


sistente, ou seja, falsa para quaisquer
valores de “p””, como se vê em:
l1q 5
6
q
p Pp pnIÍip

x
V F F Pp E, 7

F V F
Na tabela analítica correspondente —Tq r 8
temos: X DS 9
pNlp Pode-se ver que os três ramos ter-
Pp minais ficam encerrados porque, se-
1p guindo em cada caso o ramo corres-
X pondente a partir de 4, observam-se
TABELAS (MÉTODO DE) 662

inconsistências: “p” (7) é inconsisten- nentes. O resultado é o seguinte


te com 4, “1 g” (8) é inconsistente (prescindimos dos parênteses, por
com 6, e “r” (9) é inconsistente com 7. desnecessários):
O uso de tabelas com árvores na
A XFx— Gx =
lógica quantificacional obedece aos
A XGx— Hx
mesmos princípios gerais de forma-
ção de tabelas na lógica sentencial Fa DADtiMdMON

(proposicional). Contudo, há regras 11 A xXEx—> 1 Hx


especiais para os quantificadores.
Uma regra geral é a eliminação do
A
|
XEx— Hx
Fay Ga
maior número possível de quantifi-
OV1VQà|AuU

Ga—>Ha
cadores. Isso se faz mediante exem-
plificadores. Um caso simples é o de:
Fa— Ha |
TFa Ga WD

A XFX,

que é exemplificado por


x /N
lGa Ha 10
Fa.
XxX

A
lFalHa 11
Entre as regras de exemplificação, XxX XX
mencionamos a de que a exemplifi-
cação de quantificadores particula- Os ramos terminais ficam encer-
res e de negação de quantificadores rados. Sendo inconsistentes 1-4, e
universais devem preceder a de quan- sendo 4 a negação da conclusão da-
tificadores universais e negações de da no exemplo, essa conclusão está
quantificadores particulares. implicada pelas premissas (por 1, 2
Consideremos os seguintes enun- e 3).
ciados: O fato de um ramo de uma das ci-
tadas árvores encerrar-se antes de to-
Todos os alemães são europeus das as suas partes componentes te-
Todos os europeus são respon-
Sáveis
rem sido decompostas indica não ser
necessário expor toda a informação
Otto é alemão
(lógica) contida no ramo. O fato de
Nem todos os alemães são 1rres-
um ramo ficar aberto quando se ex-
ponsáveis pôs toda a informação (lógica) cor-
Podemos traduzi-los para o sim- respondente ao mesmo apenas indi-
bolismo da lógica quantificacional e, ca que o terminal é consistente com
ao mesmo tempo, aplicar a regra de todos os níveis de que se compõe o
eliminação de quantificadores me- ramo, mas pode ser inconsistente
diante as exemplificações menciona- com alguns pontos de outro ramo.
das antes. Uma vez escritas as fór- O fato de as árvores ficarem comple-
mulas (e negando a conclusão), in- tamente fechadas indica inconsistên-
troduzem-se as ramificações pert!- cia, mas, como pode haver árvores
663 TAUTOLOGIA

que não ficam fechadas mesmo sen- dava-se o nome de ““tautologias”* so-
do inconsistentes, é necessário seguir mente a algumas fórmulas e, por ve-
regras, de que não nos ocuparemos zes, unicamente a “(p v p)—p”.
aqui, para construir em todos os ca- Hoje em dia, considera-se esse uso
sos uma tabela com árvores que fique pouco recomendável.
fechada, se o conjunto de fórmulas O número de
tautologias é infini-
correspondentes for inconsistente. to. Algumas das tautologias mais im-
portantes são consideradas leis da ló-
TAUTOLOGIA A significação ha- gica sentencial. Damos em seguida
bitual do vocábulo ““tautologia” é de algumas delas:
índole retórica: “tautologia” é o no-
Tla: p—p,
me que recebe a repetição de um
mesmo pensamento em diversas for-
TI1Ib:
T2:
pp,
IDA ID),
mas. Na lógica, chama-se ““tautolo-
gia” a uma fórmula sentencialmen-
TB:
pv Ip,
te válida. São tautologias as fórmu- são as leis de identidade (T 1a, T1D),
las da lógica sentencial que, quando de contradição (T2) e de terceiro ex-
provadas por meio do método de
belas de verdade (ver), dão sempre
ta- cluido (T3).

como resultados V (V = ““é verdadei-


T4: pe 11p
ro”). Por exemplo, o ““princípio de é a lei de dupla negação.
contradição” da lógica tradicional,
ou seja, a fórmula “I(pA 1p)”
15: DAq-(gND)
da lógica sentencial é uma tautolo- é uma das leis de comutação.
gia. A tabela de verdade que lhe cor- Té: pA(qvr)((pAqQ)V (DAP)
responde é:
é uma das leis de distribuição.
DP 1(pA |p)
17: ((p>q) À (q—r)) —>(p—r)
V V
F V é uma das leis de transitividade (isto
é, uma das fórmulas simbólicas pa-
Por isso, é costume definir-se tam-
ra os silogismos hipotéticos).
bém as tautologias como fórmulas
que são sempre verdadeiras, qual- Tê: (pq) (pq) à (aq—-pD))

quer que seja o valor de verdade dos é o chamado bicondicional.


elementos componentes. As tautolo-
gias distinguem-se das fórmulas in- T9a: IpAQD-(IpA Ig,
determinadas, em cujas tabelas apa- T9b: 1(p v DP (PA Ig)
recem Vs e Fs, e das contradições, são as leis de De Morgan.
nas quais aparecem somente Fs.
Em parte da literatura lógica ba-
seada nos Principia mathematica,
T10a:
T10b:
((p>q) À PD)
(pq) A
q,
lq)—-lp
TAUTOLOGIA 664

são, respectivamente, o modus po- genstein, ao simbolismo, numa for-


nens e o modus tollens. ma análoga a como O pertence ao
Para a formação do cálculo sen- simbolismo da aritmética. Daí que
tencial, escolhe-se um certo número nem a tautologia, nem a contradição
de tautologias como axiomas. As ou- sejam descrições, quadros, imagens,
tras tautolog1ias são provadas no cál- representações, ““pinturas” (Bilder)
culo como teoremas. da realidade: a primeira, uma repre-
Por vezes, também se chamam sentação de todas as possíveis situa-
“tautologias* as fórmulas da lógi- ções; a segunda, de nenhuma das s1-
ca quantificacional quando as tabe- tuações. A tautologia cede à realida-
las de verdade correspondentes dão de todo o “espaço lógico”? — inft-
sempre V, quaisquer que sejam os nito —, ao passo que a contradição
valores de verdade de seus compo- preenche todo o espaço lógico e não
nentes. Entretanto, como há fórmu- deixa nenhum ponto para a realida-
las de tal lógica que são válidas do de. Por isso, a verdade da tautolo-
ponto de vista quantificacional, mas gia é certa, enquanto a das proposi-
não do ponto de vista sentencial, é ções é possível e a da contradição,
preferível evitar o nome de tautolo- impossível. Por essa razão, ““tauto-
glas para as fórmulas da lógica quan- logia e contradição constituem os
tificacional consideradas leis dessa casos-limites das combinações sim-
lógica; muitos autores, em vez de bólicas, ou seja, da sua dissolução”
tautologias, chamam-nas de “esque- (cf. Tractatus, 4.461, 4.461-1, 4.462,
mas válidos” ou (quando se trata de 4.463, 4.464, 4.465, 4.466; cf. tam-
negações de esquemas válidos) ““es- bém, do mesmo autor, Notebooks,
quemas contraválidos””. 1914-1916, 1961, ed. organizada por
Não faltaram as discussões acer- G. H. von Wright e G. E. M. Ans-
ca das tautologias. Uma das posições combe, p. 2, nota de 10 de março de
mais discutidas (e, depois, com fre- 1914).
qiiência, rejeitadas) é a de Wittgens- A posição de Wittgenstein leva-o
tein. Segundo esse autor, enquanto a considerar toda a lógica como uma
a proposição mostra o que diz, a tau- série de tautologias. Na medida em
tologia — e a contradição — mos- que se considerava que a matemáti-
tram que não dizem nada. Por isso, ca estava fundamentada na lógica,
a tautologia não possui “condições era possível afirmar que a matemá-
de verdade” e é “incondicionalmente tica também era um conjunto de tau-
verdadeira”, ao contrário da contra- tologias. Como esta última afirma-
dição, que é “incondicionalmente ção enfrentava certas dificuldades e,
falsa””. Contudo, o fato de a tauto- em particular, chocava-se com os
logia carecer de sentido (ser sinnlos) axiomas de redutibilidade e de infi-
não significa que seja absurda (un- nidade, Ramsey eliminou tais axio-
sinnig). Tal como a contradição, a mas e concluiu que a matemática, e
tautologia pertence, segundo Witt- não só a lógica, era tautológica. Não
665 TELEOLOGIA

obstante, verificou-se mais tarde que fins é antiga; entre os filósofos gre-
a equiparação da lógica — para não gos, pode-se encontrar em Anaxágo-
falar da lógica e da matemática — ras, Platão e Aristóteles.
a séries de tautologias reduzia de mo- O Nous, no sentido de Anaxágo-
do considerável o número de fórmu- ras, é um fim, mas não um fim em vir-
las de que se podia dispor. Por isso, tude do qual se produzem as separa-
ele se limitou a admitir como tauto- ções e misturas de acordo com uma
logias somente as fórmulas lógicas ordem. Anaxágoras parece recorrer,
identificáveis por meio das tabelas de pols, ao que mais tarde se chamaria
verdade (ver). Tal identificação é “explicação teleológica”. Entretan-
possível com as fórmulas do cálculo to, numa passagem do Fáidon, Pla-
sentencial (ou proposicional), mas tão faz Sócrates dizer que, embora
não, segundo vimos antes, com to- Anaxágoras falasse do Nous como de
das as fórmulas do cálculo quantifi- um fim, quando chegava o momen-
cacional, já que algumas destas últi- to de explicar alguma coisa — por
mas são válidas do ponto de vista exemplo, algo parecido a por que Só-
quantificacional, mas não do ponto crates se encontrava no cárcere espe-
de vista sentencial, e, por conseguin- rando o momento de beber a cicuta —,
te, não são tautologias. recorria a causas como os tendões, a
Por outro lado, levantou-se a contextura dos músculos, etc., e pres-
questão de o que é que se diz quan- cindia, portanto, de fins ou, no vo-
do se afirma que uma fórmula de- cabulário posterior, de explicações te-
terminada constitui uma tautologia. leológicas. Esse procedimento não
Segundo Reichenbach (Elements of mereceu a aprovação de Sócrates
Symbolic Logic, $ 34), antecipado, (Platão). A introdução por Platão de
segundo parece, por Fries, mesmo “formas”, “idéias”, “paradigmas”,
que uma tautologia seja vazia, O etc., exprimiu uma forte tendência te-
enunciado de que certa fórmula é leológica, já que as formas, idéias,
uma tautologia não é vazio. Tal paradigmas, etc., não são propria-
enunciado constitui um enunciado mente causas, mas modelos.
empírico. Uma das quatro espécies de causas
é, segundo Aristóteles, o que se cha-
TELEOLOGIA O termo ““teleolo- ma ““causa final”. Esta distingue-se
gia” foi empregado por Wolff (Phr- da causa eficiente, se bem que, em
losophia rationalis sive logica, III, Aristóteles, não seja oposta nem 1n-
$ 85) para designar a parte da filo- compatível com ela. Todas as espé-
sofia natural que explica os fins cies de “causa” colaboram na pro-
(rédos = fim) das coisas, ao contrá- dução de um efeito. Se reservarmos
rio da parte da filosofia natural que para a causa eficiente o adjetivo
se ocupa das causas das coisas. So- “causal” e para a causa final nos li-
mente o nome é novo. A própria mitarmos a usar o adjetivo ““final”,
idéia de uma explicação por meio de poderemos recorrer aos vocábulos
TELEOLOGIA 666

“causalismo” e “finalismo” para so não quer dizer — e o citado au-


nos referirmos, respectivamente, às tor não deixa de o enfatizar (op. cit.,
explicações causais e finais. Depois da p. 170) — que, historicamente, as
introdução do termo ““teleologia”, coisas tenham sido tão simples quan-
falou-se com frequência de ““teleolo- to a sua descrição pode sugerir. Aris-
gi1smo””, em vez de “finalismo”. tóteles não descuidou do papel das
Aristóteles adotou fregqiientemente causas eficlentes; em numerosos ca-
o comportamento de organismos co- sos, só o que funciona como tal cau-
mo modelo de explicação. Isso o le- sa permite que se leve a cabo um pro-
vou a dar muita atenção a conside- cesso. Tampouco menosprezou o pa-
rações do tipo de “aquilo em vista pel das “potências” e “faculdades”.
do que...”*. Essas considerações são Em Galileu e na ciência natural mo-
de índole teleológica. Por essa razão, derna em geral, há explicações que,
o aristotelismo foi muitas vezes equi- como indica von Wright, estão for-
parado ao ““teleologismo”. .muladas “em termos de leis que vin-
Demócrito recorreu a uma só no- culam fenômenos que são determi-
ção de causalidade — coisa que foi nados, numericamente mensuráveis,
Justamente criticada por Aristóteles —, de distintos determinantes genéri-
a chamada ““causalidade eficiente”. cos” (loc. cit). À contraposição en-
A partir sobretudo de Galileu, a ten-
dência foi de eliminar as “causas fi-
tre “teleologismo”*e “causalismo”
só pode servir de orientação geral. O
nais”, enquanto a “causalidade efi- mesmo, e em maior profusão, ocor-
ciente” foi a única que se conservou re com a contraposição entre ““teleo-
nesse autor e, em geral, na física e logismo”*e “mecanicismo”, em vista
do fato de que há explicações meca-
em boa parte da filosofia moderna.
Por essa razão, equiparou-se muitas nicistas que fazem uso da noção de
vezes o atomismo democriteano e a “orientação para um fim”. Entre-
física moderna ao ““causalismo”'. tanto, costuma-se recorrer a essas
Pode-se falar, como fez Georg contraposições para caracterizar, de
Henrik von Wright (Explanation and um modo muito geral, certos tipos
Understanding, 1971, pp. 2ess.), de de sistemas filosóficos ou formas de
“duas grandes tradições na história pensar. Assim, fala-se de teleologis-
das idéias, tradições que diferem en- mo em Anaxágoras, Platão, Aristó-
tre si no que tange às condições que teles, nos escolásticos; e de causalis-
uma explicação tem de satisfazer mo (ou até mecanicismo) em Demó-
com o fim de ser cientificamente res- crito, Galileu, Descartes, Spinoza.
peitável. Uma tradição é chamada, Alguns autores, como Leibniz e Lot-
por vezes, aristotélica; a outra, gali- ze, são caracterizados como tendo
leana””. Podem também chamar-se, procurado harmonizar o teleologis-
respectivamente, ““tradição teleoló- mo com o causalismo, sobretudo na
gica” e “tradição causalista” (e ain- medida em que admitiram ““teleolo-
da, muito amiúde, mecanicista). s- gias internas”, isto é, finalidades re-
667 TELEOLOGIA

sidentes no mesmo encadeamento ca, que encontraram falhas nas con-


causal. cepções causalistas tradicionais e no
As discussões sobre a adequação positivismo de ascendência humea-
das explicações teleológicas, bem co- na. No exame da noção de ação e de
mo sobre se a realidade em geral, ou “agência” — que pode ser animal e
certos tipos de realidades, possuem não somente humana —, Charles
estrutura teleológica, devendo ser, Taylor (especialmente em The Expla-
portanto, explicadas em termos teleo- nation of Behavior, 1964) manifes-
lógicos, têm sido particularmente v1- tou a opinião de que a noção de pro-
vas na filosofia do orgânico e na das pósito e a explicação teleológica não
ciências biológicas. Alguns autores, são, de modo algum, incompatíveis
como os vitalistas e os neovitalistas, com um ponto de vista empírico e
indicaram que não se pode prescin- não necessitam postular entidades
dir de explicações teleológicas. Ou- inobserváveis ou forças supostamen-
tros procuraram reduzir as explica- te “ocultas”. Trata-se, simplesmen-
ções teleológicas a outras fundadas te, de admitir a possibilidade de um
na noção de causalidade eficiente. Es- princípio de assimetria, distinto do
sa redução foi proposta de diversos princípio de simetria para todos os
modos. Alguns, por exemplo, assina- movimentos, que é (ou foi) o princí-
laram que a chamada ““explicação te- plo característico da ciência natural
leológica”* nada mais é do que uma moderna. Que o princípio de sime-
explicação causal que usa as noções tria seja ou não válido é, segundo
de “direção para um fim”, “propó- Taylor, uma questão empírica — co-
sito”, “função”, “intenção”, etc. mo é a de se uma explicação teleo-
oO

Outros manifestaram que a conduta lógica é ou não aceitável.


teleológica nos seres orgânicos é s!l- Distinguiu-se entre várias formas
nônimo de conduta dirigida para o de teleologia. O já citado von Wright
que se chamou de “mecanismos de considera haver duas províncias em
realimentação negativa” (negative que cabe dividir o domínio tradicio-
feedback). Essa é a opinião da maior nalmente adstrito à teleologia. Nu-
parte dos cultores da cibernética e dos ma dessas províncias, empregam-se
autores que se servem da teoria geral as noções de função, propósito e to-
de sistemas. Vários autores indica- talidade orgânica (sistema); na outra,
ram que a noção de teleologia é pu- as noções de “tendência” (ou ““as-
ramente metodológica, ou que o seu piração””) e “intencionalidade”. Tam-
interesse é apenas heurístico. Houve bém se distinguiu entre a teleologia
ainda os que opinaram que as noções aplicada ao estudo de fenômenos na-
teleológicas só são usadas tempora- turais e a teleologia aplicada ao exa-
riamente e até se descobrirem as no- me de atos praticados por agentes
ções causais pertinentes. humanos. No primeiro caso, mane-
O mesmo foi negado por uma sé- ja-se o conceito de direção para um
rie de filósofos de tendência analíti- fim, geralmente “programado”; no
TELEOLÓGICA, PROVA 668

segundo, os conceitos de intenção e da prova cosmológica. Em todo ca-


propósito. so, nem toda prova teleológica recor-
Houve outros dois significados re às noções de que se vale a prova
distintos dos termos ““teleologia” e cosmológica, mas esta última tende
“teleológico” na Época Moderna, a incluir a primeira. Não há apenas
dos quais tratamos nos verbetes so- diferença entre a prova teleológica e
bre “Juízo teleológico”, que se refere a chamada ““prova físico-teológica””,
sobretudo a Kant, e “prova teleoló- isto é, a prova baseada em noções
gica”, que procura demonstrar a procedentes da chamada ““físico-teo-
existência de Deus. logia”. No século XVIII, a maior par-
te dos argumentos aduzidos em fa-
TELEOLÓGICA, PROVA Uma vor de uma prova teleológica eram
das “cinco vias” (quinque viae) pro- argumentos de caráter físico-teoló-
postas por Santo Tomás de Aquino glCO.
para demonstrar, ou provar, a exis- Distinguiu-se, com frequência, na
tência de Deus é a que se baseia na prova teleológica, entre um aspecto
noção de finalidade. Essa prova (a físico e um aspecto metafísico. Fis1-
que figura como sendo a ““quinta camente (ou “cosmologicamente”),
via”) consiste, fundamentalmente, a prova apóla-se na ordem e na har-
na idéia de que todo ser tende para monia do mundo, o qual, além dis-
um fim — para uma finalidade. Es- so, é considerado difícil ou impossi-
se fim não pode residir imanente- vel de explicar, a menos que se re-
mente no próprio ser, pois, se assim corra à noção de uma finalidade.
fosse, não poderia sequer falar-se de Metafisicamente, a prova insiste na
fim ou finalidade. O cosmo inteiro passagem essencial do contingente
tem uma finalidade, que não reside (que não parece ter, em si mesmo,
nele, mas numa inteligência supre- nenhuma finalidade) ao necessário.
ma, isto é, Deus. Como finalidade Entretanto, embora o aspecto meta-
de todo o criado, Deus regula as ope- físico da prova pareça ser o predo-
rações dos entes criados. minante, não ocorre assim na maioria
A prova da existência de Deus em das vezes, porquanto as demonstra-
razão da finalidade última foi cha- ções apresentadas na ordem metafí-
mada, desde o século XVIII, ““pro- sica não implicam necessariamente
va teleológica”* (ou “argumento te- introdução da noção de finalidade.
leológico””), em virtude do uso do Por isso, muitos autores examinaram
termo ““teleologia”* (ver) como ter- a prova teleológica no sentido já an-
mo técnico criado por Wolff. Foi teriormente indicado de uma físico-
identificada, por vezes, com a pro- teologia. Um exemplo destacado é o
va cosmológica, mas, como esta úl- de Kant. Ao criticar, na dialética
tima tem geralmente um caráter mais transcendental da Crítica da Razão
amplo, também se considerou a pro- Pura, a demonstração da finalidade
va teleológica uma parte integrante da Natureza, Kant refere-se aos ar-
669 TELEOLÓGICO, JUÍZO

gumentos dados pelos partidários da donemos a idéia do mecanismo das


fiísico-teologia e quer mostrar que causas; significa que podemos ado-
tais argumentos fracassam pela im- tar um ponto de vista “interno” so-
possibilidade de passar do mundofe- bre a Natureza, ao qual não nos con-
nomênico ao mundo numênico. O duz a simples observação física dos
Deus em que desembocariam tais ar- seus fenômenos. Por isso, é possível
gumentos, segundo Kant, seria, no falar-se de um princípio teleológico
máximo, uma espécie de demiurgo, como princípio interno da ciência na-
não o Deus criador onipotente a que tural. Ora, o problema do juízo te-
se referem os que usaram a prova. leológico não se esgota com o ante-
Kant, entretanto, reconhece que tal rior exame — que constitui a analí-
prova tem muita força de convicção. tica do Juízo teleológico. Temos,
Não é surpreendente que tenha sido além disso, os problemas suscitados
empregada com tanta frequência. pela dialética do Juízo teleológico.
Uma das bases dela é a idéia de que Nessa dialética, aparece a antinomia
o mundo visível é um signo ou cifra entre a afirmação de que todas as
do mundo invisível e, em última Ins- colsas materiais foram produzidas
tância, do Criador do mundo visí- por leis meramente mecânicas e a
vel. Não é surpreendente que essa afirmação contrária de que não é
prova tenha sido usada tão frequen- possível nenhuma produção de coi-
temente. sas materiais por leis meramente me-
cânicas. A antinomia não pode ser
TELEOLÓGICO, JUÍZO Na ““cri- resolvida, segundo Kant, pelo idea-
tica do juízo teleológico”, que cons- lismo do propósito objetivo (uma de
titui a segunda parte da Crítica do cujas manifestações é o fatalismo),
Juízo, Kant procura construir uma nem pelo realismo do propósito ob-
ponte entre as considerações de tipo Jetivo (uma de cujas manifestações
mecânico-causal, próprias da ciência é o teismo). Poderíamos concluir,
da Natureza, e as considerações ét!- polis, que um propósito natural é
cas, nas quais desempenha um papel inexplicável. Mas, assim que anali-
fundamental a noção de liberdade da samos o entendimento humano e sua
vontade. compreensão da realidade, constata-
Para tanto, Kant submete à aná- mos ser possível unir nele o princí-
“finalidade”, ou no-
lise a noção de pio do mecanismo universal da Na-
ção de “propósito”, com o fim de tureza ao princípio teleológico na
descobrir o princípio do juízo teleo- “técnica” da Natureza, sempre que
lógico da Natureza em geral enquan- admitamos ser de caráter transcen-
to sistema de propósitos e, sobretu- dente o princípio unificador e não
do, com o fim de chegar ao conhe- pretendamos unir os dois princípios
cimento do propósito (scopus) final citados para a explicação da própria
da Natureza. A afirmação de tal pro- produção da Natureza. O Juízo te-
pósito final não significa que aban- leológico não pertence, pois, segun-
TELEONOMIA 670

do Kant, nem à ciência natural, nem leonomic: A New Analysis”, em Me-


à teologia: a teleologia é somente um thodological and Historical Essays in
tema da crítica — da crítica do juí- the Natural and Social Sciences, ed.
zO. Por 1SSO, a síntese antes mencio- org. por Robert S. Cohen e Marx W.
nada só é possível, no entender de Wartofsky, 1974, pp. 91-117), o pri-
Kant, no âmbito do Juízo reflexivo, meiro autor que usou o vocábulo
no qual podem ser formuladas pro- “teleonômico” foi Colin S. Pitten-
posições que implicam finalidade e drigh (“Adaptation, Natural Selec-
propósito, tais como declarar que o tion and Behavior”, Behavior and
homem não apenas tem um propó- Evolution, 1958, ed. org. por A. Roe
sito natural, como todo e qualquer e G. C. Simpson, p. 394), no seguinte
ser orgânico, mas constitui, ademais, parágrafo: ““O conceito de adapta-
o propósito último da Natureza na ção começa a desfrutar hoje de maior
terra. O teleológico pode inserir-se, respeitábilidade por várias razões: é
assim, no mundo fenomênico e tam- considerado menos que perfeito; a
bém servir de elo entre o mundo fe- seleção natural entende-se melhor e
nomênico e o da liberdade. o físico-engenheiro que constrói au-
tômatos que buscam um fim santi-
TELEONOMIA Muitos biólogos e ficou o uso do jargão teleológico.
filósofos trataram de eliminar toda Parece infeliz a idéia de ressuscitar
explicação teleológica enquanto fun- o termo “teleologia', e creio que se
dada na noção de finalidade. Por ou- abusou muito dele. A confusão em
tro lado, tanto na biologia teórica que os biólogos permaneceram du-
quanto nas ciências do comporta- rante longo tempo seria eliminada de
mento humano, continuaram sendo um modo mais completo se todos os
usadas expressões de caráter teleoló- sistemas dirigidos a um fim fossem
gico, como ““propósito”, “função”, descritos mediante algum outro ter-
etc. Alguns autores manifestaram mo, como “teleonômico', com o pro-
que não só o uso de tais expressões, pósito de enfatizar que o reconheci-
como, inclusive, a própria noção de mento e a descrição de uma direção
finalidade são admissíveis quando se para um fim não subentende neces-
trata de ações executadas por agen- sariamente a aceitação da teleologia
tes, e que isso não significa que se ex- como princípio causal eficiente.”
cluam as relações causais. Entretan- Desde Pittendrigh, “teleonômico”
” e “teleonomia” passaram a ser usa-
to, dado que o termo ““teleologia
envolve conotações que procedem da dos por um número crescente de bió-
idéia de causa final, como se supõe logos, especialistas em teoria da evo-
tenha sido estabelecida por Aristó- lução e filósofos da ciência — sobre-
teles, um novo termo foi proposto: tudo da biologia e das ciências do
“teleonomia”, com o corresponden- comportamento. Também têm sido
te adjetivo “teleonômico””. Segundo usados na literatura sobre autôma-
Ernst Mayr (“Teleological and Te- tos e sistemas auto-regulados. O ci-
671 TEMPO

tado Mayr propôs em 1961 a seguin- Não há, então, incompatibilidade


te definição: ““Seria útil restringir r1- entre teleonomia e causalidade.
gidamente o termo teleonômico a sis-
temas que operam na base de um TEMPO Os gregos tinham dois ter-
programa, um código de informa- mos para designar o tempo: aiwr e
ção.” (“Cause and Effect in Bio- xoovos. Comumente, o primeiro sig-
logy”, Science, 134, 1961, pp. 1501- nificava “época da vida”, “tempo
1506) Depois, modificou sua defini- da vida”, “duração da vida” e, daí,
ção da seguinte maneira: “Um com- “vida” ou “destino” (de uma exis-
portamento ou processo teleonômi- tência individual). Segundo J. Ben-
co é aquele que deve sua direção pa- veniste, o significado mais originá-
ra um determinado fim à operação rio de aiwr é “força de vida” ou
de um programa.” (““Teleological “fonte de vitalidade”, pois deriva do
and Teleonomic: A New Analysis”, tema ayu ou do tema yu (donde iu-
op. cit., p. 98) venis). Pois bem, mesmo supondo
Discutiu-se se cabe falar de proces- esse significado originário de auwr
sos (ou comportamentos) teleonômicos como ““força de vida”, é fácil pas-
somente em relação a uma determi- sar (segundo observou A. J. Festu-
nada espécie biológica — ou a um de- giére em “Le sens philosophique du
terminado sistema auto-regulador —, mot atwr", La parola del passato,
ou também a respeito da evolução Rivista di Studi Classici, XI, 1949,
inteira das espécies. Discutiu-se 172-89) do conceito de “força de vi-
igualmente se cumpre considerar as da” ao de “vida” e da noção de ““vi-
noções de “teleonomia” e “proces- da” a de “tempo da vida”. Em to-
so teleonômico”?* como noções tão- do caso, auwr designava, em muitos
somente heurísticas, ou como noções autores gregos, o tempo de duração
capazes de descrever também as rea- de uma vida individual, talvez por se
lidades a que se aplicam. Debateu- supor que esse tempo está ligado à
se, ainda, a questão de se, e até que persistência da força vital que faz o
ponto, há diferenças apreciáveis, ou indivíduo ser. Por outro lado, xeo-
importantes, entre o conceito atual vos significava “duração do tempo”
de teleonomia e o clássico conceito e, daí, “tempo como um todo”, in-
aristotélico de ““teleologia”, levando- clusive “tempo infinito”. Por con-
se em conta, sobretudo, que cabe in- seguinte, em seus sentidos primários,
terpretar este último conceito de uma atwv E xoóvos designavam, respec-
forma semelhante à dos recentes ““te- tivamente, uma época ou parte do
leonomistas”*. Com efeito, não é pre- tempo e o tempo em geral. Entretan-
ciso supor que ““a direção para um to, aicwv usou-se depois para signifi-
fim” encontra-se fora do sistema, car “eternidade”, de tal sorte que
como uma “forma” que o ““siste-
ma" aspira a atingir; pode ser uma
chegou um momento em que o
nificado de atwr foi mais amplo do
sig-

característica interna do sistema. que o de xeóvos. Platão usa para este


TEMPO 672

último conceito o termo aióávr ao es- que Platão considerasse esse movi-
crever (Tim., 37 D) que o tempo, mento circular como ““a própria eter-
xoovos, é a imagem móvel da eter- nidade”, mas esse seria um assunto
nidade, aiwr; mais tarde, Aristóte- cujo debate nos levaria longe. De
les (De caelo, [I, 9, 279 a 22-30) da- qualquer modo, comparado com
ria ao conceito de “idade” o signi- Aristóteles, Platão disse relativamen-
ficado de “idade do céu inteiro” te muito pouco acerca do tempo. Em
e, por conseguinte, do conceito de contrapartida, Aristóteles esforça-se
“eternidade”; desde então, atcwr ad- por analisar o conceito de tempo sem
quiriu o sentido de “tempo imortal fazer dele uma cópia, imagem ou
e divino, sem princípio nem fim”, sombra de uma ““realidade verdadei-
“totalidade do tempo” e, ainda, ra”. Para tanto, vale-se do movi-
“modelo do tempo”. mento, ou, melhor, do conceito de
Podemos, pois, dizer que, em Pla- movimento. Aristóteles observa que
tão, confirma-se a idéia do tempo o tempo e o movimento são perce-
que passa como manifestação ou bidos juntos. É certo que podemos
imagem móvel de uma Presença que estar na escuridão e não perceber ne-
não passa. A idéia de tempo pode nhum movimento por não enxergar
muito bem desempenhar, na filoso- nenhum corpo que se mova. Mas
fia de Platão, um papel mais impor- basta um movimento na mente para
tante do que até agora se supôs; se- nos darmos conta de que passa o
ria necessário examinar em certo de- tempo. Por conseguinte, o tempo
talhe, por exemplo, o modo como tem de ser movimento ou algo rela-
Platão concebe certos ““passados re- cionado com o movimento. Como
motos” (como possíveis modelos de não é movimento, tem de ser a ou-
um presente), assim como a manei- tra alternativa, isto é, o relacionado
ra como ele entende a evolução da com o movimento (Física, IV, 2, 219
sociedade, antes de se dar um pro- a). Pois bem, no conceito de tempo,
nunciamento definitivo sobre o as- OU, se se quiser, de sucessão tempo-
sunto e de se concluir ou que não há ral, estão incluídos conceitos como
em Platão uma idéia suficientemen- os de “agora”, “antes” e “depois”.
te desenvolvida do tempo, ou que, Estes dois últimos conceitos são fun-
quando tal idéia existe, o filósofo damentais, pois não haveria tempo
tende a ““reduzi-la” a algo que é algum sem um “antes” e um ““de-
atemporal. Cumpre levar em conta, pois”. Donde o tempo pode ser de-
entre outras coisas, que a eternida- finido do seguinte modo: ó xpeóvos

de de que Platão falava como o ““ori- &oOpos éOTL XLIVNOEWS XATA TÔ

ginal”” do tempo é, se quisermos, TEO0TEÇQOV XAL VoTEROL, “O tempo é


uma “idéia”, mas uma idéia da qual o número [a medida] do movimento
há uma cópia bastante “imediata”: segundo o antes e o depois [o ante-
o perfeito movimento circular das es- rior e o posterior]”* (1bid., 220a). O
feras celestes. É possível, inclusive, tempo não é um número, mas uma
673 TEMPO

espécie de número, pois é medido,


só pode ser medido numericamente.
e com os antigos estóicos, quando fi-
zeram intervir na medida do movi-
Os conceitos de tempo e movimento mento as noções de intervalo e velo-
encontram-se tão estreitamente rela- cidade. Mas os estóicos não diluci-
cionados que, a rigor, são interdef1- daram esses problemas, pelo menos
níveis: medimos o tempo pelo mo- em grande detalhe. Limitaram-se a
vimento, mas também o movimen- propor, especialmente como solução
to pelo tempo (ibid., 220 Db). para os paradoxos de Zenão de Elea,
Isso não põefim, como alguns au- que o tempo está formado de algo
tores supõem, à concepção aristoté- como ““partículas temporais invisí-
lica do tempo. No fim das contas, a veis” — uma concepção deveras cu-
idéia do “agora”, vvuv, ou instante, riosa em filósofos que defendiam tão
também é importante na análise aris- obstinadamente a idéia do ““con-
totélica, e essa idéia não parece cor- tínuo””.
responder completamente à defini- Foi observado que as teorias anti-
ção antes apresentada. Além disso, gas acerca do tempo, especialmente
se o tempo é número ou medida do as formuladas a partir de Aristóte-
movimento, parece que se supõe ha- les (aristotélicos, platônicos e neopla-
ver uma realidade “numerante”, tônicos, e sobretudo os estóicos), po-
sem a qual não haveria tempo — a dem dividir-se, à semelhança das teo-
menos que soubéssemos que o mo- rias modernas, em dois grandes gru-
vimento enumera ou mede a si mes- pos: o dos “absolutistas” e o dos
mo. Finalmente, não se deve esque- “relacionistas”. Os “absolutistas”
cer que Aristóteles também conside- concebem que o tempo é uma reali-
ra “modelo” aquilo que se move dade completa em si mesma. Os ““re-
com o movimento mais perfeito — lacionistas** consideram que o tem-
o movimento local circular —, e es- po não é uma realidade per se, mas
te último é menos “mensurável” do uma relação. Aristóteles parece ter
que os demais movimentos menos defendido essa concepção — se sim-
perfeitos, justamente porque é ““to- plificarmos a sua análise do tempo
talmente mensurável”: é perfeita- e esquecermos que o Estagirita vaci-
mente cíclico e já está “medido” des- la não poucas vezes e usa com fre-
de sempre. quência expressões como ““uma es-
Mas, ainda que haja nas idéias pécie de”, “se não é movimento se-
aristotélicas acerca do tempo mais do rá algo relacionado com o movimen-
que indica a definição apresentada, to””. Contudo, como costuma ocor-
essa foi a que exerceu maior influên- rer, os defensores dessas teorias em
cia, pois quase todos os filósofos forma pura são escassos; a maior
posteriores consideraram-se no dever parte dos filósofos optou por com-
de dizer algo a respeito dela. Alguns binar uma corrente com a outra.
filósofos refinaram, aparentemente, Uma dessas “combinações”, talvez
a definição aristotélica. Isso ocorreu a mais influente de todas em séculos
TEMPO 674

imediatamente posteriores, foi a dos Agostinho, dois modos de ver o tem-


neoplatônicos, especificamente a de po, mas são, antes, dois problemas
Plotino. Aristóteles já tinha, pelo relativos ao tempo: o tempo como
menos, aludido à possibilidade de “momento da criação” e o tempo
determinar o conceito de tempo me- como ““realidade””. Esses dois pro-
diante a “realidade numerante”. Es- blemas estão estreitamente relaciona-
ta é a “alma” ou, se se quiser, a dos entre s1. Ao se falar da concep-
“consciência interna do tempo”. ção agostiniana do tempo, é habitual
Plotino acolheu essa idéia — ou in- mencionar a sua perplexidade em fa-
sinuação —, por meio da qual, e pa- ce do tempo. O tempo é um “foi”
ra usar de novo os termos antes in- que já não é. É um “agora”, que
troduzidos, era possível elaborar não é; o “agora” não pode se deter,
uma teoria “absolutista” do tempo pois se isso acontecesse não seria
(o tempo é algo ““real” na alma) e tempo. É um “será” que ainda não
uma teoria ““relacionista” (a alma é. O tempo não tem dimensão; quan-
mede, numera, relaciona). Segundo do vamos capturá-lo, dissipa-se. No
Plotino, o tempo não pode ser, ou entanto, eu sel o que é o tempo, mas
não pode ser somente, número ou só sei quando não tenho de dizê-lo:
medida do movimento. A rigor, Plo- “quando não me perguntam, não
tino adere à tese platônica de que o sei””. Não vale refugiar-me na idéia
tempo é imagem móvel da eternida- de que o tempo é “agora”, o que
de (Enéades, L, v, 7) e é, portanto, agora mesmo passa, o que agora
inferior à eternidade (ibid., III, vu, mesmo estou vivendo. Pois, como
11). A alma “abandona” o tempo vimos, não “há” justamente esse
quando se recolhe no inteligível, mas “agora”. Não há presente; já não há
enquanto tal coisa não acontece a al- passado; ainda não há futuro; por-
ma vive no tempo e até como tem- tanto, não há tempo. Mas essas di-
po. O tempo da alma surge do fun- ficuldades acerca do tempo dissi-
do dela e, por conseguinte, da Inte- pam-se, ou atenuam-se, quando, em
ligência. O tempo, diz Plotino, ““re- vez de nos empenharmos em fazer do
pousava no ser”, “guardava sua tempo algo “externo”, que pode es-
completa imobilidade no ser” (ibid., tar “aí” como estão as coisas, o ra-
III, vii, 9): estava, pois, por assim di- dicamos na alma: a alma, e não os
zer, “em alguma parte” e não era corpos, é a verdadeira “medida” do
apenas “medida”. O tempo é “pro- tempo. O futuro é o que se espera;
longamento sucessivo da vida da o passado é o que se recorda; o pre-
alma”. sente é aquilo a que se está atento;
O que podemos denominar a “con- futuro, passado e presente apresen-
cepção cristã do tempo” obtém sua tam-se como espera, memória e aten-
primeira formulação teológico-filo- ção. Quem pode negar que as coisas
sófica madura em Santo Agostinho. futuras ainda não são? No entanto,
Pode-se pensar que há, em Santo a espera, a expectativa dessas coisas
675 TEMPO

encontra-se em nosso espírito. “Quem no tempo infinito, pois o tempo in-


pode negar que as coisas passadas já finito não constitui a eternidade, a
não são? Não obstante, a memória qual se encontra acima de todo
do passado permanece em nosso es- tempo.
pirito. Quem pode negar que o pre- Durante a Idade Média, preocu-
sente não tem extensão, poils passa pou os filósofos o problema ““teoló-
num breve instante? Entretanto, g1co”* do tempo em relação com a
nossa atenção permanece e, por ela, eternidade. Deve-se levar em conta
o que ainda não é apressa-se a che- que não poucos autores também fo-
gar para desvanecer-se. Assim, o fu- calizaram a questão do tempo do
turo não pode ser qualificado de lon- ponto de vista da distentio animi, de
go, já que um longo tempo futuro que Santo Agostinho falara, e trata-
não é outra coisa senão uma longa ram de ver em que relação se encon-
espera do tempo futuro. Tampouco trava essa concepção do tempo co-
existe um longo tempo passado, pois mo algo “interior” e “anímico” com
este já não é: um longo tempo pas- a concepção do tempo como algo
sado é apenas uma longa recordação “exterior”. Temos, assim, ao que
do tempo que passou” (Confissões, parece, várias questões relativas ao
XI, 28). tempo: se é ou não medida do mo-
Santo Agostinho preocupou-se não vimento; se a medida se encontra
só em averiguar como podemos apre- “fora” ou “dentro” da alma; se há
ender o tempo, mas também de que ou não um tempo cósmico distinto
tipo de realidade é o tempo como do tempo vivido, etc.
realidade criada. Não se pode pen- Continuaram sendo discutidos na
sar que o tempo preexistia a Deus, Época Moderna os problemas teoló-
que é anterior a tudo, por ser causa gIcos, físicos e psicológicos relativos
suprema de tudo. Portanto, cumpre ao tempo. Certas concepções moder-
admitir que o tempo foi criado por nas do tempo gravitaram em torno
Deus. Entretanto, não se pode pen- do problema de como o tempo pode
sar que Deus, que é eterno, criou o ser entendido em relação com as
tempo, com o que surgiu a duração “colsas”, os “fenômenos naturais”,
temporal da eternidade como uma etc. A história dessas concepções,
espécie de prolongamento dela. O t1- bem como dos debates que elas sus-
po de duração chamado ““eternida- citaram, é complexa, mas podemos
de” e o tipo de duração chamado simplificar indicando que as idéias
“tempo” são heterogêneos. É certo modernas fundamentais acerca do
que há algumas analogias entre a tempo, em especial durante os sécu-
eternidade e o tempo: ambos são los XVII e XVIII e, mais especifica-
fundamentalmente ““presentes”*. Mas mente, entre 1650 e 1750, acompa-
a eternidade é uma presença ““simul- nharam, grosso modo, o modelo das
tânea””, enquanto o tempo não. À idéias acerca do espaço. Do mesmo
eternidade é heterogênea, inclusive modo que se podia conceber o espa-
TEMPO 676

ço de, pelo menos, três modos (co- tempo ““cósmico”* — tinha, em ca-
mo uma realidade em si, indepen- da caso, características distintas. À
dente das coisas; como uma proprie- rigor, tanto os absolutistas quanto OS
dade das coisas e, de forma especial, relacionistas tendiam a considerar
das substâncias; como uma relação que o tempo é contínuo, ilimitado,
ou uma ordem), também se podia não-isotrópico (isto é, tem uma só d!i-
conceber o tempo de três modos: co- reção e uma só dimensão), homogê-
mo realidade absoluta; como pro- neo e fluindo sempre do mesmo mo-
priedade; como relação. do sem que haja outros — o que,
Desses três modos, o que mereceu aliás, parece evidente, pois “mais de-
mais escassa atenção foi o segundo. pressa” ou “mais devagar” só tem
Com efeito, era difícil conceber o sentido em relação ao tempo.
tempo como uma propriedade das Embora as concepções acerca do
coISas — quer se entendesse essa pro- tempo propostas por Newton e Leib-
priedade como algo real, residindo niz sejam mais matizadas do que pa-
nas próprias coisas, quer fosse enten- rece à primeira vista, teremos de sim-
dida como uma idéia, a idéia de uma plificar e declarar que esses filósofos
distância entre várias partes de uma representaram, respectivamente, as
sucessão. Em todo caso, o tempo co- concepções absolutista e a relacionis-
mo propriedade das coisas podia ser ta a respeito do tempo. À concepção
chamado, de modo mais apropriado, absolutista está expressa do seguin-
duração. A existência temporal de te modo: num dos esclarecimentos
uma coisa é a duração dessa coisa. dos Principia: “O tempo absoluto,
Porém, como parecia que se neces- verdadeiro e matemático, por si e por
sitava de uma realidade universal que sua própria natureza, flui uniforme-
servisse de medida para a duração mente sem relação com nada exter-
(pois, do contrário, haveria tantos no, e tamém se lhe dá o nome de du-
“tempos” quantas fossem as ““dura- ração.”* Além desse “tempo absolu-
ções” ou, pelo menos, os “modos de to”* há o “tempo relativo”, o qual
durar”), a atenção concentrou-se nos é descrito do seguinte modo no mes-
outros dois modos de se conceber o mo esclarecimento e após a descri-
tempo: como realidade em si, inde- ção do “tempo absoluto”: “o tem-
pendente das coisas, e como relação. po relativo, aparente e comum, é
A primeira concepção é a chamada uma medida sensível e externa... da
“absoluta” ou ““absolutista” do duração por meio do movimento, a
tempo; a segunda concepção é a cha- qual é comumente usada em vez do
mada ““relacional”' ou ““relacionista” tempo verdadeiro.”* Foi observado
do tempo. Estudaremos brevemen- que Newton fala de um “tempo ab-
te essas duas concepções, mas adver- soluto”*, mas, a rigor, faz uso de um
tindo desde já que a adesão a uma conceito de tempo que não é abso-
delas não equivalia a sustentar que luto, e sim “operacional** (Toul-
o tempo — como tempo ““físico” ou min). O certo, porém, é que Newton
677 TEMPO

tende a fundamentar qualquer idéia explicar que ele não exerce nenhuma
do tempo num conceito absoluto do ação causal sobre as coisas.
tempo como o apresentado antes. O próprio Newton pôde muito
Supõe-se nessa concepção que o tem- bem não insistir demais nas implica-
po é independente das colsas, ou se- ções teológicas e metafísicas dessa
ja, enquanto as coisas mudam, o concepção do tempo, mas os newto-
tempo não muda. As mudanças das nilanos, em particular, Clarke, leva-
coisas são, pois, mudanças em rela- ram essa concepção às suas últimas
ção ao tempo uniforme que lhes ser- consequências teológicas e metafísi-
ve de moldura “vazia”. Em outras cas. É certo que, especialmente em
palavras, as mudanças encontram-se sua discussão com Leibniz, Clarke
no tempo num sentido análogo a co- Interessou-se mais, ao que parece,
mo se supunha que os corpos se en- pela questão do espaço do que pela
contram no espaço. E, tal como su- do tempo. O espaço — o ““espaço
cedia com o espaço, supunha-se que absoluto”? — tinha sido descrito por
o tempo é indiferente às coisas que Newton como sensorium Dei. À es-
contém e às mudanças que têm lu- se respeito, Clarke indica que dizer,
gar nas colsas — ou, se se quiser, in- como fez Newton, que o espaço é O
diferente às coisas cambiantes. O “sensório de Deus” não significa que
tempo era concebido como ““algo” ele seja um “órgão dos sentidos”,
perfeitamente homogêneo; nenhum mas tão-somente ““o lugar da sensa-
instante do tempo difere qualitativa- ção”, porquanto o olho, o ouvido,
mente de qualquer outro instante do etc., não são sensoria, ao que Leib-
tempo. É certo que o tempo difere niz replicou que sensorium significa
do espaço em alguns aspectos impor- “órgão de sensação”. Mas muito do
tantes e, sobretudo, no seguinte: ele que Clarke disse acerca do espaço
“flui” e move-se unidimensional- pode ser cotejado com o que disse,
mente numa única direção. Parece, ou supôSs, a respeito do tempo. Em
pois, que há uma diferença intrinse- todo caso, tanto o espaço quanto o
ca entre momentos do tempo; por tempo são, diz Clarke, “quantidades
exemplo, um momento dado é um reais”; em suma, são “absolutos”.
“antes” e outro momento dado po- Contra 1sso, Leibniz defendeu a
de ser um “depois”. Mas o “antes” mencionada concepção relacional ou
e o “depois” são tais em relação ao relacionista do tempo. Em seu escri-
tempo absoluto. Assim, o tempo ab- to sobre “Os fundamentos metafísi-
soluto é prévio não só às colsas, mas cos da matemática”, uma de suas úl-
também a quaisquer medidas tempo- timas obras, Leibniz indicou que o
ralis. O tempo, além disso, não exer- tempo é ““a ordem de existência das
ce nenhuma ação causal sobre as coi- coisas que não são simultâneas. As-
sas; melhor dizendo, o tempo é con- sim, o tempo é a ordem universal das
cebido do modo antes indicado em mudanças, quando não levamos em
grande parte com o propósito de se conta as classes particulares de mu-
TEMPO 678

de
Y

dança”. Aquilo a que chamamos num grupo teorias. Temos a con-


“magnitude do tempo” é a duração. cepção (intuição) do tempo na ““Es-
Em sua terceira comunicação a Clar- tética transcendental”; a concepção
ke, Leibniz insistiu em que, assim co- do tempo na “Analítica transcenden-
mo o espaço é uma ordem de coexis- tal” e, dentro dela, a concepção do
tências, o tempo é “uma ordem de tempo nas diversas sínteses e no es-
sucessões”, “Supondo-se que alguém quematismo das categorias. Na “Es-
perguntasse por que Deus não criou tética transcendental””, Kant adota
todas as coisas um ano antes, e a mes- uma posição que aspira a justificar
ma pessoa inferisse daí que Deus fez a concepção newtoniana do tempo,
algo a cujo respeito não é possível que mas que, em vez de fundamentar es-
houvesse uma razão pela qual o fez sa concepção numa idéia de tempo
a
assim e não de outro modo, respos-
ta a 15so é que sua inferência seria cor-
como coisas em si, baseou-a numa
idéia de tempo como condição de fe-
reta se o tempo fosse algo distinto das nômenos. Kant nega que o tempo se-
colsas que existem no tempo. Pois se- ja um conceito empírico derivado da
ria impossível que houvesse alguma experiência; tem de ser, pois, uma re-
razão pela qual certas coisas deve- presentação necessária que está sub-
riam aplicar-se mais a determinados jacente a todas as nossas intuições.
instantes particulares do que a ou- Por outras palavras, o tempo é uma
tros, desde que se entendesse que a forma de intuição a priori. Com 1s-
sua sucessão continuava sendo a mes- so, Kant parece aproximar-se de
ma. Mas, então, o mesmo argumen- Leibniz. Mas nega que o tempo seja
to prova que os instantes, considera- uma relação ou uma ordem, por-
dos sem as coisas, não são nada em quanto em tal caso seria um concei-
absoluto, consistindo somente na or- to intelectual, não uma intuição. Por
dem sucessiva das coisas. E dado que outro lado, o tempo não é ““subjeti-
essa ordem seja a mesma, um dos vo”, no sentido de ser experiência vi-
dois estados, a saber, o da suposta vida de um sujeito humano. Assim,
antecipação, não diferiria, nem po- o tempo não é real (se por ser real
deria ser distinguido [discernido] do entendemos ““ser uma coisa per se”),
outro, que é o estado atual”. Do pon- mas tampouco é meramente subje-
to de vista teológico, Leibniz afirma tivo, convencional ou arbitrário. Di-
que à sua doutrina relacional é a úni- zer que o tempo é uma representa-
ca aceitável, porquanto possibilita à ção a priori é dizer que o tempo é
imensidade de Deus ser independen- transcendentalmente ideal e empiri-
te do espaço e a eternidade de Deus camente real (num sentido peculiar
ser independente do tempo, o que de “empírico” sobre o qual não po-
não acontece com a doutrina do es- demos nos aprofundar aqui). Em to-
do caso, essa concepção do tempo
paço e do tempo absolutos.
Kant procurou apresentar uma refere-se à ordem das percepções,
teoria do tempo que, a rigor, consiste mas ainda não à ordem dos juízos.
679 TEMPO

Quando esses aparecem, o tempo Trata-se, sobretudo, das correntes


exerce outra função, a função sinté- evolucionistas, nas quais se afirma
tica. Com efeito, nenhum Juizo se- ou se pressupõe que o que há existe
ria possível se não se fundamentas- enquanto se desenvolve temporal-
se numa síntese, a qual, por sua vez, mente, mas que esse desenvolvimen-
baseia-se no uso de um ou vários to obedece a um plano (não neces-
conceitos do entendimento, ou cate- sariamente um plano teleológico)
gorias. Mas esses conceitos do enten- que tem de ser por si mesmo ““atem-
dimento ou categorias só se aplicam poral”.
à experiência por meio dos esque- Ainda é obscura a origem do que
mas, e o esquema é Justamente pos- recebeu o nome de “temporalismo”,
sível pela “mediação” do tempo. Se ou seja, o primado da noção de tem-
algo resulta claro de tudo isso é que po em diversas tendências filosóficas
a noção de tempo ocupa um lugar contemporâneas — a partir das ult!-
central no pensamento de Kant. Pa- mas décadas do século XIX. De um
ra reconhecer esse fato não é preci- lado, parece haver um fundo de tem-
so aderir à interpretação que dá Heil- poralismo nas ““filosofias românti-
degger da primeira Crítica — ou de cas”, sobretudo na medida em que
parte da primeira Crítica — kKantia- essas insistiram no temporal e no his-
na; basta observar que as operações tórico. De outro, parece que pelo
fundamentais do sujeito cognoscen- menos uma parte do temporalismo
te requerem sempre o tempo e que contemporâneo surgiu de uma rea-
o modo como se procede à ““tempo- ção contra certas formas de evolu-
ralização”* do dado é “constituí-lo” cionismo oltocentista. Em todo ca-
objetivamente. Portanto, pode-se so, há desde as últimas décadas do
concluir que, em certa medida, a século passado uma série de filóso-
temporalidade é, em Kant, funda- fos para quem o tempo, a tempora-
mento da objetividade. Pode-se dis- lidade, o temporal, etc., encontram-
cutir se algo de análogo ocorre no se sob diversas formas no centro de
pensamento de Hegel. Por um lado, seu pensamento. A título de exem-
parece que há em Hegel um ““prima- plo, poderemos mencionar Dilthey,
do do tempo”, na medida em que há Bergson, Husserl, Simmel, Heideg-
um “primado do devir””. Por outro ger, etc. Segundo Bergson, todos os
lado, esse tempo só é o Espírito en- filósofos do passado reduziram o
quanto se desenrola, porquanto o tempo e o espaço. A insistência de
Espírito, em si mesmo, é atemporal Bergson na noção de duração como
ou, melhor, eterno. Assim, a tempo- “duração real”, como pura qualida-
ralidade é uma manifestação da de, como objeto da intuição (se não
Idéia. É curioso observar que essa é a própria intuição), etc., levou-o à
peculiar coexistência do temporal formulação de uma metafísica tem-
com o atemporal é própria de várias poralista na qual se estabelecia uma
correntes filosóficas do século XIX. distinção entre tempo verdadeiro e
TEMPO 680

tempo falsificado e espacializado. sência do tempo como realidade ter-


Também em Dilthey o temporalismo rena, nem a característica do ser tem-
está claro, se bem que, nesse caso, poral considerada em si mesma: a
se trate de um temporalismo ““histó- temporalidade é a unidade do cuida-
rico”, pois o tempo diltheyano é fun- do. Não é possível, portanto, falar
damentalmente o tempo como his- simplesmente do passado, presente
tória. ou futuro, nem — num plano psico-
Alguns filósofos que se destaca- lógico — de memória, percepção ou
ram por sua insistência nas ““ideali- antecipação, já que a temporalida-
dades” terminaram, se é que não co- de do Dasein é “criadora” ou pro-
meçaram sub-repticiamente, por des- dutiva, na medida em que está afe-
tacar a importância do tempo. No tada pela sua própria possibilidade
caso de Husserl, aparece uma distin- de ser como ser-no-mundo. Assim
ção entre o tempo fenomenológico, sendo, o tempo terrestre não é o mo-
descrito como a forma unitária das delo para a temporalidade do Da-
vivências num fluxo do vivido, e o sein, mas, ao contrário, essa tempo-
tempo objetivo ou cósmico. Segun- ralidade constitui o modelo do tem-
do Husserl, este último tempo com- po no mundo. Cada um dos elemen-
porta-se em relação ao fenomenoló- tos básicos do Dasein envolve a sua
gico “de um modo análogo àquele própria temporalização; stricto sen-
como a extensão pertencente à essên- su, o Dasein temporaliza a si mesmo
cia imanente de um conteúdo sensí- e as dimensões da temporalidade são
vel concreto se comporta relativa- menos ““fases” do que “êxtases”. À
mente à extensão objetiva”. Donde temporalização do Dasein não é a
a propriedade essencial que expres- passagem do tempo nem a sucessão
sa a temporalidade para as vivências de eventos; é o verdadeiro ser do Da-
não designa, para Husserl, apenas sein em seu ““ser uma sucessão” (Es-
“algo pertencente em geral a cada v1- geht...um). Nesse processo evoluti-
vência particular, mas também uma vo, o Dasein temporaliza-se primor-
forma necessária de união das vivên- dialmente como antecipação de si
cias com as vivências”. A vivência mesmo (daí a primazia do “futuro”
real é temporalidade que se confun- para o Dasein), antecipação que se
de com uma espécie de “duração realiza como um ““ser-que-se-anteci-
real”* (em sentido parecido, por ve- pa-a-si-mesmo” (sich-vorweg-sein).
zes, ao bergsoniano). Temporalizar não significa que os
Foi dito, a respeito de Heidegger, êxtases se produzam em sucessão.
que ele procurou, sem resultados, en- “O futuro não está depois do já pas-
contrar o horizonte do ser (sein) no sado, nem este é anterior ao presen-
tempo. Falava do Dasein como cul- te. A temporalidade autotemporali-
dado, sendo o seu significado onto- za-se como algo futuro que se faz
lógico a temporalidade. Para Heil- presente no processo de já ter sido.”
degger, a temporalidade não é a es- (Sein und Zeit). Os modos de tem-
681 TEMPO

poralização diferem segundo o ele- tados numerosos ““filósofos meno-


mento do Dasein que se considere e res”* contemporâneos que se ocupa-
segundo se apresente sob a forma de ram do problema, e dos problemas,
autenticidade ou não. Se o Dasein é do tempo no sentido que se conven-
autêntico, sua temporalidade é his- cionou chamar “temporalista””. Re-
tórica (não porque o Dasein tenha lativamente abundantes a esse respei-
uma história, mas enquanto ser cons- to foram as fenomenologias e as
tituído por historicidade). “Só a au- ontologias do tempo. Não poucas
têntica temporalidade, que é simul- vezes esses filósofos, sobretudo na
taneamente finita, torna possível al- Alemanha, colocaram em estreita re-
80 Como acaso — Isto é, a autênti-
oO
lação ““o tempo” e ““o ser”. Assim
ca historicidade.” (Sein und Zeirl) ocorre, por exemplo, com Anton
Além dos grandes pensadores a que Neuhãusler, para quem toda questão
nos referimos antes, poderíamos acerca do tempo deve adotar o se-
mencionar outros filósofos “meno- guinte caminho: antes de tudo, uma
res” contemporâneos, cujo pensa- fenomenologia do tempo; depois,
mento é determinado pela noção de um estudo da relação entre “tempo
temporalidade. Muitos filósofos —
especialmente os alemães, como An-
e
imanente” “tempo transcendente”
— para a consciência; finalmente,
ton Neuhâusler — enfatizaram a im- uma análise do “ser” do tempo. À
portância da relação entre o ser e o fenomenologia do tempo ocupa-se
tempo. de fenômenos temporais, como à
O motivo do tempo aparece em “sucessão”, o “agora”, a “dura-
outros autores contemporâneos, den- ção”, etc. O estudo da relação entre
tre os quais podemos citar Simmel, as duas espécies de tempo acima in-
mas destaca-se no pensador que foi dicadas propõe-se averiguar em que
apresentado, por vezes, como aque- medida tais espécies de tempo pos-
le que procurou buscar (sem encon- suem estruturas semelhantes, único
trar) o horizonte do ser no tempo: modo de a relação ter sentido. A
Heidegger, ou, mais exatamente, o análise do “ser” do tempo permite
“primeiro Heidegger”. Isso não sig- sair do conceito do tempo como: su-
nifica que Heidegger seja, como se cessão e averiguar a relação que o
disse algumas vezes, o “filósofo do tempo mantém com a eternidade.
tempo”; certamente não 0 é o “úl- Neuhãusler criou a esse respeito uma
timo Heidegger”. Mas indica pelo fórmula com ressonâncias platôni-
menos que uma fase importante do cas, ou neoplatônicas: “o tempo é à
pensamento de Heidegger está int1- inquietação do ser” (Die Zeit ist die
mamente relacionada com o que cha- Unruhe des Seins).
mamos antes o “temporalismo con- O “temporalismo*” de que fala-
temporâneo””. mos é principalmente o interesse pe-
Além dos ““autores maiores” a la noção de tempo como noção filo-
c1- sófica central. McTaggart também se
que nos referimos, poderiam ser
TEMPO 682

interessa por essa noção, mas com O único modo como, em nossa expe-
objetivo de mostrar que ela é contra- riência presente, percebemos as co!-
ditória e deve ser, portanto, elimina- sas —, estamos percebendo-o mais
da. Esse autor raciocina da seguinte ou menos como realmente é.” (op.
maneira: cit., II, 333).
As posições no tempo formam Muitos dos filósofos ““temporalis-
duas séries: a série A, constituída pe- tas” contemporâneos entenderam o
lo passado, presente e futuro; e a sé- tempo como ““experiência vivida”,
rie B, constituída pelo “antes” eo como ““duração para”, como mani-
“depois”. As distinções na série B festação de uma ““temporalidade”
são permanentes. Qualquer aconte- mais básica, etc. Em todos esses ca-
cimento, M, estará sempre na mes- sos, o problema do tempo é comu-
ma relação de anterioridade ou pos- mente tratado do ponto de vista me-
terioridade com respeito a outro tafísico. Mas o ponto de vista que
acontecimento, O. Se O ocorreu an- poderíamos chamar ““físico”* — ou,
tes de M, estará sempre na relação se se quiser, o modo como a física
“antes de”* com respeito a M; se O tratou o tempo —, também é impor-
aconteceu depois de M, estará sem- tante para o pensamento filosófico,
pre, com respeito a M, na relação como o fo1, segundo vimos, para a
“depois de”. A distinção entre pas- Epoca Moderna. Não podemos, a es-
sado, presente e futuro é essencial se respeito, fazer muito mais do que
para a noção de tempo, mas resulta
que os três são mutuamente incom-
mencionar algumas concepções al-
e
guns dos problemas por elas susci-
patíveis: se um determinado aconte- tados. Em primeiro lugar, é impor-
cimento é passado, então não é pre- tante, na concepção física do tempo,
sente nem futuro. Apesar disso, ““to- a série de conceitos que tiveram sua
das as três determinações pertencem origem na teoria da relatividade, tan-
a cada acontecimento” (The Nature to especial como geral. Conforme vi-
of Existence, II, 305 e ss.). A série mos oportunamente, também há em
A leva, pois, segundo McTaggart, a Newton um conceito ““relativo”* do
uma contradição e tem de ser rejei- tempo, mas esse concelto encontra-
tada. Mas como a série B está basea- se — pelo menos, na interpretação
da na noção de tempo apresentada “clássica”* do pensamento físico
pela noção A, também deverá ser re- newtoniano — inserido num concei-
pelida. Assim sendo, rejeita-se o pas- to “absoluto”: as medições tempo-
sado, o presente e o futuro, o antes rais são relativas a um tempo abso-
e o depois. “Nada é realmente ante- luto que “flui uniformemente sem
rior ou posterior a outra coisa, nem relação com nada externo”. Na teo-
temporalmente simultâneo a ela. Na- ria especial da relatividade, o tempo
da realmente muda. E nada está real- “relativiza-se” inteiramente ao fa-
mente no tempo. Toda vez que per- zer-se função de um sistema de refe-
cebemos algo no tempo — que é O rência, desde o qual se efetuam to-
683 TEMPO

das as observações e medidas. Por is- a função do tempo na teoria gene-


so, não há uma “simultaneidade ab- ralizada da relatividade é distinta da
soluta”: um acontecimento pode ser que tem na mecânica clássica. Min-
simultâneo com respeito a um obser- kowski denominou ““ponto cósmi-
vador, mas não com respelto a um co” todo evento físico — em que se
outro. Isso não significa uma ““rela- coordena o espacial com o temporal
tivização”* do tempo no sentido de — e às coordenadas espaço-tempo-
um ““subjetivismo”, nem tampouco rais deu o nome de “linhas cósmi-
no sentido de um transcendentalis- cas”. Assim visto, o tempo nunca é
mo kantiano (não obstante as opi- alheio aos processos físicos.
niões de Cassirer sobre esse ponto). Junto com as consequências do
A “relatividade do tempo”, unida às tempo, elaboradas ou suscitadas pela
demais ““relatividades”' da teoria es- teoria da relatividade, houve na fí-
pecial, torna possível justamente que sica contemporânea diversas concep-
as leis do universo sejam as mesmas ções do tempo elaboradas ou susci-
para todos os observadores. O que tadas pelos problemas que a medi-
essa teoria faz é descartar um hipo- ção de processos físicos em “pequena
tético “observador cósmico”, para escala” gera — por exemplo, proces-
o qual o tempo seria absoluto. Além sos físicos intranucleares. Estu-
disso, o tempo relaciona-se à veloci- dou-se, por exemplo, a possibilida-
dade, diminuindo com ela (ao con- de de que se observem nesses proces-
trário da massa, que aumenta com SOS séries temporais distintas das que
a velocidade). Na teoria da relativi- se apresentam na macrofísica ou no
dade generalizada, procede-se ao que que poderíamos chamar de ““mega-
foi chamado ““a fusão do tempo com física” (a astrofísica). Em todo ca-
o espaço”: o tempo é uma quarta so, na física intranuclear, ou simples-
coordenada, ou, melhor dizendo, es- mente intra-atômica, opera-se com
paço e tempo são coordenadas num o tempo de maneira distinta do que
universo tetradimensional. Foi dito na macrofísica. Isso pode suceder de
que isso representa uma “espacial:- diversas maneiras, mas limitar-nos-
zação do tempo”, mas é preciso le- emos a mencionar uma delas: no es-
var em conta que a “fusão do tem- tudo das medições temporais. A es-
po com o espaço” não significou, se respeito, foi de novo levantada a
nessa teoria, que o tempo seja con- questão do caráter contínuo ou des-
cebido como se fosse espaço; a rigor, contínuo do tempo. Na física atual
o universo tetradimensional é, mais — ou partes dela —, conseguiram-
exatamente, um universo de três se medições do tempo cada vez mais
mais uma dimensões. Por 1sSo, se precisas (na base da produção de vi-
disse que, mais do que espacializar- brações: 24.000.000.000 de vibrações
se o tempo, o que se fez com essa por segundo). Isso deu ensejo a que
:

teoria foi, antes, temporalizar-se o alguns autores formulassem a hipó-


espaço. Em todo caso, é certo que tese de que pode haver ““rregulari-
TEMPO 684

dades** na estrutura do tempo, o poral da sucessão, da simultaneida-


qual poderia apresentar-se como de e da duração como simples con-
contínuo e “fluente” na escala ma- seqiiência sua” (““Essai sur la théo-
crofísica, mas descontínuo, ““granu- rie causale du temps”, Studia philo-
lar” e, além disso, “irregular”* (em sophica, IL, 1935, p. 101). Em seu
períodos de diferentes proporções) estudo sobre o espaço e o tempo, La-
na escala microfiísica. Se tal ocorres- chelas já havia proposto uma ““iden-
se, haveria que conceber o tempo co- tidade entre a relação temporal e a
mo uma realidade semelhante à das relação de causalidade ocasional”.
“partículas elementares”, Carnap também definiu o tempo em
Todas essas concepções e hipóte- função da ação causal. Reichenbach
ses físicas acerca do tempo deram lu- desenvolveu uma axiomática do es-
gar a numerosos debates filosóficos. paço-tempo segundo a qual tempo e
Alguns autores pensaram que o ““tem- espaço são particularidades de estru-
po” é tão-somente uma ““notação tura da ação causal. Além disso, Rei-
cômoda” e que o que se pode tratar chenbach tratou de deduzir a ordem
de “estrutura granular e descontínua da simultaneidade de considerações
do tempo”, de “diversas dimensões causais, e a da sucessão de conside-
temporais” ou de ““várias direções rações estatísticas, etc. Todas essas
temporais” é simplesmente um mo- “teorias causais do tempo” têm al-
dus discendi, que não se refere, po- go em comurm: nelas, procura-se de-
rém, a nenhuma ““realidade””. Essa rivar propriedades (topológicas) do
concepção ““convencionalista”* en- espaço de certas propriedades do
controu escasso eco tanto entre os fi- tempo. Alguns autores desenvolve-
sicos como entre os filósofos. Mais ram uma concepção do tempo (e do
corrente foi uma concepção ““realis- espaço; melhor dizendo, do espa-
ta” do tempo, fosse qual fosse a rea- ço-tempo) como ““matriz”* de toda
lidade ou o tipo de realidade men- realidade. Foi o que sucedeu com Sa-
cionada. Houve uma ressurreição da muel Alexander, para quem não só
chamada ““teoria causal do tempo”, o tempo e o espaço não são ““indife-
combinada frequentemente com rentes** aos processos reais, como
uma ““teoria relacional”. Já defen- são o fundamento de tais processos,
dida outrora por Leibniz, ela foi ela- aquilo que realmente os “engendra”.
borada por autores como Lachelas,
Robb, Carnap, Reichenbach e Hen-
Isso levou a pensar que o tempo
é
go “substancial”, diferente da con-
al-

ryk Mehlberg, embora em formas cepção do tempo como mera ““rela-


muito distintas. Mehlberg assinala ção” (L'évolution de la notion de
que “a ordem temporal da sucessão”* temps, 1936). Também se discutiu
não é “o esquema mais simples da muito o significado de uma das re-
relação causal”; a ordem dinâmica, lações de incerteza de Heisenberg, a
causal, do devir é que é “o fato fun- que indica que quanto mais precisa
damental de que deriva a ordem tem- é a determinação do valor da ener-
685 TESE-ANTÍTESE-SÍNTESE

gia, menos precisa é a determinação TESE-ANTÍTESE-SÍNTESE Uma


da coordenada temporal, e vice-versa, das possíveis estruturas triádicas é a
segundo a relação AE At >h/4qm.
+
“Trindade divina”; outra é a chama-
Por exemplo, pensou-se que a ““re- da ““tese-antítese-síntese”.
lação de Heisenberg” em questão Atribui-se frequentemente a Hegel
prova que não existem ““estados ins- ter elaborado e desenvolvido esta úl-
tantâneos” — e também prova ser tima estrutura, considerada a estru-
necessário aceitar uma concepção tura básica do método dialético. A
“descontínua” do tempo. verdade é que Hegel raramente em-
Tratamos de concepções e inves- prega as expressões ““tese”, “antite-
tigações concernentes ao tempo dos se” e “síntese”; essas foram, por ou-
pontos de vista metafísico, ontoló- tro lado, profusamente usadas por
Bico, histórico, epistemológico, ps1- Fichte. Kant organizara os quatro
cológico e físico, bem como dos pon- grupos de conceitos do entendimen-
tos de vista por vezes qualificados de to, ou categorias, de tal forma que
“comuns”, “vulgares” ou “intuiti- o segundo conceito de cada grupo
vos”. Há outras concepções e inves- parecia ser uma negação do primei-
tigações que devem ser levadas em ro, e o terceiro ser uma síntese do
conta. primeiro e do segundo. Assim, o
Essas concepções deram origem a conceito de pluralidade parecia ne-
problemas que são objeto de discus- gar o de unidade, e o de totalidade
são habitual por parte de filósofos, parecia sintetizar a unidade com a
sobretudo dos filósofos da Nature- pluralidade. A triplicidade ( Triplizr-
za. Não é fácil distinguir entre es- tãr) foi elevada à sua “absoluta im-
sas questões e aquelas sobre as quais portância” por Fichte, segundo afir-
se debruçaram os pensadores ante- ma Hegel no Prefácio da Fenomeno-
riormente citados. Numa primeira logia do espírito. Com efeito, encon-
aproximação, talvez pareça não ha- tramos em Fichte (Grundlage der ge-
ver conflito, mas, se considerarmos samten Wissenschaftslehre, 1794, 2?
tarefa do filósofo utilizar todos os edição, 1802; Darstellung der Wis-
meios ao seu alcance (por exemplo, senschaftslehre, de 1801; Die Wis-
a análise dos conceitos ou, inclus!- senschaftslehre, 1804; Die Wissens-
ve, a especulação metafísica) para chaftslehre, 1812) constantes referên-
tentar encontrar uma concepção uni- cias à “triplicidade” e o emprego do
ficada do tempo, isto é, uma for- termo. Fichte fala de “procedimen-
mulação que inclua os pontos de vis- to antitético”* (antithetische Verfah-
ren) e de “procedimento sintético”
ta físico, da experiência comum, On-
(synthetische Verfahren) (Grundlage,
tológico, etc., não poderemos dei-
parte LI, $ 3), de “unificação de opos-
xar de constatar que semelhante tos” (Vereinigung Entgegengeset-
concepção ““unificada” do tempo zer), de “atividade antitética”* (an-
ainda está muito longe de ser al- tithetische handlung) (Grundlage,
cançada.
TESE-ANTÍITESE-SÍNTESE 686

parte [, $ 3) e, em geral, de ““síntese guinte: a triplicidade — o esquema


de opostos” (synthesis der... Gegen- “tese-antítese-síntese”* — deve ser re-
sátze), os quais foram, por sua vez, Jeitada, na medida em que expressa
“postos” “contrapostos”, sendo
e um modo de proceder “sem vida”
a posição a tese e a contraposição a e representa um instrumento de ““for-
antítese. A idéia da tríade ““tese-an- malismo monótono” (Gelichtônige
titese-síntese”", que passa por típica Formalismus). Vanto Fichte quanto
do hegelianismo, parece ser, pois, Schelling — e há exemplos extraídos
muito mais fichteana do que hege- de sua filosofia da Natureza — são
liana. Também parece ser schellin- culpados de falta de “cientificidade”
guiana, na medida em que Schelling (no sentido hegeliano dessa palavra);
adotou, modificou e prolongou a es- Fichte e, possivelmente, ainda mais
trutura triádica tanto em Ideen zu ei- Schelling procedem, assinala Hegel,
ner Philosophie der Natur, de 1797, à maneira do pintor que pinta com
quanto, sobretudo, no System des duas cores, vermelho e verde, uma
transzendentalen Idealismus, de 1800;
a insistência na oposição de ““ele- para cenas históricas, a outra para
paisagens. Ambos os filósofos me-
mentos contrários” na Natureza e
sua subsequente ““reconciliação” e nosprezaram a ““vida interna” e o
“automovimento” do “Conceito”
“equilíbrio”, assim como o desen-
volvimento triádico da consciência, (também na acepção hegeliana des-
se último termo). Trata-se, em resu-
são mais algumas das manifestações
do procedimento ““tese-antítese-sin- mo, de uma pintura absolutamente
tese”. monocromática, de uma representa-
No mencionado Prefácio, Hegel ção inanimada (leblos): nela nada
existe de ““vida do Conceito”.
não se opõe, a rigor, à “triplicida-
Assim, portanto, Hegel opõe-se ao
de”; opõe-se, no entanto, a uma
“triplicidade morta e ainda não com- tipo de ““triplicidade”* manifestado
preendida”, reduzida a um “esque- na série “tese-antitese-síntese”, que,
ma sem vida”. Essa é a triplicidade com frequência, se lhe atribuiu e
kantiana. Quanto à de Fichte e que, com não menor frequência, se
Schelling, foi discutido até que pon- lhe criticou. Por outro lado, há uma
to Hegel as aprovava, tendo-se vis- forma de triplicidade hegeliana na
to nas passagens relativas ao proble- qual já não fica de fora das lebendir-
ma na citada obra de Hegel e em ou- ge Wesen der Sache, a realidade v1-
tros de seus escritos (especialmente va da coisa; se quisermos dar-lhe o
na “Correspondência”) manifesta- nome de ““tese-antítese-síntese”, ha-
ções de aprovação somente de Fich- verá então que qualificá-lo conside-
te, ou somente de Schelling, ou de ravelmente e, sobretudo, que incu-
ambos, assim como as correspon- tir o máximo de flexibilidade ao mo-
dentes desaprovações. O que parece vimento ou ““automovimento”, a
destacar-se do texto de Hegel é o se- ponto de já não se poder considerar
687 TESE-ANTÍITESE-SÍNTESE

que ““a vida do Conceito” ficou al- de acordo com as ““três leis dialéti-
guma vez detida em qualquer dos cas” —, o segundo mostra-se mais
pontos dessa tríade. Mas, nesse ca- inclinado a “flexibilizar” a triplici-
so, a expressão ““tese-antitese-sínte- dade de referência num sentido aná-
se” representará sobretudo um obs- logo ao que Hegel se propôs (embo-
táculo para a compreensão desse mo- ra, é claro, numa forma não idealis-
vimento, sendo preferível pô-la de ta) e a “flexibiliza” mais ainda, se
quarentena. Foi dito, por vezes, que tivermos presente que não existe, pa-
Marx e Engels tomaram de Hegel o ra Marx, nenhuma ““necessidade”,
procedimento da tese-antítese-sínte- nem mesmo ““interna”, de que o de-
se e fizeram com ele justamente o
que Hegel criticava em seus prede-
senvolvimento humano
e social obe-
deça do princípio ao fim a um deter-
cessores ou em seus coetâneos. A tal minado esquema. Esse desenvolvi-
respeito, cabe apontar uma impor- mento é, obviamente, ““contraditó-
tante diferença entre Engels e Marx. rio”, “conflitante” e, além disso,
Enquanto o primeiro tende a fazer procede mediante negações e supe-
funcionar uma ““triplicidade” que, ração de negações, mas isso é dife-
apesar do seu declarado caráter dia- rente de supor que há um esquema
lético, parece proceder de forma conceitual triádico explicativo que se
“automática” — em todo caso, a fa- pode manipular mais ou menos ““me-
zer semelhante triplicidade funcionar canicamente”.
U
U Nas exposições clássicas da dou- a Idade Média, é costume colocar-
trina modal, as proposições modais se nesse período a origem explícita
costumam ser simbolizadas com mo- da chamada questão dos universais.
dus negativo e dictum negativo por Essa questão reviveu, de fato, com
meio da letra “UV” (e também, às ve- particular acuidade, desde o instan-
zes, por meio da letra “O0”). “UU” te em que se considerou ser um pro-
representa, pois, proposições do ti- blema capital o apresentado na tra-
po: dução que Boécio fez da Isagoge de
E possível que não p, Porfírio. O filósofo neoplatônico es-
creveu o seguinte: “Como é neces-
onde ““p” simboliza um enunciado sário, Crisaoro, para compreender a
declarativo. doutrina das categorias de Aristóte-
les, saber o que é o gênero, a dife-
UNIVERSAIS Tradicionalmente, os rença, a espécie, O próprio e o aci-
universais, universalia, foram cha- dente, e como esse conhecimento é
mados ““noções genéricas”, “idéias” útil para a definição e, em geral, pa-
e “entidades abstratas”. Costumava- ra tudo o que se refere à divisão e à
se contrapor os universais aos ““par- demonstração, cuja doutrina é mui-
ticulares””, e estes últimos foram to proveitosa, intentarel num com-
equiparados a entidades concretas ou pêndio e à maneira de instrução re-
singulares. sumir o que os nossos antecessores
Um problema capital em relação disseram a tal respeito, abstendo-me
aos “universais” é o de seu status de questões demasiado profundas e,
ontológico. Trata-se de determinar mesmo, detendo-me pouco nas mais
que classe de entidades são os uni- simples. Não intentarei enunciar se
Versais, isto é, qual a sua forma pe- OS gêneros e as espécies por si ou na
culiar de “existência”. Embora, co- Inteligência nua, nem se, no caso de
mo se disse, trate-se primordialmente subsistirem, são corpóreos ou incor-
de uma questão ontológica, ela teve, póreos, nem se existem separados
não obstante, implicações e ramifi- dos objetos sensíveis ou nesses ob-
cações importantes em outras disci- Jetos, fazendo parte dos mesmos. Es-
Plinas: a lógica, a teoria do conheci- se problema é excessivo e requeriria
mento e até a teologia. A questão foi indagações mais amplas. Limitar-
exposta com frequência na história me-ei a indicar o mais plausível que
da filosofia, sobretudo desde Platão
os antigos e, sobretudo, os peripa-
e Aristóteles; mas, como foi discuti-
téticos disseram razoavelmente sobre
da com grande intensidade durante
esse ponto e os anteriores” (Isago-
UNIVERSAIS 690

ge, I, 1-16; Boécio refere-se a essas qual os universais existem realmen-


palavras de Porfírio e comenta-as na te, embora unicamente como formas
chamada ““Secunda editio”* dos seus das coisas particulares, isto é, tendo
comentários às Categorias: commen- seu fundamento na coisa: universa-
tarii in librum Aristotelis, texto em lia in re. Os realistas moderados po-
grego, p. 738, vol. 1, livro 1). dem não negar que há universais em
Muitos autores medievais referi- Deus enquanto arquétipos das col-
ram-se à colocação do problema fei- sas, pelo que é frequente encontrar
ta por Porfírio e transmitida por o realismo moderado misturado ao
Boécio, e adotaram algumas das po- “realismo agostiniano””.
sições ““clássicas”*, em especial com A questão dos universais reapare-
referência às idéias de Platão, Aris- ceu na lógica contemporânea princi-
tóteles e dos comentaristas aristoté- pal quando se tratou de decidir o sta-
licos a esse respeito. tus existencial das classes. Já desde
As principais posições defendidas Frege ficava claro que era difícil ev1-
durante a Idade Média no problema tar tomar posição a respeito. O pró-
dos universais são: prio Frege foi considerado um defen-
l. O realismo. Segundo este, os sor da posição realista, ou, como se
universais existem realmente; sua prefere chamá-la hoje em dia, da po-
existência é, além disso, prévia e an- sição platônica. Essa posição foi de-
terior à das coisas ou, segundo a fór- fendida por Russell, pelo menos du-
mula tradicional, universalia ante rante a primeira década deste sécu-
rem. Se assim não ocorresse, argu- lo; muitos lógicos aderiram a ela ou
mentam os defensores dessa posição, trabalharam, sem saber, de acordo
seria impossível entender qualquer com os seus pressupostos. Vinte anos
das coisas particulares. Com efeito, depois, autores como Chwistk, Qui-
essas coisas particulares estão funda- ne, Goodman (e, mais recentemen-
mentadas (metafisicamente) nos uni- te, R. M. Martin) defenderam a po-
versais. Mesmo quando afirma que sição nominalista diante da posição
universalia sunt realia, a maior par- platônica (advogada, por exemplo,
te dos realistas não quer dizer que os por Alonzo Church).
universais sejam reais à maneira das As posições possíveis que podem
coisas corporais ou dos entes ““situa- ser adotadas na discussão dos univer-
dos” no espaço e no tempo. sals são:
2. O nominalismo. O pressuposto (1) Realismo absoluto, também
comum a todos os nominalistas é que chamado platonismo, tese segundo
os universais não são reais, mas se a qual somente os universais (que
situam depois das coisas: universa- chamaremos agora de entidades abs-
lia post rem. Os universais são o re- tratas) existem, sendo os indivíduos
sultado do que os medievais chama- (que chamaremos agora de entidades
vam de ““abstrações totais”. concretas) cópias ou exemplos das
3. O realismo moderado, para o entidades abstratas;
691
UTENSÍLIO
(2) Realismo
exagerado,
chamado platonismo, tese também (3) e (4) e como (4) e (5) estão tão
segundo próximas entre si, que pode-se duv1-
à qual as entidades abstratas existem
dar se será cabível estabelecer entre
formalmente e constituem a essência
elas uma distinção rigorosa. Por es-
das entidades concretas;
se motivo, é costume adotar muitas
(3) Realismo moderado, ocasio-
vezes a classificação antes citada de
nalmente chamado platonismo, tese realismo exagerado, nominalismo e
segundo a qual existem as entidades realismo moderado (por vezes cha-
abstratas e as entidades concretas: as mados, respectivamente, realismo,
primeiras existem fundamentalmente nominalismo e conceptualismo),
quanto à sua compreensão; as segun- abrangendo cada uma dessas posi-
das existem fundamentalmente quan- ções diversas variantes.
to ao seu ser;
(4) Conceptualismo, tese segundo UTENSÍLIO Podemos chamar de
a qual não existem as entidades abs- “utensílio”, ou também de ““ferra-
tratas na realidade, mas tão-somente menta” ou ““instrumento””, tudo
como conceitos da nossa mente, 1s- aquilo que o homem utiliza para fa-
to é, como idéias abstratas; zer, produzir, modelar, etc., algo.
(5) Nominalismo moderado, tese Em seu sentido mais imediato, o
segundo a qual não existem as enti- utensílio é um artefato manual, ou
dades abstratas, somente as entida- algo que serve de artefato manual;
des concretas; o utensílio está, pois, “à mão” e é
Nominalismo exagerado, tam-
(6) como um prolongamento da mão.
bém chamado terminismo, tese se- Num sentido amplo, o utensílio po-
gundo a qual não existem nem as en- de não estar imediatamente ““à mão”,
tidades abstratas, nem os conceitos mas o estar de modo mediato. Tam-
abstratos, sendo estes últimos apenas bém num sentido amplo, o utensílio
nomes ou termos comuns para desig- pode ser um prolongamento de ou-
nar as entidades concretas; tro órgão corporal como, por exem-
Nominalismo absoluto, tam-
(7) plo, o olho.
bém chamado inscricionismo, tese Em todos esses casos, o utensílio
que afirma o mesmo que o nomina- é, imediata ou mediatamente, algo
lismo exagerado, mas acrescentando “corporal”. Também se pode falar
que os termos usados para designar de utensílio ou instrumento num sen-
as entidades concretas são, ao mes- tido “mental” ou “conceitual”, co-
mo tempo, entidades concretas. mo ocorre com o significado de Or-
Cada uma dessas posições apre-
ganon e, em geral, de todo conjun-
sentou-se, com freqiiência, mistura- to de regras para o raciocínio.
da a alguma outra na história da fi-
A noção de utensílio (ou de instru-
losofia; é difícil, pois, encontrar
re- mento) desempenha um papel im-
presentantes puros de qualquer
delas. Em particular, uma portante em várias tendências filosó-
posições como ficas. Assim acontece especialmente
UTILITARISMO 692

no instrumentalismo de Dewey, em mentalmente ““algo para...” e as dis-


muitas formas de pragmatismo, no tintas formas do ““ser para” (Um-zu)
marxismo, em filosofias que dedica- são distintas formas de “instrumen-
ram particular atenção aos proble- talidade”. O utensílio é, assim, algo
mas suscitados pelo trabalho, em que se usa, se aplica, se toma, se ma-
concepções segundo as quais alguns neja. O modo de ser do ente a que
produtos culturais, ou, inclusive, a chamamos ““utensílio” é o “estar à
cultura como um todo, são de cará- mão”, ou, como às vezes se diz,
ter “instrumental” e, de um modo a “manualidade” (Zuhandenheit)
geral, em todos os sistemas filosófi- (Sein und Zeit, 8 15). Pois bem, a no-
cos em que se destaca a chamada ção de ““estar à mão” é básica na me-
“relação de instrumentalidade” en- dida em que é uma determinação on-
tre o homem e as coisas. No âmbito tológica categorial dos entes enquan-
dessas direções, a noção de utensí- to “estão presentes” (vorhanden).
lio, ou de instrumento, pode ter um Temos, assim, duas determinações
aspecto mais ou menos ““técnico””, dos ““entes”*: o “estar à mão” ou ser
segundo o detalhe com que se tenha utensílios — Zuhandenes — e o es-
elaborado tal noção. tar presentes — Vorhandenes. Por-
Como, para Dewey, o que se cha- tanto, a noção de utensílio adquire
ma “uma coisa” é, antes, “um as-
sunto””, o que se deve fazer não é
em Heidegger significação ontológi-
ca na medida em que a “instrumen-
“contemplá-lo”*, mas ““resolvê-lo”. talidade”* constitui uma das estrutu-
Ora, para ““resolver um assunto” ras que revela a analítica do Dasein.
deve-se atacá-lo mediante uma hipó-
tese, que é, a rigor, um ““diagnósti- UTILITARISMO John Stuart Mill
co”. As proposições que se formu- (Autobiography, ed. J. S. Cross
lem para esse efeito são como uten- [1924], p. 56), um dos mais destaca-
sílios ou instrumentos (tools), de mo- dos defensores do utilitarismo, indi-
do que o conhecimento é, antes de cou ter sido ele o primeiro a utilizar
mais nada, de caráter “instrumen- o termo Utilitarianism, relacionado
tal” (cf. sobretudo Essays in Expe- à “Sociedade” que se propusera fun-
rimental Logic, 1916; The Quest for dar: a “Utilitarian Society”. David
Certainty, 1929; e Experience and Baumgardt (cf. Archiv fur Begriffs-
Nature, 1935). geschichte, ed. Erich Rothacker, vol.
Dewey entende a proposição como IV [1959], p. 228) descobriu, porém,
“instrumento”. Heidegger sustenta que Jeremy Bentham — considera-
uma idéia do instrumento (Zeug) co- do o fundador do utilitarismo — Já
mo aquilo com que nos deparamos empregara o termo utilitarian num .

em nossas “ocupações”. O instru- texto escrito por volta de 1780 e só


mento (ou utensílio) não é uma ““col- publicado postumamente (cf. David
sa isolada”, mas um complexo Baumpgardt, Bentham and the Ethics
(Zeugganzes). O utensílio é funda- of Today, with Bentham Manus-
693
UTILITARISMO
cripts hitherto Unp ublished [195
O uso de utilitaria n [1952]. nio de dois soberanos: o prazer e à
por Bentham foi- dor” (An Introduction to the Prin-
lhe sugerido
'
na ocasião em que pro-
Jetava fundar uma seita chamada ciples of Morals and Legislation, cap.
“The Sect of Utilitarians””.
1, sec. 1). Segundo Bentham,
o prin-
cípio de utilidade, ou princípio de
De um modo geral, o termo ““uti- máxima felicidade, admite essa ““su-
litarismo” designa a doutrina segun- jeição” e proporciona uma norma do
do a qual o valor supremo é o da uti-
que é Justo e injusto, correto e incor-
lidade. O utilitarismo pode ser uma reto: “aprova e desaprova qualquer
tendência prática, uma elaboração ação, de acordo com a tendência que
teórica ou ambas as coisas ao mes- parece levar a aumentar ou diminuir
mo tempo. Em particular é recomen- a felicidade daquele cujo interesse es-
dável restringir a aplicação do termo tá em questão” (ibid., sec. 3). O ele-
“utilitarismo” à corrente que surgiu mento afetado (party) pode ser um
na Inglaterra em fins do século indivíduo ou uma comunidade. O in-
XVIII e se desenrolou durante o sé- teresse da comunidade é o dos indi-
culo XIX, corrente representada por víduos que a constituem, e o interes-
Jeremy Bentham, James Mill e John se do indivíduo engloba a “soma to-
Stuart Mill. Ao utilitarismo inglês tal”* de seus prazeres e suas dores. Em
não faltaram precedentes. Um deles outras palavras, o princípio de util1-
é Helvétius. Este pensador conside- dade, segundo Bentham, afirma que
rava que a vida do homem estava to- devemos promover o prazer, o bem
da ela dominada por dois impulsos: ou a felicidade (que são uma só coi-
o desejo de felicidade e a vontade de sa) e evitar a dor, o mal e o infortú-
evitar a dor; e isso a tal ponto, que nio (ibid, sec. 3). Para escolher o que
governar a sociedade consiste funda- é bom, é necessário estabelecer um
mentalmente em levar em conta es- cálculo de prazeres e dores. Prazeres
ses impulsos. e dores são Julgados de acordo com
O utilitarismo inglês foi chamado OS seguintes critérios: intensidade,
amiúde de ““radicalismo filosófico” duração, certeza ou incerteza, proxi-
(philosophical radicalism). Para pro- midade ou distanciamento, fecundi-
mover essa tendência, J eremy Ben- dade e alcance, ou seja, o número de
tham fundou em 1824 a Westmins- pessoas afetadas (ibid., sec. 4).
ter Review. Bentham considerou que John Stuart Mill destacou o cará-
o utilitarismo está a serviço de uma ter qualitativo (e não só o caráter
reforma da sociedade humana: de quantitativo) dos afetos. “É inteira-
sua estrutura política — que devia ser mente compatível com o princípio de
basicamente liberal e democrática — utilidade — escreveu ele — reconhe-
e de seus costumes. A base
da refor- cer que algumas classes de prazer são
ma da sociedade é o reconhecimento
mais desejáveis e mais valiosas do
de que — como escreveu Bentham —
à Natureza colocou-nos sob domí- que outras. Seria absurdo que, en-
o quanto em todas as demais coisas a
UTOPIA 694

qualidade fosse levada em conta tan- pretar a máxima de Kant “procede


to quanto a quantidade, na avalia- somente segundo a máxima pela qual
ção do prazer só se levasse em conta possas querer ao mesmo tempo que
a última” (Utilitarianism, cap. 2). se converta em lei universal”, da se-
Desse modo, John Stuart Mill pro- guinte maneira: “procede somente
clamou a superioridade dos prazeres segundo a máxima que, como pes-
do intelecto — a imaginação, os sen- soa humana e benévola, quererias
timentos morais, etc. — sobre os ver estabelecida como lei univer-
prazeres da sensação, e opôs-se a to- sal”). Mas nenhuma dessas varieda-
do mal-entendido do utilitarismo co- des é satisfatória para Smart, por-
mo vinculado unicamente a prazeres quanto ambas representam uma es-
“baixos”. pécie de ““dolatria das regras” ou
Há fortes tendências utilitárias em normas. Por 1sso, Smart defende o
outros autores, como, por exemplo, utilitarismo dos atos, o único que po-
em Henry Sidwick. Em época recen- de prescindir de considerações me-
te, registraram-se novos debates em taéticas. Também se pode falar, se-
torno do utilitarismo, assim como es- gundo Smart, de um utilitarismo he-
forços para fundamentar e desenvol- donista e de um utilitarismo não-hedo-
ver uma ética utilitária, desligada de nista, de um utilitarismo negativo
pressupostos que, inconscientemen- (redução do sofrimento ao mínimo)
te, Bentham, James Mill e John e de um utilitarismo positivo (au-
Stuart Mill tinham admitido. E o que mento da felicidade ao máximo). O
sucede, entre outros, com J. J. C. utilitarismo proposto por Smart é ex-
Smart. É comum distinguir, hoje, tremo, hedonista e positivo, e baseia-
entre o ““utilitarismo dos atos” (act- se num princípio moral último que
utilitarianism) e o “utilitarismo das expressa mais o sentimento de bene-
regras” (rule-utilitarianism). Como volência do que o de altruísmo —
os define Smart, “o utilitarismo dos pois, enquanto o altruísmo puro po-
atos é a opinião de que o correto ou deria levar diversas pessoas a diferen-
o equivocado de uma ação deve ser tes atos incompatíveis entre si, a be-
julgado pelas conseqúiências, boas ou nevolência permite que o agente mo-
más, da própria ação. O utilitarismo ral não se considere nem mais nem
das regras é a opinião de que o cor- menos importante do que qualquer
reto ou o equivocado de uma ação outro agente moral.
deve ser julgado pela bondade ou
maldade das consequências de uma UTOPIA Literalmente, “utópico”
regra de acordo com a qual todos de- significa ““o que não está em nenhum
veriam executar a ação em circuns- lugar” (topos). Dá-se o nome de
tâncias análogas”. Smart afirma ha- “utopia” (desde Tomás More, que
ver duas variedades do utilitarismo cunhou a palavra) a toda descrição
das regras: uma defendida por Toul- de uma sociedade que se supõe per-
min, a outra por Kant (se se inter- feita em todos os sentidos. A própria
695 UTOPIA

sociedade descrita é qualificada de medida em que — supostamente per-


“utopia”. Chama-se “utópico” to- feita — não é suscetível de progres-
do ideal — especialmente, todo ideal so ou melhoramento.
de sociedade humana — que se su- Não há motivo para se supor que
põe desejável ao máximo, mas que os autores citados considerassem rea-
se considera muitas vezes inalcançá- lizáveis suas respectivas utopias; a
vel. “Utópico” equivale, em muitos grande maioria, de fato, apresenta-
casos, a “modelar” e a “perfeito”. va-as como um ideal, movidos pelo
Há muitos exemplos de utopias. afã de crítica e melhoria da socieda-
Entre os mais destacados figuram: A de em que viviam. Essa é a sua prin-
República (Politeia), de Platão; a cipal motivação e, sob esse aspecto,
Utopia (De optimo reipublicae sta- poder-se-ia dizer que as utopias são
tu...nova insula utopia), de Tomás revolucionárias. E necessário consi-
More; A cidade do sol (Civitas So- derar, entretanto, que a revolução
lis), de Tommaso Campanella; a que propugnam costuma ser orien-
Nova Atlântida (New Atlantis), de tada para o estabelecimento de uma
Francis Bacon; o Erewhom, de Sa- forma de comunidade em que a re-
muel Butler; o Voyage en Icarie, de volução não é possível.
Etienne Cabet (1788-1856); News Acusou-se frequentemente o ““es-
from Nowhere e The Earthly Para- pírito utópico” de cegueira em face
dise, de William Morris (1834-1896);
Uma utopia moderna (A Modern
e
das realidades humanas, é certo que
ele esquece alguns aspectos da real1-
Utopy), de H. G. Wells (1866-1946). dade que resultariam difíceis de en-
Essas “utopias” são muito distin- quadrar na moldura de um ideal.
tas entre s1, mas têm em comum não Contudo, a utopia tampouco é algo
só o fato de descreverem uma socle- totalmente inoperante, porquanto ge-
dade ideal e perfeita, como também ra, ocasionalmente, as condições pré-
de a descreverem com todos os de- vilas que depois evoluirão para real1-
talhes. Uma sociedade utópica cos- dades sociais concretas. Assim sendo,
tuma ser uma sociedade fechada, na a utopia não é totalmente utópica.
V
VENN, DIAGRAMAS DE No arti-
go ““Classe”* (ver) apresentamos vá-
rios diagramas que representam gra-
ficamente classes e relações entre clas-
ses. A idéia de tal representação grá-
fica é atribuída a Leonhard Euler,
mas foi provavelmente antecipada
por diversos autores. Com base na
mesma, John Venn propôs represen- I: alguns S são P
tações gráficas das proposições A, E,
I, O (ver PROPOSIÇÕES) e de silo-
gismos. Essas representações permi-
S P
tem comprovar se um raciocínio si-
logístico dado é ou não válido. O mé-
todo de comprovação recebeu, por is-
so, o nome de “método de Venn”*'.
Apresentamos, em primeiro lugar, os
diagramas das proposições A, E, [, O:
S P O: alguns S não são P

As partes sombreadas indicam a


inexistência de uma classe; as partes
marcadas com um “X”º, a existên-
cia de uma classe; as partes em bran-
co, ausência de informação sobre
A: todos os S são P uma classe.
Ora, como os silogismos têm três
termos, é necessário introduzir um
terceiro círculo. Suponhamos
guintes premissas:
as se-

Todos os M são P
Todos os S são M.
A figura resultante, seguindo as
E: nenhum S é P
Indicações anteriores, é:
VENN, DIAGRAMAS DE 698


Silogismo |
Todos os pescadores Todos os
de vara são tranquilos P são M
Alguns jornalistas Alguns S
não são trangúilos não são M

-—
Alguns Jornalistas Alguns S
não são pescadores não são P
de vara

Nessa figura, fica indicado grafi-


camente “todos os S são P”', o que,
dadas as premissas anteriores, é a
conclusão do modo Barbara (primei-
ra figura).
Se considerarmos agora as premis-
Sas:
Nenhum P é M O silogismo é válido (Baroco, se-
Todos os S$ são M, gunda figura).
construiremos a figura seguinte: Silogismo 2
Todos os Todos os
dinamarqueses são M são P
democratas
Nenhum patagônio é Nenhum S
dinamarquês éM
Nenhum patagônio é Nenhum S
democrata é P

Néssa figura fica indicado grafica-


mente “nenhum S é P”', que, dadas
as premissas anteriores, é a conclu-
são do modo Celarent (primeira fi-
gura).
Comprovação de três silogismos
para ver se são ou não válidos. O silogismo não é válido.
699 VERDADE


Silogismo 3 com a idéia de verdade que prepon-
Todos os pescadores Todos os derou nos primórdios da filosofia.
Os filósofos gregos começaram por
de vara são M são P
buscar a verdade, ou o verdadeiro,
tranquilos
diante da falsidade, da ilusão, da
Alguns leões são Alguns M aparência, etc. A verdade era, nesse
animais africanos são S caso, idêntica à realidade, e esta úl-
Alguns animais tima era considerada idêntica à per-
Alguns S
africanos são são P manência, ao que é, no sentido de
carnívoros “ser sempre” — quer se tratasse de
uma substância material, quer de nú-
S P meros, qualidades primárias, áto-
mos, idéias, etc. O permanente era,
pois, concebido como o verdadeiro
em face do cambiante, do mutável
— que não era considerado necessa-
riamente falso, mas apenas aparen-
temente verdadeiro, sem o ser ““na
verdade”, Como a verdade da reali-
dade — que era simultaneamente
realidade verdadeira — era concebi-
da amiúde como algo acessível uni-
M camente ao pensamento e não aos
sentidos, a tendência foi de se fa-
O silogismo 3 é válido (Datisi, ter-
zer da chamada ““visão inteligível”,
ceira figura).
nous, um elemento necessário da ver-
dade.
VERDADE O vocábulo ““verdade” Esse sentido grego da verdade não
é empregado em dois sentidos: para é historicamente o único possível. Se-
se referir a uma proposição e pa- gundo Von Soden, seguido, entre
ra se referir a uma realidade. No pri- outros, por Zubiri e Ortega y Gas-
meiro caso, diz-se de uma proposi- set, há uma diferença importante en-
ção que é verdadeira, contrapondo-a tre o que o grego entendia por ver-
a “falsa”. No segundo caso, diz-se dade e o que o hebreu entendida por
de uma realidade que é verdadeira, 1sso. Para este último, pelo menos
diferenciando-a de “aparente”, “1lu- em sua época ““clássica”, a verdade
sória”, “irreal”, “inexistente”, etc. (emunah) é primordialmente a segu-
Nem sempre se distingue entre es- rança ou, melhor dizendo, a confian-
ses dois sentidos de ““verdade”', na ça. A verdade das coisas não é, en-
linguagem corrente. Mas pode-se tão, a sua realidade em face da sua
destacar um aspecto da verdade em aparência, mas a sua fidelidade em
relação a outro. Foi o que ocorreu face da sua infidelidade. Verdadei-
VERDADE 700

ro é, pois, para o hebreu, o que é fiel, mente da verdade como realidade.


O que cumpre ou cumprirá a sua pro- Ocuparam-se também (e sobretudo)
messa, e por isso Deus é o único ver- da verdade como propriedade de cer-
dadeiro, porque é o único realmen- tos enunciados, dos quais se diz que
te fiel. Isso significa que a verdade são verdadeiros. Embora antes de
não é estática, que se encontra me- Aristóteles já se concebera a verda-
nos no presente do que no futuro; de como propriedade de certos enun-
por isso, assinala Zubiri, enquanto ciados, a mais conhecida fórmula é
para manifestar a verdade o grego a que se encontra nele: “Dizer do
diz a respeito de algo que “é”, que que é que não é, e do que não é que
possui um ser que é, o hebreu diz é, é o falso; dizer do que é que é, e
“assim seja”, amen. Em outras pa- do que não é que não é, é o verda-
lavras, enquanto para o hebreu a ver- deiro (Mer., 17, 7, 1011 b 26-28).
dade é a vontade fiel à promessa, pa- Aristóteles exprimia, assim, em ter-
ra o grego a verdade é a descoberta mos precisos, o que Platão já afirma-
do que a coisa é, ou, melhor ainda, ra (Crat., 385 B; Soph., 240 D, 241
daquilo que “é antes de ter sido”; A, 263 B). Mas atribul-se primeira-
de sua essência. Assim, o grego con- mente a Aristóteles o que depois se
cebe a verdade como a&Nideia, des- chamará ““concepção semântica da
coberta do ser, isto é, como a visão verdade”, assim como ““verdade co-
da forma ou do perfil do que é ver- mo adequação”, “correspondência”
dadeiramente, mas que se encontra ou “conveniência”. Um enunciado
encoberto pelo véu da aparência. O é verdadeiro se há correspondência
contrário da verdade é, para o he- entre o que diz e aquilo sobre o que
breu, a dissimulação; o contrário de- fala.
la, para o grego, é a desilusão. Mas Quer a verdade se prediga de coi-
o verdadeiro como ““o que terá de sas, quer se refira a proposições, o
cumprir-se”' é essencialmente distin- problema que se apresenta é como
to do verdadeiro “como o que é*' e alcançar essa verdade. Uns dirão que
como o que está sempre presente é a inteligência que a capta, outros,
num ser — mesmo sob a forma de a intuição, outros, por fim, que é
latência. O sentido primário da ver- captada através das sensações.
dade como amideia, diz Zubiri, não Há autores para quem a proposi-
é, contudo, mera descoberta ou pa- ção é uma série de signos. Para eles,
tenteamento, mas, sobretudo, a ma- a verdade é a conjunção ou a sepa-
nifestação da recordação. Entretan- ração de signos — por exemplo, a
to, “a própria idéia de verdade tem conjunção do signo “ouro” com o
sua expressão primária em outras pa- signo “amarelo”, ou a separação do
lavras”* dentro de algumas línguas signo “ouro” do signo ““verde”, o
indo-européias: é o caso do verus co- que dá as proposições consideradas
mo expressão de uma confiança. verdadeiras: “o ouro é amarelo”, “o
Os gregos não se ocuparam so- ouro não é verde”.
701 VERDADE

Os escolásticos trataram de conju- Os nominalistas tendem a conside-


gar esses diversos modos de enten- rar a verdade como veritas sermonis.
der a verdade. A verdade ou, melhor Os realistas — especialmente os rea-
dizendo, o verdadeiro, verum, é, an- listas extremos — tendem a conce-
tês de mais nada, uma ““proprieda- ber a verdade como verdade metafí-
de transcendental”* do ente e é con- sica ou ontológica. Os conceptualis-
vertível ao ente. A verdade como ver- tas e os realistas moderados tendem
dade transcendental, também cha- a entendê-la como ““verdade lógica”*
mada, às vezes, “verdade metafís!- ou ““verdade semântica”* — e tam-
ca” e, mais tarde, “verdade ontoló- bém como ““verdade epistemoló-
gica”, é definida como a conformi- gica”.
dade ou a conveniência do ente com Num outro sentido, entretanto, a
a mente, pois o verum como um dos maior parte dos escolásticos, inde-
transcendentais é a relação do ente pendentemente de sua teoria dos uni-
com o intelecto. Isso pressupõe que versais, sustentou, na esteira de San-
o ente é inteligível, pois, caso con- to Agostinho, haver uma fonte para
trário, não poderia haver a mencio- todas as verdades: essa fonte é Deus,
nada conformidade. Todavia, a ver- ou ““a Verdade”. Santo Anselmo
dade também pode ser entendida co- afirmava que todo juízo de existên-
mo a conformidade ou a conveniên- cia requer, para poder ser formula-
cia da mente com a coisa, ou como do, a existência do Ser supremo, do
a adequação da mente com a coisa, qual todo outro ser participa.
adaequatio rei et intellectus. A esse Há, pois, na escolástica, concep-
tipo de verdade deu-se, às vezes, nem ções muito diversas da noção de ver-
sempre muito adequadamente, o no- dade, ainda que a mais conhecida e
me de ““verdade lógica”. influente tenha sido a verdade como
Distinguiu-se, por vezes, entre as correspondência, segundo a fórmu-
seguintes concepções da verdade: (1) la adaequatio rei et intellectus.
verdade metafísica (ou ontológica); Na Época Moderna, persistiram as
(2) verdade lógica (ou semântica); (3) concepções anteriores da verdade,
verdade epistemológica; (4) verdade inclusive a concepção transcenden-
nominal (ou oracional), veritas ser- tal do omne ens est verum, que
monis. (1) equivale à verdade das Wolff formula desse mesmo modo
coisas, ou à realidade como verda- em Philosophia prima sive ontolo-
de; (2) expressa a correspondência, gia, 8 497. No entanto, a maior no-
ou adequação, do enunciado à coil- vidade nas concepções modernas da
sa ou à realidade; (3) refere-se à ver- verdade foi o desenvolvimento do
dade na medida em que é concebida que se pode chamar de “concepção
por um intelecto e formulada, num idealista”. Foi dito algumas vezes
juízo, por um sujeito cognoscente; que essa concepção caracteriza-se
(4) é a verdade como conformidade por entender a verdade como ““ver-
entrê signos. dade lógica” e foi aduzido que, ao
VERDADE 702

se reduzir todo ser a conteúdo de rito constitui, desse modo, a prepa-


pensamento, a verdade terá de fun- ração para a lógica como ciência do
damentar-se no próprio pensamen- verdadeiro na forma do verdadeiro.
to e, portanto, em suas leis formais. A verdade absoluta é a própria filo-
Mas isso não corresponde necessaria- sofia, o sistema da filosofia. Hegel
mente às concepções idealistas e sim, efetua, assim, uma primeira aproxi-
antes, às concepções chamadas ““ra- mação de uma noção de verdade que
cionalistas” — sejam ou não pro- transcende todo formalismo e todo
priamente idealistas, ou semi-idealis- intelectualismo. Sua oposição a con-
tas. Deve-se levar em conta, além siderar como verdade uma parte des-
disso, que semelhante concepção da ta, o resultado do verdadeiro, leva-
verdade só é “lógica” porque é ““on- o a buscar este último numa totali1-
tológica”, e vice-versa; se o pensa- dade que compreende não só o prin-
mento é pensamento da realidade, a cipiado como o seu princípio. A ver-
verdade do pensamento será a mes- dade é, assim, a unidade absoluta e
ma que a verdade da realidade, mas radical do princípio com o que ele
também a verdade da realidade será engendra. Daí o caráter plenamente
a mesma que a do pensamento — a sistemático da verdade filosófica,
ordem e a conexão das idéias serão, que exige, sem dúvida, os caracteres
como dizia Spinoza, as mesmas que formais do matemático e concretos
a ordem e a conexão das coisas. do histórico, mas que só se pode con-
Hegel procura, dentro de um qua- verter em absoluta mediante a união
dro “idealista”, chegar à verdade ab- do universal com o concreto, que a
soluta, por ele chamada de ““verda- filosofia realiza. Ou, o que é mesmo:
de filosófica”. A verdade é matemá- ““A verdadeira figura na qual existe
tica ou formal quando se reduz ao a verdade não pode ser mais do que
princípio de contradição; é históri- o sistema científico dessa verdade”
ca ou concreta quando se refere à (Phãán. des Geistes, $ 1). Essa con-
IL

existência singular, isto é, às “deter- cepção foi acolhida em grande par-


minações não necessárias do conteú- te pelas orientações neo-hegelianas
do dessa existência”. Mas é verdade contemporâneas, só que como vere-
filosófica ou absoluta quando se mos mais adiante no caso de Bra-
opera uma síntese do formal com o dley, com um abandono do panlo-
concreto, do matemático com o his- gismo e uma aproximação do orga-
tórico. Assim, o falso e o negativo nologismo que também se manifes-
existem não como uma ““parte” da ta nas tendências do atualismo i1ta-
verdade, mas como um “momento” liano. Em todo caso, porém, perma-
num desenvolvimento; sua ““realida- nece como algo próprio do conceito
de” fica anulada e absorvida quan- de verdade sustentado por Hegel e o
do, com o devir do verdadeiro, se al- fato de que a verdade jamais é a ex-
cança a idéia absoluta da verdade em pressão de um ““fato atômico”, o fa-
e para si. A fenomenologia do espíi- to de que a verdade é, enquanto on-
703 VERDADE

tológica, uma totalidade individual graus de cumprimento. O cumpri-


sobre a qual se destaca qualquer
enunciado parcial do verdadeiro ou
mento máximo é a adequação da co!-
sa ao intelecto. Especialmente im-
de sua negação; em suma, o fato de portante é o cumprimento total da
que ““o verdadeiro é o todo”. Em seu intenção significativa. Quando tem
livro The Nature of Truth (1906), lugar esse cumprimento, há perfeita
Harold Henry Joachim (1868-1938) adequação entre a intenção signifi-
precisa e desenvolve essa tese. Com cativa e o significado por ela. Pode-
efeito, assinala Joachim que a ver- se entender ““verdade” de quatro
dade não é mera correspondência do modos: (1) a plena concordância en-
pensamento com a realidade, nem tre o significado e o dado; (2) a for-
tampouco mera propriedade do ob- ma de um “ato” de conhecimento —
Jeto independentemente da consciên- ato empírico e contingente de evidên-
cia, nem, finalmente, apreensão in- cia; (3) o objeto dado enquanto sig-
tuitiva de objetos, mas proposição nificado; (4) a justeza da intenção,
racionalmente ordenada dentro do especialmente como Justeza do jJuí-
seu sistema, isto é, juízo que extrai zo (Investigações, tomo IV, pp.
sua “significação” do significado do 131-33). Em (1) leva-se em conta
“Todo”. Nem sempre está claro o uma situação objetiva ou estado de
que se entende por semelhante ““To- fato; em (2) leva-se em conta o pro-
do”: se a totalidade dos objetos, os cesso cognoscitivo; em (3) considera-
objetos enquanto formam uma tota- se o objeto que possibilita e evidên-
lidade, a totalidade dos juízos sobre cla; em (4) considera-se a intenção
a totalidade dos objetos, ou um só (significativa). O teor geral dessas
Juízo (absoluto) sobre um objeto idéias de Husserl sobre a noção de
(também absoluto). Em todo caso, verdade é o da verdade como corres-
numa concepção idealista, um Juízo pondência, mas trata-se de uma cor-
particular dado deve ser consistente respondência entre o que significa
com todos os demais juízos. Por is- (ou o que se “tenta” significar) e o
so, falou-se da noção de verdade co- significado. Como o ato de signifi-
mo ““coerência””. Em suas versões car não é, ou não é necessariamen-
mais extremas, o idealismo sustenta te, um ato empírico, e o significado
que todo juízo particular fica sem- não é necessariamente uma coisa, a
pre, por assim dizer, “absorvido” correspondência em questão fica
num juízo total. confinada a uma região ““pura”.
Em suas Investigações lógicas (In- Trata-se de uma relação ““ideal” e —
vestigação Sexta, cap. V, $$ 36-39), como diria Husserl, em seu mais for-
Husserl considerou a noção de ver- te (prágnant) sentido — ““essencial”,
dade em relação com as noções de Não parece impossível passar da no-
adequação e evidência. Segundo ção de verdade como correspondên-
Husserl, tanto a percepção quanto a cia à noção de verdade como coerên-
cia ou consistência. Essa passagem
intenção significativa têm diversos
VERDADE 704

apresenta-se nas Idéias e nas Medi- da verdade (Vom Wesen der Wahr-
ftações cartesianas. heit, 1943). AÍ se apresenta a essên-
Heidegger nega que a verdade se- cia da verdade como algo evidente-
ja primariamente a adequação do in- mente muito distinto das diversas
telecto à coisa e sustenta, de acordo maneiras possíveis de adequação ou
com o primitivo significado grego, convenientia; a verdade só se torna
que a verdade é a descoberta. A ver- patente na medida em que o juízo
dade converte-se num elemento da mediante o qual se enuncia a verda-
existência, a qual encobre o ser em de de uma coisa se refere a ela, em
seu estado de degradação (Verfallen) que a faça presente e permita expres-
e descobre-o em seu estado de auten- sá-la tal como é. A coisa deve, pois,
ticidade. Por conseguinte, a verda- estar ““aberta” ou, melhor dito, a
de como descoberta só pode se dar coisa deve aparecer num âmbito de
no fenômeno de ““estar no mundo” “abertura” que inclui a “direção pa-
próprio da Existência e nele se radi-
ra a coisa”. Ao referir-se à coisa,
ca o fundamento do ““fenômeno ori-
Oo

enunciado que a deixa ser “compor-


ginário da verdade”. A descoberta ta-se”* (verhãalt sich) de certo modo,
do encoberto é, assim, uma das for-
possibilitado pela abertura. O que
mas de ser do estar no mundo. Mas houver de adequação, conveniência
a descoberta é não só o descobrir, co-
ou conformidade do Juízo com o real
mo também o descoberto. A verda- não estará, pois, fundamentado so-
de é, num sentido originário, a re-
mente no fato de que a possibilida-
velação da Existência, à qual perten-
de de verdade só reside no juízo,
ce primitivamente tanto a verdade
mas, sobretudo, na situação mais ra-
quanto a falsidade. Por isso, a ver- dical de uma conformidade com o
dade só se descobre quando a Exis-
modo de seu “comportamento” es-
tência se revela enquanto maneira de
ser própria. E nenhuma verdade é
tar aberto. Isso equivale a uma cer-
verdadeira enquanto não tiver sido ta “libertação”, possibilitada pela
descoberta. O ser da verdade encon- entrega prévia a essência da verda-
de, “libertação”* somente exequiível
tra-se, segundo ele, numa relação di-
reta e imediata com a Existência. “E no caso de ser livre de antemão a res-
só porque se construiu a Existência peito do que se manifesta na ““aber-
mediante a compreensão de si mes- tura”. Por 1sso, ““a essência da ver-
dade é a liberdade”, mas uma liber-
ma, é possível a compreensão do
ser.”* Por isso, só há verdade .en- dade que não é expressão de decisões
quanto há Existência e só há ser en- arbitrárias ou cômodas — não uma
quanto há verdade. Ora, essa dou- liberdade que o homem possui, mas
trina da verdade, contida em Ser e uma liberdade que possui o homem
tempo (8 44), foi por um lado, par- e torna possível a verdade como des-
ticularizada e, por outro, refunda- coberta do ente por meio do qual
mentada na conferência Da essência tem lugar uma “abertura”.
705 VERDADE

Há um grupo considerável de con- dade deve ser “verificada”. Não há


cepções sobre a verdade que exibem nada verdadeiro que não seja ““satis-
certas semelhanças familiares. Kier- fatório”*. James seguiu Peirce neste
kegaard proclamara que a verdade é último aspecto. Isso permite dizer
a subjetividade, mas isso não signi!- que o verdadeiro é o útil, mas cum-
fica que a verdade seja arbitrária: a pre entender a utilidade como o que
subjetividade deve ser entendida co- introduz um “benefício vital” (não
mo a existência. Nietzsche sustentou necessariamente ““subjetivo””) que
ser verdadeiro tudo o que contribui merece ser conservado. A única di-
para fomentar a vida da espécie, e ferença entre um pragmatista e um
falso tudo o que é um obstáculo ao antipragmatista no problema da ver-
desenvolvimento dessa. Falou-se, a dade está apenas, diz James, no fa-
esse respeito, de uma concepção to de que “quando os pragmatistas
“biologista” e até, por vezes, “dar- falam da verdade, referem-se exclu-
winilana” da verdade. Em ambos os sivamente a algo acerca das idéias,
casos, a noção de verdade é subtraií- 1sto é, à sua praticabilidade ou pos-
da da esfera intelectual tradicional. sibilidade de funcionamento (Wor-
Isso também ocorre com o ficciona- kableness), ao passo que, quando os
lismo de Valhinger e com o prag- antipragmatistas falam da verdade,
matismo. querem dizer frequentemente algo
Para William James é verdadeiro acerca dos objetos” (The Meaning of
o que mostra ser bom na ordem da Truth, 1909, Prefácio).
crença; é verdadeiro o que é “expe- Ao contrário do pragmatismo de
ditivo”” em nosso modo de pensar. James, do humanismo da verdade de
Como James também fala da verda- F.C. S. Schiller ou do instrumenta-
de em relação com as “conseqúuên- lismo (ou pragmatismo) de Dewey,
cias práticas”, argumentou-se, con- Bradley sustenta uma concepção
tra James e, de um modo geral, con- “absolutista” da verdade. Esse ab-
tra o pragmatismo, que a sua teoria solutismo não é um panlogismo,
da verdade é ou absurda ou autocon- mas, antes, um organicismo. Segun-
traditória. Deve-se levar em conta, do Bradley, “a verdade é o objeto
hão obstante, que James refinou do pensamento, e o propósito da ver-
consideravelmente suas propostas. dade é qualificar idealmente a exis-
Tal como em Peirce, a verdade em tência””, mas, simultaneamente, “a
James está ligada à investigação. verdade é a predicação de um con-
Peirce tinha sustentado que não se teúdo que, quando predicado, resul-
pode falar da verdade numa investi- te harmônico e suprima a inconsistên-
gação que não leva a parte alguma cia e, com ela, a inquietação” (Ap-
ou numa investigação que conduz a pearance and Reality, 1893, p. 165).
vários resultados, nenhum dos quais Observa-se, aqui, uma certa ““ten-
faz qualquer diferença em nossas dência ao concreto”. Algo similar
afirmações. Isso significa que a ver- ocorre com a noção bergsoniana da
VERDADE 706

verdade. Para Bergson, o absoluto formalmente correta do que é uma


da verdade não significa que a pro- sentença verdadeira numa metalin-
posição que a expressa sempre tenha guagem, só com a ajuda de expres-
existido virtualmente; significa que sões lógicas gerais, expressões da
o Juízo de verdade é verdadeiro sem própria linguagem e termos da mor-
restrições. O absoluto opõe-se aqui fologia da linguagem...” (Logic, Sê-
meramente ao relativo e de maneira mantics, Mathematics. Papers from
nenhuma quer dizer o eterno, o que 1923-1938, VIII, 8 7 [273]). Tarski
foi desde sempre ou assim será sem- trata primeiro de ver se se pode dar
pre. A verdade depende da ““realida- semelhante definição na linguagem
de”. É certo que a noção ““tradicio- coloquial ou corrente (Umgangsspra-
nal” da verdade também destacava che), mas chega à conclusão de que
essa “dependência”, mas o pensa- todos os métodos fracassam. A uni-
mento atual buscou amiúde uma no- versalidade da linguagem coloquial
ção de verdade que, superando o re-
— que inclui enunciados e outras ex-
lativismo e o utilitarismo manifesta-
dos nas primeiras reações contra to- pressões, assim como os nomes dos
enunciados e de outras expressões —
da a “abstração”, valesse de certo
é a fonte das antinomias semânticas
modo como ““absoluta”.
do tipo das do “Mentiroso” e dos
A teoria da verdade que é defen-
termos heterológicos. É discutível,
dida pela maioria dos idealistas é a
da coerência, teoria que — por di- portanto, um uso consistente da ex-
vVersas razões — alguns positivistas
pressão “enunciado verdadeiro” que
concorde com as leis da lógica e com
também sustentam. Até onde é pos-
o espírito da linguagem coloquial. É
sível formular axiomaticamente um.
igualmente questionável a possibili-
conjunto de conhecimentos, apresen- dade de construir uma definição cor-
tando-o em forma hipotético-dedu-
reta de “enunciado verdadeiro” na
tiva, uma asserção verdadeira será
mencionada linguagem. Tarski re-
aquela que mantenha coerência com
o resto das proposições do sistema. corre, em vista disso, a linguagens
Uma forma em que a verdade foi formalizadas, em que o sentido de
elaborada como correspondência é o cada expressão é determinado sem a
chamado ““conceito semântico de menor ambiguidade por sua forma,
e constrói uma definição formalmen-
verdade” apresentado por Alfred
Tarski. Nesse conceito de verdade, te correta nessas linguagens: na lin-
as expressões “é verdadeiro” e “é guagem do cálculo de classes, em lin-
falso”? constituem expressões meta- guagens de ordem finita e em lingua-
lógicas. Uma definição adequada de gens de ordem infinita. Um dos mais
“verdade” tem de ser dada numa conhecidos, ou difundidos, resulta-
metalinguagem. Segundo Tarski, nas dos de Tarski aparece nas teses refe-
linguagens formalizadas é possível rentes à relação entre a ordem da lin-
construir uma definição adequada e guagem e a ordem da metalingua-
707 VERDADE

gem: numa metalinguagem, pode-se ““Dante é um poeta italiano' é


proporcionar “uma definição for- verdadeiro” é verdadeiro. (2)
maimente correta e objetivamente
Em geral, será conveniente indicar
Justificada”' de “enunciado verda-
em que linguagem se diz de um enun-
demro””, sempre que a metalinguagem ciado que é verdadeiro, com a con-
seja “de ordem superior à linguagem
objeto de investigação”; se “a ordem dição, antes apontada, de que tal lin-
da: metalinguagem é, no máximo, guagem (ou, melhor, metalingua-
1eual à ordem da linguagem, não se gem) não seja da mesma ordem que
pode construir tal definição”? — nu- a linguagem de que se diz ser verda-
TRa' Versão extensível a outros concei- deira, mas de uma ordem imediata-
tos semânticos. Tarski assinala que mente superior. O conceito semân-
se pode estabelecer a semântica de tico de verdade está, assim, baseado
qualquer linguagem formalizada co- no bicondicional:
mo parte da morfologia da lingua- 66
Pp
29 A

é verdadeiro — p
gem sempre que a linguagem em que
se estabeleça a morfologia seja de or- que se lê:
dem superior à da linguagem cuja “p” é verdadeiro se e somente se p,
morfologia é objeto de exame; se a
ordem da linguagem usada para tan- do qual um dos exemplos pode ser
to é, pelo menos, igual à da própria o mesmo indicado por Tarski:
linguagem, não se pode estabelecer “A neve é branca” é verdadeiro se
a semântica da linguagem. e somente se a neve for branca.
É usual apresentar em forma mui-
Os predicados metalógicos ““é ver-
to simplificada — a rigor, muito pró-
xima da linguagem coloquial cujas dadeiro” e “é falso”? são os usados
ambigúidades trata-se Justamente de na lógica bivalente. Numa lógica po-
evitar — a “concepção semântica da livalente, o número de predicados
verdade” proposta por Tarski. Se metalógicos aumenta: há tantos
quisermos dizer que um enunciado quantos os valores de verdade. As-
(por exemplo: “Dante é um poeta sim, aos predicados ““é verdadeiro”
italiano”) é um enunciado verdadei- e “é falso” junta-se, na lógica triva-

rO, escreveremos: lente, o predicado ““não é verdadei-


ro nem falso”. Outros predicados
“Dante é um poeta italiano” é
possíveis em lógicas polivalentes são:
verdadeiro (1) “é mais verdadeiro do que falso”,
com o que ““é verdadeiro” aparece- “é mais falso do que verdadeiro”.
rá como um predicado metalógico Mas, como nas lógicas polivalentes
(semântico). E se quisermos dizer usam-se números para expressar os
valores de verdade, os predicados
que o enunciado (1) é um enunciado
verdadeiro, escreveremos: mencionados são considerados como
708
VERDADE

interpretações (semânticas) dadas a “lingúísticas”. As primeiras argu-


tais valores. mentam que a concepção semântica
A teoria de Tarski pode ser redu- da verdade não resolve o problema
zida ao seguinte: para ser material- filosófico da verdade no sentido em
mente adequada, uma definição do que tem sido tradicionalmente enten-
conceito de verdade tem de trazer co- dido, ou não leva em conta os pres-
mo conseqgiiência a equivalência da supostos subjacentes em toda con-
forma. cepção semântica. Pode-se responder
Tarski definiu a verdade em ter- a isso que a concepção semântica não
mos de ““satisfação”* (“X satisfaz”). intenta dar tal solução, nem averi-
Dentro de uma linguagem dada, atr1- guar tais pressupostos; trata-se ape-
buem-se entidades às variáveis ind!1- nas de obter uma definição do já c1-
viduais livres de uma determinada tado predicado metalógico. As se-
sentença (assim, “x é amarelo” é sa- gundas, isto é, as críticas “linguísti-
tisfeito pela atribuição da entidade cas”, proclamam que o conceito se-
ouro a ““x”* se e somente se ““o ouro mântico de verdade, embora muito
é amarelo” for verdadeiro). Ao mes- útil para a construção de linguagens
mo tempo, atribuem-se, ou podem artificiais, oferece graves dificulda-
atribuir-se, designata às constantes des ao aplicá-lo às linguagens natu-
individuais que houver, e extensões rais. Entre os que apresentaram ob-
às constantes predicados (por exem- Jeções desse ponto de vista figuram
plo, indicando que cada uma das Max Black e P. F. Strawson.
constantes individuais designa algum Black assinalou que o exame das
membro do universo do discurso da etapas necessárias para adaptar o
linguagem escolhida, e que cada uma procedimento de Tarski a uma lin-
das constantes predicados tem como guagem ordinária (em sua lingua-
extensão algum subconjunto do pró- gem, ao inglês ordinário) criou con-
prio universo do discurso). Uma vez dições realmente paradoxais. Pois a
executadas essas operações, ou a par- definição, argumenta Black, resulta-
te executável delas, pode-se provar ria antiquada em todos aqueles lu-
que toda definição da verdade — gares em que se introduziram novos
sempre que cumpra com os requisi- nomes na linguagem. Trata-se, por-
tos de adequação — é extensional- tanto, de uma dificuldade que surge
mente equivalente à definição de quando se procura aplicar a defini-
Tarski. ção semântica no âmbito de uma lin-
A concepção semântica da verda- guagem natural. A exposição de
de, especialmente do modo como foi Tarski é, segundo Black, à conse-
formulada por Tarski antes das pre- quência de uma “teoria da não-
cisões introduzidas nos três últimos verdade” (ou neutralismo completo),
parágrafos, foi alvo de variadas cri- mas nem isso nem nenhuma defini-
ticas, as quais podem ser classifica- ção formal da verdade pode alcan-
das em dois grupos: filosóficas e çar o âmago do problema filosófico.
709 VERDADE

P. F. Strawson indica ter havido tensional, “condição de verdade” e


nas discussões recentes em torno do “significação”. “É verdade” é am-
problema da verdade duas teses di1- pliado por esses partidários para “é
ferentes: uma (sustentada por F. P. verdade se e somente se”, e “é ver-
Ramsey), segundo a qual qualquer dade se e somente se” é interpretado
enunciado que começa com ““é ver-
dade que...”* não muda seu sentido
a
como ““significa que”. Assim, fra-
se ““O monarca faleceu' significa
assertivo quando a expressão ““é ver- que o rei morreu” foi transformada
dade que” é omitida; a outra, segun- em “““O monarca faleceu” é verdadei-
do a qual dizer que uma sentença é ro se e somente se o monarca fale-
verdadeira equivale a formular um ceu”. A objeção que pode ocorrer ao
enunciado sobre um enunciado de defensor da teoria semântica — de
uma linguagem na qual se expressou que tal teoria é necessária para evi-
a primeira sentença. A primeira tese tar os paradoxos semânticos (ver PA-
é certa, mas inadequada; a segunda RADOXO) — é obviada por Straw-
é falsa, mas importante. A primeira son ao indicar que tanto o paradoxo
é certa no que afirma e equivocada como a sua solução são desnecessá-
no que sugere. A segunda é falsa no rios, se prestarmos atenção ao fato
que afirma e certa no que implica. de que a “lógica” de “é verdade” no
Com o fim de esclarecer o problema, paradoxo é parecida com a “lógica”
Strawson propõe examinar os usos de de “digo o mesmo” quando não se
“verdade”, “é verdadeiro”, etc., em formulou antes nenhum enunciado.
frases nas quais aparecem essas ex- Assim, como ““digo o mesmo” em se-
pressões. O resultado de tal exame é melhante caso é uma frase que nada
a descoberta de um grande número significa a expressão ““o que digo é
de usos que os lógicos descuram. Por falso”* também é uma frase que na-
exemplo, o uso confirmativo na res- da significa se nada tiver sido ante-
posta ““é verdade” a uma frase co- riormente dito. Trata-se, segundo
mo “João é inteligente”; o uso ad- Strawson, de uma manifestação lin-
missivo, parecido ao anterior, na me- guística espúria.
dida em que ““é verdade” pode tra- A teoria da verdade elaborada por
duzir-se por “admito-o”*; o uso con- Strawson foi chamada ““teoria exe-
cessivo, etc. Esses — e outros que po- cutiva (““performativa” = performa-
deriam acrescentar-se — mostram ser tive) da verdade”, porquanto se ba-
inadmissível transformar todo enun- sela em considerar que ““verdadeiro”
ciado em que intervém a noção de é uma expressão executiva e não des-
verdade num enunciado anterior. Os critiva. Vários filósofos, sobretudo
partidários da teoria semântica da de tendência lógica, argumentaram
verdade chegam às suas conclusões que o conceito semântico de verda-
por terem descuidado dos citados de foi construído para linguagens for-
usos múltiplos e por terem tornado malizadas, de modo que as objeções
sinônimos, dentro de uma lógica ex- contra o mesmo com base numa ““fi-
VERDADE 710

losofia da linguagem corrente” não uma só palavra como signo taquigrá-


são válidas — ou, em todo caso, não fico que se refere a todos os signos”.
são aplicáveis. Segundo Ayer, não Os distintos conceitos da verdade
importa que a concepção semântica podem ser agrupados em vários t1-
da verdade não proporcione nenhu- pos fundamentais. É o que se faz
ma definição geral da verdade e quando se fala de “verdade lógica”,
limite-se à proporcionar um critério “verdade semântica”, ““verdade
de validade. existencial”, etc. Convém, entretan-
Alguns lógicos não consideram to, que tais agrupações sejam feitas
que a teoria semântica da verdade se- de um modo sistemático. Uma das
ja um requisito indispensável para apresentadas é a já clássica de ver-
referir-se à verdade ou à falta de to- dade lógica (não contradição), ver-
dos os sistemas logísticos. Com efei- dade epistemológica (adequação do
to, é possível construir certos siste- entendimento e da realidade) e ver-
mas logísticos capazes de definir a dade ontológica (realidade como al-
sua própria verdade. Encontramos go distinto da aparência). Outra é a
exemplos deles em Alonzo Church, que distingue entre verdade semân-
The Calcul of Lambda-Conversion tica e verdade filosófica. Outra é a
(1941), e em John Myhill, “A System proposta por Russell, quando distin-
which can define Its Own Truth”, gue entre quatro conceitos de verda-
de: teoria que substitui “verdade”
Fundamenta mathematica, 37 (1950),
por ““asserção garantida” (Dewey);
pp. 190-92. teoria que substitui “verdade” por
A noção de verdade liga-se à de “probabilidade” (Reichenbach); teo-
“satisfatório”, a ponto de alguns au- ria que entende ““verdade” como
tores considerarem prévia a defini- “coerência” (idealistas e, com distin-
ção deste segundo conceito. tos pressupostos, alguns lógicos);
Parece impossível reduzir a um de- teoria que entende ““verdade”* como
nominador comum todos os concei- “adequação” (com a realidade). Ou-
tos de verdade até aqui apresentados. tra é a indicada por Félix Kaufmann
Em vista disso, alguns autores decla- quando distingue entre três concei-
raram que não existe, a rigor, um tos de verdade: verdade como pro-
conceito de verdade. Assim opinam priedade temporal das proposições:
Ogden e Richards (The Meaning of (verdade lógica aplicável a proposi-
Meaning, 1923) quando dizem que a ções analíticas); verdade garantida
expressão ““verdade de uma propo- pela assertividade (processo de ““va-
sição”* é somente “um exame exaus- lidação*””) de proposições sintéticas;
tivo da situação dos signos por meio verdade como ideal de última e com-
de cada uma das ciências especiais”. pleta coerência numa experiência to-
O problema da verdade é, segundo tal (verdade como princípio regula-
esses autores, um “falso problema”, tivo). Outra é a que se limita a dis-
devido ao fato de ““poder-se usar tinguir entre dois tipos de verdade:
711 VERDADES DE RAZÃO, VERDADES DE FATO

verdade fática e verdade lógica. Ou- saber quais são os precedentes da dis-
tra é a que classifica as principais teo- tinção leibniziana e quais são as for-
rias da verdade com expressões co- mas que adotou depois de Leibniz.
mo ““teoria da verdade como corres- A outra é sistemática e consiste em
pondência (ou adequação)”, ““teo- dilucidar a natureza da distinção e as
ria da verdade como coerência”, diversas soluções dadas à relação en-
“teoria pragmatista da verdade”, tre os dois tipos de verdades. As duas
“teoria executiva da verdade”. A es- questões entrelaçam-se, aliás, com
sas expressões deveriam ser acrescen- certa frequência, dado que, como ve-
tadas as de “teoria relativista da ver- remos, na análise sistemática das so-
dade” e “teoria historicista da ver- luções possíveis encaixam-se, como
dade”, que não costumam ser expos- exemplos, diversas posições adotadas
tas na literatura filosófica sobre a no- no curso da história.
ção de verdade, mas que foram su- O primeiro e talvez o mais funda-
mamente importantes e influentes. mental dos precedentes da distinção
Cabe distinguir entre teoria relativis- leibniziana é o platônico. De fato, as
ta (não há verdades absolutas) e teo- verdades de razão podem ser equi-
ria historicista (as verdades estão na paradas às obtidas por meio do sa-
história, isto é, toda verdade é rela- ber rigoroso: seu método é a dialéti-
tiva ao tempo ou época em que é for- ca e seu modelo, a matemática. As
mulada), mas ambas têm em comum verdades de fato são as verdades con-
supor, segundo a consagrada fórmu- seguidas por meio da opinião, que
la, que “a verdade é filha do tem- não se refere ao que é (ao que é sem-
p o”. pre), mas ao que muda, isto é, ao
que oscila entre o ser e o não ser. Em
VERDADES DE RAZÃO, VER- consequência disso, pode-se afirmar
DADES DE FATO Em diversas par- que as verdades de razão são neces-
tes de sua obra, Leibniz estabeleceu sárias; as de fato, contingentes. A di-
uma diferença entre esses dois tipos ferença entre o necessário e.o con-
de verdade. O texto mais conheci- tingente estabelecida por Aristóteles,
do acha-se na Monadologia, $ 33: especialmente a definição do primei-
“Também há duas classes de verda- ro desses conceitos pela exclusão do
de: as de razão e as de fato. As ver- segundo, e vice-versa, permite traçar
dades de razão são necessárias e seu com detalhe a distinção platônica.
oposto é impossível; as de fato são Durante a Idade Média, vários filó-
contingentes e seu oposto é possíi- sofos elaboraram inúmeras distin-
vel.”* Essa doutrina foi desenvolvi- ções parecidas; entre eles, destacou-
da em detalhe na Teodicéia (S$ 170, se Duns Escoto, em particular atra-
174, 189, 280-282, 376, citados pelo vés da doutrina da contingência do
próprio Leibniz). Duas questões se mundo criado. Por sua vez, Suárez
apresentam a esse respeito. Uma É desenvolveu a doutrina da identida-
histórica e consiste especialmente em de do sujeito e do predicado em juí-
VERDADES DE RAZÃO, VERDADES DE FATO 712

zos que expressam verdades eternas por sua distinção entre fatos e rela-
e, portanto, a analiticidade de tais ções de idéias. O segundo, por sua
juízos — uma concepção que se en- distinção entre juízos a priori e Juí-
contra na base da teoria leibniziana. zos a posteriori. As diferenças entre
Entre os filósofos modernos podem as respectivas ontologias permitem
ser citados como predecessores de explicar em que sentidos distintos ca-
Leibniz, conforme indicou F. H.
Heinemann, Descartes e Hobbes. O
da um toma
a distinção leibniziana.
Com algumas variantes, a distinção
primeiro, por sua formulação da di- foi adotada por muitos pensadores,
ferença entre Juízos sobre coisas e tanto racionalistas quanto empiris-
suas tendências, e juízos que expres- tas. J. Stuart Mill serviu-se dela, se
sam verdades eternas. Sem conside- bem que para declarar imediatamen-
rar ainda estes últimos juízos como te que toda verdade de razão podia
analíticos — o que seria explicita- reduzir-se a verdade de fato. Os po-
mente feito por Leibniz —, ele ten- sitivistas lógicos contemporâneos e
deu a equiparar as verdades de ra- pensadores de tendência afim têm-na
zão a verdades conseguidas median- usado para mostrar que, na grande
te um processo calculatório. O se- maioria dos casos, é possível combi-
gundo, por sua diferença entre o co- nar o empirismo com o formalismo,
nhecimento de fatos e o conhecimen- sempre que as verdades de razão se-
to da consequência de uma afirma- jam consideradas puramente analí-
ção relativa a uma outra. Aliás, nem ticas e, por conseguinte, como re-
todos esses filósofos situaram suas gras.
distinções no mesmo marco ontoló- Não obstante, a distinção, tal com
gico. Descartes, por exemplo, fiel ao Leibniz a propôs, está impregnada
racionalismo e ao realismo, conside- de uma metafísica própria, que não
rou os dois tipos de Juízos como re- é fácil de ser aceita pelos demais f1-
dutíveis, em seu mais alto estado de lósofos. É típico de Leibniz conside-
perfeição, a proposições evidentes. rar que a distinção, válida para uma
Hobbes, em contrapartida, fiel ao mente finita, se dissipa numa mente
empirismo e ao nominalismo, con- infinita, a qual pode reduzir a série
siderou toda proposição, em última infinta de verdades de fato a verda-
instância, uma proposição de expe- des de razão e, por conseguinte, po-
riência, pois as que se referem à con- de fazer das verdades empíricas ver-
segiiência de uma afirmação relati- dades analíticas.
va a outra são, a rigor, proposições Quanto ao aspecto sistemático da
relativas ao uso de nomes na lingua- questão, limitar-nos-emos a esboçar,
gem. em suas linhas gerais, duas posições
No tocante à evolução posterior básicas: (I) as verdades de razão e as
da distinção leibniziana, encontra- verdades de fato estão completamen-
mos, primeiramente, reflexos dela te separadas e não há possibilidade
em Hume e em Kant. O primeiro, de reduzir umas às outras, nem de
713 VERIFICAÇÃO

encontrar um fertium que as una; (II) “verificação” o procedimento me-


as verdades de razão e as verdades diante o qual se comprova a verda-
de fato estão relacionadas entre si de de ou a falsidade de algum enuncia-
algum modo. As relações principais do. Se alguém afirma que há um
que podem estabelecer-se entre elas exemplar do Quixote na Biblioteca
são: (a) as verdades de razão são re- Nacional de Madri, verifica-se essa
dutíveis às de fato; (b) as verdades afirmação visitando essa biblioteca
de fato são redutíveis às da razão; (c) e vendo tudo o que há nela. Se al-
há entre as verdades de razão e as guém afirma que a Terra gira ao re-
verdades de fato um tipo de verda- dor do Sol, a verificação desse enun-
de que permite uni-las e que não se ciado é muito mais complexa, pois
reduz a nenhuma das duas; é comum inclui não só observações, mas tam-
considerar que esse tipo de verdade bém teorias. De um modo muito ge-
é dado por uma intuição que pode ral, verificação é o mesmo que com-
ser, ao mesmo tempo, empírica e ra- provação, confirmação e corrobora-
cional; (d) há entre as verdades de ra- ção, mas há usos técnicos de ““con-
zão e as verdades de fato uma gra- firmação”* e ““corroboração” que
dação contínua, que faz de qualquer não são simplesmente equiparáveis
de tais tipos de verdade conceitos-li- a “verificação”.
mites metodologicamente úteis, mas Em toda teoria do conhecimento,
nunca encontrados na realidade. As- o problema da verificação de enun-
sim, toda proposição seria, simulta- ciados ocupa um lugar de destaque.
neamente, verdade de razão e verda- Alguns autores trataram o problema
de de fato, mas cada proposição ten- da verificação no âmbito do que se
deria a ser ou mais verdade de razão chamou ““criteriologia””, por consi-
do que verdade de fato, ou mais ver- derar que verificar requer a adoção
dade de fato do que verdade de ra- de critérios de verdade.
zão. Pela descrição histórica ante- A questão da natureza e dos mo-
rior, é fácil encontrar exemplos, es- dos de levar a cabo a verificação de
peclalmente das concepções (a)-(c). enunciados ocupou quase todos os
A concepção (d) é a defendida pelo filósofos interessados em problemas
autor da presente obra. do conhecimento. Não obstante,
num sentido próprio, ou mais dire-
VERIFICAÇÃO Diz-se comumente to, ocupou sobretudo dois grupos de
que verificar uma colsa é comprovar filósofos: os pragmatistas e os pen-
se ela é verdadeira. O que se compro- sadores do Círculo de Viena — os
va, porém, não é uma coisa, mas al- positivistas lógicos e, em geral, os
go que se diz acerca dela, ou seja, um neopositivistas.
enunciado. A verificação é a ação e Para os pragmatistas, tratou-se so-
o efeito de comprovar se algum bretudo de ““tornar verdadeiras” as
enunciado é verdadeiro ou falso. proposições, no sentido de que ne-
Mais especialmente, entende-se por nhuma proposição deve ser admiti-
VERIFICAÇÃO 714

da como verdadeira se não puder, pe- é verdadeira ou falsa.”* Se não se po-


lo menos em princípio, ser verifica- de levar a efeito experiências que per-
da. Se todo enunciado tem uma ““pre- mitam determinar a verdade ou a fal-
tensão”? de verdade, essa ““preten- sidade da sentença (proposição), es-
são” só se cumprirá quando tiver si- ta última carece de significação. O
do verificada. Assim, William James princípio é aplicável a enunciados
escrevia (Pragmatism, cap. VI) que que têm (ou aspiram a ter) um con-
““as verdadeiras idéias são as que po- teúdo, não a fórmulas lógicas e ma-
demos assimilar, validar, corroborar temáticas, que são consideradas tau-
e verificar”, explicando — contra tológicas. De acordo com o princí-
possíveis objeções vizinhas das diri- pio de verificação, ou verificabilida-
gidas depois contra alguns positivis- de, os enunciados metafísicos, teo-
tas lógicos — que a verificabilidade lógicos, axiológicos, etc., não sendo
é tão boa quanto a verificação, vis- empiricamente verificáveis, carecem
to que “por cada processo-verdade de significado. Assim, o princípio de
completo há em nossas vidas milhões verificação, ou verificabilidade, é um
de outros processos que funcionam critério de demarcação.
em “estado de nascimento”. F. C. Esse princípio contém reminiscên-
S. Schiller escreveu (“Why Huma- clas da célebre classificação dos Juí-
nism?””, em Contemporary British zos de Hume, que distinguia entre
Philosophy. Personal Statements questões de fato e relações de idéias.
(First Series), 1924, ed. org. por J. H. Se um Juízo não é uma colsa nem ou-
Muirhead, p. 400) que ““o valor das tra, carece de significado, e as obras
verdades é provável por seu funcio- que contêm esse tipo de asserções de-
namento e que, para sobreviver, te- veriam ser “condenadas à fogueira”.
rão de ser verificadas”. Algo seme- Na citada forma ““forte””, o prin-
lhante poderia dizer-se da doutrina cípio de verificação, ou verificabili-
de John Dewey sobre os modos de dade, não tardou em ser denuncia-
“garantir” a verdade — a “garan- do por alguns dos próprios neoposi-
tia” é, aqui, a “verificação”. tivistas como insustentável. Dizer
Os positivistas lógicos, ou neopo- que só têm significação as proposi-
sitivistas, liderados no começo por ções empiricamente verificáveis equi-
Moritz Schlick, propuseram o que se vale a excluir proposições empíricas
chamou ““princípio de verificação”, que podem não ser (pelo menos, até
ou também ““princípio de verificab!1- onde possamos sabê-lo) efetivamente
lidade”. A chamada formulação" verificáveis. Por 1sso, propôs-se um
“forte” do referido princípio é a se- princípio de verificação mais ““libe-
guinte: ““O significado cognoscitivo ral”* — ou, como também foi cha-
de uma sentença (proposição) está mado, ““mais fraco*”* —, o qual con-
determinado pelas experiências que siste em dizer que só têm sentido as
permitem determinar de um modo proposições verificáveis em princí-
conclusivo se a sentença (proposição) plo, seja ou não possível, efetiva e
715 VERIFICAÇÃO

atualmente, sua verificação. Na gens. R. von Mises incluiu os diver-


edi1-

ção revista de 1946 de Language, sos modos de verificabilidade no que


Truth and Logic, A. J. Ayer propõe considerava ser o mais amplo con-
o seguinte princípio, que em seu en-
ceito de “conexidade” (Verbindbar-
tender elimina as dificuldades que se Kkeit). O princípio de verificação foi

apresentaram nas primeiras formu- objeto de abundante controvérsia


lações: “Proponho que um enuncia- não só entre os que pretendiam de-
do é diretamente verificável se ele fender os pressupostos da metafísi-
próprio é um enunciado de observa- ca, mas, inclusive, entre os positivis-
ção, ou se é tal que, em conjunção tas. Carnap, por exemplo, substituiu
com um ou mais enunciados de ob- o princípio de verificação pelo de
servação, apresenta pelo menos um confirmação, ao passo que Reichen-
enunciado de observação não dedu- bach admitiu a possibilidade de pro-
tível somente dessas outras premis- posições significativas que descrevam
sas. E proponho que um enunciado estados de coisas inverificáveis. Qui-
é indiretamente verificável se satis- ne e outros autores manifestaram
faz às seguintes condições: primeiro, que a diferença entre “analítico” e
que, em conjunto com certas outras “sintético” não é tão taxativa quan-
premissas, apresente um ou mais to parece à primeira vista, ou quan-
enunciados diretamente verificáveis to pareceu a muitos neopositivistas.
que não sejam dedutíveis somente Ora, tornar imprecisa a linha divisó-
dessas outras premissas; e, segundo, ria entre o analítico e o sintético equi-
que essas outras premissas não 1in- vale a admitir, no corpo de uma teo-
cluam nenhum enunciado que não ria, inclusive as teorias científicas,
seja ou analítico, ou diretamente ve- certas proposições que só são verifi-
rificável, ou capaz de ser estabeleci- cáveis em relação a outras proposi-
do independentemente como verifi- ções da teoria. Russell assinalou que
cável”* (op. cit., p. 13). até mesmo a doutrina ampliada da
Os que repeliram pura e simples- verificação — ou o princípio ““fra-
mente o princípio de verificação de- co” de verificação — suscita sérias
ram vários tipos de razões. Limitar- dificuldades, sobretudo na medida
nos-emos a algumas delas. A. C. em que se vê forçada a introduzir ter-
Ewing e outros autores destacaram mos disposicionais. Além disso, Rus-
que o princípio de verificação é uma sell opina que um completo agnost!-
proposição segundo a qual somente cismo metafísico, como o que pres-
os significados empíricos podem pos- supõe o princípio de verificação em
suir significação. Respondendo a es- qualquer de suas versões, “não é
sa crítica, o neopositivismo concor- compatível com a manutenção de
da em que não se trata de um enun- proposições linguísticas”. Certos au-
ciado empírico, nem de uma tauto- tores sustentaram que as próprias leis
logia, mas de uma recomendação pa- científicas são inverificáveis enquan-
ra o uso de certas classes de lingua- to leis; o que sucede é que podem,
VIRTUDE 716

em princípio, ser ““confirmadas” o ânimo. A virtude é o que caracte-


mediante casos observados. G. Ryle riza o homem, e as definições da vir-
propôs que o significado de um tude atendem, em tal caso, ao que
enunciado é, de certo modo, o mé- consideram o caráter específico do
todo de sua aplicação, ou o modelo ser humano. Esse caráter, segundo
de inferências concretas cuja execu- Aristóteles, expressa-se através do
ção autoriza. meio-termo; é-se virtuoso quando se
permanece entre o mais e o menos,
VIRTUDE Significa “força” (vir- na devida proporção entre os dois ex-
tus, &toeTn), “poder”, donde ““poder tremos, ou na moderação prudente.
de uma coisa”, “eficácia”. Nesse Escreve Aristóteles: “A virtude é um
sentido, alguns autores afirmaram hábito, uma qualidade que depende
que uma coisa faz dormir porque da nossa vontade, consistindo nesse
possui uma ““virtus dormitiva”. Des- meio que se relaciona conosco e é re-
de muito cedo, foi a virtude enten- gulado pela razão, na forma como
dida no sentido do hábito ou manei- o regularia o verdadeiro sábio. A vir-
ra de ser de uma coisa, hábito que tude é um meio entre dois vícios”?
é possibilitado por haver previamen- (Et. Nic., II, 6, 1107 a 1-5). A virtu-
te nela uma potencialidade ou capa- de diz respeito a todas as atividades
cidade de ser de um modo determi- humanas e não só às chamadas ati-
nado. Assim a entendeu Aristóteles, vidades “morais”.
embora assinalasse “não ser bastante Platão falou das virtudes em vá-
dizer que a virtude é hábito ou mo- rios diálogos — por exemplo, o ““La-
do de ser, porquanto cumpre dizer ques” e o “Carmides”. Por vezes,
também, de forma específica, qual falou das seguintes virtudes: prudên-
é essa maneira de ser” (Etica a Ni- cla, temperança, fortaleza, justiça e
cômaco, II, 6, 1106 a 14-5). Ora, de- santidade. Em Rep. IV, 427 E, apre-
finida de um modo mais geral, a vir- sentou as que depois seriam chama-
tude é respeito a uma colsa, o que das de “quatro virtudes cardeais” ou
completa a boa disposição da mes- “principais”. Uma Cidade-Estado
ma, o que a aperfeiçoa; em outras (pólis) bem organizada tem de ser
palavras, a virtude de uma coisa é, prudente, 0ovn, esforçada, arvôpeia,
propriamente falando, o seu bem, moderada (ou temperada), owgçewvr,
não um bem geral e supremo, mas e Justa, ôvxaia. As quatro virtudes
o bem próprio e intransferível. Vir- correspondentes são a prudência,
tude, poder-se-ia dizer, é aquilo que poórmois, a fortaleza, avôpeia, a
faz com que cada coisa seja o que é. moderação (ou temperança), owoeo-
Tal noção de virtude é prontamente ovvn, e à Justiça, dixaiovovn. Platão
transferida ao homem; virtude é, en- usou o termo gogvia, sófia, que às ve-
tão, primeiramente, o poder propria- zes se traduz por “sabedoria”, ou-
mente humano, na medida em que tras vezes por “sabedoria prática” e
se confunde com o valor, a coragem, ainda por ““prudência” (Rep. IV,
717 VIRTUDE

429 A). A palavra govia no contex- requer paciência e tempo, ao passo


to da doutrina do Estado (Cidade- que a virtude ética deriva do hábito;
Estado) também tem o sentido que o nome ethiké está formado por uma
se outorgou a coovnous, frónesis. Es- leve variação introduzida na palavra
te último termo é traduzido habitual- ethós [hábito]. É óbvio que nenhu-
mente por “prudência” (Rep., 1V, ma das virtudes morais se origina em
433 B-C). Quanto a fortaleza, tem o nós por natureza, pois nada do que
sentido de “coragem”, mas, princi- existe por natureza pode formar um
palmente, “coragem moral”. A jus- hábito contrário à sua natureza” (Et.
tiça é, por vezes, equiparável à tem- Nic., II, 1, 1103 a 14-20). As virtu-
perança, mas só quando se trata de des éticas e dianoéticas não se apre-
uma atitude pessoal ou individual sentam sempre como taxativas; a
(cf. Carmides, 161 B); na polis deve- prudência, enquanto sabedoria prá-
se distinguir entre ambas. tica, é considerada por alguns auto-
Como nenhuma das virtudes indi- res uma virtude ética.
cadas é específica, no sentido de só Plotino distinguiu entre as chama-
se aplicar a uma determinada ativl- das virtudes civis (que seriam, na lin-
dade humana ou até a um determi- guagem aristotélica, sensivelmente
nado tipo de atividades humanas, e parecidas às éticas), como a tempe-
como, por outro lado, não parece rança e a Justiça, e as virtudes puri!-
que se possa praticar nenhuma de ficadoras ou catárticas, ou seja,
tais virtudes sem o auxílio ou, pelo aquelas que, guiando-nos em nosso
menos, a concorrência de outras, comportamento racional, permitem
falou-se com frequência da “unida- que nos assemelhemos aos deuses
de das (quatro) virtudes” platônicas. (En., III, vi, 2). Além disso, as vir-
Entretanto, parece que uma virtude tudes podem ser consideradas 1inte-
como a prudência tem certo predo- lectuais ou não-intelectuais: as pri-
mínio sobre outras, pelo menos na meiras procedem da própria alma
medida em que é a virtude indispen- como realidade separada; as segun-
sável para o governante, e também das, em compensação, derivam do
parece que a justiça desempenha um hábito (ibid., [, 11). Porfírio distin-
papel capital, na medida em que re- gue quatro classes de virtudes: polí-
presenta a harmonia. Neste último ticas ou civis; catárticas; orientada
caso, a Justiça é a conjunção das vir- para o nous e virtudes do nous, ou
tudes. paradigmáticas. Jâmblico admite uma
Aristóteles distinguiu entre virtu- quinta classe, ainda mais elevada
des “éticas” (também chamadas ““mo- que a das virtudes paradigmáticas:
rais”) e virtudes “dianoéticas” (tam- as virtudes hieráticas. O usual na
bém chamadas ““intelectuais”). Se- Antiguidade, aliás, não é apenas for-
gundo Aristóteles, ““a virtude dia- jar um conceito de virtude, mas
noética deve sua origem e desenvol- também, e muito especialmente, ma-
vimento à instrução, razão pela qual nifestar de maneira concreta as vir-
718
VIRTUDE

tudes e os atos necessários para que culares, como a magnanimidade, ne


se realizem. Foi esse um dos temas yadhoVuxia, a continência, éyxoa-
fundamentais das diversas escolas Tela, à paciência, xXOAQTEQIA, a pre-
socráticas (e uma das preocupações sença de ânimo, ayxivoia, O bom
centrais dos estóicos). A racionalida- conselho, evBouXNia.
de da virtude, sua possibilidade de Na Idade Média abundaram oOS
ser ensinada, levaram a uma contí- trabalhos sobre a natureza e as clas-
nua classificação e reclassificação ses das virtudes, tanto de autoria de
das virtudes, assim como a uma in- teólogos e filósofos árabes e judeus
cessante equiparação da virtude ao quanto cristãos. Alguns autores ten-
ato de seguir um determinado cur- deram a elaborar uma doutrina ““psi-
so: aquele que era marcado pela na- cológica” da virtude, isto é, a deri-
tureza, aquele que era determinado var o caráter que pode ter a virtude
pela faculdade esforçada (ex viro vir- e os distintos tipos de virtudes da na-
tus, dizia Cícero) que levava, por sua tureza da alma. Segundo Sherif, Al-
vez, a uma natureza perfeita. A vir- gazel, em suas duas mais importan-
tude também era defendida pelos es- tes obras éticas, O critério e A reno-
tóicos como a perfeição ou o fim de vação, falou das quatro virtudes car-
cada coisa, podendo ser algo teóri- deais como ““as mães do caráter*'
co ou não teórico. Diógenes Laércio Tanto as virtudes como o bom cará-
(VII, 90 e ss.) refere-se minuciosa- ter indicam o estado das faculdades
mente às classificações estóicas das corporais “quando se encontram su-
virtudes. Panécio dividia as virtudes bordinadas à faculdade prática da al-
primariamente em duas classes: teó- ma humana” (Sher1if, p. 29).
ricas e práticas. Outros estóicos Santo Agostinho deu uma defini-
dividiram-nas em lógicas, físicas e ção da virtude que se tornou célebre:
éticas. Na escola de Poseidônio, fa- a virtude é a “ordem do amor”: or-
lava-se de quatro virtudes fundamen- do est amoris (De civ. Dei, XV, 22).
tais (coincidentes com as platônicas). Pode-se dizer, então, dilige et quod
Cleantes, Crísipos, Antipater e seus vis fac (In Epist. Joan. ad Parthos,
seguidores admitiam mais de quatro VII, 8; Opera omnia, 35, col. 2033,
virtudes. Apolófanes (cf. Von Ar- cit. por E. Gilson, Introduction à
nim, 1, 90) considerava que há so- Pétude de Saint Augustin, 3º ed.,
mente uma virtude: a poorvnois OU “ama e faz o que qui-
1949, p. 182),
sabedoria prática. Segundo Diógenes seres”, porque quem ama possui a
Laércio, parece haver sempre entre virtude. Esse ponto necessita, porém,
as virtudes, dentro da concepção es- de esclarecimentos. Na obra de Gil-
tóica, algumas virtudes primárias e son acima citada, o autor enfatiza
outras secundárias ou subordinadas. que a noção agostiniana do amor é
As primeiras são quase sempre as análoga à noção aristotélica de lugar,
OS corpos ou elementos naturais têm
quatro virtudes platônicas. A elas há
um lugar natural para o qual se diri-
que adicionar certas virtudes part!-
719 VIRTUDE

Similarmen- dência é o amor em seu discernimen-


gem de moto próprio.
te, em cada alma há “um peso que to sagaz entre o que o favorece e O
a arrasta constantemente, que a mo- que o estorva” (op. cit., pp. 176-7).
ve continuamente a buscar o lugar de No amor perfeito do fim supremo
seu repouso: é o amor” (op. cil., p. não existe, ademais, discórdia e de-
174). Assim, o amor é, para Santo sigualdade entre virtudes: temperan-
Agostinho, inerente à natureza do ça, fortaleza, Justiça e prudência são,
homem. O problema é que esse amor respectivamente, entrega total a
pode dirigir-se. .a qualquer classe de Deus, sofrimento por amor de Deus,
objeto. “A vontade reta — escreveu serviço a Deus, discernimento entre
Santo Agostinho — é, por conse- o que liga a Deus e o que separa de
guinte, um amor bem dirigido, e a Deus. O amor do Bem supremo é a
vontade torcida é um amor mal di- caridade. Isso explica que as virtu-
rigido... Ora, estas noções (amor, des cardeais indicadas se encami-
alegria, temor e tristeza) são más se nhem para as virtudes teologais —
o amor é mau; boas, se é bom” (De fé, esperança e caridade. Encontra-
civ. Dei, XIV, 7). Não é que o amor mo-nos, aqui, com a chamada ““vir-
— Ou quaisquer outros “movimen- tude infusa”, virtus infusa. Nesse
tos” — seja, por si mesmo, mau, sentido, Santo Agostinho definmu a
nem que o objeto para o qual ele se virtude como “uma boa qualidade
dirige seja inerentemente mau. “A da mente mediante a qual vivemos
defecção da vontade é má porque é retamente, qualidade de que nin-
contrária à ordem da Natureza, e é guém pode abusar e que se produz,
um abandono do que possui um ser às vezes, em nós sem nossa interven-
supremo em favor do que possui me- ção” (De libero arbitrio, II, 8).
nos ser. Pois a avareza não é uma santo Tomás examinou minucio-
falta inerente ao ouro, mas encontra- samente o problema da natureza da
se no homem que ama excessivamen- virtude, as classes de virtudes e as re-
. te o ouro, em detrimento da Justiça, lações entre as virtudes. A idéia ge-
a qual deveria ser tida em muito ral de virtude é a de uma boa quali-
maior apreço do que o ouro.” (op. dade da alma, uma disposição sólida
cit., XII, 8) Gilson indica que não só e firme da parte racional do homem.
a mais alta virtude é o mais alto Segundo sua origem etimológica,
amor, mas que todas as virtudes po- “virtude” designa uma ““capacida-
dem ser reduzidas ao amor. Assim, de”. Esta pode ser ativa ou passiva,
a temperança é “um amor que se re- universal ou particular, cognosciti-
serva por inteiro ao que ama; a for- va ou operativa. Em todos os casos,
taleza é o amor que tudo suporta fa- a virtude tem um caráter “habitual”,
cilmente por amor do que ama; a ou seja, é um “hábito”. Santo To-
justiça nada mais é que o amor que más segue simultaneamente Aristó-
só serve ao objeto amado e domina, teles e Santo Agostinho. Como gê-
por conseguinte, tudo o mais; a pru- nero próximo, a virtude é um hábi-
VIRTUDE 720

to; como diferença específica, um “transbordando””. Mas observa que


bom hábito; como sujeito, o é de cada uma das quatro virtudes car-
nossas almas; com o que a distingue deais está articulada com uma deter-
do vício, é algo mediante o qual vi- minada matéria, e que se trata de há-
vemos retamente; como diferença de bitos distintos que se diferenciam en-
outros hábitos (que, tal como suce- tre si por seus vários efeitos.
de com a opinião, podem conduzir Uma classe importante de virtude
tanto ao bem quanto ao mal), nin- são as “virtudes teologais”* — fé, es-
guém pode abusar da virtude; na me- perança, caridade — já mencionadas
dida em que é, às vezes, infusa, Deus antes. Segundo Santo Tomás ((S.
a produz em nós sem nossa interven- Theol., I-Ila, q. LXIL, a 1), essas vir-
ção. Todos esses traços, salvo o úl- tudes são as que conduzem para uma
timo, são próprios de todas as vir- felicidade sobrenatural. Dado que
tudes, 1sto é, tanto das virtudes in- essa felicidade “suplanta os poderes
fusas como das adquiridas (cf. S. da natureza humana”, é necessário
Theol., I-Il a, q. LIV, a 3 e II-lla, para o homem receber de Deus ““al-
q. XXIII, a 1). As virtudes infusas guns princípios adicionais”, isto é,
têm todas essas características mais as virtudes teologais. Essas virtudes
a última acima mencionada. encaminham-nos para Deus, estão
No que se refere à classificação das infusas em nós por Deus e só são da-
virtudes, é capital a distinção entre das a conhecer por meio da revela-
virtudes adquiridas e virtudes infu- ção divina. Uma virtude teologal é
sas. O nome “adquirido” indica de definida como um bom hábito infu-
que virtude se trata; é uma que não so cujo objeto imediato é Deus.
está em nós, pois é objeto de apren- As virtudes podem ser classifica-
dizagem. A virtude infusa é a que das de muitas e diversas maneiras.
Deus confere à alma e não é adqui- Em primeiro lugar, as virtudes car-
rida. A virtude sobrenatural é uma deais podem ser, como em Aristóte-
virtude cujo princípio é a Graça e cu- les, éticas (morais) e dianoéticas (in-
jo fim é o destino sobrenatural da al- telectuais). Existem, além disso, vir-
ma. No tocante às virtudes adquiri- tudes completas e incipientes, ativas
das (não infusas), Santo Tomás se- e contemplativas, e, é claro, as Já
gue Platão e fala de quatro virtudes mencionadas infusas e adquiridas.
cardeais ou “principais”, examinan- Também cabe falar de virtudes po-
do se cada uma delas implica ou não líticas ou civis, de virtudes purifica-
as outras. Em S. Theol., I-ll a, Q. doras, purgatórias ou catárticas.
LXI, 4, Santo Tomás refere-se à op!l- A doutrina platônica das quatro
nião de São Gregório sobre a mútua virtudes cardeais estava tão difundi-
implicação das virtudes e manifesta da na Idade Média, que foi, com fre-
que as quatro virtudes encontram-se quência, objeto de iconografia. O
mutuamente implicadas, na medida simbolo da prudência, prudentia,
em que se qualificam umas às outras, costumava ser um livro; o da Jjusti-
721 VIRTUDE

ça, Iustitia, uma espada — que ain- doutrina do direito (Metaphysische


da aparece na figura da Justiça com Anfangsgrúunde der Rechtslehre) e a
os olhos vendados e uma balança na segunda, Princípios metafísicos da
mão; o da fortaleza, vis ou fortitu- doutrina das virtudes (Metaphysische
do, um escudo; o da temperança, Anfangsgrunde der Tugendlehre). À
temperantia ou moderatio, rédeas. doutrina do Direito, ou doutrina do
Na Epoca Moderna, a concepção Justo, investiga o princípio das ações
da virtude e a classificação das vir- humanas e externas, e compreende
tudes segue o modelo da Antiguida- o Direito privado e o Direito públi-
de e da Idade Média. Entretanto, há co. A doutrina das virtudes investi-
dois aspectos importantes na idéia de ga o princípio das ações humanas iIn-
virtude que foram especialmente cul- ternas. A doutrina das virtudes (Tu-
tivados na Epoca Moderna. Por um gendlehre) é a ética, antigamente
lado, deve-se levar em conta o senti- chamada ““doutrina dos costumes”
do de “virtude”, virtu, em Maquia- (Sittenlehre) ou philosophia moralis,
vel. A virtu maquiavélica parece e também ““doutrina dos deveres”
muito pouco ““virtuosa” no sentido (Pflichten) (Metaphysik der Sitten,
tradicional, mas conserva traços de ed. org. por K. Vorlânder, 379).
prudência sagaz e de consciente for- Entre as virtudes, Kant destacou
titudo. Por outro lado, discutiram-se a fortaleza e a prudência. Vários au-
muito na Época Moderna as ques- tores opuseram-se às idélas kantia-
tões relativas ao caráter subjetivo (ou nas, denunciando seu caráter exces-
individual) e social das virtudes. sivamente ““rígido” e, em especial,
Continuou sendo comum, na Épo- a sua dependência da noção de ““de-
ca Moderna, associar ““virtude” a ver”, além de seus traços demasia-
“hábito”. Trata-se de um hábito, ou do ““ndividualistas”. Assim, por
disposição, proceder em conformi- exemplo, Schiller sentiu falta, no
dade com a intenção moral. Supõe- conceito kantiano de virtude, do ele-
se que é preciso vencer os obstácu- mento da espontaneidade. Nietzsche,
los que se opõem a esse procedimen- com distinto ânimo, criticou o ““mo-
to (e a essa intenção). A virtude tam- ralismo” kantiano e, em geral, des-
bém é concebida como o ânimo e a tacou o sentido originário e mais for-
coragem de obrar bem ou, segundo te de “virtude”, virtus, como potên-
Kant, como a fortaleza moral no cia. Outros autores assinalaram que,
cumprimento do dever. A obra de a rigor, não há virtudes individuais
Kant citada como Metafísica dos ou pessoais, mas somente sociais.
costumes (Metaphysik der Sitten), Discutiu-se com frequência a pos-
distinta da Fundamentação da me- sível relação entre virtude (exercício
tafísica dos costumes (Grundlegung das virtudes) e felicidade. Como Já
ocorreu nas escolas antigas, pergun-
zur Metaphysik der Sitten), compõe-
tou-se se a virtude pode conduzir à
se de duas partes: a primeira parte felicidade ou se, em princípio, é in-
intitula-se Princípios metafísicos da
VONTADE 722

dependente dela; se um é feliz por- Embora o papel que desempenhou


que é virtuoso ou se pode ser virtuo- o conceito de vontade em muitas
so sem ser feliz. A solução para o doutrinas morais e teológicas seja
problema depende, em grande par- fundamental, esse conceito baseou-
te, do sentido que se dê a ““felici- se quase sempre em considerações
dade”. Se “feliz” se define como que qualificaremos, anacronicamen-
“consciente de que se pratica a vir- te, de “psicológicas”. Mesmo con-
tude”, a virtude e a felicidade pode- finadas a elas, a variedade de opi-
rão identificar-se. Se se define ““fe- niões a respeito da natureza ou das
liz”* de outro modo, pode haver ou características da “vontade” não
não coincidência entre virtude e fe- deixa de ser considerável.
licidade. Também se continua discu-. Em primeiro lugar, enquanto mui-
tindo se a virtude é um bem por si tos autores — a rigor, a maioria até
mesma Ou se é um caminho para al- ao século XVIII pelo menos — con-
cançar o bem — seja esse o que for. ceberam a vontade como uma deter-
E característico dos pensadores (não minada vontade humana, outros fa-
muito numerosos) que hoje se ocu- laram dela como abreviatura de cer-
pam com detalhe do problema da tos atos: os atos voluntários ou vo-
virtude e das virtudes contribuírem lições. Neste último caso, a própria
com descrições psicológicas, fenome- palavra “vontade” resulta suspeita,
nológicas e caracterológicas. visto que, se tomada literalmente, le-
va à reificação dos mencionados atos
VONTADE O conceito de vontade numa espécie de “entidade”. O in-
foi tratado no decorrer da história da teresse em evitar semelhante reifica-
filosofia desde quatro pontos de vis- ção explica que, tanto em textos fi-
ta: (1) psicologicamente (ou antropo- losóficos quanto psicológicos, a pa-
logicamente), falou-se da vontade lavra “vontade” se use hoje menos
como de certa faculdade humana, frequentemente do que antes, ou se
como expressão de certo tipo de atos; use apenas como uma abreviatura
(2) moralmente, tratou-se a vontade mais ou menos cômoda.
em relação com os problemas da in- Independentemente dessa diver-
tenção e com as questões referentes gência, houve muitas outras diferen-
às condições requeridas para alcan- ças de opinião sobre o conceito de
çar o Bem; (3) teologicamente, o vontade (diferenças essas que surgi!-
conceito de vontade foi usado para ram especialmente entre os autores
caracterizar um aspecto fundamen- que, embora sem decidida intenção
tal e, segundo alguns autores, o as- de ““reificar” os atos voluntários, fa-
pecto básico da realidade, ou perso- laram sem rodeios da ““vontade””).
nalidade, divina; (4) metafisicamen- Assim, alguns deles insistiram no ca-
te, considerou-se, às vezes, a vonta- ráter irredutível, ou relativamente 1r-
de como um princípio das realidades redutível, da vontade — ou até dos
e como motor de toda mudança. atos voluntários. Distinguiu-se, en-
723 VONTADE

tão, de um lado, entre a vontade e siderou a vontade uma espécie de fa-


o desejo (ou o mero impulso) e, de culdade “intermediária”. Está abai-
outro, entre a vontade e a inteligên- xo da faculdade racional ou da ra-
cia ou a razão. Outros, em compern- zão que dirige (ou deve dirigir) o ho-
sação, opinaram que a vontade en- mem (assim como a sociedade), mas
contra-se sempre em relação muito acima do apetite sensível ou do me-
estreita com outras faculdades, ou ro desejo. A vontade não é, por si
com outros tipos de atos. Em part!- mesma, uma faculdade intelectual,
cular, sublinharam-se as relações mas tampouco é uma faculdade 1r-
existentes entre atos da vontade e as racional. Seus atos executam-se em
razões que um tem, ou alega ter, pa- conformidade com a razão. Seguir os
ra “exercer a vontade”, isto é, para desejos não é exercer a vontade; é
querer algo. Os que insistiram no ca- simplesmente estar (cegamente) do-
ráter irredutível da vontade foram minado. Em outras palavras, o de-
propensos a considerá-la, de algum sejo, oópetis, pertence à ordem do
modo, como irracional — em todo sensível, ou concupiscível, ao passo
caso, como ““não-racional”*. Os que que a vontade, Bovinos, pertence à
relacionaram os atos voluntários a ordem do intelecto. Aristóteles Insis-
outros, inclinaram-se mais a consi- tiu no caráter racional ou, se se pre-
derar que a vontade é dirigida por fere, “conforme ao racional”, da
“razões ou, em todo caso, por
*

vontade. É certo que a vontade tem


“preferências”, as quais podem ser em comum com o desejo o fato de ser
objeto de deliberação. Afirmou-se, um “motor”, isto é, o fato de “mo-
por vezes, que o que se chama de ver a alma”, pois a vontade ““ape-
“vontade” é um elemento numa es- tece”. Entretanto, a vontade não
pécie de “contínuo” de “atos”, que move, como o desejo, de qualquer
vão desde os impulsos, ou desde os modo. A esse respeito, os estóicos
instintos (concebidos ocasionalmente e, a rigor, quase todos os filósofos
como impulsos mecanizados e orga- gregos seguiram Platão e Aristóte-
nicamente ““institucionalizados”'), les.
até os atos de execução, a avaliação, Do maior ou menor grau de im-
a deliberação, a preferência e a re- portância que se outorgue à vonta-
solução. de como “motora” depende o tipo
Encontramos na história da filo- de relação que se estabelece entre
sofia exemplos das opiniões acima ci- vontade e inteligência, ou vontade e
tadas e de muitas mais. A tendência, razão. O problema dessa razão foi
tanto de Platão como de Aristóteles, fundamental na filosofia da Idade
Média, não só por motivos psicoló-
foi de classificar as potências oupo-
deres da alma. Na famosa divisão tr1- gicos, mas também teológicos. Seria
partida da alma — que é, ao mesmo absurdo supor que os pensadores
tempo, uma divisão tripartida da so- cristãos tenham iniciado a esse res-
ciedade e do Estado —, Platão con- peito uma orientação inteiramente
VONTADE 724

nova, Já que as opiniões de Platão Escoto. Em S. Theol., q., LXXXII,


IL,

e Aristóteles — assim como as dos Santo Tomás opina que: (1) a von-
neoplatônicos e, em menor medida, tade não está submetida, em nenhum
dos estóicos — pesaram muito na dos seus atos, à necessidade, e 1sso
elaboração da teologia cristã. Além a ponto de vontade e livre arbítrio
disso, em alguns casos, como em (ver) não serem duas potências dis-
Santo Tomás, as doutrinas sobre a tintas, mas uma só; (2) a vontade não
natureza da vontade alicerçaram-se quer necessariamente tudo o que
em bases aristotélicas. Não obstan- quer; (3) embora pareça que, sendo
te, a nova idéia do homem — assim o Bem o objeto formal da vontade,
como a idéia do “homem novo” —, esta tem de ser a mais elevada das
que abre caminho no cristianismo e potências; o objeto do intelecto é
encontra expressão em grande parte mais nobre que o da vontade, pelo
da obra de Santo Agostinho, leva que o intelecto é a potência mais ele-
não poucos autores a destacar a im- vada; (4) o intelecto move a vonta-
portância e a preeminência da von- de, mas como fim; (5) não se pode
tade, tanto no homem como em estabelecer uma distinção entre von-
Deus, e a promover desse modo o tade irascível e concupiscível, como
“voluntarismo”, geralmente contra propõem alguns autores; a vontade
o ““intelectualismo*””. Do papel de- é um apetite superior às potências
sempenhado por esse ““voluntaris- irascíveis e concupiscíveis.
mo” são testemunho, na Idade Mé- Seria errado concluir que Santo
dia, autores como São Pedro Da- Tomás deprecia a vontade em favor
mião, Duns Escoto e Guilherme de do intelecto. Ambos são motores que
Ockham, e, na época moderna, au- atuam de distintas formas: a inteli-
tores como Descartes. Comum a to- gência move a vontade por meio de
dos eles ou, pelo menos, aos três úl- objetos, e a vontade move a si mes-
timos, é a idéia de que há na alma ma em função do fim proposto. En-
ações e paixões, de que entre as ações tretanto, há uma certa preeminência
figuram os atos intelectivos, de que do intelecto em Santo Tomás, que dá
todas as ações se encaixam na, ou 1n- toda a sua força à expressão (calca-
clusive se reduzem à, vontade e de da de Aristóteles) appetitus intellec-
que, portanto, os próprios atos 1n- tualis e à idéia de que não se quer na-
telectivos estão dirigidos pela vonta- da que não se conheça previamente,
de. Em todo caso, só podem ser aju!- nihil volitum quin praecognitum.
zados mediante um ato de vontade. Como é característico de Santo To-
A contraposição entre a tendência más não adotar posições extremas,
para destacar a vontade e a tendên- ele não subordina a vontade, em sua
cia para destacar o intelecto — sem ação, ao intelecto. Este move a von- »

detrimento, por outro lado, da von- tade “porque o bem, na medida em


tade — manifesta-se nas opiniões que é compreendido, é o objeto da
opostas de Santo Tomás e de Duns vontade e move-a com um fim”, en-
725 VONTADE

quanto a vontade, como agente, lherme de Ockham são demasiado


move o intelecto (S. Theol., LI. q. sutis para que possam reduzir-se a
LXXXIII, resp.). Contudo, o pen- tão simples fórmulas, pois nem se-
samento de Santo Tomás apresen- quer lhes convém literalmente o qua-
ta-se como relativamente ““intelec- lificativo de “voluntarismo*”. Mas é
tualista””, comparado ao de Duns Es- óbvio que há neles uma tendência a
coto. Para este, a vontade é um ver- destacar psicológica, moral e teolo-
dadeiro motor, que impulsiona e diÓ1- gicamente a preeminência da von-
rige o movimento em todo o reino tade.
das faculdades. As consequências O tema da vontade, em teologia,
dessa opinião fazem-se sentir não só psicologia e epistemologia, ocupou
em ““psicologia”* mas também, e de um lugar importante na Epoca Mo-
um modo especial, na moral e na derna — para começar, no que cha-
teologia. :Neste último domínio, cum- mamos de Época Moderna ““clássi-
pre citar não só o voluntarismo de ca”, aproximadamente os séculos
Escoto, mas também a noção de XVII e XVIII. Duas grandes tendên-
vontade suprema de Deus, que se ex- clas se manifestaram e se enfrenta-
pressa na teologia de Guilherme de ram, dependendo do tipo de rela-
Ockham. Considere-se (em termos ções, ou falta de relações, que se con-
simplificados) a contraposição entre siderou serem mantidas entre a von-
Santo Tomás e Duns Escoto ou Gui- tade e o intelecto.
lherme de Ockham a tal respeito. To- A primeira tendência é a dos ra-
dos eles sustentam que o fundamen- cionalistas, incluindo os mais desta-
to do Bem encontra-se em Deus. En- cados: Descartes e Leibniz. Parece
tretanto, para Santo Tomás, Deus estranho colocá-los sob o mesmo
quer segundo o que é bom, não por- qualificativo na questão que nos ocu-
que esteja subordinado a um reino pa, porque Descartes é decididamen-
inteligível do Bem, mas simplesmen- te voluntarista. Considera que a von-
te porque existe perfeito acordo en- tade é a faculdade de assentir ou ne-
tre o querer divino e o Bem, entre a gar o juízo; a vontade é “infinita”
volição da vontade e a idéia de bon- com respeito ao intelecto, que é ““fi-
dade. Isso parece ser para Duns Es- nito””. Além disso, Descartes enfa-
coto, e também para Ockham, uma tiza O caráter absoluto da decisão di-
“redução” da onipotência de Deus vina. Mas nada disso o impede de re-
— de sua infinita onipotência. Algo lacionar a vontade com o intelecto;
é bom porque Deus assim quer, se O que ocorre é que só a primeira de-

bem que Deus só queira o que é bom. cide, de modo que o ato intelectual
Um filósofo ““voluntarista” do sécu- é um ato da vontade — como o são,
lo XIX, Charles Secrétan, definiu aliás, todos os atos, ou ações, ao
Deus como aquele que pode dizer: contrário das paixões. Zubiri afir-
“Eu sou o que quero ser.” O pensa- mou que o voluntarismo de Descar-
mento de Duns Escoto e o de Gui- tes é paradoxal, porque é um volun-
VONTADE 726

tarismo da razão. Em todo caso, começo da ação. Se esta resulta de


Descartes pode ser, ao mesmo tem- uma deliberação, nem por isso o ato
po, voluntarista e racionalista, mas voluntário fica “intelectualizado*”*; o
não é, em compensação, intelec- referido ato continua sendo um co-
tualista.
o
Leibniz opõe-se a Descartes a res-
meço que não necessita de outra eta-
pa intermédia para realizar-se por 1n-
peito do voluntarismo, mas não a teiro. De um certo ponto de vista, os
respeito do racionalismo. Embora na empiristas são voluntaristas. Não:
filosofia leibniziana a idéia de cona- porque considerem que a vontade,
tus seja importante — como são im- ou os atos voluntários, são preemi-
portantes em Leibniz as noções de nentes, mas apenas porque não são
força e de dinamismo — ele consi- “nem racionais, nem intelectuais”.
dera (já num escrito de 1667 sobre Os empiristas tendem a equiparar O
“um novo método para aprender a ato voluntário à execução da ação.
ensinar a jurisprudência”) a vonta- Portanto, não há primeiramente um
de um conatus ““que se origina no intelecto que determina o ato volun-
pensamento ou que tende a algo re- tário, nem mesmo um ato de vonta-
conhecido pelo pensamento como de que atue como motor da ação. O
bom”. Em Animadversiones in par- que se chama “ação” inclui o ato vo-
tem generalem principiorum carte- luntário, de modo que não faz sen-
sianorum, de 1692 (parte [, ad art. tido pensar que há pura e simples-
31, 35 [Gerhardt, IV, 361]), Leibniz mente um ato de vontade sem a ação
indica, contra Descartes, que “não correspondente.
admite que os erros dependam mais Kant destaca o aspecto moral da
da vontade do que do intelecto. Dar vontade. Quando a vontade é autô-
crédito ao que é verdadeiro ou ao noma e não heterônoma, quando dá
que é falso — sendo o primeiro co- origem à lei (moral) e não se encon-
nhecer e o segundo errar — const!- tra subordinada a prescrições depen-
tui apenas a consciência ou a memoó- dentes de fins alheios a ela, chama-
ria de certas percepções ou razões e, se boa vontade. Esse é o sentido pri-
portanto, não depende da vontade, mário e mais importante de ““vonta-
exceto enquanto possamos ser leva- de””. A boa vontade possui um va-
dos, por algum esquema oblíquo, ao lor absoluto com independência dos
ponto em que nos parece ver o que resultados obtidos.
desejamos ver, ainda que sejamos Em muitos casos, o estudo do con-
efetivamente ignorantes disso”. Em ceito de vontade está associado ao do
suma, “só queremos o que se apre- conceito de liberdade (ou falta de li-
senta ao intelecto”. berdade). Se se concebe a vontade
A segunda tendência é a dos em- como um “motor”, pode-se afirmar,
piristas, de Hobbes a Hume. Co- em princípio, que há vontade sem
mum a eles é a idéia de que não existe que haja liberdade ou livre arbítrio;
apetite racional. O ato voluntário é o que se chama ““vontade” pode ser,
727 VONTADE

no fim das contas, um “movimento querer, desempenha um papel fun-


natural”. O determinismo da vonta- damental no pensamento de Maine
de pode estar baseado, aliás, não só de Biran, que altera o princípio car-
numa certa concepção da Natureza tesiano Cogito ergo sum, reformu-
ou do que se qualificou de ““causali- lando-o como Volo ergo sum. O que-
dade da Natureza”, mas também na rer no sentido de Maine de Biran está
idéia de que o ato voluntário está ligado ao “sentimento do esforço”.
completamente determinado por Com ele se elabora uma epistemolo-
“razões”. Na grande maioria dos ca- gia que foi denominada ““realismo
SOS, OS autores que se empenharam volitivo”', da qual encontramos exem-
em averiguar no que consiste e co- plos, elaborados independentemen-
mo funciona a vontade não admit!- te de Maine de Biran, em autores tão
ram o determinismo, ou considera- distintos quanto Dilthey, Peirce,
ram ponto pacífico que ele não exis- Frischeisen-Kóhler e Max Scheler.
te. Kant admitia um determinismo, Schopenhauer desenvolveu uma
sob a forma de rigoroso encadea- filosofia segundo a qual a vontade
mento causal, no reino natural que, é o fundo último da realidade. A
aliás, só conhecemos sob o aspecto Vontade não se acha limitada, segun-
fenomênico. Não há determinismo
do Schopenhauer, pelas categorias
no reino moral, ou reino dos fins de espaço, tempo e causalidade, as
morais. Pode-se falar nele, sem ro-
deios de vontade e de liberdade. quais são aplicáveis aos fenômenos,
Fichte considerou que entre o enquanto que a Vontade é uma rea-
idealismo e o materialismo há uma lidade em si, ou numênica. Encon-
tra-se em Schopenhauer a noção de
opção radical e definitiva; somente
a escolha do idealismo permite ad-
vontade de viver. A Vontade objeti-
mitir a liberdade. A esse respeito ca- va-se produzindo as Idéias. Para
beria dizer, paradoxalmente, que ““o Nietzsche, a vontade é basicamente
idealismo é necessário”. A liberda- vontade de poder ou vontade de do-
de é exercida por meio da vontade mínio. Essa vontade está ligada à
pura, a qual não só vence os obstá- transmutação de todos os valores ou
culos, como, inclusive, os cria para transvalorização.
vencê-los. Assim, a vontade pura — Vários filósofos de fins do século
numa acepçãodistinta da pura “boa XIX e começos do XX trataram da
vontade” de Kant e também da vontade como uma noção central.
“vontade pura” na “crítica da von- São exemplos Wundt, Lachelier e
tade pura”' de autores como Her- William James. Tanto a psicologia
mann Cohen — tem um sentido me- quanto a metafísica de Wundt são
tafísico, se se quiser, metafísico por voluntaristas. Em Lachelier, a von-
ser moral. A filosofia de Fichte é um tade chega a apresentar-se como ““o
exemplo destacado de voluntarismo. princípio e o fundo oculto do que
A vontade ou, melhor dizendo, o existe”. Não se trata, porém, de um
728
VONTADE DE CRER

“princípio” abstrato (ou “especula- volições ou atos voluntários em vir-


tivo”), mas de uma realidade concre- tude dos quais determina-se a decil-
ta, experimentável como uma espé- são a ser adotada. Segundo a outra,
cie de força motriz interna. William não há tais volições ou atos volun-
James examina a vontade do ponto tários. A primeira teoria é chamada
de vista psicológico e desenvolve a ““volicionista””; a segunda, “não-
idéia de que a vontade está ligada a volicionista”* — ou, em todo caso,
alguma representação que não se en- considera-se que não depende de
contra obstaculizada por nenhuma uma ““teoria das volições”* especial
outra que lhe seja contrária. James (cf. Richard Taylor, Action and Pur-
também elaborou a noção de ““von- pose, 1964, pp. 64 e ss.).
tade de crer””, que tem para ele um
sentido simultaneamente epistemoló- VONTADE DE CRER William Ja-
gico e moral. mes destacou o caráter pragmático
As questões relativas à vontade no da noção de ““crença” em sua idéia,
pensamento filosófico das últimas ou ideal, da vontade de crer (Will to
décadas diferem das apresentadas Believe). Segundo afirma James no
nas ““metafísicas da vontade” em ensaio “The Will to Believe”, que
que foi pródigo o século XIX. Em figura como primeiro capítulo do li-
geral, a tendência é para examinar vro The Will to Believe and Other
menos ““a vontade” do que os atos Essays in Popular Philosophy (1897),
volitivos ou as volições. Alguns au- se nos propuséssemos ser completa-
tores consideram que o exame des- mente racionais, não poderíamos en-
ses atos pressupõe equacionar o pro- contrar uma base para crer (1) que
blema de se são ou não atos volun- há uma verdade e (2) que ““nossas
tários. ““O problema da vontade” es- mentes e a verdade são feitas uma
tá, segundo eles, ligado aos proble- para a outra”. Essas crenças são só
mas em que intervêm os conceitos de “uma apaixonada afirmação de de-
acaso, determinação, indetermina- sejo””. Assim, tratar de “evitar o en-
ção, etc., e requer ou que se adote gano”' e “obter a verdade” são exi-
uma posição, ou que se chegue a al- gências da paixão.
guma conclusão no tocante ao mui- Uma vez admitido que a paixão
to debatido problema do determinis- desempenha esse papel, cabe pergun-
mo contra a liberdade ou o livre ar- tar-se se podemos buscar a verdade
bítrio. Outros autores consideram tendo a razão como único guia. Wil-
não ser necessário introduzir essas liam James responde que, em mui!-
questões e que o importante é anali- tos casos, podemos fazê-lo. “Quarn-
sar as noções de ato, ação, decisão, do a opção entre perder a verdade e
deliberação, eleição, preferência, etc. ganhá-la não é fundamental, pode-
de
Essa análise pode levar à formulação mos descartar a oportunidade ga-
de várias teorias, das quais se desta- nhar a verdade e, em qualquer caso,
opor”
caram duas. Segundo uma delas, há podemos salvar-nos de qualquer
729 VONTADE DE CRER

tunidade de crer na falsidade me- posta a agir. James admite que, se


diante o procedimento de não tomar a religião não for “uma possibilida-
nenhuma decisão em absoluto até de viva”, seus argumentos ruem pe-
que tenhamos uma prova objJetiva. la base. A decisão religiosa é “im-
Em questões científicas, Isso é o que portante” porque adquirimos um
quase sempre ocorre, e também ocor- “certo bem vital*”* se cremos, e esse
re quase sempre nos assuntos huma - é um bem que perdemos
se
não cre-
nos em geral...” mos (compare-se de novo com a
Em alguns casos, entretanto, só a aposta de Pascal). A referida opção
razão é insuficiente. James defende também é “forçada”, ou seja, não
a tese de que ““nossa natureza pas- podemos deixar de tomar uma deci-
sional não só pode, mas legalmente são, pois não há uma terceira alter-
deve decidir-se por uma opção [ele- nativa — ““não há possibilidade de
ger ou decidir] entre proposições, não escolher”, escreve James, que
sempre que se trate de uma opção conclui: “Não podemos nos esqui-
autêntica que, por sua natureza, não var à questão permanecendo céticos
se pode decidir numa base intelec- e esperando que se faça mais luz,
tual, pois dizer em tais circunstâncias porque, embora desse modo evite-
'não decidas nada; deixa a questão mos o erro se a religião não é verda-
em suspenso”, é, por si mesma, uma deira, perdemos o bem se é verdader-
decisão passional”. ra, e isso de um modo tão certo co-
Segundo James, as questões mo- mo se escolhêssemos positivamente
rais e as questões religiosas não se não crer”. Em resumo, a decisão a
parecem com as científicas, porquan- respeito das questões religiosas e mo-
to “não podem esperar que haja rais é distinta das decisões relativas
uma prova sensível”. A religião, a questões acerca da natureza física.
afirma James, sustenta duas coisas: Neste último caso, as opções são
(1) “as coisas melhores são as mais “triviais” (não são “importantes”),
eternas” e (2) “estamos em melhor as hipóteses entre as quais devemos
situação agora se cremos que a afir- escolher ““não são apenas vivas” e,
mação que a religião faz é verdadei- finalmente, ““a eleição entre crer na
ra”. A decisão de crer ou não nisso verdade ou na falsidade raramente é
deve ser, diz James, “uma opção au- forçada”, isto é, quase nunca nos é
têntica”, isto é, uma opção viva, im- imposta.
portante e “forçada” (“obrigada”). James argumenta que, se nosso in-
“Uma opção viva é aquela em que telecto fosse infalível, poderia ter al-
ambas as hipóteses são vivas”, escre- gum sentido adotar a posição de es-
ve James. Isso significa que ambas perar até que tivéssemos provas mais
as hipóteses se apresentam como sólidas da verdade ou da falsidade de
possibilidades reais à pessoa que es- uma hipótese. Mas, se somos real-
colhe, e essas possibilidades são me- mente empiristas, acrescenta, ““se
didas pelo fato de a pessoa estar dis- cremos que, em nós, não tocam cam-
VONTADE DE PODER 730

painhas para nos avisar com toda las idéias de James, incluindo O
certeza de que temos a verdade ao al- “pragmatismo” como expressão de
cance da mão, parecerá ser uma fan- um “predomínio do prático”. Con-
tasmagoria ociosa predicar solene- tudo, ao contrário de James, a no-
mente que nosso dever é esperar que ção unamuniana de vontade de crer
soem as campainhas”'. Há tanto pe- tem um aspecto ““conflitante”*: crer
rigo, diz ele, em aguardar quanto em é uma reação salvadora contra a in-
crer. “Em qualquer caso, agimos e credulidade e alimenta-se desta, co-
tomamos nossas vidas nas mãos”. Se mo a fé se alimenta da dúvida.
não por outra coisa, a decisão reli-
giosa é importante porque muda VONTADE DE PODER A idéia de
nossas vidas. poder (Macht) ou potência esteve
Numa nota de rodapé, James de- sempre presente no pensamento de
clarou que a “crença é medida pela Nietzsche, mas tornou-se dominan-
ação” e que a ação requerida pela hi- te, de maneira especial, a partir de
pótese religiosa é distinta da citada Assim falou Zaratustra (Also sprach
pela ““hipótese naturalista”. Admi- Zarathustra, 1883-1891) e de Além
tiu, uma vez mais, que, se esse pres- do bem e do mal (Jenseits von Gut
suposto não é verdadeiro, ““a fé re- und Boóse, 1886), culminando nos
ligosa é mera superfluidade... e os fragmentos póstumos que a irmã de
debates em torno da sua legitimida- Nietzsche coligiu sob o título de A
de são um exemplo de vã futilidade, vontade de poder (Der Wille zur
indigno de ocupar as mentes sérias”. Macht). A mais conhecida expressão
A noção de “vontade de crer” é é a que figura neste último título —
importante no pensamento de Una- “vontade de poder”, por vezes, tam-
muno — que se teria negado, aliás, bém chamada ““vontade de potên-
a aceitar que se trata de uma ““no- cia”. E uma expressão que se lê com
ção”. Entre outros lugares, encon- muita frequência nos citados frag-
tra-se nos capítulos VI e IX de E/ mentos póstumos; neles, fala da von-
sentimiento trágico de la vida. À tade de poder como conhecimento,
vontade de crer está ligada, em Una- na Natureza, como sociedade e in-
muno, à vontade (ou instinto) de vI- divíduo, e como arte.
ver, que é simultaneamente vontade Não é fácil determinar, porém, o
(ou instinto) de sobrevivência. Una- que Nietzsche entendia por ““vonta-
muno referiu-se especificamente a de de poder”; é razoável pensar que
William James, mencionando a obra entendia coisas muito diversas, mes-
The Will to Believe (cf. supra), as- mo quando todas parecem ter uma
sim como Pragmatism, a New Na- característica comum: a de um im-
me for Some Old Ways of Thinking pulso que vai sempre “além”, que
(1907), e The Varieties of Religious não se detém nunca. Achava Nietzs-
Experience: A Study in Human Na- che que a vontade de poder expres-
ture (1902) e manifestou simpatia pe- sava um movimento destinado a
731 VONTADE DE PODER

substituir no futuro o completo ni1- Nietzsche afirma que a vontade de


lismo, mas de tal modo que pressu- poder é “a forma primitiva do afe-
punha, lógica e psicologicamente, o to (Affektform), da qual os demais
niilismo (fragmentos de novembro afetos são apenas transformações”
de 1887 a março de 1888). Não se de- (Wille zur Macht, III, 688). Todo in-
ve entender a vontade de poder em divíduo luta por poder antes de lu-
sentido psicológico, mesmo quando tar por ser feliz. O prazer ou a feli-
Nietzsche fala dela amiúde em ter- cidade não são forças motivadoras,
mos psicológicos. A vontade de po- mas apenas resultantes que acompa-
der é, antes, algo vital, orgânico e nham o poder quando este é obtido.
biológico. Por isso, ao referir-se à A vontade de poder nietzscheana
vontade de poder no conhecimento, sobrepõe-se a toda atividade indivI-
Nietzsche destaca o valor biológico dual e a toda aspiração à ““felicida-
do conhecimento. A vontade de po- de” individual. “Toda força impul-
der é entendida em função da vida. sionadora é vontade de poder”, de
Entretanto, não se equipara à von- modo que não há, além dela, qual-
tade de viver de Schopenhauer, que quer outra força física dinâmica e
Nietzsche critica justamente por se psíquica (loc. cit.). Nietzsche nega,
reduzir a um tipo de realidade psi- entretanto, que a vontade de poder
cológico-vital. Nietzsche opõe-se seja uma substância de qualquer es-
com firmeza a toda concepção da vi- pécie. Tampouco se trata de um
da como “adaptação de condições princípio ou de uma lei. A vontade
internas às externas” (Wille zur de poder é expressa em ““quanta de
Macht, III, 682). A adaptação orgãâ- força” (Kraft-Quanta). É, pois, uma
nica é meramente passiva, mas a realidade essencialmente dinâmica.
vontade é superlativamente ativa; é Mas não é dinâmica apenas na me-
Justamente “vontade de poder”, que dida em que é um devir que se con-
vai sempre do mais interno ao mais trapõe ao ser. A vontade de poder
“externo”, que consiste em manifes- — que é, diz Nietzsche, ““a essência
tar-se e “expandir-se” sem cessar. intima do ser” [da realidade] — não
Daí a oposição de Nietzsche ao dar- é ser nem devir, mas pathos. O que
winismo, que enfatiza a “domestica- chamamos de ““vida”* é somente a
ção” do homem. forma mais conhecida do ser e é, es-
Nietzsche trata de concentrar a no- pecificamente, “uma vontade para
ção de vontade de poder na idéia de a acumulação da força” (Wille zur
uma força universal impulsora. Não Macht, III, 689).
tem simplesmente um sentido orgâ- A noção de vontade de poder está
nico ou vital, nem é, tampouco, uma estreitamente relacionada com a de
espécie de impulso inerente a toda “transmutação de todos os valores”
matéria. De uma certa maneira, é ou ““transvaloração”, e com a de
uma realidade “metafísica” — em- “eterno retorno”* — se bem que es-
bora uma ““metafísica do aquém”. ta última pareça incompatível com
732
VONTADE DE VIVER

uma vontade de poder em contínua diante do ser fenomênico. Escreve


expansão. Nos fragmentos póstumos Schopenhauer: “A Vontade é a col-
de Nietzsche, essas três noções sa em si, o conteúdo Interno, a es-
acham-se frequentemente entrelaça- sência do mundo. A vida, o mundo
das, mas a de vontade de poder pa- visível, o fenômeno, é tão-somente
rece ser a predominante. o espelho da vontade.” (IV, 54) À
A vontade de poder opõe-se à vontade de viver não é uma especi-
“vontade de verdade”, da qual ficação da Vontade: vontade de vi-
Nietzsche fala depreciativa e sarcas- ver e vontade são, segundo Schope-
ticamente no começo de Além do nhauer, o mesmo.
bem e do mal (Jenseits von Gut und Cabe falar da vontade de viver
Bose, $$ 1-4). Por quê, pergunta schopenhaueriana em sentido orgãâ-
Nietzsche, a verdade em vez de nico e “vital”* ou em sentido meta-
“não-verdade”*? Quando os filóso- físico, mas 1sso apenas porque ““or-
fos falam da verdade, exprimindo gânico-vital”º e ““metafísico”* (ou
uma ““vontade de verdade”, enga- “em sil”) são termos intercambiáveis.
nam a si mesmos; em última análi- O indivíduo nada pode fazer pe-
se, seu pensamento está guiado por rante a vontade de viver; a força que
seus ““instintos”. Um falso juízo, essa tem impõe-se de tal modo a ele
afirma Nietzsche em uma de suas que o viver se apresenta ao indivíduo
mais famosas passagens (1bid., $ 4), como um valor. Entretanto, a refle-
não constitui objeção contra ele, o xão filosófica leva-o a dar-se conta da
importante é saber se o juízo serve dor da vida, do caráter incompleto e
ou não para manter e fomentar a vl- imperfeito da vida. Por isso, a cons-
da. Se a mantém e a fomenta, não ciência pode se impor à tirania da
importa a sua não-verdade. Colo- vontade de viver mediante o conhe-
car-se além do bem e do mal é o ca- cimento, a contemplação artística, a
minho para a vontade de poder — compaixão e a renúncia — melhor di-
a menos que seja a expressão dessa zendo, conhecimento, contemplação
vontade de poder. artística, compaixão e renúncia são
as etapas mediante as quais vai se
VONTADE DE VIVER Em O mun- constituindo a consciência de que o
do como vontade e representação puro viver não é o bem supremo.
(Die Welt als Wille und Vorstellung), A idéia de Schopenhauer da von-
Schopenhauer fala da vontade de v1- tade de viver é semelhante, em alguns
ver ou vontade de vida, Wille zum aspectos, à idéia de Nietzsche de von-
Leben. Essa vontade é ““o incessan- tade de poder (ver) e à idéia de Sim-
te e cego impulso” para incorporar mel segundo a qual a vida quer sem-
e levar a cabo o tipo de sua espécie pre “mais vida”. Entretanto, difere
contra todos os obstáculos. A von- desta última porquanto a vida não
tade de viver é a realidade em si dian- é valorizada por si mesma. À vonta-
te da representação, o ser numênico de de viver é irresistível; nem por
733 VONTADE DE VIVER

Isso é intrinsecamente desejável. lavra vazia. Não se pode tratar de


Nietzsche se opôs à concepção de uma vontade de viver, afirma Nietzs-
Schopenhauer por considerar que era che, porque ““a própria vida é um ca-
uma generalização psicológica na so especial da vontade de poder”
qual o termo ““vontade” é uma pa- (Der Wille zur Macht, III, 692).
W Ver X:
À
X A letra minúscula “x” é empre- em questão denotam indivíduos e
gada na lógica quantificacional ele- denominam-se ““variáveis indivi-
mentar como símbolo de um argu- duais””. Na lógica da identidade, “x”
mento. É o caso, por exemplo, de representa o nome de uma entidade.
“x” em “FO”. Por isso, a letra “x” Na lógica das descrições, “(1x)” é
é chamada de ““letra argumento”. uma abreviatura de ““o x tal, que”.
Outras letras usadas com o mesmo Na lógica das classes e das relações,
propósito são “wW”, “y”, “z”. Em CSI e CY”, o”, CFP chamam-se
caso de necessidade, usam-se as “variáveis enchapeladas** e entram
citadas letras seguidas de linhas: na composição dos ““abstratos”* sim-
ATI o, x” o, ey o, o,
Em oess ples ou duplos, ou nomes de classes
ex nr, yTA, ZU, eto. Na lógica e relações (diádicas), respecti-
quantificacional superior, as letras vamente.
Y Ver XY.
7 Ver X.
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