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cartas para minha avó

djamila ribeiro

Cartas para minha avó


Copyright © 2021 by Djamila Ribeiro

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e imagem de capa


Giulia Fagundes/ Estúdio Daó

Foto de miolo
Acervo da autora

Preparação
Stéphanie Roque

Revisão
Camila Saraiva
Marise Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Ribeiro, Djamila
Cartas para minha avó / Djamila Ribeiro. — 1a ed. — São
Pau­lo : Com­pa­nhia das Letras, 2021.

isbn 978-65-5921-091-6

1. Cartas brasileiras i. Título.


21-69935 cdd-b869.6
Índice para catálogo sistemático:
1. Cartas : Literatura brasileira b869.6
Cibele Maria Dias – Bibliotecária – crb-8/9427

[2021]
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Para Iemanjá e Oxum
Querida vó Antônia,

Minhas lembranças de você têm gosto de manga verde


e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e jantar às seis da
tarde. Você me adoçava a boca e benzia a alma. “É cobreiro,
tem que benzer.” Ou: “Essa menina está aguada, dê o que ela
quer comer”. Eu amava passar minhas férias na sua casa,
sentir o amor em sua melhor forma.
Guardo na memória os mimos, as broncas na minha
mãe quando ela brigava comigo, o cheiro do Yamasterol no
cabelo. As mesadas que me dava escondido, os passeios com
o tio Edson. Como meus pais não tinham carro, uma das
minhas maiores alegrias era saber que o tio Edson estava
indo a Santos me buscar para passar férias com você em
Piracicaba. Lá em casa, só quem passava de ano direto tinha
esse benefício. Muitas vezes fui sozinha, sem Denis, Helder

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e Dara — o que eu adorava, confesso, pois sem meus irmãos
por perto teria você só pra mim. Quando Dara ia, a gente
não somente disputava sua atenção, mas também disputava
para ver quem atenderia aquele telefone bonito que você ti‑
nha. A vencedora sempre acabava caçoando da perdedora.
Como morava em apartamento, eu adorava brincar pe‑
la sua casa, vó, correr pelo quintal, subir nas árvores, fugir
dos meus primos que colocavam cigarras no bolso para me‑
ter medo em mim. “Parem de assustar sua prima”, você di‑
zia. Eu admirava sua coragem em acender uma tocha de
fogos para queimar a casa que os marimbondos insistiam em
construir na entrada da sua casa no bairro São Dimas.
“Quando algum te picar, quero ver você sentir pena”, dizia
quando eu lamentava a morte dos bichos. Aliás, foi numa
dessas férias com você que eu fui picada pela primeira vez
por uma abelha. Voltei chorando para casa, aos berros, e
você gritando “O que foi, menina?”. Foi toda uma operação
de guerra para conseguir tirar o ferrão. Depois, você passou
uma mistura de ervas que fez meu braço desinchar rápido,
e logo eu estava na rua de novo.
Lembro das idas ao supermercado, onde eu podia com‑
prar tudo o que eu quisesse. “Minha neta de Santos está
aqui”, você dizia para as vizinhas quando ia comprar pão.
Ficava tão orgulhosa, tão animada. Nem bronca você conse‑
guia dar direito em mim. Uma vez, quando eu era adolescen‑
te e minha mãe me pegou fumando, ela fez um baita drama.
Reagi: “Você também fuma, mãe!”, e dona Erani ficou sem
respostas — o que era raro, você sabe. Uma das saídas que ela

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encontrou foi dizer que se você estivesse viva me daria uma
bronca. É claro que você não gostaria de saber que eu estava
fumando, mas eu sabia que somente me diria para não fazer
mais. Eu não gostava de fumar, só queria entrar na moda dos
cigarros com gosto de canela.
Logo após esse flagra, fui passar férias em Piracicaba, e
minha mãe encarregou o tio Edson de brigar comigo. O má‑
ximo que ele conseguiu falar, enquanto eu lavava a louça, foi:
“E o cigarrinho?”. Eu entendi o recado, não respondi, e ele
não voltou a tocar no assunto. No dia seguinte, meu tio e eu
combinamos de mentir que eu havia levado o maior sermão
para agradar minha mãe. Ainda bem que ela nunca soube a
verdade. Dona Erani sempre dizia que eu levava todo mun‑
do no bico.
Lembro também, vó, de seu colo quente e amoroso, das
suas mãos rápidas que benziam meu corpo enquanto sussur‑
rava rezas quase incompreensíveis. As mesmas mãos que
benziam eram as que preparavam comidas fartas e apetitosas
no domingo. Que saudade de suas mãos lindas, mãos com
história, com calos, mas macias ao acarinhar e trançar meus
cabelos. Hoje tento entender o significado de certo mistério
que te envolvia. As histórias de ninar que você me contava,
tão doces e delicadas, contrastavam com aquelas que minha
mãe contava sobre você, histórias que falavam de uma mu‑
lher brava, que batia nos filhos, “atirava tudo o que via pela
frente”. (Aliás, minha mãe detestava o nome Erani Benedita
e não fazia a mínima cerimônia em dizer isso. Ser chamada

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