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Abaeté, Rede de Antropologia Simétrica

Entrevista com Márcio Goldman e


Eduardo Viveiros de Castro

entrevistadores ARISTÓTELES BARCELOS NETO, DANILO RAMOS, MAÍRA


SANTI BÜHLER, RENATO SZTUTMAN, STELIO MARRAS E VALÉRIA MACEDO

No �nal de 2004, dois professores do Progra- autoria coletiva capaz de dar margem a uma
ma de Pós-Graduação em Antropologia Social obra aberta.
do Museu Nacional (UFRJ), Marcio Goldman A conexão entre campos semânticos – e tam-
e Eduardo Viveiros de Castro, idealizaram a bém etnográ�cos – heterogêneos é justamente
Rede Abaeté de Antropologia Simétrica visando o alvo da rede Abaeté, e não surpreende que os
reunir pesquisadores de diferentes áreas e ins- campos evocados no Manifesto Abaeté1 digam res-
tituições e promover discussões antropológicas peito ao histórico de pesquisa dos idealizadores em
para além do ambiente de especialização que questão. Viveiros de Castro é o que se pode cha-
caracteriza o cenário acadêmico das ciências mar de “etnólogo”. Pesquisou entre os Araweté,
humanas na atualidade. grupo de língua tupi-guarani no sudeste do
A melhor maneira de fazer funcionar essa Pará, e já há mais de uma década se dedica ao
rede, que embora esteja adensada no Museu estudo do que ele cunhou como “perspectivismo
Nacional não pretende ter uma sede �xa, foi a ameríndio”, modo de pensar que rejeita dua-
criação de uma página wiki, na qual é possível lismos típicos do pensamento ocidental-moder-
desenrolar discussões e produzir textos coletivos, no. Já Marcio Goldman voltou-se à chamada
(no sistema wiki, toda pessoa que acessa a pá- “antropologia das sociedades complexas”. Além
gina pode mudar o conteúdo do que lê, e todas de ter se debruçado sobre capítulos da história
as outras pessoas que acessam podem ver essas da antropologia, desenvolve suas pesquisas na
modi�cações). O wiki Abaeté (http://abaete. cidade de Ilhéus (sul da Bahia), tratando de
wikia.com) seguiu, nesse sentido, o exemplo do temas como participação política, movimentos
wiki Amazone (http://amazone.wikia.com), do culturais e religiões afro-brasileiras.
Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI), Ao apostar na conectividade, Goldman e
coordenado por Viveiros de Castro. No wiki Viveiros de Castro buscam diluir as fronteiras
Amazone, Viveiros de Castro disponibilizou estabelecidas entre a “etnologia indígena” e a “an-
partes de um livro seu em preparação sob a for- tropologia das sociedades complexas”. Nesse senti-
ma de um texto-piloto, “A onça e a diferença”. do, eles atentam contra os “grandes divisores”, estes
Seu objetivo era substituir o mar de citações, do
qual é composto um texto, por um processo de 1. Disponível em http://abaete.wikia.com

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que separam em mundos incomunicáveis “nós” e toral. O autor deixa de ser Viveiros de Castro
os “outros”, produzindo não raro assimetrias do ou Goldman, individualmente ou em parceria,
tipo “nós sabemos, eles crêem”, “nós temos antro- ou mesmo o conjunto de intervenções realizadas
pologia e �loso�a, eles possuem crenças e visões de por outros autores nos textos disponibilizados. O
mundo”. Em vez des “grandes divisores”, é preciso, autor passa a ser, então, a própria Abaeté, um
eles alertam, pensar em “pequenas multiplicida- “coletivo” ou “rede de associações”. Nesse senti-
des”. Em outras palavras, não se trata de abolir do, como consta no texto-piloto, “Simetria, re-
as diferenças entre os mundos, mas, a partir de versibilidade e re�exividade”, Abaeté adquire o
conexões transversais, capturar formas singulares estatuto de um parlimpsesto, ela é um “objeto
de pensar e agir que podem ser traduzidas umas discursivo em situação de interpolação, enun-
nas outras por meio de uma imaginação concei- ciado por uma multiplicidade autoral antes que
tual mais apurada. por autores múltiplos”.
A “antropologia simétrica”, expressão cunhada
por Bruno Latour, é então eleita como antídoto a
esses “grandes divisores” na medida em que per- Idéias
mite o estabelecimento de um diálogo não apenas
entre áreas do conhecimento, mas entre mundos, A idéia da Rede Abaeté veio de uma expe-
por exemplo, o mundo ameríndio e o da ciência riência anterior feita por um de nós (Eduardo
moderna. A�nal, se todos somos nativos, todos so- Viveiros de Castro): a tentativa de elaboração de
mos, de um ponto de vista reverso, antropólogos, um texto “coletivo” por meio da Internet. Trata-
como propôs Roy Wagner. Nessa dupla condição se do Projeto AmaZone, que permanece ativo na
comum, e nessa possibilidade de transitar entre rede, no endereço http://amazone.wikia.com/
esses pontos de vista, é que se estabelece uma re- wiki/Projeto_AmaZone. Esta página é ligada ao
�exividade propriamente antropológica, como NuTI (Núcleo de Transformações Indígenas),
sustentou Marilyn Strathern. Wagner, Strathern que reúne pesquisadores da área de etnologia
e Latour são considerados inspiradores da Rede indígena. Em função disso, aconteceram alguns
Abaeté de Antropologia Simétrica. Seguindo os encontros no Museu, em princípio para que es-
seus atalhos, fortemente críticos a uma antropolo- ses pesquisadores apresentassem seus trabalhos.
gia standard, torna-se possível aproximar os estu- Mas aí aconteceu algo de relativamente inédito,
dos sobre os “outros” e sobre “nós mesmos” de modo ao menos no Museu Nacional: muita gente que
a desestabilizar os modelos teóricos dominantes e não trabalha especi�camente com etnologia se
enfatizar que o conhecimento antropológico não interessou pelos encontros e pelas discussões.
é jamais re�exo de um ponto de vista neutro ou Imaginamos então, inicialmente, criar uma pá-
total e só pode ser construído na interlocução com gina parecida com a AmaZone, e, depois, tentar
aqueles entre os quais se estuda. estabelecer uma rede, a Abaeté.
A idéia de que o conhecimento antropológico
é construído em rede ressoa, en�m, na experiên- Desconexões, reconexões
cia de diluição da autoria. Como frisam Gold-
man e Viveiros de Castro, na entrevista que se A rede busca uma nova forma de conexão
segue e na qual as falas de ambos se encontram entre pessoas mais interessadas em pensar e dis-
propositalmente fundidas, a internet e o wiki cutir o que os antropólogos estão efetivamen-
servem como instrumentos para a produção de te fazendo hoje do que aquilo se ensina como
um texto que é fruto de uma multiplicidade au- antropologia na universidade. Como observou

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Tim Ingold, a distância entre essas duas antro- mas a idéia é reunir pessoas interessadas (e, se
pologias parece aumentar a cada dia. A forma possível, também interessantes), antropólogos
rede é importante. Buscamos maneiras de criar ou congêneres. A nossa idéia é de fato borrar as
conexões que não se assemelhem ao modelo fronteiras entre os autores, produzir uma certa
das associações pro�ssionais, ou do grupo de multiplicidade autoral, mudar um pouco o re-
pesquisadores que se juntam para fazer um gime de enunciação da produção antropológica,
projeto, obter um �nanciamento etc. Esses que é um regime clássico do autor individual
modelos são perfeitamente normais e admirá- (singular ou plural, pouco importa) que escreve
veis, claro, mas será que não temos criatividade um artigo ou livro e publica citando outros, os
su�ciente para usar o tipo de experiência que a quais entram em seu texto unicamente através
antropologia suscita e promover outras formas das aspas. A Rede Abaeté e o AmaZone buscam
de associação? Vários planos estão em jogo: as outras formas de conectar pessoas dentro de um
formas de associação, os modos de transmissão mesmo discurso que não seja a forma das aspas,
do saber e das experiências de cada um, o cru- mas que envolva o outro na produção de um
zamento de divisões internas, e assim por dian- texto que não é mais individual. O que não quer
te. Nesse sentido, a fronteira entre as chamadas dizer que é de todos, já que a diferença entre esse
“etnologia indígena” e “antropologia das socie- autor múltiplo e o mundo é grande. O texto não
dades complexas” é particularmente perniciosa, resulta de/em um consenso, pois a idéia é emitir
porque tende a barrar esse tipo de conexão. proposições radicais mas que não estejam assina-
das por um autor e que nem caiam no regime do
Outras formas de associação: Wiki “ele disse e eu não concordo”, mas que produza
uma multiplicidade autoral, como resultado do
A Rede Abaeté pode ser tomada como uma trabalho de várias pessoas ao mesmo tempo. Se
espécie de “sujeito” distribuído, que teria por ob- alguém �zer uma modi�cação imbecil — um pa-
jeto ou objetivo algo como a elaboração de uma lavrão ou alguma coisa desse tipo — alguém entra
antropologia simétrica, tendo no wiki seu, diga- e ao tira. Se alguém introduzir algo que traga uma
mos, método. As três coisas mantêm uma rela- contradição teórica, qualquer um pode enviar uma
ção importante. O wiki Abaeté não é uma lista mensagem para a página de discussão dizendo que
de discussão clássica da internet, em que tudo o a inserção tem de ser compatibilizada porque está
que se tem a dizer é “sou contra” ou “sou a favor” a�rmando o contrário da proposição anterior, e
disso ou daquilo. É preciso entrar no texto para assim por diante. O que fazer nesse caso? Uma
modi�cá-lo. O resultado desse processo coletivo nota dizendo que esta é uma posição especí�ca de
não é da mesma natureza de um trabalho in- fulano, ou uma correção? A questão em si é parte
dividual, ou mesmo de um com vários autores do projeto. En�m, há mil formas, mas o proble-
identi�cados, onde o(s) autor(es) controla(m) o ma não é deixar aparecer contradições ou muito
que vai ser publicado. A ferramenta wiki é para menos escamoteá-las, e sim fazer sentido. A Aba-
ser usada de uma maneira aberta a todo leitor. eté tem um texto-piloto, Simetria, Reversibilidade
A enciclopédia Wikipedia (www.wikipedia.org) e Re�exividade, inicialmente um manifesto que
é o maior exemplo do sistema: uma enciclopé- acabamos deslocando para uma página especial
dia em que todos podem entrar, escrevendo ou que não pode ser alterada, a �m de que ele perma-
corrigindo o que quiserem. No caso da Rede necesse justamente como um manifesto, ou seja,
Abaeté e do AmaZone, qualquer um que sou- uma referência. Ao mesmo tempo, expandimos o
ber o endereço também pode entrar e modi�car, manifesto, tornando-o um texto-piloto que dia-

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loga com todas as outras coisas penduradas nesse ora, o/a Abaeté é um/a wiki-rede em português,
wiki, coisas paralelas, ligadas, desdobradas a partir ou melhor, em brasileiro. Mas isso não tem nada
dele. É esse texto-piloto que deveria ser coletiva- a ver com ser uma rede periférica, que, eventu-
mente modi�cado e elaborado almente seria capaz de se estender para o centro,
uma rede que ou está dominada pelo centro,
Em rede ou vai dominar este centro… Porque esta não
é a questão! Lembremos a frase de Duchamp:
Se o wiki é um instrumento de trabalho “não há solução porque não há problema”. A
em rede, lembremos que a noção de antropo- existência da rede impede que esse problema se
logia simétrica surgiu num contexto teórico coloque enquanto tal. No caso da antropolo-
que também valoriza a noção de rede. De certo gia brasileira, a impressão que temos é que há
modo, foi Bruno Latour quem “inventou” a uma densidade su�ciente para se fazer um ex-
ambas ou, pelo menos, deu uma interpretação perimento desses: se nenhuma outra pessoa do
que nos interessa para a noção de rede e para planeta entrar na Abaeté — e não é esse o caso
a idéia de uma antropologia de nós mesmos. —, essa densidade já seria su�ciente para que as
Existe assim uma consubstancialidade primei- coisas funcionassem. A distinção entre antropo-
ra entre o Abaeté-wiki e a Abaeté-rede, e entre logia central e periférica é um fantasma que foi
eles e o tema da antropologia simétrica. Esta, criado de propósito, e que serve para uma série
ao contrário de muitos mal-entendidos em cir- de coisas. A Associação Brasileira de Antropo-
culação, opera, em parte, estabelecendo uma logia, por exemplo, usa a distinção para obter
espécie de homologia formal entre os objetos algumas compensações de associações mais
que estuda e seu próprio modo de operação. O “centrais”; alguns departamentos ou programas
que corresponde, nesse sentido especí�co, a to- usam a distinção para indicar nomes ou organi-
mar esses objetos como redes de conexão entre zar congressos (“agora o congresso tem que ser
humanos e não-humanos ou, em uma lingua- aqui porque somos a periferia e sempre somos
gem mais diretamente latouriana, em rede�nir discriminados…”); alguns criticam outros por-
objetos que não podem mais ser de�nidos sob que, supostamente, falam como se estivessem
o modo da entidade, do sujeito ou do objeto no centro quando estão na periferia; ao mesmo
puri�cados, da natureza ou da cultura puri�- tempo, os mesmos críticos se angustiam per-
cadas, e assim por diante. Nessa perspectiva, os guntando se seremos ouvidos por pessoas fora
“objetos” são sempre articulações entre dimen- daqui, como fazer para que eles nos leiam, e as-
sões, facetas, momentos diferentes, que nesse sim por diante. É preciso escapar desses falsos
sentido, são múltiplos, ou melhor, são multi- constrangimentos e colocar a verdadeira ques-
plicidades, quer dizer, são como a própria rede: tão: somos capazes de produzir idéias e de fazer
nem um nem todos, mas todos menos um, n- algo novo com essas idéias? Do nosso ponto de
1, isto é, a multiplicidade enquanto tal. vista, um dos problemas que enfrentamos atu-
almente é que as questões organizacionais e de
Nem periférico nem central política institucional estão dadas de antemão,
subordinando as questões intelectuais substan-
Por de�nição, a noção de rede é completa- tivas (como vai se falar e não o quê ou sobre o
mente refratária a qualquer diferença entre cen- quê vai se falar). Quando esse tipo de operação
tral e periférico. Uma rede não tem nem centro é praticada, já se assassinou o que há de mais
nem periferia, só pontos de adensamento. Por interessante no nosso trabalho.

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Pequenas Multiplicidades exemplo, a relação que estabelecemos entre Roy


Wagner, Marilyn Strathern e Bruno Latour ser-
Para nós, foi curioso e, até certo ponto, viu aos propósitos de um manifesto. Se fôssemos
surpreendente observar algumas reações ao escrever um artigo, essa relação seria elaborada de
que estamos tentando fazer. Alguns chegaram outra maneira, mas o texto-manifesto está elabo-
a dizer que pretendemos destruir a antropolo- rado desse jeito porque sua idéia foi aparecendo
gia; outros (às vezes os mesmos) dizem que não no cruzamento de várias coisas. A idéia de antro-
há nada de novo nisso tudo; outros admitem pologia simétrica, de Latour, surgiu como o em-
que há algo de novo, mas ressaltam que não é blema mais óbvio de uma operação que buscava
a única coisa nova que existe na antropologia. romper a separação entre os campos da etnologia
Bem, claro que concordamos com essa última indígena e o das chamadas sociedades complexas,
observação, mas achamos curioso que alguém sem negar suas singularidades. A questão que La-
considere necessário fazê-la; concordamos até tour coloca é o que signi�ca fazer antropologia na
com a idéia de que não estamos propondo nossa própria sociedade, questão que ricocheteia
nada de novo, uma vez que se alguém quiser sobre o modo de fazer antropologia em outras so-
procurar, certamente encontrará “precursores” ciedades. Como fazer uma antropologia simétri-
e “in�uências” à vontade (só não entendemos ca? Ou como simetrizar a antropologia? A noção
muito bem por que alguém pode se interessar de antropologia simétrica é alvo de todo tipo de
por isso); quanto à destruição da antropologia, mal-entendido porque a palavra simetria quer di-
tudo depende do que se entende por esse ter- zer muitas coisas diferentes. Quando Latour diz
mo: se é de suas formas atuais de organização, “simétrica”, o que ele propõe é a dissolução de
poderia até ser; mas se é da antropologia en- assimetrias constitutivas do pensamento antropo-
quanto aventura intelectual que se trata, e se lógico, pensamento cuja forma emblemática é a
quiséssemos ser pretensiosos, diríamos até que assimetria entre o discurso do sujeito e o do ob-
o que desejamos é tirá-la da estagnação em que, jeto. Assim, é contra essa assimetria que a noção
ao menos no Brasil, ela se encontra há alguns de simetria é proposta. Ninguém está propondo
anos; mas é claro que não temos essa pretensão um mundo onde tudo seria harmônico e igual!
toda… O que parece particularmente irritan- O oposto do grande divisor não é a unidade e
te aos nossos críticos, se bem os entendemos a noção de simetria não vai restaurar nenhuma
(não fazemos questão absoluta disso, sejamos unidade perdida. O que se contrapõe aos grandes
francos), é justamente a nossa tentativa de divisores são as pequenas multiplicidades. A no-
(re)aproximar a “etnologia indígena” da “antro- ção de multiplicidade é a chave: o problema não é
pologia das sociedades complexas”, e nossa úni- ser dois, mas ser só dois; e a solução para isso não
ca hipótese sobre as raízes de tal irritação é que é voltar ao um.
ela não respeita os feudos institucionalmente
estabelecidos (outro dia ouvimos alguém falar, Igualmente diferentes
com aprovação, da necessidade de pagamento
das “corvéias acadêmicas”…). É evidente que as sociedades ou os coletivos
É preciso, pois, ressaltar que, em certo senti- não têm todos o mesmo poder, e o desa�o da
do, os textos que estão aparecendo nas páginas da antropologia é posicionar os discursos da socie-
Abaeté devem ser encarados a partir dos propósi- dade de que faz parte o antropólogo e aquela
tos especí�cos ao qual se destinam. Não são textos que ele estuda como igualmente diferentes, evi-
publicáveis do jeito que estão em outro lugar. Por tando a introjeção das relações de poder em seu

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discurso. A simetria está nessas duas palavras, ciedades complexas sempre foi tomar conceitos
no igualmente e no diferente, ou seja, simetri- tidos como tradicionais na antropologia das
zar não signi�ca passar por cima do fato de que outras sociedades e aplicá-los à nossa. O pro-
há uma diferença enorme entre as sociedades, blema é que um dos efeitos dessa operação (que
mas, ao contrário, converter justamente esse poderíamos denominar falsa simetrização) cos-
fato no problema e fazer com que a sociedade tuma ser um enfraquecimento generalizado do
ou o grupo de onde vem a antropologia seja que se está dizendo sobre nossa própria socie-
tão antropologizável quanto os demais. Mas é dade, uma banalização tanto do discurso an-
preciso fazer isso sem tirar o antropólogo da tropológico quanto do objeto ao que ele está
jogada, porque é muito fácil exotizar os oci- sendo aplicado. Latour, ao contrário, mais in-
dentais, os brancos, o que for, desde que não teressado em uma antropologia da ciência do
seja exatamente onde você está. A insistência que do cientista, é capaz de colocar sua ênfase
do Latour na antropologia da ciência — não nas práticas e não apenas nos discursos, ou me-
simplesmente na antropologia do discurso oci- lhor, em todos os tipos de práticas, discursivas
dental o�cial, da razão ocidental dominante e não-discursivas. O que signi�ca que, na ver-
como um todo, mas da ciência especi�camente dade, ele aplica o mesmo método que os antro-
— se justi�ca porque é aí que se enraíza a as- pólogos empregam para estudar casamentos,
simetria fundamental. Todo mundo é objeto, rituais, possessões etc. Descreve o que está efe-
menos o sujeito. Eu sempre posso desobjetivar tivamente acontecendo quando alguém está fa-
a mim mesmo, e o que nós estamos propon- zendo ciência. Nesse sentido, se a antropologia
do é a possibilidade de bloquear essa clarabóia sempre foi concebida como ciência de segunda
por onde o antropólogo desaparece. Assim, se é classe, podemos ler o que Latour está propon-
possível pensar a antropologia moderna a par- do como uma descolonização da antropologia
tir da relação entre sujeito e objeto, e a pós-mo- pela ciência.
derna a partir da relação entre sujeito e sujeito,
uma antropologia que propomos denominar Wagner, Strathern e a desbanalização
pós-social poderia talvez ser pensada segundo dos conceitos
uma relação em que todos são sujeitos e obje-
tos simultaneamente (como nos ensinam, ali- Por outro lado, nos últimos 25 ou 30
ás, tanto o perspectivismo nietzscheano quanto anos, no que �cou conhecido como pós-es-
aquele de vários povos indígenas). truturalismo, foram aparecendo, no interior
da própria antropologia, uma série de noções
Latour e a descolonização da antro- e de críticas a noções mais antigas que podem
pologia problematizar a opção latouriana pelo mé-
todo antropológico em detrimento de seus
É de se observar que Latour quase não se conceitos e teorias. Essas transformações já
refere aos antropólogos pro�ssionais. Fala de permitem, cremos, uma apropriação de no-
alguns, claro, mas ressalta que o que sempre o ções da etnologia pela antropologia de nossa
interessou na antropologia teria sido seu mé- própria sociedade capaz de produzir efeitos
todo, não seus conceitos, nem, muito menos, de conhecimento, e não necessariamente de
suas teorias. Não é difícil compreender essa enfraquecimento ou de banalização, daquilo
posição de Latour se lembrarmos que uma das que se está dizendo e sobre aquilo de que se
características da chamada antropologia das so- está falando. Por exemplo, a maneira como

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Wagner trata a noção de cultura como in- disposição nossas próprias categorias? Parece-
venção2, ou a crítica de Strathern à noção de nos que uma das inovações introduzidas por essa
sociedade em favor da de socialidade. Essas antropóloga é reconhecer que “nossas próprias
duas noções, cultura e sociedade, se tornaram categorias” é um objeto um pouco mais compli-
uma espécie de emblema da banalização em cado do que parece. O problema levantado por
antropologia. Assim, quando Wagner recon- Marilyn Strathern, diga-se de passagem, não
ceitualiza a cultura como uma operação de signi�ca nem que estamos fatalmente condena-
invenção (em sentido completamente diver- dos ao etnocentrismo, nem a promessa de um
so do da “invenção da tradição”, anote-se), ponto de vista e de um vocabulário “cientí�cos”
a idéia de cultura começa a se complexi�car que ultrapassem, ao mesmo tempo, o nosso vo-
e a perder sua banalidade, porque a cultura cabulário e o deles melanésios. Pois, ao mesmo
só se constitui num certo ponto de contato, tempo em que o discurso radical do feminismo
ela não “está lá”. Da mesma maneira, a noção é, sem dúvida, um discurso da nossa sociedade,
stratherniana de socialidade só se constitui no parece claro que não podemos dizer que ele seja
funcionamento efetivo das coisas (humanos, o discurso dominante da nossa sociedade. As-
animais, objetos, espíritos…), ela tampouco sim, em vez de simplesmente colocar em rela-
“está lá”. Em certo sentido, seria possível di- ção duas sociedades ou duas culturas, de acordo
zer que ao etnografar como os cientistas se com o antigo método comparativo, Strathern
relacionam para fazer ciência, Latour descre- coloca em conexão uma certa multiplicidade de
ve seus modos de socialidade, assim como as práticas discursivas, o que permite que aquilo
invenções que são obrigados a fazer para esta- que se encontra entre os melanésios possa ser
belecer relações. expresso de uma forma que certamente é “nos-
sa”, mas que não é “nossa” no sentido de que é
Comunicabilidade das formulações de todo mundo, que é apenas uma parte do que
fazemos, uma parte que poderíamos denominar
No caso especí�co de Marilyn Strathern, minoritária.
talvez pudéssemos dizer que sua hipótese ou sua
questão fundamental seja a da comunicabilida- Pessoas e coisas
de das formulações. Por exemplo, seu livro mais
conhecido, �e gender of the gift3, tem duas par- É preciso escapar das alternativas do tipo
tes, e ela procede como se jogasse uma contra a tudo ou nada, ou do que Isabelle Stengers e
outra. De um lado, o discurso da antropologia Philippe Pignarre chamam de “alternativas in-
feminista, de outro, o que os melanésios têm a fernais”. Podemos, por exemplo, partir de uma
dizer sobre aquilo que os antropólogos chama- oposição muito simples: ali há uma sociedade
riam de gênero na Melanésia. O primeiro pro- de pessoas, aqui uma de bens ou coisas. Às vezes
blema é: com que categorias podemos exprimir esses divisores podem ser bons pontos de parti-
as categorias dos melanésios, quando, como diz da… O chato é quando também são os pontos
a própria Strathern, por de�nição só temos à de chegada! Porque na chegada a questão não
é constituir pessoas e coisas, mas perceber que
2. WAGNER, Roy. 1981. �e invention of culture. Chi- pessoas e coisas, ou palavras e coisas, são ape-
cago: University of Chicago Press. nas objeti�cações de certas relações, de certas
3. STRATHERN, Marilyn. 1988. �e Gender of the tramas — e isso, claro tanto num caso quanto
gift: problems with womem and problems with society in no outro. Dar voz às coisas não quer dizer que
Melanesia. Berkeley: University of California Press.

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as coisas sejam iguais às pessoas, mas que elas tribunal uma pessoa jurídica independente de
são iguais apenas na medida em que são resul- uma pessoa física. Ou seja, tudo é pessoa, mas
tantes de processos de objeti�cação, processos algumas pessoas são mais pessoas que as outras.
que, não obstante, são heterogêneos e têm de Lembranças de Radcli�e-Brown. Ora, basta
ser descritos enquanto tais. Em Art and agency4, um segundo para perceber que “pessoa física”
por exemplo, Alfred Gell procura de�nir os ob- é uma categoria jurídica, tão jurídica quanto a
jetos como “agentes de segundo grau”. Nesse de pessoa jurídica. Não há “pessoas físicas” fora
sentido, continua separando humanos e não- do direito. E aí?
humanos, dessa vez como agentes de primei-
ra e segunda classe. Gell, de certo modo, foi o Instaurar uma multiplicidade
autor que levou a antropologia social britânica
a seu limite; é nesse limite que se pode situar a No que diz respeito a Latour, um mal-en-
obra de Gell dentro de um projeto de antro- tendido de que já falamos rapidamente é supor
pologia simétrica pós-social. Sua idéia de que que, ao acusar e recusar os dualismos, seu pro-
o objeto é, sobretudo, o índice de uma agência jeto consistiria na restauração de uma unidade
supõe no fundo uma distinção entre agência do humano. O mundo dos híbridos, aquele que
primária e secundária, isto é, uma distinção prova que ninguém jamais foi moderno, não
entre um sujeito vicário e um sujeito legítimo, seria o que uniria todos os homens, não seria
já que é apenas na vizinhança deste que aque- o dado para todos os homens? O ponto é que
le pode adquirir agência. Haveria, assim, uma separar vem sempre depois, é sempre a posteriori,
“ontologia dos agentes de verdade”, ou primá- não a priori. A puri�cação sempre vem depois,
rios, e uma dos “agentes secundários”, que só como a oposição entre natureza e cultura, à qual
são agentes quando colocados nas vizinhanças se chega mediante um processo laborioso de
de um agente primário. Gell permanece, des- puri�cação, separação, destilação. Mas o que é
se ponto de vista, dentro da visão naturalista dado é esse mundo do meio, da prática, anterior
cara à London School of Economics, supon- à distinção entre teoria e prática. Uma pergunta
do a existência de uma distinção natural entre que, sim, poderia ser feita é se não seria impossí-
agentes e coisas que, em seguida, é recoberta vel não puri�car. E, nesse caso, como seria pos-
por uma (in)distinção social. Existiria uma sível puri�car de uma maneira não dualista, não
diferença entre pessoas e coisas, ainda que em polarizada? Ora, vencer (não se trata de ultrapas-
seguida as coisas possam ser trocadas como sar) o dualismo não consiste em restaurar uma
pessoas ou vice-versa. As pessoas são coisas se- unidade perdida, mas em instaurar uma certa
cundariamente, e as coisas são pessoas secun- multiplicidade. O campo do meio — ou im-
dariamente. O que, na verdade, não é muito pério do meio, como o chama Latour — é um
diferente da distinção clássica em nosso direito campo de multiplicidade, disponível para toda a
entre pessoa física e pessoa jurídica. A pessoa humanidade. No fundo o monismo mais radical
jurídica é uma �cção legal, no sentido próprio sempre se encontra com a multiplicidade mais
do termo, porque a pessoa jurídica só é uma radical. Latour opera, cremos, em um registro
pessoa na vizinhança da pessoa física. É preciso mais contemporâneo que o dessas velhas ques-
que uma pessoa física responda pela jurídica, e, tões sobre unidade, dualidade etc. Continua a
em última análise, não é possível arrastar para o se repetir nas salas de aula de antropologia que
o que de�ne a disciplina é trabalhar com o pro-
4. GELL, Alfred. 1998. Art and agency: an anthropologi- blema da relação entre a unidade biológica do
cal theory. Oxford, New York: Clarendon Press.

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homem e sua diversidade sociocultural. É isso um lado, um monismo absoluto, de outro, um


que as pessoas ainda estão aprendendo quando pluralismo absoluto. Apesar das aparências, isso
começam a estudar antropologia. Mas o que isso não constitui um novo dualismo porque, como
tem a ver com o que os antropólogos estão efeti- sustenta Deleuze, o que isso revela é a identi-
vamente fazendo hoje? dade profunda entre Spinoza e Nietzsche, dois
�lósofos que todos achavam absolutamente
Alternância entre o dado e o constru- opostos. E o que os identi�ca é o fato de tanto
ído a unidade spinozista quanto a pluralidade niet-
zscheana serem da ordem da multiplicidade
Há uma passagem em que Lévi-Strauss fala — conceito que abole os dualismos e todas os
do sexo dos caracóis, que são hermafroditas. Se debates em torno do um e do múltiplo.
um caracol encontra outro caracol, quem vai
ser o macho e a fêmea depende de uma série de Dualismos provisórios
circunstâncias, eles não são machos ou fêmeas
a priori ou em si. Lévi-Strauss a�rma que a dis- O ponto crucial é que o dualismo é mais um
tinção entre sentido literal e metafórico é como modo de tratamento das coisas do que uma ma-
o sexo dos caracóis: se você olha daqui para lá, neira de distribuição “real” das coisas. Por isso,
aquilo é letra e isso metáfora; se olha de lá para quando se diz, por exemplo, que as sociedades Jê
cá, é o contrário. Não existe metáfora em si, li- são dualistas, é preciso ter cuidado para não cair
teralidade em si, signi�cante em si, signi�cado nem na hipótese de que o dualismo é, no fundo,
em si. Não são distinções essenciais, absolutas. uma propriedade do espírito humano que os Jê
É provável que algo próximo se dê na oposição (mas também Descartes e todo mundo) apenas
entre o dado e o construído na semiótica de exprimem a seu modo, nem na de que ele seria
Roy Wagner: o dado é o que é pressuposto em um traço substantivamente característico dos Jê,
função do que se usa como controle. Isso não aquilo que os “identi�caria” (em oposição aos
quer dizer que, em outra circunstância, não se Tupi, a nós mesmos etc.). Porque existe toda
possa tomar o que se tomava como construído a diferença do mundo entre operar com dua-
como dado e vice-versa. Ou que seja necessário lismos substanciais e utilizar dualidades como
dispor primeiro de um dado para que depois se pontos de passagem para se fazer outra coisa.
tenha um construído: eles são simultâneos, es- O dualismo é uma forma de se administrar o
tão em implicação ou pressuposição recíprocas. Um (mesmo supondo o Múltiplo) ou um modo
O que constitui uma espécie muito singular de de sair da questão Um-Múltiplo para instaurar
dualismo, se quisermos manter o termo. De- uma multiplicidade? Depende. Mesmo a sepa-
leuze distingue, um tanto ironicamente, dois ração entre corpo e alma pode ser usada para �ns
tipos de dualismo: um dualismo “verdadeiro” não dualistas. O que, em geral, provoca aque-
(de tipo cartesiano, onde se pode passar a vida las críticas muito fáceis e algo irritantes: “você
inteira tentando conciliar o corpo e a alma ou está sendo dualista!”. Pior: “você é etnocêntrico!
coisas parecidas) e um dualismo que ele cha- Você apenas projetou e/ou reencontrou o cor-
ma de “provisório”, porque serve apenas como po e a alma dos cristãos!”. Críticas não apenas
ponto de partida ou de apoio para outra ope- simplistas como limitadoras, paralisantes. Pois o
ração, mais importante. Neste caso, há duas problema (“técnico”, como diz a autora) é aque-
possibilidades representadas, para Deleuze, le enunciado por Strathern: “como criar uma
respectivamente por Spinoza e Nietzsche: de consciência de mundos sociais diferentes quan-

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do tudo o que se tem à disposição são termos na análise a ciência e a política ocidentais e
que pertencem ao nosso”? Essa é a questão. Isso proceder como os antropólogos que analisam
signi�ca, cremos, que em Strathern nos depara- as sociedades não-ocidentais. O desa�o maior
mos sempre com esse tipo de dualismo provi- é tratar nossos conceitos com a mesma dureza
sório de que falávamos, já que suas análises em com que tratamos os conceitos dos outros — e
geral partem de distinções usuais para com elas com a ajuda dos conceitos dos outros! Aquilo
fazer outras coisas. que os nossos conceitos faziam com os dos ou-
Como fazer os conceitos de corpo e alma tros, agora eles também vão sofrer a partir dos
funcionarem de outra maneira? Se utilizarmos conceitos dos outros.
a noção de corpo e alma como um refúgio no
qual se faz uma leitura cartesiana das noções Comparar o incomensurável
indígenas, a crítica é totalmente legítima. Mas
se tomarmos as palavras corpo e alma como Pode-se argumentar, claro, que esse novo
tradução provisória dos conceitos indígenas método comparativo não está comparando
e, em seguida, usarmos os conceitos indígenas coisas comparáveis, mas bananas e laranjas,
para sabotar os conceitos ocidentais de corpo e segundo a velha metáfora até hoje empregada
de alma, essa homonímia se faz estratégica e a nos cursos de introdução à antropologia. Mas,
coisa se torna interessante. Traduzimos as pala- por que comparar o comparável? Para isso basta
vras, mas preservarmos a dinâmica conceitual chamar um contador… O interessante é medir
nativa e assim, quem sabe, conseguimos per- o incomensurável, comparar o incomparável,
turbar nossas próprias categorias, mostrando como disse Marcel Detienne (em um livro jus-
que alma e corpo são capazes de outras coisas. tamente chamado Comparer l’incomparable5).
Toda discussão de Strathern sobre o feminis- O que quer dizer isso, o incomensurável? Ora,
mo tem a ver com isso. Ao contrário de muitos o que não tem uma medida comum. A noção
antropólogos, Strathern foi realmente afetada, de comensurabilidade supõe que o que comen-
no bom sentido do termo, pela crítica pós- sura duas coisas está fora delas. Duas coisas são
moderna, ou seja, em vez de perder seu tempo comensuráveis em função de uma terceira, que
acusando os equívocos ou as bobagens dos pós- é supostamente a natureza em si. Esta funciona
modernos, ela concentrou seu foco em uma como o referente que legisla de que modo A
questão que eles levantaram mas com a qual está ligado a B em função de uma terceira coisa
não souberam lidar muito bem: como falar dos que é independente dela. Achamos que uma
outros sem que se esteja falando de si mesmo. das coisas que a antropologia mostra é que a
A reposta de Strathern é que mesmo que essa comensurabilidade é um processo interno, não
proeza seja impossível, isso não signi�ca o si- externo. O metro padrão, para usar uma lin-
lêncio — bem ao contrário do que supunham guagem latouriana, deu muito trabalho para
os próprios pós-modernos. Se, ao falar dos me- ser elaborado. Com que metro você mede o
lanésios, necessariamente usamos categorias metro padrão? Como é que você vai saber que
que são nossas, é preciso proceder de um modo existe um metro, o metro padrão? Se existe al-
em que os melanésios nos ajudem a nos dis- guma coisa incomensurável é precisamente o
tanciarmos dessas nossas categorias. E este é o metro padrão, porque ele é a medida de todas
sentido, mais alargado que o de Latour talvez, as coisas. Pensando de novo em �e invention of
que gostaríamos de dar à idéia de antropologia
simétrica. Não se trata simplesmente de incluir 5. DETIENNE, Marcel. 2000. Comparer l’incompara-
ble. Paris: Seuil.

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culture, de Roy Wagner, poderíamos dizer que terminar num livro. Triste destino da relação. É
a noção de cultura é problemática sempre que claro que as relações produzem, entre outras coi-
se pretende que ela funcione como um metro sas, identidades. Mas não devemos imaginar que
padrão. Por outro lado, ela pode ser reinventa- as relações existam para produzir identidades,
da se se admite que ela é apenas um meio de que é esse seu telos, seu objetivo, sua �nalidade.
comparar o incomensurável. (Como se toda diferença quisesse “no fundo” ser
uma identidade). Esse é o problema. A impres-
Relação versus identidade são que se tem é que essas noções de identidade,
como as que derivam das abordagens das “rela-
Vale a pena observar que Wagner utiliza muito ções raciais” ou das “relações interétnicas”, agem
a palavra relatividade, mas, salvo engano, nunca como uma máquina de repressão contra qualquer
relativismo. De fato, é preciso ativar essa pequena outra coisa que se deseje pensar. É como se todos
dicotomia porque, de certo modo, o relativismo soubessem a resposta de antemão. Seria preciso,
já é uma maneira de domesticar a relatividade. antes de mais nada, saber o que se quer dizer com
Como diria Deleuze, o relativismo é a idéia de a palavra identidade. Ou melhor ainda, o que se
que a realidade é relativa, e a relatividade é a idéia pretende não dizer, ou o que não se deseja que se
de que o relativo é que é verdadeiro. Que a ver- diga, ao empregar essa noção.
dade do relativo é a relação. O que signi�ca que
não há não-relação nesse sentido especí�co. Isso Alteridade e alienação
de algum modo conecta esses três autores, Latour,
Strathern, Wagner (além de Deleuze, Guattari e Se identidade existe, ela é secundária em
outros de quem gostamos). Eles estão todos na relação à alteridade. Mas é também preciso
contramão de uma visão identitária da relação, cuidado para não transformar a alteridade em
essa visão que os cientistas sociais apresentam to- outra identidade. A alteridade hoje em dia cos-
dos os dias no jornal e na televisão. Porque, dizem tuma aparecer como meio para a a�rmação da
eles, essas são idéias “perigosas”: ao enfatizar as di- identidade. Uma boa alternativa vocabular, mas
ferenças, temos a guerra, a destruição, porque se que infelizmente já foi usada para �ns com-
está. E, de fato, quando se supõe que só existam pletamente opostos, seria a palavra alienação,
identidades que se relacionam, as únicas formas nome, a rigor de uma ação e não de um estado,
de relação passam a ser a assimilação ou a destrui- como “alteridade”. Mas a palavra foi destruída
ção. Uma teoria verdadeiramente relacional, que pelo uso inverso ao que buscamos: alienação é
não suponha identidades existindo a priori ou em perda de identidade. Observemos de passagem
si, não tem nada a ver com isso. O que se vende que identi�cação, sim, também é um processo,
por aí são teorias identitárias da relação (identi- e um processo bem interessante, uma vez que
dade contrastiva, etnicidade - Barth, em suma). existe uma imensa quantidade de dispositivos
É como se a relação existisse para a identidade. sociopolíticos de identi�cação — por exemplo,
Antigamente se imaginava que primeiro existiam vários conceitos antropológicos…
as identidades e então as relações; agora se diz
que “as identidades são relacionais”, como se as A perversão identitária
relações existissem para produzir as identidades.
Não se progrediu muito, pois tudo continua exis- Todas as etnogra�as bem elaboradas, nos
tindo apenas para terminar em uma identidade. mais diversos campos, mostram que, além de
Ou, como dizia Mallarmé: o mundo existe para extremamente so�sticadas, as teorias locais são

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hábeis e �exíveis. E que o discurso da identidade ça a dizer “sim, sou negro e me orgulho disso”
aparece sempre que o Estado entra em cena, para ou “sim, sou gay, exijo tais direitos”, “sim, sou
o bem ou para o mal, se podemos nos exprimir brasileiro”, alguma coisa sutil começa a acon-
dessa forma. Como não pretendemos fazer par- tecer. Normalmente, quando alguém começa a
te do aparelho de Estado em nenhuma de suas se identi�car com aquilo que por meio do qual
múltiplas formas, perguntamos de que lado está o identi�cam, ele passa a identi�car alguém no
o antropólogo nessa história. Do lado do Estado, seu lugar. Ele vai inventar o palestino, no caso
para dialogar com ele ou em nome dele? Ou a do judeu; vai inventar um argentino, no caso do
tarefa mais interessante da antropologia não seria brasileiro (brincadeira…). Ou seja, vai inventar
justamente encontrar um modo de se conectar alguma coisa “pior” do que ele. Parece, assim,
com essas outras formas, mais instáveis, de arti- que a identidade possui a perversa capacidade de
cular as relações? Essa é uma aposta política e te- produzir esses efeitos em que o sujeito começa a
órica. Na antiga teoria da luta de classes, em que aprisionar a si mesmo e aos outros. “Assumir”
os campos são determinados pela posição que os sua identidade é apenas o primeiro capítulo de
atores ocupam nas relações de produção, prole- um processo que aparece como “luta de liberta-
tário era proletário e burguês era burguês (se abs- ção”: “sim, sou isso e me orgulho disso”. Mas,
trairmos, claro, essas coisas meio estranhas que logo depois, começa a crescer o germe microfas-
eram a pequena burguesia, a classe média etc.). cista que já estava lá, e se eu me orgulho disso,
Mais tarde, começaram a aparecer os movimen- alguém tem que se envergonhar: quem é que vai
tos identitários, porque a classe como categoria se envergonhar no meu lugar? Quem é que eu
objetiva desapareceu, ou se tornou complicada vou identi�car agora?
porque as relações de produção se tornaram in-
crivelmente complexas, e a noção de classe foi Paradoxos da indianidade
�cando cada vez mais difícil de ser determinada.
Então, no lugar da luta de classes, passamos para Esse movimento de identi�cação é curioso
a reivindicação de identidades. porque ele nunca vai até o �m, ao menos da
Uma das coisas curiosas sobre a noção de forma em que começa: em algum momento
identidade é que é muito diferente se identi�car ele tem que parar ou ser detido. Vejamos, por
e ser identi�cado. Normalmente achamos que é exemplo, o caso clássico do Nordeste, dos ín-
a mesma coisa, como na de�nição clássica ado- dios “emergentes” do Nordeste. Trata-se de um
tada pelo Estatuto do Índio: “índio é aquele que paradoxo do ponto de vista conceitual: os ín-
se identi�ca e é identi�cado como tal”. Nesse dios do Nordeste são “mestiços”, eles são a en-
pequeno “e” reside toda a confusão. Ao mesmo carnação viva da anti-idéia de índio puro, com
tempo é identi�cado? Ou alternativamente é tudo o que há nela de racista, essencialista, cul-
identi�cado? Por quem é identi�cado? Quando? turalista etc. Desse modo, o índio do Nordeste
Em que circunstâncias? O que acontece quan- é um índio bom, no sentido metafísico da pa-
do alguém se identi�ca e não é identi�cado, ou lavra, pois estaria encarnando a essência da não
quando é identi�cado e não se identi�ca? Quan- essencialidade, a essência do não-culturalismo.
do te identi�cam, é uma objetivação, para o O que acontece quando os índios do Nordes-
bem ou para o mal: “você é brasileiro”, te identi- te são reconhecidos como índios pelo Estado?
�ca alguém, o que imediatamente retira de você Eles poderiam tentar fazer valer diretamente
tudo o que interessa. Ou, “você é judeu”, “você a legitimidade da mestiçagem como condi-
é gay”, qualquer coisa. Quando alguém come- ção, mas o que ocorre é, antes, o contrário.

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Eles começam a distinguir quem é índio puro ela é aceita e incorporada por falta de opção!
e quem não é, dizendo: “você não pode �car Criando entidades
aqui porque você não é índio puro”. Um índio
diz para outro índio: “nós somos os verdadeiros Toda identidade supõe uma entidade, toda
Pancararu, vocês são mestiços”; “índio mesmo identidade engendra uma entidade que vai ad-
somos nós aqui”; “olha, o Estado reconheceu ministrá-la segundo o modo de constituição
a comunidade Pancararu, você não é Pancara- e funcionamento do Estado. Porque uma das
ru, você é mestiço, tem que ir embora”. E aí o maiores e mais pér�das habilidades do Estado
próprio Estado — e mesmo alguns defensores é sua capacidade de convencer todo mundo de
não-governamentais dos índios — dizem que que a única maneira de enfrentá-lo é assumin-
é preciso fechar a lista de quem é índio (ou do sua forma (com outro conteúdo, claro, mas
quilombola ou o que quer que seja) para evitar quem se importa?). No que diz respeito aos
uma confusão generalizada. Ou seja, o Estado antropólogos, nossa questão não é só conceitu-
e seus congêneres impõem o congelamento do al, ela também é política. Estamos fabricando
processo que eles mesmos haviam gerado. idéias, fabricando conceitos que se vinculam a
esse tipo de operação. É curioso comparar um
Identidade, isso pega? laudo de reconhecimento de uma terra de qui-
lombo ou indígena e, por exemplo, à tese que
Uma das sessões de debates que organiza- o autor desse hipotético (mas é claro) laudo
mos na Abaeté tinha esse título: “identidade, escreveu sobre o mesmo lugar. Na tese, o au-
isso pega?”. Chegamos à conclusão de que pega. tor é sempre um desconstrucionista ou, mais
Como é possível abrir mão da noção de identi- precisamente, um crítico que vai desnaturalizar
dade quando se estrutura toda a ação em torno e desestabilizar todas as falsas certezas. Mas, no
dela? Os militantes do movimento indígena ou laudo, o autor vai essencializar, assumindo para
do movimento negro adotariam, então, o que se si a operação do essencialismo estratégico. É
convencionou denominar “essencialismo estraté- um enigma como alguém consegue fazer essas
gico”. Noção cínica e paternalista, que “perdoa” duas coisas ao mesmo tempo. Como é possível
os oprimidos por seus erros teóricos. Mas não é pintar, com a mesma tinta, um retrato de de-
esse o problema. O problema é o preço político sessencialização e outro de objeti�cação? É pos-
que se paga por esse uso abusivo e quase monoi- sível sim, porque no fundo trata-se da mesma
deístico da noção de identidade. Por que imaginar operação, apesar de parecerem duas operações
que todas formas de luta passam necessariamente diferentes. Assim, vive-se no melhor dos mun-
pela noção de identidade? Obviamente há outras. dos, ganhando algum dinheiro para identi�car
O que tem que ser enunciado é uma coisa muito gente e, ao mesmo tempo, conseguindo títulos
elementar: por que alguém que habita um lugar acadêmicos ao desindenti�car a mesma gente.
há centenas ou milhares de anos só tem direito Isso só vai se complicar quando os advogados
de viver em paz aí se for índio ou se for negro? de madeireiras, mineradoras e congêneres co-
Por que é preciso passar por processos de reco- meçarem a usar as teses para refutar os laudos
nhecimento como índio ou quilombola para que (como, aliás, já acontece em outros países).
se tenha o direito de viver do jeito que se quer?
É assim que a identidade pega! Ninguém adere Texto e autor híbridos
por “conscientização” e nós sabemos, histórica e
etnogra�camente, como é que a identidade pega: Todos sabemos que a antropologia não pode

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se de�nir por um objeto. As questões de pesquisa torno da autoria. Sabemos que não são raros aí
devem ser propriamente intelectuais e não �car os bloqueios pessoais, o que exige primeiro, e
à mercê das ondas e políticas de �nanciamen- evidentemente, uma escolha e, depois, muita
to. Se é importante estar atento à sociologia da autodisciplina. Como isso começou há pouco
produção intelectual, coisa que evidentemente tempo e, de certa forma, de modo meio espon-
existe e que todo mundo sofre na pele, mais im- tâneo, não sabemos ainda muito bem aonde é
portante é saber que tem gente que não acredita que esse negócio pode chegar — nem mesmo se
que isso seja a coisa mais importante do mun- ele vai chegar em algum lugar.
do. A pesquisa não pode ser escolhida e orien-
tada apenas por “demandas de balcão”, nome Saída transversal pela esquerda
técnico desse tipo de coisa. De que alternativas
dispomos? Acreditamos que uma possibilidade De toda forma, o que pretendemos é de-
é a criação o mais livre possível de territórios e senvolver conexões transversais. “Transversali-
espaços onde se possa pensar com mais prazer. dade” é uma noção que Guattari desenvolveu
Assim, a idéia da Abaeté tem esse componente e que se opõe tanto a verticalidade quanto a
associativo-institucional, ou melhor, contra-as- horizontalidade. No primeiro caso porque é
sociativo e contra-institucional. Tem uma di- preciso escapar dessa relação mestre-discípulo,
mensão teórica, que é a questão da antropologia que é uma relação basicamente vertical. No se-
simétrica. E tem uma dimensão técnica, que é gundo, porque não se deve supor que é possível
a questão inovadora, quer dizer, a tentativa de ligar qualquer coisa com qualquer coisa, pois
usar o instrumento wiki para efetuar uma co- há coe�cientes de transversalidade. Às vezes a
municação subordinada a uma produção ino- conexão funciona, às vezes não funciona, é uma
vadora e livre. Ou seja, não se trata apenas de questão de experimentação. Essa idéia permite,
circulação de idéias, mas de produção de idéias. também, conectar diferentes teorias. O uso
Como utilizar esse sistema de circulação — que que alguns antropólogos fazem, por exemplo,
não obedece ao modelo clássico dos seminários da obra de alguns �lósofos (como os próprios
e dos artigos autorais (que são ótimos e vão con- Deleuze e Guattari) implica essa transversalida-
tinuar existindo) — para abrir um novo espaço de. Há sempre uma certa aspereza, há sempre
de produção de textos híbridos, múltiplos, de transformações a introduzir, mas essas diferen-
vários autores? Nesse espaço, quem escreve não ças não são, em princípio, obstáculos para as
deve mais ser a questão. Trata-se de deslocá-la conexões que se pretende estabelecer. As rela-
para o que se escreve, de modo que o quem se ções transversais são as únicas capazes de gerar
torna progressivamente menos importante ou e sustentar um “grupo-sujeito”, capaz de não se
importante em contextos especí�cos. Sabemos submeter passivamente nem às determinações
que isso não é fácil, inclusive porque suspende exteriores, nem à sua própria lei interna. Esta
antigos referenciais, como todo o complexo em é, parece-nos, a única saída pela esquerda para

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