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São Paulo, quinta-feira, 29 de maio de 2003

Morar, cuidar, ser


Acabo de me mudar, mas ainda não me sinto em casa. Mudar não é simplesmente entrar
num novo espaço, é habitá-lo. E habitar requer muitas coisas, como despedir-se de hábitos
familiares e permitir que novos se formem; estranhar o próprio corpo e seus movimentos;
reprogramar a memória e se acostumar ao esquecimento de lugares e trajetos; redefinir
distâncias e proximidades; refazer relações com a luz, o ar, os cheiros. Enfim, reaprender a
ser, reconstituindo o mundo da morada e da identidade. Certamente levará tempo para eu
me sentir à vontade, o mesmo que para me reajustar a mim mesma. Enquanto a casa e eu
não entrarmos em sintonia e viver nela não for uma dança descontraída e espontânea...
Enquanto não nos pertencermos mutuamente, a ponto de eu poder dizer que ela é minha,
que tem a minha cara ou que minha casa sou eu... Enquanto não me sentir tão enraizada
nela, que já nem lembre mais como era viver em outro lugar e ela, então, tome os ares da
casa de origem..., continuarei a sentir-me estranha, suspensa no todo da minha vida, sem
lugar, sendo pela metade. Entendo agora, melhor do que nunca, o que a filosofia
existencial quer dizer quando afirma que o homem é um "ser-no-mundo" ou que "eu sou eu
e minhas circunstâncias". Sem mundo, não somos ninguém, porque não chegamos a
moldar nosso corpo, nossos gestos, nossas preferências e referências. Uma casa é,
felizmente, o lugar de lugares conhecidos, da estabilidade, da rotina, da repetição, da
mesmice. Um lugar onde voltamos para nós mesmos, depois da dispersão e da
diversidade do dia. Um lugar onde nos recolhemos para descansar e sonhar; para cuidar
de nós mesmos e conviver com aqueles que mais amamos e escolhemos para parceiros.
O que os antigos gregos sabiam, e nós já nem levamos em consideração, é que a casa de
um homem não é apenas algo de que ele tem a chave e a posse, mas o elemento que
marca qual o lugar que ele ocupa na cidade (no bairro, no condomínio). A moradia de um
homem referenda seu pertencimento à cidade e sua cidadania e, portanto, os direitos e os
deveres que ali lhe competem. A casa é, também, o lugar da vida privada, onde um
indivíduo pode expressar-se de modo diferente e talvez mais natural do que aquele que
desempenha na vida pública, nos espaços onde se expõe e aparece para os outros em
sua singularidade (para os gregos era a "ágora", a esfera da vida pública, mas, para a
maioria de nós, o reduzido mundo do trabalho). A casa abriga da exposição pública. No
interior da casa, uma criança (também um adulto) se experimenta, protegida, para o
enfrentamento do mundo. Ensaia com os outros, ou diante do espelho, a fala, o perfil, os
modos e as maneiras. Escolhe-se e se esconde. Fica a sós ou sente-se sozinha. Uma
casa é o retrato do seu morador. O tratamento que uma pessoa dá à sua casa coincide
com seu modo de levar a vida. Embora nossa casa nos abrigue do mundo, ela é, ao
mesmo tempo, o nosso mundo mais próximo. E também são nosso mundo o bairro onde
vivemos, a cidade, o país, nosso planeta. Eles são nossas moradas, os lugares que, direta
e indiretamente, atenta ou desatentamente, aprontamos para existir. Quando esgotamos a
terra e interrompemos sua fertilidade, preparamos nossa fome. Preparar a morada coincide
com a preparação da nossa própria vida. Morar coincide com existir. Uma tarefa cujo fim
termina com nossa morte. Dizer que acabei de "me" mudar é impreciso. Não estou nem no
meio do caminho!...

DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e


Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de
Orientação e Estudos da Condição Humana

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