Você está na página 1de 9

1 .

Do fundo do coracao
0 CERNE DA
COMUN1CACAO NAO-V1OLENTA

0 que eu quero em minha vida e compaixao, um fluxo


entre mini mesmo e os outros corn base mama entrega
matua, do fundo do coracdo.

MARSHALL B. ROSENBERG

iNTRODUCAO

Acredito que é de nossa natureza gostar de dar e receber de


forma compassiva. Assim, durante a maior parte da vida, tenho
me preocupado com duas questOes: o que acontece que nos
desliga de nossa natureza compassiva, levando-nos a nos corn-
portarmos de maneira violenta e baseada na exploracao das ou-
tras pessoas? E, inversamente, o que permite que algumas pes-
soas permanecam ligadas a sua natureza compassiva mesmo nas
circunstancias mais penosas?
Minha preocupacao corn essas questOes comecou na infan-
cia, por volta do verao de 1943, quando nossa familia se mudou
para Detroit. Na segunda semana apOs nossa chegada, eclodiu
urn conflito racial, que comecou corn um incidente num parque
pnblico. Nos dias seguintes, mais de quarenta pessoas foram
mortas. Nosso bairro ficava no centro da violencia, e passamos
tres dias trancados em casa.

19
I MARSHALL B. ROSENBERG I
I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

Quando terminaram os tumultos raciais e comecaram as Enquanto estudava os fatores que afetam nossa capacidade
aulas, descobri que o nome pode ser tao perigoso quanto qual- de nos mantermos compassivos, fiquei impressionado corn o
quer cor de pele. Quando o professor disse meu nome durante papel crucial da linguagem e do use das palavras. Desde entao,
a chamada, dois meninos me encararam e perguntaram, com identifiquei uma abordagem especifica da comunicacao — falar
veneno: "Voce é kike?" Eu nunca tinha ouvido aquela palavra e e ouvir — que nos leva a nos entregarmos de coracao, ligando-
nao sabia que algumas pessoas a utilizavam de maneira depre- nos a nos mesmos e aos outros de maneira tal que permite que
ciativa para se referir aos judeus. Depois da aula, os dois ja es- nossa compaixdo natural floresca. Denomino essa abordagem
tavam me esperando: eles me jogaram no chdo, me chutaram e Comunicacdo Nao-Violenta, usando o termo "nao-violencia" na
me bateram. mesma acepcao que the atribuia Gandhi — referindo-se a nosso
Desde aquele verdo de 1943, venho examinando aquelas estado compassivo natural quando a violencia houver se afastado
duas questOes que mencionei. 0 que nos permite, por exem- do coracao. Embora possamos
plo, permanecer sintonizados com nossa natureza compassiva nao considerar "violenta" a ma- CNV: uma forma de comunicacdo
ate nas piores circunstancias? Penso em pessoas como Etty Hil- neira de falarmos, nossas pala- que nos leva a nos entregarmos
lesum, que continuou compassiva mesmo quando sujeita as vras nao raro induzem a ma- de coracao.
grotescas condicOes de um campo de concentracao alemao. Na
goa e a dor, seja para os outros, seja para nos mesmos. Em
epoca, ela escreveu: algumas comunidades, o processo que estou descrevendo é co-
nhecido como comunicacao compassiva; em todo este livro, a
abreviatura CNV sera utilizada para se referir a comunicacao
Nao e facil me amedrontar. Ndo porque eu seja corajosa, mas por- nao-violenta.
que sei que estou lidando corn seres humanos e que preciso ten tar
ao maxim cornpreender tudo que qualquer pessoa possa fazer. E UMA MANE1RA DE CONCENTRAR A ATENCÁO
foi isso o que realmente importou hoje de manha – nä() que urn
jovem oficial da Gestapo, contrariado, tenha gritado comzgo, mas, A CNV se baseia em habilidades de linguagem e comunicacao
sim, que eu nä° tenha me sentido indignada, antes tenha sentido que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo
verdadeira compaixdo e desejado perguntar: "0 senhor teve uma em condicOes adversas. Ela nao tem nada de novo: tudo que foi
infancia muito infeliz? Brigou corn a namorada?". E, ele parecia integrado a CNV já era conhecido havia seculos. 0 objetivo é nos
atormentado e obcecado, mal-humorado e fraco. Eu gostaria de ter lembrar do que ja sabemos — de como nos, humanos, deveria-
comecado a tratd-lo ali mesmo, pois sei que jovens dignos de pena
mos nos relacionar uns com os outros — e nos ajudar a viver de
como ele se tornam perigosos tao logo fiquem soltos no rnundo. modo que se manifeste concretamente esse conhecimento.
(Eny HILLESUM, A diary) A CNV nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos ex-
pressamos e ouvimos os outros. Nossas palavras, em vez de se-

20
21
MARSHALL B. ROSENBERG I
I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

rem reaci5es repetitivas e automaticas, tornam-se respostas manente para mantermos nossa atencao concentrada la onde
conscientes, firmemente baseadas na consciencia do que esta- mais provavel acharmos o que procuramos.
mos percebendo, sentindo e desejando. Somos levados a nos Existe a histOria de um homem agachado debaixo de urn
expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo que da- poste de iluminacão, procurando alguma coisa. Urn policial pas-
mos aos outros uma atencao respeitosa e empatica. Em toda sa e pergunta o que ele esta fazendo. "Procurando as chaves do
troca, acabamos escutando nossas necessidades mais profun- carro", responde o homem, que parece ligeiramente bebado.
das e as dos outros. A CNV nos ensina a observarmos cuidado- "Voce as perdeu aqui?", pergunta o policial. "N"ao, perdi no be-
samente (e sermos capazes de identificar) os comportamentos co." Vendo a expresso intrigada do policial, o homem se apres-
e as condicties que estão nos afetando. Aprendemos a identifi- sa a explicar: "E que a luz esti. muito melhor aqui".
car e a articular claramente o que de fato desejamos em de- Acho que meu condicionamento cultural me leva a con-
terminada situacao. A forma é simples, mas profundamente centrar a atencao em lugares onde é improv6vel que eu consi-
transformadora. ga o que quero. Desenvolvi a
A medida que a CNV substitui nossos velhos padraes de de- CNV como uma maneira de fazer Vamos fazer brilhar a luz da

fesa, recuo ou ataque diante de julgamentos e crfticas, vamos brilhar a luz da consciencia — consciencia nos pontos em que
percebendo a nos e aos outros, assim como nossas intencOes e de condicionar minha atencao a possamos esperar achar aquilo
relacionamentos, por um enfoque novo. A resistencia, a postu- se concentrar em pontos que te- que procuramos.
ra defensiva e as reacOes violentas sdo minimizadas. Quando nham o potencial de me dar o
nos concentramos em tornar mais claro o que o outro esti ob- que procuro. 0 que almejo em minha vida é compaixAo, urn
servando, sentindo e necessi- fluxo entre mim e os outros corn base numa entrega mittua, do
Quando utilizamos a ow para tando em vez de diagnosticar e fundo do coracao.
ouvir nossas necessidades mais julgar, descobrimos a profundi- Essa caracterfstica da compaixdo, que denomino "entregar-
profundas e as dos outros, perce- dade de nossa prOpria compai- se de coracao", se expressa na letra da cancâo "Given to", corn-
bemos os relacionamentos por xdo. Pela enfase em escutar posta por minha amiga Ruth Beberrneyer em 1978:
um novo enfoque. profundamente — a nos e aos
outros —, a CNV promove o res- Nunca me sinto mais presenteada
peito, a atencao e a empatia e gera o minuo desejo de nos en- Do que quando voce recebe algo de mim –
tregarmos de coracdo. Quando voce compreende a alegria que sinto
Embora eu me refira a CNV como "processo de comunica- ao the dar algo.
cao" ou "linguagem da compaixdo", ela é mais que processo ou E voce sabe que estou dando aquilo
linguagem. Num nivel mais profundo, ela é urn lembrete per- para fazer voce ficar me devendo,
I MARSHALL B. ROSENBERG I I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

Mas porque quero viver o amor 0 PROCESSO DA CNV


que sinto por voce.
Receber alga corn boa vontade Para chegar ao mntuo desejo de nos entregarmos de cora-
pode ser a major entrega. cao, concentramos a luz da consciencia em quatro areas, as
Eu nunca conseguiria separar as duas coisas. quais nos referiremos como os quatro componentes do modelo
Quando voce me dd alga, da CNV.
Eu the dou meu receber. Primeiramente, observamos o que esta de fato acontecendo
Quando voce recebe alga de mim, numa situacao: o que estamos vendo os outros dizerem ou faze-
Eu me sinto too presenteada. rem que é enriquecedor ou nao para nossa vida? 0 truque é ser
capaz de articular essa observacao sem fazer nenhum julgamento
ou avaliacao — mas simplesmente dizer o que nos agrada ou nao
Quando nos entregamos de coracao, nossos atos brotam da
naquilo que as pessoas estao fa-
alegria que surge e resplandece sempre que enriquecemos de
zendo. Em seguida, identifica- Os quatro componentes da CNV:
boa vontade a vida de outra pessoa. Isso beneficia tanto quem
mas como nos sentimos ao ob- 1. observacao;
doa quanto quem recebe. Este Ultimo aprecia o presente sem se
servar aquela acao: magoados, 2. sentimento;
preocupar corn as conseqiiencias que acompanham o que foi
assustados, alegres, divertidos, 3. necessidades;
dado por medo, culpa, vergonha ou desejo de lucrar alguma
irritados etc. Em terceiro lugar, 4. pedido.
coisa. Quem doa se beneficia daquele reforco de auto-estima que reconhecemos quais de nossas
se produz sempre que vemos nossos esforcos contribufrem para necessidades est5o ligadas aos sentimentos que identificamos af.
o bem-estar de alguern. Temos consciencia desses tres componentes quando usamos a CNV
Para usarmos a CNV, as pessoas corn quem estamos nos co- para expressar clara e honestamente como estamos.
municando nao precisam conhece-la, ou mesmo estar motiva- Uma mae poderia expressar essas tres coisas ao filho adoles-
das a se comunicar compassivamente conosco. Se nos ativermos cente dizendo, por exemplo: "Roberto, quando eu vejo duas
aos princfpios da CNV, motivados somente a dar e a receber corn bolas de meias sujas debaixo da mesinha e mais tires perto da TV,
compaixdo, e fizermos tudo que pudermos para que os outros Pico irritada, porque preciso de mais ordem no espaco que usa-
saibam que esse é nosso Unico interesse, eles se unitho a nos no mos em comum".
processo, e acabaremos conseguindo nos relacionar corn com- Ela imediatamente continuaria corn o quarto componente
paixdo uns corn os outros. Nao estou dizendo que isso sempre — urn pedido bem especifico: "Voce poderia colocar suas meias
aconteca rapidamente. Afirmo, entretanto, que a compaixdo no seu quarto ou na lavadora?" Esse componente enfoca o que
inevitavelmente floresce quando nos mantemos fieis aos princf- estamos querendo da outra pessoa para enriquecer nossa vida
pios e ao processo da CNV. ou tornã-la mais maravilhosa.

24 25
I MARSHALL B. ROSENBERG I I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

Assim, parte da CNV consiste em expressar as quatro infor- toes dos outros. Dos capftulos 3 ao 6, aprenderemos a perceber
macOes muito claramente, seja de forma verbal, seja por outros e a expressar verbalmente cada urn desses componentes, mas
meios. 0 outro aspecto dessa forma de comunicacao consiste importante ter em mente que a CNV nao consiste numa fOrmu-
em receber aquelas mesmas quatro informacks dos outros. NOs la preestabelecida; antes, ela se
nos ligamos a eles primeiramente percebendo o que estdo ob- adapta a varias situagOes e esti- As duos panes da CNV:
servando e sentindo e do que estdo precisando; e depois desco- los pessoais e culturais. Embo- 7. expressar se honestamente
-

brindo o que poderia enriquecer suas vidas ao receberem a ra eu, por conveniencia, me por meio dos quatro compo-
quarta informacao, o pedido. refira a CNV como "processo" nentes;
A medida que mantivermos nossa atencao concentrada ou "linguagem", é possfvel rea- 2. receber corn empatia por meio
nessas areas e ajudarmos os outros a fazerem o mesmo, esta- lizar todas as quatro partes do dos quatro componentes.
beleceremos um fluxo de comunicacao dos dois lados, ate a processo sem pronunciar uma
compaixdo se manifestar naturalmente: o que estou observan- so palavra. A essencia da CNV esta em nossa consciencia da-
do, sentindo e do que estou necessitando; o que estou pedindo queles quatro componentes, nao nas palavras que efetiva-
para enriquecer minha vida; o que voce esta observando, sen- mente sac) trocadas.
tindo e do que esta necessitando; o que voce esta pedindo para
enriquecer sua vida... APLICANDO A CNV EM NOSSA V1DA E NO WNW

0 processo da CNV Quando utilizamos a CNV em nossas interacOes — corn nos


As awes concretas que estamos observando e que afetam mesmos, corn outra pessoa ou corn urn grupo nos nos colo-
nosso bem-estar; camos em nosso estado compassivo natural. Trata-se, portanto,
de uma abordagem que se aplica de maneira eficaz a todos os
Como nos sentimos em relacao ao que estamos observando; nfveis de comunicacao e a diversas situacOes:
As necessidades, valores, desejos etc. que estao gerando nos-
sos sentimentos; • relacionamentos Intimos;
As awes concretas que pedimos para enriquecer nossa vida. • famflias;
• escolas;
• organizacOes e instituicOes;
• terapia e aconselhamento;
Ao usarmos esse processo, podemos comecar nos expres- • negociacOes diplomaticas e comerciais;
sando ou entdo recebendo corn empatia essas quatro informa- • disputas e conflitos de toda natureza.

26 27
MARSHALL B. ROSENBERG I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

Algumas pessoas usam a CNV para estabelecer major grau de aprendizado e problemas de comportamento. Urn aluno de nossa
profundidade e afeto em seus relacionamentos intimos. Eis o sala cospe, diz palavrOes, grita e espeta outros alunos com lapis
depoimento de uma participante de um de nossos semindrios, quando se aproximam de sua carteira. Eu the dou a deixa: "Por
em San Diego: favor, diga isso de outro jeito. Use sua conversa de girafa". [Em
alguns seminaries, para demonstrar a civv, usam-se fantoches de
girafa.] Na mesma hora, ele se levanta, olha para a pessoa de
quern esta corn raiva e diz corn toda a calma: "Por favor, voce po-
Quando aprendi como posso receber (escutar) e dar (expressar) deria sair de perto da minha carteira? Eu fico corn raiva quando
por meio da CNV, superei a fase em que me sentia agredida e feita voce fica tao perto de mim". Os outros alunos em geral respon-
de capacho e comecei a realmente escutar as palavras e a captor dent corn algo nesta linha: "Me desculpe, eu tinha esquecido que
nelas os sentimentos subjacentes. Eu me dei conta do homem coin isso deixa voce aborrecido".
quern tinha estado casada por 28 anos, um homem muito sofrido. Comecei a pensar em minha frustracao corn essa crianca e ten tar
Ele havia pedido o divOrcio uma semana antes do seminario descobrir do que (alem de harmonia e ordem) eu precisava. Per-
[sobre cNvJ. Para encurtar uma histdria bem comprida, estamos cebi quanta tempo eu dedicava ao planejamento das aulas e como
aqui hoje — juntos — e estou ciente da contribuicao que [a ow] .
minha necessidade de ser criativa e contribuir estava sendo pas-
deu para termos um final feliz. [...1 Aprendi a escutar sentimen- sada para tras pela necessidade de manter o born comportamen-
tos, a expressar minhas necessidades, a aceitar respostas que nem to da classe. Tambem senti que nao estava atendendo as necessi-
sempre queria ouvir. Ele nao estci aqui so para me agradar, nem dades educacionais dos outros alunos. Quando ele tinha alguma
eu estou aqui para dar felicidade a ele. Ambos aprendemos a demonstracdo de raiva na aula, comecei a dizer: "Preciso que
crescer, a aceitar e a amar de modo que ambos possamos nos rea- voce preste atencao em mim". Eu talvez tivesse de dizer isso tern
lizar. vezes ao dia, mas ele acabava captando a mensagem e geralmen-
te se concentrava na aula.

Outros usam a CNV para estabelecer relacionamentos mais


eficazes no trabalho. Uma professora de Chicago escreve: Uma medica de Paris escreve:

Ha cerca de urn ano venho utilizando a CNV em minha turma de Cada vez mais, use a CNV na pratica clinica. Alguns pacientes
alunos especiais. Ela pode funcionar ate mesmo com eriancas que perguntam se sou psicaloga, explicando que seus medicos nao cos-
tern desenvolvimento retardado da linguagem, dificuldades de tumam se interessar pela maneira que vivern ou lidam corn as

28 29
I MARSHALL B. ROSENBERG I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

doencas. A CNV me ajuda a compreender quais sao as necessida- usaram a CNV para se expressar a respeito do problema da Cis-
des dos pacientes e o que eles precisam ouvir em determinado mo- jordánia, extremamente polemico. Muitos dos colonos israelen-
mento. Acho que isso ajuda sobretudo no relacionamento com he- ses que ali se estabeleceram acreditam que cumpriam uma de-
mofilicos e aideticos, pois ocorre tanta raiva e dor que é comum a terminacdo religiosa ao faze-lo; eles estdo enredados num
relacao entre o paciente e o profissional de saitcle ficar seriamen- conflito rid° apenas corn os palestinos, mas tambem corn israe-
te abalada. Faz pouco tempo, uma aidetica que venho tratando lenses que reconhecem o desejo palestino de ter soberania na-
ha cinco anos me disse que o que mais a tinha ajudado foram mi- cional na regido. Durante uma sessdo, um de meus instrutores
nhas tentativas de achar maneiras para ela desfrutar o dia-a- e eu criamos urn modelo de escuta com empatia usando a CNV.
dia. Nesse sentido, a CNV me auxilia muito. Antes, quando sabia Em seguida, convidamos os participantes a se alternarem nos
que urn paciente tinha uma doenca fatal, eu freqiientemente me papas uns dos outros. Passados vinte minutos, uma colona de-
atinha ao prognOstico, e, assim, era difi'cil estirnulci-los sincera- clarou que, caso seus opositores politicos se mostrassem capazes
mente a viver a vida. Corn a CNV, desenvolvi uma nova conscien- de ouvi-la do mesmo modo que havia acabado de ser ouvida,
cia, bem como uma nova linguagem. Fico assombrada em ver
ela estaria disposta a considerar abrir mao de suas reivindica-
quanto ela se encaixa bern em minha pratica clInica. A medida
cOes fundiarias e sair da Cisjordània para algum Lugar em terri-
que me envolvo cada vez mais na danca da CNV, sinto mais ener-
tOrio internacionalmente reconhecido como israelense.
gia e alegria no trabalho.
Hoje, em todo o mundo, a CNV serve como recurso valioso
para comunidades que enfrentam conflitos violentos ou graves
tensOes de natureza etnica, religiosa ou politica. 0 avanco do
Outros, por sua vez, empregam esse processo na politica. treinamento em CNV e seu use em mediacOes entre partes ern
Uma ministra francesa, ao visitar a irma, notou quanto esta e o conflito em Israel, no territOrio da Autoridade Palestina, na Ni-
marido estavam se comunicando e respondendo um ao outro geria, em Ruanda, em Serra Leoa e em outros lugares tem sido
de maneira diferente. Encorajada pela descried° que fizeram da motivo de especial satisfacdo para mim. Certa vez, meus asso-
CNV, mencionou que, na semana seguinte, estaria negociando ciados e eu estivemos em Belgrado durante tres dias muitissimo
corn a Argelia algumas questOes delicadas, ref erentes a procedi- tensos, treinando cidaddos que trabalhavam pela paz. Logo ao
mentos de adocdo. Embora o tempo fosse curto, despachamos ehegarmos, vimos estampada no rosto dos participantes uma
para Paris urn instrutor que falava frances, a fim de trabalhar expressdo de visivel desespero, pois o pais estava entao envolvi-
corn a ministra. Posteriormente, ela atribuiu grande parte do do numa guerra brutal na Bosnia e na CroAcia. A medida que o
sucesso de suas negociacOes na Argelia as novas tecnicas de co- freinamento avancou, comecamos a ouvir o som de riso em
municacdo que tinha adquirido. suas vozes, ao expressarem sua profunda gratiddo e alegria por
Em Jerusalem, durante urn seminario ao qual comparece- Icrem encontrado o recurso de que precisavam. Nas duas sema-
ram israelenses de diversas conviccOes polfticas, os participantes nas seguintes, trabalhando na Croacia, em Israel e na Palestina,

30 31
I MARSHALL B. ROSENBERG I I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

tornamos a ver cidaddos desesperados de paises arrasados pela intercOmbio real em que um dos interlocutores aplique os
guerra recuperarem o ammo e a confianca a partir do treina- principios da comunicagão ndo-violenta. Entretanto, a CNV
mento em CNV que recebiam. nelo é meramente uma linguagem, nem urn conjunto de tee-
Sinto-me abencoado por poder viajar o mundo todo ensi- nicas para usar as palavras; a consciência e a intencdo que
nando as pessoas um processo de comunicacao que lhes cid a CNV abrange podem muito bem se expressar pelo siléncio
poder e alegria. Agora, corn este livro, estou feliz e empolgado (uma caracteristica do estar presente), pela expressào facial
por poder compartilhar corn voce a riqueza da Comunicacao e pela linguagem corporal. Os diôlogos de 71 CNV em actio"
Não-Violenta. que voce leró são versOes necessariamente destiladas e resu-
midas de interdimbios da vida real, nos quais momentos de
RESUMO empatia silenciosa, narrativas, humor, gestos etc. contribui-
riam para que se estabelecesse entre as duos partes uma co-
A CNV nos ajuda a nos ligarmos uns aos outros e a nos mes- nexdo mais natural do que pode parecer quando se conden-
mos, possibilitando que nossa compaixdo natural floresca. Ela sam os did logos na forma impressa.
nos guia no processo de reformular a maneira pela qual nos ex-
pressamos e escutamos os outros, mediante a concentracdo em Numa mesquita do campo de refugiados de Deheisha
quatro areas: o que observamos, o que sentimos, do que neces- (em Belem, na Cisjordania), eu estava apresentando a comu-
sitamos, e o que pedimos para enriquecer nossa vida. A CNV pro- nicac5o nao-violenta a cerca de 170 muculmanos palestinos.
move maior profundidade no escutar, fomenta o respeito e a Na epoca, as atitudes para com os americanos nao eram po-
empatia e provoca o desejo miatuo de nos entregarmos de cora- sitivas. De repente, enquanto falava, percebi que uma onda
cao. Algumas pessoas usam a CNV para responder compassiva- de tumulto abafado se espalhava entre o pUblico. "Esta"o co-
mente a si mesmas; outras, para estabelecer maior profundi- chichando que voce e americano!", alertou meu interprete,
dade em suas relacOes pessoais; e outras, ainda, para gerar no mesmo momento em que urn dos participantes se levan-
relacionamentos eficazes no trabalho ou na politica. No mundo tava subitamente. Olhando fixo para mim, ele gritou a plenos
inteiro, utiliza-se a CNV para mediar disputas e conflitos em pulmbes: "Assassino!" De imediato, uma dazia de outras vozes
todos os nfveis. se juntou a ele em coro: "Assassino! Matador de criancas! As-
sassino!"

A CNV em ac5o Felizmente, fui capaz de concentrar minha atencâo no


que aquele homem estava sentindo e necessitando. No caso
"Assassino, matador de criancas!" em questão, eu tinha algumas pistas. A caminho do campo de
Intercalados em todo este livro, ha dialogos intitulados "A CNV refugiados, eu tinha visto varias latas vazias de gas lacrimo-
em Eles se destinam a proporcionar o gostinho de urn geneo, que haviam sido atiradas contra o campo na noite an-

32 33
I MARSHALL B. ROSENBERG I I COMUNICACAO NAO-VIOLENTA I

terior. Em cada uma delas, estavam claramente marcadas as EU Estou ouvindo quanto e penoso para voces criarem
palavras MADE IN USA (fabricado nos Estados Unidos). Eu sabia suas criancas aqui. Voce gostaria que eu soubesse que
que os refugiados tinham muita raiva dos EUA por fornecerem o que voce quer e o que todos os pais desejam para os
gas lacrimogeneo e outras armas a Israel. filhos — uma boa educacao, a oportunidade de brincar
Dirigi-me ao homem que havia me chamado de assassino: e crescer num ambiente saudavel...
ELE E isso mesmo! 0 basico! Direitos humanos — Fiala e isso
EU Voce esta corn raiva porque voce gostaria que meu go-. que voces americanos dizem? Por que nao vem mais de
verno usasse seus recursos de forma diferente? (Eu ndo voces aqui para ver que tipo de direitos humanos voces
sabia se meu palpite estava certo; no entanto, o fun- estao trazendo para ca?
damental era meu esforco sincero de me sintonizar EU Voce gostaria que mais americanos tomassem cons-
corn seu sentimento e suas necessidadesj ciencia da enormidade do sofrimento que ocorre aqui
ELE Pode ter certeza de que estou! Voce acha que precisa- e vissem profundamente as conseqUencias de nossas
mos de gas lacrimogeneo? Precisamos e de esgotos, awes politicas?
nao do gas lacrimogeneo de voces! Precisamos de mo-
radias! Precisamos ter nosso prOprio pais! Nosso dialogo continuou; ele expressando sua dor por
EU Entao voce esta furioso e gostaria de algum apoio para quase vinte minutos mais, e eu procurando escutar o senti-
melhorar suas condicOes de vida e obter a independen- mento e a necessidade por tras de cada frase. Nao concordei
cia politica? nem discordei. Recebi as palavras dele nao como ataques, mas
ELE Voce sabe o que e viver 27 anos aqui, do jeito que como presentes de outro ser humano que estava disposto a
tenho vivido corn a familia — filhos e tudo mais? Voce compartilhar comigo sua alma e suas profundas vulnerabili-
possui a mais palida nocao do que isso tern sido para dades.
nos? Uma vez que se sentiu compreendido, o homem foi
EU Esta me parecendo que voce esta muito desesperado e capaz de me ouvir explicar o motivo de eu estar naquele
que esta imaginando se eu ou qualquer outra pessoa campo. Uma hora depois, o mesmo homem que havia me cha-
pode realmente compreender o que significa viver nes- mado de assassino estava me convidando para it a sua casa
sas condicOes. Foi isso mesmo que voce quis dizer? para urn jantar de ramada.
ELE Voce quer compreender? Me diga: voce tern filhos?
Eles vão a escola? Eles tern playgrounds? Meu filho
esta doente! Ele brinca no esgoto a ceu aberto! Sua
sala de aula nao tern livros! Voce viu uma escola que
nao tern livros?

34 35

Você também pode gostar