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@ 2000 Leonardo Boff
Todos os direitos desta edição reservados
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Letraviva Editortal LIda.


SOS - BI. O - Ed. Venãncio VI - Lj. 27
Telefone (061) 224-4607 - Fax (061) 225-8494
CEP 70393-900
letra viva @zaz.com.br

Preparação: Reivaldo Vinas


Capa: William Franklin
Coordenação de editoração: Vandertei Almeida
Editoração eletrônica: Cia. Projecto Editortal

Aos alunos e colegas do Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (UERJ), pelo mútuo frutificação.

BoFF, Leonardo.
Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasma : Letraviva,
2000.

Ilustrada.

165p.

ISBN 85-87374-19-2

1. Ética. 2. Ecologia. 3. Religião. 4. Crtstianismo - Mensagem - I. Titulo.

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Pm",cio, 11 "
1, 13 .1 •
URG~NCtA DE UM ETHOS MUNDIAL,
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o ETHOS MUNDIAL DE QUE PRECISAMOS, 13 I
I _
1. Problemas globais, soluções globais, 13
2. A revoluçõo possível em tempos de globolização, 16

2. O PLANETÁRIO: NOVO PATAMAR DA TERRA E DA HUMANIDADE, 23

1. Uma visão ecocêntrica, 24


2. Ótico global- ético global, 26
3. Globolizoção e novo cosmologia, 27
4. O diólogo obrigatório de fados com todos, 29

3. COMO FUNDAR UMA ÉTICA PLANETÁRIA?, 33


al Que é ético, que é moral, 34
b) como se relociono o ético com a moral, 36
c) os dois projetos éticos do modernidade, 41
d) natureza e espírito no ética contemporôneo, 45

7
, .

I
l E O N 100 BOff
E T H O MUNDIAL
t

4. FORMAS DE UNIVERSALIZAÇÃO DO DISCURSO ~TICO, 49


b) a solidoriedode político, 110
INTRODUÇÃO, 49 c) o subietividade da natureza, 112

1. O utilitarismo social: alcance e limite, 50 3. Ética da responsabilidade, 115


o) princípios do elhos ulilitaristo, 51 4. Ética do dióloga, 117
b) aplicação dos princípios à globalização, 54 5. Ética da com-paixão e da libertação, 120
2. A ética do ação comunicativa e da justiça, 57 6. Ética holística, 123
o) o resgate da dimensão ética da modernidade, 57
b) aplicação dos princípios à globalização, 61 7. MisTICA E ESPIRITUAlIDADE: BASE PARA UMA ~TICA MUNDIAL?, 127
3. A ético fundada na natureza: qual natureza?, 65
1. Que é espiritualidade e mística, 129
a) a dupla dimensão do ser humano, 66
2. Convergências entre as religiões, 131
bJ distorções na compreensão da natureza, 69
c) o dado e o feito na nalureza, 70
8. CONCLUSÃO: VIRTUDES DE UM ETHOS MUNDIAL, 135
d) aplicação do ethos da natureza à globalização, 73
4. Ética mundial fundada nas tradições religiosas, 76 INDICACÕES BIBLIOGRÁfiCAS, 139
o) paz religioso, base para o paz político, 77 A CARTA DA TERRA, 147
b) consenso mínimo sobre um ethos mundial, 79
O CAMINHO ADIANTE, 163
5. A ética fundada no pobre e no excluído, 83
o) princípio supremo: liberto o pobre, 84
b) o universalidade pelo via do parciolidade, 87
6. Dignitas Terrae: uma ética eco-centrada, 89
o) Antecedentes históricos do Carta da Terra, 90
Princípios e valores éticos da Carla da Terra, 93
I. Respeitar e Cuidar da Comunidade de Vida, 95
11.Integridade Ecológica, 95
111.Justiça Social e Econômica, 96
Iv' Democracia, Não-Violência e Paz, 96
7. Conclusão: um ethos e muitas morais, 98

5. O PATHOS E O CUIDADO COMO NOVA PLATAfORMA DO ETHOS


HUMANO E PLANETÁRIO, 101
1. Sinto, logo existo, 102
2. A essência humana: ° cuidado, 105

6. IMPERATIVOS MiNIMOS DE UMA ÉTICA MUNDIAL, 107

1 . Ética do cuidado, 107


2. Ética da solidariedade, 109
o) a lei cósmico do solidariedade, 109

8 9
PREFÁCIO

Há ampla discussão em todas as sociedades sobre


a urgência de um ethos mundiaL As vozes dominantes
vêm do Norte, a partir donde se hegemoniza o proces-
so de globalização. Poucas são as vozes que vêm do Sul.
A definição do lugar social não é indiferente, porquanto
cada lugar social é caracterizado por interesses e opções
prévias,na maioria das vezes não conscientizados. Como
se trata de alcançar uma perspectiva global, importa que
tais limitações sejam superadas.
o interesse pelo patrimônio natural comum da
vida e da humanidade, hoje vastamente ameaçado,
nos obriga a certos consensos mínimos. Da mesma
forma, o agravamento da pobreza, da degradação
do ambiente e do desemprego estrutural demandam
um novo pacto ético da humanidade, sem o qual o
futuro pode ser ameaçador para todos.
Eis a razão de nosso texto. Ele surgiu de debates
em vários foros no Brasil e no exterior e de aulas no
curso de pós-graduação da Universidade do Estado

]]
lEON RDOBoFF

do Rio de Janeiro. Procura-se aqui reafirmar a pers- /


pectiva do grande Sul, que, na verdade, significa a 1. URGÊNCIA DE UM /
ótica dos pobres e dos excluídos, mas sempre tendo ETHOS MUNDIAL
em conta a necessidade de convergências entre os in-
terlocutores do Norte e do Sul, em vista de um bene-
fício comum da Terra e da Humanidade.
Nossas reflexões possuem caráter meramente
introdutório. Elas demandam mais estudo e aprofun-
damento, como é sugerido pela ampla bibliografia
referida.

Petrópolis, junho de 2000. /


/

o Ethos mundial de que


precisamos

Três problemas suscitam a urgência de uma ética


mundial: a crise social, a crise do sistema de trabalho e
a crise ecológica, todas de dimensões planetárias.

1. Problemas globais, soluções globais

Em primeiro lugar, a crise social. Os indicado-


res são notórios e não precisamos aduzi-los. A mu-
dança da natureza da operação tecnológica, median-
te a robotização e a informatização, propiciou uma
produção fantástica de riqueza. Ela vem apropriada,

12 13
l E O N '. D O B 'O F F
E T H O MUNDIAL

de forma altamente desigual, por grandes corpora-


descartáveis, criando um imenso exército de excluí-
ções transnacionais e mundiais que aprofundam ain-
dos em todas as sociedades mundiais.
da mais o fosso existente entre ricos e pobres. Essa
Tal mudança na própria natureza do processo tec-
acumulação é injusta, porque pessimamente
nológico demanda um novo padrão civilizatório.Haverá
distribuída. Os níveis de solidariedade entre os hu-
desenvolvimento sem trabalho.A grande questão não será
manos decaíram aos tempos da barbárie mais cruel.
o trabalho - esse no futuro poderá ser o luxo de alguns -,
Tal fato suscitaum fantasma aterrador: uma bifurca-
mas o ócio. Como passar de uma sociedade de pleno
ção possível dentro da espécie humana. Por um lado, es-
emprego para uma sociedade de plena atividade que ga-
trutura-se um tipo de humanidade opulenta, situada nos
ranta a subsistência individual? Como fazer com que o
países centrais,que controla os processos científico-técni-
ócio seja criativo, realizador das virtualidades humanas?
cos, econômicos e políticos e é o oásisdos países periféri- Libertado do regime assalariadoa que foi submetido pela
cos onde vivem as classes aquinhoadas. Todos esses se
sociedade produtivista modema, especialmente capita-
beneficiam dos avanços tecnocientíficos,da biogenética e
lista,o trabalho voltará à sua natureza original:a atividade
da manipulação dos recursos naturais e vivem em seus criadora do ser humano, a ação plasmadora do real, o
refúgios por cerca de 120/130 anos, tempo biológico de demiurgo que transporá os sonhos e as virtualidades pre-
nossas células.Por outro, a velha humanidade, vivendo
sentes nos seres humanos em práticas surpreendentes e
sob a pressão de manter um status de consumo razoável em obras expressivas do que seja e do que pode ser a
ou simplesmente na pobreza, na marginalizaçãoe na ex- criatividadehumana. Estamos preparados para esse salto
clusão. Esses, os deserdados e destituídos, vivem como de qualidade rumo à plena expressão humana?
sempre viveu a humanidade e alcançam no máximo a
Em terceiro lugar, emerge a crise ecológica. Os
média de 60-70 anos de expectativa de vida.
cenários também são de amplo conhecimento, divul-
Em segundo lugar, a crise do sistema de trabalho: gados não apenas por reconhecidos institutos de pes-
as novas formas de produção cada vez mais automati-
quisa que se preocupam com o estado global da Terra,
zadas dispensam o trabalho humano; em seu lugar,
mas também pela própria Cruz Vermelha Internacio-
entra a máquina inteligente. Com isso, destroem-se
nal e por vários organismos da ONU. Nas últimas dé-
postos de trabalho e tornam-se os trabalhadores
cadas, temos construído o princípio de autodestruição.

14 15
l E O N DoBoff E T H O U N D I A I

A atividade humana irresponsável em face da máquina e da cultura. Essa forma é profundamente desigual, por-
de morte que criou pode produzir danos irreparáveis à que privilegia as minorias que detêm o ter, o poder e o
biosfera e destruir as condições de vida dos seres huma- saber sobre as grandes maiorias que vivem do trabalho;
nos. Numa palavra, vivemos sob uma grave ameaça de em nome de tais títulos se apropriam de maneira privada
desequilibrio ecológico que poderá afetar a Terra como dos bens produzidos pelo empenho de todos. Os laços
sistema integrador de sistemas. Ela é como um coração. de solidariedade e de cooperação não são axiais, mas o
Atingido gravemente, todos os demais organismos vi- são o desempenho individual e a competitividade, cria-
tais serão lesados: os climas, as águas potáveis, a química dores permanentes de apartação social com milhões e
dos solos, os microorganismos, as sociedades humanas. milhões de marginalizados, de excluídos e de vitimas.
A sustentabilidade do planeta, urdida em bilhões de anos A raiz do alarme ecológico reside no tipo de relação
de trabalho cósmico, poderá desfazer-se. A Terra bus- que os humanos, nos últimos séculos, entretiveram com a
cará um novo equilibrio que, seguramente, acarretará Terra e seus recursos: uma relação de domínio, de não reco-
uma devastação fantástica de vidas. Tal princípio de nhecimento de sua alteridade e de fàlta do cuidado necessá-
autodestruição convoca urgentemente outro: o princí- rio e do respeito imprescindível que toda alteridade exige. O
pio de co-responsabilidade por nossa existência como projeto da tecnociência, com as caracteristicasque possui hoje,
espécie e como Planeta. Se queremos continuar a aven- só foi possível porque, subjacente, havia a vontade de poder
tura terrenal e cósmica, temos de tomar decisões coleti- e de estar sobrea natureza e nãojuntodela e porque se destruiu
vas que se ordenam à salvaguarda do criado e à manu- a consciência de uma grande comunidade biótica, terrena! e
tenção das condições gerais que permitam à evolução cósmica, na qual se encontra inserido o ser humano, junta-
seguir seu curso ainda aberto. mente com os demais seres.
Esta constatação não representa uma atitude
2. A revolução possível em
obscurantista em face do saber científico-técnico, mas
tempos de globalização
uma critica ao tipode saber científico-técnico e àjormacomo

A causa principal da crise social se prende à for- ele foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi.

ma como as sociedades modernas se organizaram no Este implica a destruição da aliança de convivência har-

acesso, na produção e na distribuição dos bens da natureza mônica entre os seres humanos e a natureza, em favor de

16 17
L E O N DOBOFF T H O UNO I A l

interessesapenas utilitaristase parcamente solidários.Não outro tipo de história, caracterizada pelas culturas
se teve em conta a subjetividade,a autonomia e a alterida- regionais e pelos estados-nações. Para tal revolução
de dos seres e da própria natureza. global, far-se-ia necessária uma ideologia revolucio-
Importa, entretanto,reconhecer que o projeto da tec- nária global, com seus portadores sociais globais que
nociência trouxe incontáveis comodidades para a exis- tivessem tal articulação, coesão e tanto poder que
tência humana. Levou-nos para o espaço exterior, crian- fossem capazes de se impor a todos. Ora, tal situação
do a chance de sobrevivência da espécie homo sapiens/ de- não é dada nem possivelmente dar-se-á proximamen-
mens em caso de uma eventual catástrofe antropológica. te. E os problemas gritam por um encaminhamento,
Universalizou formas de melhoria de vida (na saúde, na pois sem ele poderemos ir de encontro ao pior.
habitação, no transporte, na comunicação, etc.) como ja- A saida que muitos analistas propõem e que nós
mais antes na história humana. Desempenhou, portanto, assumimos - é a razão de nosso texto - é encontrar
uma função libertadora inestimável. Hoje, entretfU1to,a uma nova base de mudança necessária. Essa base de-
continuação desse tipo de apropriação utilitarista e veria apoiar-se em algo que fosse realmente comum
anti-ecológica poderá alcançar limites intransponíveis e e global, de fácil compreensão e realmente viável.
dai desastrosos. Atualmente, para conservar o patrimô- Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética,
nio natural e culturalacumulados,devemos mudar. Senão de uma ética mínima, a partir da qual se abririam
mudarmos deparadigmacivilizatório,senão reinventarmos possibilidades de solução e de salvação da Terra,
relações mais benevolentes e sinergéticascom a natureza da humanidade e dos desempregados estruturais.
e de maior colaboração entre os vários povos, culturas e Bem o reconheceu o ex-governador do Distrito
religiões,dificilmente conservaremos a sustentabilidade Federal, o educadol; e economista Cristovam Buarque:
necessária para realizar o projeto humano, aberto para o
"O programa de erradicação da pobreza não
futuro e para o infinito.
será o resultado de uma revolução social, nem será
Para resolver esses três problemas globais, de- possível com o poder exclusivo de um único parti-
ver-se-ia, na verdade, fazer uma revolução também do; qualquer que seja o governo, será necessária
global. Entretanto, assim nos parece, o tempo das uma base de apoio ampla, baseada ... numa
revoluções clássicas, havidas e conhecidas, pertence a coalizão que se fará por razões éticas, muito mais

18 19
LEON/DOBOFF
ETHOS UNO I A I

do que por razões políticas" (Asegunda abolição,


toda ética nasce de uma nova ótica. E toda nova óti-
Paz e Terra, Rio 1999, 30).
ca irrompe a partir de um mergulho profundo na ex-

Nessa linha, dever-se-á, pois, fazer um pacto ético, periência do Ser, de uma nova percepção do todo

fundado, como veremos, não tanto na razão ilustrada, ligado, re-ligado em suas partes e conectado com a
mas no pathos, vale dizer, na sensibilidade humanitária Fonte originária donde promanam todos os entes.
e na inteligência emocional expressas pelo cuidado,
pela responsabilidade social e ecológica, pela
solidariedade generacional e pela compaixão, atitudes
essas capazes de comover as pessoas e de movê-las
para uma nova prática histórico-social libertadora. Urge
uma revolução ética mundial.
Tal revolução ética deve ser concretizada dentro da
nova situaçãoem que se encontram a Terra e a humanida-
de: o processo de globalização que configura um novo
patamar de realização da história e do próprio planeta.
Nesse quadro, deve emergir a nova sensibilidadee o novo
ethos, uma revoluçãopossívelnos tempos da globalização.
Por ethoI, entendemos o conjunto das inspirações,
dos valores e dos princípios que orientarão as rela-
ções humanas para com a natureza, para com a
sociedade, para com as alteridades, para consigo
mesmo e para com o sentido transcendente da exis-
tência: Deus. Como veremos ao longo de nossas re-
flexões, esse ethos não nasce límpido da vontade, como
Atena nasceu toda armada da cabeça de Júpiter. Mas

20 I'
i 21
2. O PLANETÁRIO: NOVO
PATAMAR DA TERRA E DA
HUMANIDADE.

A irrupção da consciênciáacerc
pátria e mátria comum de todos os seres funda o novo
patamar da realização da história e do próprio Pla-
neta. Esse processo de constituição já possui mais de
quatro bilhões de anos. A figura dos estados-nações
circunscritos aos seus limites geográficos e culturais
pertence a um outro tipo de história, embora como
modelo seja ainda dominante e funcionalmente por
enquanto seja imprescindível.
Importa reconhecer que o estado-nação repre-
senta ainda um fator político decisivo na coorde-
nação de um projeto nacional, aberto ao global':
no estabelecimento de políticas públicas que so-
mente um ente público pode operar e no controle

23
LEONA JOBOFF ETHOS i N O I A l

dos grandes conglomerados globais que, ao buscar ,Colocará no centro não este ou aquele país ou bloco
seus interesses privados, assaltam e dilapidam as eco- geopolítico e econômico, esta ou aquela cultura, mas a
nomias regionais e nacionais, indefesas diante de sua Terra, entendida como um macros sistema orgânico,
voracidade ilimitada. um super-organismo vivo, Gaia, ao qual todas as ins-
Ademais, enquanto não forem estabelecidas as tâncias devem servir e estar subordinadas. A esse cen-
instituições e as configurações jurídicas que assumem tro pertence a humanidade, composta por @hos e fi-
a governança da república terrenal e zelam pelo pa- lhas da Terra, humanidade entendida como a própria
trimônio comum da biosfera e da humanidade, o es- Terra que alcançou o estágio de sentimento, de pensa-
tado não pode ver seu poder erodido, a preço de mento reflexo, de responsabilidade e de amorização.
não se aplicarem soluções globais somente possíveis Juntamente com a humanidade, devem ser con-
mediante ações inter-estatais. Enquanto tais instâncias siderados os demais organismos da rede da vida, com
não surgirem, cabe aos estados, em espírito de par- os quais a humanidade está numa profunda ligação
ceria global, buscar soluções para todo o planeta e de parentesco, pelo fato de que fundamentalmente a'
para a humanidade. vida é uma e única (a mesma estrutura básica da ca-
Apesar desta sua função de salvaguarda, a cate- deia ADN se encontra em todos os seres vivos) na
goria estado-nação está sendo lentamente superada diversidade de suas manifestações. Nesse sentido, não
pela crescente consciência da cidadania planetária e se pode pensar a Terra-Gaia e a humanidade à parte
pelo cuidado na preservação do patrimônio natural dos demais representantes da vida e das condições
e cultural comum da humanidade e da biosfera, físico-químicas que garantem a existência e a perpe-
preocupação esta assumida pela própria humanida- tuidade da vida.
de, por suas instituições de todo o tipo (especialmente A partir destas imbricações, nos damos conta
os estados) e por cada cidadão terrenal. de que tudo depende da salvaguarda da Terra e da
manutenção das condições de sua vida e reprodução.
1. Uma visão ecocêntrica Nenhum outro projeto tem sentido, pois lhe falta a
pré-condição fundamental, exatamente a sobrevivên-
A globalização está ainda buscando sua expres-
cia da Terra e dos @hos e @has da Terra. A consciência
são institucional. Ela será seguramente ecocêntrica.

24 25
lEONA, o 80FF ETHOS N o I A l

desta nova percepção está ainda longe de ser coleti- nova sensibilidade, o pathos, estruturador de uma
vamente partilhada. nova plataforma civilizatória.

2. Ótica global - ética global 3. Globalizafião e nova


cosmologia
Para uma realidade global, importa também uma
ética global. Até agora predominava uma ética tra-
Para garantir o acerto deste ethos, importa, antes
duzida nas várias morais, próprias de cada cultura ou de mais nada, assumir a perspectiva essencial da glo-
região do planeta. Elas não ficam invalidadas, pois balização como ela vem apresentada pela nova cos-
determinam valores, normas e práticas do ser huma-
mologia: ver a Terra concreta, como ela se apresenta,
no em seu arranjo existencial, social e ecológico con- empiricamente, ao olho da experiência cotidiana, me-
creto. Todas nasceram da reflexão humana sobre o lhorada pela análise das ciências empíricas. Nela, as
ethos, que é de natureza universal. O ethos configura a coisas não estão justapostas, mas todas inter-re-
atitude de responsabilidade e de cuidado com a vida, troconectadas. Não se trata, pois, de manter separa-
com a convivência societária, com a preservação da
dos, ou meramente justapostos, a Terra como planeta
Terra ,com cada um dos seres nela existentes e com a físico, a biosfera e a humanidade. Trata-se de manter,
identificação de um derradeiro Sentido do universo. conscientemente, unido aquilo que sempre vem unido.
Esse ethos básico se traduz em morais ligadas ao Trata-se de entender a Terra como totalidade físico-
regional e ao cultural e, por isso, com validade limi-
química, biológica, socioantropológica e espiritual, una
tada ao regional e ao cultural. e complexa; numa expressão: nossa casa comum.
A demanda agora é por um ethos que seja ade-
É a visão que resulta das naves espaciais. De lá
quado ao novo patamar da história, que é global e da Lua ou no espaço exterior, a Terra aparece em sua
planetário. Esse ethos globalitário não pode ser a esplêndida e frágil unidade. Não há diferença entre
implantação de uma moral regional, embora do- Terra e humanidade. Elas formam um todo orgânico
minante. Importa projetarmos um ethos que seja, e sistêmico. Esta experiência de contemplar a Terra
realmente, expressão da globalização e da planeti- de fora da Terra está mudando o estado de consciên-
zação da experiência humana, assentado sobre uma
cia da humanidade, como o mudou nos astronautas;

26 27
lEONAR o B o F F ETHosM N D I A l

consciência que se sente unificada com a Terra e, por 4. O diálogo obrigatório de todos
meio da Terra, com o cosmos. com todos
O sistema-Terra, por sua vez, com seus sub-
sistemas ecológicos, é fruto da história do univer- Essa unidade complexa, ao ser pensada e cons-
so. A vida aparece como emergência da complexi- truída como projeto coletivo, não pode ter como
dade da história da Terra, como matéria que se referência única o modelo do ser humano ocidental,
auto-organiza; e a vida humana, como irrupção da branco, adulto, científico-técnico, cristão, seculariza-
história da complexidade da vida. Aqui não há do, mas deve incorporar outros elementos
disjunção, mas conjunção. Tudo constitui um úni- civilizacionais, como o multiétnico, o multirreligio-
co processo complexo (portanto, não linear), di- so, o feminino, os vários estados etários, entre ou-
nâmico e ainda aberto. tros. Mas fundamentalmente deve dar centralidade à
Mais ainda, com o surgimento do cibionte (a questão ética e moral, pois, como vimos, a Terra está
combinação do ser humano com a cibernética), en- ameaçada em seu equilibrio ecológico (ecologia
tramos definitivamente numa fase nova do processo ambiental) e a maioria da humanidade sofre sob
evolucionário humano. Quer dizer, a tecnologia não pesadas injustiças sociais (ecologia social). Importa
é algo instrumental e exterior ao ser humano. Incor- construirmos uma civilização planetária que consiga
porou-se à sua natureza concreta. Sem o aparato inserir a todos, que impossibilite a bifurcação da hu-
tecno-científico, não se pode mais entender a existên- manidade (ecologia integral) e que mantenha unidos,
cia concreta e a sobrevivência humana. Paripassu está conscientemente, os pólos da unidade e da diversi-
se criando um novo cérebro, um novo córtex cere- dade como valores complementares (ecologia mental).
bral, a world wide web (rede mundial de comunicação): Faz-se mister, pois, por um lado, manter as cul-
a conexão de todos com todos, o acesso individual a turas em sua singularidade e, por outro, abri-las a um
todo o conhecimento e informação acumulada pela diálogo obrigatório com todas as demais, com as
humanidade (via internet e rede global de comunica- perdas e ganhos que tal processo comporta. Caso
ção). Cada pessoa se transforma, de certa forma, num contrário, fecham-se sobre si mesmas e originam os
neurônio do cérebro ampliado de Gaia. fundamentalismos de todo matiz. Mas, ao se abrirem,

28 29
lEONA ElHOSI N D I A l
DoBoFF

revelam virtualidades latentes insuspeitadas, enrique- Esta leitura modificou nossa concepção do mun-
cendo a si e às outras culturas. do, do ser humano e de sua missão na história cósmi-
Para tal diligência, faz-se necessário superar o ca. Para nova música, novos ouvidos. Que ética e que
paradigma moderno, que fraciona, atomiza e reduz. moral importa viver nesta era ecozóica e planetária?
Há de se chegar ao paradigma holístico contempo- Por ela, fazemos frente aos problemas que deman-
râneo, que articula, relaciona tudo com tudo e vê a dam equacionamentos urgentes, como a crise social,
coexistência do todo e das partes (holograma), a a redefinição do trabalho e o alarme ecológico.
multidimensionalidade da realidade com sua não-
linearidade, com equilíbrios/desequilíbrios, com
caos/cosmos e vida/morte. Enfim, todas as coisas
devem ser contempladas na e através de sua relação
eco-organizadora com o meio ambiente cósmico,
natural, cultural, econômico, simbólico, religioso e
espiritual.
Urge, pois, alimentar uma postura global, quer
dizer, pensar globalmente e agir localmente; e de pen-
sar localmente e agir globalmente. Como Edgar
Morin, o gtande teórico da complexidade, chamou a
atenção, o novo pensar planetário não opõe o uni-
versal ao concreto, o geral ao singular. O universal se
tornou singular, porque cada singular é parte e par-
cela do universo. O concreto é o universo terrestre,
dentro do qual vivemos, nos movemos e somos. As-
sistimos, hoje, de forma extremamente densa, ao nas-
cimento do universal concreto: a planetização, novo
patamar da Terra e da humanidade.

30 31
3. COMO FUNDAR UMA
ÉTICA PLANETÁRIA?

I Como construir uma plataforma comum sobre

9 a qual todos possamos nos assentar e nos entender?


Para viver como humanos, os homens e as mulheres
precisam criar certos consensos, coordenar certas
ações, coibir certas práticas e elaborar expectativas e
projetos coletivos. Sempre houve tal fato desde os
primórdios da constituição das comunidades huma-
nas. Surge, então, a questão da validade de uma refe-
rência ética e moral comum que possa congregar a
todos. Qual a base para essa referência comum?
Hoje as relações são extremamente complexas.
I
~.~
• - I I-
- "
,; Postula-se uma referência para a totalidade dos seres
humanos, habitantes do mesmo planeta, que agora se
descobrem como espécie, interdependentes, viven-
do numa mesma casa e com um destino comum. Se

33
lEONI DoBoFF ETHosM N D I A l

não criarem um acordo quanto a exigências éticas e ele sentir-se bem no mundo. Ela não é, de antemão ,
morais mínimas, como poderão co-existir pacifica- dada pela natureza, mas tem de ser construída pela
mente, preservar o lar comum e garantir um futuro atividade humana. Eis a obra da cultura. A morada
para todos? .deve ser cuidada e continuamente retrabalhada , en-
feitada e melhorada. Em outras palavras: o etbos não
a) Que é ética, que é moral
é algo acabado, mas algo aberto a ser sempre feito,
No encaminhamento destas questões, precisa- refeito e cuidado como só acontece com a moradia
mos voltar ao sentido originário da ética e da mora- humana. E/hos se traduz, então, por ética. É uma rea-
lidade. Todas as morais, por mais diversas, nascem lidade da ordem dos fins: viver bem, morar bem.
de um transfundo comum, que é a ética. Ética so- Ética tem a ver com fins fundamentais (como poder
mente existe no singular, pois pertence à natureza hu- morar bem), com valores imprescindíveis (como de-
mana, presente em cada pessoa, enquanto a moral está fender a vida, especialmente a do indefeso), com prin-
sempre no plural, porque são as distintas formas de cípios fundadores de ações (dar de comer a quem
expressão cultural e histórica da ética. tem fome), etc.
I
Que é a ética? A filologia da palavra ética nos O centro do ethos (moradia) é o bem (platão),
serve de orientação para seu sentido originário. pois somente ele permite que alcancemos nosso fim,
Ética vem do grego etbos. Essa palavra se escreve que consiste em sentirmo-nos bem em casa. E nos
de duas formas: com eta, (a letra e em tamanho peque- sentimos bem em casa (temos um ethos, realizamos o
no) e com o epsílon (a letra E em tamanho grande). fim almejado) quando criamos mediações adequadas,
E/bos com e pequeno significa a morada, o abri- como hábitos, certas normas e maneiras constantes
go permanente seja dos animais (estábulo), seja dos de agir. Por elas, habitamos humanamente o mundo ,
seres humanos (casa). No âmbito da totalidade da que pode ser a casa concreta, ou o nosso nicho eco-
Mãe-Natureza (chamada de p!?ysis, filosoficamente, e lógico local, regional, nacional ou nossa casa maior ,
Gaia, miticamente), o ser humano delimita uma por- o planeta Terra.
ção dela e aí constrói para si uma morada. A morada Para Aristóteles, o centro do etbos (moradia) é a
o enraíza na realidade, dá-lhe segurança e permite a felicidade, não no sentido subjetivo moderno, mas

34 35
L E O N ,DOBOFF ETHOS , N O I A l

no sentido objetivo, como aquele estado de autono- (ethos/ moral) visam a fazer a moradia humana e o meio
mia vivido no nível pessoal e no nível social (polis). social sustentáveis, autônomos e habitáveis (ethos/ éti-
Poderíamos traduzir essa felicidade/ autonomia como ca) para todos, portanto, bons e produtores de felici-
a auto-realização do cidadão em sua dimensão pes- dade. Demos um exemplo concreto dessa imbrica-
soal e social. Esse fim, a autonomia, realiza-se por ção entre ética e moral. Para efeito de clareza, vamos
intermédio de mediações, tais como hábitos, virtu- usar formulações negativas.
des e estatutos jurídicos, que são os caminhos con- Que significa dizer: "essa pessoa não possui éti-
cretos da auto-realização pessoal e societária. ca"? Significa dizer: "essa pessoa não possui prinápios,
Esses meios também eram chamados de ethos, mas age oportunisticamente, consoante as vantagens que
escrito com E grande (o epsílon, em grego). Ele signi- possa auferir; dela não se poderá esperar nenhum com-
fica os costumes, vale dizer, o conjunto de valores e de o portamento coerente e previsível, porque não possui
hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. uma opção fundamental de vida". Não tem ética, por
Ethos como o conjunto dos meios ordenados ao fim exemplo, um jornalista que trai seus prinápios para
(bem/ auto-realização) se traduz comumente por mo- fazer, por bom dinheiro, a campanha de um político
ral. Moral (mos-mores, em latim) significa, exatamente, notoriamente corrupto. A alegação de que faz um "tra-
os costumes e valores de uma determinada cultura. balho profissional" não justifica a traição ética do jor-
Como são muitos e próprios de cada cultura, tais va- nalista ou de qualquer outro profissional.
lores e hábitos fundam várias morais. Como se Que significa dizer: "essa pessoa não possui
depreende, o ethos/moral está sempre no plural, en- moral"? Significa: "essa pessoa não possui virtudes,
quanto o ethos/ casa está sempre no singular. mente, engana clientes, rouba dinheiro público, ex-
plora trabalhadores, faz violência em casa". Essa pes-
b} como se relaciona a ética com a soa pode até ter ética (prinápios e valores fundamen-
moral tais) mas age em contradição com os seus prinápios.
Pode ocorrer que a pessoa não possua nem ética
Ethos com e pequeno (morada) e ethos com E
nem moral: age aleatoriamente, consoante seus inte-
grande (costumes e tradições), ou ética e moral, arti-
resses mais imediatos. Não tem prinápios e atua
culam-se intrinsecamente. Os hábitos e os 'costumes

36 37
. I
lEONA JOBOff ETHosM N o I A l

consoante as vantagens individuais. Exemplo disso como a energia originária (pf?ysis), não se inimiza com
pode ser o de uma modelo ou atriz que se deixa foto- o fogos, mas se expressa por meio dele e com ele.
grafar nua, em poses provocantes, em revistas de gran- Aqui se operou uma decisão grávida de conse-
de circulação, em troca de muito dinheiro. A alega- qüências para toda a história, pelo menos ocidental:
ção de que se trata de "nu artístico" ou de que é "um conferir centralidade ao fogos, à capacidade intelecti-
trabalho profissional" não desculpa a falta de ética va e racional do ser humano. Como veremos mais
(princípios, atitudes fundamentais) e a falta de moral abaixo, e já antecipando, a mensagem da natureza não
(atos contrários aos princípios). Outras artistas igual- é captável apenas pelo fogos, mas por outros órgãos
mente formosas, mas com ética e moral, jamais ven- que compõem a capacidade perceptiva do ser huma-
deriam sua imagem por dinheiro nenhum, exatamen- no, como a intuição, a simpatia, a empatia (pathos), os
te para não contradizer sua ética e moral. sentidos espirituais, especialmente o sentido do cui-
Mas eisque surgeuma questão iniludível:quem defi- dado para com tudo o que vive e tem valor. De todas
ne o que seja ético e moral para a morada humana? Que I as formas, importa constatar que a nossa cultura oci-
instância apontará os critérios de bondade ou de malda-
i dental privilegiou o fogos e fez dele a instância básica
de, sejam da moradia humana (ethos) sejam dos costu- de discernimento que orienta a decisão da vontade.
mes e valores (moral) que organizam essa moradia? Natureza e fogos,nessa compreensão, andam sempre
Há muitas respostas. A tradição grega, da qual juntos e constituem as referências comuns para os com-
somos herdeiros, diz unanimemente: cabe ao fogos portamentos morais da sociedade. Concemem a todas as
humano (razão) definir o que é bom e habitável para pessoas indistintamente, porque todas são portadoras de
todos. Para cumprir bem essa sua missão, o fogos deve natureza e de fogos.Ambos visam à felicidade,quer dizer,
saber auscultar a natureza. Ela não é muda. Está cheia à auto-realização humana num ambiente sociale ecológi-
de mensagens e de apelos. Os gregos vão mais longe. co integrado e equilibrado. Natureza e fogos fundam um
Afirmam que o fogos humano não está fora e acima da casamento feliz,cada um diferente do outro, mas de mãos
natureza (pf?ysis); é parte dela, um órgão da própria dadas a serviço da morada humana pessoal e social (ethos).
natureza que capacita captar o que é bom ou ruim Ora, ocorre que natureza e fogos estão inseridos
para a morada humana. Portanto, a natureza, entendida na história, o que não foi percebido, adequadamente,

38 39
lEONA DoBoFF
ETHOSM"NDIAl

pelos gregos. A história não pode ser freada e enges- uma compreensão metafísica da natureza, entendida
sada. Está sempre em processo, em mudança, em de forma estática, com leis e diretivas imutáveis e pre-
construção do ainda não ensaiado e instituído. visíveis. Posteriormente, esta leitura foi encampada
Na história posterior às grandes sínteses da filoso- pelo magistério oficial da Igreja Católica. A lei natu-
fiaclássicagrega, hgos e natureza seguiram rumos distin- ral é interpretada como a manifestação da lei eterna
tos. Romperam o idilio da integração mútua e da har- dentro do mundo natural, pensado como um siste-
monização. Como dois cavalos, começaram a puxar a ma acabado e fechado. Aqui se tenta equilibrar, como
carruagem em direções diferentes e até contrárias. entre os gregos, a natureza com a razão, a serviço do
A natureza desborda do fogos. Este expressa al- plano eterno de Deus.
gumas virtualidades da natureza. Mas ela comporta
outras e outras. Emerge a historicidade da natureza c) os dois projetos éticos da
e da razão. Surgiram assim os conflitos das razões e modernidade
das interpretações sobre a natureza e a missão da
Em seguida, nos tempos modernos, as mu-
razão.
danças ocorreram na compreensão do fogos. Este
Coube aos modernos perceber essa dimensão
é subjetivado. O s'!Jeito racional, e não tanto a na-
de historicidade. Natureza e fogos não são grandezas
tureza, é visto como portador privilegiado, senão
simples e eqüipolentes. Todo fogos é natural. Mas nem
exclusivo, do fogos. A natureza é antes caótica (sel-
toda natureza é lógica. Ela pode ser ilógica e até de-
vagem) e deve ser ordenada (civilizada) pela ra-
mente. As combinações natureza/razão estão sujei-
zão humana. Ela é objeto e lugar da ação livre do
tas às variações históricas, às conjunturas e às inter-
ser humano. Em face dela não há que se alimentar
pretações no quadro das mais diferentes culturas.
respeito e veneração. Antes, pelo contrário, como
Podem ser influenciadas também ptla dimensão de
dizia Francis Bacon, um dos pais fundadores do
demência, de drama e de tragédia. O próprio ser hu-
paradigma moderno, ela deve ser submetida à
mano se descobre, perplexo, como sapiens e demens.
cama de Procusto. Deve ser torturada, à moda
As mudanças ocorreram, inicialmente, na com-
do inquisidor, até que entregue todos os seus se-
preensão da natureza. Os mestres medievais projetaram
gredos.

40 41
I
I

,
i
I.
LEONA OOBOFF ETHOSI N o I A l

As características desse sujeito racional são a Cada um desses projetos funda seu ethos, o
criatividade, a capacidade de projeção e de ordena- conjunto de valores, princípios de ação e utopias de
ção, a liberdade, a autonomia, a maioridade, a res- futuro. Cada um deles traduz o ethos em morais práti-
ponsabilidade por sua intervenção no mundo e na cas. A atitude básica (ethos) se traduz por atos con-
história. Mais que auscultar a ordem da natureza, o cretos (morais).
ser humano se faz auscultador de si mesmo, de seus Moral é tudo aquilo que beneficia cada um dos
desejos e planos. Portanto, transforma-se em criador projetos referidos; imoral, o que se lhe opõe. Moral,
de uma ordem da qual se sente responsável. para a burguesia, é tudo o que lhe ajuda a acumular e a
Dois sujeitos coletivos principais ocuparam a cena garantir a posse e o controle dos meios de produção e
histórica da modernidade: a burguesia e o proletariado. dos instrumentos de construção de subjetividades co-
Cada qualprocura realizaro seu projeto: a burguesia, o de .letivasadequadas ao seu ethos. Para o ploletariado, moral
dominar o mundo pelo sabercientífico-técnico,que estána é o que visa a alargar seu poder de pressão sobre a
base de seu poder econômico e militar,gestando riqueza burguesia, aumentar sua força de classe,intemalizar nas
mesmo à custa de uma perversa taxade iniqüidadesociale pessoas ideais revolucionários e ocupar o estado para
de grave degradação ecológica;e o proletariado, o de re- transformar a partir dele as relações sociais.
volucionar as relações sociaisdissimétricaspara eStabele- Repetimos, a questão básica não reside na
cer uma sociedade de igualdade,de justiçae de fratemida- avaliação moral dos atos que se ordenam à realização
de para todos, a começar pelos marginalizadose excltÚdos. de ambos os projetos, mas na avaliação de seus prin-
Hegel projetou sua filosofia a partir do sujeito cípios, de suas atitudes fundamentais, vale dizer, do
burguês, considerado plasmador e condutor da his- ethos subjacente. Cabe a pergunta: como o ethos bur-
tória. Marx, a partir do sujeito proletário, submetido guês e o ethos proletário organizam a casa humana?
ao senhor, com a missão de revolucionar e ultrapas- Quem dela cuida melhor para benefício comum?
sar a relação senhor-escravo, na direção de uma Quem mais a ameaça em sua sustentabilidade
sociedade de cidadãos livres, solidários e participati- ambiental e social?
vos: o socialismo entendido como a realização plena Os frutos falam por si. O ethos da tradição socialista,
da democracia. cujo portador era o proletariado, apresentava-se mais,

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I.

I
I .

t .

i.
lEON' DoBoFF ETHosI N D I A l

generoso e mais solidário com os oprinúdos. O ethos da partir dos interesses de coletividades que mutuamen-
tradição capitalista, cujo sujeito histórico é ainda a bur- te se excluem. Verifica-se, na cultura atual, grande
guesia, por sua própria natureza, é centrado no suspeita das possibilidades integradoras do logos. Ele
individualismo e na concorrência, que limitam enorme- mostrou-se, por meio das guerras modernas de ex-
mente a solidariedade.Nos dias atuais,esse ethos capita- termínio em massa, extremamente ameaçador para
lista representa a grande ameaça à natureza, às relações o futuro da biosfera e da humanidade. Entregues ce-
amistosasentreospovos e ao futurocomum dahumanidade. gamente a ele, poderemos ser lançados ao abismo.
Ambos, porém, são expressões da mesma subjeti-
vidade moderna. Ambos possuem a mesma atitude fun- d) natureza e espírito na ética
contemporânea
damental de objetivação e de exploração da natureza,
que não é incluída no pacto social, pois se nega a ela Em reação ao logos subjetivado, verifica-se
subjetividade e alteridade. Esta subjetividade moderna, atualmente um retomo poderoso à natureza e ao 10-
tanto numa versão quanto na outra, não nos fornece cri- gos universal, pensados no horizonte dos novos co-
térios seguros para responder a questões coletivas deri- nhecimentos acumulados pelas ciências da Terra, pela
vadas da globalização, da nova geossociedade, das ecologia e pelas várias vias espirituais.
ameaças que pesam sobre a Terra e a humanidade. A Assim, na nova cosmologia, a natureza é muito
carga de interesses particulares de um e de outro proje- mais do que a natura dos medievais e a natureza dos
to ofusca a visão da globalidade. O afã de agilizartodos modernos. Estamos mais próximos ao conceito de
os meios produtivos na perspectiva da acumulação, seja pf?ysis dos gregos. Para nós, hoje, a natureza é o con-
apropriadaprivadamente (capitalismo),sejacoletivamente junto articulado de todas as energias cósmicas em
(socialismo), sem, contudo, considerar os recursos limi- processo de materialização ou desmaterialização; são
tados da Terra e seu frágilequilibrio ecológico, transfor- as infindas probabilidades, irrompendo do vácuo
mou os meios produtivos em meios altamente destruti- quântico, abertas à concretização; é a complexidade
vos da natureza e da biosfera. da matéria sempre em interação; é a vida em sua uni-
Essa situação, hoje alarmante, questiona o pro- dade e diversidade de manifestações como processo
jeto da subjetividade moderna e do logos, pensado a de auto-organização (poiesis) da matéria; é o próprio

44 45
,,.
lEONA DoBoFF
ETHosA N D I A l

logos universal e cósmico se expressando na história e do que leis fixas e indicações rígidas, encontramos:
produzindo cultura, significações e processos de (1) uma totalidade de sentido, vale dizer,
espiritualização. A natureza, na compreensão contem- encontramos diversidades que se articulam numa
porânea, possui subjetividade e espiritualidade. O unidade dinâmica; (2) encontramos um sentido de
acesso a ela não se faz apenas pelo logos e pela razão direção (seta do tempo), em vista do crescimento
instrumental-analítica. Seria muito insuficiente. Faz- da complexidade e, por meio dela, de formas mais
se principalmente pelo pathos (estrutura da sensibili- altas e ordenadas de vida (estruturas dissipativas
dade), pelo cuidado, pelo eros (estrutura do desejo), da entropia com crescimento de informações e nÍ-
pela intuição, pelo simbólico e sacramental. veis de memória), convergências e finalidades que
O ser humano possui nela um lugar singular. Ele constituem valores e excelências a serem realiza-
desempenha uma dupla função. Por um lado, está den- das na vida pessoal, comunitária e social; (3) en-
tro, é parte da natureza, inserido no imenso processo contramos na natureza a convivência, a adaptação,
de evolução natural e cibiôntica. Por outro, está de a tolerância e a solidariedade entre todos, fato que
frente, é um vis-à-vis à natureza. Por sua consciência e inspira atitudes fundamentais para a existência hu-
por seu saber técnico, intervém nela, fazendo-se seu mana pessoal e social; e, por fim, (4) encontramos
plasmador. Nem por isso deixa de ser parte da bios- na natureza possibilidades de regeneração, utiliza-
fera e geologicamente um objeto bem concreto. O ção ótima de todos os recursos, ausência de deje-
ser humano é sempre parte da natureza e interventor tos, demonstração da sinergia (a colaboração de
da natureza. A relação ser humano-natureza é dialé- todos faz com que 2+2 sejam 5) e a manifestação
tica, quer dizer, ambos se encontram indissoluvelmen- do todo na parte e a inserção da parte no todo,
te intrincados um no outro, de tal forma que o desti- visão que foi perdida no nosso mundo da atomi-
no de um se transforma no destino do outro. zação, da racionalização e da tecnificação dos pro-
Nesta perspectiva contemporânea, própria da jetos humanos.
era ecozóica, que resgata uma compreensão mais aber- Como veremos mais abaixo, essa natureza, as-
ta e abrangente de natureza (que inclui o Espírito re- sim compreendida, funda uma das correntes da ética
fletido no logos), que encontramos na natureza? Mais de valor universal, inspiradora de um ethos mundial.

46 47
r

l-
I
lEONA DoBOFF

Quais são as correntes que pretendem universa-


lizar um discurso ético e moral globalmente válido?
4. fORMAS DE
Entremos, pois, mais especificamente neste tema, pois UNBVERSAILJZAÇÃO
ele constitui o eixo de nossa indagação. DOI DISCURSO ÉTICO

Introdução

Retomemos a questão central suscitada


anteriormente: como criar um consenso mínimo so-
bre valores éticos, válidos para todos os humanos, ago-
ra reunidos num único lugar, no planeta Terra, que nos
,possam ajudar a debelar três questões globais: a social,
a do desemprego estrutural e a ecológica?
Há atualmente, no campo da ética e da moral,
seis formas principais de argumentação, entre outras,
cada qual oferecendo uma eventual base para uma
ética planetária:

48 49
1

I
L E O N , DO BOFF THOS~ N D I A l

- O utilitarismo social; a} princípios do ethos utilitarista


- as éticas do discurso comunicativo e da justiça;
- a ética baseada na natureza;
oprincipio da conseqüênciaou teleológico:o juízo moral
deve ater-se às conseqüências que derivam das ações
- a ética enraizada nas tradições religiosas da
postas. Segundo o utilitarismo, não existem ações em
humanidade;
si mesmas lícitas ou ilícitas, intrinsecamente boas ou
- a ética fundada no pobre e no excluído;
más, como o quer a posição deontológica clássica
- a ética fundada na dignidade da Terra.
(baseada no dever, como "não mentir, não assassinar
Vejamos, rapidamente, cada uma delas e que pos-
o inocente, não violentar"). Tudo depende das con-
sibilidades oferecem para a fundamentação de um
seqüências a serem sempre calculadas. Sendo as con-
ethos mundial.
seqüências boas ou más, o ato moral também é bom
1. O utilitarismo social: alcance e ou mau. Com que critérios devem ser julgadas as
limite ações? Aqui entra o segundo princípio.
Princípio de utilidade: as conseqüências devem
Toda ética e toda moral têm a ver com práticas que ser úteis à realização do bem. Não se trata de qual-
querem ser eficazes.Em que medida geram a maior feli- quer bem, mas de um bem verdadeiramente bom
cidade e realização para o maior número possível de para os humanos. Supõe-se uma teoria do que seja
pessoas? Essa visão pragmática é fundamentalmente o bem, o que demanda um tipo de argumentação,
correta e deu origem a uma forte escola de ética chama- pelo menos implícita, de ordem ontológica e "na-
da de utilitarismo. Seus formuladores são principalmente tural". Por isso, alguns representantes desta tendên-
ingleses, Th. Hobbes, D. Hume e especialmente J. Ben- cia estabelecem o assim chamado utilitarismo da re-
tham (1789) e S.Mill (1863), que lhe deram a arquitetô- gra. Uma ação é boa ou má na medida em que é
nica sistêmica. Ela hoje está na base de muitas reformas conseqüência ruim ou boa de, uma regra estabele-
sociais (neo-utilitarismo) de cunho anglo-saxão. cida. Esta regra deve ser construída por todos, no
Essa corrente possui subcorrentes que conver- sentido do cálculo de utilidade o mais geral possí-
gem, entretanto, em algumas características comuns, vel e de produção de felicidade para o maior nú-
relevantes para o nosso tema. mero possível (the greatest happiness of the greatest

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l E O N , DoBoFF ETHOS~ N D I A l

number). Tal postulado nos abre a outro princípio, próximo princípio - o princípio social - visa a im-
que completa o argumento utilitarista. por limites a esse risco.
Princípio do hedonismo: o bem ganha uma realiza- Prindpio social: o cálculo deve incluir a perspecti-
ção ótima quando satisfaz necessidades e atende a ,va social, objetivando a felicidade do maior número
preferências humanas, portanto, na proporção em que possível de pessoas e de seres vivos, como animais e
produz prazer, alegria e felicidade (o assim chamado plantas. O maior número possível significa a maior
proporcionalismo). Na determinação do que seja felici- média possível de pessoas e de seres beneficiados,
dade, alegria e prazer, devemos ser tolerantes, dizem os associada à maior média possível de utilidade. Isso
utilitaristas: cada um estabelece seu projeto de vida e se aplica, por exemplo, à economia, no caso do pro-
em função dele deve calcular quanto de prazer, de felici- duto interno bruto de um país. Quanto maior a quar;t-
dade e de alegria pode auferir dentro desse projeto. tidade de bens e serviços produzidos, tanto maior o
Trata-se de lograr proporções, combinando o número dos beneficiados potenciais.
quantitativo com o qualitativo. Mas não de maneira Entretanto, cabe reconhecer que, nesse cálculo,
indiferenciada. O qualitativo tem preferência sobre o não está decidida a forma de distribuição, se eqüitati-
quantitativo (famosa é a frase de S. Mill: "é melhor va ou discriminatória, quer dizer, não se coloca a ques-
um homem insatisfeito que um porco satisfeito"). tão da justiça distributiva. No sistema de capitalismo
Mesmo entre as preferências há diferenciações. Tan- dependente, por exemplo, há grandes diferenças so-
to pode sentir-se feliz quem assiste a um filme porno- ciais que constituem situações de injustiça, pois pe-
. gráfico quanto quem assiste a A sinfonia dos dois mun- quenas elites detêm os principais meios de vida e de
dos, de Dom Helder Câmara. Entretanto, a qualidade poder, com exclusão dos demais. Como se depreen-
deste segundo é superior ao primeiro, pois realiza de, o bem vem entendido no sentido do hedonismo
mais plenamente o ser humano, que não é apenas um (quantidade e intensidade de prazer). O útil é com-
ser de instintos (um animal faminto de sensações), mas preendido no sentido do cálculo social, e não apenas
principalmente um ser de estética e de ética (um ser da vantagem individual.
de transcendência). Mas na busca da correta propor-
ção, não se corre o risco do individualismo? O

52 53
lEONA )OBOFF

b) aplica~ão dos princípios à responsáveis pelo equilibrio dinâmico da vida em


globaliza~ão todas as suas formas.
Aplicando estes princípios a uma perspectiva Numa perspectiva planetária, ganha centralidade
planetária, não podemos, numa primeira análise su- a dimensão coletiva, afetando não apenas as sociedades,
perficial, negar-lhe pertinência prática. O que é útil e mas devido à interdependência de todas com todas, o
bom para a totalidade dos seres humanos e para o próprio sistema social mundial. As morais particula-
sistema-Terra? O útil e bom pode ser formulado neste res e pessoais devem se abrir a uma ética global cuja
imperativo, verdadeiramente universal: "não coloques conseqüência seja a salvaguarda da integridade do
ações que tenham como conseqüência a destruição criado e da humanidade (princípio social).
do sistema-Terra mediante armas nucleares, quími- O útil e bom, para ser eticamente responsável,
cas e biológicas; não aja de tal forma que o resultado deve-se orientar por uma hierarquia de prioridades
seja a devastação das condições de vida na Terra; não (princípio da regra). Após havermos garantido o
instaure práticas (científicas, biotecnológicas) que te- planeta Terra, a biosfera e a espécie homo, deverá ser
nham como conseqüência a eliminação das espécies salvaguardado o pobre, o oprimido, o marginalizado
vivas, principalmente da espécie homo" (princípio da e o excluído. Estes são os seres mais ameaçados da
conseqüência). criação, pois morrem, de fato, antes do tempo. Ligado
Esses imperativos são condições de possibilida- a eles, deverá ser garantida uma sociedade justa, por-
de de todos os demais e do próprio discurso da utili- que se eles morrem antes do tempo é por causa da
dade ou inutilidade, felicidade ou infelicidade. injustiça social e ecológica. Em seguida, devem ganhar
Nesse sentido, caberia ressuscitar o tema do especial atenção as culturas em extinção, como as cul-
bem comum, já não apenas considerado em termos turas originárias dos indígenas, as etnias ameaçadas e
sociais, mas ecológico-sociais. Não só o bem da so- as minorias oprimidas. Por fun, há de se cuidar atenta-
ciedade, mas também o bem da Terra como siste- mente do equilibrio global do sistema-Terra, que per-
ma deve ser preservado, os vários ecossistemas, a mite a todos os seres continuar a existir e a viver.
biosfera, a hidrosfera, os animais, as plantas, ?s mi- Entretanto, para que esses princípios deixem seu
croorganismos, os elementos físico-químicos, caráter teórico e possam ser aplicados concretamente,

54 55
llONA DO BOFF ETHosM I D I A l

precisar-se-ia fazer uma verdadeira revolução social 2. A ética da aCjãocomunicativa e


que vá além da ética do utilitarismo social. pdmeira- da iustiCja
mente, uma revolução nas formas de relação para
com a natureza, que são, no modo de produção do- Esta tendência ético-moral foi elaborada na

minante, altamente predatórias. Em seguida, na for- escola crítica de Frankfurt, que trouxe inestimáveis

ma como se encara a questão dos excluídos: eles são contribuições à tradição marxista e aos ideais da de-

conseqüência da aplicação massiva de tecnologias de mocracia. Benjamin, Adorno, Horkheimer e

ponta que substituem a força de trabalho, privilegiando especialmente Habermas submeteram a uma pode-
rosa reavaliação crítica o Iluminismo, chamado
os lucros auferidos, sem considerar as conseqüências
sociais, que são o desemprego estrutural e a exclusão também de modernidade, com suas pretensões uni-
versalistas e libertárias. Essa modernidade possui duas
social. Por fim, a grave crise social: devido à forma
vertentes básicas: uma técnica e outra ética. A pri-
como se organizou a sociedade mundial nos parâme-
tros da cultura capitalista e por causa do seu modo meira, a técnica, foi realizada amplamente. A segun-

de produção altamente competitivo e minimamente da, a ética, sofreu progressivamente a diminuição de

cooperativo, a riqueza produzida conhece uma con- seu espaço, relegada à marginalidade. Particularmen-
te ]ürgen Habermas (nascido em 1928) atacou a alma
centração em megaconglomerados, como nunca an-
secreta da modernidade técnica, a utilização massiva
tes na história, e uma produção de miséria e de exclu-
ela razão instrumental-analítica, posta a serviço dos
são que raiam a barbárie. Para quem é útil todo esse
interesses do projeto da tecnociência e da domina-
processo?
ção política sobre classes, nações e povos.
Os representantes do utilitarismo social não
movem uma palha para modificar a situação anti-éti-
a) o resgate da dimensão ética da
ca em que se encontra a humanidade. Seu pragmatismo
modernidade
termina por sacralizar a ordem vigente discricioná-
ria. É uma ética dos satisfeitos que pouco considera Mas o projeto da modernidade continua inaca-
os reclamos dos insatisfeitos. bado. Pode e deve ser completado mediante o incre-
mento de sua dimensão ética pela via da mais ampla

56 57
l E O N DoBOFF ETHOSM N O I A l

emancipação e concretização dos direitos do cida- devem se subordinar a esta dignidade, criar-lhe con-
dão, da democracia e dos meios do diálogo e da ação dições de realização e atender a todas as pessoas. À
comunicativa. É o esforço da proposta filosófica e luz destes postulados, os imperativos apresentam a
crítico-social de Habermas. seguinte aplicação:
Tanto ele quanto as várias tendências afins articu-
- Em conflitos de interesses e na distribuição
lam duas tradições importantes da ética: a tradição kan- das responsabilidades, as normas funcionam como
tiana do dever e do imperativo categórico e a tradição regras na solução eqüitativa dos conflitos ou na
marxista do sentido da emancipação, da justiça social e coordenação das liberdades, visando à construção co-
da democracia integral aplicada em todos os funbitos letiva de uma convergência comum.
(socialismo). Uma sociedade moderna e democrática - A justiça é sempre justiça para todos; por isso,
se constrói na medida em que vive uma prática de co- as normas, para serem justas, devem buscar o con-
municação permanente (kommunikatives Handeln) e alcan- senso social. Daqui deriva a centralidade e a univer-
ça seus consensos mediante o diálogo generalizado e o salidade do projeto da justiça. Os destinatários, os
discurso razonado. Este deve, consoante esta vertente, cidadãos, devem poder acolher tais normas. Sem o
substituir as instâncias clássicasde fundamentação ética, consenso, falta às normas o laço de legitimidade que
que são as tradições e as religiões, hoje vastamente es- as torna válidas. O consenso, no entanto, só é alcan-
garçadas por múltiplas crises. çado quando as normas atendem aos interesses legí-
Para essa vertente, normas morais e jurídicas são timos das pessoas, de tal forma que elas possam aco-
regras de coordenação das liberdades subjetivas. Elas lhê-las e sentir seus direitos formalizados nelas. As
se fundamentam na moderna teoria do contrato so- normas são justas somente quando são distributiva-
cial (Hobbes, Locke, Rousseau), que ganhou com mente vantajosas.
Kant um respaldo filosófico com a idéia do "reino Esta tendência ética e moral se baseia na confiança
dos fins". Para Kant, cada pessoa humana é um fim na razão e na capacidade de argumentação e de con-
em si mesmo e não pode jamais servir de meio para \;encimento no âmbito de um mesmo espaço lingüísti-
qualquer outra coisa. A autonomia da pessoa faz com co. Questões de gostos e de valorações subjetivas,
que ela possua uma inarredável dignidade. As leis portanto, questões que dizem respeito a "projetos

58 59
l E O N DoBoFF ETHosM N O 1 A 1

,
de felicidade", são, nesta corrente, consideradas se- e do discurso de persuasão da escola crítica de
cundárias, embora relevantes. Não se faz necessário Frankfurt.
nenhum consenso social sobre elas. Por isso são re-
metidas às coordenadas do arranjo existencial das b) aplicação dos princípios à
pessoas (Lebenswelt). Entretanto, tais propostas de globalização
"bem viver" não podem ser realizadas à custa do
Apliquemos as perspectivas desta visão a uma
necessário projeto da justiça social e ecológica.
possível ética planetária que tome em conta os três
Nesse modelo ético, mostra-se um esforço cons-
problemas globais enunciados no início de nossas
trutivista notável, quer dizer, a preocupação de so- reflexões.
mar perspectivas, elaborar consensos, estabelecer di-
Em primeiro lugar, faz-se urgente um pacto so-
retrizes de coordenação de interesses e regras do
cial universal de não usar a máquina de morte já cons-
jogo ético-social. As questões de uma ética da lei
truída para destruir o sistema-Terra (a questão eco-
natural que trabalha constantes antropológicas são
lógica). Trata-se de um pacto de salvação da Terra
pouco consideradas, por causa dos pressupostos
ameaçada. Entretanto, cabe assinalar um limite no
metafísicos nela implicados e sobre os quais h~ mais
projeto emancipatário de Habermas e de seus afins,
dissenso que consenso.
que atinge diretamente a questão ecológica. Referi-
Junto com essa ética do discurso, surgiu, a par-
mo-nos ao seu reducionismo antropocêntrico. Na
tir dos anos 70, uma série de expressões ético-ftlo-
verdade, no seu projeto, a natureza não entra no novo
só ficas que se inscrevem dentro desse horizonte co-
pacto social mundial, porquanto ela e os demais se-
municativo, dialógico e do ideal da justiça, com
res são considerados ainda como meros objetos da
K. O. Appel, na Alemanha, J. Rawls e J. M. Bucha-
atividade e da discursividade humana. Não são tidos
nan, nos USA; com A. Cortina, na Espanha, com
como valores intrínsecos e como portadores de di-
N. Bobbio, na Itália; com O. Pegoraro e M. Araújo
reitos, por isso, caracterizados por subjetividade. A
de Oliveira, no Brasil. Dispensamo-nos de sua dis-
compreensão ecologizada, ao contrário, visa a cons-
cussão, pois nos levaria longe e seus frutos mais madu-
truir uma democracia sociocósmica na qual a nature-
ros se inscrevem dentro da ética do agir comunicativo
za, os animais, as plantas e outros organismos vivos

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r
. '
l E O N DOBOFF ETHOSM 1 O I A L

são vistos como novos cidadãos que compõem a so- existir como povo, com sua cultura e idiossincrasias.
ciabilidadehumana ampliada. Somente compreenden- Estes devem poder participar da ação comunicativa
do assim a natureza, associada ao ser humano e à so- coditiana, pois é por ela que a democracia se
ciedade, poder-se-á pensar numa salvaguarda da Terra constrói como valor universal e se mantém viva. O
e da biosfera. modelo de Habermas está assentado sobre a expe-
Em segundo lugar, faz-se necessário um proces- riência centro-européia de construção da ação co-
so de dialogação global entre todos os povos, entre os municativa, não partindo de uma base mais baixa e
blocos norte-sul, entre os continentes, nações e etnias, ampla, lá onde se situam as grandes maiorias da hu-
religiões e filosofias, no sentido de garantir o direito à manidade que precisam ter garantido seu direito de
vida a cada cidadão terrestre. Em princípio, tal postu- ser e de se expressar, o qual ainda não é suficiente-
lado está presente no projeto da ação comunicativa de mente garantido.
Habermas. Mas ela é demasiadamente abstrata. Não Em quarto lugar, importa chegar a consensos
toma na devida conta as sociedades silenciadas do mínimos com referência à satisfação das necessida-
mundo que constituem as grandes maiorias. Para que des básicas de comer, de vestir, de morar, de lazer,
possam aceder ao reino do diálogo aberto, profundas de ter saúde, de trabalhar e de se comunicar com
revoluções sociais precisam ser feitas. Estas, por certo, outros seres humanos. O ser humano não é apenas
derrubariam a atual ordem vigente e o tipo de demo- um ser de materialidade, mas também de espirituali-
cracia reduzida ainda em vigor, representativa e dele- dade. Por isso, nessas necessidades básicas, deve-se
gaticia. No horizonte do projeto de Habermas, mal incluir a satisfação mínima da sede de beleza e de
cabem os milhões e milhões de excluídos que, para transcendência que caracteriza a profundidade huma-
serem inseridos na sociedade minimamente democrá- na. Como criar condições mínimas para que os seres
tica, exigiriam transformações fundamentais nas ~tuais humanos possam subsistir (garantir o ter) e dar senti-
formas de convivialidade. do à vida (garantir o ser), especialmente os excluídos
Em terceiro lugar, dentro do processo geral de do processo produtivo? Aqui, precisa-se mais que da
hominização, socialização e globalização, deve-se ga- simples razão em que Habermas confia tanto. Faz-se
rantir a cada povo o direito de poder continuar a mister a inteligência emocional, o pathos para a

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,
I
;.
l E O N 'DoBoFF ETHosM N D r A l

. solidariedade e a com-paixão e o sentido espiritual tem condições, pela pura razão, por mais dialógica
da existência. Esses elementos careceriam de uma que ela seja, de assegurar um horizonte de esperança
melhor explicitação no projeto da escola de Frank- e de confiança para a humanidade. Junto com ela, pre-
furt (com a excessão de W Benjamin) e deveriam ser cisamos resgatar outros exercícios da razão que se
melhor tematizados, como tentaremos fazer mais abrem para uma ótica mais ampla, base para uma éti-
abaixo. ca melhor fundada.
Mas importa reconhecer que as demandas ético-
morais do projeto de J. Habermas estão centraliza- 3. A ética fundada na natureza:
das no tema da vida em sociedade, da liberdade, da qual natureza?
dialogação global de todos com todos, da solidarie-
dade, do respeito às diferenças e do incentivo à co-
o clássico formulador da argumentação ética
pela lei natural é Tomás de Aquino, na esteira de Aris-
municação intersubjetiva dos cidadãos. Por meio do
tóteles. A moral católica, especialmente retratada nos
exercício comunicativo se descobrem as diferenças e
documentos do magistério pontifício, segue funda-
se valorizam as complementaridades.
mentalmente essa tendência.
Apesar das limitações antropocêntricas e, no fun-
Este tipo de argumentação não se arranca do
do, eurocêntricas, foi mérito de Jürgen Habermas ter
estabelecimento de regras de coordenação a partir
colocado claramente tais questões, resgatando o me-
das liberdades subjetivas das pessoas que celebram
lhor da tradição iluminista, em sua vertente emanCl-
um contrato social entre elas. Ela parte de constan-
patória e ética. Entretanto, como outros filósofos da
tes antropológicas e das inclinações humanas, que
modernidade, também ele parte do pressuposto de
se mostram independentes da vontade e dos con-
que a sobrevida do planeta Terra e da humanidade
sensos dos indivíduos. Tais constantes (incluindo a
está garantida. Hoje sabemos que ela não está garan-
própria vontade e a liberdade) oferecem a base para
tida, pois a máquina de morte montada pela razão
a obrigatoriedade e a universalidade das normas.
instrumental-analítica e pela degradação ambiental
Portanto, o utilitarismo social e o construtivismo,
mudaram as condições de existência da humanidade.
baseados no consenso das partes, encontram na lei
Uma sociedade racionalizada comunicativamente não
natural seu limite.

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L E O N RDOBoFF
ETHosM N O I A l

A ética fundada na lei natural procura estabele-


ser-no-mundo, junto com outros e dentro da nature-
cer uma base de referência comum para argumenta-
za (parte dela). Fenomenologicamente emerge, por um
ções da qual todos possam participar, pelo fato de
lado, como um ser de desejo ilimitado, daí seu caráter
todos serem portadores da mesma natureza humana.
de projeto infinito, com capacidade de cuidado, de
Esta base comum confere objetividade aos
responsabilidade por sua vida, pela vida dos outros e
argumentos, levanta a questão da verdade das coisas
pelo futuro da Terra. Por outro, nasce e vive dentro de
e não apenas a questão do consenso sobre as coisas;
limitações e citcunstâncias que não escolheu, como o
permite também discutir conteúdos concretos de
tipo de pais (severos ou ternos), o sexo, a cor da pele,
moral, assentados na lei natural, subjacentes às mais
o lugar do nascimento, a cultura de origem, a mente
diferentes expressões culturais. Possibilita ainda um
desperta ou lenta, a carga genética que o faz saudável
discurso transcultural, referido sempre a algo de co-
ou deficiente físico ou mental. O ser humano interage
mum e universal dentro das diferenças histórico-so-
com esses dados. Não se submete fatalisticamente a
ciais particulares: a natureza humana.
eles, mas os plasma e lhes dá uma configuração pessoal
Quando falamos de dignidade humana, de diá-
e social. Os existenciais condicionam e sobredetermi-
logo, de ação comunicativa e de consenso, pressupo-
nam a liberdade humana sem tolher sua espontaneida-
mos uma compreensão do ser humano. E aí surge a
de e criatividade. O justo, o correto, o útil e o bom
questão iniludível: que é a natureza humana? Qual a
surge, do diálogo interativo entre os condicionamen-
lógica que preside essa natureza?
tos e a liberdade, entre o ser-humano-parte-da nature-
za e o ser-humano-vis-à-vis à natureza.
a) a dupla dimensão do ser humano
Seria irresponsável não manter essa dialética e
Do ponto de vista filosófico e estritamente perigoso seguir a moral das conseqüências e das pro-
racional, parece-nos que uma reflexão sobre a natu- porcionalidades em questões concernentes à saúde, à
reza humana é irrenunciável. Para um ethos universal e qualidade dos alimentos, dos remédios e à ecologia
planetário, esta questão é axial. Por mais que seja uma ambiental. Não podemos aplicar procedimentos
subjetividade livre e autônoma (seu vis-à-vis à nature- cientifico-técnicos à natureza e introduzir alimentos
za), o ser humano se encontra enraizado, como um e remédios cujas conseqüências não tenham sido

66 67
LEONI DOBOff ETHOSML D I A L

previamente estudadas (a questão dos transgêni- trazer à cena tais dados. Pretende fundar a convicção
cos). Igualmente seria sumamente irresponsável de que a autonomia dos sujeitos deve tomar em con-
jogar combinações químicas no ar e no solo, nas ta aquilo que se adequa, convém e se coordena com
águas e nos centros urbanos para observar as suas os condicionamentos objetivos da natureza humana.
conseqüências boas ou ruins sobre a biosfera e as Isso seria ético. Essa argumentação sublinha o fato
pessoas. de que a felicidadeda vida humana não é arbitrariamente
Nestes campos fundamentais não podemos de- construída à revelia das condições que a própria vida
pender de qualquer tipo de consenso, fruto de nego- humana coloca. Esta vida humana, enquanto humana
ciações e acertos (especialmente entre peritos em seus (portanto não é uma pedra, nem uma planta, nem uma
laboratórios, onde se manipulam genes, e empresários ameba, mas exatamente vida humana), aponta para
que os financiam para deles auferir altos lucros~. An- opções de sentido e para valores que compõem o
tes, os consensos devem partir da aceitação dos fato- bene vivere e estruturam o bem-estar da casa humana ,
res objetivos da natureza da eco-esfera e da natureza vale dizer, do e/hos. Neste sentido, tem razão Herácli-
humana em interação com ela. Mesmo em campos to ao sentenciar: "O e/hos é o daimon (quer dizer, o
onde o natural não é imediatamente dado, como na gênio protetor) do ser humano".
educação, os fatores objetivos ligados aos processos ,'o

naturais devem ser tomados em consideração. Assim, b) distorções na compreensão da


por exemplo, não podemos organizar a educação num natureza
puro projeto arbitrário, mas se deve considerar as
A visão da natureza que acabamos de expor deve
contribuições que vêm da medicina, das ciências do
ser distinguida da outra, de cunho fixista e metafísico,
desenvolvimento, da psicologia profunda, da socio-
predominante na moral católica de corte neo-escolás-
logia e da pedagogia e, diretamente, os processos de
tico e oficialista. Segundo esta versão, considera-se a
crescimento e maturação a que cada ser humano está
natureza humana algo inflexível, imutável e um reflexo
objetivamente sujeito.
da ordem inviolável da criação. A razão teria apenas
A argumentação ética que apela para a natureza
função passiva, como um órgão de simples leitura das
ou para os requerimentos da natureza humana visa a
normas já dadas de antemão pela natureza.

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l E O N ,lDOBoFF ETHOSM N D I A l

Esta metafísica se abstrai de algo essencial e na- natureza humana para, eventualmente, fundar um ethos
tural ao ser humano, seu caráter interativo, sua ca- mundial.
pacidade de diálogo e de intervenção nos proces- Por uma parte, pode-se afirmar que, sob certos
sos da natureza e sua historicidade. Tal rigidez não aspectos, a natureza humana é um dado singular, sem-
valoriza suficientemente a relativa autonomia e pre aberto, pois veio, juntamente com os outros seres ,
criatividade do ser humano, tão caras à modernida- formando-se ao longo do processo evolutivo há mi-
de, nem acolhe as boas razões que fundam a ética lhões de anos e ainda não se encontra pronto. Nesse
do diálogo necessário e da justiça imprescindível sentido, natureza é sempre história natural (evolução).
para todos, enfatizadas com razão pela escola de A partir dessa natureza dada e ainda em gênese, pode-
Frankfurt; e, por fim, por sua inflexibilidade, torna mos distinguir, como fazem os etólogos, o ser huma-
estéril a contribuição católica ao debate ético atual no dos animais, das plantas, das amebas. Não obstante
sobre tantos temas candentes, como o do corpo, o a unidade sagrada da vida em suas múltiplas manifes-
do prazer, o da população mundial e o da manipu- tações, o ser humano é uma espécie que possui cons-
lação genética, entre outros. tantes que geram certo tipo de comportamento singu-
Afastamo-nos também da concepção pobre da lar, propriamente humano, caracterizado pela fala,pela
modernidade iluminista, que vê a natureza como pura liberdade, pela responsabilidade, pela criatividade, pelo
res extensa ("coisa extensa" = matéria), como a define afeto, pelo cuidado e por sua dimensão de abertura ao
Descartes no seu Discurso do Método: "não entendo por outro, ao mundo e à totalidade; dramatiza ainda sua
natureza nenhuma deusa ou qualquer outro tipo de realidade a dimensão demens e dia-bólica que sempre
poder imaginário, antes me sirvo dessa palavra para acompanha a dimensão sapiens e sim-bólica, distorcen-
significar a matéria". do os valores acima enunciados.
Por outra parte, a natureza humana é histórica ,
c) O dado e o feito na natureza porque é trabalhada pela liberdade humana que a
molda, lhe dá configurações culturais e a mantém
Desconsiderando tal reducionismo em face da
aberta a novas concreções futuras. Esse caráter histó-
intuição originária, cabe ressaltar essas duas dimen-
rico faz com que nenhuma compreensão compreenda
sões dialéticas presentes no recurso à lei natural e à

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l E O N DOBoFF
ETHosM N D I A l

tudo do ser humano, só o fazendo dentro de limi- As tendências e as paixões ou o seu capital de
tes históricos. Por isso, a questão do que seja o ser desejo e seu universo complexo de impulsos não in-
humano, sua essência e natureza, é uma questão a dicam, concretamente, nenhuma norma de ação con-
ser sempre retomada e aprofundada. Não se trata creta. Pedem um projeto, uma direção, um caminho
apenas de saber o que é dado, mas também de cons- para onde devem ser canalizadas. É aqui que emer-
tatar como o dado é feito, refeito, entendido, rein- gem a liberdade e a responsabilidade ética do ser
terpretado e projetado. Ademais, cabe compreen- humano. Sua razão e sua capacidade de autodetermi-
der o virtual, o potencial e o utópico também como nação são forças da natureza para fazer da natureza
pertencentes à natureza humana dada, fazendo com uma história reflexa, marcada pela emoção, pela von-
que nunca seja simplesmente dada de uma vez por ta~e e pela autodeterminação.
todas. Ela possui as características de um sistema
aberto. d) aplicação do ethos da natureza à
Aplicando esta compreensão ao ser humano, ele globalização
é um ser que está aí, produto de longa evolução, um
Apliquemos esta visão da natureza humana ao
dado com configurações concretas. Entretanto, ele não
ethos planetário. Temos um dado em comum: somos
está ainda pronto, pois está ainda nascendo; não é um
todos humanos, interconectados, num mesmo siste-
projeto de médio ou de longo prazo, mas um projeto
ma-Terra, vindos do imenso processo cosmogênico.
tendencialmente infinito. Por isso, o ser humano sente
Esta realidade exige ser preservada, para que possa
que deve ir além dele mesmo e deve se autotranscen-
se reproduzir tal como veio do passado, há milhões e
der. Só assim será radicalmente humano.
milhões de anos; mais ainda: pede que sejam manti-
Dito em poucas palavras: o ser humano é um ser
das as condições para que possa se desenvolver como
de relações ilimitadas, juntamente com outros no mes-
vinha se desenvolvendo desde sempre.
mo mundo e no mesmo cosmos. É um em-si. Mas um
Com o advento do ser humano, entrou alguém
em-si original, pois somente se realiza como em-si na
capaz de copilotar a natureza: ele pode desentranhar
medida em que épara os outros, sai de si e se rehlciona
a potencialidade dela e acelerar seu processo. Pode
com os demais. Ele é, portanto, um em-si relacionado.
criar novas potencialidades e moldar um mundo de

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ETHOSM D I A l
l E O N DOBOFF

segunda e terceira mão. Pode também frear p~oces- Com referência à questão social dos excluídos, a
sos da natureza e até se voltar contra ela. natureza não conhece excluídos nem acumula deje-
Esse recurso à natureza é capaz de gerar um dis- tos. Ela tudo inclui e tudo recicla. Todos são interde-
curso racional compreensível por todos. Ele tem algo pendentes e reciprocamente solidários e exercem sua
de comum: todos somos humanos. Possui algo de função em benefício do todo, como o temos assina-
'distinto: somos humanos de forma sempre diferen- lado ao longo de nosso estudo.
te, no modo chinês, indiano, azteca, italiano, sami, bra- O fato de o sistema mundial excluir, praticamen-
sileiro. A diferença não destrói a comunhão. Apenas te, dois terços da humanidade, denuncia seu caráter
mostra a fecundidade desta essência comunitária, pois antinatural. Ele não poderá ter futuro, pois se opõe
ela só se dá na medida em que se realiza de diferentes diretamente à lógica básica do universo, que é a co-
formas. E se realiza cada vez de forma limitada, por nectividade e a solidariedade cósmica.
isso aberta para os lados (para outras realizações) e Com referência aos desempregados estruturais, a
para o futuro (outras possíveis realizações). natureza sempre trabalha e vai moldando de forma não
Nesta quadra nova da consciência mundial, im- linear, mas complexa, todas as ordens de ser. O univer-
porta articular os dois pólos: temos algo de comum so se expande autocriando-se. A liquidação do trabalho
que urge preservar e por ele construir as conver- assalariado não liquida com o trabalho. Antes o liberta
gências; e temos algo de diverso que cabe respeitar: corpo a capacidade do ser humano de criar e moldar
as maneiras diversas de historizar o que temos de seu entorno e sua própria história. O desafio atual é o
comum, dando origem às várias culturas e às tradi- de como politicamente organizar a sociedade mundial e
ções espirituais. As duas forças são diferentes e com- as populações prescindindo do trabalho humano, mas
plementares, complexas e convergentes no sentido com o trabalho das máquinas inteligentes que trabalham
de apontar para o mistério da aventura humana den- para o ser humano, de tal forma que seus ganhos sejam
tro da história terrenal e cósmica. socializados com certa eqüidade entre todos. A nature-
Como este tipo de argumentação nos ajuda a za trabalha com semelhante equilíbrio dinâmico. Nin-
equacionar os três problemas que nos desafiam guém tem demais nem de menos. Mas todos participam
globalmente? da economia do suficiente para todos.

74 75
L E O RDOBoFF ETHosML D I A L

Com referência à questão ecológica, nada me- a) paz religiosa, base para a paz
lhor do que seguir a lógica complexa da natureza para política
garantir lugar para todos e condições de sobrevivên-
'Hoje vigora ampla convicção de que, sem um
cia para todos os ecossistemas com seus respectivos
consenso básico minimo sobre determinados valores,
representantes. A crise ecológica mundial se assenta
normas e atitudes, é impossível a convivência humana
sobre a ruptura da aliança de sinergia e de conatura-
em sociedade, sobretudo na emergente sociedade
lidade do ser humano com a natureza. Salvar o pla-
mundial. Não se trata apenas de construir um ethosmíni-
neta significa atender àquilo que ele pede ao~ gritos:
mo , mas de um consenso minimo acerca de um ethos
que haja respeito e veneração das alteridades; que o
minimo, universalmente válido. Como construir esse
desenvolvimento do ser humano não se faça contra a
consenso? Como instaurar um ethos minimo?
natureza, mas em sinergia com ela; e que se mantenha
Inicialmente, Küng critica os modelos vigentes
de forma dinâmica e coesa a integridade sagrada de
de universalização ética, apontados acima, demasia-
todo o Criado.
damente abstratos para lograrem o consenso míni-
mo exigido. Este deve ser universalmente viável e efe-
4. Ética mundial fundada nas tivo e deve ser obrigatório para todas as pessoas, nas
tradições religiosas
suas diferentes culturas. Confiantes nas possibilida-
des da razãó, os formuladores desses modelos des-
Na discussão sobre um ethos mundial, não se
cartaram com demasiada facilidade as tradições reli-
pode passar ao largo da contribuição de Hans Küng
giosas que fundam, delato, os comportamentos éticos
(nascido em 1928 na Suíça), o promotor mais
da grande maioria da humanidade. Essas tradições
proeminente da reflexão sobre a urgência de um con-
guardam virtualidades insuspeitadas, não para um
senso ético minimo, base para uma sociedade mun-
consenso total, mas para um consenso mínimo entre
dial. Seu motto é: "um ethos mundial para uma política
os humanos, pois é disso que se trata.
mundial e para uma economia mundial" (título origi-
,Hans Küng insiste: "Não haverá nenhuma nova
nal: Weltethos ftir Weltpolitik und Weltwirtschqft, 1997; cf.
ordem mundial sem um ethos mundial". Mas
também Projekt Weltethos, 1990).
realisticamente assevera: não haverá nenhuma ordem

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l E O N 00 BOFF

mundial sem uma paz entre os povos; e não haverá


b) consenso mínimo sobre um ethos
paz entre os povos se não houver paz entre as reli- mundial
giões; e não haverá paz entre as religiões se não hou-
ver diálogo entre elas. Estabelecido esse diálogo, Essa situação de fato demanda a necessidade de
pode-se criar a paz religiosa, base para a paz políti- um ethos mundial. Ele possui duas pernas de sustenta-
ca. A paz política só é assegurada por um ethos de ção: a verdade concreta e a justiça irrenunciável, dois
referência comum, fundado nas tradições religiosas valores éticos elementares.
da humanidade. Esse ethos é "o mínimo necessário A verdade concreta, independentemente das
de valores humanos comuns, normas e atitudes fun- teorias ftlosóficas sobre a verdade, fundamentalmen-
damentais; melhor ainda, é o consenso básico com te diz: "Não queremos mais ouvir mentiras e ser lu-
referência a valores vinculantes, normas obrigatórias dibriados sobre nossa situação social e econômica ,
e atitudes básicas afirmadas por todas as religiões, sobre as causas reais de nossa pobreza e exclusão so-
apesar de suas diferenças dogmáticas e assumidas cial, sobre a morte prematura de nossos ftlhos e fi-
por todas as pessoas, mesmo não religiosas" (Wéltethos, lhas, sobre o desaparecimento de nossos entes queri-
op. cito 132). dos, sobre o perigo que nos ameaça a todos".
Subjacente às diversidades religiosas, encon- A justiça irrenunciável, para além das
tra-se o ser humano, que testemunha a presença de formulações eruditas da academia, postula: "Chega
um mesmo ethos básico. Esse ser humano está con- de prisões e de torturas a presos políticos; chega de
quistando coletivamente a consciência de que só privilégios no sistema financeiro nacional e mundial' ,
tem esse planeta para viver e que tem responsabili- chega de exploração do trabalho infantil; chega de
dade pelo destino comum. Para garantir a sobre- abuso sexual de menores; chega de chacinas de meni-
vida comum, precisa de um consenso sobre valo- nos e meninas de rua; chega de limpeza étnica de toda
res e atitudes irrenunciáveis. Caso contrário, todos uma região"! Com referência a esse tipo de verdade
podem perecer. e de justiça, não cabem discussões, mas convergência
mundial em valores e ações conjugadas.
Formalizando, o consenso mínimo se densifica
no direito à vida, no respeito inviolável aos inocentes ,

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L E O N DoBoFF ETHosM N O I A l

no tratamento justo dispensado ao detido e na inte- Entretanto, não são poucos os politólogos que
gridade física e psíquica de cada ser humano. É a base percebem a decisiva importância da religião para as
comum mínima, sem a qual não há convivência pos- políticas globais. P. Huntington escreveu:
sível em nenhuma parte do planeta.
"No mundo moderno, é a religião uma força
É pela religião que os povos concretamente en-
central, talvez a força central que motiva e mobili.
contraram o meio para fazer valer e garantir o cará-
za as pessoas ... O que finalmente conta para elas
ter universal e incondicional desse consenso mínimo.
não é a ideologia política ou o interesse econômi.
A religião funda a incondicionalidade e a co. Convicções religiosas e família, sangue e dou-
obrigatoriedade das normas éticas muito melhor que trina são as realidades com as quais os pessoas
a razão abstrata ou o discurso racional, parcamente se identificam e em função das quais lutam e mor-
convincentes e só compreensíveis por alguns setores rem" (citado em Küng, op. cito 162).

da sociedade que possuem as mediações teóricas de


O cerne desta ética universal é a humanitas, a obri-
sua apreensão. A religião, por ser Weltanschauung mais
gatoriedade de tratar humanamente a todos, indepen-
generalizada, concretamente, o caminho comum das
dentemente de sua situação de classe, de religião ou
grandes maiorias, é mais universal e compreensível.
de idade. As religiões históricas resumiram esse cer-
Ela vive do Incondicional e procura testemunhá-lo como
ne na regra de ouro: "faça ao outro o que queres que
a dimensão profunda do ser humano. Só o
te façam a ti", ou negativamente: "não faças ao outro
Incondicional pode obrigar incondicionalmente. Pres- o que não queres que te façam a ti".
cindir em qualquer análise da realidade, da dimensão
Elas ainda ensinaram: "não matar". Traduzindo
religiosa, é prejudicar a análise, é encurtar a realida-
para o código moderno, significa: "venere a vida, de-
de , é minar o fundamento de uma atitude ética uni-
senvolva a cultura da não-violência e do respeito
versa!. Só setores racionalisticamente arrogantes da
diante de toda vida". Ensinaram ainda: "não roubar".
sociedade mundial desprezam esse tipo de argumen-
Traduzindo para os dias de hoje, significa: "aja com
tação, seja porque perderam acesso à experiência do
justiça e com correção, alimente a cultura da
sagrado e do religioso, seja porque vivem alienadas
solidariedade e uma ordem econômica justa".
da vida concreta de seus próprios povos.
Ensinaram também: "não mentir". Significa: "fale e

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lEON RDOSOFF ETHOS N o I A l

aja com veracidade; obrigue-se a uma cultura da to- ocupada pela economia, pelas taxas de juros, pelos
lerância e a uma vida na verdade". Por fim, ensina- níveis de inflação, pelos índices de crescimento mate-
ram: "não cometer adultério". Traduzindo: "amem- rial e pelas oscilações das bolsas de valores.
se e respeitem-se uns aos outros, imponham-se como
obrigação a cultura da igualdade e da parceria entre 5. A ética fundada no pobre e no
o homem e a mulher". excluído
Uma sociedade mundial única (geossociedade)
A situação de empobrecimento e de exclusão
necessita de um único ethos básico, caso contrário, não
em que vivem grandes porções da humanidade e
se garante o futuro comum. Desta vez, o perigo é
as dificuldades históricas de suscitar com-paixão e
total e a salvação deverá ser também total; não have-
solidariedade têm desafiado a reflexão de muitos
rá uma saída escondida, nem salvação para alguns pri-
pensadores situados na periferia dos grandes cen-
vilegiados. Ou nos salvamos todos, mediante a incor-
tros metropolitanos e dos sistemas imperantes. Ob-
poração de uma ética mundial, ou todos podemos
je,tivamente, esta anti-realidade provoca indigna-
conhecer o destino das grandes devastações que dizi-
ção e até iracúndia sagrada. Diante das multidões
maram outrora milhões de espécies.
famélicas, dos olhos transtornados pelo desespero
A contribuição de Hans Küng tem sido inesti-
e dos corpos retorcidos pela fome, a reação hu-
mável e, no conjunto das propostas mundiais, é uma
mana mínima é: "Isto não pode ser. Isto tem de ser
das mais sensatas e factíveis.
mudado". Deste sentimento visceral, nasce a von-
Como se depreende, essa ética cria a atmosfera
tade política por um processo de libertação, car-
adequada para balancearmos os três problemas glo-
regado de densidade ética.
bais que colocamos como os desafios emblemáticos
O Manifesto Comunista de 1848 e a teologia
para um consenso mínimo: o social, o ecológico e o
da libertação do Terceiro Mundo constituem mo-
do trabalho. Essa proposta cria a sensibilidade para
numentos éticos de primeira grandeza, originados
colocar no centro das atenções humanas tais ques-
pelo protesto contra a miséria e pela solidarieda-
tões, e não como se faz hoje em dia na globalização
de para com os miseráveis. No interior dessa tra-
econômico-financeira, na qual a centralidade é
dição profética, surgiu um dos nomes mais

82 83
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conhecidos pela produção ética consistente e por Nesse sentido, os marginalizados e mais ainda
sua capacidade de diálogo com outras propostas. os excluídos são portadores de um privilégio
epistemológico. A partir deles, pode-se fazer um juí-
a) princípio supremo: liberta o pobre zo ético-crítico sobre todos os sistemas de poder do-
minantes. O excluído grita. Seu grito denuncia que o
Enrique Dussel (nascido em 1934), teólogo, sistema social e ético está falho, é injusto e deve ser
ftlósofo e historiador argentino, que vive atualmen- transformado. Normalmente os sistemas constituídos
te no México opera, antes de mais nada, uma rigo- se consideram naturais e os únicos válidos a serem
rosa desconstrução dos discursos éticos vigentes. impostos a todos no mundo inteiro. Tal fenômeno
Em sua grande maioria, observa ele, os formula- ocorre, nos dias atuais, com algumas correntes ftlo-
dores dessas éticas não têm consciência do lugar só ficas dos países centrais, com o monoteísmo polí-
social a partir donde pensam e atuam: dentro dos tico do neoliberalismo e com o fundamentalismo do
sistemas dominantes e a partir de quem ocupa o mercado. Alguns ideólogos vêem a ambos como o
centro do poder. Praticamente não tomam em con- fim e a culminância da história.
ta o fato de que existem uma periferia e uma exclu- Como universalizar um discurso ético que en-
são mundial, fruto desses sistemas fechados sobre globe realmente a todos sem distinção? Dussel é en-
si mesmos, incapazes de incluir a todos e, por isso, fático ao afirmar: somente chegamos à universalida-
produtores permanentes de vítimas. Como podem de se partirmos de uma parcialidade, dos últimos,
universalizar suas propostas, deixam-se de fora os dos que estão de fora, dos que têm seu ser negado.
pobres e os excluídos, que constituem as grandes Partindo dessa parte maior, podemos nos abrir a to-
maiorias da humanidade? Tais pensadores não fazem dos os demais, sentindo a urgência das mudanças ne-
um juízo ético prévio do sistema histórico-social em que cessárias, capazes de garantir uma efetiva inclusão e
vivem imersos e do tipo de racionalidade que uti- universalidade. Deixando-os de fora, teremos discur-
lizam. Partem como se suas realidades fossem evi- sos éticos seletivos, encobridores, não universalisá-
dentes e inquestionáveis. Sua crítica não é suficien- veis e abstratos (cf. Etica de la liberación en la edad de la
temente radical. globalización y de la exclusión) 1998).

84 85
-i
l E O N DoBOff
ETHosM N O I A I

A ética, pois, deve partir do outro, não do outro


(d) supõe levar em conta os mecanismos que reprodu-
simplesmente, mas do outro mais outro, que é o po-
zem o empobrecimento; (e) supõe o dever ético de
bre e o excluído, o negro e o indígena, a mulher opri-
desmontar tais mecanismos; (f) supõe a urgência de
mida, o discriminado pelos mais variados preconcei-
construir um caminho de saída do sistema excludente
tos. Esse pobre representa mais que uma categofla
e, por fim, (g) supõe a obrigatoriedade de realizar o
econômica, constitui uma grandeza antropológica; ele
novo sistema no qual tendencialmente todos possam
tem um rosto. O rosto do pobre se desvela irredutí-
caber na participação, na justiça e na solidariedade.
vel e provocador. Ele grita: "socorro"; estende a mão
e suplica: "Tenho fome, dá-me de comer". Escutar a b) a universalidade pela via da
voz do outro é mostrar consciência ética. "A parcialidade
consciência não é tanto um aplicar os princípios ao
caso concreto, mas um ouvir, um escutar a V0Z que Essa ética arranca dos pobres, mas não é apenas
interpela a partir da exterioridade, do além do hori- para os pobres. É para todos, pois, diante do rosto
zonte do sistema: o pobre que clama por justiça a do empobrecido, ninguém pode ficar indiferente, to-
partir de seu direito absoluto, santo, de pessoa en- dos se sentem concernidos. Essa ética é, fundamental-
quanto tal. Consciência ética é saber abrir-se ao ou- mente, uma ética da justiça, no sentido do resgate do
tro e levá-lo a sério (responsabilidade) em favor do reconhecimento negado às grandes maiorias e de sua

outro ante o sistema" (Ética comunitária, 51-2). inclusão n~ sociedade da qual se sentem excluídas. Em

O princípio supremo e absoluto da ética reza: função disso, hierarquiza prioridades: primeiro, sal-

"Liberta o pobre" (Ética comunitária, 88). O princípio var a vida dos pobres; depois, garantir os meios de

é absoluto porque rege a práxis, sempre, em todo o vida para todos (trabalho, moradia, saúde, educação,

lugar e para todos. "Liberta o pobre" supõe: (a) a segurança); em seguida, assegurar a sustentabilidade
denúncia de uma totalidade social, de um sistema fe- da casa comum, a Terra, com seus ecossistemas e a

chado que excluie produz o pobre; (b) supõe um opres- imensa biodiversidade e, a partir dessa plataforma

sor que produz o pobre e o excluído; (c) supõe o po- básica, garantir as condições para realizar os demais

bre injustamente feito pobre, por isso, empobrecido; direitos humanos fundamentais, consignados em
tantas declarações universais.

86 87
L E O N DoBoFF ETHosM N D I A l

Em razão dessa visão essencial, Dussel elabora suscitadas no início deste trabalho: a social, a ecoló-
uma ética política, para sociedades abertas que se sa- gica e a do trabalho humano. E continuará valendo
bem imperfeitas e sempre dispostas a processos de até que se cale o último grito do último oprimido do
aperfeiçoamento; aprofunda também uma ética eró- último rincão da Terra.
tica que rede fine os papéis do feminino/masculino, e
as relações parentais e representa uma alternativa às 6. Dignitas Terrae: uma ética eco-
éticas masculinizantes e falocráticas; projeta uma éti-
centrada
ca pedagógica da socialização humana, vale dizer, dos
Mais do que qualquer outra, esta corrente colo-
processos e métodos de internalização de valor~s
ca de forma explícita a questão de um ethos mundial.
comuns e, por fim, uma ética antifetichista, quer di-
Representa a cristalização até agora mais bem suce-
zer ,desmascaradora dos processos de absolutização
dida da nova consciência ecológica e planetária, na
e de cerramento dos sistemas sobre si mesmos que
perspectiva consciente de um novo paradigma civili-
impedem uma experiência efetivamente de transcen-
zatório.
dência e de encontro verdadeiro com a Fonte origi-
Decididamente, parte de uma visão ética inte-
nária de todos os seres e o objeto secreto do desejo
gradora e holística, considerando as interdependên-
insaciável do ser humano, Deus.
cias entre pobreza, degradação ambiental, injustiça
Essa ética possui um inegável caráter messiâni-
social, co~flitos étnicos, paz, democracia, ética e cri-
co, na medida em que leva a salvar vidas, a enxugar
se espiritual.
lágrimas, a despertar a com-paixão e a inceritivar a
Seus formuladores dizem-no claramente: ''A
colaboração para que todos se sintam ftlhos e ftlhas
Carta da Terra está concebida como uma declaração
da Terra e irmãos e irmãs uns dos outros. Ela se cen-
de princípios éticos fundamentais e como um roteiro
tra em coisas essenciais ligadas à vida e aos meios da
prático de signiftcado duradouro, amplamente com-
vida. Por isso que tem a ver com a maioria da huma-
partido por todos os povos. De forma similar à De-
nidade empobrecida. É uma ética do óbvio humano,
claração Universal dos Direitos Humanos das Na-
compreensível e realizável por todos. Daí seu irre-
ções Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um
nunciável valor ao dar centralidade às questões
código universal de conduta para guiar os povos e as

88 89
l E O N lDOBoff
ETHosM N D I A l

nações na direção de um futuro sustentável" (La Car-


e propor princípios que garantissem o equilíbrio
ta de la Tierra: valores y principios para un futuro sos- ecológico.
tenible, Secretaria Internacional del Proyecto Carta
Em 1982, na seqüência desta preocupação, pu-
de la Tierra, San José, Costa Rica, 1999, 12).
blicou-se a Carta Mundial para a Natureza. Em 1987,
a) Antecedentes históricos da Carto da a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o De-
Terra senvolvimento (Comissão Brundtland) propunha o
O texto da Carta da Terra madurou durante mui- motto que continua fazendo fortuna até os dias de
tos anos, a partir de uma ampla discussão em âmbito hoje: o "desenvolvimento sustentável" e sugeria uma
mundial. Um nicho de pensamento se encontra no Carta da Terra que regulasse as relações entre esses
seio da ONU. Quando foi criada em 1945,propunha-se dois campos, o meio ambiente e o desenvolvimento.
como tarefa fundamental à segurança mundial sus- Em 1992, por ocasião da Cúpula da Terra, reali-
tentada por três pólos principais, os direitos huma- zada no Rio de Janeiro, foi proposta uma Carta da
nos, a paz e o desenvolvimento socioeconômico. Não Terra que havia sido discutida em âmbito mundial por
se fazia ainda nenhuma menção à questão ecológica. organizações não governamentais, por grupos com-
Esta irrompeu estrepitosamente em 1972 com o Clube prometidos e científicos, bem como por governos
de Roma, o primeiro grande balanço sobre a situa- nacionais. Ela deveria funcionar como o cimento éti-
ção da Terra, que denunciava a crise do sistema glo- co a conferir coerência e unidade a todos os projetos
bal do planeta e propunha como terapia limites ao dessa importante reunião. Mas não houve consenso
crescimento. Nesse mesmo ano, a ONU organizou o entre os governos. Em seu lugar, adotou-se a Decla-
primeiro grande encontro mundial sobre o meio ração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
ambiente em Estocolmo, na Suécia. Ali surgiu a cons- mento. Tal rejeição provocou grande frustração nos
ciência de que o meio ambiente deve constituir a meios mais conscientes e comprometidos com o fu-
preocupação central da humanidade e o contexto con- turo ecológico da Terra.
creto de todos os problemas. Finalmente, o futuro Surgiu o segundo e decisivo nicho de pensamento
da Terra e da humanidade depende das condições am- e criação: duas organizações internacionais não go-
bientais e ecológicas. Impunha-se desenvolver valores vernamentais, a saber, o Conselho da Terra e a Cruz

90 91
1-

I
l E O N DoBoFF ETHosM N O I A l

Verde Internacional, com o apoio do governo holan- 1999 foram de ampla discussão em todos os continen-
dês. Assumiram o desafio de buscar formas pa~a che- tes e em todos os níveis (desde escolas primárias e co-
gar a uma Carta da Terra. Em 1995, copatrocinaram munidades de base até centros de pesquisa e ministérios
um encontro em Haia, na Holanda, onde 60 repre- de educação) sobre a Carta da Terra. Cerca de 46 países
sentantes de muitas áreas junto com outros interessa- e mais de cem mil pessoas foram envolvidas. Muitos
dos criaram a Comissão da Carta da Terra com o projetos de Carta da Terra foram propostos, até que,
propósito de organizar uma consulta mundial duran- em abril de 1999, sob a orientação de Steven
te dois anos, ao fim dos quais se deveria chegar a um Rockfeller, budista e professor de fJlosofia da religião
esboço de Carta da Terra. e de ética, escreveu-se um segundo esboço de Carta da
Ao mesmo tempo, foram recompilados os prin- Terra}reunindo as principais ressonâncias e convergên-
cípios e os instrumentos existentes de direito inter- cias mundiais. De 12 a 14 de março de 2000, na
nacional num informe com o título "Princípios de UNESCO, em Paris, fizeram-se as últimas contribui-
Conservação Ambiental e Desenvolvimento Susten- ções e se ratificou a Carta da Terra. A partir de agora,
tado: Resumo e Reconhecimento". será um texto oficial, aberto a discussões e a novas
Em 1997, criou-se a Comissão da Carta da Ter- contribuições, até que seja proposto ao endosso da
ra, composta por 23 personalidades mundiais, oriun- ONU em 2002. Aprovou-se uma campanha mundial
das de todos os continentes, para acompanhar o pro- dt; apoio à Carta da Terra com o propósito de conquis-
cesso de consulta e redigir um primeiro esboço de tar mais e mais pessoas, instituições e governos à essa
Carta da Terra sob a coordenação de Maurice Strong nova visão ética e ecológica, capaz de fundar um prin-
(do Canadá, coordenador-geral da Cúpula da Terra, cípio civilizatório benfazejo para o futuro da Terra e
Rio-92) e Mikhail Gorbachev (da Rússia, presidente da humanidade.
da Cruz Verde Internacional). Em março de 1997,
durante o Fórum Rio + 5, a primeira tentativa de ba-
Princípios e valores éticos da Carta da
Terra
lanço do que se implementou das decisões da Cúpula
O mérito principal da Carta é colocar como eixo
da Terra (Ri0-1992), a comissão apresentou um pri-
articulador a categoria da inter-retro-relação de tudo
meiro esboço da Carta da Terra. Os anos de 1998 e
com tudo. Isso lhe permite sustentar o destino comum

92 93
i,
ElHOS/! N D I A l
LEON RDOBoff

da Terra e da humanidade e reafirmar a convicção de I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DE


VIDA
que formamos uma grande comunidade terrenal e
cósmica. As perspectivas desenvolvidas pelas ciências
- respeitar a Terra e a vida com toda a sua diver-
da Terra, pela nova cosmologia, pela física quântica,
sidade;
pela biologia contemporânea e os pontos mais segu-
- cuidar da comunidade de vida com compreensão,
ros do paradigma holístico da ecologia subjazem ao
compaixão e amor;
texto da Carta.
- construir sociedades democráticas, justas, sus-
Ela se divideem quatro partes: um preâmbulo, prin-
tentáveis, participatórias e pacíficas;
cípios fundamentais, princípios de apoio e conclusão.
- assegurar a riqueza e a beleza da Terra para as
O preâmbulo afirma enfaticamente que a Terra
gerações presentes e futuras;
está viva e com a humanidade forma parte de um
vasto universo em evolução. Hoje ela está ameaçada
11. INTEGRIDADE ECOLÓGICA
em seu equilibrio dinâmico, devido às formas explo-
radoras e predatórias a que os seres humanos se acos- - proteger e restaurar a integridade dos siste-
tumaram. Em face desta situação global, temos o de- mas ecológicos da Terra, com especial preocupação
ver sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade e pela diversidade biológica e pelos processos naturais
a beleza de nossa Casa Comum. Para isso, precisa- que sustentam a vida;
mos fazer uma nova aliança com a Terra e um novo - prevenir o dano ao ambiente como o melhor
pacto social de responsabilidade entre todos os hu- método de proteção ambiental e, quando o conheci-
manos, fundado numa dimensão espiritual de reve- mento for limitado, tomar o caminho da prudência;
rência frente ao mistério da existência, de gratidão - adotar padrões de produção, consumo e repro-
pelo presente da vida, e de humildade, considerando dução que protejam as capacidades regenerativas da
o lugar que o ser humano ocupa na natureza. Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário;
Melhor do que resumir os conteúdos éticos é - aprofundar o estudo da sustentabilidade eco-
transcrever os 16 princípios fundantes do novo ethos lógica e promover a troca aberta e ampla aplicação
mundial: do conhecimento adquirido;

94 95
LEO"ARDOBoff ETHOS J N o I A l

111. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA


- tratar todos os seres vivos com respeito e con-
sideração;
- erradicar a pobreza, um imperativo ético, so-
cial, econômico e ambiental;
A Carta expressa, como efeito final, a confiança na
- garantir que as atividades econômicas e insti-
capacidade regenerativa da Terra e na responsabilidade
tuições, em todos os níveis, promovam o desenvol-
compartida dos seres humanos de aprender a amar e a
vimento humano de forma eqüitativa e sustentável;
cuidar do Lar comum. Belamente conclui a Carta: "Que
- afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como
o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma
pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e
nova reverência em face da vida, por um compromisso
assegurar o acesso universal à educação, ao cuidado
firme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela
da saúde e às oportunidades econômicas;
justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida".
- apoiar, sem discriminação, os direitos de to-
Concluindo, tudo o que queríamos, encontramos
das as pessoas a um ambiente natural e social capaz
nessa proposta de ética mundial, seguramente a mais
de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e
articulada, universal e elegante que se produziu até
o bem-estar espiritual, dando especial atençã~ aos po-
agora. Se a Carta da Terra for universalmente assumi-
vos incligenas e às minorias;
da, mudará o estado de consciência da humanidade.
A Terra ganhará, finalmente, centralidade junto com
IV. DEMOCRACIA, NÃO-VIOLÊNCIA E PAZ
todos os fllhos e fllhas da Terra, que possuem a mes-

- reforçar as instituições democráticas em to- ma origem e o mesmo destino que ela. Nela não ha-

dos os níveis e garantir-lhes transparência e credibili- verá mais lugar para o empobrecido, o desocupado

dade no exercício do governo, participação inclusiva e o agressor da própria Grande Mãe.

na tomada de decisões e no acesso à justiça;


- integrar na educação formal e na aprendiza-
gem ao longo da vida os conhecimentos, valores e
habilidades necessários para um modo de vida sus-
tentável;

96 97
l E O N DoBoFF ETHOSM ~ D I A l

7. Conclusão: um ethos e muitas mundo circundante, como querem os formuladores


morais da ética calcada na natureza.
Esses valores ganharam corpo nas religiões, que
Todas essas formas de argumentação ética e moral expressam os sonhos e os ideais mais altos da huma-
contemplam dimensões verdadeiras, embora limitadas. nidade; expressam, outrossim, a incondicionalidade
Como vUnos,nem todas encaminham adequadamente os dos valores básicos, nascidos do encontro e do diá-
três problemas globais que identificamos no irúcio,mas, logo com Deus, a fonte de toda a incondicionalidade
tomadas em seu conjunto, elas se completam. ética, como querem os formuladores da ética assen-
Com efeito,precisamos ser pragmáticos, como que- tada nas grandes tradições religiosas da humanidade.
rem os utilitaristas sociais.Precisamos de efeitos positi- Por fIm, o valor e o critério de verdade e univer-
vos que tomem leve e feliz a vida: mas não à custa da salidade de uma ética se mede pela forma como ela
justiçae da dialogaçãoque os sereshumanos sempre pre- trata o pobre e o excluído, que constituem a maioria
cisam estabelecer entre si,no confronto dos argumentos, da humanidade, e o Grande Pobre, avassalado e es-
da composição das diferenças culturais,para que o pacto poliado, no Planeta Terra. Se ela não toma em consi-
socialinclua o mais possível a todos e a própria natureza, deração o grito do oprimido e o grito da Terra e não
como querem os representantes da ética do discurso co- se organiza para libertá-los, o ethospode ainda ser con-
municativo e da justiça societáriada Dignitas TefTae. siderado ético? A moradia humana (ethos em seu sen-
O útil e o justo devem expressar a singularidade tido original) exige o resgate da justiça mínima, da
da espécie humana, diferente de outras espécies com veneração sagrada e da com-paixão necessária, sem
as quais estamos em comunhão ecológica na mesma as quais a moradia humana não é humana, porque não
casa comum, a Terra. Essa singularidade do ser é mais habitável. Sem essa justiça, qualquer projeto
humano remete a uma natureza específi~a, com de felicidade passa a ser cínico. Eis a grande concla-
comportamentos que lhe são adequados, comporta- mação feita pelos portadores da Carta da Terra em
mentos carregados de significação, de valores, de ex- âmbito mundial.
pressão de sua estrutura de cuidado, de racionalida- O conjunto das expressões éticas deve salvaguar-
de, liberdade, autonomia e capacidade de plasmação do dar o sistema-Terra, a antropo-esfera e a bio-esfera a

98 99
L E O N DoBoFF

partir de quem mais sofre e é excluído. Finalmente,


entre acertos e erros, imensas perplexidades e discretas
5. O PATHOS EO
realizações, toda preocupação ética deve dar centrali- CUIDADO COMO NOVA
dade ao destino comum de todos os que participam PLATAFORMA DO ETHOS
/
da aventura terrenal, que significa uma singela partici- HUMANO E PLANETÁRIO
pação no sentido misterioso de todo o universo. Tudo
I
.!
se resume na busca ansiada da paz, que é, na feliz defi-
nição da Carta da Terra, "a integralidade que resulta das
relações justas consigo mesmo, com as outras pessoas,
com as diferentes culturas, com a vida, com a Terra e
com o grande Todo do qual todos são parte".

Nesta parte, queremos apresentar nossa própria


visão acerca da possibilidade de um ethos mundial.
Incorporaremos, o mais possível, perspectivas que
nos parecem úteis das várias vertentes apresentadas.
De saída, constatamos que quase todos os sis-
temas éticos, pelo menos no Ocidente, pagam pe-
sado tributo ao logocentrismo. Nos fundamen-
tos de nossa cultura, encontra-se o logos grego e o
[UNIDAVlj
cogito cartesiano. A evolução do pensamento filo-
sófico e o próprio processo histórico vieram
mostrar mais e mais que a razão não explica tudo
nem abarca tudo.

100 101
l E O N :DoBoFF ETHosM I D I A l

A razão, diz o ftlósofo lovaniense Jean Ladriêre, existência jamais é pura existência; é uma co-existên-
não é nem o primeiro nem o último momento da cia, sentida e afetada pela ocupação e pela preocupa-
existência humana (Le destin de la raison et les táches de la ção, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo
philosophie, 1973, 35). Ela se abre para baixo e para com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela es-
cima. Para baixo, emerge de algo mais antigo, pro- perança ou pela angústia.
fundo e elementar, a afetividade, o cuidado essencial A primeira relação é sem distância, de profunda
e o pathos. Para cima, ela se abre à experiência espiri- passividade ativa: sentir o mundo, os outros e o eu
tual, que é a descoberta do eu dimensionado para a como uma totalidade una e complexa, dentro do
totalidade e a descoberta da totalidade presente no mundo, como parte dele e, todavia, vis-à-vis com ele,
eu; em outras palavras, a interconectitividade de tudo como distinto para vê-lo, pensá-lo e moldá-lo. Fun-
com tudo. Além disso, existe ainda o a-racional e o damentalmente, é um estar com e não sobre as coisas, é
irracional, que mostram a presença do caos junto do um con-viver dentro de uma totalidade ainda não di-
cosmos, da desordem acolitando a ordem. O demens ferenciada.
sempre acompanha o sapiens, o dia-bólico se empare- Martin Heidegger, em seu Ser e Tempo, fala do
lha com o sim-bólico. Há vasta convergência na ad- ser-no-mundo como um existencial, quer dizer, como
missão de que a inteligência é emocional pois é ela uma experiência-base, constitutiva do ser humano, e
que dá conta dessa dialética viva da realidade e do não como mero acidente geográfico ou geológico.
pensamento. Por isso, as estruturas axiais da existência circulam
em torno da afetividade, do cuidado, do eros, da pai-
1. Sinto, logo existo xão, da com-paixão, do desejo, da ternura, da simpa-
tia e do amor. Esse sentimento básico não é apenas
Qual é a experiência-base da vida humana? É o
moção da psiqué. É muito mais. É uma "qualidade
sentimento, o afeto e o cuidado. Não é o logos, mas o
existencial", um modo de ser essencial, a estrutura-
pathos. Sentio, ergo sum (sinto, logo existo): eis a propo-
ção ôntica do ser humano.
sição-raiz. Pathos é a capacidade de sentir, de ser afe-
O pathos não se opõe ao Iogos. O sentimento tam-
tado e de afetar. Esse é o Lebenswelt, o arranjo exis-
bém é uma forma de conhecimento, mas de natureza
tencial concreto e pro to-primário do ser humano. A

102 103
l E O N DOBOFF ETHosM D I A l

diversa. Engloba dentro de si a razão, transbordan- humana; havia respeito e veneração para com todos
do-a por todos os lados. Quem viu genialmente esta os elementos, especialmente para com os seres vivos
dimensão foi Blaise Pascal, um dos fundadores do e para com a Terra, venerada como Grande Mãe.
cálculo de probabilidades e construtor de máquinas Tudo isso se obscureceu posteriormente. O ho-
de calcular, ao afIrmar que os primeiros axiomas do mem moderno e pós-moderno está à procura desse
pensamento vêm intuídos pelo coração e que cabe acordo perdido que subsiste, no entanto, na lógica
ao coração colocar as premissas de todo o conheci- do cotidiano (nisso somos tão arcaicos como os hu-
mento possível do real. Nos tempos atuais, Daniel manos de antanho), nos seus sonhos, nas utopias re-
Golemann, com seu estudo já clássico Inteligência Emo- gressivas e progressivas e em seu fértil imaginário.
cionai comprovou empiricamente a tese filosófIca do
sentimento e da afetividade (pathos) como dinlensão 2. A essência humana: o cuidado
básica do ser humano. Primeiro sente o coração, so-
Mas não basta. Importa transformar opathos num
mente após reage o pensamento. projeto histórico que englobe a tradição do logos, ne-
O conhecimento pelo pathos se dá num processo cessário para salvar a humanidade e a Terra. Logos e
de sim-pathia, quer dizer, de identifIcação com o real, palhos precisam dar-se as mãos. Cabeça e coração pre-
sofrendo e se alegrando com ele e participando de cisam redescobrir que são dimensões do mesmo cor-
seu destino. po e que são faces de uma mesma moeda. Desta com-
O homem arcaico, antes da hegemonia da razão,
binação, nascerá o cuidado. O cuidado, segundo uma
vivia uma union mystique com todas as realidades, sen- antiga tradição filosófica ligada à fábula 220 de Higi-
tia-se umbilicalmente ligado a elas; participava da no, o escravo de César Augusto, tão bem explorada
natureza das coisas e as coisas participavam de sua por Heidegger em Sere Tempo (41-3) e levada avante
natureza. Percebia que as pedras, as plantas e os ani- por nossa investigação Saber cuidar: ética do humano)
mais pertenciam a sua própria história, embora se compaixão pela Terra (Vozes, Petrópolis, 1999) define
perdesse na penumbra do tempo antigo. Por isso, o a essência concreta do ser humano.
sentimento de pertença e de parentesco universal per- O ser humano é fundamentalmente um ser de
mitia uma integração bem sucedida da existência
cuidado mais que um ser de razão e de vontade.

104 105
,.
I
l E O N DoBoFF

Cuidado é uma relação amorosa para com a rea-


lidade, com o objetivo de garantir-lhe a subsis-
6. IMPERATIVOS
,
MíNIMOS
tência e criar-lhe espaço para o seu desenvolvi- DE UMA ETICA MUNDIAL
mento. Em tudo os humanos colocam e devem
colocar cuidado: na vida, no corpo, no espírito,
na natureza, na saúde, na pessoa amada, em quem
sofre e na casa. Sem cuidado, a vida perece.
A ética do cuidado é seguramente a mais impe-
rativa nos dias atuais, dado o nível de descuido e des-
leixo que paira como uma ameaça sobre a biosfera e
o destino humano, objeto de crescentes alarmes dos
grandes organismos ecológicos mundiais.
A partir dessa plataforma globalizante do pathos
1. Ética do cuidado
enriquecido pela tradição do logos, culminando no
cuidado essencial, que imperativos parecem urgentes
Afirmamos anteriormente que o cuidado per-
para uma ética mundial, capazes de debelar o pro-
tence à essência do ser humano. É o seu modo-de-ser
blema social dos excluídos, a crise estrutural, do tra-
concreto no mundo e com os outros, ontologicamente
balho e o impasse ecológico? anterior à ação da razão e da liberdade, como o tem
mostrado profundamente Martin Heidegger em seu
Sere Tempo (41-3) e que nós detalhamos em nossa in-
ves tigação Saber Cuidar: ética do humano, compaixão pela
Terra (1999). O cuidado é uma relação amorosa que
descobre o mundo como valor. Ele não é primeira-
mente objeto da posse humana e arena dos interesses
utilitaristas. Ele possui seu valor intrínseco e sua rela-
tiva autonomia. Possui subjetividade, na medida em

106 107
LEONA DoBoFF ETHosMu o I A l

que é parte e parcela do Todo e merece ser respeitado e da Carta da Terra) como a expusemos anteriormente.
continuar a existir.O cuidado expressa a importância da Nós mesmos, na obra Saber, cuidaraprofundamos seus
razão corclial,que respeita e venera o tIÚstérioque se vela principais eixos: cuidado com o nosso único planeta,
e re-vela em cada ser do universo e da Terra. Por isso, a cuidado com o próprio nicho ecológico, cuidado com
vida e o jogo das relações só sobrevivem se forem cerca- a sociedade sustentável, cuidado com o outro, ani-
dos de cuidado, de desvelo e de atenção. A pessoa se mus-anima, cuidado com os pobres, oprimidos e ex-
sente envolvidaafetivamentee ligadaestreitamenteao des- cluídos, cuidado com o nosso corpo na saúde e na
tino do outro e de tudo o que for objeto de cuidado. Por doença, cuidado com nossa alma e seus anjos e de-
isso, o cuidado provoca preocupação e faz surgir o senti- mônios interiores, cuidado com nosso espírito e seus
mento de responsabilidade. Bem dizia o poeta Horácio sonhos e o Grande Sonho, Deus, cuidado com a gran-
(65-8 a.q: "o cuidado é o permanente companheiro do de travessia da morte.
ser humano", no amor às coisase às pessoas e na respon- O futuro do planeta e da espécie homo sapiem/ demens
sabilidadee no envolvimento daí decorrentes. depende do nível de cuidado que a cultura e todas as
Sem cuidado, triunfa a entropia, vale dizer, o des- pessoas tiverem desenvolvido.
gaste de todas as coisas sob a usura irrefreável do
tempo; com cuidado, cresce a sintropia, a conjura
2. Ética da solidariedade
suave de todos os fatores que mantêm e prolongam
Cresce a percepção de que vigoram interdepen-
o mais possível a existência.
dências entre todos os seres, de que há uma origem e
Não é difícil perceber que o cuidado funda a pri-
um destino comuns, de que carregamos feridas co-
meira atitude ética fundamental, capaz de salvaguar-
muns e de que alimentamos esperanças e utopias co-
dar a Terra como um sistema vivo e complexo, pro-
muns. Somos, pois, solidários em tudo, na vida, na
teger a vida, garantir os direitos dos seres humanos e
sobrevivência e na morte.
de todas as criaturas, a convivência em solidarieda-
de, compreensão, compaixão e amor.
a) a lei cósmica da solidariedade
Não precisamos detalhar mais os conteúdos de
A solidariedade emerge aqui como uma catego-
uma ética do cuidado, pois ela perpassa todo o texto
ria ôntica e, ao mesmo tempo, política. Ôntica porque

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l E O N DoBOFF ETHosM N D I A l

está inscrita, objetivamente, no tecido de todos os solidariedade, e não o strugglefOr life organizou social-
seres. Todos são seres-de-relação e por isso inter-re- mente nossos ancestrais hominídeos. Ao recoletarem
tro-conectados e reciprocamente solidários. Esta é a alimentos ou ao retornarem da caça, repartiam entre
estrutura básica do universo que gerou as mais dife- si o que haviam reunido. Foi a sociabilidade originá-
rentes diversidades, especialmente a biodiversidade, ria que, milhões de anos atrás, permitiu o surgimento
como forma de garantir, solidariamente, a subsistên- da fala, mediante a qual o ser humano se distingue
cia do maior número possível de seres, senão de to- dos demais primatas superiores e com a qual cons-
dos os atualmente existentes. A própria lei da seleção trói o mundo de significações e de valores. Finalmen-
natural de Darwin deve ser entendida no interior dessa te, a vida depende da solidariedade, tanto ontem
lei mais universal da solidariedade de todos com to- como hoje. Ninguém dá a vida a si mesmo, senão que
dos. Ao nível humano, ao invés de seleção, devemos a recebe de alguém que a acolhe solidariamente e a
propor o cuidado, para que todos possam continuar introduz na comunidade dos humanos. Todos depen-
a existir e não sejam marginalizados ou eliminados demos de um prato de comida e de um copo de água
em nome dos imperativos do interesse de grupos ou e daqueles que nos aceitam, suport;am e decidem con-
de um tipo de cultura que coloca a ambição acima da viver conosco. Sem essa solidariedade básica, não ha-
dignidade. veria sociedade, nem entre os animais e outros orga-
nismos societários.
b) a solidariedade política
A solidariedade política ou será o eixo articula-
A solidariedade é ainda uma categoria política dor da geossociedade mundial ou não haverá mais
central. A solidariedade ôntica pode ser assumida futuro para ninguém. Pois dessa solidariedade depen-
conscientemente num projeto político e constituir o de a conservação do patrimônio natural comum da
eixo das relações sociais. humanidade, sem o qual a vida não será mais possí-
Aqui novamente precisamos resgatar a tradição vel. Antes de mais nada, há de se entender, numa vi-
de solidariedade que se encontra nos primórdios do são ecocêntrica que deixou para trás todo o antropo-
processo de hominização. Etnoantropólogos e bió- centrismo, que a biosfera é patrimônio comum de
logos contemporâneos nos fizeram saber que a toda a vida (common heritage o/ afl life), dos

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LeON RooBOFF ETHOS~ N o I A l

microorganismos aos seres humanos. Tal fato anula Serres (1990): "A Declaração dos Direitos do Ho-
os limites nacionais e espaciais, pois a questão églo- mem teve o mérito de dizer 'todos os homens' e o
bal, e não regional. defeito de pensar 'só os homens'. Assim como ou-
O imperativo ético primeiro, elaborado pelo trora houve discussões acerca da atribuição ou não
famoso A. Leopold em sua Ética da Terra (1949), soa: de direitos às mulheres, aos indígenas e aos escravos,
"uma ação é justa quando tende a preservar ~ estabi- hoje verifica-se a mesma discussão acerca da
lidade, a integridade e a beleza da comunidade bióti- atribuição ou não de direitos aos animais, às plantas e
ca e injusta quando tende ao contrário". Formula- à Terra como Gaia. Como viemos enfatizando, pre-
ções semelhantes encontramos em H. Jonas, em sua cisamos enriquecer nosso conceito de democracia, no
ética ecológica para as modernas sociedades tecno- sentido de uma biocracia e cosmocracia, em que to-
lógicas (O prindpio da respo11Sabilidade, 1984) ou em A. dos os elementos entram a compor, em distintos ní-
Schweitzer, em sua ética da veneração e do respeito veis, a sociabilidade humana.
diante de cada forma de vida (A reverência diante da A Carta Mundial da Natureza, elaborada pela
vida) 1966). Nesta ética em grau zero, o ser humano ONU em 1982, esposa essa compreensão da
emerge, em sua missão singular, como tutor (guardian) subjetividade da natureza e faz dos seres humanos os
em inglês, e na linguagem bíblica, jardineiro) e res- representantes jurídicos (guardians) de todos os de-
ponsável pela biosfera e por todo p criado. mais concidadãos e concidadãos da comunidade
I biótica e terrenal. A mesma visão preside a Carta da
c) a subietividade da natureza Terra) como já temos considerado.
Há um pressuposto nesta compreensão que deve Junto com o patrimônio comum natural da vida
ser explicitado: a subjetividade da Terra, da natureza e da humanidade vem o interesse comum da humani-
e de cada ser vivo. Todos eles têm história, comple- dade (col11l11onconcem 0/ hUl11ankind). Questões concre-
xidade e interioridade. São sujeitos de direitos que tas que afetam diretamente toda a humanidade mere-
devem ser respeitados. Existe pois uma ampliação cem uma preocupação comum e solidária de toda a
da personalidade jurídica às plantas, aos animais, aos humanidade, tais como as alterações dos climas, a
rios, aos ecossistemas, às paisagens. Bem disse M. poluição da atmosfera, a camada de ozônio, o efeito

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estufa, a escassez de água potável, eventuais epidemias limitados da Terra e como realização plena dos ideais
letais, a seguridade alimentar e a questão dos transgê- democráticos, que incluem a cidadania de todos os
rucos, entre outros. elementos da natureza.
Qual é a ética que preside essa preocupação co-
mum da humanidade senão a ética da solidariedade? 3. Ética da responsabilidade
Aqui deriva sua centralidade e essencialidade. Ela deve
Pressupondo a discussão feita acima, ao anali-
penetrar em todas as instâncias e fazer-se carne e san-
sarmos os vários projetos éticos, queremos aqui ape-
gue em todas as pessoas. Por isso, o portador natural
nas sinalizar algumas pistas.
dessa ética é a sociedade civil, as pessoas concretas e
suas organizações. Os estados devem orientar suas Trata-se da sobrevivência de todos, seres huma-
políticas públicas no espírito da solidariedade, bem nos, demais seres vivos e da Terra como sistema inte-
como as relações inter-estatais. Bem o dizia a Decla- grador de subsistemas. O ser humano faz-se co-res-
ração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvi- ponsável, juntamente com as forças diretivas do uni-
mento em seu princípio VII: "Os estados coopera- verso e da natureza, pelo destino da humanidade e
rão num espírito de parceria global para conservar, de sua casa comum, o planeta Terra.
proteger e recuperar a saúde e a integridade do ecos- Sentir-seresponsável é sentir-se sujeito de ações que
sistema da Terra". Portanto, é por meio de ações in- podem dar-se num sentido de benvolência para com a
ter-estatais visando à comunidade universal que se ex- natureza e os outros seres ou num sentido de agressão e
pressará a solidariedade, que atende em primeiro lu- submetimento. A responsabilidade mostra o caráter
gar ao interesse comum da humanidade e, por refra- ético da pessoa. Ela escuta o apelo da realidade
ção, ao bem ecológico de cada estado. ecoando em sua consciência. Ele dá uma resposta a
Essa solidariedade política permitirá a retoma- esse apelo, resposta sempre qualificada, seja de ma-
da do sonho socialista em outros moldes, fora dos neira negativa, seja positiva, seja de qualquer outra
contextos ideológicos conhecidos, como forma de forma. Desta capacidade de resposta (responsum) nas-
integração de todos, em vista da sobrevivência, da .J ce a responsabilidade, o dever de responder e de aten-
utilização racional e compartilhada dos recursos der aos apelos da realidade captados pela consciência.

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l E O N DoBoFF ETHosM N D I A l

Essa responsabilidade, na esteira de Hans Jonas, futuras (intergeneracional) que têm o direito de her-
pode ser formulada no seguinte imperativo categóri- dar uma Terra habitável, instituições político-sociais
co: "Age de tal maneira que as conseqüências de tuas minimamente humanas e uma atmosfera cultural e
ações não sejam destrutivas da natureza, da vida e da espiritual benfazeja para com a vida nas suas múlti-
Terra". Nos dias atuais, conhece três concretizações plas formas, com uma fina sensibilidade para com
básicas, resumidamente: todos os seres, companheiros de aventura terrenal e
- responsabilidade pelo meio ambiente, que se traduz cósmica e para com a Fonte originária de tudo: Deus.
por um pacto de cuidado, de benevolência e de res- a modo como esse ethos básico vai-se concreti-
peito para com a natureza, condição para todos os zar dependerá das diferentes culturas que encontra-
demais pactos; rão os modos singulares para cada uma delas
- responsabilidade pela qualidade de vida de todos os preencher os requerimentos da responsabilidade. A
seres, a começar pelos humanos e, dentre estes, em partir do ethos da responsabilidade, surgem as dife-
primeiro lugar, pelas grandes maiorias excluídas, rentes morais concretas com a marca das diferentes
humilhadas e ofendidas e, a partir daí, abrindo-se tradições humanas.
para os demais seres (florestas, rios, animais, mi-
croorganismos, ecossistemas), pois todos perten- 4. Ética do diálogo
cem à comunidade biótica e terrenal, são interde-
pendentes e, por isso, têm direito de ser e de viver A crise social mundial, o desemprego estrutural
junto conosco. É o novo pacto sociocósmico, fun- e a degradação ambiental dão, indiscutivelmente, ori-
dado na combinação entre a justiça social e li justi- gem a uma natural solidariedade. Mas essa
ça ecológica no espaço de uma democracia tam- solidariedade, sozinha, não é suficiente. Ela precisa
bém sociocósmica-planetária, na qual todos os se- ganhar corpo político, jurídico e pedagógico numa
res, humanos e não-humanos, fazem parte como dimensão transespacial e transtemporal. Isso implica
sujeitos de direitos; uma decisão política e jurídica dos estados e dos po-
- responsabilidade generacional: pacto com as gera- vos. a que permite, porém, a construção coletiva da
ções atuais (intrageneracional) em função das gerações solidariedade universal é o recurso sistemático ao

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L E O N DOBOFF
ETHosM N O I A l

diálogo em todas as frentes e em todos os níveis. Im- levantar a pretensão de validade" a. Habermas).
põe-se, portanto, uma ética do diálogo universal. Pre-
Uma norma que não respeita o processo comunica-
cisamos oferecer uma fundamentação filosófica mí- tivo, porque elaborada sob coação, manipulação dos
nima para esse tipo de ética. dados, com o uso da falsidade, seria imoral. A nor-
O ser humano, já o enfatizávamos anteriormente, ma assumida deve encaminhar ações concretas, pois
é um ser de relação e de comunicação, portanto, um somente assim funciona como cânon crítico para ou-
ser dialógico. É sua dimensão ôntica e transcenden- tras realizações da vida.
tal, sempre presente em todos os sujeitos humanos
Junto com essa exigência vem a outra: todos
de ontem, de hoje e de sempre. Essa dimensão ganha
devem ter seu lugar na comunidade de comunicação.
concreção e feição na história e na cultura. Ela foi
Nela todos devem caber e devem poder falar e ser
aprofundada pelo personalismo europeu e, especial-
e~cutados. Para que tal ocorra, fazem-se necessárias
mente em sua funcionalidade política, pela escola crí-
mudanças sociais para que os que estiverem excluí-
tica de Frankfurt, que inspiram nossas afirmações.
dos e silenciados (hoje são 2/3 da humanidade) par-
Na relação e no diálogo, o ser humano estabe- ticipem do discurso comunicacional. Uma república
lece princípios que se dão no próprio ato de comu- terrenal com cidadania ativa supõe uma permanente
nicação: a reciprocidade, vale dizer, o mútuo reco- dialogação dentro da humanidade. O ideal é que as
nhecimento dos sujeitos autônomos que se acolhem comunicações transformem a Terra numa única gran-
como interlocutores válidos e responsáveis pelas de ágora grega onde os cidadãos se acostumam a
ações comunicativas; todos se comprometem a usar opinar, discutir e, juntos, a elaborar consensos míni-
as regras comuns, sem as quais não há comunicação; mos em benefício de todos.
surge, pois, uma comunidade lingüística de interlo- Essa linha ética, predominante na reflexão filo-
cutores, com capacidade de argumentos aceitáveis sófico-social, vem acompanhada por uma teoria da
entre todos. Esta pressuposição implica uma ética evolução humana, pedagógica e social: o ser humano
segundo a qual "somente as normas que encontram aprende moralmente, na medida em que convive, re-
(ou poderiam encontrar) aceitação por parte de to- laciona-se e intercambia continuamente com os dife-
dos os envolvidos no discurso prático podem rentes. Essa ética invalida o pretenso caráter ético das

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I.
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ações dos poderosos do mundo. Na verdade, eles se São humanos que infligem este flagelo a outros
reúnem não para coordenar um diálogo ger~ sobre humanos, seus semelhantes. Não o fazem porque são
o futuro da Terra e da humanidade, mas para garan- perversos, mas porque aceitam passivamente as con-
tir sua hegemonia sobre os outros, consolidar suas seqüências produzidas por um tipo de relação social
posições de poder, negociar interesses particulares cuja lógica férrea de ter vantagens individuais e de
entre eles, à revelia do interesse coletivo da acumular privadamente bens e serviços apresenta-se
humanidade, e, principalmente, assegurar os ruveis de cruel e sem piedade. Esse sistema, que já tem séculos
ganhos do processo produtivo mundial. De suas prá- de existência, hoje expandiu-se praticamente em
ticas não virão luzes sobre o problema social, traba- todo o planeta e configura a maior desordem ética
lhista e ecológico. Antes eles agravam tais questões. e política de que se tem notícia. Ele compromete a
sustentabilidade de Gaia, da maioria dos seres vi-
5. Ética da com-paixão e da vos e de dois terços dos humanos. Empiricamente,
libertação significa uma desproporcional assimetria, socialmen-
J

Já o dissemos à saciedade, mas importa jamais o


j te uma injustiça estrutural e teologicamente um pe-
cado histórico.
i
esquecer: o grande desafio ético e político são os dois A reação primeira em face desta realidade é a
terços da humanidade, pobres, oprimidos e excluí- com-paixão, aquela atitude de sofrer o padecimento
dos. Que significa o oprimido que é excluído? É aquele da outro e de participar de suas lutas de libertação.
que sequer está à margem do sistema social (portan- Uma das concretizações do pathosconsiste, exatamen-
to, dentro dele), mas está fora dele. Este, pela forma te, nessa ética da com-paixão, que o budismo instau-
como se organiza, como produz e distribui os bens rou como sua experiência fundadora.
necessários e as responsabilidades, não consegue in-
cluí-los; por isso, deixa-os excluídos como sobrantes
e descartáveis, gerando um mar de sofrimentos, de
I
1
Que significa libertar o pobre que é excluído? Sig-
nifica uma teoria e uma prática histórica que visem à
superação da totalidade social dada, para poder in-
humilhações e de desestruturação das pessoas e das cluir o excluído, que hoje são nações, raças, gêneros e
famílias. maiorias discriminadas, como as mulheres, e os seres

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l E O N , DO SOff ETHosM I D I A L

vivos ameaçados de extinção, entre outros. Daí a má- 6. Ética holística


xima: "Liberta o pobre, o oprimido e o excluido" ser
hoje a mais universal, porque concretamente se aplica Na diversidade das tradições, hábitos e culturas
à maioria da humanidade, pobre, oprimida e excluída. eXistentes, urge superar as clássicas contradições (um
Essa máxima coloca em xeque as totalidades éti- nega o outro, sem destrui-lo) e obviar os antagonis-
cas dadas, abstratas, quando não, cínicas, em face do mos (um destrói o outro) e assumir decididamente
grito da Terra e o gemido dos filhos e filhas da Terra uma perspectiva globalizadora e holística. Segundo
empobrecidos. Ela é uma máxima de grande com- esta visão, as diferenças revelam a complexidade e a
paixão, solidariedade e, ao mesmo tempo, carregada riqueza única da humanidade. Quando se abrem umas
de peso crítico, pois questiona todas as sociedades às outras, as culturas descobrem a oportunidade do
que produzem pobres e excluidos. mútuo enriquecimento e da reciprocidade fundamen-
Ter afirmadoe proclamadoaos quatroventos essaéti- tal. Ninguém detém o monopólio das expressões
ca constituio mérito do cristianismode libertação,com sua possíveis das potencialidades humanas. Todas estas
correspondente teologiada libertação,que fazda opção pe- diferenças convergem para aquilo que é do interesse
lospobres,contraapobreza delese em fuvordasuavidae da coletivo, como a salvaguarda do patrimônio natural
libertação,seu apanágioe suamarca registrada. e cultural comum e a manutenção de reprodução e
A libertação, entretanto, só será instaurada quan- de desenvolvimento da vida humana e de todas as
do o próprio empobrecido for sujeito de seu pro- outras formas de vida e de ser.
cesso; juntamente com aliados de outras classes A perspectiva holística não significa a somatória
sociais, poderá mostrar-se uma força histórica, capaz dos pontos de vista (que são sempre a vista de um
de transformar a história na direção de mais inclusão ponto), mas a capacidade de ver a transversalidade.
e participação em todos os bens naturais e culturais. Quer dizer, a capacidade de detectar os inter-retro-
Novamente esse ethos básico será viabilizado relacionamentos de tudo com tudo. Economia, ges-
concretamente pelas distintas iniciativas morais, pró- tão e cálculo têm a ver com fIlosofia, física, arte e
prias de cada cultura, de cada região e de cada tradi- religião. Nada existe justaposto ou desvinculado do
ção espiritual. todo. As partes estão no todo, e o todo, como num

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l E O N DoBoFF ETHosM o I A l

holograma, reflete-se em cada parte. Adaptabilida- A arte do pensamento holístico não é desconsi-
de, versatilidade, consorciação, continua aprendiza- derar as morais em nome de um ethos abstrato e no
gem, regeneração, reciclagem e sinergia são algumas fundo a histórico, mas, ao valorar as diferentes mo-
das características da perspectiva holística. rais, guardar o sentido da unidade e da totalidade
O novo paradigma se funda sobre esta nova per- complexa e orgânica de um mesmo ethos subjacente.
cepção sempre diferenciada, complexa e globaliza- Holisticamente, as diferentes morais são comple-
dora. Por essa lógica do complexo e do holístico, mentares. O fato de uma desempenhar a função de
podemos dar conta dos graves problemas ligados à violino; a outra, a de contrabaixo; e estoutra, a de
globalização, em que tantas diversidades convivem bumbo não significa que todas elas deixem de per-
numa mesma e única casa comum, o planeta Terra, e tencer à mesma orquestra e deixem de tocar a mes-
no interior de uma grande e única república global. ma grandiosa sinfonia.
Já nos albores da idade moderna, o grande jurista de O holismo permite ver e apreciar tanto a árvore
Salamanca, Francisco de Vitória, dizia, ao se referir que, soberana, eleva-se sobre a paisagem, quanto a
ao sentido do poder civil: "totus orbis, aliquo modo, est floresta luxuriante da qual ela faz parte. Elas se per-
una repubh'ca'~ (de certa forma, toda a orbe é uma úni- tencem mutuamente e pertencem ao mesmo todo.
ca república).
Em termos, o nosso tema de um ethos mundial
significa, holisticamente: poder identificar por trás das
muitas morais históricas, seja do passado, seja do pre-
sente, o mesmo ethos, aquela intenção originária de
organizar a casa humana, aquela boa-vontade que
Kant colocava como a pré-condição para qualquer
discurso ético e como o único valor sem ruga nem
mácula, boa-vontade que instaurou (bem ou mal)
normas, leis e ordenações, visando ao "viver feliz" e
"ao bem con-viver".

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I
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1. M~STICA E
ESPB RiTUALIDADIE:
BASE PARA UMA
ÉTICA MUNDIAL?

~"1 J
; Imperativos éticos claros são fundamentais, mas
I
insuficientes. Há exigências éticas que contradizem
II.
interesses imediatos de pessoas, classes e nações. Por
que, então, segui-las? Os apelos éticos para uma con-
tenção mundial, para uma nova solidariedade e para
uma co-responsabilidade planetária ficam, não raro,
sem eficácia. A razão sozinha e a nova compreensão
da natureza (cosmologia) não têm força suficiente para
i fazer valer incondicionalmente imperativos categóri-
I
cos, mesmo sob ameaça da autodestruição humana.
A dimensão del11ensdos seres humanos explica opções

I
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,
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lEON RDO BOFF
ETHosM N D I A l

pelo absurdo. Por outra parte, tudo cai sob o hori- da qual nos sentimos inseridos como parte e parcela
zonte histórico e aí, sob o condicionado, o relativo e e do Fundamento que a origina e sustenta. São tais
o transiente.
experiências seminais que movem a vida humana e
Podem tais instâncias exigir algo de absoluto e dão força aos imperativos éticos.
incondicionado? Um imperativo verdadeiramente
categórico? Como o enfatizou, com razão a tradi- 1. Que é espiritualidade e mística
ção teológica transcultural, só um Incondicionado
pode exigir algo incondicionado. Só a Suprema Re- Formalizando, a espiritualidade é aquela ati-
alidade pode fundar algo supremo. Talvez devamos tude pela qual o ser humano se sente ligado ao
reconhecer que esse Incondicionado e Supremo não todo, percebe o fio condutor que liga e re-liga
possa ser demonstrado pelo tipo de razão, hoje do- todas as coisas para formarem um cosmos. Essa
minante, a instrumental-analítica, mas organizada experiência permite ao ser humano dar um nome
para dominar o mundo por meio do projeto da tec- a esse fio condutor, dialogar e entrar em comu-
no ciência, do que dar razões e oferecer significados nhão com ele, pois o detecta em cada detalhe do
existenciais. Mas ele pode ser acolhido por uma en- re'al. Chama-o por mil nomes, Fonte Originária
trega humana sensata, globalizante e racional, por- de todas as coisas, Mistério do Mundo ou sim-
tanto, por outro tipo de razão mais cordial e holís- plesmente Deus.
tica, tão humana, senão mais, que qualquer outra A mística é aquela forma de ser e de sentir que
forma de razão. Eis o lugar da razão hermenêutica, acolhe e interioriza experiencialmente esse Mistério
simbólica, sacramental e utópica. sem nome e permíte que ele impregne toda a existên-
É no âmbito do pathos que a dimensão espiritual . cia. Não o saber sobre Deus, mas o sentir Deus fi.lO-
pode emergir como profundidade do ser humano e da o místico. Como dizia com acerto L. Wittgens-

do próprio universo e, juntamente com ela, a perspec- tein: "O místico não reside no como o mundo é mas no
tiva mística. Tanto a espiritualidade quanto a mística fato de que o mundo é". Para ele, crer em Deus é com-
têm a ver com experiências profundas e com grandes preender a questão do sentido da vida; crer em Deus
emoções vinculadas à percepção da totalidade dentro é afirmar que a vida tem sentido. É esse tipo de mís-
tica que confere um sentido último ao caminhar

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humano e a suas indagações irrenunciáveis sobre a fazem com que a ética tenha mais a ver com a sabe-
origem e o destino do universo e de cada ser huma- doria do que com a razão, mais com o bem-viver do
no. É por meio delas que o ser humano vê sentido que o bem-julgar, e mais com virtudes do que com
em renunciar a interesses menores, em fazer sacrifícios idéias.
pessoais, em seguir o chamado ético de sua consciên-
cia e atender aos apelos da realidade ferida. 2. Convergências entre as
A mística e a espiritualidade se exteriorizam ins- religiões
titucionalmente nas religiões do mundo. Normalmen-
Não obstante as diferenças doutrinais e os cami-
te, as religiões estão em guerra entre si. Mas apesar
nhos espirituais diversos, as religiões convergem em
disso, se olharmos mais profundamente, elas são as
alguns pontos, decisivos para um ethosmundial, como
grandes gestadoras de esperança, dos grandes sonhos,
o enfatizou tão convincentemente Hans Küog em suas
de integração, de salvação, de um destino transcen-
obras sobre o ethos mundial. Vejamos alguns:
dente do ser humano e do universo. Todas elas rea-
a) cuidado com a vida: todas as religiões defendem
firmam o futuro da vida, contra a evidência cruel da
a vida, especialmente aquela mais penalizada e sofri-
morte. As religiões trabalham com valores e anunciam
da. Propõem-se expandir o reino da vida e prome-
sempre o Supremo Valor.
tem a perpetuidade, quando não a ressurreição e a
A espiritualidade e a mística subjazem aos dis-
eternidadé da vida. Mas não apenas da vida humana,
cursos éticos, portadores de valores, de normas e de
mas também de todas as formas de vida, particular-
atitudes fundamentais. Sem elas, a ética se transforma
mente das mais ameaçadas;
num código frio de preceitos e as várias morais em
b) comportamento ético elementar: todas as religiões
processos de controle social e de domesticação cul-
colocam um imperativo categórico: não matar, não
tural. Por isso, a ética, como prática concreta, remete
mentir, não roubar, não violentar, amar pai e mãe e
a uma atmosfera mais profunda, àquele conjunto de
ter carinho para com as crianças. Esses imperativos,
visões, sonhos, utopias e valores inquestionáveis que
quando traduzidos em nosso dialeto cultural, favore-
se compediam na mística e na espiritualidade. São
cem uma cultura de veneração, de diálogo, de siner-
como a aura, sem a qual nenhuma estrela brilha. Elas
gia, de não-violência ativa e de paz;

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l E O N IDOBoFF ETHosM N O I A l

c) ajusta medida: as religiões procuram orientar as linguagem da ftlosofia e da teologia da libertação de


pessoas pelo caminho da sensatez, que significaa busca Enrique Dussel: "Liberta o pobre";
da eqüidistância entre o legalismo e o libertinismo. Elas e).figuras éticas exemplares: as religiões não apresen-
propõem nem o desprezo do mundo, nem sua adoração, tam apenas máximas e atitudes éticas,mas principalmente
nem o hedonismo, nem o ascetismo,nem o imanentismo, figuras históricas concretas, paradigmas vivos,como tan-
nem o transcendentalismo, mas o justo equihbrio em to- tos mestres, santos e santas, justos e justas, heróis e he-
dos esses domínios, como o temos sustentado em nosso roínas que viveram dimensões radicais de humanidade,
livro A águia e a galinha: uma met4ftra da condiçãohumana estilos de vida, ideais, sonhos humanitários que servem
(1997).Esse caminho do meio é constnúdo pelas virtu- de referências para outros. São as práticas coerentes que
des.Mais do que atos, são atitudes que nascem de dentro, convencem, e não as idéias brilhantes. Daí deriva a força
guardam coerência com a totalidade da pessoa e ~preg- mobilizadora de figuras eticamente exemplares como
nam de excelênciatodas as suas relações; Jesus, os profetas bíblicos,Buda, Confúcio, Chuang-Tzu,
d) a centra/idade do amor: todas as religiões pre- Francisco de Assis, Gandhi, Luther King, Dag
gam a incondicionalidade do amor. Com referência Hamarskjoeld, Irmã Dulce, Dom Helder Câmara, Ma-
ao próximo, são apodíticas. Confúcio (551-489 a.c.) dre Teresa de Calcutá, Mãe Menininha do Gantois e
pregava: "O que não desejas para ti, não o faças a Chico Mendes, entre tantos outros e outras;
outro". Ou Jesus: ''Amem-se uns aos outros como eu f) definição de um sentido derradeiro: a questão
vos tenho amado" (amou-nos até o fim). Ou na lin- que move as religiões é sempre o sentido do todo
guagem filosófica e secular de Emmanuel Kant: ''Age e do ser humano. Nunca a morte tem a última
assim que a máxima de tua vontade seja ao mesmo palavra, mas a vida, sua conservação, sua ressur-
tempo o princípio de uma lei válida para todos". reição e sua perpetuidade. Todas postulam um fim
"Considere o homem em você e nos outros sempre bom para a criação e uma destinação bem-aven-
como fim e jamais como meio". Ou na perspectiva turada para os justos.
ecológica de Hans Jonas: "age de tal maneira que os Todas estas perspectivas, profundamente huma-
efeitos da tua ação sejam compatíveis com a perma- nas, são elaboradas no interior das religiões e das tra-
nência de uma vida autenticamente humana". Ou na dições espirituais. Elas são em si mesmas práticas

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LEO ,RDOBoff

éticas e impregnam a consciência de motivações po-


derosas para que as pessoas se disponham a seguir
£S\, C:CQ:[~G:r-J)'~ã\@g
apelos éticos, por mais onerosos que se apresentem. \\F~L<tucQJ[lJI~~rx~ CJ)[~(U ~L:C{@:£
E conferem-lhes a satisfação interior de estar em con- nf;GO~r~ [Q) [fi:,J,
formidade com os apelos do coração e com as inter-
pelações que nascem da realidade global.

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Em 1970, celebrou-se uma conferência mundial


das religiões em favor da paz, em Kyoto, no Japão.
Ali se tentou traçar as virtudes de um ethos mundial.
Entre outras coisas, foi dito:
1. há uma unidade fundamental da família hu-
mana, na igualdade e dignidade de todos os seus
membros;
2. cada ser humano é sagrado e intocável, espe-
cialmente em sua consciência;
3. toda comunidade humana representa um
valor;
4. o poder não pode ser igualado ao direito. O
poder jamais se basta a si mesmo, não é jamais absoluto

134 135
l E O ~ RDOBoFF ETHOSM N O I A l

e deve ser limitado pelo direito e pelo controle da 6. não só produtividade, mas também solidarie-
comunidade; dade para com a natureza e as gerações futuras;
5. a fé, o amor, a compaixão, o altruísmo, a for- 7. não só tolerância, mas também ecumenismo;
ça do espírito e a veracidade interior são, em última 8. não só a Terra, mas também o cosmos;
instância, muito superiores ao ódio, à inimizade e ao 9. não só o cosmos, mas também a Fonte origi-
egoísmo; nária de todo ser, Deus;
6. deve-se estar, por obrigação, do lado dos 10. não só a vida terrenal e a morte, mas tam-
pobres e oprimidos e contra seus opressores; bém a ressurreição e a vida eterna.
7. alimentamos profunda esperança de que, no Iniciamos nossas reflexões aceitando o desafio
[mal, a boa-vontade triunfará. de' três questões globais: os empobrecidos do mun-
Aqui se nota um consenso ao redor de valores do, os desempregados estruturais e o clamor da Ter-
que, observados, poderão salvar a Terra, resgatar os ra. Para debelar estas questões, precisamos de um
excluídos e dar sentido às lutas dos que buscam vida consenso mínimo sustentado pela razão cordial, pelo
e liberdade. Mais que prescrições, são apelos, chama- cuidado essencial, pela reverência em face de cada
mentos ao melhor do que existe em nós. O lado lu- realidade, da Terra e do cosmos. Essa atitude signifi-
minoso poderá redimir o lado sombrio que sempre ca o ethos básico que poderá dar origem a muitas
nos acompanha. expressões morais, consoante a diversidade das
O cristianismo-ecumênico se soma a essa con- culturas, das tradições e dos tempos. Mas todas elas
vergência das religiões mundiais. Na esteira de Hans devem expressar o mesmo ethos e a mesma boa-von-
Küng, podemos postular (projekt Weltethos, 93-96): tade fundamental de servir à vida, defendê-la, expan-
1. não só a razão, mas também o coração; di-la e permitir que ela continue a fazer sua trajetória
2. não só a cultura material, mas também a espi- no universo rumo à Fonte originária de toda vida.
ritual; Aos que despertamos para a urgência destas ques-
3. não só liberdade, mas também justiça; tões, a história nos impôs esta missão: alimentar a cha-
4. não só igualdade, mas também pluralidade; ma sagrada que arde em cada ser humano, quallampa-
5. não só coexistência, mas também paz; tina santa, com o óleo da veneração e do cuidado

136 137
lEO~ RDOBoFF

essencial. Somente assim garantiremos que o Ethos


essencial que habita o ser humano continue a ser seu INDICACÕES
anjo protetor e jamais seja ofuscado ou extinto da BIBLIOGRÁFICAS
face da Terra.

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144 145
Preâmbulo
"'L

1I Estamos diante de um momento crítico na his-


tória da Terra, numa época em que a humanidade deve
escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se
cada vez mais interdependente e frágil, o futuro en-
frenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes
promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer
que, no meio de uma magnífica diversidade de cultu-
ras e formas de vida, somos uma família humana e
uma comunidade terrestre, com um destino comum.
Devemos somar forças para gerar uma sociedade
sustentável global baseada no respeito pela natureza,
nos direitos humanos universais, na justiça econômi-
ca e numa cultura da paz. Para chegar a este propósi-
to, é imperativo que, nós, os povos da Terra, declare-
mos nossa responsabilidade uns para com os outros,
com a grande comunidade da vida, e com as futuras
gerações.

147
lEONA o B o F F ETHosMI D I A l

Terra, nosso lar grande sofrimento. O crescimento sem precedentes


da população humana tem sobrecarregado os siste-
A humanidade é parte de um vasto universo em mas ecológico e social. As bases da segurança global
evolução. A Terra, nosso lar, está viva, com uma co- estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas
munidade de vida única. As forças da natureza fazem não inevitáveis.
da existência uma aventura exigente e incerta, mas a
Terra providenciou as condições essenciais para a Desafios para o futuro
evolução da vida. A capacidade de recuperação da A escolha é nossa: formar uma aliança global
comunidade da vida e o bem-estar da humanidade
para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a
dependem da preservação de uma biosfera saudável, nossa destruição e a da diversidade da vida. São ne-
com todos os seus sistemas ecológicos, uma rica va-
cessárias mudanças fundamentais dos nossos valores,
riedade de plantas e animais, solos férteis, águas pu-
instituições e modos de vida. Devemos entender que,
ras e ar limpo. O meio ambiente global, com seus
quando as necessidades básicas forem atingidas, o
recursos [mitos, é uma preocupação comum de to-
desenvolvimento humano é primariamente ser mais} e
das as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade não ter mais. Temos o conhecimento e a tecnologia
e beleza da Terra é um dever sagrado.
necessários para abastecer a todos e reduzir nossos
impactos ao meio ambiente. O surgimento de uma
A situação global
sociedade civil global está criando novas oportuni-
dades para construir um mundo democrático e hu-
Os padrões dominantes de produção e consu-
mano. Nossos desafios, ambientais, econômicos, po-
mo estão causando devastação ambiental, redução
líticos, sociais e espirituais estão interligados, e jun-
dos recursos e uma massiva extinção de espécies.
tos podemos forjar soluções includentes.
Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios
do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüi- Responsabilidade universal
tativamente e o fosso entre ricos e pobres está
aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignoráncia e os Para realizar essas aspirações, devemos decidir
conflitos violentos têm aumentado e são causa de viver com um sentido de responsabilidade universal,

148 149
lEONA OBOFF

identificando-nos com toda a comunidade terrestre,


bem como com nossa comunidade local. Somos ao PRINCíPIOS
mesmo tempo cidadãos de nações diferentes e de um
mundo no qual a dimensão local e global estão liga-
das. Cada um comparte responsabilidade pelo pre-
sente e pelo futuro, pelo bem-estar da família huma-
na e do grande mundo dos seres vivos. O espírito de I. RESPEITAR E CUIDAR DA
solidariedade humana e de parentesco com toda a COMUNIDADE DE VIDA
vida é fortalecido quando vivemos com reverência o
mistério da existência, com gratidão pelo presente 1. Respeitar a Terra e a vida em toda a
da vida, e com humildade, considerando o lugar que sua diversidade
a. Reconhecerque todos os seres são interligados
ocupa o ser humano na natureza.
e cada forma de vida tem valor, independentemente
Necessitamos com urgência de uma visão de
do uso humano.
valores básicos para proporcionar um fundamento
b. Afirmar a fé na dignidade inerente a todos os
ético à emergente comunidade mundial. Portanto,
seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético
juntos na esperança, afirmamos os seguintes princí-
e espiritual da humanidade.
pios, todos interdependentes, visando a um modo de
,;
vida sustentável como critério comum, por meio dos
2. Cuidar da comunidade da vida com
quais a conduta de todos os indivíduos, organizações,
compreensão, compaixão e amor
empresas de negócios, governos e instituições trans- a. Acei/arque com o direito de possuir, adminis-
nacionais será guiada e avaliada.
trar e usar os recursos naturais vem o dever de impe-
dir o dano causado ao meio ambiente e de proteger
o direito das pessoas.
b. Afirmar que o aumento da liberdade, dos co-
nhecimentos e do poder comporta responsabilidade
na promoção do bem comum.

150 151
lEONARvOBoff E T H O 5 M u ,< D I A l

3. Construir sociedades democráticas 11. INTEGRIDADE ECOLÓGICA


que sejam justas, participativas,
sustentáveis e pacíficas 5. Proteger e restaurar a integridade
a.Assegurar que as comunidades em todos níveis dos sistemas ecológicos da Terra, com
garantam os direitos humanos e as liberdades funda- especial preocupação pela diversidade
biológica e pelos processos naturais
mentais e dar a cada uma a oportunidade de realizar
que sustentam a vida
seu pleno potencial.
a. Adotar planos e regulações de desenvolvi-
b. Promover a justiça econômica, propiciando a
mento sustentável em todos os níveis, que façam
todos a consecução de uma subsistência significativa
com que a conservação ambiental e a reabilitação
e segura, que seja ecologicamente responsável.
sejam parte integral de todas as iniciativas de de-

4. Garantir a generosidade e a beleza senvolvimento.


da Terra para as atuais e as futuras b. Estabelecer e proteger as reservas com uma
gerações natureza viável e da biosfera, incluindo terras selva-
a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada ge- gens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de
ração é condicionada pelas necessidades das gerações sustento à vida da Terra, manter a biodiversidade e
futuras. preservar nossa herança natural.
b. Transmitiràs futuras gerações valores, tradições c. Promover a recuperação de espécies e ecossis-
e instituições que apóiem, a longo termo, a prosperi- temas em perigo.
dade das comunidades humanas e ecológicas da Terra. d. Controlar e erradicar organismos não nativos
ou modificados geneticamente que causem dano às
Para poder cumprir estes quatro extensos com- espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a in-
promissos, é necessário: trodução desses organismos daninhos.
e. Mangar o uso de recursos renováveis como a
água, o solo, os produtos florestais e a vida marinha
com maneiras que não excedam as taxas de regenera-
ção e que protejam a sanidade dos ecossistemas.

152 153
II
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I

I
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i
. I
I
I
lEONA DOBoFF ETHosM N o I A l

f. Mandar a extração e o uso de recursos não re- 7. Adotar padrões de produção,


nováveis, como minerais e combustíveis fósseis, de consumo e reprodução que protejam as
forma que diminua a exaustão e não haja sério dano capacidades regenerativas da Terra, os
direitos humanos e o bem-estar
ambiental.
comunitário
a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usa-
6. Prevenir o dano ao ambiente como o
, dos nos sistemas de produção e consumo e garan-
melhor método de proteção ambiental
tir que os resíduos possam ser assimilados pelos
e, quando o conhecimento for limitado,
tomar o caminho da prudência sistemas ecológicos.
b. Atuar com restrição e eficiência no uso de ener-
a. Orientar ações para evitar a possibilidade de
gia e recorrer cada vez mais aos recursos energéticos
sérios ou irreversíveis danos ambientais mesmo quan-
renováveis, como a energia solar e o vento.
do a informação científica seja incompleta ou não
c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a
conclusiva.
transferência eqüitativa de tecnologias ambientais
b. Impor o ônus da prova àqueles que afirmam
saudáveis.
que a atividade proposta não causará dano significa-
d. Incluirtotalmente os custos ambientais e so-
tivo e fazer com que os grupos sejam responsabiliza-
ciais de bens e serviços no preço de venda e habi-
dos pelo dano ambiental.
litar aos consumidores identificar produtos que sa-
c. Garantirque a decisão a ser tomada se oriente
tisfaçam as mais altas normas sociais e ambientais.
pelas conseqüências humanas globais, cumulativas, de
e. Garantir acesso universal ao cuidado da saúde
longo termo, indiretas e de longa distância.
que fomente a saúde reprodutiva e a reprodução res-
d. Impedir a poluição de qualquer parte do
ponsável. .
meio ambiente e não permitir o aumento de subs-
f. Adotar estilos de vida que acentuem a quali-
tâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias
dade de vida e o suficiente material num mundo
pengosas.
finito.
e. Evitar que atividades militares causem dano
ao meio ambiente.

154 155
l E O N DO BOFF ETHOS U N D I A l

8. Avançar o estudo da b. Prover cada ser humano de educação e recursos


sustentabilidade ecológica e promover
para assegurar uma subsistência sustentável, e dar se-
a troca aberta e uma ampla aplicação
guro social [médico] e segurança coletiva a todos aque-
do conhecimento adquirido
les que não são capazes de manter-se a si mesmos.
a. Apoiara cooperação científica e técnica inter-
c. Reconhecer ao ignorado, proteger o vulnerável,
nacional relacionada à sustentabilidade, com especial
servir àqueles que sofrem, e permitir-lhes desenvol-
atenção às necessidades das nações em desenvolvi- ! ver suas capacidades e alcançar suas aspirações.
mento.
b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tra-
dicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas 10. Garantir que as atividades
que contribuem para a proteção ambiental e o bem- econômicas e instituições em todos os
estar humano. níveis promovam o desenvolvimento
c. Garantir que informações de vital importância humano de forma eqüitativa e
para a saúde humana e para a proteção ambiental, sustentável
incluindo informação genética, estejam disporuveis a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza
ao domínio público. dentro e entre nações.
b. Incrementaros recursos intelectuais, financeiros,
técnicos e sociais das nações em desenvolvimento e
111.Justiça social e econômica aliviar as dívidas internacionais onerosas.
c. Garantir que todas as transações comerciais
9. Erradicar a pobreza como um apóiem o uso de recursos sustentáveis, a proteção
imperativo ético, social, econômico e ambiental e normas laborais progressistas.
ambiental d. Exigir que corporações multinacionais e or-
a. Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à , ganizações financeiras internacionais atuem com
segurança alimentar, aos solos não contaminados, ao transparência em benefício do bem comum e respon-
abrigo e ao saneamento seguro, distribuindo os re- sabilizá-las pelas conseqüências de suas atividades.
cursos nacionais e internacionais requeridos.

156 157
LEO~ RDOBOFF
E T H O 1 UNO I A l

11. Afirmar a igualdade e a eqüidade


b. Afirmar o direito dos povos indígenas à sua
de gênero como pré-requisitos para o
espiritualidade, conhecimentos, terras e recursos, as-
desenvolvimento sustentável e
assegurar o acesso universal à sim como às suas práticas relacionadas a formas sus-
educação, ao cuidado da saúde e às tentáveis de vida.
oportunidades econômicas c. Honrare apoiar os jovens das nossas comuni-
a. Assegurar os direitos humanos das mulheres' e dades, habilitando-os para cumprir seu papel essen-
das meninas e acabar com toda violência contra elas. cial na criação de sociedades sustentáveis.
b. Promovera participação ativa das mulheres em d. Protegere restaurar lugares notáveis, de signifi-
todos os aspectos da vida econômica, politica, civil, cado cultural e espiritual.
social e cultural, como parceiros plenos e paritários,
tomadores de decisão, lideres e beneficiários.
IV: Democracia, não-violência e paz
c. Fortaleceras famílias e garantir a segurança e a
criação amorosa de todos os membros da família.
13. Fortalecer as instituições
democráticas em todos os níveis e
proporcionar-lhes transparência e
12. Defender, sem discriminação, os
prestação de contas no exercício do
direitos de todas as pessoas a um
governo, a participação inclusiva na
ambiente natural e social, capaz de
tomada de decisões e no acesso à justiça
assegurar a dignidade humana, a
saúde corporal e o bem-estar a. Deftndero direito de todas as pessoas de rece-
espiritual, dando especial atenção aos ber informação clara e oportuna sobre assuntos am-
direitos dos povos indígenas e minorias bientais e todos os planos de desenvolvimento e ati-
a. Eliminara discriminação em todas as suas for- vidades que poderiam afetá-las ou nos quais tivessem
mas, como as baseadas na raça, cor, gênero, orienta- interesse.
ção sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica b. Apoiar sociedades locais, regionais e globais e
ou social. promover a participação significativa de todos os
indivíduos e organizações na toma de decisões.

158 159
l E O RDOBoFF E T H O U N D I A l

c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de d. Reconhecer a importância da educação moral e


expressão, de assembléia pacífica, de associação e de espiritual para uma subsistência sustentável.
oposição [ou discordância].
d. Instituiro acesso efetivo e eficiente a procedi-
mentos administrativos e judiciais independentes, in- 15. Tratar todos os seres vivos com
cluindo mediação e retificação dos danos ambientais respeito e consideração.

e da ameaça de tais danos. a. Impedir crueldades aos animais mantidos em

e. Eliminara corrupção em todas as instituições sociedades humanas e diminuir seus sofrimentos.


públicas e privadas. b. Proteger animais selvagens de métodos de caça,
£ Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as armadilhas e pesca que causem sofrimento externo,
a cuidar dos seus próprios ambientes e designar res- prolongado o evitável.
ponsabilidades ambientais em âmbito governamental c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a cap-

onde possam ser cumpridas mais efetivamente. tura ou a destruição de espécies que não são o alvo
[ou o objetivo].
14. Integrar na educação formal e na
aprendizagem ao longo da vida os
conhecimentos, valores e habilidades 16. Promover uma cultura de
necessários para um modo de vida tolerância, não violência e paz
sustentável a. Estimular e apoiar os entendimentos mútuos,
a. Oferecera todos, especialmente a crianças e a jo- a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas,
vens, oportunidades educativas que os preparem a con- dentro e entre nações.
tribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável. b. Implementar estratégias amplas para prevenir
b. Promovera contribuição das artes e humanidades, conflitos violentos e usar a colaboração na resolução
assim como das ciências,na educação sustentável. de problemas para manejar e resolver conflitos am-
c. Intensificar o papel dos meios de comunicação bientais e outras disputas.
de massas no sentido de aumentar a conscientização c. Desmilitarizaros sistemas de segurança nacional
dos desafios ecológicos e sociais. até chegar ao nível de uma postura não provocativa

160 161
l E O N RDO BOFF

da defesa e converter os recursos militares em pro-


pósitos pacíficos, incluindo restauração ecológica. o CAMINHO ADIANTE
d. Eliminararmas nucleares, biológicas e tóxicas
e outras armas de destruição em massa.
e. Assegurar que o uso de espaços orbitais e exte-
riores mantenha a proteção ambiental e a paz.
f. Reconhecer que a paz é a integridade criada por Como nunca antes na história, o destino comum
relações corretas consigo mesmo, com as outras pes- nos conclama a buscar um novo começo. Tal renova-
soas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com ção é a promessa dos princípios da Carta da Terra.
o grande Todo do qual somos parte. Para cumprir esta promessa, temos de comprome-
ter-nos a adotar e promover os valores e objetivos
da Carta.
Isto requer mudança na mente e no coração. Re-
quer um novo sentido de interdependência global e de
responsabilidade universal. Devemos desenvolver e
aplicar com imaginação a visão de um modo de vida
sustentável em âmbito local, nacional, regional e glo-
bal. Nossa diversidade cultural é uma herança precio-
sa e diferentes culturas encontrarão suas próprias e dis-
tintas formas de realizar esta visão. Devemos aprofun-
dar e expandir o diálogo global gerado pela Carta da
Terra, porque temos muito a aprender da continuada
busca de verdade e de sabedoria.
A vida muitas vezes envolve tensões entre valores
importantes. Isto pode significar escolhas difíceis.Po-
rém ,necessitamos encontrar caminhos para harmonizar

162 163
I
I

I
L E O RDOBOFF

a diversidade com a unidade, o exercício da liberda-


o A u T o R
de com o bem comum, objetivos de curto prazo com
metas de longo prazo. Todo indivíduo, família,
organização e comunidade têm um papel vital a
desempenhar. As artes, as ciências, as religiõ~s, as ins-
tituições educativas, os meios de comunicação, as em-
presas, as organizações não governamentais e os go-
vernos são todos chamados a oferecer uma liderança
criativa. A parceria entre governo, sociedade civil e Leonardo Boff é profes-
empresa é essencial para uma governabilidade efetiva. sor de teologia, fllosofia,
Para construir uma comunidade global susten- espiritualidade e ecolo-
tável, as nações do mundo devem renovar seu com- gia. Trabalhou mais de vinte anos como francis-
cano em Petrópolis/R], com um pé na academia
promisso com as Nações Unidas, cumprir com suas
e outro nos meios onde imperava a pobreza. Des-
obrigações, respeitando os acordos internacionais sa combinação nasceu a Teologia da Libertação,
existentes e apoiar a implementação dos princípios da qual, juntamente com Frei Betto, é um dos ex-
da Carta da Terra juntamente com um instrumento in- poentes. Assessora movimentos sociais, dá cur-
ternacionallegalmente vinculante com referência ao sos em universidades brasileiras e estrangeiras e
escreve com assiduidade. Dos muitas livros que
ambiente e ao desenvolvimento.
publicou se destacam, pela Editora Vozes, Jesus
Que o nosso tempo seja lembrado pelo desper- Cristo libertador, Como fazer Teologia da libertação;
tar de uma nova reverência diante da vida, por um O rosto materno de Deus; A águia e a galinha e O
compromisso ftrme de alcançar a sustentabilidade, despertar da águia; pela Letraviva, Ética da ~ida e
pela rápida luta pela justiça, pela paz e pela alegre A voz do arco-íris. Publicou também, pela Atica,
Ecologia:grito da Terra, grito dospobres; pela Record,
celebração da vida.
Brasa sob cinzas, estóriasdo anticotidiano;e pela Roc-
co, juntamente com Frei Betta, Mística e Espinlua-
lidade. É professor emérito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

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