Você está na página 1de 10

Formalização das fronteiras na América Latina

3.11 Fronteira Brasil-Paraguai (terrestre)


No litígio de limites entre Brasil e Paraguai que se sucedeu à
independência de ambos os países, o governo paraguaio passou a
defender o rio Branco como linha limítrofe, invocando como título
histórico o Tratado de Santo Ildefonso (1777), enquanto o governo
brasileiro arguia pelo rio Apa, em conformidade com o Tratado de
Badajós (1801). Nenhum desses acordos coloniais, entretanto,
permanecia em vigor ao tempo da descolonização.
As primeiras tratativas entre os dois países quanto às suas
fronteiras resultaram no Tratado de aliança, comércio e limites,
firmado em 1944, que, no entanto, não viria a ser ratificado
pelo governo imperial brasileiro. Seu artigo XXXV dispunha: “As
altas partes contratantes se comprometam também a nomear
comissários que examinem e reconheçam os limites indicados no
Tratado de Santo Ildefonso de 1º de outubro de 1777 para que
se estabeleçam os limites definitivos entre ambos os Estados”.
Ou seja, ao recorrerem ao Tratado de Santo Ildefonso, as partes
evitavam, nesse momento, a adoção do uti possidetis como critério
definidor de seus limites.296
Em 27 de abril de 1855, os dois países firmaram, em Assunção,
o Tratado de amizade, comércio e navegação e, conjuntamente, uma
Convenção adicional. Falharam, no entanto, as negociações com
vistas a solucionar a questão de limites e esses acordos não viriam
a ser ratificados pelo Brasil.297
No ano seguinte, em 6 de abril de 1856, foram firmados no
Rio de Janeiro um novo Tratado de amizade, comércio e navegação,
com o objetivo de assegurar a livre navegação dos rios Paraguai e

296 GOES, 1991: 122-123.


297 BRASIL; PARAGUAI. Tratado de amizade, comércio e navegação entre S. M. o Imperador do Brasil e
S. Ex. o Presidente da República do Paraguai. Assunção, 27 de abril de 1855.

277
Formação das fronteiras latino-americanas

Paraná, e a Convenção de limites, ambos em vigor a partir do dia 13


desses mesmos mês e ano. A Convenção de limites “congelou” por
seis anos a questão territorial relativa à área entre os rios Apa e
Branco, transcorridos os quais os dois governos deveriam nomear
plenipotenciários para examinarem e ajustarem em definitivo a linha
divisória (art. 1º). Enquanto isso, as partes respeitariam e fariam
respeitar reciprocamente o seu uti possidetis de então (art. 2º).298
Em 12 de fevereiro de 1858, celebrou-se, em Assunção, uma
Convenção “sobre a verdadeira inteligência e prática” do Tratado de
1856, acompanhada de dois protocolos da mesma data. Assinaram
o feito Carlos Antonio López (1790-1862), pelo Paraguai, e José
Maria da Silva Paranhos (1819-1880), futuro visconde do Rio
Branco, pelo Brasil. Assentava-se que nenhuma das duas altas
partes faria “policiar por meio de embarcações [...] a parte do rio
Paraguai que se estende desde o Apa até o rio Branco, enquanto não
fosse ajustado o reconhecimento dos limites dos dois países”.299
O advento e o desfecho da Guerra do Paraguai (1865-1870),
que opôs o Paraguai à Tríplice Aliança, formada por Argentina,
Brasil e Uruguai, representou uma catástrofe para o povo paraguaio.
Além das perdas humanas, o país perderia territórios até então em
litígio com os vizinhos vitoriosos.
O Tratado da Tríplice Aliança ofensiva e defensiva contra o
governo do Paraguai, firmado em Buenos Aires a 1º de maio de
1865, estabeleceu as bases da aliança militar e as condições para a
celebração da paz. Seu texto, que deveria permanecer secreto (“Art.
18º Esse tratado se conservará secreto até que se consiga o fim
principal da aliança”), foi tornado público pelo governo britânico

298 OLIVEIRA, 1912a: 218.


299 OLIVEIRA, 1912a: 256.

278
Formalização das fronteiras na América Latina

em 1866,300 gerando problemas diplomáticos para os aliados, tais


como os protestos de Peru, Bolívia e Colômbia.301
Pelo tratado, foi assegurada a independência, soberania e
“integridade territorial” do Paraguai após a guerra, ainda que com
prazo determinado e embora mais adiante se tratasse das questões
territoriais:
Art. 8º Os aliados se obrigam a respeitar a independência,
soberania e integridade territorial da República do
Paraguai. Em consequência, o povo paraguaio poderá
escolher o governo e instituições que lhe aprouverem, não
podendo incorporar-se a nenhum dos aliados nem pedir o
seu protetorado como consequência dessa guerra.
Art. 9º A independência, soberania e integridade da
República do Paraguai estão garantidos coletivamente
de acordo com o artigo antecedente pelas altas partes
contratantes durante o período de cinco anos.302
Determinava-se também a indenização de guerra para os
aliados:
Art.14º Os aliados exigirão desse governo o pagamento
das despesas de guerra que se viram obrigados a aceitar,
bem como reparação e indenização dos danos e prejuízos
às suas propriedades públicas e particulares e às pessoas
de seus concidadãos, em expressa declaração de guerra;
e dos danos e prejuízos verificados posteriormente com
violação dos princípios que regem o direito da guerra.

300 GARCIA, 2005: 85.


301 ARGENTINA; BRASIL; URUGUAI, 1865.
302 ARGENTINA; BRASIL; URUGUAI, 1865. Ortografia atualizada.

279
Formação das fronteiras latino-americanas

A República Oriental do Uruguai exigirá também uma


indenização proporcional aos danos e prejuízos que lhe
causa o governo do Paraguai pela guerra que se obriga
a entrar para defender sua segurança ameaçada por
aquele governo.303
Quanto às concessões territoriais a serem exigidas do Paraguai,
determinou-se a seguinte partilha entre Brasil e Argentina:
Art. 16º Para evitar as dissensões e guerras que trazem
consigo as questões de limite, fica estabelecido que os
aliados exigirão do governo do Paraguai que celebre com
os respectivos governos tratados definitivos de limites
sob as seguintes bases:
O Império do Brasil se dividirá da República do Paraguai:
Do lado do Paraná, pelo primeiro rio abaixo do salto das
Sete Quedas, que, segundo a recente carta de Mouchez,
é o Igurei, e da foz do Igurei e por ele acima a procurar as
suas nascentes;
Do lado da margem esquerda do Paraguai, pelo rio Apa,
desde a foz até às suas nascentes;
No interior, pelo cume da serra de Maracaju, sendo as
vertentes de leste e do Brasil e as oeste do Paraguai
e tirando-se da mesma serra linhas as mais retas em
direção às nascentes do Apa e do Igurei.
A República Argentina será dividida do Paraguai pelos
rios Paraná e Paraguai, a encontrar os limites com o
Império do Brasil, sendo estes do lado da margem direita
do rio Paraguai e Baía Negra.304

303 ARGENTINA; BRASIL; URUGUAI, 1865. Ortografia atualizada.


304 ARGENTINA; BRASIL; URUGUAI, 1865. Ortografia atualizada.

280
Formalização das fronteiras na América Latina

“Os conservadores no Brasil”, segundo Garcia (2005), “irão


criticar o tratado pelas concessões territoriais excessivas feitas à
Argentina (posse de todo o Chaco)”.305
Apesar das exigências de se resolver a seu favor as questões
territoriais até então havidas com o Paraguai, que é o que se
depreende da leitura do art. 16 do Tratado da Tríplice Aliança, o
Brasil teria ainda assim aberto mão de parte de suas reivindicações
territoriais em face do vizinho:
Quanto aos limites com o Brasil (art. 16), o Governo
Imperial, dando ainda uma demonstração do seu
espírito conciliador, abriu mão da divisa pelo Igurey
e estabeleceu-a a começar do Salto das Sete Quedas,
seguindo pela Serra de Maracaju, até onde ela finda e daí
em linha reta até encontrar a de Amambaí, e pelo alto
desta até a principal nascente do rio Apa.306
Terminada a guerra, em 1870, foi concluído o protocolo
preliminar de paz, firmado por Argentina, Brasil, Uruguai e o
governo provisório do Paraguai. Por esse acordo, as questões
territoriais quedaram suspensas até a celebração de um tratado de
paz definitivo com o futuro governo constitucional paraguaio.307
Divergências entre os aliados levaram ao fracasso do tratado
definitivo, de que resulta a assinatura de tratados em separado entre
Brasil e Paraguai, em 1872, a despeito das disposições do Tratado
da Tríplice Aliança que proibiam a negociação em separado “com
o inimigo comum” (art. 6º), gerando forte reação da Argentina.
Mais tarde, esta última também firmaria tratados bilaterais com o
Paraguai (1875 e 1876).

305 GARCIA, 2005: 85.


306 OLIVEIRA, 1912a: 366.
307 GARCIA, 2005: 91.

281
Formação das fronteiras latino-americanas

Assim, Brasil e Paraguai firmaram, em Assunção, o Tratado de


limites de 9 de janeiro de 1872, conhecido como Tratado Cotegipe-
-Loizaga, que entrou em vigor no dia 26 de março desse ano e
substituiu a Convenção de limites de 1856. Os limites entre os dois
países restaram estabelecidos nos seguintes termos:
ARTIGO 1º
[...] O território do Império do Brasil divide-se com
o da República do Paraguai pelo álveo do rio Paraná,
desde onde começam as possessões brasileiras na foz do
Iguassú até o Salto Grande das Sete Quédas do mesmo
rio Paraná;
Do Salto Grande das Sete Quédas continua a linha
divisória pelo mais alto da Serra de Maracaju até onde
ela finda;
Daí segue em linha recta, ou que mais se lhe aproxime,
pelos terrenos mais elevados a encontrar a Serra
Amambahy;
Prosegue pelo mais alto desta Serra até a nascente
principal do rio Apa, e baixa pelo álveo deste até sua foz
na margem oriental do rio Paraguay;
Todas as vertentes que correm para Norte e Leste
pertencem ao Brasil e as que correm para Sul e Oeste
pertencem ao Paraguai.
A Ilha do Fecho dos Morros é domínio do Brasil.308

308 BRASIL; PARAGUAI. Tratado de limites (Tratado Cotegipe-Loizaga). Assunção, 9 de janeiro de 1872.
Ortografia atualizada.

282
Formalização das fronteiras na América Latina

Assim, pelo Tratado de 1872, o Brasil garantia a posse do


território reivindicado entre os rios Apa e Branco, atualmente
parte do Mato Grosso do Sul.309
Os atritos entre Brasil e Argentina no pós-guerra quanto
às reivindicações territoriais desta última levaram ao envio
de uma missão argentina ao Rio de Janeiro, chefiada pelo ex­-
-presidente Bartolomé Mitre, de que resulta a assinatura de um
acordo brasileiro-argentino sobre as pendências da paz, em 19 de
novembro 1872.
O Tratado Cotegipe-Loizaga de 1872, entre Brasil e Paraguai,
seria retificado em 1874, quando se substituíram alguns de seus
dispositivos, e por fim denunciado pelo Paraguai em 1881.310
Firmado em 1877 entre Argentina, Brasil e Uruguai, o
Protocolo de Montevidéu assegurou a independência, soberania e
integridade territorial do Paraguai.
Celebrado em substituição ao Tratado de 1872, o Tratado de
amizade, comércio e navegação, entre Brasil e Paraguai, assinado
em Assunção a 7 de junho de 1883, substituiu os Tratados de
1872 e 1874, mas veio também ele a ser denunciado pelo governo
paraguaio em 15 de setembro de 1897.311
Buscando resolver as indefinições em seus limites, Brasil e
Paraguai celebraram, por fim, o Tratado de limites complementar ao
de 1872, no Rio de Janeiro, em 21 de maio de 1927, estipulando-se
o seguinte:

309 GARCIA, 2005: 92.


310 GARCIA, 2005: 98.
311 OLIVEIRA, 1912b: 118.

283
Formação das fronteiras latino-americanas

ARTIGO I
Da confluência do rio Apa, no rio Paraguay, até a entrada
ou desaguadouro da Baía Negra, a fronteira entre os
Estado Unidos do Brasil e a República do Paraguai
é formada pelo álveo do rio Paraguay, pertencendo
a margem esquerda ao Brasil e a margem direita ao
Paraguay.
ARTIGO II
Além da ilha do Fecho dos Morros, que é brasileira,
conforme ficou estipulado na parte final do artigo 1º do
Tratado de Limites de 9 de Janeiro de 1872, pertencem,
respectivamente, aos Estados Unidos do Brasil ou ao
Paraguai, e as demais ilhas que fiquem situadas do
lado oriental ou do lado ocidental da linha de fronteira,
determinada pelo meio do canal principal do rio, de
maior profundidade, mais fácil e franca navegação,
reconhecido no momento da demarcação, segundo os
estudos efetuados.
Uma vez feita a distribuição geral das ilhas, elas só
poderão mudar de jurisdição por acessão à parte oposta.
As ilhas que se formarem posteriormente à data da
distribuição geral das mesmas serão denunciadas
por qualquer das partes contratantes e se fará a sua
adjudicação de acordo com o critério estabelecido no
presente artigo.312
Pelo acordo, definiram-se os limites no trecho rio Apa-
-Baía Negra e passou-se a empregar o talvegue como critério de
delimitação fluvial, inclusive para as ilhas.

312 BRASIL; PARAGUAI. Tratado de limites complementar ao de 1872. Rio de Janeiro, 21 de maio de 1927.
Ortografia atualizada.

284
Formalização das fronteiras na América Latina

A Ata de Iguaçu, firmada entre Brasil e Paraguai, na cidade de


Foz do Iguaçu, no dia 22 de junho de 1966, determinou, em seu
dispositivo 4:
[...] a energia elétrica eventualmente produzida pelos
desníveis do rio Paraná, desde e inclusive o Salto Grande
de Sete Quedas ou Salto de Guaíra até a Foz do rio Iguaçu,
será dividida em partes iguais entre os dois países, sendo
reconhecido a cada um deles o direito de preferência para
a aquisição desta mesma energia a justo preço, que será
oportunamente fixado por especialistas dos dois países,
de qualquer quantidade que não venha a ser utilizada
para o suprimento das necessidades do consumo do outro
país […]313
Esse acordo, juntamente com o Tratado de Itaipu, de 1973,
permitiu a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional
no rio Paraná, entre 1975 e 1982, em parceria entre os dois países,
e a criação de um lago artificial na fronteira em comum.
Para esclarecer certas lacunas do Tratado complementar de
1927, Brasil e Paraguai celebraram o Protocolo adicional ao tratado de
limites de 21 de maio de 1927, entre a República Federativa do Brasil
e a República do Paraguai, firmado em Assunção, em 4 de dezembro
de 1975. Acordou-se o seguinte reconhecimento recíproco:
ARTIGO I
A República Federativa do Brasil reconhece o domínio
territorial e a soberania da República do Paraguai sobre
a ilha denominada “Isla Margarita”, pelo Paraguai e
conhecida até agora como Ilha de Porto Murtinho, ou
Banco das Três Barras, pelo Brasil, de coordenadas
aproximadas vinte e um graus, quarenta e um minutos,

313 BRASIL; PARAGUAI. Ata de Iguaçu. Foz do Iguaçu, 22 de junho de 1966. Ortografia atualizada.

285
Formação das fronteiras latino-americanas

vinte e sete segundos e três décimos de Latitude sul


(21° 41’ 27.3” S) e cinquenta e sete graus, cinquenta
e três minutos, vinte e três segundos e seis décimos de
Longitude oeste (057° 53’ 23.6” W).
ARTIGO II
A República do Paraguai reconhece o domínio territorial
e a soberania da República Federativa do Brasil sobre a
ilha denominada Ilha do Chapéu, pelo Brasil, e conhecida
até agora como “Isla del Sombrero”, pelo Paraguai, de
coordenadas geográficas aproximadas vinte graus, trinta
e três minutos, trinta e oito segundos e nove décimos de
Latitude sul (20° 33’ 38.9” S) e cinquenta e oito graus de
Longitude oeste (058° 00’ 00.0” W).314
A fronteira Brasil-Paraguai hoje percorre, assim, o trecho
entre a foz do rio Apa e a foz do rio Iguaçu.

3.12 Fronteira Brasil-Peru (terrestre)


O primeiro acordo entre Brasil e Peru a tratar de seus limites
foi a Convenção especial de comércio, navegação e limites, firmada em
Lima, em 23 de outubro de 1851, com troca de notas de ratificação
em 18 de outubro de 1852.315
Como título a justificar suas pretensões territoriais, o Peru
invocara a Cédula Real emitida pelo rei da Espanha em 15 de julho
de 1802, que passava para o Vice-Reino do Peru as missões de
Maynas na província de Quito. Isso e a posse efetiva do território
(uti possidetis juris e de facto) lhe permitiram negociar com o Brasil
o traçado divisor pelo território a sul do rio Japurá até a Villa de

314 BRASIL; PARAGUAI. Protocolo adicional ao tratado de limites de 21 de maio de 1927. Assunção, 4 de
dezembro de 1975. Ortografia atualizada.
315 OLIVEIRA, 1912a: 174.

286

Você também pode gostar