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Formalização das fronteiras na América Latina

3.2 Fronteira Argentina-Brasil (terrestre)


Em um período de quase meio século, entre a independência
do Uruguai e a Guerra do Paraguai, pode-se considerar que a
fronteira Argentina-Brasil era meramente virtual ou esboçada.
Nesse período, o território de Missiones permaneceu sob disputa
entre Argentina e Paraguai, sendo que apenas com o acordo de paz
de 1876 seria formalmente reconhecido e integrado à soberania
argentina, passando a constituir os limites do país com o Brasil.
Curiosamente, Domingos Sarmiento (1999) não inclui o
Brasil entre os países limítrofes da Argentina, ao descrever, já no
parágrafo de abertura de sua obra Facundo, de 1845, a situação
geográfica de seu país, o que corrobora com certa percepção
quanto às incertezas da existência, à época, da fronteira argentino-
-brasileira:
El continente americano termina al sur en una punta,
en cuya extremidad se forma el Estrecho de Magallanes.
Al oeste, y a corta distancia del Pacífico, se extienden,
paralelos a la costa, los Andes chilenos. La tierra que
queda al oriente de aquella cadena de montañas y al
occidente del Atlántico, siguiendo el Río de la Plata hacia
el interior por el Uruguay arriba, es el territorio que se
llamó Provincias Unidas del Río de la Plata, y en el que aún
se derrama sangre por denominarlo República Argentina
o Confederación Argentina. Al norte están el Paraguay,
el Gran Chaco y Bolivia, sus límites presuntos.161
A histórica rivalidade entre Argentina e Brasil é interpretada
por Jorge Abelardo Ramos (2006) como uma herança do
antagonismo ibérico nas Américas:

161 SARMIENTO, 1999: 21.

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El antagonismo de siglos entre el Reino de Portugal y el


Reino de España se trasladó a la América revolucionaria
hasta nuestros días, gracias a los diligentes británicos,
el “máximo común divisor” en la integridad de pueblos
ajenos. Argentina y Brasil heredaron esa rivalidad, que
era prestada. Por esa razón se elevó un muro entre ambos
países, que afortunadamente ha sido derribado para
siempre con el promisorio nacimiento del Mercosur.162
Embora tenham experimentado certos momentos de tensão
e conflito em suas relações desde a independência, a questão
fronteiriça nunca foi motivo de grave desentendimento entre Brasil
e Argentina. A chamada Questão de Palmas foi, desde o início,
encaminhada pelos meios de solução pacífica de controvérsias,
sendo resolvida por sentença arbitral acatada por ambas as partes.
A delimitação que se seguiu tampouco foi objeto de maiores atritos,
como a seguir se verá.

3.2.1 Primeiros acordos


Brasil e Confederação Argentina firmaram, na cidade de
Paraná, o Tratado de amizade, comércio e navegação, em 29 de abril de
1856, que assegurou a livre navegação pelos rios Paraná, Uruguai e
Paraguai; o compromisso de não apoiarem a segregação de porção
alguma dos territórios de qualquer das partes; a independência
do Uruguai e reconhecimento da independência do Paraguai; a
neutralidade da ilha de Martín García (ou Martim Garcia) em
tempo de guerra, entre outras disposições. No ano seguinte, os
dois países celebraram a Convenção sobre navegação fluvial, em
complemento ao Tratado de 1856.

162 RAMOS, 2006: 14.

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Em 14 de dezembro de 1857, foi assinado na cidade de Paraná


o Tratado de limites entre Brasil e Confederação Argentina. No
entanto, o governo argentino não veio a ratificá-lo.163

3.2.2 Questão de Palmas


Argentina e Brasil firmaram um tratado em Buenos Aires, em
28 de setembro de 1885, para o reconhecimento dos rios Peperi-
-Guaçu e Santo Antônio, Chapecó ou Pequiriguassú e Chopim
ou Santo Antonio-Guassú e do território que os separa e estava
em litígio entre os dois países. Configurava-se, assim, a chamada
Questão de Palmas.
Buscando a pronta solução da questão de limites pendente
entre ambos, os dois países firmaram o Tratado de arbitramento,
em Buenos Aires, a 7 de setembro 1889.164 Foi este um dos últimos
atos de política externa do governo imperial do Brasil, antes da
Proclamação da República a 15 de novembro daquele mesmo ano.
Buscando “assumir uma postura ‘republicana’ de irmandade e
confraternização com os países americanos”, o Brasil firmou com
a Argentina em Montevidéu o Tratado de limites, de 25 de janeiro
de 1890, conhecido como Tratado de Montevidéu, “dividindo
o território litigioso de Palmas, conhecido por Missões”, como
diz sua epígrafe.165 A partilha do território era uma proposta
defendida sobretudo por Quintino Bocaiuva, ministro das
Relações Exteriores do governo provisório do Brasil. No entanto,
a solução “salomônica” encontrou cerrada oposição na Câmara dos
Deputados do Brasil, que desaprovou o Tratado de 1890 em sessão

163 OLIVEIRA, 2012a: 249-250.


164 OLIVEIRA, 2012b: 155-156.
165 GARCIA, 2005: 104.

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secreta de 10 de agosto de 1891, obrigando-se a retornar à solução


arbitral anteriormente acordada.166
A respeito desse episódio, relata o barão do Rio Branco (1945):
Alguns dias depois da sua ratificação (4 de novembro)
foi proclamada no Brasil a República, e, a instâncias
do Ministro Argentino no Rio de Janeiro, o Governo
Provisório concordou na divisão do território contestado,
ideia que o Governo de Buenos Aires afagava desde 1881.
[...]
A 25 de janeiro de 1890 foi assinado, em Montevidéu,
entre os representantes do Governo Provisório do Brasil e
os da República Argentina, um Tratado que dividia entre
as duas Partes Contratantes o território de Palmas.
Na República Argentina esta solução foi festejada com
grande entusiasmo. No Brasil, porém, ela produziu o
mais profundo sentimento de dor e levantou unânimes e
veementes protestos.
A questão do território de Palmas, na frase de um ilustre
escritor, passou assim pela grande prova do Juízo de
Salomão.167
Convidou-se então o árbitro escolhido, o presidente Grover
Cleveland (1837-1908), dos EUA, o mesmo que havia arbitrado a
questão limítrofe entre Costa Rica e Nicarágua em 1888.168 O chefe
da missão brasileira designado para o caso, barão de Aguiar de
Andrada, veio a falecer no meio do processo, sendo substituído por

166 OLIVEIRA, 1912b: 165.


167 BARÃO DO RIO BRANCO. Questões de limites. I: República Argentina. Ministério das Relações
Exteriores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. p. 237.
168 V. item 3.25.1, infra.

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José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o barão do Rio


Branco, que estreou como advogado e faria sua primeira atuação na
política externa representando o Brasil. O representante argentino
também veio a falecer, sendo substituído por Estanislao Zeballos
(1854-1923). Ambos viriam a se tornar ministros das Relações
Exteriores de seus respectivos países.
O árbitro proferiu sua sentença, gerando o Laudo Arbitral
de 1895, dando ganho de causa ao Brasil. Os territórios em litígio
foram adjudicados ao Brasil, com efeitos ex tunc, e em seguida
incorporados aos estados brasileiros de Santa Catarina e Paraná,
sendo que a um dos municípios deste último se deu o nome de
Clevelândia, em homenagem ao presidente Cleveland.
Tem-se, assim, que o território correspondente ao atual oeste
catarinense e sudoeste do Paraná continuou a pertencer de facto ao
Brasil entre 1885 e 1995. Os efeitos retroativos do Laudo de 1895
viriam a reconhecer a soberania brasileira no período em que a área
esteve em litígio.

3.2.3 Tratados de 1898, 1910 e 1927


Dando execução às determinações do Laudo arbitral de 1895,
Argentina e Brasil firmaram um Protocolo, no Rio de Janeiro, em 1º
de outubro de 1898, acerca da colocação de marcos nas nascentes
dos rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio.169 Firmaram também o
Tratado de limites, na mesma cidade, em 6 de outubro daquele ano,
que completou a delimitação entre os dois países.170
O artigo 1º do Tratado de 1898, que trata dos limites nos
rios Uruguai e Peperi-Guaçu, teria sua redação alterada pelas
convenções complementares de 1910 e de 1927, como adiante se

169 Cf. OLIVEIRA, 2012b: 259


170 ARGENTINA; BRASIL. Tratado de limites. Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1898.

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verá. O restante da fronteira Argentina-Brasil foi assim delimitado


pelo Tratado de 1898:
Artigo 2º
Da foz do rio Pepiri-guassú a linha segue pelo álveo desse
rio até a sua cabeceira principal, donde continua pelo
mais alto terreno até a cabeceira principal do rio Santo
Antônio e daí pelo seu álveo até a sua embocadura no
rio Iguassú, de conformidade com o laudo proferido pelo
Presidente dos Estados Unidos da América.
Pertence ao Brasil o território a Leste da linha divisória
em toda a extensão de cada um dos dois rios e da linha
que divide o mais alto terreno entre as cabeceiras dos
mesmos rios. Pertence à República Argentina o território
que fica a Oeste.
Artigo 3º
Da boca do rio Santo Antônio a linha segue pelo talvegue
do rio Iguassú até a sua embocadura no rio Paraná,
pertencendo ao Brasil a margem setentrional ou direita
do mesmo Iguassú e à República Argentina a meridional
ou esquerda.
Artigo 4º
As ilhas do Uruguay e do Iguassú ficarão pertencendo
ao país indicado pelo talvegue de cada um desses rios.
Os comissários demarcadores, porém, terão a faculdade
de propor a troca que julgarem aconselhada pela
conveniência de ambos os países e que dependerá da
aprovação dos respectivos Governos.171

171 ARGENTINA; BRASIL, 1898.

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Nos dispositivos restantes, o Tratado de 1898 institui as


comissões de limites e trata da demarcação pela comissão mista,
além da ratificação do próprio tratado.
A Convenção complementar ao tratado de limites de 1898,
firmada em Buenos Aires, em 4 de outubro de 1910, fixou “a linha
divisória no trecho do rio Uruguai compreendido entre a ponta
sudoeste da ilha chamada Brasileira ou do Quarahim [Quaraí], e
a boca do rio deste nome”.172 Assim dispôs a Convenção de 1910:
ARTIGO I
Desde a linha que une o marco brasileiro da barra
do Quarahim e o marco argentino que lhe fica quase
defronte, na margem direita do Uruguay, marcos
inaugurados ambos a 4 de abril de 1901, a fronteira
entre o Brasil e a República Argentina desce o dito rio
Uruguay, passando entre a sua margem direita e a
ilha brasileira do Quarahim, também chamada ilha
Brasileira e assim vai até encontrar a linha normal entre
as duas margens que fique situada um pouco a jusante da
extremidade sudoeste da sobredita ilha.
ARTIGO II
Comissários técnicos nomeados pelos dois Governos
farão o levantamento da secção do rio Uruguay entre
as duas linhas acima indicadas e estabelecerão um novo
marco brasileiro na extremidade sudoeste da ilha e outro
argentino, que corresponda a esse, sobre a margem
direita.173

172 OLIVEIRA, 1912b: 391. Ortografia atualizada.


173 ARGENTINA; BRASIL. Convenção complementar ao tratado de limites de 1898. Buenos Aires, 4 de
outubro de 1910.

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O artigo III da Convenção de 1910 derrogou o artigo 1º do


Tratado de 1898, quanto o artigo IV, derradeiro, trata da ratificação
do próprio acordo.
Em 27 de dezembro de 1927, Brasil e Argentina firmaram em
Buenos Aires a Convenção complementar de limites, que aperfeiçoou
a delimitação pelo rio Uruguai (artigo I) e determinou que se
erigissem novos marcos na Ilha Brasileira e na margem direita do
referido rio (artigo II). Derrogou, por fim, o artigo 1º do Tratado
de 1898.174
Comparando-se as disposições dos três tratados, a delimitação
da fronteira argentino-brasileira pelos rios Uruguai e Peperi-Guaçu
foi assim estabelecida:

Tratado de 1898 (redação original)

Artigo 1º
A linha divisória entre o Brasil e a República Argentina começa no rio
Uruguay defronte da foz do rio Quarahim e segue pelo talvegue daquele rio
até a foz do rio Pepiri-guassú. A margem esquerda ou oriental do Uruguay
pertence ao Brasil e a direita ou ocidental à República Argentina.175
175

174 ARGENTINA; BRASIL. Convenção complementar de limites. Buenos Aires, em 27 de dezembro de


1927.
175 ARGENTINA; BRASIL, 1898. Ortografia atualizada. O original, a versão autêntica em português, grafa
thalweg para talvegue.

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Convenção complementar de 1910 (alterou Convenção complementar de 1927 (alterou


a redação do Artigo 1º do Tratado de 1898) a redação do Artigo 1º do Tratado de 1898)

A linha divisória entre o Brasil e a República A linha divisória entre o Brasil e a República
Argentina no Rio Uruguay começa na linha normal Argentina, no rio Uruguai, começa na linha normal
entre as duas margens, que passa um pouco a entre as duas margens do mesmo rio e que passa um
jusante da ponta sudoeste da ilha brasileira do pouco a jusante da ponta sudoeste da ilha brasileira
Quarahim; segue, subindo o rio, a meia distância do Quaraim, também chamada Ilha Brasileira,
da margem direita ou argentina e das margens segue, subindo o rio, pelo meio do canal navegável
ocidental e setentrional da ilha Brasileira passando deste, entre a margem direita, ou argentina, e
defronte da boca do rio Meriñay na Argentina e as margens ocidental e setentrional da ilha do
da boca do rio Quarahim que separa o Brasil da Quaraim ou Brasileira, passando defronte da boca
República Oriental; subindo o mesmo rio Uruguay do rio Miriñay, na Argentina, e da boca do rio
vai encontrar a linha que une os dois marcos Quaraim, que separa o Brasil da República Oriental
inaugurados a 4 de abril de 1901, um brasileiro na do Uruguai, e, prosseguindo do mesmo modo pelo
barra do Quarahim, outro argentino na margem rio Uruguai, vai encontrar a linha que une os dois
direita do Uruguay. Daí segue pelo talvegue do marcos inaugurados a 4 de abril de 1901, um
Uruguay até a confluência do rio Pepiry Guassú, brasileiro, na barra do Quaraim, outro argentino, na
como ficou estipulado no artigo I do Tratado de 6 margem direita do Uruguai. Daí, segue pelo talvegue
de Outubro de 1898 e conforme a demarcação feita do Uruguai, até a confluência do Pepiri-Guassu,
de 1900 a 1904, como consta da Ata assinada no como ficou estipulado no art. 1.º do Tratado de 6 de
Rio de Janeiro a 4 de Outubro de 1910.176 outubro de 1898 e conforme a demarcação feita de
1900 a 1904, como consta da Ata assinada no Rio
de Janeiro a 4 de outubro de 1910.177
176177

Como se pode observar, além de uma descrição mais detalhada


dos limites entre os rios Uruguai e Peperi-Guaçu, as novas redações
tiveram o cuidado de reconhecer a jurisdição brasileira sobre a ilha
situada na foz do rio Quaraí (rio que perfaz os limites entre Brasil
e Uruguai) no rio Uruguai. Essa ilha, de nome Ilha Brasileira,
permanece em questão entre Brasil e Uruguai.178
Com isso se completou a delimitação da fronteira Argentina-
-Brasil, cuja linha hoje passa pelos rios Uruguai, Peperi-Guaçu e
Iguaçu, desde a confluência do Quaraí até o Alto Paraná.

176 ARGENTINA; BRASIL, 1910. Ortografia atualizada.


177 ARGENTINA; BRASIL, 1927.
178 V. item 3.13.4, infra.

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